Transcript

SAMUEL DA SILVA NUNES

PODCAST: ACONTECIMENTO DISCURSIVO?

Monografia apresentada ao curso de Comunicao Social Jornalismo, da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para a obteno do ttulo de bacharel em Comunicao Social, com habilitao em Jornalismo

Orientadora: Ms. Helena Iracy Cerquiz Santos Neto

Palhoa 2008

SAMUEL DA SILVA NUNES

PODCAST: ACONTECIMENTO DISCURSIVO?

Esta monografia foi julgada adequada obteno do ttulo de bacharel em Comunicao Social, com habilitao em Jornalismo e aprovada em sua forma final pelo Curso de Comunicao Social, com Habilitao em Jornalismo da Universidade do Sul de Santa Catarina .

Palhoa, 25 de novembro de 2008 ______________________________________________________ Professora e orientadora: Helena Iracy Cerquiz Santos Neto, Ms. Universidade do Sul de Santa Catarina ______________________________________________________ Prof. Luciano Gonalves Bitencourt, Esp. Universidade do Sul de Santa Catarina ______________________________________________________ Prof. Marci Fileti Martins, Dra. Universidade do Sul de Santa Catarina

minha me

AGRADECIMENTOS

Aos amigos que passaram, queles que ainda esto o os que ho de vir nos prximos anos. Em especial, aqueles com quem dividi o espao em sala de aula, nos ltimos quatro anos, pelo ombro nas horas de tristeza, pelas comemoraes em momentos de felicidade, pelas noites de insnia em frente ao computador e pelos auxlios nos trabalhos cujos prazos sempre batiam a nossa porta antes do tempo que achvamos correto. Dentre esses amigos, os mais especiais agradecimentos aos aspirantes Arielli Guedes Secco e Pedro Brando Ramos. Com eles, dividi e divido planos que pretendo realizar ainda em um breve espao de tempo. Da mesma forma, o grande amigo Eduardo Duarte Karasiak, que mesmo no seguindo conosco com o to almejado diploma neste semestre, em breve poder mostrar seu talento publicitrio pelas grandes agncias do mundo. Aos professores do curso, cuja troca de experincias nestes anos fez-me perceber um potencial que eu sequer sabia que existia. Especialmente, minha orientadora, Helena, a qual soube entender as dificuldades pelas quais passei ao longo deste e sempre esteve presente para trazer uma palavra de auxlio. queles que j se foram, h muito ou pouco tempo, mas que permanecero eternamente na memria. minha irm, Suellen, que nenhuma briga, maior ou menor, foi suficiente para apagar o carinho que sinto por voc. Ao meu pai, que tambm j se foi, mas que nos quase quinze anos que dividiu comigo pde me ensinar valores que carregarei para o resto da minha vida. E, por ltimo, e mais importante, minha me, por ter suportado, sozinha, a criao de dois filhos, que cresceram e no tm a coragem de colocar a cabea no travesseiro sem saber que a enchem orgulho pelo esforo dispensado a mim e minha irm. Muito obrigado a todos.

I've lived a life that's full / I traveled each and every highway / And more, much more than this / I did it my way (Claude Franois; Gilles Thibault; Jacques Revaux; Paul Anka).

RESUMO

Com base na corrente francesa da Anlise de Discurso (AD), o presente trabalho visa abordar de perspectiva diferente o recente fenmeno dos podcasts. Para tanto, estuda-se alguns pontos como a noo de sujeito, sentido, formao discursiva, heterogeneidade discursiva, teorias que juntas podem nos fornecer condies de analisar se o surgimento dessa nova ferramenta de distribuio de contedos na internet pode ser considerado um acontecimento discursivo. Sendo assim, comeamos o trabalho abordando essas questes tericas da Anlise de Discurso. Em seguida, uma abordagem sobre a ferramenta, como se constitui, de onde surgiu. Depois, descreveremos a metodologia a ser utilizada para, em seguida, partirmos anlise de nosso corpus. Como objeto de pesquisa, selecionamos, alm dos recursos bibliogrficos, edies de quatro podcasts produzidos no Brasil, nos meses de outubro e novembro de 2008. Palavras-chave: Podcast. Anlise de Discurso. Acontecimento discursivo.

ABSTRACT

Based on the French current of Analysis of discourse, this work aims to approach from a different view the recent phenomenon of podcasts. For that, it studies some points as the subject notion, meaning, discursive formation and discursive heterogeneity, theories that together can give us the conditions to analyze if the emergence of this new tool for distributing content on the Internet can be regarded as a discursive event. For that, we started the work bringing some theoretical issues Analysis of Discourse. Then, an approach on the tool, as is, from where came from. After that, we will describe the methodology being used to then leave the analysis of our body. As an object of research, we selected, instead to bibliographical resources, editions of four podcasts produced in Brazil, in October and November of 2008. Keywords: Podcasts. Analysis of Discourse. Discursive Event.

SUMRIO

1 INTRODUO................................................................................................................. 9 1.1 DA INSPIRAO ............................................................................................................. 12 1.2 RECORTE ..................................................................................................................... 13 1.3 OBJETIVO GERAL .......................................................................................................... 13 1.4 OBJETIVOS ESPECFICOS............................................................................................... 13 1.5 SEQNCIA DO TRABALHO............................................................................................. 14 2 ORIGENS DA ANLISE DO DISCURSO...................................................................... 15 2.1 AS TRS POCAS .......................................................................................................... 16 2.2 SUJEITO, SENTIDO E FORMAO DISCURSIVA .................................................................. 17 2.3 HETEROGENEIDADES..................................................................................................... 20 2.4 AUTORIA E ACONTECIMENTO DISCURSIVO ....................................................................... 21 3 PODCASTS................................................................................................................... 26 3.1 MODELOS ..................................................................................................................... 28 3.2 HISTRICO ................................................................................................................... 29 3.3 ANTES DO PODCAST...................................................................................................... 30 4 METODOLOGIA............................................................................................................ 32 4.1 A ESCOLHA DO CORPUS ................................................................................................ 33 5 ANLISE ....................................................................................................................... 35 5.1 A AUTORIA NO PODCAST................................................................................................ 38 5.2 CONDIES DE PRODUO ........................................................................................... 43 6 CONCLUSO................................................................................................................ 45 REFERNCIAS ................................................................................................................... 51 APNDICE .......................................................................................................................... 54 APNDICE A COMPUTA MSICA.................................................................................. 55 ANEXOS ............................................................................................................................. 72 ANEXO A - PODCAST RESUMO DE NOTCIAS DA FOLHA ONLINE: 31 OUT. 2008...... 73 ANEXO B PODCAST CBN COMENTARISTAS CARLOS ALBERTO SARDENBERG: 07 NOV. 2008...................................................................................................................... 75 ANEXO C - PODCAST DECODIFICANDO: 20 OUT. 2008................................................. 77 ANEXO D PODCAST CAF BRASIL 24 OUT. 2008 ....................................................... 93 ANEXO E CD COM OS PROGRAMAS ANALISADOS.................................................. 100

9 1 INTRODUO

Observando a histria dos meios de comunicao, percebemos que, apesar de nos primeiros momentos eles trazerem elementos de seus antecessores, com o tempo e sua popularizao, cada um mostrava caractersticas especficas que os diferenciavam. O rdio, sobretudo comercial, no incio, trazia nos noticirios a leitura de textos de jornais na ntegra. Na poca, esses peridicos traziam textos rebuscados, cheios de oraes subordinadas, que no eram to simples de se entender quando lidos em voz alta. Apenas aps alguns anos, se percebeu a necessidade de se usar uma linguagem mais direta, evitando essas pausas comuns ao texto escrito, que podem tirar a ateno do ouvinte. Da mesma forma, aconteceu com o surgimento da televiso, em seu incio, adaptando-se a linguagem radiofnica para, s anos mais tarde, perceber o potencial intrnseco a este novo meio e desenvolver algumas tcnicas especficas para criar seu modelo de formulao discursiva. A internet, popularizada no incio dos anos 1990 e que chegou comercialmente ao Brasil em 1992 (FERRARI, 2008 p. 12), porm, acabou com essa sina, de se tomar emprestados formas de enunciao iguais s anteriores para, apenas mais tarde, buscar algo que diferenciasse a sua prpria. Unindo textos, imagens, vdeos e udios, ela abalou completamente o que se pensava antes por textualidade. Alm das possibilidades multimiditicas, esse novo meio de comunicao ainda trazia consigo a chance de qualquer um criar seu prprio contedo, eliminando, assim, no caso da comunicao de massa, a necessidade de existir uma pessoa ou rgo especfico para a divulgao de qualquer material. Como pontua Ferrari (IBIDEM), os impactos [...] ocasionaram transformaes no ser humano, no seu modo de pensar e de se relacionar com o mundo. Tudo isso, pois a revoluo tecnolgica iniciada em meados dos anos 1980 com a popularizao dos computadores e acentuada nos 1990 acelerou sobremaneira a vida das pessoas e de todos em seu redor. Martins (2008, p.1) observa que o desenvolvimento das tecnologias digitais, que culminou no advento da internet, apresenta-se como elemento potencializador das prticas discursivas da atualidade.

10 Contudo, nos primeiros anos, a internet ficou restrita aos programadores, que dominavam a linguagem de programao necessria para se construir uma pgina na rede. Fora isso, tambm havia os custos para se manter uma pgina na rede, pois, nesse incio, era necessrio que se pagasse ainda por um servidor para a publicao do contedo. Claro que a curiosidade fez com que muitos mergulhassem no universo da programao de computadores a fim de aprender a tcnica, todavia, a publicao pessoal de contedos na rede s teve grande alcance em 1999. Nesse ano, so lanados servios como o LiveJournal e o Blogger, que oferecem, gratuitamente, a hospedagem e manuteno de blogs (ou weblogs, de web + log, ou seja, registro na Web) (PERRET, 2008 p. 16). Porm, os blogs s permitiam a publicao de textos e imagens. Esses registros, inicialmente, eram bastante pessoais. A maior parte dos usurios, nesse perodo, era de adolescentes, que encontravam nessa ferramenta mais uma forma de se comunicar com o mundo.O formato cronolgico reverso dos blogs, [...] organizados na pgina do mais recente [texto] para o mais antigo, era extremamente adequado para a criao dos dirios virtuais, em que o autor escrevia sobre seu dia-a-dia, contando intimidades e comentando fatos que vivenciou (IBIDEM).

No caso dos podcasts1, tema de nosso trabalho, eles surgiram efetivamente na rede no segundo semestre de 2004 (MEDEIROS, 2005, p. 3) e rapidamente se popularizaram por todo o mundo. Quando de seu aparecimento, acreditava-se que, assim como os blogs, eles seriam rapidamente incorporados ao modo de vida apenas dos adolescentes, mais prximos das inovaes tecnolgicas. Contudo, o mercado profissional, em pouco tempo, apropriou-se dessa ferramenta para tambm disponibilizar contedos pela internet. Exemplo disso foi dificuldade em encontrar um programa, em portugus, que no tivesse algum ligado rea da comunicao envolvido na produo, fosse jornalista, publicitrio ou de alguma rea afim. Porm, por possuir caractersticas semelhantes a outras formas de distribuio de contedos em udio (rdio convencional, web rdios), o surgimento1

A ttulo de explicao, podemos dizer que um podcast um arquivo, geralmente feito como um programa de rdio, distribudo na internet. Mais a frente, detalharemos as caractersticas de um podcast.

