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  • Suplemento Cultural do Dirio Oficial do Estado de Pernambuco n 72 - Distribuio gratuita - www.suplementopernambuco.com.br

    UM DOSSI SOBRE WALTER BENJAMIN, O HOMEM QUE VIU ATRAVS DO HORROR DAS DUAS GRANDES GUERRAS

    PEDRO

    MELO

    PAULO SCOTT | ENTREVISTA COM JULIN FUKS | SOBRE A ARTE DE ENCERRAR UM LIVRO

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    CARTA DO EDITOR

    HELIA SCHEPPA

    GALERIA

    Fotgrafa do Jornal do Commercio, Helia comeou a usar o Instagram como uma curiosidade. Foi no sentido de brincar mesmo, no comeo. Mas depois, percebi que estava reciclando o meu olhar, com a liberdade visual de fotografar sem ser profi ssionalmente e ainda assim dividir isso com as pessoas.

    http://www.fl ickr.com/heliascheppa e no instangram seu nome de usurio heliascheppa

    GOVERNO DO ESTADODE PERNAMBUCOGovernador Eduardo Campos

    Secretrio da Casa CivilFrancisco Tadeu Barbosa de Alencar

    COMPANHIA EDITORADE PERNAMBUCO CEPEPresidenteLeda AlvesDiretor de Produo e EdioRicardo MeloDiretor Administrativo e FinanceiroBrulio Meneses

    CONSELHO EDITORIALEverardo Nores (presidente)Antnio PortelaLourival HolandaNelly Medeiros de CarvalhoPedro Amrico de Farias

    SUPERINTENDENTE DE EDIOAdriana Dria Matos

    SUPERINTENDENTE DE CRIAOLuiz Arrais

    EDIORaimundo Carrero e Schneider Carpeggiani

    REDAOMariza Pontes, Debra Nascimento, Mariana Oliveira e Marco Polo

    ARTE, FOTOGRAFIA E REVISOGilson Oliveira, Janio Santos, Karina Freitas, Milito Marques e Sebastio Corra

    PRODUO GRFICAEliseu Souza, Joselma Firmino, Jlio Gonalves, Roberto Bandeira e Sstenes Fernandes

    MARKETING E PUBLICIDADEAlexandre Monteiro, Armando Lemos e Rosana Galvo

    COMERCIAL E CIRCULAOGilberto Silva

    PERNAMBUCO uma publicao da Companhia Editora de Pernambuco CEPERua Coelho Leite, 530 Santo Amaro RecifeCEP: 50100-140Contatos com a Redao3183.2787 | [email protected]

    O nome de Walter Benjamin mais do que conhecido por todos aqueles que exploram as cincias humanas. A amplitude do seu olhar faz com que ele ilumine as mais diversas reas, da literatura comunicao. Esse ms trazemos um dossi a seu respeito, aprovei-tando nova edio de Origem do drama trgico alemo, pela editora Autntica. O reprter Pau-lo Carvalho, um admirador do pensamento benjaminiano, saiu em busca de alguns dos principais especialistas brasileiros do escritor, para que eles discutissem essa que uma das suas obras menos compreendidas.O escritor Manoel Ricardo de Lima, profes-

    sor de literatura da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, buscou compreen-der o impacto do trabalho de Benjamin, num texto de sensvel teor filosfico: As escolhas que Benjamin fez, naquele momento, come-o do sculo 20, no eram to bvias. A sua prtica de pensamento tem a ver diretamente com essas escolhas que fez a partir de um uso deflagrado da ateno; no toa seus textos no comportam qualquer resultado conclu-sivo, ao contrrio, sugerem a constituio abissal do paradoxo naquilo que ele passa a chamar de imagem dialtica.

    O Pernambuco desse ms tambm se volta a discutir duas das obras mais comentadas da recente produo brasileira de romances: A procura do romance, de Julin Fuks, e Habitante irreal, de Paulo Scott. Ronaldo Correia de Brito, que lana este ano o seu segundo romance, Eu estive l fora, escreveu uma crnica em que relata o momento em que o autor tem de se livrar de um livro e colocar o ponto final nele. O escritor trata essa questo a partir da tcnica de fazer caf, uma de suas paixes. J no existe a profisso de torradeira de caf. Ningum mais escuta falar nessas mulheres que trabalhavam nas casas de famlia, em dias agendados com bastante antecedncia. As profissionais, famosas pela qualidade do servio, nunca tinham hora livre. Cobravam caro e s atendiam freguesas antigas. No era qualquer uma que sabia dar o ponto certo da torrefao, reconhecer o instante exato em que os gros precisavam ser retirados do fogo. Um minuto a mais e o caf ficava queimado e amargo. Um minuto a menos e ficava cru, com sabor travoso, observa Ronaldo. Talvez a fico exija o mesmo cuidado.

    Boa leitura e timo Carnaval e at maro.

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    Paulo Scott

    difcil traar um roteiro seguro, absoluto, de passos infalveis. Cada livro, cada projeto estabelece sua prpria dinmica. Enxergar e administrar esse trn-sito, sua inconstncia e os seus ritmos, o primeiro passo a ser dado quando se pretende uma carreira de escritor. Nem toda ideia, nem todo nimo, impulso, inrcia vingaro; nem tudo que se conclui vale a pena mostrar. Habilitar-se para esse julgamento exige um distanciamento delicado, arriscado at, pois a autocrtica que deve existir no pode ser de forma a travar o processo criativo penso que por essa razo muitos acadmicos escritores tm tanta dificuldade em produzir; as referncias que carregam so tantas e os parmetros de avaliao to elabo-rados que acabam por jog-lo numa imobilidade de enorme resistncia, numa srie de moldes cuja funcionalidade existe para evitar falhas, mas que na prtica os impediro de inovar o contexto literrio. Por no ter erudio literria expressiva, por no

    ambicionar t-la (t-la para fora da minha condi-o de leitor compulsivo), tenho menos receio de errar do que muitos dos vrios outros escritores de talento que conheo. Imagino que meu processo seja mais simples, mais intuitivo. Tendo inveno de personagens que me interessem e, em seguida, a desenvolver na minha cabea suas idiossincrasias, suas ambies em especial e a partir disso contar a histria. Evito as anotaes detalhadas, descries fsicas dos protagonistas, antagonistas, coadjuvantes (dificilmente isso ser relevante), no completo ma-pas minuciosos para s ento comear a trabalhar. Nada disso. Gosto, sinceramente, de ir contando aos amigos o que estou fazendo; verbalizar, discor-rer sobre minhas intenes me ajuda a sedimentar a histria, a descobrir sadas, a entender o que no funciona. No tenho medo de revelar o que estou fazendo. Histrias, boas histrias, no faltam por a, o segredo conseguir cont-las acrescentando algo de relevante tradio literria isso, hoje em dia, quando so despejadas centenas e centenas de livros novos nas estantes das livrarias brasileiras a cada ms, um dado impossvel de negligenciar.Outro aspecto que imagino tambm seja digno

    de nota o estado de entusiasmo com o que se est escrevendo. Pode parecer tolice, mas no . Logo que a atividade literria deixa de ser novidade e passa a ser profisso, encontrar os mecanismos do entusiasmo e de como conseguir mant-lo crucial, eu diria. Por isso s vezes no me importo

    de me deter por longos perodos na linguagem, no artesanato das palavras (deixando um pouco de lado a nfase em torno da narrativa), mesmo que parea imprudncia. Admito o capricho porque a linguagem o fator que me empolga, me diverte, me leva a escrever com mais vivacidade, mesmo sabendo que depois terei de cortar trechos, par-grafos inteiros. Toda estrutura narrativa precisa de muitas verses, eleies, selees, precisa ser concretizada para depois ser enxugada. Tento no cair na pressa que eventualmente possa prejudicar a distncia entre a criao e a reviso. Alimento a desconfiana do que foi produzido; sobretudo: desconfio de quando me dou por satisfeito.Penso que um dos segredos da escrita, do texto

    com alguma qualidade, esteja no fato do autor ter bons leitores, pessoas com preparo e honestidade suficientes para dizer, de maneira cruel at (ima-gino que no exista outro caminho), quando aquilo que foi produzido ficou ruim. Se o autor vai aceitar a avaliao, a leitura, o ataque, bem, isso j outra histria. Gosto de escutar crticas negativas (aprecio a sinceridade dos meus interlocutores; no se vai a lugar algum com tapinhas nas costas), quer dizer: no tenho problema em escutar quando algum diz que no gostou daquilo que escrevi. O texto se faz da leitura, a leitura faz surgir a obra, possvel que a leitura, que nunca idntica pretenso do escritor, venha a melhorar o livro, claro poder tambm estrag-lo. H meia dzia de romances que, quando li pela primeira vez, me pareceram ruins (pura falta de maturidade, de ambincia), mas que depois se mostraram grandes obras. Se voc est convicto do que fez, se escrever

    no passou de aventura, deve estar pronto para enfrentar o teste das crticas. Imediatamente, po-dem trazer desconforto, mas, mediatamente, seja pela impertinncia ou pertinncia, ingressaro no rol das coisas que te faro escrever melhor, que te faro chegar a uma voz prpria, autntica, inova-dora, na medida em que ainda seja vivel atingir tais ideais, tais desconfortos.

    As nuances do raio X de uma criao ficcionalO autor de um dos livros mais elogiados hoje no Brasil, o romance Habitante irreal, sobre a histria recente do Pas, descreve os pormenores do seu processo criativo

    BASTIDORES

    CARTUNSRODRIGO AGUIAR GAFAHTTP://RODRIGOGAFA.CARBONMADE.COM/

    Habitante irrealEditora AlfaguaraPginas 262Preo R$ 40,00

    O LIVRO

    JANIO SANTOS

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    ENSAIO

    A conscincia das escolhas que so feitas Quais as caractersticas do escritor que tambm se reconhece como um crtico? Felipe Charbel

    capaz de atuar simultaneamente, e com brilho, nessas duas frentes.No ensaio A cortina, Milan Kundera compara o

    romancista que escreve sobre sua arte com o pintor que recebe algum em seu ateli: ele falar de si mesmo, mas ainda mais dos outros, dos romances que ama e que esto secretamente presentes na sua prpria obra. O autor-crtico algum que sabe e deseja se posicionar publicamente em relao s prprias escolhas, explicitando procedimentos de leitura que atuam na contramo dos trabalhos de monumentalizao das tradies literrias. Sua visada anticannica demanda uma reescrita da histria da literatura, com base no critrio do va-lor de uso das obras particulares, esparramadas sincronicamente, apropriadas em funo de uma potica do romance, que no pertence seno a ele, o autor-crtico, e naturalmente, portanto, se ope potica de outros escritores.Mas trata-se de uma histria literria muito pe-

    culiar, executada por um anti-historiador, para quem o tempo no um fluxo contnuo, e sim massa de modelar. Uma histria literria baseada no anacronismo. O leitor-visitante do ateli do romancista convidado a visualizar, como que de dentro, o making of de uma voz, l no poro da histria, onde, ainda nas palavras de Kundera, o futuro do romance est se decidindo, se trans-formando, se fazendo, em lutas, em conflitos, em confrontos. Faroleiro de si mesmo, hermeneuta dos seus prprios projetos estticos, o autor-crtico um fagocitador voraz de leituras, responsvel pela pilhagem dos mausolus das tradies letradas.Leitor especialmente bem-talhado nas jornadas

    particulares da Bildung a formao no cnone e contra o cnone , o autor-crtico, como perce-beu a ensasta Leila Perrone-Moiss em seu timo

