LOPES, José Rogério & PEREIRA, Ângelo Moreira. Patrimônio cultural, turismo e desenvolvimento local:
Estudo de caso da Cidade Velha, ilha de Santiago, Cabo Verde. Sociabilidades Urbanas – Revista de
Antropologia e Sociologia, v.1, n.2, p. 45-60, julho de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
Patrimônio cultural, turismo e desenvolvimento local
Estudo de caso da Cidade Velha, ilha de Santiago, Cabo Verde1
Cultural heritage, tourism and local development
Case study of the Cidade Velha, Santiago Island, Cape Verde
José Rogério Lopes2
Ângelo Moreira Pereira3
Resumo: O artigo objetiva debater o impacto do turismo no desenvolvimento de Cabo
Verde, África, centrando oestudo na valorização do patrimônio cultural da Cidade Velha,
Patrimônio da Humanidade. O Governo do país tem investido na promoção do turismo com
o propósito de atrair investimentos externos e para o desenvolvimento da sua população.
Tal investimento segue as tendências do frame contemporâneo do turismo, organizado na
singularidade e diferenciação dos lugares. Nessa perspectiva, se descreve e analisa os
agenciamentos operadosno desenvolvimento das infraestruturas turísticas em Cidade Velha,
buscando reconhecer os seus impactos na vida dosmoradores. A investigação envolveu
análise documental e incursões etnográficas, nas quaisforam realizadas entrevistas
semiestruturadascom atores da comunidade.As conclusões indicam um descompasso nos
propósitos do projeto de desenvolvimento local, gerado pela tensão entre os agenciamentos
turísticos e as condições precárias de vida da população. Palavras-chave: cidade velha,
patrimônio cultural, turismo, desenvolvimento.
Abstract: The article aims to discuss the impact of tourism on the development of Cape
Verde, Africa, focusing the study on the enhancement of the cultural heritage of the Cidade
Velha (Old City), a World Heritage Site. The government of the country has invested in
promoting tourism in order to attract foreign investment and the development of its
population. This investment follows the trends of contemporary tourism frame, organized
the uniqueness and differentiation of places. In this perspective, it describes and analyzes
the agencies operated in the development of tourism infrastructure in the Cidade Velha,
seeking to recognize its impact on the lives of residents. The investigation involves
document analysis and ethnographic raids, in which were carried out semi-structured
interviews with community actors. The findings show a gap in local development project
purposes, generated by the tension between the tourist assemblages and the precarious
living conditions of the population. Keywords: Cidade Velha, cultural heritage, tourism,
development
Cabo Verde é uma República insular localizada na costa ocidental africana,
cerca de 500 km do Senegal, formada por dez ilhas, sendo somente nove delas
habitadas4. As ilhas encontram-se divididas em dois grupos: o de Barlavento (a Norte),
1Os autores agradecem à CAPES o financiamento da bolsa de Mobilidade Internacional que possibilitou a
pesquisa cujos dados parciais são aqui analisados. 2Doutor em Ciências Sociais (PUC-SP), Prof. dos PPGs em Ciências Sociais Unisinos, RS, e em
Desenvolvimento Regional da UFT, TO. Bolsista em Produtividade em Pesquisa CNPq. E-Mail:
[email protected]. 3Graduado em Ciências Sociais, UniCV - Universidade Pública de Cabo Verde. E-Mail:
[email protected]. 4 “O arquipélago ocupa uma superfície de 4033 km², tendo sido encontrado no século XV” (PIRES, 2007,
p. 23). Das dez ilhas que compõem o arquipélago, somente as ilhas do Sal, da Boa Vista e de Maio são
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composto pelas ilhas de Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, S. Nicolau, Boavista e
Sal; e as ilhas do Sotavento (a Sul), com Santiago, Fogo, Brava e Maio, além dos ilhéus
não habitados.
O desenvolvimento histórico do arquipélago inicia-se em 1460, com a chegada
de portugueses e a fundação da localidade denominada de Ribeira Grande (atual Cidade
Velha), na Ilha de Santiago, que se tornaria capital de Cabo Verde, no século XVI.
Trata-se da primeira cidade construída pelos portugues ao sul do Atlàntico. O
desenvolvimento posterior do país é marcado pelos ciclos das navegações
colonizadoras, sobretudo pelo tráfico de escravos e o comércio de carvão
(RODRIGUES, 2011; PIRES, 2007), implicando em constantes arranjos políticos e
mercantis, devido a sua distância de Portugal e da África (CORREIA E SILVA,
1996).Nesses arranjos, segundo Barros (2016), a sociedade cabo verdiana passou por
processos de decomposição e recomposição, entre os séculos XVII e XVIII, vindo a
configurar-se como uma colônia portuguesa periférica, de meados do século XIX a
meados do XX. O descaso de Portugal com o país gerou períodos de fome (a chamada
Fome dos 1940), desemprego e emigração em massa, e fomentou lutas pela sua
independência (CORREIA E SILVA, 2014).
Figura 1 - Localização do arquipélago de Cabo Verde ( Fonte:
http://www.africa-turismo.com/mapas/cabo-verde.htm.)