11 dessa nova ferramenta e toda a propaganda feita sobre isso causa certa angstia em relao ao surgimento de um acontecimento discursivo. Tendo em vista os elementos bsicos que compem um fenmeno discursivo, nas proposies de FERNANDES (2007 p. 45), pretendemos analisar se, na composio desse fenmeno, possvel observar tais fatores. So esses: a existncia de um sujeito discursivo, da heterogeneidade discursiva e da autoria. Com isso, pretendemos perceber a estruturao de um novo acontecimento discursivo, a partir das formulaes propostas para isso com base em autores especialistas em anlise de discurso. A ttulo de breve explicao, o acontecimento discursivo foi estudado inicialmente por Pcheux, o qual observou que ele se d quando formaes discursivas distintas se cruzam, dando origem a uma nova formao discursiva, que complementa ou cria novos sentidos para os discursos posteriores. Neste trabalho, analisaremos as formaes discursivas do rdio, da internet e da mdia a fim de compreender se essa teoria pode ser percebida com o advento dessa nova ferramenta. Para tanto, foram selecionados alguns podcasts, em portugus, alm de bibliografia especfica sobre esse tema e tambm sobre anlise de discurso, comunicao em rdio e sobre a internet enquanto meio de comunicao. Esse tipo de pesquisa se faz necessria na medida em que, dada a grande popularidade dos podcasts2, pouco ainda se estudou especificamente acerca dessa plataforma. Alm disso, ela tambm se justifica a partir do momento em que o podcast, enquanto ferramenta de comunicao, j notadamente reconhecido e utilizado tanto por amadores (entendemos por amadores, pessoas que no possuem formao tcnica ou superior em comunicao social), quanto por profissionais de comunicao. Portanto, iremos analisar o contedo discursivo de alguns podcasts brasileiros, com base nas teorias da Anlise do Discurso da corrente francesa, fundamentada, principalmente, por Michel Pcheux, na tentativa de perceber se o surgimento da ferramenta se constitui, em si, um novo acontecimento discursivo ou apenas mais um subproduto do rdio e da internet.

2

Uma pesquisa no Google sobre o termo podcasting, no dia 12/08/2008, retornou mais de 21.500 resultados.

12 Tambm iremos buscar na autoria elementos que, mesmo no afirmando a potencialidade de acontecimento discursivo da ferramenta, possam mostrar de que forma a criatividade dos produtores - ou podcasters, de acordo com a definio de Medeiros (2006 p. 4) - contribuem ou no para a idia de que existe inovao no uso do podcast.

1.1

DA INSPIRAO

O entusiasmo criador para a realizao deste trabalho surgiu no primeiro semestre de 2008, quando cursei a disciplina de Projeto Experimental em Rdio, sob orientao da professora Helena Iracy Santos Neto. Uma das trs peas apresentadas ao longo do semestre foi um podcast intitulado Computa Msica. Este projeto consistia em criar uma narrativa interativa, utilizando a pgina onde o programa ficava hospedado. Em resumo, o programa apresentava pequenas encenaes temticas que eram sustentadas ou desconstrudas com uma srie de trechos de letras de msicas. A interatividade proposta seria exercida na medida em que muitas das composies eram em lngua estrangeira. O ouvinte que no dominasse outros idiomas teria que acessar a pgina do programa e l estariam hiperlinks que o levariam s respectivas tradues. No momento daquela pesquisa, observamos que muitos podcasts comerciais seguiam a mesma linha estrutural de programas radiofnicos tradicionais. Todos possuam vinhetas, locues, entrevistas, etc. Por outro lado, os podcasts eram vendidos pela bibliografia consultada, como uma ferramenta revolucionria. Logo surgiu a questo: como podem ser revolucionrios se seguem os mesmos padres clssicos de radialismo? Em busca das possveis respostas, chegamos anlise de discurso, que segundo Orlandi (2003, p. 9) visa[...] problematizar as maneiras de ler, levar o sujeito falante ou o leitor a se colocarem questes sobre o que produzem e o que ouvem nas diferentes manifestaes da linguagem. Perceber que no podemos no estar sujeitos

13 linguagem e seus equvocos, sua opacidade. Saber que no h neutralidade, nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos.

Com as primeiras leituras sobre anlise de discurso, percebemos a profundidade com que poderamos explorar este objeto de estudo. Tentamos, sem sucesso, encontrar alguma bibliografia que utilizasse essa teoria. Ento, vimos uma possibilidade nova, de analisar esse fenmeno da internet, atravs dessa teoria, que at ento, nos parece uma tarefa ainda inovadora.

1.2

RECORTE

Dentro da teoria da Anlise de Discurso, nossa pesquisa se pautar nos estudos de Michel Pcheux (2002), sobre o surgimento de um acontecimento discursivo. Alm de sua obra que literatura bsica para este fim, analisaremos tambm releituras feitas por outros autores, como Gallo (2001), Barbosa (2003) e Gregolin (2003).

1.3

OBJETIVO GERAL

Analisar o funcionamento discursivo de podcasts brasileiros.

1.4

OBJETIVOS ESPECFICOS

Selecionar edies dos podcasts da Folha Online, Rdio CBN, Caf Brasil Podcast e Decodificando; Analisar a autoria desses podcasts;

14 Observar, atravs de anlise discursiva, se possvel considerar o podcast como um acontecimento discursivo, que surge a partir da relao entre formaes discursivas j existentes, ou um mero subproduto do rdio convencional.

1.5

SEQNCIA DO TRABALHO

Este trabalho passa, em um primeiro momento, por uma reviso terica acerca da Anlise de Discurso e dos principais conceitos a serem abordados em nossa pesquisa de campo. Em seguida, fazemos um percurso descritivo pelos podcasts, abordando alguns conceitos pr-estabelecidos, bem como modelos e a histria da distribuio de udio na internet. Logo aps, explicitaremos a metodologia de trabalho na anlise e faremos uma pequena descrio dos podcasts escolhidos para nossa anlise. Posteriormente, analisaremos nossos objetos de pesquisa, at chegarmos anlise discursiva desses programas. Por fim, poderemos concluir se esse fenmeno pode ou no ser considerado como um acontecimento discursivo.

15

2

ORIGENS DA ANLISE DO DISCURSO

A Anlise de Discurso (AD), corrente de estudos norteadora desta pesquisa, surgiu em meados dos anos 1960, na Frana, a partir dos estudos do lingista Michel Pcheux. Seus colegas buscavam, naquele momento, descobrir o que estava por trs do que era dito, ou seja, entender como as palavras adquiriam um significado. At aquele momento, os estudos em lingstica diziam que o significado do texto estava apenas nas palavras e em sua conjugao dentro de frases que, juntas, criariam o texto. A sintaxe e a gramtica eram as bases da lingstica (ORLANDI, LAGAZZI-RODRIGUES, 2006, p. 10). Quando surgiu, a AD negou essa corrente de pensamento. Sobre o posicionamento terico e o entendimento de como a lngua se inseria nesse campo de estudos, o prprio Pcheux (1997, p. 311) escreve que uma lngua natural (no sentido lingstico da expresso) constitui a base invariante sobre a qual se desdobra uma multiplicidade heterognea de processos discursivos justapostos. Esse rompimento com os antigos paradigmas ocorria, pois esse grupo de estudos acreditava que o texto era mais do que simplesmente palavras com significados estanques.[...] A Anlise de Discurso, como seu prprio nome indica, no trata da lngua, no trata da gramtica, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idia de curso, de percurso, de movimento, prtica de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando (ORLANDI, 2003, p. 15).

Essa nova teoria ampliava as possibilidades do estudo da gramtica ou at mesmo da oratria, pois trazia conhecimentos de outras reas para discutir de que forma e sob quais condies os textos eram produzidos. Entravam em pauta, na AD, a teoria socialista de Marx, a psicanlise de Freud e a prpria lingstica, uma interagindo com a outra a fim de descobrir quem eram os sujeitos que falavam e de que maneira se estruturavam suas falas. Para descobrir quem so os produtores e o que est dentro de suas falas, explcita ou implicitamente, a AD busca conhecer a historicidade desses sujeitos. Suas reflexes avanam sobre a lingstica e alcanam diversos campos das

16 cincias humanas e sociais. Esse sujeito uma idealizao a partir de questionamentos que buscam conhecer suas origens.O sujeito da linguagem descentrado pois afetado pelo real da lngua e tambm pelo real da histria, no tendo o controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia (ORLANDI, 2003 p. 20).

2.1

AS TRS POCAS

A Anlise de Discurso firmou-se ao longo dos anos. Porm, seus princpios e metodologia foram mudando medida que os estudos foram avanando. Ao todo, so trs pocas que definem os rumos que a AD tomou. Cada perodo recebeu, pelo prprio Pcheux, uma denominao para facilitar o entendimento: AD-1, AD-2 e AD-3. Durante a AD-1, os estudos j apontavam alguns direcionamentos que no mudariam ao longo das trs fases. Um deles era a recusa de qualquer metalngua universal supostamente inscrita no inatismo humano, e de toda suposio de um sujeito intencional como origem enunciadora de seu discurso (PCHEUX, 1997. p. 311). Ou seja, desde o incio, a AD j negava a possibilidade de que havia uma lngua com significado prprio e cujos sentidos de enunciao algum pudesse dominar. Contudo, esse perodo teve suas particularidades. A proposta inicial da teoria da AD era buscar um fio condutor no discurso que pudesse determinar os sentidos das palavras. Acreditava-se que as condies de produo do discurso eram fixas e determinadas apenas para uma nica situao. Decorre da uma falha na metodologia que s foi percebida posteriormente. O discurso no algo que se produz e se apaga, simplesmente. O sujeito enunciador possui uma histria e um legado de outros discursos que ele j conhece previamente, mesmo de forma inconsciente. Esses elementos, por si, esto sempre formando e criando novos discursos, o tempo todo. Isso significa que uma determinada fala, dita hoje por algum, poderia, se repetida posteriormente, ganhar outros significados, pois ao longo do tempo o sujeito entrar em contato com outros

17 discursos, que vo influenci-lo na sua futura enunciao. Todavia, na AD-1, acreditava-se que o discurso era fechado em seus significados. Embora haja diferenas no que diz respeito maneira como se v a formao do sujeito, na AD-2, pouco mudou no que diz respeito aos procedimentos metodolgicos. Como coloca Fernandes (2007, p. 88-89), muda-se apenas a constituio dos corpora que sero colocados em relao para focalizar a desigualdade em suas influncias internas, que vo alm do nvel da justaposio. J na AD-3, os questionamentos foram mais alm ainda. Definitivamente j no se falava mais de uma formao discursiva fechada. Agora, os tericos da corrente francesa j entendiam que o sujeito no era formado por apenas uma formao discursiva (FERNANDES, 2007 p. 88-89). Fernandes (IBIDEM, p. 90) acredita que os questionamentos da AD-3 foram cruciais para a continuidade dos estudos dessa disciplina. Pcheux (1997 p. 316) lembra que nesse momento, o grande nmero de pesquisas em torno da AD ajudou a criar novas questes a serem estudadas e desenvolvidas dentro da prpria teoria. Segundo ele, o desenvolvimento atual de numerosas pesquisas sobre os encadeamentos intradiscursivos interfrsticos permite AD-3 abordar o estudo da construo dos objetos discursivos e dos acontecimentos, e tambm dos pontos de vista e lugares enunciativos no fio intradiscursivo.