    Existe algo de especfico na crtica literria feita por escritores? Alguma coisa que s autores de fico so capazes de apreender, quando escre-vem sobre literatura? So perguntas que me fao quando leio resenhas, artigos, aulas e conferncias de Milan Kundera e J. M. Coetzee, Italo Calvino e Cesar Aira, Thomas Mann e Vladimir Nabokov, Elias Canetti e Jorge Luis Borges. Esse tipo de crtica exerce sobre mim um fascnio especial. E, a julgar pelas sucessivas edies de coletneas e ensaios de escritores, devem interessar a muito mais gente. Por qu, afinal?Se houver algum tipo de predicado intrnseco

    ao ensasmo de autor, pouco provvel que esse atributo seja condio suficiente para lhe assegurar um lugar especial em relao s demais variedades de crtica. As fronteiras so muito tnues, porosas, e o que est do outro lado sequer se configura como unidade a crtica de no autor. Os textos en-sasticos de um ficcionista tambm so marcados por idiossincrasias e parcialidades: podem ser bons ou maus, elogiosos ou frios, preguiosos ou afia-dos. No adquirem um estatuto diferenciado apenas pelo fato de terem sido escritos por romancistas, contistas ou poetas.O que parece ser o aspecto diferencial na crtica

    de autor, sua especificidade, a coexistncia, em uma mesma obra, de projetos autorais simultneos, um crtico e outro ficcional, que podem ser para-lelos (Mann), articulados em alguma medida (Na-bokov, Canetti, Calvino), ou mesmo indissociveis (o caso de W. G. Sebald, cujo Guerra area e literatura, por exemplo, pode ser lido como uma espcie de brao armado de sua fico). Na confluncia dessas linhas aparentemente contraditrias reside a sin-gularidade da crtica de autor ao menos de uma certa crtica de autor, produzida pelo seleto grupo

    KARINA FREITAS

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    obra do autor-crtico, adquire contornos instveis, porque destitudo de pretenses universalistas e voltado para seu processo de formao e dissoluo no interior de uma potica particular. O cnone subjetivo, mas ainda assim, ou talvez exatamente por isso, carregado de autoridade.Isso significa que a crtica de autor puramente

    instrumental? Que ela se apresenta como um mero tubo de ensaio do ficcionista? Que por no se despir totalmente da persona de criador, o autor-crtico ter sempre um olhar monolgico, pouco generoso com tudo que no diz respeito ao seu gosto? Se for assim, por que essa crtica haveria de interessar a mais algum, alm do autor que a elabora, ou outros escritores preocupados com as tcnicas e filigranas de um saber-fazer?O foco do autor-crtico no seu projeto esttico

    no deve ser confundido com uma egotrip hermti-ca. Como terico da prxis, ele obrigado, em sua viagem ao redor do prprio umbigo, a se afastar de si mesmo, na tentativa de dar conta do que mais lhe interessa nas obras alheias: os procedimentos que conferem algo de nico, de singular, de ino-vador, a certos escritos. Ou, o que o outro lado dessa moeda, o exame de fracassos, desacertos e limitaes. Os textos crticos de J. M. Coetzee apre-sentam pouco mais que lampejos de sua voz como ficcionista. Mas ela est l, atenta ao que importa, produzindo atritos. Se o ensasmo de autor possui uma evidente dimenso instrumental, ele tam-bm uma espcie de lio de anatomia cujas con-dies de possibilidade so o saber-fazer (alguma coisa que eles, os autores-crticos, compartilham), e a longa experincia na dissecao minuciosa de um objeto a prpria literatura.S os escritores, escreve Roberto Calasso em

    A literatura e os deuses, esto em condies de abrir-

    KARINA FREITAS

    -nos os seus laboratrios secretos. Guias capri-chosos e evasivos, so, no entanto, os nicos a conhecer passo a passo o terreno. evidente a afeio de Calasso, ele mesmo um autor-crtico, a uma espcie de conhecimento secreto partilhado por poucos, a formas de sensibilidade vedadas aos meros mortais: Quando lemos os ensaios de Baudelaire ou de Proust, de Hofmannsthal ou de Benn, de Valry ou de Auden, de Brodski ou de Mandelstam, de Marina Cvetaeva ou de Karl Krauss, de Yeats ou de Montale, de Borges ou de Nabokov, de Manganelli ou de Calvino, de Canetti ou de Kundera, percebemos logo ainda que um possa detestar o outro, ou ignor-lo ou opor-se a ele que todos falam do mesmo objeto.No ensasmo de ficcionistas, palavras como li-

    teratura, autor e obra possuem concretudes muito tangveis. Reconhecidas e compartilhadas por um grupo heterogneo e acfalo precariamente reu-nido em torno de um saber-fazer e de um interesse comum , essas categorias conferem ao escritor o sentido de pertencimento a uma comunidade, alm de possibilitarem uma philia, uma amizade, tanto pela coisa em si, a literatura, como pelos que a cul-tivam, os leitores (sem os quais essa comunidade impensvel), no que talvez seja o ltimo vislumbre da noo romntica e humanista de Weltliteratur, literatura mundial, como pensada por Goethe e retomada, quando j era impossvel reviv-la, por Auerbach. Para alm das fronteiras nacionais e das amarras tericas, o ensasmo de autor um dos ltimos espaos em que ainda possvel amar a literatura sem a preocupao, ou o xtase, com seu desaparecimento.

    Felipe Charbel professor adjunto de Teoria da his-tria na UFRJ

    Altas literaturas, demonstra plena conscincia da radicalidade intrnseca ao desafio fundador da modernidade: a autocertificao. Mas o autor--crtico algum que no se contenta com a ins-tituio dos prprios critrios de ajuizamento: ele quer, sobretudo, compreender suas alternativas e situ-las no horizonte das escolhas realizadas por outros ficcionistas. Quer se certificar da pr-pria autocertificao. Para tanto, o autor-crtico explora os projetos autorais de outros escritores compreendidos, ou designados, como produtos de escolhas coerentes, estticas intencionais. Nesse caso, a ideia de projeto ela mesma uma fico, mais uma dentre suas fices.O desejo de autognose, de um conhecimento que

    parta de si e atue para si, solicita uma reconstru-o do cnone literrio estilhaado. Mas este, na

    O foco do autor-crtico no seu projeto esttico no deve ser confundido apenas com uma egotrip hermtica

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    Um autor entre os acertos e as falcias tpicas da memria

    ENTREVISTAJulin Fuks

    Entrevista a Lus Henrique Pellanda

    Assim como Sebastin, protagonista de Procu-ra do romance, o escritor paulistano Julin Fuks vive s voltas com um excesso de conscincia narrativa. Assim como seu personagem, Fuks jovem, brasileiro, filho de argentinos exila-dos no Brasil e, enquanto tenta escrever um romance buscando, quem sabe, um pouco de inovao , revisita a mesma Buenos Aires de sua infncia. No se trata de tarefa simples, claro, pois

    no existe mais isso de contar uma hist-ria e ponto final. Hoje preciso ir alm. Ou no? Entre erros e acertos, aps toda expe-rimentao e renovao estticas do sculo 20, alguma novidade ainda seria possvel, ou

    Aps um elogiado livro de contos em que tematizou a cegueira, o escritor paulistano fala dos desafios de escrever seu primeiro romance e das questes do contemporneo

    mesmo necessria? E as tramas, tornaram-se inviveis? O que dizer de realmente relevan-te num livro de fico? E como diz-lo? para responder a essas questes que o novo livro de Fuks se atira num poo aparente-mente sem fundo, apresenta-se como obra em construo que, desde a origem, j se confessa em crise.E so esses assuntos que o escritor tam-

    bm autor de Histrias de literatura e cegueira e Fragmentos de Alberto, Carolina, Ulisses e eu revi-sita na entrevista abaixo. O grande vazio em que pode cair (ou j caiu?) a literatura atual. O vnculo entre memria e imaginao. A falsa relao que se cria entre obra de arte e mentira. O longo processo de escrita de Procura do romance. Temas que assombram tanto Julin quanto Sebastin.

    Numa entrevista recente (para a Unesp), voc disse que no Brasil, apesar de no haver um aprofundamento real do debate literrio, alguns autores ainda seriam capazes de perceber o grande vazio em que camos. Que vazio esse a que voc se refere e que tanto assombra o protagonista de Procura do romance, Sebastin?O vazio que me assombra e que emprestei ao meu protagonista a impossibilidade de renovao esttica a que est submetido qualquer escritor contemporneo, como qualquer artista. O sculo 20 foi um sculo de muita experimentao e muita vertigem, e dele herdamos, alm de belssimas obras, uma derradeira agonia: depois de tanta inovao, a ambio do novo parece inatingvel. O escritor que, hoje, pretenda inserir sua obra em algum contexto de desenvolvimento histrico ou artstico, v-se de imediato sem sada, ou indeciso entre duas opes insatisfatrias. Pode desvencilhar-se da obrigao do novo e simplesmente contar histrias, ou vasculhar com obstinao as novidades do passado para ver se alguma delas foi negligenciada ou esquecida. Digo assim, mas poderia dizer de outro jeito: essa apenas uma entre tantas formulaes possveis para esta onipresente sensao de crise.

    Alis, h muitas crises em Procura do romance: a crise argentina, a crise familiar e pessoal de Sebastin como indivduo e aspirante a escritor e a crise da fico literria em geral. Logo no incio do livro, o narrador fala da ninharia de ocorrncias que distinguem seu personagem, e sobre a ausncia de aventura que marca sua existncia. De forma geral, o escritor de hoje no tem mais nada a contar? O enredo se tornou invivel?No que diz respeito crise do romance, penso que no se trata tanto da falta de algo para contar, e sim de uma incapacidade de encontrar para esse algo a forma mais pertinente, mais adequada, a forma que no se mostre repetitiva ou arcaica. Mas de fato

    FOTO: DIVULGAO

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    assim que hoje se quer a literatura: um passatempo andino que nos indigne ou nos comova por um instante nfimo

    Se h algo que nosso tempo explicita com eloquncia a relao to ntima entre imaginao e memria

    h outras crises entremeadas a essa, e creio que a inviabilidade de enredo que voc menciona tem relao com uma questo mais abrangente, uma questo poltica. Muito se falou em fim da histria, em fim das utopias, em uma concepo de que o capitalismo que vivemos seria o nico modelo possvel, e evidente que em grande medida essa concepo falaciosa atingiu uma gerao inteira. A ausncia de aventura que nos marca tambm uma desistncia, um conformismo generalizado, a ausncia de militncia em um mundo que esconde a todo custo suas alternativas.

    Na escola, Sebastin se orgulha do elogio de uma professora a uma de suas redaes: para ela, seu aluno possua uma imaginao de escrevedor de livros. No entanto, o orgulho do menino dura pouco: ele logo percebe a fragilidade daquele elogio. A imaginao no (ou deixou de ser) um atributo essencial aos escritores? frgil o elogio porque falso: aquilo que a professora compreendera como fruto da imaginao do menino era uma narrativa calcada em ocorrncias de sua vida. Mas talvez haja nessa incompreenso entre os dois uma confuso bastante comum e significativa: a ideia de que a imaginao possa estar desvinculada da memria, que surja do nada sem qualquer origem, que seja uma construo sem base, sem alicerce, pairando sobre o vcuo como uma fantasmagoria. Se h algo que

    nosso tempo explicita com grande eloquncia a relao to ntima entre imaginao e memria. Nessa imensa quantidade de personagens semelhantes aos seus autores que hoje vemos, no romance que tantas vezes mostra sua face de autobiografia fictcia, revela-se com clareza que esses dois atributos so indistinguveis.