Após o processo de independência de Cabo Verde, ocorrido em 1975, o país
instituiu gradativamente os dispositivos de formação de Estado-Nação e passou a
elaborar e implementar seus planos de desenvolvimento, em consonância com sua
situação estratégica. Para além da estrutura portuária que se produziu no país,
atualmente, a República de Cabo Verde configura-se um país desprovido de recursos
naturais (minéricos) e o seu desenvolvimento é dependente de acordos internacionais
que subsidiam os investimentos para a produção de infra-estruturas locais, além das
remessas dos emigrantes5 e das divisas geradas pelo turismo.
planas. As demais têm uma topografia de montanhas acentuadas, com formações de escarpas rochosas ou
vulcânicas que podem chegar a 2800 m., como na ilha do Fogo, com vários vales entre elas. 5Em Cabo Verde, essa visão se reforça com a tradicional mobilidade da população. Cerca de metade da
população é de imigrantes residentes em outros países, que remetem divisas para as suas famílias. No dia
05/03/2015, a TCV (Televisão de Cabo Verde) exibiu um programa de entrevista com um demógrafo e
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Neste último caso, o arquipélago tem sido palco de elevado fluxo turístico, dado
ao seu potencial, constituindo um dos setores com maior dinâmica de crescimento
econômico, na medida em que contribui para a entrada de divisas, bem como para
dinamizar o mercado de trabalho e para promoção de intercâmbios culturais. O turismo
representa um dos principais eixos de desenvolvimento econômico sustentável e com
efeitos macroeconômicos importantes, sobretudo, na formação do Produto Interno Bruto
(PIB) do país. Segundo dados de um estudo promovido pela Curadoria da Cidade Velha
(2014, p. 15),
Com a abertura política, os sucessivos governos assumiram o turismo como
principal veículo de desenvolvimento traduzindo-se numa maior divulgação
do destino, na melhoria das infraestruturas de suporte, geração de emprego e
aumento da contribuição para o PIB, autalmente em cerca de 24%.
E aqui, defendendo a tese de que as populações locais constituem elementos
preponderantes para o desenvolvimento do turismo, e agentes inadiáveis na discussãode
estratégias para a definição do seu desenvolvimento e manutenção, o presente artigo
tem como objetivo debater a agência do turismo como fator do desenvolvimento de
Cabo Verde, centrando o objeto de estudo na valorização do patrimônio histórico e
cultural da Cidade Velha.
O governo da República de Cabo Verde tem investidona promoção do turismo,
desde a década de 1980, com o propósito de aproveitar as potencialidades desta cidade
como veículo para o desenvolvimento da sua população. Nesse contexto, pretende-se
analisar o modo como foram delineadas as etapas para o desenvolvimento das infra-
estruturas turísticas, tendo a preocupação de conhecer possíveis impactos na vida dos
seus moradores.
O turismo e seu frame contemporâneo: a produção das singularidades
O turismo dinâmico do mundo globalizado tem sido um dos principais
instigadores de desenvolvimento econômico e desenvolvimento local, em vários pontos
do globo. Na perspectiva de Irving et al (2005, p. 1), que analisam os significados da
sustentabilidade em planos turísticos,
o turismo apresenta a maior atividade global, com crescimento de 25% nos
últimos 10 anos. Cada vez mais pessoas têm o desejo de viajar e, as
estimativas apontam para 1500 milhões de chegadas internacionais até 2020,
mais do que o dobro dos níveis atuais, com tendência crescente em todas as
regiões do mundo, com as maiores taxas previstas no denominado “mundo
em desenvolvimento” […] que, em muitos países, o turismo doméstico
ultrapassa em importância o turismo internacional em volume e receita, o que
acentua ainda o impacto do turismo no cenário global que, atualmente gera
75 milhões de empregos diretos e 215 milhões de empregos indiretos, o que
se traduz em US$ 4.218 bilhões de produto global e 12% da exportação
internacional.
Este acentuado crescimento da atividade turística tem caracterizado o tempo
atual como aquele de maiores deslocamentos de pessoas pelo planeta, fato favorecido
pelas transformações aceleradas dos meios de transporte e comunicação,desde a
passagem do modo de regulamentação fordista para o de acumulação flexível. Segundo
Harvey (1992, p. 140),o modo de regulamentação vigente apoiou-se na “flexibilidade
dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e dos padrões de
pesquisador local, que expôs que o percentual dessas remessas na composição do PIB do país estava em
torno de 10%, mas já representou cerca de 20%. Esses dados foram constatados também pelo DECRP-
Documento de Estratégia de Crescimento e Redução da Pobreza III (2012-2016) (Apud ORTET, 2015, p.
32).
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consumo”, e se caracterizou por rápidas mudanças nos padrões do desenvolvimento
desigual entre regiões, criando e incrementando a terceirização e o desenvolvimento
industrial de regiões antes desprovidas destas atividades. Este novo modo de
regulamentação enfatiza a rapidez na solução de problemas e nas respostas
especializadas que atendem às mudanças rápidas no consumo (mudança de giro na
produção x giro no consumo), gerando uma “compressão do espaço-tempo” na vida
social.Assim, as maneiras predominantes e simultâneas pelas quais experimentamos o
tempo e o espaço vêm gerando mudanças profundas nas práticas culturais, políticas e
econômicas, sejam elas globais ou localizadas, com repercussões nas atividades
turísticas.
E apesar de a história revelar que sempre houveram diversas formas de
mobilidade humana, importa reconhecer que, em tempos e contextos distintos, essas
formas de mobilidade produziram “camadas de experiências e de práticas, acumuladas
na história das caminhadas dos seres humanos [gerando] uma multiplicidade de linhas
que se entrelaçan nesse evento, conferindo-lhe densidade e textura” (STEIL, TONIOL,
2016, p. 19).
Assim, a crescente e diversificada mobilidade contemporânea das pessoas em
busca de lugares aprazíveis para descanso e diversão, para conhecimento e auto-
conhecimento, e mesmo trabalho, está longe daqueles deslocamentos turísticos iniciais
em busca de idealizações idílicas ou utópicas, como descritos por Elias (2005).