2.2

SUJEITO, SENTIDO E FORMAO DISCURSIVA

Afinal, o que sujeito e qual a sua relao com o sentido do discurso? O que chamamos de sujeito, em AD, no necessariamente uma pessoa, mas sim, um conjunto de posies ideolgicas. Como dissemos anteriormente, um discurso s acontece a partir da conjugao de outros dizeres que moldam novos dizeres. Isto tem a ver com a histria de cada um.[...] Na Anlise de Discurso, para compreendermos a noo de sujeito, devemos considerar, logo de incio, que no se trata de indivduos como seres que tm uma existncia particular no mundo; isto , sujeito, na perspectiva em discusso, no um ser humano individualizado. [...] o

18sujeito discursivo deve ser considerado sempre como um ser social (FERNANDES, 2007, p. 33).

Nascemos em uma determinada famlia, crescemos sob determinadas doutrinas, temos ou no uma religio, viemos de uma classe social da qual podemos ascender ou no, nossos pais e amigos tm suas posies polticas, lemos este ou aquele jornal. Todos esses fatores juntos nos criam como sujeitos e nos influenciam direta ou indiretamente. Da mesma forma, segundo o posicionamento terico da AD, nossos discursos sempre se criam a partir dos dizeres do outro e vice-versa. Como uma via de mo dupla, os outros tambm se influenciam com nossos discursos. Quando nascemos, os discursos j esto em processo e ns que entramos nesse processo (ORLANDI, 2003. p. 35). Isso o que chamamos de formao discursiva do sujeito. A formao discursiva o que nos permite entender de onde partem os discursos, o porqu de determinada fala ter sido dita de um jeito e no de outro. Uma formao discursiva resulta de um campo de configuraes que coloca em emergncia os dizeres e os sujeitos socialmente organizados em um momento histrico especfico (FERNANDES, 2007 p.58). A formao discursiva envolve atravessamentos de discursos, dos quais trataremos mais a frente, que j existem e que possuem significados j postos devido a quem eles geralmente esto ligados. Para entender uma formao discursiva, o mais comum se recorrer histria, a fim de compreender quem so os donos de um enunciado. A essa busca na histria, Fernandes (IDEM, p. 59-60) chama de memria discursiva e define que trata-se de acontecimentos exteriores e anteriores ao texto, e de uma interdiscursividade, refletindo materialidades que intervm na sua construo. O mesmo autor coloca ainda que diferentes discursos coexistem e materializam-se, s vezes, por meio de enunciados estruturalmente semelhantes, mas tm sua unidade pelos efeitos de sentido decorrentes da inscrio ideolgica esses enunciados (IDEM, p. 61). Entretanto, na maior parte do tempo no nos damos conta da existncia desses outros discursos que acabam por formar os nossos. Michel Pcheux apud Orlandi (2003 p.35) mostra que isso se deve a dois tipos de esquecimento aos quais nomeou como esquecimento nmero um e esquecimento nmero dois.

19O esquecimento nmero dois, que da ordem da enunciao: ao falarmos, o fazemos de uma maneira e no de outra, e, ao longo de nosso dizer, formam-se famlias parafrsticas que indicam que o dizer sempre podia ser outro. [...] Este "esquecimento" produz em ns a impresso da realidade do pensamento. Essa impresso, que denominada iluso referencial, nos faz acreditar que h uma relao direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de tal modo que pensamos que o que dizemos s pode ser dito com aquelas palavras e no outras, que s pode ser assim. Ela estabelece uma relao "natural" entre palavra e coisa. Mas este um esquecimento parcial, semi-consciente e muitas vezes voltamos sobre ele, recorremos a esta margem de famlias parafrsticas, para melhor especificar o que dizemos. o chamado esquecimento enunciativo e que atesta que a sintaxe significa: o modo de dizer no indiferente aos sentidos. O outro esquecimento o esquecimento nmero um, tambm chamado esquecimento ideolgico: ele da instncia do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia. Por esse esquecimento temos a iluso de ser a origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos preexistentes. Esse esquecimento reflete o sonho admico: o de estar na inicial absoluta da linguagem, ser o primeiro homem, dizendo as primeiras palavras que significariam apenas e exatamente o que queremos. Na realidade, embora se realizem em ns, os sentidos apenas se representam como originandose em ns: eles so determinados pela maneira como nos inscrevemos na lngua e na histria e por isto que significam e no pela nossa vontade (Michel Pcheux apud Orlandi 2003 p.35).

Retomando nosso pensamento anterior, com relao troca de experincias na formao discursiva, vamos alm, entendendo que o significado das palavras tambm passa por essa correspondncia. O que se pensa por comunicao uma equao resumida em emissor mensagem meio receptor (PRIMO, 2005). Dessa perspectiva, acreditava-se que o emissor era quem detinha o poder sobre o sentido das palavras. A partir dos conceitos abordados acima, pela AD, percebemos que no s o sentido est fora do controle do emissor, como tambm o prprio emissor, sozinho, no detm o poder sobre a interpretao da mensagem.Na realidade, a lngua no s um cdigo entre outros, no h essa separao entre emissor e receptor, nem tampouco eles atam numa seqncia em que primeiro um fala e depois ou outro decodifica. Eles esto realizando ao mesmo tempo o processo de significao e no esto separados de forma estanque (ORLANDI, 2003 p. 21).

O processo de significao do discurso se envereda por um roteiro muito mais complexo, no qual esto inclusos tanto o lugar e as condies de produo do discurso do sujeito emissor quanto do posto onde o receptor se encontra. Uma bronca dita, por exemplo, por um pai a seu filho ter um significado diferente - ainda que as palavras usadas sejam as mesmas caso seja dada por um chefe a seu subordinado.

20 2.3 HETEROGENEIDADES

Antes dos estudos em AD, acreditava-se que o discurso nas suas variadas formas tinha um nico centro emissor (que aqui denominamos como sujeito) e um centro receptor. Essa via de mo nica, homognea, era a base do que se imaginava por comunicao e, por conseguinte, significao dos dizeres. Bakhtin, ao analisar textos de Dostoievski, criou o conceito de polifonia, que mais tarde foi ampliado por Authier-Revuz, a qual deu incio idia de heterogeneidade ao discurso (BRANDO, 2002 p. 51). Recorrendo ao dicionrio, vemos que a palavra heterogneo significa algo que no tem unidade, no uniforme (HOUAISS, 2001). Segundo o conceito de Authier-Revuz, assim o discurso e sua formao. Como veremos adiante, a autoria algo descentrado do sujeito, por ser esse formado por uma historicidade prpria e que forma discursos em um determinado momento que tambm possui uma histria particular. Em outras palavras, podemos dizer que os discursos so heterogneos por considerarmos que eles so formulados a partir do cruzamento de outros discursos, os quais guardamos em nosso inconsciente. L escondidos, eles permanecem e se juntam nossa formao enquanto indivduos e, de uma forma ou de outra, acabam servindo como base para nossos discursos no cotidiano. O discurso no seria uma formao nica, autoral, mas sim uma coautoria entre o sujeito e o outro (BRANDO, 2002. p. 49). Entendido aqui como algo mais amplo do que o interlocutor, simplesmente, o outro a que a autora se refere, podem ser outros discursos, outras formaes, enfim, algo externo ao sujeito. Concluindo sobre a obra de Authier-Revuz, Fernandes (2007, p.44) coloca que um eu implica outros eus e o outro apresenta-se como uma condio constitutiva do sujeito, afinal, um discurso constitui-se de outros discursos e sofre (trans)formaes na histria. s vezes, sequer nos damos conta de tais formaes em nossa mente. Outras, no s sabemos a origem, como as citamos. Um texto acadmico, como este aqui, um exemplo. Authier-Revuz nos mostra como perceber a heterogeneidade do discurso:

21

a) o discurso relatado: - no discurso indireto, o locutor, colocando-se enquanto tradutor, usa de suas prprias palavras para remeter a uma outra fonte do "sentido"; - no discurso direto, o locutor, colocando-se como "porta-voz", recorta as palavras do outro e cita-as; b) as formas marcadas de conotao autonmica: o locutor inscreve no seu discurso, sem que haja interrupo do fio discursivo, as palavras do outro, mostrando-as, assinalando-as quer atravs das aspas, do itlico, de uma entonao especfica; quer atravs de um comentrio, uma glosa, um ajustamento, ou de uma remisso a um outro discurso, funcionando como "marcas de uma atividade de controle-regulagem do processo de comunicao"; c) formas mais complexas em que a presena do outro no explicitada por marcas unvocas na frase. o caso do discurso indireto livre, da ironia, da antfrase, da aluso, da imitao, da reminiscncia em que se joga com o outro discurso (s vezes, tornando-o mais vivo) no mais no nvel da transparncia, do explicitamente mostrado ou dito, mas no espao do implcito, do semidesvelado, do sugerido. Aqui no h uma fronteira lingustica ntida entre a fala do locutor e a do outro, as vozes se imiscuem nos limites de uma nica construo lingustica (AUTHIER-REVUZ apud BRANDO, 2002. p. 50-51).

O fato de no sermos donos de nossos dizeres, no sentido em que no os produzimos diretamente, no significa que no possamos ser autores dos discursos que empreendemos.