    Voc tem muito em comum com seu protagonista. Ambos dividem sua identidade nacional entre dois pases vizinhos e, sob alguns aspectos, antagnicos. Brasileiro, filho de argentinos, criado tanto no Brasil quanto na Argentina, a qual tradio literria voc mais se sente ligado ou, em outras palavras, de qual voc mais gostaria de se libertar? uma pergunta difcil. Nasci em So Paulo, vivi a maior parte da minha vida aqui, escrevo em portugus; tudo isso faz de mim, sem empecilhos, um escritor brasileiro. No entanto, talvez no seja fcil detectar alguma brasilidade no que escrevo, se que se pode dizer algo assim. Talvez a origem dbia me distancie um pouco da tradio que aqui temos, por mais mltipla que ela seja. E possvel que minha escrita um tanto cerebral, como algum j disse seja realmente de um tipo mais frequente na Argentina, cuja literatura eu acompanho com tanto interesse e tanta devoo quanto a brasileira. Acho que de nenhuma delas quero me ver livre.

    Seu narrador deixa claro que Sebastin branco, heterossexual, abastado, aspirante a escritor, supostamente privilegiado. O que voc acha do atual debate em torno da identidade dos narradores e protagonistas brasileiros contemporneos, na sua maioria homens, brancos, heterossexuais e de classe mdia? Voc v problema nessa hegemonia?Vejo problema em que essa hegemonia se perpetue em diversos campos da cultura e da sociedade, no apenas na literatura brasileira. Vejo problema em que se considere que j atingimos alguma igualdade, seja racial ou de gnero, quando to evidente que um perfil especfico continua sendo privilegiado, protegido, ouvido com mais ateno, sobrevalorizado. Procurei abordar a questo pela perspectiva desse homem porque era a que me resultava mais acessvel. No caso do meu personagem, em se tratando de um sujeito cujo trao principal talvez seja o rigor excessivo e a autocrtica, essa percepo de privilgio no poderia deixar de constituir um de seus fantasmas, uma de suas crises.

    Os autores que mais lhe interessam so os que equilibram fico, ensaio e crtica literria? Entre brasileiros e estrangeiros, quem dorme na sua cabeceira?Acho que sim, essa uma formulao possvel, mas eu diria que os autores que me interessam so os que produzem uma fico mais

    analtica, uma fico que rejeita qualquer soberania e em vez disso se disseca, se problematiza. No atual estado das coisas, penso que a que se verifica a postura mais crtica, a que rejeita os modelos prontos, as solues j sabidas, tudo aquilo que o mercado tenta impor massiva produo de livros. Vejo no argentino Juan Jos Saer um dos grandes expoentes dessa tentativa, mas h outros ainda vivos, como Ricardo Piglia ou a chilena Diamela Eltit. No Brasil, Nuno Ramos e Alberto Mussa fazem trabalhos interessantssimos que se aproximam dessa linha, mas poderia citar outros autores e outras tantas virtudes cabveis.

    J ouvi voc dizer que, medida que escrevia Procura do romance, ia lendo trechos do livro para um grupo de quatro amigos escritores com os quais costuma se reunir. Quem so esses eles? Voc tambm relatou que o intercmbio de opinies e experincias promovido por esses encontros o fazia ponderar sobre a seguinte questo: Para onde estou levando minha literatura?. Voc j tem uma resposta?Demorei quatro anos para escrever o livro e nesse tempo o plantel do grupo variou um pouco, mas por ele passaram Tony Monti, Abilio Godoy, Leandro Rodrigues, Tiago Novaes Lima, todos jovens escritores paulistas. H entre ns mais diferenas que semelhanas, no compartilhamos nenhum

    projeto esttico especfico, mas foi pela divergncia que pudemos pr prova nossas ideias, nossas pretenses, nossas propostas narrativas. Foi importante submeter o livro, enquanto ainda o elaborava, a esse crivo impiedoso; fui ganhando mais conscincia do que fazia. Sei, portanto, para onde acabei levando a minha literatura, mas tudo se turvou um pouco quando dei o romance por findo, e ainda no sei bem para onde a levarei nos livros por vir.

    Num timo trecho de seu livro, uma mulher, diante do Guernica, de Picasso, tranquiliza o filho pequeno: Es slo arte, es de mentira. Para voc, h alguma verdade nessa afirmao?No, no h verdade alguma nisso, uma mentira conveniente que o mundo insiste em alardear por a. nesse princpio que reside a ideia de arte como diverso, de literatura como entretenimento, concepes to difundidas e que acabam por desconciliar o que vida e o que cultura. assim que hoje se quer a literatura: um passatempo andino que nos indigne ou nos comova por um instante nfimo, sem que se produza uma assimilao profunda, um aguamento crtico, para que fechemos o livro e sigamos tranquilamente com a nossa rotina. Ao escritor, creio eu, cabe fazer uso de todos os recursos de que disponha para resistir a tudo isso.

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    Em Como funciona a fico, publicado recentemente pela Cosac Naify, James Wood fala claramente do ritmo e, sobretudo, do andamento da narrativa, a partir de Gustave Flaubert. Ele esmiua o olhar do protagonista de Educao sentimental, Frdric, pioneiro daquilo que denominamos de flneur o ocioso que vagueia pelas ruas sem pressa, olhando, vendo, refletindo. O olhar do ocioso, pela prpria natureza, torna

    o andamento mais lento, devagar, espaado, quase parando o tempo e se fixando, quase sempre, em ce-nrios ou personagens de muda atividade, sem pressa, quieto, mesmo dentro de um quadro de ao rpida, observa Wood. Est a o fundamento do flneur, umas das criaes mais notveis de Flaubert, gnio imbatvel quando falamos na montagem do texto. Tomemos como exemplo um trecho de Educao sentimental:A plancie, revolta, dava uma impresso de vagas

    runas. A linha das fortificaes formava uma salincia

    Raimundo CARRERO

    Por favor, no pise jamais no p do seu leitorCada histria tem um ritmo certo, cabe ao escritor no atravessar a orquestra

    REPRODUO/MONTAGEM: KARINA FREITAS

    horizontal nos passeios de terra que ladeavam as es-tradas , arvorezinhas sem ramos eram defendidas por ripas eriadas de pregos. Estabelecimentos de produtos qumicos alternavam com estncias de madeireiros. Portes altos, como h nas fazendas, deixavam ver, pelos batentes entreabertos, o interior de ptios ig-nbeis, cheios de imundices, tendo a meio charcos de gua suja. Compridas tabernas cor de sangue e bichos ostentavam altura do primeiro andar, entre as janelas, dois estandartes. Observa-se a que o andamento bem lento,

    com muitas vrgulas, quase frase sobre frase, na verdade, uma frase puxando a outra, com muitos, muitos detalhes. De forma que o leitor obrigado a diminuir a marcha da leitura, tornando-a quase parada. o tempo prprio do ocioso, que v len-tamente, e com detalhes, s vezes desnecessrios, mas que tem tempo para a leitura, at letra por letra. Um romance pode ter muitos andamentos, mas

    MERCADOEDITORIAL

    Marco Polo

    Regina Carvalho (foto) est lanando seu quinto livro de poemas. Como, alm de poetisa, tambm artista plstica, ela sempre associa de algum modo as artes visuais sua escrita, procurando, ainda, uma forma de personalizar cada livro (ela j chegou ao extremo de lanar uma edio em que cada capa era feita mo, diferenciando uma da outra). Para Azuis (Edio da Autora)

    ela pediu a amigos, de vrios pases, que lhe enviassem fotos em que predominasse a cor azul (frutas, paisagens, cenas urbanas etc). Cada livro traz trs fotos e quem adquirir um tem o direito a escolher mais sete. Quanto sua poesia, a matria o cotidiano, de onde podemos colher momentos de felicidade, descoberta de enigmas e, sobretudo, maravilhosa incerteza.

    POESIA

    A poetisa e artista plstica Regina Carvalho lana seu quinto livro de poemas acompanhado de fotos

    DIVULG

    AO

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  • I Os originais de livros submetidos Cepe, exceto aqueles que a Diretoria considera projetos da prpria Editora, so analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a partir dos seguintes critrios:

    1. Contribuio relevante cultura.

    2. Sintonia com a linha editorial da Cepe, que privilegia:

    a) A edio de obras inditas, escritas ou traduzidas em portugus, com relevncia cultural nos vrios campos do conhecimento, suscetveis de serem apreciadas pelo leitor e que preencham os seguintes requisitos: originalidade, correo, coerncia e criatividade;

    b) A reedio de obras de qualquer gnero da criao artstica ou rea do conhecimento cientfico,

    consideradas fundamentais para o patrimnio cultural;

    3. O Conselho no acolhe teses ou dissertaes sem as modificaes necessrias edio e que contemple a ampliao do universo de leitores, visando a democratizao do conhecimento.

    II Atendidos tais critrios, o Conselho emitir parecer sobre o projeto analisado, que ser comunicado ao proponente, cabendo diretoria da Cepe decidir sobre a publicao.

    III Os textos devem ser entregues em quatro vias, em papel A4, conforme a nova ortografia, em fonte Times New Roman, tamanho 12, com espao de uma linha e meia, sem rasuras e contendo, quando for o caso, ndices e bibliografias apresentados conforme as normas tcnicas em vigor.

    IV Sero rejeitados originais que atentem contra a Declarao dos Direitos Humanos e fomentem a violncia e as diversas formas de preconceito.

    V Os originais devem ser encaminhados Presidncia da Cepe, para o endereo indicado a seguir, sob registro de correio ou protocolo, acompanhados de correspondncia do autor, na qual informar seu currculo resumido e endereo para contato.

    VI Os originais apresentados para anlise no sero devolvidos.

    Companhia Editora de PernambucoPresidncia (originais para anlise)Rua Coelho Leite, 530 Santo AmaroCEP 50100-140Recife - Pernambuco

    CRITRIOS PARA RECEBIMENTO E APRECIAO DE ORIGINAIS PELO CONSELHO EDITORIAL

    A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

    O jornalista e poeta Robson Sampaio publicou o livro Arrecifes (Edio do Autor, 2011), que completa a trilogia formada por O Recife & Outros poemas (Companhia Editora de Pernambuco, 2007) e Eu sou Capibaribe (Instituto Maximiano Campos/Edies Bagao, 2009). Como os ttulos deixam ver, a capital de Pernambuco seu principal tema. Seus poemas so crnicas da cidade, que sintetiza no verso O Recife um estado de ser...

    O romance Rolide, do escritor pernambucano Homero Fonseca, j est venda nas livrarias digitais. O e-book (livro digital) est no formato ePub, o mais aceito nos variados aparelhos onde se pode ler livros digitais, dos eReaders (Nook, Sony Reader, Alpha e outros) aos Smartphones, do iPad ao iPhone, passando ainda pelos PCs (computadores pessoais).