A partir dessas referências, supomos aqui que se torna necessário, na análise das
formas sociais de mobilidade do turismo contemporâneo, apassagem de um frame
antropológico do movimento, centrado nos deslocamentos humanos aos lugares, para
um frame dos deslocamentos analíticossobre os movimentos humanos (como
experiência contemporânea) naspaisagenshabitadas pelos turistas.
Nascido do mundo moderno, o turismo originou-se na dinâmica da organização
do sistema laboral, onde as elevadas permanências em locais de trabalho traziam
desconfortos para os trabalhadores, que não encontravam momentos e tempos livres
para descansar e se divertir, algo que ganhou maior ênfase com a conquista dos direitos
trabalhistas e com o advento dos meios de transporte e comunicação, permitindo assim,
maior mobilidade e expansão da cultura de massa (MAGALHÃES, 2008). Desde então,
a mobilidade no turismo tem se expandido em todo o mundo, em busca de lugares e
situaçõesque satisfaçam o olhar dos turistas, cada vez mais exigentes (URRY, 1996).
Tendoo lazer e o consumo como mediações predominantes, esta agência do
turismo tem gerado grandes responsabilidades por parte dos países receptores na
garantia da sua sustentabilidade, na criação de condições hospitaleiras para os visitantes
e na participação das comunidades locais nesta dinâmica, constituindo sinergias entrea
comunidade local, por um lado, conhecedora da sua realidade e principal gerenciadora
da paisagem turística e, por outro, os gestores públicos, no desenho de políticas capazes
de refletir no melhoramento da qualidade de vida das populações e na garantia da
autenticidade dos lugares, principal marca do turismo cultural (GRABURN, 2008;
YÁZIGI, 2001).
Analisando o turismo e os turistas no mundo moderno, Fortuna e Ferreira (1996)
contribuem com essa compreensão, ao debaterem o lugar das imagens, do estético e do
visual na compreensão do turismo nos dias de hoje, trazendo desafios para a
salvaguarda da “autenticidade dos lugares”. Para os autores,
[...] o domínio da imagem e do visual no contexto da cultura moderna
corresponde a uma forma particular de representar o espaço e o tempo. Ao
reduzir o mundo à sua representação visual, a modernidade implica a
contínua espetacularização da sociedade, da cultura, da natureza e da própria
história (FORTUNA, FERREIRA, 1996, p.6).
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Seguindo essa elaboração, poderíamos afirmar que os diferentes destinos
turísticos não se distinguem somente pelos serviços e estruturas de lazer que
proporcionam, senão que o fazem pela diferenciação que projetam de uma paisagem
turística, como um lugar singular a ser habitado. E como as definições clássicas de lugar
sempre foram insuficientes para o entendimento e para o planejamento nas escalas do
cotidiano e do turismo, Yázigi (2001) elaborou uma revisão do conceito, em sua relação
com a concepção de identidade, de forma a firmar a produção da “singularidade dos
lugares”, como preservação, e partir da contribuição da fisionomia geográfica local para
a construção de uma personalidade:
Reconheço o lugar como uma arrumação que produz o singular, mas estimo
que de modo algum se poderá entendê-lo ou trabalhá-lo sem a consideração
da extensão de seus sistemas. Ele tem uma personalidade sim, mas não é
sujeito. [...]
a questão estaria em se buscar manter os traços ditos naturais, o mais
próximo possível de suas formas originais, numa perspectiva bastante
preservacionista, de forma que uma montanha sempre fosse percebida como
tal, assim como a forma de um rio, a fauna ou até o clima – mesmo sabendo
que suas configurações e significações mudam. Trata-se de resistir (YÁZIGI,
2001, p. 38 e 40).
Assim, para além de mero dispositivo a ser consumido pela indústria do turismo,
a singularização dos lugares se produz pelos agenciamentos6 dos atores envolvidos
nessa arrumação, incluindo os turistas. E essa arrumação também singulariza espaços
construídos das cidades turísticas, segundo Fortuna e Ferreira (1996, p. 7-8): “é na
minúcia do exemplar histórico e monumental da cidade, nas suas ruínas e edifícios
decadentes, na exemplaridade histórico-temporal da sua arquitectura, que se
vislumbram hoje os traços da sua singularidade”.
Com isso, os monumentos históricos e patrimoniais das cidades, sejam eles
expostos como sítios preservados de edicações, sejam expressos em ruínas e vestígios
deixados pelo passado, constituem importantes investimentos a serem feitos para atrair
grandes fluxos de turistas interessados nos produtos singulares dos lugares e, por sua
vez, estes lugares precisam de avultados investimentos em um espírito de sinergia entre
as comunidades locais, os governos e os mercados turísticos, com vista a garantir o seu
potencial e contribuir para a sua crescente procura turística, preservando as
potencialidades locais e agenciando o desenvolvimento das populações.
Nesse sentido, o planejamento turístico em Cabo Verde está atualizado com o
frame contemporâneo:
O diferencial de cada destino reside na sua capacidade de oferecer produtos
singulares capazes de satisfazer os diferentes segmentos da procura. Neste
particular, Cabo Verde não é exceção,posicionando-se com o seu clima, as
praias, a história, a cultura e a “morabeza” das suas gentes, como fatores
diferenciadores (CURADORIA DA CIDADE VELHA, 2014, p. 8).
Porém, a mobilidade turística que visa o aproveitamento das potencialidades
culturais tem sido também compreendida por diferentes pesquisadores como uma
instância marcada pelo jogo político e por um tipo de consumo pautado pelo espetáculo,
onde poucos ganham, tornando a cultura um recurso mercantilizado, com a finalidade
6A noção de agenciamento segue a concepção esboçada por Yúdice (2006): trata-se de identificar atores
que agenciamrecursos identitários recuperados de uma “reserva disponível” nas trajetórias comuns de
suas formações culturais, em diálogo com modelos culturais (estatais ou de mercado) predominantes na
sociedade globalizada.Esse predomínio se expressa na configuração de um campo de forças performativas
a condicionara ação dos atores que, por vezes, imprimem uma dinâmica de operar agenciamentos nos
intervalosdaqueles modelos.