2.4

AUTORIA E ACONTECIMENTO DISCURSIVO

Como discutimos anteriormente, o sujeito na AD no necessariamente uma pessoa. Da mesma forma, o conceito de autoria, segundo essa teoria tambm foge ao que j temos como pr-construdo. Isso que dizer, ento, que[...] No basta falar para ser autor; falando, ele apenas falante. No basta dizer para ser autor; dizendo, ele apenas locutor. Tambm no basta enunciar algo para ser autor. [...] Essa assuno [da autoria] implica, segundo o que estamos procurando mostrar, uma insero (construo) do sujeito na cultura, uma posio dele no contexto histrico-social (ORLANDI, 1996 p.79)

J citamos anteriormente que todo discurso se formula a partir da interao com outros previamente existentes. A isso, damos o nome de memria discursiva. Apesar de sabermos que no somos detentores dos discursos que nos formam culturalmente, nos sentimos autores de nossos dizeres devido ao fato de

22 nos esquecermos, inconscientemente, de que j ouvimos falar de um determinado assunto previamente e formulamos nossa fala a partir da interseco das idias j propostas por outrem. Observamos tambm o conceito de heterogeneidade discursiva, onde, a partir da leitura de Brando sobre os textos de Authier-Revuz, vimos como possvel identificar a presena de outros discursos nos nossos. Em AD, pensamos a autoria como uma funo do sujeito. O sujeito, diramos, est para o discurso assim como o autor est para o texto (IDEM, p. 73). A discusso sobre autoria, que traremos aqui, ser ampliada ao longo de nossa anlise do corpus de pesquisa, mas a ttulo de explicao dos conceitos, tentaremos resumi-la.[...] o princpio do autor limita o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu. assim que pensamos a autoria como uma formao discursiva: se o locutor se representa como eu no discurso e o enunciador a perspectiva que esse eu assume enquanto produtor de linguagem, produtor de texto. Ele , das dimenses do sujeito, a que est mais determinada pela exterioridade contexto scio-histrico e mais afetada pelas exigncias de coerncia, no contradio, responsabilidade etc. (ORLANDI. 1996, p. 75).

Quando Orlandi fala em exigncias de coerncia, no contradio, responsabilidade etc., ela se remete ao que se entende por autoria e por essa funo-autor do sujeito. O autor aquele que imputa essas exigncias ao discurso. Cabe a esse ser o condutor do que se espera de uma produo. ele quem determina as condies de incio, meio e fim. A autoria depende do domnio que o sujeito tem da lngua (gem) e de como ele se insere na construo do objeto discursivo.[...] Assumir a autoria colocando-se na origem de seu dizer fazer do dizer algo imaginariamente seu, com comeo, meio e fim, que seja considerado original e relevante, que tenha clareza e unidade. , dessa maneira, responsabilizar-se pelo que foi dito e pelo que foi silenciado (LAGAZZIRODRIGUES, 2006 p. 93).

Algumas perguntas podem ser feitas agora. E como, ento, identificar a autoria de um texto? Ser que ela existe? De forma reduzida, podemos explicar a autoria recorrendo s palavras de Michel Foucault, resgatadas por LagazziRodrigues (IDEM p. 91):

23[...] o autor ou o que tentei descrever como funo-autor com certeza apenas uma das especificaes possveis da funo sujeito. Especificao possvel ou necessria? Olhando para as modificaes histricas ocorridas, no parece indispensvel, longe disso, que a funo autor permanea constante na sua forma, na sua complexidade e mesmo na sua existncia. Podemos imaginar uma cultura em que os discursos circulassem e fossem recebidos sem que a funo autor jamais aparecesse. Todos os discursos, qualquer que fosse o seu estatuto, a sua forma, o seu valor, e qualquer que fosse o tratamento que se lhes desse, desenrolar-se-iam no anonimato do murmrio. [...] pouco mais se ouviria do que o rumor de uma indiferena: Que importa quem fala (IBIDEM).

Foucault lembra, nessa citao, que inimaginvel um mundo onde no existissem discursos sem a autoria. Sem ela, a criao de novas formaes discursivas e, por conseqncia, de novos discursos seria impossvel. Tudo seria mera cpia. Em resumo,[...] diramos que o autor a funo que o eu assume enquanto produtor de linguagem. Sendo a dimenso discursiva do sujeito que est mais determinada pela relao com a exterioridade (contexto scio-histrico), ela est mais submetida s regras das instituies. Nela so mais visveis os procedimentos disciplinares (ORLANDI, 1996, p. 77).

Orlandi lembra que o autor aquele que detm o conhecimento acerca da lngua e das suas normas. Segundo ela, para ser autor necessrio, alm de se posicionar como tal perante o texto, ordenar e observar o melhor uso da lngua. Em suma, obedecer s regras da funo que ocupa naquele momento especfico para, assim, assumir sua posio de autor. Em outras palavras, poderamos dizer, por exemplo, que o contedo de um trabalho acadmico s recebe um autor pelo fato dele ser provavelmente um pesquisador, uma pessoa que detm conhecimentos acerca de determinado assunto e, a partir disso, assina e reconhecido pela sua obra. O autor se coloca nessa posio enquanto sujeito e se veste das funes e das formaes discursivas que o determinam como tal. Na mesma linha, seguem os acontecimentos discursivos. Para que surjam como tal, eles precisam que algum os crie. Esse o autor, que encadeia uma srie de formaes discursivas preexistentes, muitas vezes at antagnicas, levando a criao de um novo acontecimento. Assim o caso estudado por Pcheux (2002), quando trata do enunciado On a gagn. A frase teria sido cantada pelas ruas de Paris com a vitria presidncia do candidato Franois Mitterrand (IDEM, p. 19).

24 Esmiuando os significados da palavra, retirados do dicionrio, o autor percebe que ela est fundamentalmente ligada prtica esportiva. Contudo, o momento em que ela foi proclamada nada tinha a ver com esportes. Sim, era a divulgao do resultado de uma disputa que ocorria, no em campos de futebol, mas nas urnas. O autor se pergunta tambm quem foram os verdadeiros vencedores de tal feito. Era todo o povo da Frana ou apenas aqueles que haviam votado em Mitterrand? O deslocamento do significado da expresso On a gagn, do discurso esportivo para o discurso poltico, marcou o acontecimento discursivo que ocorreu naquele momento. Isso porque, a noo de acontecimento discursivo d conta do momento da constituio do sujeito, sem priorizar os aspectos enunciativos a envolvidos (GALLO, 2001). Analisando a mesma obra de Pcheux, Gallo (IDEM) acrescenta que essa imbricao entre vrias formaes discursivas acabaram criando uma nova posio sujeito, pois agora no era mais apenas o discurso esportivo ou o discurso poltico que existia, mas sim um discurso poltico do povo para o povo, materializado no enunciado On a Gagn3 (IDEM). Retomando ento a questo da autoria, a autora chama a produo de um novo efeito de sentido, a partir do conflito entre idias distintas, de efeito-autor. Mais claramente, ela explica esse efeito autor, como sendo o efeito do confronto de formaes discursivas, cuja resultante uma nova formao dominante. Essa nova formao dominante o acontecimento discursivo em si que desestabiliza a ordem constituda, criando uma abordagem distinta de outras que fossem conhecidas at ento. Trabalhando a questo do tratamento da mdia em relao aos acontecimentos e uma pretensa narrativa da histria, Barbosa (2003 p. 115) lembra o papel da memria para a formulao dos acontecimentos.[...] a memria torna-se um agente da histria, uma vez que as representaes do passado, com seus mitos e deformaes, podem tambm influenciar a realidade e o curso dos acontecimentos histricos. A funo dessa prtica histrica , portanto, restaurar vrios acontecimentos ou mitos fundadores (IBIDEM).

3

Traduo nossa: Ganhamos!

25 A memria um fator importante na prtica diria da formulao dos discursos que, por sua vez, so criados a partir da lembrana, inconsciente ou no, daquilo que j vimos ou ouvimos falar anteriormente. Algumas vezes, marcamos a lembrana desses discursos que permeiam nossa mente, outras no. Entender a heterogeneidade dos discursos e como ocorre a intradiscursividade nos d a possibilidade de perceber onde esto os discursos fundadores, ou seja, aqueles que precederam nossas falas atuais. Conhecendo, ento, de que forma outros discursos permeiam nossos dizeres, passamos a nos questionar se somos ou no autores de determinado enunciado. A percebemos que somos autores na medida em que encadeamos e criamos discursos e conseguimos assumir a condio de responsveis pelo que dissemos. Tornamo-nos conscientes dos esquecimentos, assumindo-os. Da mesma forma, possvel tambm conceber novas formaes discursivas a partir do entrecruzamento de outras formaes.

26

3

PODCASTS

Nosso objeto de anlise so os podcasts. Contudo, necessrio que se entenda o que eles so, antes de iniciarmos a nossa anlise. Tentaremos, atravs de texto, explicar como eles so constitudos, contudo, assim como servir para a anlise, disponibilizamos tambm um CD anexo, contendo os podcasts que serviram como base para este estudo, o que deve facilitar ainda mais a compreenso. No h pleno consenso sobre a etimologia da palavra. Em pesquisa pelo termo na Internet, a maior parte dos autores, como Primo (2005) ou mesmo a Wikipdia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Podcast, acesso em 01/11/2008), enciclopdia digital aberta, afirmam que o termo um neologismo que une o sufixo casting (distribuio ou difuso, no sentido miditico) com o prefixo pod. O termo pod, se refere ao tocador de msica em formato digital iPod, feito pela empresa norteamericana Apple e que se tornou um grande sucesso de vendas desde o seu lanamento. Entretanto, Medeiros (2006 p.3) afirma que pod tem outro significado. Tentando buscar as origens do termo, ele conta que buscou em dicionrios, tentou contato com a prpria Apple, mas no conseguiu encontrar uma resposta adequada. Por fim, escreve ele:[...] a primeira idia que surgiu em uma das discusses sobre podcasts, 4 seria um acrnimo da expresso Print On Demand que faz parte do vocabulrio de artes grficas, ou tambm Publishing On Demand5. Uma outra possibilidade, que deriva das outras duas citadas anteriormente, seria a expresso Production On Demand6, esta ltima, sugesto do autor deste trabalho cunhada a partir desta mesma discusso ocorrida em um podcast (IDEM, p.3).

Outra definio, bem prxima da que Medeiros traz, a de Briggs (2007) O termo podcast7 (Playable On Demand8 + broadcast) pode significar tanto o contedo como o sistema de exibio.

4 5 6 7

Traduo nossa: Imprimir por demanda Traduo nossa: Publicar por demanda Traduo nossa: Produo por demanda Grifo do autor

27 O podcast em si, um arquivo de udio ou vdeo distribudo na internet com algumas caractersticas peculiares. Uma delas a capacidade de ser atualizado automaticamente. Ou seja, possvel ser assinante de um determinado podcast na rede e receber as novas edies sem que haja a necessidade de se acessar novamente a pgina onde o arquivo est hospedado9. Mas no devemos confundir, porm, alguns termos, como podcast, podcasting e podcaster. Apesar de parecidos, h diferenas entre eles. Tendo em vista que, ao longo do trabalho passaremos a v-los constantemente, trazemos novamente Medeiros (2006, p. 4), que explica: O Podcast o arquivo sonoro, ou para ser mais adequado, o programa ou registro sonoro produzido pelo Podcaster e, no caso do programa. De acordo com Primo (2005) o termo podcasting ser tratado neste trabalho como algo que vai alm do udio, incorporando imagens e navegao hipertextual. Mais adiante, discutiremos as condies de produo dos Podcasts e, ento, explicitaremos outros detalhes que necessitaro da compreenso plena desses termos. Essas atualizaes funcionam atravs de um sistema chamado de RSS (Really Simple Syndication). O RSS permite a busca automtica de arquivos que so de interesse do usurio, criando uma espcie de personalizao dos contedos (IBIDEM, 2005 p.2). Esse sistema muito utilizado por sites noticiosos, blogs entre outros cuja atualizao contnua e/ou peridica. No caso dos podcasts, existem vrios programas que armazenam os dados RSS do usurio do computador. Um dos mais conhecidos e utilizados o Apple iTunes, desenvolvido pela mesma empresa que criou o iPod. Nele, o usurio pode procurar um podcast por assunto de interesse. Basta digitar no sistema de busca que o programa se encarrega de elencar todos os programas disponveis. Sua nica limitao a necessidade de abrir uma conta, paga, na loja virtual da Apple para poder hospedar os programas ali. Ou seja, nem todos podem colocar seus programas no iTunes.