    URBANO

    Robson Sampaio termina trilogia sobre o Recife

    E-BOOK

    Romance Rolide, do escritor pernambucano Homero Fonseca, j est sendo vendido em formato digital

    Por enquanto s no acessvel no Kindle, que exige o formato Mobi, exclusivo da Amazon. Os livros podem ser comprados on line nos seguintes endereos: Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Cultura (www.livrariacultura.com.br), Curitiba (www.livrariascuritiba.com.br), Copia (Submarino), (submarino.thecopia.com/home/index.html), Livraria Abril (www.iba.com.br), Positivo (livros.mundopositivo.com.br).

    apenas um ritmo. O ideal que o autor altere os andamentos de acordo com o sentimento da cena; triste, mais triste, alegre, mais alegre. Mexendo assim com o ritmo psicolgico do leitor.James Wood chega a indicar compassos na mu-

    dana de andamento, mas no sei at onde o escri-tor est preparado para isso, nem se necessrio ser assim to rigoroso. Basta que se arme o ritmo mentalmente, usando-se, sempre que possvel, vrgulas, ponto e vrgulas, pontos, comentrios, travesses, digresses, cortes, elipses ou avanos, sempre de acordo com a mudana de andamento. Se algum disser ao autor ou at mesmo ao leitor que o compasso 3/1 ou ternrio, possvel que no se obtenha resultado algum; mas se pedir uma valsa, ento ser atendido prontamente; se 2/4 um compasso comum; pede-se, porm, um ritmo de bolero, de uma cano, e o problema estar solucionado. Mas ateno: tudo depende do per-

    sonagem a quem se entrega a narrativa. Se o autor conhece bem o personagem, ento conhece bem o compasso. Nada de extremamente complicado nem difcil. O autor sempre saber que ritmo ou que andamento quer seguir.James Wood volta a falar em Flaubert e sua Madame

    Bovary, referindo-se famosa cena do jantar em casa do Conde, que prepara Emma para a vida dissoluta que ela levar ao longo do livro. A cena, que se revela metafrica, uma das mais belas e mais reveladoras do texto flaubertiano: Na extremidade da mesa, so-zinho entre todas aquelas mulheres , curvado sobre seu prato cheio e com o guardanapo preso s costas feito uma criana, um ancio comia, deixando cair da boca gotas de molho. Tinha os olhos congestionados e trazia os cabelos presos na nuca, por uma fita preta. Era o sogro do velho marqus, o antigo favorito do conde de Artois ao tempo das caadas de Vadreuil, na residncia de Conflans e que fora, dizia-se, de Maria Antonieta , entre os srs. De Coigny e de Lauzun. Levara uma ruidosa vida de dissipao, cheia de duelos, de apostas, de mulheres raptadas, devorara sua fortuna e preocupara toda famlia.Percebe-se, claramente, que os detalhes so bem

    selecionados pelo olhar que, no entanto, no perde a capacidade de refletir, sobretudo nas ltimas linhas, o que leva a imaginar que se trata, tambm, de algo metafrico, onde Emma pode vislumbrar seu prprio futuro, naquele instante em que ela ainda ansiedade e desejo. Portanto, este pode ser classificado de um caso para se detalhar e esque-matizar, para recorrer, num captulo de passagem. Ou seja, aquele captulo que prepara o leitor para o destino narrativo que se segue.Para aperfeioar a tcnica, o autor pode recorrer ao

    desenho, como era o caso de rico Verssimo, e no procurar detalhes de ltima hora. Pode usar os detalhes numa segunda verso e s ento dar o texto por encer-rado. preciso esquematizar e no apenas improvisar. A criao pede vrios caminhos. Faa vrios estudos e vrias verses. De forma a passar ao olhar do persona-gem a voz que seria do narrador onisciente. No Brasil, a tcnica do olhar e da voz do personagem/narrador substituindo o narrador onisciente muito bem usada por Cristovo Tezza, sobretudo em Beatriz,seu livro de contos, publicado pela Record. Exemplo:Ele to fofinho, Arminda pensou ( e os estudantes

    olharam para mim, como a avaliar se deviam mesmo acreditar no que eu dizia, esse velho e superado nar-rador onisciente, quem acredito nisso? A palestra prxima do final, a voz sumindo), mas temeu confessar em voz alta; o marido compreende o que ela quer dizer claro, mas h limites um bom silncio vale ouro. claro que o autor pode e deve escrever como lhe

    parecer mais conveniente. Mas no custa lembrar que ritmo e harmonia sempre foram destaques especiais do estudo da esttica. Nessa aula estu-damos ritmo e andamento, mas, lembrando o dito popular, sem perder a harmonia.

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    O sentimento que s Benjamin traduziu

    Paulo Carvalho

    A expresso Trauespiel continua desafiando os especialistas e crticos

    Walter Benjamin (1892-1940) est em trs linhas da Histria da literatura ocidental, de Otto Maria Carpeaux (1900 1978), que ganhou recentemente nova edio pela Editora Leya: Walter Benjamin, mais crtico da cultura que da literatura, desenterrou o teatro barroco alemo e escreveu excelentes ensaios sobre Baudelaire, Gide, Kafka, Brecht e Dblin (a edio da obra de Carpeaux comeou em 1959, mesmo ano em que se inicia a traduo do pensador alemo para um segundo idioma, o francs). So trs linhas ainda frescas porque Benjamin, mais crtico da cultura que da literatura, continua a desenterrar o barroco. Continua a reafirmar-se como o primeiro crtico de literatura alem.Desenterra o barroco pela primeira vez em sua

    obra mais complexa, Origem do drama barroco alemo (de 1925, publicado em 1928 e a partir de agora re-ferida como ODBA), tese de livre-docncia rejeitada pela Universidade Frankfurt. A banca, da qual fazia

    parte Franz Schultz, professor de germanstica que havia sugerido o tema a Benjamin, no entendeu a ambiguidade do meio milho de citaes sobre a forma do Trauerspiel (expresso que j foi traduzida de inmeras formas: drama barroco alemo, na traduo de Srgio Paulo Rouanet, publicada em 1984; ou drama trgico, como sugere a traduo do portugus Joo Barrento, de 2004, publicada s agora no Brasil pela editora Autntica. No ttulo do tradutor portugus, temos: Origem do drama trgico alemo).Como afirma Hanna Arendt em Homens em tempos

    sombrios, o barroco nunca esteve realmente vivo na Alemanha e, nesse sentido, contava para o estranha-mento causado pela ODBA a admisso por Benjamin de que o passado s falava diretamente atravs de coisas que no haviam se transmitido. Uma forma morta (ou que nunca esteve viva), mas em cujos textos o filsofo localizou a potncia de dar a ver no tempo no qual nasceram, o tempo que os conhece.

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    PEDRO MELO

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    No drama barroco, o alemo encontrou a origem de prticas polticas de seu tempo sombrio e, como um pssaro anunciando mudana nos ares, torceu a teoria da soberania de Carl Schmitt para colecionar os sinais que pragmaticamente interpretou to mal ao custo da prpria vida.Benjamin viu, no Trauerspiel, alegoria e melanco-

    lia: um drama que representava uma queda sem sada, que no pretendia distrair, nem consolar, em que o essencial e o acessrio se confundiam, a agitao poltica no era escatolgica, e a linguagem se tornava violenta e cifrada para acompanhar os acontecimentos. Citando a observao do escritor J. M. Coetzee a respeito da originalidade do filsofo, Benjamin tambm havia compreendido que a poltica apresentada como um teatro grandioso, e no como discurso e debate, no se limitava a explicar o fascnio do fascismo, mas era o fascismo em essncia. O barroco era ento uma atual encenao de personagens deriva no palco, a caminho de uma catstrofe melanclica, que s poderia ser contornada (e talvez por isso s pudesse ser intensificada) pelo estado de exceo.Autora de ttulos como Benjaminianas: cultura capitalista

    e fetichismo contemporneo e O iluminismo visionrio: Benja-min, leitor de Descartes e Kant, Olgria Matos sugere que o drama barroco est repleto de fantasmas. Diferente da tragdia antiga, neste novo mundo no existem solues definitivas: os homens, como os homens do tempo de Benjamin, aparecem dominados pelo mundo das coisas, onde os xitos so transitrios e as catstrofes, a regra.Quando uma obra de pensamento forte, ela

    permanece no tempo porque ela desafia a vida do esprito. Ela continua a ser reaberta e a ser reinter-pretada porque cada perodo encontra nas obras a sua inteligibilidade interna. Imagine uma obra que no foi entendida, foi recusada pela academia, que foi a maior obra jamais escrita sobre o barroco e at

    hoje continua causando espanto, por seu mtodo, por parecer heterclita. Na ODBA, Benjamin trabalha em vrios registros literrio, poltico, histrico, dra-matrgico e filosfico. Mas uma obra que no tem nada de ecletismo: o que h a busca de afinidades, e as afinidades no reconhecem uma relao causal entre os enunciados. Por isso o mtodo de Benjamin um mtodo se fazer do pensamento. Isto , o pen-samento se fazendo, precisou se valer da literatura, precisou ir s artes, precisou ir medicina, precisou falar do Expressionismo, precisou falar da poltica, observa Olgria em entrevista ao Pernambuco.Michael Lwy, brasileiro radicado na Frana, pes-

    quisador do Centre National de la Recherche Scientifique, tambm lembra que o custo da preservao da ODBA caiu, em primeiro lugar, sobre a vida do prprio Benjamin. Ela custou-lhe a carreira universitria. Ao recusar essa obra, a Universidade de Frankfurt cortou pela raiz a possibilidade de ele fazer uma carreira na universidade e isso o empurrou para a vocao de crtico literrio, que ele assumiu, com muita dedi-cao. O itinerrio intelectual e pessoal de Benjamin resultou um pouco desse fracasso acadmico da ODBA, o que se deve ao fato de o livro ter um carter, digamos, esotrico em particular em seu prefcio, que muito hermtico, difcil de entender. Por isso o jri da Universidade de Frankfurt declarou: J que ns no entendemos, nos recusamos a julgar a tese. A indeciso dos monarcas, a servilidade dos corte-ses so coisas atuais, muito evidentes na Europa de hoje, mas eu pessoalmente no acho que a ODBA seja um dos livros mais atuais de Benjamin. Sem dvida em outros trabalhos podemos encontrar melhor essas constelaes entre o presente que vivemos hoje e o presente do drama barroco, a exemplo das Teses sobre o conceito de histria (1940). Lwy autor de Walter Benjamin Aviso de incndio.A ODBA foi baseada numa ousada teoria neopla-

    tnica das formas literrias, ia contra as regras da

    academia, deve ser considerado como um dos textos mais radicais e um dos frutos mais inteligentes da cultura europeia da primeira metade do sculo 20. o que acena Mrcio Seligmann-Silva, profes-sor livre-docente de Teoria Literria na Unicamp, autor de ttulos como A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno e Ler o livro do mundo. Como para mim Benjamin tem uma grande atualidade, o mesmo vale para essa obra. Ela pode ser pensada como nossa contempornea em vrios sentidos. Por seu mtodo, que transdisciplinar, une filosofia, histria da arte, teoria poltica e teoria literria, de um modo original e muito inspirador.Tambm pelas temticas abordadas, continua