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de satisfazer os fins econômicos do turismo e onde as populações locais não participam
dessa dinâmica, constituindo assim momentos privilegiados para a não garantia da sua
sustentabilidade e desenvolvimento. Segundo Figueiredo (2005, p. 46):
nas sociedades contemporâneas a atividade turística aparece como um novo
elemento que se insere na dinâmica cultural e por conseguinte vai influenciar
na produção discursiva e na utilização deste patrimônio. Tendo as
peculiaridades locais (a diferença) como atrativos turísticos, esta atividade
abre a possibilidade do desenvolvimento da alteridade e da sustentabilidade
da comunidade envolvida como também para a mercantilização do
patrimônio, de tal forma que este se torne basicamente um local para o
consumo turístico, desterritorializado, a ser explorado por poucos.
Ora, para que haja a sustentabilidade turística e um maior aproveitamento das
potencialidades culturais, considera-se de crucial relevância que se desenvolvam
políticas a longo prazo que venham envolver as populações na conservação das
potencialidades locais, fazendo com que essa participação sirva para o seu bem-estar e
afirmação. Isso significa para a população prevenir distorções nas representações sobre
os elementos patrimoniais e garantir que os benefícios provenientes da atividade sejam
experimentados por um maior número de pessoas (FIGUEIREDO, 2005). Neste caso,
convém analisar um pouco os impactos doturismo na Cidade Velha e na vida da
comunidade local.
As agências do turismo sobre o patrimônio da Cidade Velha
A Cidade Velha é uma localidade beira-mar que se situa no município Ribeira
Grande de Santiago, a 15km a oeste da cidade de Praia, atual capital de Cabo Verde.
Segundo o Censo cabo verdiano de 2010,possuía1.214 habitantes. Porém, quando
somados os habitantes das 19 localidades que integram o município, o número total de
habitantes chega a 8.315 (CURADORIA DA CIDADE VELHA, 2014, p. 21).
O sítio patrimonial da cidade (Zona Protegida) abriga edificações da primeira
capital da Ilha de Santiago e de Cabo Verde (Cidade de Ribeira Grande), datadas do
século XV ao XVIII, e está cercada por duas localidades que constituem a Zona
Tampão do seu processo de patrimonialização: Salineiro e Calabaceira.
A praça central ainda exibe o Pelourinho do período da escravidão e, pelas suas
ruas centrais (Rua de Banana e Rua Carrera) e secundárias, casas edificadas com pedras
centenárias permitem reconhecer o estilo arquitetônico original de sua fundação e outros
estilos edificados em sua história. Como descrito por Pires (2007), trata-se de uma
cidade que acumula cinco séculos de territórios sobrepostos, em um arranjo híbrido de
concepções urbanísticas7. A Fortaleza Real de São Felipe, no monte que costeia a
cidade, e as ruínas da Igreja da Sé e do Palácio Episcopal, em um monte lateral à baía da
Praça, são referências centrais, assim como a Igreja de N. Sra. do Rosário, algumas ruas
7Essa afirmação refere-se aos impactos das recentes expansões urbanas na paisagem da cidade, uma vez
que a Cidade Velha passou por planos de ordenamento urbano, em seu desenvolvimento, como mostrou
Pires (2007). Esses planos se estruturaram, desde a passagem do século XV para o XVI, no programa de
reordenamento e modernização da cidade de Lisboa, com o progressivo abandono do estilo manuelino e a
aplicação de princípios urbanísticos racionais que encontram suporte nos elementos espaciais e
tipológicos. Seguindo esses princípios racionais, segundo Pires (2007, p. 47): “Os efeitos de ordem, ritmo
e medida são alcançados através do alinhamento de fachadas, repetição de vãos contínuos e outros
elementos construtivos. Nota-se a passagem do tipo de pensamento bidimensional para o tridimensional
em que é acentuada a proporcionalidade entre a frente, a profundidade do lote e a altura do objeto”. Ainda
segundo o autor, esses princípios racionais produzirm normas e posturas urbanísticas que os portugueses
utilizaram nos “territórios do Atlântico ao Índico, onde, evidentemente, na prática, esses princípios serão
objeto de adaptações para cada caso gerando, assim, a originalidade e a flexibilidade, características do
modo português de fazer cidades” (Idem).
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adentro do sítio original, no bairro São Pedro, ou as ruínas da Casa de Misericórdia,
antigo hospital localizado na Rua Direita.
Figura 2: Rua de Banana, com edificações de sua fundação (Arquivo dos autores, 2015).
Figura 3: vista da praia de Cidade Velha, com ruínas ao fundo (Arquivo dos autores, 2015).
Figura 4: Fortaleza Real de São Felipe (Arquivo dos autores, 2015).
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Figura 5: Ruínas da Catedral da Sé (Arquivo dos autores, 2015).
Figura 6: Igreja de N. Sra. do Rosário (Arquivo dos autores, 2015).
O sítio patrimonial da Cidade Velha está passando por revisões e foi implantado,
em 14/03/2015, um projeto que visa garantir sustentabilidade econômica ao mesmo,
mas que acirrou um ambiente de debates entre a Câmara Municipal do Concelho de
Praia, o IPC-Instituo do Patrimônio Cultural, o Ministério da Cultura e a população
local.