8 9

Traduo nossa: Reproduzvel por demanda Os podcasts includos no CD anexo contm apenas os arquivos em udio. Os links para acessar as pginas onde eles esto guardados aparecero no prximo captulo.

28 Tambm possvel localizar podcasts atravs dos browsers normais, como o Internet Explorer ou o Mozilla Firefox. A diferena bsica entre os dois sistemas (iTunes e browsers) que no segundo caso, qualquer pessoa pode ter seu programa encontrado pelos sistemas usuais de busca, como Google e Yahoo. Para aqueles que no tm domnio de linguagens de programao para internet, como o HTML, por exemplo, tambm h stios que hospedam os arquivos em udio como se fossem blogs. Um deles o site My Podcast. Nele, os usurios podem, gratuitamente, aps o preenchimento de um pequeno cadastro, enviar seus arquivos em udio, em diversos formatos, e eles so automaticamente inseridos em uma pgina pessoal de cada usurio. Essas pginas lembram muito o formato dos j tradicionais blogs e tambm contam com o recurso do RSS. Outra vantagem que, mesmo no tendo conta na loja virtual da Apple, os programas podem ser encontrados e atualizados automaticamente tambm pelo iTunes10. Alm disso, as vantagens do podcast no terminam por a. Como os contedos ficam armazenados no computador do usurio, h a opo de se transportar os arquivos para qualquer lugar, usando aparelhos como o iPod. Dessa forma, o programa no fica restrito apenas reproduo pelo computador. Pode-se ouvir um podcast em qualquer lugar, da mesma forma que com um rdio porttil. Contudo, a ordem da programao no mais feita por um mediador, mas sim pelo prprio ouvinte, que decide quais sero os programas a serem ouvidos.

3.1

MODELOS

Medeiros (IDEM, p. 5) classifica os podcasts em quatro modelos distintos: metfora, editado, registro e educacional. O objetivo dessa classificao facilitar o estudo acerca dos podcasts, visto o grande nmero de programas disponveis na rede. Para ns, ela ainda no d conta de todo o universo de contedos, mas vamos utiliz-la para ajudar na compreenso do tema.

10

Boa parte das questes tcnicas abordadas neste trabalho foi percebida, tambm, durante o processo de produo do podcast Computa Msica, produzido pelo autor desta monografia, na disciplina de Projeto Experimental Rdio, conforme descrevemos na introduo.

29 Para o autor,O modelo Metfora assim classificado pois possui caractersticas semelhantes a um programa de rdio de uma emissora convencional (dial), com os elementos caractersticos de um programa como: locutor/apresentador, blocos musicais, vinhetas, notcias, entrevistas, etc. [...] O modelo Editado surgiu como uma alternativa para aqueles ouvintes que perderam a hora do seu programa favorito, mas ainda desejam ouvi-lo. As emissoras de rdio editam os programas que foram veiculados na programao em tempo real, disponibilizando-o no seu site para ser ouvidos posteriori pelo ouvinte descuidado [...] Um outro modelo de Podcast pode ser chamado de Registro. Os registros so tambm conhecidos com audioblogs. [...] O ltimo modelo, cuja utilidade mais recente e atrelada Educao Distncia [sic], so os Educacionais. Atravs desse modelo de podcast possvel disponibilizar aulas, muitas vezes em forma de edies continuadas, semelhantes aos antigos fascculos de cursos de lnguas que eram vendidos nas bancas de revistas.

Em nossa anlise, optamos por podcasts que seguem os trs primeiros modelos sugeridos por esse autor. A escolha pelos trs primeiros modelos se deve comparao que faremos para analisar o podcast como acontecimento discursivo.

3.2

HISTRICO

Diferente dos blogs, que surgiram e se firmaram nas mos de adolescentes, durante os anos da virada do milnio (PERRET, 2008 p. 16), o podcast no foi inventado ou sequer popularizado inicialmente entre os jovens. Na verdade, o idealizador foi um antigo comunicador da MTV norte-americana. Adam Curry teve uma idia bem simples: com um microfone e um programa de edio de udio, passou a produzir seus programas de rdio e disponibilizou-os na internet (MEDEIROS, 2005 p. 12). O mesmo autor descreve que os primeiros programas produzidos por Curry seguiam o modelo Metfora. Isso porque, a idia do criador dos podcasts era fazer um programa de rdio, num formato convencional [...] com aberturas, noticias, musicas, e vinhetas. O que diferenciava a proposta dele era o contedo, sobretudo musical, pois este deveria fugir dos moldes comerciais da programao que ele estava acostumado a ouvir nas emissoras tradicionais.

30 Esses primeiros programas tinham cerca de 30 minutos de durao e eram disponibilizados na rede tambm, mas ainda sem o recurso RSS. Ento, com a ajuda de outros programadores, Curry criou um programa especfico para procurar e atualizar os podcasts.

3.3

ANTES DO PODCAST

Quando surgiu o podcast a distribuio de contedos em udio pela internet j no era novidade. As chamadas web-rdios transmitiam sua programao pelo sistema de streaming11. As transmisses de rdio pela rede tm, pelo menos, 10 anos a mais do que os podcasts. A rdio KLIF de Dallas, Texas, tornou-se a primeira emissora comercial a transmitir de forma contnua e ao vivo atravs da internet (MEDEIROS apud KUHN, 2000, p. 18) em setembro de 1995. No Brasil, porm, o pioneirismo coube Rdio Itatiaia, cerca de um ano depois (KUHN, IBIDEM). Ainda hoje bastante comuns na rede, elas costumam transmitir num formato muito prximo ao das grandes emissoras. Outros modelos, como os da Rdio UOL, por exemplo, tm programaes separadas por gneros. No caso do UOL, a programao est dividida em estilos musicais. Sem apresentadores, os contedos so divididos em coletneas que os usurios podem acessar e ouvir, como se fosse um CD normal, comprado em uma loja. Segundo Primo, a Web Rdio funciona como mdia de nicho, ou seja, atua diretamente em seu pblico-alvo.11

Diferente da tecnologia do podcast, o streaming se caracterizava pela impossibilidade de salvar o contedo no computador. Hoje, h a possibilidade de se salvar esses arquivos usando programas conhecidos como ripadores, que copiam os arquivos para o computador e o salvam no formato que o usurio achar mais conveniente. Os arquivos de udio ficam armazenados no servidor e so transmitidos apenas quando o usurio acessa o contedo. O programa transmitido ao mesmo tempo em que escutado. Ou seja, no preciso baixar o programa em sua integralidade antes da escuta (PRIMO). Os sinais so divididos em pacotes de dados cujo envio se d em intervalos regulares. Os programas receptores empregam tcnicas de bufferizao, ou seja, estocam dados capazes de sustentar a apresentao por um tempo que permita a chegada dos seguintes. Assim, enquanto o primeiro pacote reproduzido, o segundo j est chegando, o que estabelece a continuidade de transmisso. Mas quando a rede est congestionada, podem ocorrer defasagens no processo de recebimento do pacote. [...] A falta de dados acaba acarretando a interrupo da transmisso (KUHN, 2000, p. 31) Alguns exemplos de streaming populares no Brasil so a Rdio UOL (http://radio.musica.uol.com.br) e o Terra Sonora (http://sonora.terra.com.br).

31 Esses formatos nunca chegaram a competir diretamente, devido s peculiaridades de cada tecnologia. Primo, por exemplo, mostra em um artigo algumas caractersticas que os diferenciam entre si e que esto alm da parte tecnolgica do streaming. Entre elas esto a forma de distribuio e de acesso e a nfase por parte dos podcasts na emisso dos contedos. O autor compara as web rdios s rdios comuns, no que diz respeito ao formato de transmisso. Isso possvel porque, tirando o meio de comunicao internet no primeiro caso e ondas eletromagnticas no segundo -, as caractersticas principais de cada veculo so muito prximas. Quando o formato mp3 surgiu, j se imaginava que ele abriria as portas para uma democratizao da distribuio dos contedos em udio. Kuhn lembra, em sua dissertao de mestrado, de um artigo do ano de 1997, assinado por Viana, que alertava para as possibilidades que esse tipo de arquivo poderia trazer, dentre elas, destaca-se a previso de que a transmisso de rdio pela internet, com esse formato, era apenas uma questo de tempo. E realmente foi. Como vimos, os podcasts surgiram alguns anos mais tarde. O invento de Adam Curry apareceu na rede em 2005 e a maioria dos arquivos distribudos usa justamente o formato mp3.

32

4

METODOLOGIA

A metodologia necessria para a investigao do discurso e do acontecimento discursivo, que usaremos em nossa pesquisa, segue o modelo proposto por ORLANDI (2003). A autora defende que se proceda a partir de[...] uma passagem inicial fundamental que a que se faz entra a superfcie lingstica (o material de linguagem bruto coletado, tal como existe) e o objeto discursivo, este sendo definido pelo fato de que o corpus j recebeu um primeiro tratamento de anlise superficial [...] e j se encontra desuperficializado (IDEM, p. 65).

A autora explica que neste ponto se busca perceber, nos objetos analisados, as questes lingsticas primrias, ou materialidade lingstica. O objetivo explicitar o como se diz, o quem diz, em que circunstncias etc. (IDEM). Com esse procedimento, d-se conta do esquecimento nmero dois, que aquele da ordem da enunciao, onde o sujeito acredita que um determinado enunciado s pode ser dito daquela maneira e no de outra. Com isso, Orlandi afirma que podemos perceber os possveis deslocamentos discursivos, nos quais esto dispostos os interdiscursos, que permeiam todas as outras formaes discursivas. Em seguida, a autora prope uma segunda etapa, na qual so feitas anlises que procuram relacionar as formaes discursivas encontradas com o intuito de se entender como os sentidos se produzem, criando novas formaes nas quais podem estar os acontecimentos discursivos. Orlandi tambm sugere que sejam analisados os efeitos metafricos (IDEM, p. 78)[...] A definio do efeito metafrico permite-nos, pondo em relao discurso e lngua, objetivar, na anlise, o modo de articulao entre estrutura e acontecimento. O efeito metafrico, nos diz M. Pcheux, o fenmeno semntico produzido por uma substituio contextual, lembrando que este deslizamento de sentido entre x e y constitutivo tanto do sentido designado por x como por y (IDEM).

Por fim, a autora prope uma terceira e ltima etapa, que seria a da anlise do corpus a partir dos elementos que o constituem enquanto sujeito discursivo, como a historicidade, as condies de produo e outros itens.