    Seligmann-Silva em entrevista para o Pernambuco, esse ensaio atual, como a teoria da soberania, da melancolia, da alegoria, do barroco, da tragdia: todos esses conceitos ainda possuem um grande valor e isso no apenas para a reflexo esttica. Podemos pensar a atual crise da modernidade (ou da ps-modernidade, como alguns preferem chamar) utilizando esses con-ceitos. Para Benjamin, o mundo da alegoria barroca tem como sua fora centrpeta a referida fidelidade aos objetos do melanclico e alegorista, que colecio-na as runas do mundo. J em Baudelaire, no sculo 19, Benjamin identifica um gesto semelhante, o do trapeiro que rene e investe de sentido aquilo que a sociedade joga fora, transformando o lixo em seu tesouro. Essa dialtica entre o resto, o que sobra e descartado e, por outro lado, a sua transformao em tesouro, central, como um procedimento heurstico onipresente na obra de Benjamin. O prprio drama barroco alemo era uma espcie de resto, j que era um gnero desprezado pela historiografia literria. Benjamin soube extrair dessas obras esquecidas poderosos insights que at hoje iluminam a crtica cultural. interessante perceber que apesar de ter elegido dois temas eminentemente germansticos em seu doutorado e tambm em sua livre-docncia,

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    CAPA

    contemplativa, de inrcia, a atitude do corteso que simplesmente se adapta aos poderosos. Esse um tema que Benjamin trata na ODBA, mas de uma forma histrica, acadmica, porque devemos lembrar: foi um livro escrito em um perodo em que Benjamin no havia descoberto o marxismo. uma problemtica um pouco metafsica, teolgica e literria, que bastante impressionante, mas que no chega a ter realmente uma expresso poltica mais contundente. com a descoberta do marxismo, que se d logo em seguida, que Benjamin vai repensar essa e outras questes, e reformul-las em outros termos. A questo da acdia volta nas Teses sobre o conceito de histria. O tema aparece para designar o equivalente moderno do corteso que o historiador conformista, responsvel pelo historicismo que apenas repete e reproduz a histria dos vencedores, acena Lwy.Segundo Mrcio Seligmann-Silva, para quem a

    comparao dessa acdia com o conceito de tdio profundo, de Heidegger, no seria vlida, Benjamin tambm falava criticamente de uma melancolia de esquerda. Por outro lado, sua anlise da melancolia no seu livro sobre o drama barroco alemo deixa pa-tente que ele percebia uma relao entre esse estado anmico e a fidelidade ao mundo das coisas. Essa fidelidade essencial para se entender o universo do prprio Benjamin, ele mesmo um grande coleciona-dor e algum com muitos traos do melanclico. No gostaria de aplicar o termo tdio profundo para essa

    melancolia, j que no se trata aqui de tdio nem de algo profundo. Pelo contrrio, o melanclico se apega materialidade do mundo, sua superfcie desprovida de toda transcendncia. Isso no tem nada a ver com a neometafsica heideggeriana. Benjamin tambm opunha o tempo mtico (da repetio, no qual no existe experincia), que caracteriza os personagens de Kafka, ao tempo messinico, que surge em Benjamin como uma interrupo absoluta, um tempo do agora (Jetztzeit). J o soberano barroco, que Benjamin carac-teriza como figura paradoxal que ao mesmo tempo decide o estado de exceo e um incapaz de tomar decises, permite introduzir na teoria poltica um ponto de vista que coloca de ponta-cabea a teoria do decisionismo de Carl Schmitt. Ao invs do soberano absoluto e autossuficiente, vemos em Benjamin a figura de um indeciso, vtima das intrigas de sua corte.Na leitura de Tereza Callado, Benjamin reconceitua,

    com base nas alegorias do Trauerspiel, a melancolia que aparece como taedium vitae entre os medievais. A tona-lidade afetiva do melanclico no s inao ou ao de repetio, mas algo que desativa o tempo, suspende o ato: espera o pensamento fazer seu trabalho paciente. O filsofo observa nela a criatividade para dilatar a percepo sobre a realidade. Desse modo, a torna criativa; do mesmo modo, a poesia spleen de Baude-laire, originada no tdio, capaz de denunciar o status quo, que na modernidade consiste no tempo infernal da repetio. Nos dois casos, o olhar que tenta digerir

    Ao invs de soberano e autossuficiente, vemos em Benjamin um indeciso, uma vtima de intrigas da sua corte

    ou seja, nos ensaios sobre o romantismo e o barroco alemes, em nenhum momento Benjamin sucum-biu ao pensamento nacionalista. Pelo contrrio, ele desenvolve abordagens que desmontam a postura nacionalista que enaltece as grandes obras nacionais como um patrimnio intocvel que merece apenas venerao. Da Benjamin se sentir livre para resgatar um gnero como o drama barroco alemo que, por seu elemento grotesco, no facilitava uma leitura nacionalista e ufanista. Benjamin vai justamente enfatizar esse aspecto grotesco do barroco alemo.De acordo com Tereza Callado, professora de Fi-

    losofia da Universidade Estadual do Cear, organi-zadora do Encontro Internacional Walter Benjamin e editora dos Cadernos Walter Benjamin (www.gewebe.com.br/cadernos.htm), o drama barroco se diferencia da tragdia clssica, entre outros aspectos, pela natu-reza noturna da narrativa e pela negativa da sntese (Benjamin rejeita a dialtica idealista hegeliana). O drama barroco noturno, e concebido tempo-ralmente num sentido figurado, parasitrio, onde o mal se configura investido de um poder soteriolgico, inexplicvel, construdo de uma ideologia fechada, que se transforma em causa, na ptica de Benjamin, de todo o sofrimento no mundo, onde os limites esto fundidos aos da morte. esse o motivo pelo qual Benjamin exclui a sntese. O Trauerspiel a construiu de forma dramtica. Para o filsofo, a sntese concreta e paralisa o pensamento. Ao se concretizar no mundo e isso vai acontecer quando ela se personifica em uma ideologia , so excludos todos aqueles que se posicionaram avessos a ela. Foi o que aconteceu ao regime da cortina de ferro, ao totalitarismo nazista, s ditaduras da Amrica Latina e a por diante, at s ortodoxias religiosas... como estamos assistindo nos fundamentalismos. Em suma, o sistema fechado causa de sofrimento. Ao contrrio, a leitura aberta da histria possibilita a felicidade. E no estado de in-definio em que vivemos atualmente, com a morte

    da crtica, perigoso se tender para o lado da sntese. Ela possibilita a tragdia. Para o que Benjamin nos acena? A histria precisaria permanecer aberta, para que seja possvel se educar para a deciso, na ao poltica compreendida lato sensu, acredito. Por isso Benjamin viu no Trauerspiel o drama barroco e no a tragdia, desfiada pelo destino. Trauerspiel o drama da existncia, que inclui o conflito, a tenso, e da o aspecto lutuoso, sem deixar de ser Spiel artifcio, jogo, para alm do luto, a partir da deciso.

    A ACDIA O drama barroco fala da ausncia de referncia em um mundo sem Deus, falta de transcendncia que pe em xeque a capacidade de deciso dos soberanos. O monarca do drama barroco no capaz de decidir: a prolixidade dos seus pensamentos faz a ao se con-verter em inao. O tirano tem ao mesmo tempo poder e medo, intrigas e traies encontram seu palco na histria convertida em um tempo interminavelmente longo e as aes se tornam gratuitas em um mundo e em vidas desprezadas pelo tdio. Da que a melancolia seja um tema central da ODBA.Mas a questo da acdia se refere no s ao monarca,

    mas tambm ao oportunismo espiritual do corteso. O corteso no qual essa preguia melanclica do esprito serve de pretexto para acompanhar o poder. Servir de eco, de sombra ao poder. Servir simplesmente como uma cauda ao poder real, monrquico. Essa atitude

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    a realidade com o Grbeln (o ruminar reflexivo) com o objetivo de vislumbrar sadas, mesmo labirnticas, possibilitado pelo estado de nimo que acomete o melanclico, aquele que est sob o signo de Saturno. No sentimento de insatisfao e rejeio diante do mesmo fenmeno na sua pr e ps-histria (aqui me refiro incapacidade de decidir do prncipe barroco que causa a vertigem, que tambm a vertigem da existncia na metrpole), o mtodo do desvio desvela a inexorabilidade da Verhngnis (fatalidade) que aco-mete o homem barroco (quando o mundo se torna vazio de sentido), tanto quanto aquele que debrua seu olhar sobre a vitrine.A diluio de sentido do objeto antigo a mesma,

    continua Tereza. L, o esvaziamento do sentido desencadeado pelo rigor da moral luterana, que previne o cristo contra os artifcios da indulgncia plenria (recompensa pela ao caridosa). Essa nova mentalidade se alastra, tinge tudo e a todos de melancolia, sobretudo os grandes, aqueles que tem que decidir, como o prncipe barroco. Ali, a fatalidade vem aliada injustia, aos jogos de poder alcanados pela ambio e o egosmo e constroem um conceito de histria para a poca histria naturalizada. Es-sas relaes de fora so desencadeadas como uma avalanche sobre o homem.Aqui entra, no conceito de estado de exceo

    expediente poltico sugerido pelo direito cons-titucional da poca, a digresso feita por Benjamin

    contra a teoria da soberania vigente no absolutismo barroco. O monarca que o responsvel absolu-to pela salvaguarda do seu povo coagido pelas contingncias do conflito civil religioso, gerado pela reforma luterana, a interferir nessa situao delicada por se tratar de uma disputa de irmos na mesma crena, ento dividida em moral catlica e moral luterana. Seja utilizando a imparcialidade, o conformismo, seja a apateia medieval aconselhada como recurso contra o pecado da vanitas, o Estadista no consegue contornar o conflito, embora impe-riosa seja a contingncia a exigir uma deciso.Nesse impasse, aponta ainda a professora de filo-

    sofia, agua-se a percepo da fragilidade da insgnia real, descoberta na solido do soberano. Na tragdia dos antigos, dipo tambm descobre sozinho o peso do destino, mas enquanto dipo se pereniza como heri, o drama barroco no conhece personagens, nem escatologia. As figuraes esto sob a ordem de um destino que a condio de mortal, a ser expiada por todos. O cenrio o da naturalizao da histria, onde a physis, ao invs de definir a harmonia pr--estabelecida no cosmos, na percepo dos antigos, tende ao decadente, ao precrio. Esse dado dispensa a necessidade de uma culpa. Assim todos so mani-pulados, seja pelas leis de ferro da natureza, a morte, seja pela histria, na verdade histria do poder, e a os papis se alternam, se invertem. Nessa dialtica na imobilidade (com a qual Benjamin rejeita a dia-

    ltica idealista hegeliana) tanto o soberano conhece a superioridade do bufo em desarticular por um instante a sua tristeza, como o fiel conselheiro ir fazer o papel de conspirador, traindo o prncipe por apatia. da natureza do drama barroco, na fixidez da sua forma, que nenhum dos personagens exiba o menor sopro de ideal revolucionrio. No h tragdia, pois todo conflito se enquadra nas leis dilatadas da calculabilidade da criatura, onde a histria con-cebida dessa forma.Benjamin desenterra com a ODBA no s um gnero

    que sequer esteve vivo, mas a atualidade intensiva de Benjamin, um modo de pensar que funda outra noo de atual sob a ideia que a felicidade, sempre tocada pela nostalgia, reabre o passado atualidade que faz de Benjamin mais do que belos livros de Walter Benjamin uso aqui, para concluir, a perti-nente expresso de Jeanne-Marie Gagnebin em seu ensaio para Pensamento alemo no sculo XX, em crtica glamourizao do pensador. Desenterramos com a ODBA, enfim, a fora da alegoria, do no compreen-dido, do recalcado, sempre pronto para apontar para o nosso prprio sculo aquilo que ele tem de mais fantasmtico, conspiratrio e lutuoso. O que nele se dissimula por afasia, inapetncia, falta de gosto e deciso, sintomas de nossa total, ou quase total, submisso ordem das coisas.