A pequena localidade é extremamente acolhedora e contém registros de
personagens e atividades econômicas que marcaram os ciclos históricos do país e da
cidade, como os navegadores Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e Cristóvão
Colombo, o jesuíta Antônio Vieira, o cientista Charles Darwin, além de piratas famosos
que pilharam a cidade, entre os séculos XVI e XVII.Pelo seu porto passaram caravelas
transportando escravos da África para outras partes do mundo, designadamente Europa
e continente americano, transformando-se num importante palco de troca e
comercialização de escravos (CORREIA E SILVA, 2014; PIRES, 2007). Os escravos
passavam por Cabo Verde através de um processo de ladinização e, posteriormente,
eram transportados para os seus destinos. Essa transitoriedade, porém, foi suficiente
para promover relações inter-raciais que constituíram a primeira sociedade crioula. Daí
a Cidade Velha se revestir de grande importância histórica para a humanidade.
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O desenvolvimento singular da então Ribeira Grande de Santiago foi
caracterizado pela sua localização geoestratégica, dos séculos XV ao XVII, tornando-se
um importante entreposto no comércio internacional. Todavia, esse desenvolvimento
conhece uma franca decadência, no século XVIII, devido ao surgimento de outras
potências marítimas, como França, Inglaterra e Holanda, e aos sucessivos ataques de
piratas e corsários:
Os alvos visados pelos piratas, eram inicialmente os navios acostados nos
portos, para depois passarem a perpetrar ataques às vilas pilhando tudo e
criando terror entre os seus habitantes. Esses ataques eram praticados em
todas as ilhas habitadas do arquipélago, o que provocava uma sensação
generalizada de insegurança em toda a área (PIRES, 2007, p. 62).
A insegurança dos ataques, entre a população, era acrescida pela percepção de
que a Baía da Ribeira Grande não proporcionava condições satisfatórias para defesa da
cidade. Assim, buscando uma baía mais segura, em finais de 1769 “a sede do Bispado e
o governo é transferida para a Vila de Praia, que assume a categoria de cidade em 1858”
(CURADORIA DA CIDADE VELHA, 2014, p. 18). Essa mudança marca a derrocada
da Ribeira Grande, quese torna a Cidade Velha.
Durante o restante de seu período colonial, a cidade mantém-se no ostracismo.
Após a independência de Cabo Verde, os governos nacionais começam a elaborar seus
planos de desenvolvimento, incluindo o potencial turístico do arquipélago como opção
estratégica de atração de investimentos. Assim, em 1980, uma missão da UNESCO
visita o país para auxiliar a inventariar o patrimônio cultural local e inclui a Cidade
Velha como um referente central desse estudo.O processo de patrimonialização cultural
que envolveu esse sítio, assim como outros de Cabo Verde, iniciou com um
levantamento realizado por Lopes Filho (1981), visando otimizar esses patrimônios para
o desenvolvimento da indústria do turismo no país8.
O reconhecimento do potencial turístico da Cidade a reinscreve
progressivamente na agenda política do país. Após os primeiros estudos e investimentos
aplicados na restauração de seu sítio histórico, a localidade é classificada como
Patrimônio Nacional (Decreto nº 119/1990, de 08 de dezembro) e se torna objeto de
uma cooperação internacional entre Cabo Verde, Espanha e Portugal, para a
recuperação e o restauro de suas edificações históricas e a preservação de seu entorno
natural, como o Vale da Ribeira Grande de Santiago, propício para turismo de natureza.
Na sequência dessa reinserção, a cidade volta a integrar uma outorga municipal,
o Município da Ribeira Grande de Santiago (Decreto-Lei nº 63/VI/2005, de 09 de maio)
conjuntamente com a reconstituição do seu Concelho Municipal9 e, em 2006, através de
um contrato de concessão com o Estado de Cabo Verde, a empresa espanhola Proim-
Tur assume a administração do sítio patrimonial da Cidade, encarregada da manutenção
e do desenvolvimento do turismo cultural nesta localidade.
O conjunto dos agenciamentos que se inscrevem na trajetória posterior da
Cidade Velha culminam na elaboração de um dossiê de candidatura da mesma a
Patrimônio da Humanidade, reconhecimento que é atribuído pela UNESCO, em junho
de 2009. No mesmo ano do reconhecimento, o governo do país lança seu “Plano
estratégico do desenvolvimento turístico de Cabo Verde”, elaborado pelo Ministério do
8Desde o estudo de Lopes Filho, a Cidade Velha tornou-se um laboratório para implementação das
políticas de turismo cultural no país. Daí a correlação que se busca estabelecer entre o caso estudado e os
dados do turismo em Cabo Verde, em alguns momentos do artigo, sem a pretensão de generalizar a
análise. 9O Concelho Municipal é a instância geopolítica de governo local, em Cabo Verde, que pode incluir mais
de uma cidade. Já as cidades são administradas pelas Câmaras Municipais.
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Turismo, Indústria e Energia. Neste Plano, o governo do país elaborou um programa
que “pretende transformar a cultura num recurso estratégico dando especial atenção a
valorização do património cultural e de uma rede de lugares de memória, tendo como
centro a Cidade Velha” (CURADORIA DA CIDADE VELHA, 2014, p. 20). Assim, a
Cidade torna-se o núcleo de um conjunto de outros lugares atrativos do país, conectados
por ligações históricas e objetivando alavancar o turismo cultural.