33 A pesquisa se dar com a comparao de textos sobre podcasts, com o que encontramos nos objetos analisados. Da mesma forma, tambm utilizaremos recursos bibliogrficos que possam mostrar outras formaes discursivas prximas que se cruzem com os conhecimentos abordados pelos autores das primeiras obras.

4.1

A ESCOLHA DO CORPUS

Como objeto de anlise, resolvemos escolher podcasts que se encaixam nas trs primeiras classificaes de Miranda (op. Cit.): metfora, editado e registro. Todos eles, apenas em formato de udio. Como j dissemos, tambm existem podcasts que so feitos em vdeo. A seleo apenas em udio se d por ter sido este o formato que deu origem aos podcasts. Em nosso estudo, utilizaremos uma nica edio de cada um dos seguintes podcasts: a) Resumo Dirio: produzido pelo site Folha Online, esse podcast um resumo em udio das principais notcias do dia publicadas tanto no endereo eletrnico quanto nas pginas do jornal Folha de S. Paulo. Todos os dias, so produzidas duas edies, uma pela manh e outra no final da tarde. Esto disponveis no endereo eletrnico http://www1.folha.uol.com.br/folha/podcasts. b) CBN Podcast: este produzido pela famosa Rdio CBN. Trata-se de recortes da programao normal da rdio, que so disponibilizados na internet para aqueles que eventualmente perderam os programas ao vivo. dividido por editorias e tambm conta com programas dos comentaristas da rdio. A maior parte deles atualizada diariamente, mas alguns so semanais. Como exemplo, analisaremos um programa de um comentarista da rdio. Podem ser encontrados no endereo eletrnico http://cbn.globoradio.globo.com/cbn/ podcast/podcast.asp c) Caf Brasil Podcast: O criador deste programa j fez de tudo um pouco. De executivo empresarial a jornalista. Hoje, produz um programa que teve seu incio no rdio, e agora est disponvel na rede atravs do podcasting. Alm disso, mantm hoje um portal bastante popular (www.lucianopires.com.br) com

34 enquetes, frum, artigos, vdeos, rdio e uma variedade de contedos focados nas questes da educao e da luta contra o emburrecimento do Brasil (Disponvel em http://www.lucianopires.com.br/luciano/, acesso em 31/10/2008) Uma particularidade que os usurios podem intervir no programa antes de ele ser gravado, sugerindo modificaes nos roteiros que esto disponveis na pgina que hospeda o portal. Tem periodicidade semanal. d) Decodificando: O Podcast que fala de cdigo gentico, cdigo jurdico e cdigo fonte. assim que uma biloga, uma advogada e um profissional de Tecnologia da Informao descrevem seu podcast logo na primeira pgina do stio deles. No ar desde 2007, o Decodificando se caracteriza por tratar de diversos assuntos e, dentre todos os analisados, ser o nico em que no h um profissional de mdia na equipe. Est disponvel no site www.decodificando.com.br. Este programa no possui periodicidade. Os autores gravam quando dispem de tempo livre. Todos os programas analisados tm o recurso do RSS e tambm contam com a possibilidade de serem atualizados pelo iTunes. Utilizaremos para anlise apenas uma edio, dentre as ltimas lanadas por cada um deles, nos meses de outubro e novembro de 2008. No caso do podcast dos Comentaristas da Rdio CBN, como so atualizados vrios programas de uma s vez, ns selecionamos apenas o comentrio do economista Carlos Alberto Sardenberg, do dia 7 de novembro de 2008.

35

5

ANLISE

Sempre que surge uma nova ferramenta miditica ou avano cientfico, comum ouvirmos sentenas do tipo isto vai mudar o mundo ou mesmo parafraseando o jargo do presidente Lula - que nunca antes na histria do mundo se viu algo to inovador e fantstico. Sim, muitas vezes tais avanos realmente contribuem para melhorar a vida de um povo. Como exemplo, podemos citar a inveno do rdio ou a elaborao da teoria da relatividade de Albert Einstein. Tais criaes derrubaram conceitos pr-construdos, diminuram distncias, quase acabaram com o mundo e, de certa maneira, tambm salvaram a humanidade. Com o surgimento e a popularizao dos podcasts, em meados de 2004, no foi diferente. Assim nota-se nos textos de Miranda (2005 e 2006) e de Primo (2005). Estes dois trabalhos foram produzidos cerca de um ano (dois no caso do segundo texto de Miranda) aps o aparecimento e difuso dessa ferramenta na internet. Como no poderia deixar de ser, esses dois artigos ainda estavam influenciados pelo sentimento de novidade que paira sobre a tecnologia que acabou de surgir. Porm, como vimos, tanto a distribuio de udio pela rede mundial de computadores, quanto a sua popularidade j no eram novidade em 2004, ano em que a idia de Adam Curry se popularizou. Assim, surge nosso problema de pesquisa. Miranda dizia, em 2005 (p. 8), que o podcasting ainda ser considerado como uma rdio via internet, j que no existe uma definio mais contundente para classificar esse tipo de transmisso sonora digital. Primo (2005) tambm concorda que este novo fenmeno da Internet apropria-se de muitos elementos do rdio tradicional. Acrescenta ao coro Briggs (2007, p. 80) que, No formato, os podcasts so similares aos programas de rdio convencionais com um apresentador ou apresentadores entrevistando sobre um assunto, tocando msica ou introduzindo a reportagem pr-gravada em udio. Mas essas semelhanas poderiam ser suficientes para reduzir o podcast categoria de subproduto do rdio? At que ponto h um acontecimento discursivo

36 no surgimento dos podcasts, sendo que ele tem tantos pontos de afinidade com modelos anteriores? Citando Bolter, Primo (2005) acredita que o podcasting remedia o rdio. Essa remedio, segundo o autor (IBIDEM), ocorre quando um novo meio toma emprestado caractersticas de um anterior. como se fosse uma competio natural entre tecnologias. A partir dessa afirmao, ele elenca diversas caractersticas que diferenciam os dois meios, no no formato, mas em suas condies de produo, recepo e emisso. Antes de ingressarmos nessas diferenas propostas por Primo, vale comear a anlise observando como a construo dos textos produzida nos podcasts. Conforme percebemos nos anexos 1, 2, 3 e 4, bem como nas faixas do anexo 5, todos eles possuem elementos comuns aos programas de rdio convencionais, como vinhetas e apresentaes. A construo dos textos tambm segue um padro comum. Exceto pelo Decodificando, cuja falta de conhecimentos acerca das caractersticas para informao em udio fica claramente perceptvel. Prado (1989 p. 31 - 33) acentua alguns elementos tpicos dos textos radiofnicos. Para ele,[...] A estrutura gramatical a ser utilizada no rdio deve buscar a clareza e a simplicidade expressivas. [...] As frases devem ser curtas, mas isso no tudo. Uma frase breve no garantia de uma expresso lgica se no est acompanhada de uma estrutura linear, um desenvolvimento lgico da idia que contm. Para isso preciso recorrer estrutura gramatical mais simples, que aquela composta por sujeito-verbo-complemento. [...] Evitemos sempre a colocao de clusulas adicionais entre o sujeito e o verbo. Se se incluem muitas, o ouvinte deve fazer um esforo de compreenso para interligar a ao do verbo ao sujeito que j havia sido expressado anteriormente. Pela mesma razo, no devem ser utilizadas as frases subordinadas e sim as coordenadas, que, alm disso, introduzem a redundncia temtica, categoria positiva no discurso radiofnico. [...] Pelas razes j expostas, deve-se evitar a formulao das frases em negativo (IDEM).

Esses pontos so claramente notados nos anexos 1, 2 e 4, cujos locutores j tm certo conhecimento das tcnicas radiofnicas e, com isso, as empregam bem nos textos falados em seus podcasts. Retomando ento a discusso de Primo (2005), acerca das caractersticas que diferenciam os podcasts do rdio convencional, esse autor prope que essa nova ferramenta seja considerada como micromdia. Essa classificao vai ao encontro da proposta de que h, alm da mdia de massas e da

37 mdia de nicho, um terceiro tipo, no qual se enquadrariam os flyers, fanzines, informaes telefnicas, rdios livres, e-mails e arquivos na internet (THORNTON, apud, PRIMO, 2005). Seguindo isso, esse autor prope que o podcast seja mais do que uma ferramenta e passe a se constituir como um novo meio de comunicao, devido s suas caractersticas de distribuio e difuso peculiares. As condies de produo tambm foram analisadas por Primo. Ele mostra que um podcast pode ser produzido por uma nica pessoa tendo como recursoso apenas um microfone ou gravador digital, um computador conectado internet e algum servidor na rede para armazenamento de seus programas (IDEM). Porm, em seu trabalho, ele no trata dos podcasts dos modelos Metfora e Editado. Ele fala somente daqueles que seguem o modelo Registro. Destaca o autor que[...] o podcasting permite a gravao de programas em udio mesmo em situaes de mobilidade, sem que se precise contar com uma estrutura profissional de produo de udio, e pode ser distribudo mesmo a partir de uma conexo WiFi12 ou em um cibercaf (IDEM).

Sobre as condies de recepo dos podcasts, o autor tambm analisa pontos que o diferem do rdio convencional e mesmo das web rdios. O principal deles seria a linearidade da reproduo. O nosso objeto de anlise, segundo Primo (IBIDEM) segue o modelo pull de recepo. Alm desse, existe outro modelo, chamado de push. No primeiro caso o contedo puxado pela audincia ou seja, o usurio vai atrs do contedo que quer ouvir -, e no segundo, o contedo empurrado at a audincia uma fonte de emisso (rdio, TVs, por exemplo), coloca a programao sem que o receptor tenha qualquer controle sobre isso (IBIDEM). Como dissemos anteriormente, para se ouvir um podcast necessrio que o usurio busque pelo contedo na internet, para s ento poder ouvi-lo. No caso de uma rdio convencional, quando se liga o aparelho o ouvinte s pode escutar o programa linearmente (IBIDEM) e do ponto onde estiver tocando; caso se ligue no meio de uma msica, por exemplo, no possvel reinici-la. Mas essa busca tambm no elimina por completo o sistema push. Quando o programa encontrado pelo usurio e assinado com o RSS, os contedos12

Conexo de internet sem fio. Grifo nosso.

38 so atualizados diretamente para o computador do usurio. Do mesmo modo, a falta de uma periodicidade especfica quando se trata do modelo registro reitera o fato de que o usurio no pode ter certeza de quando ou mesmo do que ser tratado nos prximos programas. Miranda (2006) aborda o podcast como um antpoda do rdio tradicional. Para ele, chega a ser impossvel essa comparao ser feita. Contudo, observamos que as diferenas entre os dois meios de comunicao ainda no so suficientemente grandes para desconsiderarmos a presena do radialismo tradicional dentro dos discursos do podcast.