    Paulo Carvalho mestre em Comunicao Social

    PEDRO MELO

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    CAPA

    Trs anotaes para voc lercom BenjaminAlgumas possibilidades para o leitor compreender todo o prazer do texto benjaminiano Manoel Ricardo de Lima

    ANOTAO 1.Ler o que Walter Benjamin nos deixou como legado de pensamento , de certa maneira, incorporar a di-menso de sua escrita que se compe a partir do uso do fragmento e, principalmente, de um conhecimento de arquivista elaborado a partir da montagem. Ele , talvez, o pensador moderno par excellence; aquele que desfia o problema da alegoria do drama barroco at o livro sobre Charles Baudelaire e a modernidade armando o tempo inteiro uma disparidade entre as modificaes da linguagem e o que isto implica sobre as condies de vida do homem. Uma reflexo propositiva do homem e da arte no centro nervoso da experincia circular do sistema de produo do capital; reflexo que vai, por exemplo, do teatro de Bertolt Brecht literatura de Franz Kafka, passando pela memria involuntria de Marcel Proust e pelos impasses das narrativas de Robert Walser. As esco-lhas que Benjamin fez, naquele momento, comeo do sculo 20, no eram to bvias. A sua prtica de pensamento tem a ver diretamente com essas escolhas que fez a partir de um uso deflagrado da ateno; no toa seus textos no comportam qualquer resulta-do conclusivo, ao contrrio, sugerem a constituio abissal do paradoxo naquilo que ele passa a chamar de imagem dialtica. O enfrentamento e o prazer de ler Benjamin se do

    diretamente a, com os usos da imagem dialtica que elaborou para pensar e repensar a lgica impositiva

    da histria e da modernidade, entre a autonomia e o aparelho burgus, ou seja, da luta de classes para uma luta das imagens. Os exemplos so inmeros e esto espalhados por toda a sua obra, mas um bom caminho e comeo a um leitor mais desavisado so os fragmentos de Rua de mo nica; estes fragmen-tos compem uma espcie de srie armazenada de fotogramas da memria e se organizam atravs do registro e das lacunas do registro num fluxo cont-nuo de escrita que, por sua vez, impe o fluxo de percepo da operao crtica do Benjamin leitor de semelhanas imateriais. Num desses fragmentos, pois, intitulado Viagem atravs da inflao alem, a certa altura, ele anota: as pessoas s tem em mente o mais estreito interesse privado quando agem, mas ao mesmo tempo so determinadas mais que nunca em seu comportamento pelos instintos da massa. E mais que nunca os instintos da massa se tornaram desatinados e alheios vida. O crtico cultural Ral Antelo nos lembra que Ben-

    jamin j propunha, para ler a poesia de Charles Bau-delaire, que a vida moderna ou seja, a modernidade o fundo das imagens dialticas, logo paradoxais e tambm, ao mesmo tempo e principalmente, am-bivalentes; em Baudelaire, disse Benjamin, h um confronto da vida moderna como havia um confronto entre o sculo 17 com a antiguidade. E isto no seno uma luta das imagens que recoloca outro olhar sobre a histria, talvez o do significante vazio, do sem sentido,

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    da ausncia, da falta etc. Para Ral Antelo, Benjamin nos faz, por exemplo, revisar tambm as contradies de Baudelaire, porque fato sabemos Baudelaire no fala em nenhum momento da arte moderna, mas sim da vida moderna.

    ANOTAO 2.H um pequeno texto de Walter Benjamin, de 1933, intitulado Experincia e pobreza, em que se l acerca do desenvolvimento da tcnica sobrepondo-se ao ho-mem e o que o singulariza: a experincia. O famoso e conhecido e despedaado texto A obra de arte na era da reproduo tcnica, que vincularia de vez o pensamento de Benjamin a esta problemtica, de 1935/36, dois anos depois. Neste ensaio, ele afirma que Todos os esforos no sentido de tornar esttica a poltica cul-minaro em uma s coisa: guerra.. Ficamos diante daquilo que Susan Buck-Morss leria em Benjamin como anesttica, quando remete s preocupaes dele de pensar a modernidade a partir da introduo definitiva da esttica na vida poltica. Ela ainda diz que a partir de uma anesttica que estabelecemos um gozo narcsico com a viso de nossa prpria destruio. E a modernidade que Benjamin leu parece se colocar a, num engendramento entre experincia esttica e experincia histrica, o que ele entende muito bem e com sofisticao. Para ele, a vida moderna que est em jogo numa condio mltipla que vai da banalida-de ao fazer diante do horror , arte tal qual a vida.

    Mas ler Benjamin , principalmente, segundo sua prpria lio, ler o que nunca foi escrito. E aqui no se trata de uma entrelinha, um espao em branco ou algo parecido, mas, muito mais, uma armadilha das imagens do pensamento que armam possibilidades de outras constelaes de sentidos para que, assim, se possa mover outras perspectivas e outras lembranas do presente. A questo, para ele, o tempo histrico em geral que se d a partir de um encontro dos tem-pos, numa espcie de coliso de um presente ativo com seu passado reminiscente, como bem lembra o pensador francs Didi-Huberman. Por isso que a constatao, naquele texto, de que os

    homens voltam da guerra absolutamente silenciosos, logo muito mais pobres em experincias comunic-veis, coloca em xeque exatamente este limiar ambi-valente de enfrentamento prprio da modernidade diante do tempo histrico: a potica e a tcnica. Um vetor , para Benjamin, a guerra de trincheiras, de sabotagem, porque nunca houve experincias mais radicalmente desmoralizadas que a experincia es-tratgica pela guerra de trincheiras, a experincia econmica pela inflao, a experincia do corpo pela fome, a experincia moral pelos governantes. O que surge diante desse espetculo de emudecimento em que a troca de experincias no mais possvel, em que a experincia se empobrece sobrepujada pela tcnica e se abre sobre a humanidade , diz ele, uma nova barbrie. E a pergunta que vem : qual o valor

    de todo o nosso patrimnio cultural, se a experincia no mais o vincula a ns? Alguns anos depois, em 1940, Benjamin escreveu

    um documento intitulado Sobre o conceito de histria. Logo depois, tentava escapar de uma Frana que denunciava Gestapo os refugiados judeus e, em 26 de setembro deste ano, em Port-Bou, na fronteira espanhola, opta pelo suicdio. O documento se compe de 18 teses e dois apndices. Texto marcadamente denso, sempre olhado como leitura difcil por causa da variao de sugestes entre as proposies marxistas do mate-rialismo histrico e da teologia judaica. Como lembra Michel Lwy, h nessas teses uma srie de questes fundamentais acerca do progresso, da religio, da histria, da utopia, da poltica etc. E nenhum leitor que se preze pode passar inclume por elas. Da Tese 4, por exemplo, quando expande a imagem da pre-ciso marxista de que o nico real possvel a luta de classes ao dizer que A luta de classes, que um histo-riador educado por Marx jamais perde de vista, uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais no existem as refinadas e espirituais., ou da Tese 7, que conversa diretamente com o texto de 1933, ao indicar que preciso fazer um revs da histria em direo ao vencido, que o historiador sempre dirige sua empatia ao vencedor, que, por sua vez, beneficia o dominador; nesta relao refeita, d-se a ver os despojos a que chamamos de bens culturais. E a articulao entre os textos se remonta numa reviso tambm de nossa experincia moderna: Nunca houve um monumento da cultura que no fosse tambm um monumento da barbrie. A tarefa radical do materialista histrico, para Benjamin, escovar a histria a contrapelo.

    ANOTAO 3.Num fragmento de suas Imagens do pensamento intitu-lado Desempacotando minha biblioteca, Benjamin escreve: Estou desempacotando a minha biblioteca. Sim, estou. Os livros, portanto, ainda no esto nas es-tantes; o suave tdio da ordem ainda no os envolve. Tampouco posso passar ao longo de suas fileiras para, na presena de ouvintes amigos, revist-los. Ler Benjamin um pouco provocar-se nessa revisitao do pensamento da modernidade, porque para enten-der como se estabelece o seu fluxo de pensamento h que se ler antes o que ele toma como tarefa poltica que, no caso desse texto, aparece em direo cole-o, ao colecionador, como um princpio tambm da modernidade. Desempacotar os livros que formam o pensamento do sculo 20 , de alguma maneira, mesmo sem querer, tocar em Benjamin exatamente no movimento de seu pensamento, por causa da zona limite em que se colocava. Joo Barrento, crtico portugus e tradutor de Walter Benjamin, quem aponta esta zona, sempre fora do cnone, entre modos novos de pensar. A grande tenso do pensamento dele est no choque entre o messianismo judaico e o materialismo histrico, que ele conjugou como ningum mais fez., pois, a existncia do colecionador que impe,

    para Benjamin, a sugesto de uma imagem dialtica entre a ordem e a desordem ao observar o pequeno, o trivial. O colecionador de livros, por exemplo, o que se entorpece com uma memria involuntria que cada livro contm, uma espcie de memria mgica, a partir da excitao da compra: o lugar, o preo, a ci-dade, a lngua, os entornos etc. O colecionador , para Benjamin, uma figura mgica, capaz de fazer magia, porque so fisionomistas do mundo dos objetos e por isso se tornam intrpretes do destino.Ler Benjamin hoje pode parecer uma escolha um

    tanto bvia, ainda mais se lido sempre na mesma clave, com pouqussima deriva e numa espcie de plano fechado que impede projetar a leitura sobre o que nunca foi escrito. Ler Benjamin, com algum prazer e proposio do poltico, tem a ver direta-mente com uma procura para cumprir tambm, com ele, a figurao do colecionador; assim, a partir da, se pode armar outras sries mais tensas e mais heterogneas, se pode armar outras constelaes absolutamente dspares; e isto seria de fato, me parece, uma tarefa mais prxima do que ele prope. Ler com Benjamin ler o presente sem perder de vista que estamos o tempo inteiro tentando ler o futuro diante de uma pergunta: o que ainda nos cabe como imagem crtica?