Ocorre que, nesse processo para elevação da Cidade Velha à categoria de
patrimônio histórico da humanidade, segundo Santo (2008), vários foram os olhares e
políticas em torno da construção das infra-estruturas turísticas e a sua divulgação pelo
mundo, tornando-aum produto mercantilizado, onde os fins patrimoniais, turísticos e
identitários se tornaram alvos de sucessivas apropriações, consoante interesses
específicos que, ao fim e ao cabo, valorizam esse patrimônio espectacularizando-o, em
busca de resultados econômicos. Essa concepção é reproduzida, parcialmente, no estudo
que a Curadoria da Cidade Velha promoveu, sobre os impactos do turismo na cidade,
entre os anos de 2009 e 2013. O estudo promoveu uma ampla consulta entre moradores
do sítio histórico da cidade, moradores da Zona Tampão, operadores locais de turismo e
representantes institucionais, que avaliam positivamente o potencial da Cidade Velha
para a promoção do turismo, destacando “a valorrização e preservação do património
cultural”, “a melhoria da imagem do destino Cidade Velha”, “a melhoria das
infraestruturas de suporte turístico” e “a melhoria da acessibilidade” (CURADORIA
DA CIDADE VELHA, p. 60, 64, 67. 69). Por outro lado, o mesmo estudo destacou,
entre os consultados, que esse potencial “não aumentou as oportunidades de emprego
para os jovens”, “não tem atraído mais investimentos ao local”, “não melhorou a
qualidade de vida e a auto-estima da população”, “não aumentou a renda das famílias” e
“não incentivou o empreendedorismo cultural” (CURADORIA DA CIDADE VELHA,
p.60, 64, 67. 69).
O desnível dos resultados apresentados pelo estudo dos impactos do turismo na
cidade é interpretado, no documento, por um descompasso entre a realidade
socioeconômica dos moradores da cidade e o incremento dos investimentos nas
infraestruturas turísticas. Segundo o estudo,
30% do total dos residentes tem menos de 15 anos, contrariando a regra nos
centros e sítios históricos onde a população é majoritariamente idosa. [...] o
nível de escolaridade ainda é muito baixo [...] Os agregados familiares são
numerosos [...] O município da Ribeira Grande encontra-se ente os mais
pobres do país. Cidade Velha não foge a regra do município, embora próximo
da capital do país [...] Asatividades do sector primário como: pesca,
agricultura, silvicultura e pastorícia são o principal meio de subsistência das
famílias [...] o nível de rendimento é muito baixo (CURADORIA DA
CIDADE VELHA, 2014, p. 21-22).
Frente a esta realidade e considerando os investimentos nas infraestruturas
turísticas, o estudo conclui:
[...] o turismo não fomenta o desenvolvimento local, quando o destino
apresenta inúmeras debilidades socioeconómicas, como é o caso da Cidade
Velha. {...] esta enfrenta inúmeras fragilidades, nomeadamente a nível
urbanístico e saneamento, que condicionam o nível de vida dos residentes,
interferindo de certo modo, na apreciação que fazem do sector igualmente no
contributo deste no processo de desenvolvimento (CURADORIA DA
CIDADE VELHA, 2014, p. 71).
Assim, o documento sugere que as condições precárias da população local
inibem o desenvolvimento de capacidades e habilidades dos moradores para sua
inserção no novo modelo de desenvolvimento implantado pelo avanço dos
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investimentos turísticos. Ocorre que outros fatores descritos no estudo foram
desconsiderados nessa avaliação dos impactos do turismo na Cidade. Sobretudo,
queremos ressaltar aqui dois deles, que são interligados: os investimentos estrangeiros
nas infraestruturas turísticas locais e a baixa participação da comunidade local nos
processos de patrimonialização e de planejamento turístico.
O primeiro fator produz impactos diretos na administração das atividades
turísticas, uma vez que os investimentos são orientados por interesses mercantis. Assim,
o estudo promovido pela Curadoria da Cidade Velha relata que, depois que a empresa
espanhola passou a administrar as atividades patrimoniais e turísticas locais (2009), “as
estatísticas dos principais estabelecimentos de alojamentos demonstram que até 2011,
quase metade dos hóspedes foram nacionais. [...] A partir de 2012 regista-se uma
inversão desta tendência. Os portugueses passaram a representar a maior percentagem
de hóspedes” (CURADORIA DA CIDADE VELHA, p.34). Segundo o estudo, a
percentagem de nacionais que se hospedavam na Cidade caiu, em 2012 e 2013, para
27% e 13,6%, respectivamente, enquanto subiram os percentuais de estrangeiros
proporcionalmente10
.
Nesta busca dos turistas estrangeiros à Cidade Velha, verificamos que poucos
atores locais participam dessa dinâmica. Por um lado, os turistas nacionais reduziram
seu tempo de visita à Cidade e são poucos os agentes locais capacitados ou que recebem
incentivos para se inserirnas atividades turísticas. Segundo Cardoso (2012, p.17),
Os nacionais procuram a Cidade Velha durante o fim-de-semana e
aproveitam a visita para procurar serviços de restauração e para visitar os
monumentos. Por sua vez, os visitantes internacionais, na maioria, chegam
sem guias turísticos para visitar os monumentos e, poucas vezes, procuram os
serviços de restauração e de alojamento. Dada a falta de informação
compram “souvenirs” que nada tem que ver com Cabo Verde, aos
comerciantes dos países da costa ocidental africana.
Por outro lado, os investimentos estrangeiros acabam incorporando operadores e
agentes turísticos de fora da comunidade, e do país, com a justificativa da ausência de
capacidades entre os moradores locais. Esse fato é criticado pelos moradores, segundo
entrevistas que realizamos na Cidade, em abril de 201511
:
Aqui não temos nenhum guia turístico que é da comunidade, salvo um senhor
da comunidade que dá algumas informações aos turistas, mas ele agora
trabalha na Câmara. Eu acho que isso é mal porque deveríamos ter guias
turísticas da comunidade preparados para este efeito e, com tudo isso, o que
mais me atormenta é poder ver um guia turístico que não é daqui a dar
informações erradas da Cidade Velha aos turistas, e é lamentável quando
deparamos com turistas que vêm nos perguntar onde fica situado a Igreja São
Francisco e nós acompanhamos os guias para poder apresentar aos turistas
(Homem, 33 anos, comerciante, morador da Rua de Banana).