5.1

A AUTORIA NO PODCAST

Como vimos anteriormente, a autoria s pode ser processada se levarmos em conta que o sujeito-autor aquele que se assujeita lngua e s suas propriedades. Aqui, podemos entender que a autoria pode ser compreendida com aqueles que se rendem aos padres da tcnica radiofnica. Voltando aos exemplos que trouxemos para anlise, h uma diferena clara entre os programas feitos por profissionais e o amador, Decodificando. Nos anexos 1, 2 e 4, temos a transcrio do primeiro exemplo de programa, cujos comunicadores j tem grande experincia no meio radiofnico e nos quais as estruturas tanto de linguagem, quanto de formato ficam muito prximas de programas convencionais de rdio13. No Podcast da CBN (abaixo), a estrutura segue a de um programa de rdio por um motivo bvio: o arquivo disponibilizado na internet a gravao do que foi transmitido ao vivo pela rdio. No h qualquer edio no udio alm da que seria possvel ser feita antes da transmisso. O que foi veiculado pelas ondas eletromagnticas, est na rede, por meio do podcast.

13

Lembramos que a mera anlise de formato ou contedo no o cerne de nossa pesquisa. Todavia, acreditamos que se faz necessrio o uso de alguma abordagem sobre a construo desses objetos para podermos discutir, em seguida, as formaes discursivas presentes nessa novidade, cujos cruzamentos podem ou no gerar um acontecimento discursivo.

39 Tc: Vinheta Loc. 1 (Nonato): Boa tarde, Sardenberg! Loc. 2 (Sardenberg): Boa tarde, Nonato! Boa tarde ouvintes da CBN. Loc. 3 (Nonato): Sardenberg, // no vai ser fcil sair do buraco, / diz Barack Obama. Loc. 4 (Sardenberg): verdade. // Falou que h momentos difceis pela frente./ E tem razo, n? // Precisava ele dizer pra estar claro que isso mesmo que est acontecendo. // Ele vai, / depois que saram dados sobre o desemprego na economia americana aumentou, atingiu nveis ... inditos nos ltimos anos e o que vai tudo levando concluso que o Barack Obama vai assumir no pior momento da crise. O podcast da Folha Online, dos trs citados acima o nico exclusivamente jornalstico e produzido apenas para a internet. Mesmo assim, possvel observar uma estrutura semelhante a qualquer programa de rdio, logo nos primeiros segundos. Porm, percebemos que o contedo trabalhado da mesma forma que qualquer outro programa de rdio convencional. TCNICO: Trilha com vinheta em seco (trilha + texto) Oua agora o Resumo das principais notcias da Folha Online Loc. 2: Sexta Feira / 31 de outubro de 2008 // A mineradora Vale do Rio Doce informou nesta sexta-feira / que ir reduzir sua produo de minrio de ferro e outros minrios e subprodutos / devido desacelerao da economia global. // A medida afetar atividades da empresa / localizadas nos Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Amap, alm de plantas industriais e minas no exterior. O podcast Caf Brasil surgiu inicialmente como um programa de rdio. O apresentador, Luciano Pires, demonstra essa vertente de radialista durante sua locuo, com boa entonao na voz e com as pausas entre as sentenas bem

40 colocadas. Como vemos em seguida, alm da voz, a estrutura do rdio reaparece, tambm, com o uso de uma vinheta de apresentao, trilhas, bem como da grande utilizao de som de fundo (BG, do ingls Background), criando uma ambientao sonora para as locues, entre outras caractersticas. Tc: Insere patrocinador + vinheta Sobe BG Loc. 1: Bom dia, boa tarde, boa noite...// do r mi f f f, do r do r r r, do sol fa mi mi mi, do r mi f f f... // Opa! / Ta chegando um Caf Brasil todo musical. // E o tema de hoje msica sim senhor / e nada melhor que comear com uma frase de um msico, / no mesmo? /Tom Jobim, que um dia disse assim: Quando uma rvore cortada ela renasce em outro lugar. // Quando eu morrer / quero ir para esse lugar, / onde as rvores vivem em paz. Tc: Insere Mel do Pocot Loc 2: O programa de hoje est baseado num texto de Silvia de Lucca, / que escreve as Iscas Musicais / na rea de Iscas Intelectuais do meu site. // Dessa vez / ela fala de um personagem to importante quanto desconhecido... // O arranjador! // Ao fundo / voc ouvir Preciso Aprender a Ser S, / de Marcos e Paulo Srgio Valle, / aqui na interpretao do Trio 3D... Tc: Insere Preciso aprender a ser s + Fade Out Em contrapartida ao profissionalismo dos exemplos anteriores, temos o podcast Decodificando. Este programa feito por um desenvolvedor de Tecnologia da Informao, uma biloga e uma estudante de Direito. As edies no tem qualquer periodicidade; os podcasters produzem em seu tempo livre. Outra caracterstica comum que a durao de cada podcast tambm no obedece a um padro, como nos exemplos anteriores. O da Folha Online, nunca ultrapassa cinco minutos; o Caf Brasil, fica sempre na casa dos 25 minutos; e o da CBN, restrito ao tempo da programao da rdio.

41 Contudo, a falta de conhecimento das tcnicas radiofnicas, no impede os podcasters do Decodificando de utilizarem algumas caractersticas do rdio, entre elas a vinheta de apresentao do programa. Por outro lado, o programa, ao ser ouvido, mostra que no tem sequer a qualidade sonora, dos exemplos anteriores. Da mesma forma, as locues tambm so prejudicadas. Como podemos ver nos momentos selecionados abaixo, so comuns os momentos em que os apresentadores gaguejam e se perdem em seu roteiro. Loc. 10 (Jonny): e... vamos falar um pouquinho do premio podcast, n? E antes a gente vai deixar o direito de resposta aqui ao senhor Sheron Canha. Que ele pediu, j que a gente falou mal do blog dele, pra no botar no blog dele, pra no votar no blog dele, ele deixou uma mensagem exigindo o direito de resposta. Eu vou deixar aqui o udio agora. Loc 12 (Jonny): o prmio podcast, n, pra quem no sabe o... o... o Ed Silva tava fazendo uma votao, e colocou os melhores podcasts l, a gente se inscreveu na categoria tecnologia, tamo l correndo, buscando o quinto lugar, mas esse o nosso primeiro podcast que a gente t gravando depois do inicio da votao. Loc 16 (Jonny): ... lembrando que o... alvo-beneficio, n, ganha o de tecnologia que tem os bam-bam-bans do podcast, mas tando l em quinto j t timo, n? A gente vai ficar atrs do guaradabaim, que publica toda semana. Do PapoTec, da Viaconve. P, quinto lugar no demrito pra ningum, n? at um orgulho, mesmo que a gente nem fala tanto de tecnologia, a gente fala mais de outras coisas, n, ento... bem divertido. Alis, outra coisa interessante, sempre quando voc for dar o seu voto deixa um comentrio l tambm, que bem legal l de sempre entra todos os dias pra ver os comentrios, o que que eles acharam, pode xingar, pode falar o que quiser l. Ento vota, e deixa seu comentrio, bem legal. E vamos ler os comentrios da semana, at a gente falou do SAC, vou publicar essa semana no infopodium uma... um texto sobre SAC. Sobra SAC no, sobre como ser bem atendido, da eu deixo o link tambm no site. Nesse caso, nota-se um problema claro. A tentativa de imitao da tcnica acaba mostra-se falha, pois os locutores no tm o domnio pleno dela.

42 Ouvindo o arquivo no anexo 5, percebemos que o programa se torna cansativo, devido s declaraes muito extensas, sobretudo dos apresentadores. Ainda que o contedo abordado possa ser de interesse, pois o podcast trata de temas como as questes jurdicas nas reas de biologia e informtica, por exemplo, essa caracterstica do programa acaba por dispersar o ouvinte. De certa forma, poderamos pensar que um programa assim serviria para fazer uma crtica aos modelos anteriores, por no possuir qualquer roteirizao e ser feito na base do improviso. Alguns programas do rdio convencional o fazem, por exemplo. Contudo, falta aos produtores do Decodificando uma oralidade que possa tornar atraente o programa ao ouvinte. No estudo de Primo (2005), a descrio sobre o contedo dos podcasts muito parecida com que encontramos no Decodificando.Podcasters costumam comentar noticias que encontram em jornais, revistas, rdios, programas de televiso ou mesmo em portais e peridicos da internet. O mero relato ou chancela de tais informaes amplia o alcance de notcias e opinies divulgadas nos veculos consultados. Como a maior parte de blogs e podcasts so produzidos por apenas uma pessoa, em seu tempo livre, os peridicos tradicionais servem como fonte para suas informaes (PRIMO, 2005).

Evidencia-se a um problema da ordem do acontecimento discursivo. Como vimos, ele se d a partir do encontro de formaes discursivas distintas que criam uma nova formao, que pode ou no ser complementar s anteriores. Nos podcasts no parece haver uma definio de como se faz um programa. As experincias que encontramos apenas visam imitar com mais ou menos sucesso o que j existe em termos de distribuio de udio, seja pelas ondas do rdio ou pelos bytes da rede. Aqui, as formaes discursivas radiofnicas e da internet entram em contato, mas no chegam a criar uma nova formao discursiva, visto que apenas repetem o que j existe e no se complementam em si.

43 5.2 CONDIES DE PRODUO

Produzir um programa em udio, primeira vista, parece fcil. Em tese, bastaria seguir uma metfora idia do Cinema Novo de Glauber Rocha que propunha o conceito de Uma cmera na mo e uma idia na cabea. No caso do udio, bastaria, ento, um microfone? Na verdade no, pois o programa em udio, por ter apenas o som como suporte, requer uma srie de outros fatores que influenciam diretamente no resultado final apresentado. O livro de Bairon (2005), Texturas Sonoras, traz consigo um CD, no qual o autor e vrios convidados tentam produzir uma espcie de monografia em udio. O autor trabalha com elementos que transcendem a voz, ou seja, os recursos no-verbais, que esto presentes em nossa fala cotidiana, mas que nem sempre nos damos conta. Nesse CD, so usados diversos efeitos de sobreposio de vozes, msicas, rudos que buscam, ao longo de todo o disco, fazer com que o leitor entenda as mensagens e, principalmente, possa memorizar os conceitos principais trazidos no trabalho. A proposta do autor mostrar que mesmo o texto cientfico pode ser compreendido no apenas pelo material impresso, mas por outras vertentes que ampliam a compreenso tanto nos seus significados quanto no seu contedo, atravs da expressividade sonora. Tratando especificamente de como os elementos no-verbais influenciam no que compreendido pelo leitor, Moura (2003, p. 12) afirma que[...] No basta ter a inteno de estabelecer uma comunicao dialgica a partir do rdio, preciso estabelecer um universo comum de competncias comunicativas que permitam ao interlocutor do discurso radiofnico acreditar sem ver.