    Manoel Ricardo de Lima poeta e professor de literatu-ra da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

    PEDRO MELO

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    PERFIL

    Como montar uma armadilha para os amantes O novo livro da poeta Ana Martins Marques rediscute a linguagem tpica amorosaGianni Paula de Melo

    Apesar da familiaridade com os textos poticos e do hbito da escrita, o seu primeiro livro s ficou pronto em 2009, pela editora Scriptum. Vida submarina foi impulsionado por acontecimentos ocorridos nos anos anteriores. Em 2007, a mineira ganhou o Pr-mio Cidade de Belo Horizonte, em uma categoria de autores estreantes. No ano seguinte, venceu o mes-mo concurso, mas, desta vez, na categoria poesia. Essas premiaes foram muito importantes para mim, que estava s voltas com uma grande insegu-rana em relao quilo que escrevia, comenta. Seu trabalho, no entanto, no fruto de uma rotina da escrita, na qual a poesia tem seu horrio reservado no quadro das obrigaes. A criao potica , an-tes, o resultado de uma ateno sensvel ao mundo. Nesse sentido, Ana Martins alterna perodos em que escreve diariamente com longos intervalos em que no escreve nada: Vou anotando ideias, imagens, palavras; e espero, descreve. Para ela, assim como para tantos outros, a escrita demanda recolhimento, solido. Kafka, um dos seus ficcionistas preferidos, dissera outrora que para escrever, nem a noite su-ficientemente noturna, imagem que ela faz questo de recuperar quando reflete sobre essa exigncia de apartamento e clandestinidade.Participar dos concursos, em 2007 e 2008, cola-

    borou para que as suas poesias em repouso fizes-sem contato com o mundo; j o reconhecimento, a partir dos prmios, revelou que o Outro tambm se movimentava em direo aos textos de Ana. O lanamento e a repercusso de seu segundo livro, Da arte das armadilhas, tiveram um papel importante na sua afirmao como escritora contempornea. O convite da Companhia das Letras para realiz-lo chegou em 2010 e, desta vez, o resultado foi uma obra mais enxuta e bem articulada. O ttulo surgiu no meio do processo de elaborao do livro, a partir da conversa com um amigo antroplogo. Achei que a imagem da armadilha poderia funcionar como ele-mento articulador dos poemas, explica a escritora. A metfora sugerida pelo ttulo, alis, tambm

    serve como ponte entre os temas citados inicialmen-te. Pois a linguagem sem cessar arma armadilhas. Pois o amor sem cessar arma armadilhas. Quando escrevemos, partimos caa de palavras, mas nos damos conta, rapidamente, de que somos ns as presas; acho que isso tambm acontece, frequente-

    Em uma poesia chamada Trapzio, a mineira Ana Martins Marques categrica: todos os poemas so de amor. Ns, leitores, estamos autorizados a discor-dar ou desconfiar, mas inegvel que, aos nossos ps, aparece constantemente uma ponte que vai do amor linguagem e retorna da linguagem ao amor. Na poesia de Ana Martins, percorremos esse trajeto continuamente, movimentos feitos em direo ao Outro. Afinal, no a ele que dedico meu amor? No a ele que se destina o que escrevo? O que intentamos, no exerccio amoroso e no exerccio da linguagem, seno, como disse a prpria escritora, um espao comum de compartilhamento e convivncia? Ela faz questo de lembrar Paul Celan, que diz que o poema como uma garrafa lanada ao mar, aban-donada esperana de poder um dia ser recolhida numa praia qualquer. E, afinal, no estamos todos ns abandonados esperana de sermos recolhidos em algum momento? Em poucas palavras, a autora sintetiza: podemos pensar que a linguagem uma construo amorosa, que as lnguas se elaboram a partir de aes comuns, compartilhadas; ou que o amor uma construo de linguagem.O dilogo entre esses elementos atravessa, signi-

    ficativamente, a obra desta jovem poetisa cuja vida est entrelaada com a literatura h anos talvez desde o bero. parte a formao acadmica no curso letras que seguiu at o doutorado, o envol-vimento de Ana Martins com a escrita literria vai alm de uma relao profissional, e comeou cedo. Na adolescncia, ela descobriu obras como Bagagem e O corao disparado, da conterrnea Adlia Prado, com quem j foi comparada. uma ale-gria ver minha poesia aproximada da poesia da Adlia, no s por ser uma poetisa admirvel, mas tambm por essa ligao afetiva que tenho com os poemas dela. Eu mesma no vejo, porm, muitas semelhanas entre os meus poemas e a sua obra o que, obviamente, no quer dizer que no seja possvel estabelecer relaes a partir da leitura. A associao mais provvel entre elas diz respeito s questes cotidianas abordadas por ambas, mas que tambm esto presentes na obra de inmeros outros escritores modernos e contemporneos. Po-rm, na obra de Adlia notamos um amplo espao dedicado experincia religiosa, o que no ocorre no trabalho de Ana Martins.

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    so embaralhadas nos poemas: os objetos doms-ticos so tambm estranhos, desobedientes; a casa se abre para o acaso, o tempo, a decomposio.Essas imagens tambm apontam uma oposi-

    o entre a aventura e o recolhimento, a partida e a espera. O que nos leva a uma figura mitolgica bastante presente em sua obra: a dedicada Pen-lope. Ela, espera. Ela, recolhimento. Ela, morada. Ulisses, naturalmente, aventura, partida, mar. Na perspectiva benjaminiana, o heri pode ser tomado como uma representao do narrador que viaja e traz um repertrio de experincias para transmitir aos outros. Fala-se muito de Ulisses como prottipo do narrador, mas para mim Penlope, destecendo de noite o que tece de dia, que pode ser tomada como figurao da escrita, explica Ana Martins. A perso-nagem, smbolo da espera, tambm lhe serve como metfora do amor e da criao. Acho que o que me atrai na figura de Penlope a revelao de que a espera tambm um trabalho, cotidianamente feito e desfeito. Isso tem a ver com a espera amorosa no livro Fragmentos de um discurso amoroso, Barthes define o enamorado como aquele que espera -, mas tem tambm a ver com a leitura e com a escrita, com o texto como uma viagem que se faz em repouso.

    MQUINA DE VELOCIDADESExiste uma definio bastante conhecida que diz que a poesia uma ou duas linhas com uma imensa paisagem por trs. Aqui, a descrio cai como uma luva, pois grande parte dos textos da poetisa so adeptos da brevidade, do mximo no mnimo. Uma opo, alis, cada vez mais recorrente, no se sabe se por termos assimilado os conselhos de preciso e conciso dos cones da poesia ou se por influncia do ritmo contemporneo que parece ser propcio ao sucesso dos haikais, j que nos habituamos a sentir e transcender em 140 caracteres. Talvez no Brasil, de fato, a defesa da conciso e

    do corte, a verdadeira guerra que foi travada contra a prolixidade, o derramamento, a retrica de salo, tenham tornado mais rara, embora no de todo au-sente, experincias com o poema longo, discursivo ou mesmo narrativo. Na verdade, no sei se essa afir-mao verdadeira; talvez o imperativo do mnimo exista antes por parte da crtica, avalia a escritora. Mas ela tambm relembra que a extenso de um poema

    RICARDO MOURA

    no representa a garantia de nada. A nica coisa que se pode afirmar com certeza que, como disse Machado de Assis comparando o conto ao romance, o poema curto leva sobre o poema longo, se ambos forem ruins, a vantagem da brevidade.Mas, sendo bons, ambos tm a capacidade de

    afetar a relao temporal do leitor com o mundo, alterando o tempo da nossa percepo. O escritor portugus Helberto Helder afirmou que a pontuao uma mquina de velocidades. Talvez essa seja uma boa definio para a prpria literatura, aponta. J o anglo-americano W. H. Auden defendia que a poesia nada faz acontecer e, de certa forma, a escri-tora tambm concorda com essa ponderao: De modo geral, acho que no procuramos a literatura para encontrar respostas ou definir caminhos, no vamos buscar nela um manual de instrues (na prpria literatura, comeando pelo Quixote, encon-tramos vrios exemplos da insensatez que levar os livros a srio), nem mesmo um conhecimento maior do mundo, mas talvez justamente a imagem da nossa incompreenso, do nosso desejo, da nossa perplexidade. Por outro lado, a poesia de certo modo age na linguagem, o que significa que ela age de alguma forma no mundo; seu modo de agir, porm, impondervel, muitas vezes ambivalente, quase sempre imperceptvel.

    mente, no amor, conclui Ana Martins. Seus versos, concisos e cortantes, esto atentos ao prprio fazer potico: a captura do rato pela ratoeira, a partilha da folha em branco entre o Eu e o Outro, o lugar a salvo da palavra que, doa a quem doer, no h.

    A MORADA E O MAR No seu mais recente livro, notamos que h, clara-mente, uma diviso em duas partes. Da metade para o fim, a costura dos textos feita pelo j mencionado tpico das armadilhas. Os poemas que preenchem as pginas iniciais, no entanto, relacionam-se com a temtica da casa, dos objetos cotidianos, e esto agru-pados em torno da palavra interiores. Diante de ns, revela-se uma ode ao mnimo e ao prosaico, tpica da nossa literatura desde o modernismo. Este ambiente perigosamente familiar visitado e revisitado por Ana Martins, que j havia reservado uma seo para tais imagens na sua publicao de estreia. Justamente por acreditarmos estar diante do conhecido, do previsvel, do amestrado, tornamos possvel a surpresa provocada pelo enfrentamento do bvio, pela ateno aos detalhes camuflados na rotina. Quem abre a torneira/convida a entrar/o lago/ o rio/ o mar.Seja naquilo que revelado pelos cmodos da

    casa, nos hbitos associados aos mveis ou na na-tureza dos pequenos utenslios, h poesia e subjeti-vidade na trivialidade que nos cerca, e preciso ter olhos de ver. Ver as evidncias da morte na fruteira. Os trs ramos de metal nos garfos. Os brincos es-quecidos em cima da cmoda. A pimenteira que nos devolve o sol de ontem. E o relgio? O r-e-l--g-i--o. O intil marcador de tempo das urgncias, mas das urgncias vulgares. Pois o tempo que realmente importa, o nosso, o de dentro da gente, tem seus prprios marcadores. Ao extenso e salgado mundo dgua na fronteira

    com a areia elemento que parece provocar verda-deiro fascnio em uma escritora no litornea tam-bm so dedicados muitos versos. Ela se questiona, inclusive, se perderia o mar, no caso de t-lo por perto, como perde seus isqueiros e canetas, coisas baratas e fceis de encontrar. Ao fazer da morada e do mar temas cativos, Ana cultiva dois territrios frteis: o do conhecido e o do desconhecido. Mas no subestima a capacidade de troca desses universos. Gosto de pensar que essas duas categorias s vezes

    De modo geral, no procuramos a literatura para encontrar respostas ou definir caminhos, acredita a autora

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  • O CONTO DO GAROTO QUE NO ESPECIALLucas Mariz

    Primeiro colocado da categoria Infantil no I Concurso Cepe de Literatura Infantil e Juvenil, realizado em 2010. Conta a histria de um menino comum, igual a de outros de sua idade, mostrando que ningum precisa de superpoderes para ser feliz. Ilustraes de Igor Colares.

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    A CABRA SONHADORALuzil Gonalves Ferreira

    A cabrinha Cordulina, que sonha com o amor de um lindo bode chamado Matias, vive uma srie de aventuras, que incluem voar e tomar banho de cachoeira, at que seu sonho se torna realidade. Ilustraes do artista plstico Luciano Pinheiro.

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    PANO RPIDOJoca Souza Leo

    A obra uma compilao de breves e bem-humoradas histrias de escritores, jornalistas, artistas, poetas, polticos, populares e bomios pernambucanos, anteriormente publicadas na coluna do autor na revista Algomais.

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    TAP: SUA CENA & SUA SOMBRAAntonio Edson Cadengue

    Antonio Cadengue, que estudou o Teatro de Amadores de Pernambuco por 10 anos, mostra seus momentos mais signifi cativos, assim como as excurses feitas em diversas cidades e capitais brasileiras e as suas principais montagens.