10
Quando comparados esses dados aos nacionais, vê-se que o fluxo turístico na Cidade Velha segue uma
tendência. Assim, utilizando dados de 2010 do Instituto Nacional de Estatística-INE de Cabo Verde,
sobre o fluxo de turistas no país,Cardoso (2012a, p. 15) afirma que “O principal mercado emissor
continua a ser o Reino Unidoresponsável por 26,1%dosturistas, seguido da Alemanha, Portugal e
Itáliacom 15,8%, 12,8% e 11,9% dasdormidas, respetivamente”. 11
Durante os meses de março e abril de 2015, os autores realizaram três incursões etnográficas na Cidade
Velha, para observar a dinâmica da vida cotidiana da população e suas interações com turistas, e 10
entrevistas com moradores das ruas centrais da Zona Protegida. As entrevistas foram realizadas em
Crioulo e traduzidas ao português. Esses dados compuseram um projeto de investigaçãoem parceria com
pesquisadores da UniCV - Universidade de Cabo Verde, no quadro do Edital CAPES/AULP de
Mobilidade Internacional-2013.
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Assim orientado, o desenvolvimento turístico da Cidade Velha cresce,
gradativamente, produzindo uma paisagem habitada de maneira precária pela população
local, mas atravessada por fluxos de investimentos internacionais orientados para
turistas estrangeiros. Esse descompasso dificulta a inserção dos moradores locais na
dinâmica do desenvolvimento, mas isso não se constitui o único fator da baixa
participação da comunidade nos processos implementados nesse contexto.
Segundo relatos de moradores locais, a devida participação das pessoas da
localidade na dinâmica turística fica muito comprometida na medida que os gestores
locais os veem apenas como cuidadores dos edifícios, e não, como principais geradores
de atividades que venham a melhorar a sua qualidade de vida.
Eu tive 8 anos a trabalhar com a cooperação espanhola na construção das
pousadas e quando o trabalho chegou ao fim eles juntaram com os sindicatos
e nos deram 20.000 escudos de indenização. Nós reclamamos mas não temos
aonde ir porque os mais poderosos “grandes” reuniram, como é que
conseguimos fazer alguma coisa?
Eu vejo o turismo como uma coisa boa mas nós não ganhamos nada com
isso. Aqui não há formação de pessoas que falam línguas estrangeiras. Nunca
deram alguma formação de línguas. Num lugar que se diz património e
centro do turismo mas não há formação de línguas e ficamos sem
compreender nada de que os turistas estão falando, daí tudo fica difícil
(Homem, agricultor, 38 anos, morador da Zona Protegida).
Eles não falam com as pessoas quando querem fazer alguma coisa. Eles
reúnem entre eles e fazem as reuniões. Há dias fizeram uma festa sobre a
questão do patrimônio e trouxeram alguma atividade com muitas coisas de
loucura sobre cultura e patrimônio. Muitas pessoas não aderem porque não é
a nossa atividade, a nossa atividade é outra e aquilo que fizeram é deles. Se
trata da cultura, mas não aceitamos que venhas nos mostrar uma coisa que
não vives.O IPC poderia nos dar uma formação em línguas estrangeira, por
exemplo, podes ir àIlha do Sal e muitas pessoas falam inglês, até mesmo
crianças. Eu não digo que não há, mas eu não conheço guias turísticos que
são daqui (Jovem, 25 anos,desempregado, morador da Rua Carrera).
Sobre o projecto que criaram na Cidade sobre a inclusão cultural eu ví na
televisão, mas não há nenhuma socialização com a comunidade e às vezes eu
vejo carros entrando por aqui e as pessoas dizem que se trata de reuniões no
convento, mas não sei do assunto que estão tratando e eles nunca nos
convidam porque são reuniões apenas para “gentes finas” (Jovem, 24 anos,
estudante desempregada, moradora da Rua Carrera).
Outra questão em debate, desde 2009, que restringe a particpação da
comunidade na Cidade Velha, diz respeito aos requisitos para salvaguardar suas
edificações e singularidadespatrimoniais, outorgadas pelo Regulamento Orgânico da
Câmara Municipal da Ribeira Grande. Segundo Cardoso (2012a, p. 7), o embate se
assenta na definição de dois procedimentos:
- Qualquer trabalho ou obra que tiver por objeto modificar o estado dos
imóveis está sujeito a autorização nas condições e formas previstas na
respetiva licença de construção. Essa autorização só pode ser concedida se os
trabalhos ou obras se conformarem e estiverem em consonância com o plano
de salvaguarda e de valorização de Cidade Velha.
- Os pedidos de autorização para a realização de trabalhos ou obras, tendo por
objeto a modificação do estado dos imóveis situados em zonas protegidas
abrangidas pelo plano de salvaguarda e valorização, são dirigidos aos órgãos
municipais competentes do local do imóvel, que os comunicará
obrigatoriamente aos serviços centrais do património cultural – o Instituto
Nacional do Património Cultural de Cabo Verde.
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Frente a tais normativas e procedimentos, as reações da comunidade local são
relacionadas
Há muitas pessoas que já abandonaram os seus terrenos e casas quase prontas
porque são constantemente bloqueados quando tentam fazer algum trabalho
(Jovem, 25 anos,desempregado, morador da Rua Carrera).
Desde que nasci, vivi na Cidade Velha, nesta casa na Rua da Banana. Eu não
tive problemas na construção da minha casa porque basta seguir os seus
parâmetros (da Câmara e do IPC), eles não têm nada de impedir. Como a
minha casa é de palha, eu recebi o apoio da Curadoria com a cobertura. Eles
apoiam, mas sem muitas condições, se querem que moramos em casa de
palha eles têm de nos dar condições a nível interno (Mulher, 45 anos,
reconstruiu casa que sofreu incêndio na Rua de Banana).