No caso dos podcasts possvel perceber como a mdia tradicional se tornou mais presente no uso dessa ferramenta, justamente devido a esse detalhe. A fala no a nica variante a ser considerada na produo em udio. Para um profissional, que trabalha diariamente com essas tcnicas fica um pouco mais fcil conseguir controlar essas tcnicas. Dominar a relao dos efeitos sonoros e sua influncia perante o ouvinte est alm da mera gravao de som. necessrio ir

44 superar isso e pensar, por exemplo, na ambientao sonora. o texto [no rdio] na sua criao compe-se de elementos verbais e no verbais - como pausas, entonaes, e trilhas sonoras, por exemplo - com funes de marcadores argumentativas que permitem ao interlocutor entender a mensagem Moura (2003, p. 11). Como exemplo da importncia desses detalhes, em cada um dos podcasts analisados possvel notar elementos que do, por exemplo, a impresso do lugar onde o programa foi gravado. No caso da CBN, por exemplo, descobrimos claramente que se trata de um programa de rdio AM, pelo fato dos rudos caractersticos de uma gravao assim estarem presentes ao longo de toda a fala. J a limpidez da voz do locutor do Caf Brasil e da locutora do ltimas Notcias da Folha Online cria a sensao de que o lugar onde se encontram os locutores bastante silencioso, provavelmente um estdio. Os pequenos rudos constantes no Decodificando, por outro lado, j criam a idia de que o programa deve ser feito na casa de um dos podcasters. Portanto, programas que atraem o pblico, podem ser entendidos como aqueles que dominam a produo desses detalhes sonoros ou, tomando emprestado o texto de Bairon (2001), essas texturas sonoras. E dominar isso requer bastante prtica. Some-se a essa dificuldade ainda o domnio necessrio para se construir uma pgina da internet que seja atrativa ao pblico-alvo, o uso de e-mails e dos programas bsicos para edio de udio e at mesmo fotografias, quando o podcast est alocado em um site que permita o uso dessa tecnologia. No que seja necessrio se freqentar um curso de comunicao e outro de programao para se ter o pleno domnio dessas tcnicas. Longe disso, trabalhar com um programa de udio necessita, sobretudo, boa audio e uma grande dose de autocrtica, a fim de detectar pequenas falhas que possam ser corrigidas, seja no mesmo programa, durante a edio, ou em um posterior. Todavia, produzir apenas pela simples distribuio de palavras soltas na rede no nos parece ter muito sentido.

45

6

CONCLUSO

No percurso que fizemos ao longo deste trabalho, procuramos desvendar um pouco do universo da anlise do discurso; da transmisso de udio por meio da internet e de como os podcasts se inserem nesse contexto; e por fim, busca-se entender se o surgimento dessa ferramenta, tal como foi com a internet, poderia ser considerado como um novo acontecimento discursivo. Num primeiro momento, fizemos um breve percurso terico sobre a Anlise do Discurso e a sua corrente francesa. Debruamo-nos, principalmente, sobre os estudos de Michel Pcheux e suas releituras, com nfase na obra da pesquisadora brasileira Eni Orlandi. Vimos os trs momentos distintos da AD, como so entendidos os sujeitos nessa teoria, de que forma outros discursos intervm nas nossas formaes discursivas, as formas de heterogeneidade. Tambm procuramos entender como se d o processo de autoria de um discurso. Entendemos que ser autor mais do que simplesmente assinar um texto ou uma fala, ocupar uma posio e assumir responsabilidades pelo que produziu. A partir da, chegamos ao acontecimento discursivo e descobrimos que ele se d quando do cruzamento de outras formaes discursivas, criando um momento novo - adverso ou complementar queles anteriores. Sobre nossos objetos de pesquisa, os podcasts, percebemos que h diversas semelhanas entre os programas analisados e os formatos j populares do rdio convencional, embora haja diferenas substanciais quanto aos modos de veiculao. A portabilidade do podcast, por exemplo, um ponto de destaque, sobretudo pelo fato de tirar o ouvinte da frente do computador ou de um aparelho de som. Porm, essa mesma caracterstica tambm est presente no rdio, visto que aparelhos de rdio portteis j existem h vrias dcadas. Nos programas da Folha Online e da rdio CBN, no h o que acrescentar em termos de anlise. Os dois, por se tratarem de programas informativos, cumprem seu papel apostando, principalmente, no formato j reconhecido do rdio convencional. No caso da CBN, fica ainda mais bvia essa afirmao, visto que o podcast apenas um excerto da programao do rdio, disponibilizado tambm pela internet. O mesmo acontece no Caf Brasil, que explora

46 bem a locuo e os recursos no-verbais, os quais ficam escondidos no podcast Decodificando, que nos parece amador desde o incio. Entretanto, o formato no o cerne da Anlise de discurso e nem mesmo deste trabalho. Como aponta Orlandi (2003, p.86),[...] os tipos resultam eles mesmos de funcionamentos cristalizados que adquiriram uma rubrica, uma etiqueta que resulta de fatores extradiscursivos [...]. O que interessa primordialmente ao analista so as propriedades internas ao processo discursivo: condies, remisso formaes discursivas, modo de funcionamento .

Ao analisar a novidade e o acontecimento discursivo, percebemos que no possvel considerar o podcast como tal, visto que ele no apenas empresta, como se apodera e necessita do discurso radiofnico para existir. Mesmo tendo caractersticas distintas, nos dias atuais elas se esvaem em parte, sobretudo pelo fato de que muitas rdios tradicionais caso da CBN tambm possurem pginas na internet, com blogs, transmisso de udio pela rede, etc. A questo da novidade tecnolgica realmente uma das mais latentes, principalmente na pouca bibliografia especfica sobre o corpus de nossa pesquisa. Trs autores que vimos no ttulo anterior (Primo, Briggs e Medeiros) apostavam suas fichas nessa ferramenta que acabara de surgir. Primo, por exemplo, chega ao ponto de estabelecer uma relao entre os podcasts e outros meios de comunicao alternativos. Gregolin (2003, p. 96 97) observa o papel da mdia na formao de sentidos da sociedade atual. Com base nos escritos de Foucault, a autora investiga o acontecimento discursivo dos 500 anos de descobrimento do Brasil, analisando outro fato que a criao do relgio que simbolizava a data e distribudo pelas principais cidades do pas. Coloca a autora:A criao dessa iluso de unidade do sentido um recurso discursivo que fica evidente nos textos da mdia. Como o prprio nome parece indicar, as mdias desempenham o papel da mediao entre seus leitores e a sociedade. O que os textos da mdia oferecem, no a realidade, mas uma construo que permite ao leitor produzir formas simblicas de representao da sua relao com a realidade concreta. Nesse sentido como construtora de imagens simblicas - a mdia participa ativamente, na sociedade atual, da construo do imaginrio social, no interior do qual os indivduos percebem-se em relao a si mesmos e em relao aos outros (IDEM, p.97).

47 Lembrando das formas de esquecimento observadas por Pcheux, da ordem do esquecimento nmero um, que acabamos por no nos dar conta dos discursos presentes quando formulamos uma determinada afirmao, nesse caso, o da novidade em termos de divulgao de contedos pelos podcasts. Dessa forma, ficamos embevecidos com a novidade tecnolgica e ela acaba por nos mostrar, tempos depois, que no era necessariamente, to revolucionria. Em textos de revistas especializadas, no s em informtica, mas tambm de automveis, mdicas ou outras, e tambm em peridicos genricos, percebemos que os novos eventos sempre so alardeados com grande ufanismo. Barbosa (2003 p. 115) lembra que os textos da mdia apresentam-se como uma fonte privilegiada da percepo quente dos eventos do dia, com toda a sua agitao e disperso caractersticas. Segundo o autor, por esse motivo os textos acabam pecando pela falta de relaes de efeitos entre um evento e outro. Dessa maneira, a sociedade, que bombardeada diariamente com avanos tecnolgicos, os quais muitas vezes so formas melhoradas ou modificadas de tcnicas antigas, acaba por no se dar conta e comprar o novo, descartando o antigo que, muitas vezes, cumpria bem o seu papel. Tal como o carro superesportivo, que, apesar de custar caro, cumpre exatamente o mesmo papel de um veculo popular. No caso que analisamos, vimos que a prpria historicidade da emisso de som, por exemplo, mostra que no novidade que as pessoas possam transmitir seus pensamentos utilizando-se da mdia. Antes mesmo de o rdio se tornar comercial, ele j tinha certo carter popular, visto que tanto a emisso quanto a recepo eram feitos por amadores, que possuam seus aparelhos em casa. Posteriormente, quando se profissionalizou, o rdio passou a ter caractersticas que acabaram por ajudar a criao de uma formao discursiva da prpria mdia. Ento, vende-se a idia de que o podcasting pode revolucionar a comunicao, enquanto que o que se percebe bem diferente disso. Sim, possvel que qualquer pessoa faa um podcast e o distribua na internet. A tecnologia no uma novidade revolucionria sob o ponto de vista tcnico-discursivo, mas sim no ponto de vista do uso social, pois ela gera condies de possibilidades a serem exploradas. Por esse motivo, pensamos que considerar o surgimento dos podcasts como um abalo nos meios de comunicao nos parece exagero. Como vimos no

48 caso do Decodificando, no basta apenas o contedo ser interessante para uma gama de usurios, ele ainda precisa ser muito bem trabalhado. Embora tenha caractersticas especficas, o objetivo final do podcast, que o de comunicar por meio do udio, persiste. Nem mesmo as questes levantadas por Primo (2005) e Medeiros (2005), sobre a criao de um novo meio de comunicao se fazem valer, visto que, para serem distribudos, os programas necessitam de outro meio j estabelecido, que a Internet. Tampouco possvel se utilizar do discurso de que o podcast cria novas possibilidades de comunicao entre as pessoas, aumentando as fronteiras comunicacionais. As grandes indstrias miditicas j tomaram conta da ferramenta, que, por sinal, foi inventada por um profissional de comunicao. Em nossa pesquisa no Google, levamos alguns bons minutos para cruzar com qualquer programa que no tivesse algum ligado rea de comunicao social envolvido diretamente com a produo. O livro de Briggs (2007), um manual para jornalistas aprenderem a usar a internet como ferramenta de distribuio de contedos, um exemplo dessa prtica. Outro arqutipo recente desse fenmeno de cooptao das mdias pelas novas tecnologias o que aconteceu com os blogs. Como vimos na introduo, eles se popularizaram na internet erramenta popularizada como dirios em formato eletrnico surgiram na rede no final dos anos 1990 eCom o passar do tempo, os blogs ganharam audincia. Construram, entre si, uma forte comunidade. Chegaram a furar jornais. Contrap-los. Concorreram com a imprensa tradicional. E, claro, foram absorvidos pela mdia (PERRET, 2008, p. 15).

Hoje, no h uma grande empresa do setor de comunicao que no disponha de blogs14. Sejam de colunistas ou com espao para os usurios criarem os seus prprios, blogar15 virou negcio. No Brasil, um dos blogs mais famosos da rede justamente de um jornalista. Ricardo Noblat mantm, desde 2003, uma

14

S o portal ClicRBS, que tem como pblico-alvo leitores dos Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, possui 155 blogs nos seus arquivos, entre finalizados e atualizados. A maior parte deles produzida por funcionrios do Grupo RBS, empresa mantenedora do site. Todos esses blogs podem se