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    O OBSERVATRIO NO TELHADOOscar T. Matsuura

    Resultado de anos de estudo sobre a vida e obra de Jorge Marcgrave, o livro faz parte da comemorao do 4 centenrio de nascimento do principal responsvel por grandes estudos astronmicos e cartogrfi cos em Pernambuco.

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    ANJO DE RUAManoel Constantino

    Primeiro colocado da categoria Juvenil no I Concurso Cepe de Literatura Infantil e Juvenil. Inspirado na histria real de um menino que viveu nas ruas do Recife, mostra como uma amizade pode perdurar, mesmo na adversidade. Ilustraes de Roberto Ploeg.

    R$ 20,00

    TAPACURHomero Fonseca

    Segunda edio da obra Viagem ao planeta dos boatos. O leitor acompanha o rumor de que a barragem de Tapacur havia estourado a partir de relatos, incluindo, no caso mais recente, a repercusso do mesmo em redes sociais.

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    PONTES E IDEIASClaudia Poncioni

    O livro mostra o lado humanista do engenheiro francs que projetou obras modernizadoras no Recife do sculo 19, a exemplo do Teatro de Santa Isabel e do Mercado de So Jos.

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    O volume rene as obras A Revoluo de 1817, O sentido social da Revoluo Praieira e O padre Lopes Gama poltico, que espelham um trabalho em boa parte voltado para os movimentos libertrios brasileiros, fazendo de Amaro Quintas pleno merecedor do ttulo de O Historiador da Liberdade.

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    POEMASDaniel Lima

    H meio sculo, o Padre Daniel produz uma poesia de qualidade singular, mas que zelosamente subtrai ao olhar do grande pblico. Agora, os amigos venceram sua resistncia em publicar os versos e juntaram quatro de seus livros inditos neste magnfi co volume.

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  • PERNAMBUCO, FEVEREIRO 201219

    O chef

    INDITOS

    SOBRE O AUTOR

    Sidney Rocha autor de O destino das metforas (Editora Iluminuras).

    Sidney Rocha

    O garom deixou o prato de sopa. Quando o homem se virou, enfiei a colher na horizontal e verifiquei a fundura do lquido. Retirei a sondazinha e medi o nvel. Dois centmetros, no mais. Quatro reais. Em qualquer lugar da cidade custaria o triplo. No pude reclamar. Eles trazem a sopa com salsa picada nas beiras do

    prato de porcelana. No que querem me fazer acreditar? Que o cozinheiro fez o meu prato s pressas, como se o restaurante estivesse lotado de celebridades, ou estivssemos em um navio cinco estrelas, e que certo desleixo prova de sofisticao? Detesto as culinrias. Todas so a mxima expresso da futilidade. Lilith namora agora um chef. Cheeef. A palavra j

    nasceu pernstica. Agora todos os afeminados assu-miram o caminho da cozinha. E as mulheres adoram esses caras. No de estranhar. No vai demorar e eles se tornaro conselheiros e sbios e no se poder dar um passo que no seja guiado pelos reis dos rocam-boles, dos ragus, dos provolones. Que inteligncia pode ter algum filosofando sobre como quebrar um ovo numa frigideira?

    Seis colheres de sopa por quatro reais. No consegui fazer a conta. Mas era caro.

    ***

    Foi quando na outra extremidade da mesa surgiu o cara na cadeira. Tinha o rosto que acabava numa barba fina, cor de fogo. Os olhos eram redondos mas precisaria de culos para parecer por completo com um professor de gramtica. Sou um dybbuk ele disse. Um o qu?, perguntei. Um dybbuk e completou dybbuk quer dizer

    demnio, em hebraico.

    O restaurante era um muquifo no centro da cidade. Numa das mesas, l no canto, havia um judeuzinho de nada, os caracis atrapalhando a leitura do livro. Mesa errada, meu caro falei. Siga em frente,

    terceira direita.O cara olhou na direo do judeuzinho. A luz batia

    contra o vidro. Os pingos da chuva na vidraa davam lividez do seu rosto coloraes de arco-ris e no sei porque lembrei do quadro de So Jernimo traduzindo a Bblia. Uma perda de tempo resmungou o dybbuk. Ele

    no tem inteligncia para o que venho propor. Sim? E voc me julga inteligente? Sim.

    Acabo de pagar quatro reais em seis colheres de uma gua suja com sal. No consigo um centavo honesto h vrios dias. No fui embora ainda porque a Lilith no chegou. Preciso do seu dinheiro pra apostar no preo de hoje tarde. Ainda por cima, estou aqui conversando com o diabo em aramaico... Hebraico, em hebraico falou ele, dentro do

    meu pensamento. Que seja, d no mesmo... E voc ainda assim acha

    que sou inteligente? Tenho um negcio pra te propor. Tu ficars rico.

    19

    Escuta com ateno, capeta hebreu. Ano passado foi um ano. Um coisa-ruim nrdico, algo assim. Prometeu que me tornaria um escritor famoso se eu escrevesse a sua histria. E ele aprovasse. E eu virei bi-grafo de ano por um ano, foi s isso o que aconteceu. E tu escreveste? Claro. E ele aprovou? Claro que no. Anes so todos uns tratantes.

    Nunca se meta com esses.

    Era a histria de um ano chamado Mokav que mo-rava na Birmnia. Os seus conselhos davam vitrias e mais vitrias ao rei. No final, o ano pede em prmio a mulher do general, depois corneia o rei, sacaneia todo mundo e foge com as riquezas do reino.O dybbuk me olhou com surpresa. Mas a histria verdadeira. Conheo o sujeito. O

    que ele reprovou? Um safado. Era um safado, completei por fim,

    jogou-me uma praga. Por isso no consigo entregar o meu romance ao Samuel editor. E fico escrevendo continhos fuleiros. Bem, por certo no uma obra-prima, mas a

    histria est correta retorquiu. Ihh, cara. No vou discutir literatura com voc

    tambm. , tu vais precisar mudar de ramo remendou.

    Por isso vim te propor um trato. Desembucha. Vou te dar uma receita mgica. Vais virar um

    cozinheiro reconhecido no mundo inteiro. Um chef. Ora, v se foder, satans. Retire-se daqui agora.

    Fora. Vejas bem disse ele tua nica chance. Fo-da-se. Escritorzinho de merda, biografozinho de trolls.

    ele disse. Foi procurar outra freguesia. E pluft desapareceu.

    Lilith no veio. Catei as quatro moedas e deixei sobre a mesa. Andei na chuva durante o resto da tarde pensando na vida. No apostei no meu cavalo naquele preo, e ele ganhou com vantagem. O jquei era um ano, eu soube. No confio em anes, j disse.

    ***

    S encontrei a Lilith dias depois. Ela me falou do namorado, que agora especialista

    em azeites. Que visitou a Palestina, onde h olivais de quinhentos, mil anos, os melhores, e no se pode respeitar um azeite que no tenha vindo da Palestina. Lembrei do dibbuk. Ia falar dele quando ela se antecipou: Ah, voc soube? Deu na Times: o Paulo Coelho

    abandonou a literatura. Ufa eu disse. Foi. Assim, do nada. Estava tomando uma sopa

    em Berlim, teve uma viso, algo assim, e, pluft, de-cidiu disse ela. E agora, vai fazer o qu da vida?, perguntei. Chef, querido. Virou cheeeeeeeeeeeef.

    PERNAMBUCO, FEVEREIRO 2012

    JANIO SANTOS

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  • PERNAMBUCO, FEVEREIRO 201220

    INDITOS

    Eric Novello

    SOBRE O AUTOR

    Eric Novello autor do romance Neon azul (Editora Draco). Esses dois contos trazem momentos distintos do personagem Lucas, frequente na obra do escritor.

    20

    Luuucas! Voc precisa de foco! Como quer vender? Voc precisa entender que o mundo mudou, somos globalizados, pense grande! Foco, Lucas, foco foco foco! Repete comigo. Foooco!Essa frase no sai da minha cabea.

    Ouvi na ltima reunio com a editora e desde ento tenho pesadelos globalizados. Sonho com personagens japonesas lsbi-cas imigrantes se apaixonando por padres protestantes que se convertem ao islamis-mo e descobrem ser grandes jogadores de futebol em um retiro no Oriente Mdio, fazendo o gol da vitria do campeonato mundial de sei l o qu.Outro dia, meio dormindo, imaginei

    encontrar uma senhora de olhos violetas que me dizia duas semanas em primeiro lugar em Saturno. As saturninas te amam, e depois me bolinava com seus tentculos.Socorro. O trauma tanto que fui pro-

    curar minha psicloga e descobri que a falta de foco est relacionada ao medo do futuro. Mas como no ter medo do futuro com esses filmes me aterrorizando dia e noite. Sou um cara influencivel. Leio o globo terrestre. A verso globalizada de o Globo. Sofro at hoje pensando na baba que pingou em Alien, o oitavo passageiro. No posso pisar em uma poa de xixi que penso: ele!Saiba que nunca mais fui praia des-

    de que vi Tubaro. Fiquei meses sem ver TV depois de Poltergeist e larguei a ioga depois que vi a menininha de O exorcista

    descendo a escada de cabea para baixo. Sei l, no era legal. Acho que todos so ETs por causa de Men in black e toda vez que um cano estoura na rua, acho que seremos exterminados como em Guerra dos mundos. O nico filme que no me assusta O Chamado. No posso respeitar um fantasma que se acha atendente de telemarketing e fica importunando os outros com aquele papo de 7 days . Minha gerente de banco assusta bem mais do que isso, posso garantir. Boa tarde, se-nhor Lucas. Estamos com um novo ttulo de capitalizao 7 days my ass.Mas o futuro pode ser bem pior que

    os meus pesadelos. Voc vai encontrar aquele amigo que no v desde sempre e falar 350 j? O corpinho de 240! E a voz robotrnica est um charme.Ele prontamente ir responder instalei

    um sintetizador vocal do Darth Vader na traqueia. Ganhei de brinde quando comprei o sintetizador da Britney Spears para a minha filha.Sim, porque se seremos imortais a Brit-

    ney tambm ser, meu amigo. Os estdios na lua iro lotar com apresentaes da banda Apocalypso, com entradas triunfais direto de suas naves. E, pior, as roupas douradas que eles usam estaro na moda para todos ns.No teremos mais nibus. Voc ser

    assaltado no seu transportador de mul-tineutrons e se uma mosca entrar com voc, j sabe, David Cronenberg avisou.

    Vai ter que comprar roupas em outra rede mundial.Esquea tambm a identidade, usare-

    mos apenas leitores de digital. Tendinite certa. E o de ris? J pensou uma epidemia de conjuntivite? No teremos mais gri-pe do frango, pois ele, um ser evoludo, j fabricar seus prprios antibiticos, e poderemos criar peixes fora do aqurio, levando-os para passear na coleira.De manh, acabou o sucrilho, voc

    vai para o banheiro. Quando senta na privada ouve um bom dia, Sr. Lucas. Gostou do caf? Posso ler o seu hors-copo? Muito inspirador. A quiromancia se transformando em leitura de linhas da ndega esquerda. Sua linha da vida, Sr. Lucas, to longa.Mas, no sejamos pessimistas, o futuro

    tem seu lado bom. Ecologistas podero se fundir geneticamente s espcies que defendem, estudando melhor seus modos d