Agora nós somos obrigados a colocar telhas na nossa casa e às vezes não nos
dão condições para tal. Nós não estamos num mundo onde podemos construir
casas com essas exigências, porque as pessoas podem atirar pedras e quebrar
as telhas e se de facto estão exigindo isso eles precisam criar condições e
distribuírem telhas para que os jovens possam seguir essas exigências, as
ajudas neste sentido são mínimas (Homem, agricultor, 33 anos, morador da
Rua Carrera).
Assim, as dificuldades geradas pelas condições precárias da população têm
causado perenes inquietações e desconfortos. Fazendo uma análise dos confrontos entre
a população e os gestores locais na salvaguarda das suas autenticidades, Cardoso (2012,
p. 29) destaca que
Lamentavelmente é notável o abandono das casas na Rua Banana devido aos
requisitos aplicados aos residentes pelo IPC e pela CMRGS. Essas exigências
podem beneficiar os visitantes, uma vês que poderão visualizar as casas com
os traços tradicionais, contudo, quem lá vive sofre diariamente. Assim, é
urgente uma visão pragmática da realidade que se vive em Cidade Velha e
dar maior atenção ao que foi acordado com a UNESCO, nomeadamente
melhorar a qualidade de vida das populações, promover um desenvolvimento
económico sustentável, promover o património histórico e cultural, encorajar
a implicação dos habitantes e da democracia participativa, administração
local eficaz e transparente e finalmente, promover a rentabilidade e o
desenvolvimento sustentável do meio ambiente.
Dessa forma, os arranjos de singularidades e diferenciações que os
agenciamentos turísticos produzem na Cidade Velha fazem oscilar as representações de
autenticidade e identidade locais. As concepções locais de autenticidade, partilhadas
entre atores do poder público,da população, e turistas, assentam-se em registros
materiais e imateriais da antiguidade ou fundação da cidade (sua origem e preservação),
enquanto as concepções de identidade são amplamente reconhecidas pela população
como registros derivados de suas ações, tradicionais ou não, pela imersão na rede de
relações que se forma em torno do patrimônio, na experiência cotidiana com os
cuidados de sua sobrevivência (sua manutenção ou privação).
Considerações finais
O turismo, como se tem debatido atualmente, exige por um lado conjuntos de
condições em vários níveis para o bem-estar e acolhimento dos turistas, e por outro, tem
suscitado perenes inquietações e debates em torno da sua sustentabilidade e do
envolvimento das comunidades no seu desenvolvimento e na valorização das
potencialidades locais. Nesse sentido, considera-se que
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[...] a efetiva participação das comunidades locais no processo de
planejamento e gestão da atividade turística parece, portanto, essencial, pois a
população local é conhecedora e vivencia a sua realidade imediata, sendo
capaz de identificar problemas e necessidades, avaliar alternativas,
desenvolver estratégias para proteção e/ou valorização do patrimônio natural
e cultural e buscar soluções para os problemas identificados, sugerindo
caminhos que levem à melhoria da qualidade de vida, ao fortalecimento da
cultura local e ao bem-estar social (IRVING et al, 2005, p. 51).
No caso da Cidade Velha, buscamos evidenciar que a singularidade ali
construída é orientada para o turismo internacional e que essa orientação inclui a
comunidade local na paisagem, mas não nos processos que a singularizam.Os fatores
que consideramos aqui buscam evidenciar que a produção das singularidades e
diferenciações dos lugares, operada pelos agenciamentos turísticos, podem reificar as
autenticidades patrimoniais, descolando-as das identidades a que se referem, resultando
que a comunidade acaba se percebendo como um “nativo mudo” (MENDONÇA;
IRVING, 2004).
Nesse sentido, as questões expostas nasentrevistascom os moradores locais
podem ser consideradas como percepções ressentidas (HERZFELD, 2008)12
, ou como
“confirmação social dessa identidade colectiva, que exige não só o reconhecimento da
sua existência mas a demonstração real do respeito por ele” (APPIAH, 1998, p. 169).
Frente aos fluxos internacionais de turistas, as demandas dos moradores da
Cidade Velha acentuam a importância do diálogo intercultural:“Nós não ganhamos com
turismo e os turistas ficaram mais pataqueiros (isolados), eles ficaram com medo e não
querem ficar connosco” (Jovem, 25 anos, desempregado, morador da Zona Protegida).
Trata-se de compreender, então, que o crescimento do turismo deve assentar-se
em bases dialógicas com as comunidades locais, para que elas também cresçam, uma
vez que “o diálogo molda a identidade que eu desenvolvo enquanto cresço” (APPIAH,
1998, p. 170). Sem isso, as singularidades e diferenciações dos lugares produzidas pelos
agenciamentos turísticos tendem a reproduzir essencialismos que servem, cada vez
mais, à mercantilização da diversidade cultural.
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2012, 62 p.
12
Percepções ressentidas, ou reconhecimento próprio magoado, é uma expressão que descreve a
representação da intimidade entre população e Estado, como simulacros de relações sociais. Segundo
Herzfeld (2008, p. 23), o distanciamento das relações cara a cara representa-se, no Estado, “como
relações sociais de catálogo”, como nostalgia da tradição, da comunidade, e como apartação das
“comunidades marginais”, com suas “linguagens locais de moralidade, costume e solidariedade de
parentesco”. A sociabilidade real é substituída pela imagem de sociabilidade, ampliada pela transmutação
de sentimentos privados em atos públicos.
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