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  • 41047 Problemas Sociais Contemporneos

    Apontamentos de: Jorge LoureiroE-mail: [email protected]: 04.09.2008

    Livro: Problemas Sociais Contemporneos (Hermano Carmo coord.)

    Nota: Matria referente ao ano lectivo 2007-2008 (Mestre Rosana Albuquerque)

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  • 1. Estudar os problemas sociais1.1. Dos problemas sociais aos problemas

    sociolgicosO que so problemas sociais? Podemos apresentar desde j duas definies possveis: segundo Rubington e Weinberg (1995:4), um problema social uma alegada situao incompatvel com os valores de um significativo nmero de pessoas, que concordam ser necessrio agir para a alterar. Para Spector e Kitsuse (citado em Hester, Eglin 1996:1), um problema social constitudo pelo conjunto das aces que indivduos ou grupos levam a cabo ao prosseguirem reivindicaes relativamente a determinadas condies putativas. As duas definies so muito diferentes nos seus pressupostos. Enquanto que a primeira se centra na situao que considerada problema, a segunda definio privilegia o processo pelo qual uma situao considerada como problema.

    difcil chegar a uma definio consensual do que seja um problema social, quer ao nvel da realidade social, quer entre os socilogos que se dedicam ao seu estudo, porque a definio depende da perspectiva que se adopta.

    Os problemas sociais, imbudos de um significado social (porque se definem em funo de um conjunto de valores sociais), ao passarem pelo crivo do mtodo cientfico, adquirem um significado sociolgico, isto , reflectem valores sociolgicos relativos s perspectivas tericas e metodolgicas seguidas (Pais 1996). Para que um problema social possa ser considerado problema sociolgico deve possuir as condies de regularidade, uniformidade, impessoalidade e repetio (Gonalves 1969:12).

    A problematizao sociolgica dos problemas sociais implica mesmo a des-construo destes, o desmantelar do significado social de maneira a criar um significado de acordo com o discurso cientfico (Quivy, Campenhoudt 1992).

    Ao nvel do significado social, a juventude problematizada relativamente a aspectos to variados como a insero profissional, a emancipao adulta, a toxicodependncia, a crise dos valores tradicionais, entre muitos outros aspectos. Mas, problematizar sociologicamente a juventude ser questionar, por exemplo, se os jovens sentem estes problemas como seus e de que forma os percepcionam (Pais 1996). Ser questionar a definio de jovem, quais as solues que a sociedade preconiza para os problemas da juventude e quais as suas consequncias.

    A velhice enquanto problema social e sociolgico outro exemplo (Fernandes 1997). Foi com a industrializao, a urbanizao e o envelhecimento demogrfico que comearam a criar-se as condies para a definio da velhice enquanto problema social a ser solucionado. Problematizar a velhice em termos sociolgicos ser questionar, por exemplo como o faz Fernandes (1997: 62-63), que transformaes ocorreram nas famlias e na sociedade portuguesa que possam explicar a emergncia do problema social [...] velhice?[...]

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  • 1.1.1. A questo do positivismo versus relativismo

    Pensamos ser fundamental fazer aqui uma primeira reflexo sobre as condies epistemolgicas do estudo dos problemas sociais. O conhecimento sociolgico pode ser situado num contnuo epistemolgico que vai do Positivismo ao Relativismo.

    A sociologia positivista defende a procura de leis sociais ( semelhana das leis do mundo natural) a partir de um mtodo indutivo-quantitativo, e advoga uma separao absoluta entre a Cincia e a Moral, isto , entre os factos e os valores (Lapassade, Lourau 1973).

    Para a cincia positivista possvel conhecer objectivamente a realidade social, uma vez que existem critrios universais do conhecimento e da verdade. Ao abordar os problemas sociais, a sociologia positivista estuda situaes objectivas, que so definidas como problemas em razo de caractersticas que lhe so prprias. Da a necessidade de se conhecerem as suas causas e de se chegar elaborao das leis que regem o fenmeno.

    No outro extremo do contnuo est a posio relativista , segundo a qual no existe nenhum critrio universal para o conhecimento e para a verdade. Todos os critrios utilizados sero sempre internos ao sistema cogniscente e, como tal, sero relativos e no universais. Consequentemente, a definio do que seja um problema social ser sempre relativa, ser antes de mais um rtulo colocado a determinadas situaes, e no uma caracterstica inerente situao em si mesma.

    Como resultado desta argumentao, o estudo das causas ou da etiologia da situao deixado de lado ou secundarizado. O que importa estudar a definio subjectiva dos problemas sociais, conhecer os processos pelos quais uma dada situao se torna problema social.

    1.1.2. A aplicabilidade da cincia e o desenvolvimento terico

    Um problema pressupe uma soluo. O nascimento e desenvolvimento das cincias sociais, particularmente da sociologia, durante o sculo XIX esteve intimamente ligado ao estudo das preocupaes humanas para as quais os actores sociais pensaram e desenvolveram solues humanas, isto , sociais.

    Desde o incio, os socilogos tentam equacionar o que Rubington e Weinberg (1995:360) denominam de mandato duplo:

    a) por um lado, dar ateno aos problemas existentes na sociedade, numa perspectiva de correco da realidade social, atravs dos conhecimentos empricos adquiridos;

    b) por outro lado, desenvolver terica e metodologicamente a sociologia enquanto cincia.

    Hester e Eglin, seguindo Matza (Hester, Eglin 1996:4) consideram que o primeiro tipo de perspectiva pode ser denominado de sociologia correctiva, que parte dos seguintes pressupostos:

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  • Equivalncia de problema social a problema sociolgico

    As questes sociolgicas derivam das preocupaes sociais

    O grande objectivo do estudo sociolgico a melhoria dos problemas sociais

    Preocupao central com as causas ou etiologia dos problemas

    Compromisso com os princpios positivistas da cincia

    Ao concentrar-se em responder questo porque que os comportamentos acontecem, no questiona porque que as situaes so definidas como problema, aceitando as definies socialmente estabelecidas.

    O mandato duplo dos socilogos no deve ser entendido como mutuamente exclusivo, pois como j defendia Kurt Lewin, uma boa teoria sempre prtica, e a prtica emprica sempre indispensvel ao desenvolvimento terico. A separao entre os dois domnios um falso problema.

    A questo da aplicabilidade da sociologia e doutras cincias sociais leva-nos a referir a posio que muitos autores tomam denominada de Sociologia de Interveno (Carmo 1999; Hess 1983). A Sociologia de Interveno no uma especialidade ou ramo sociolgico, mas sim um modo de ver o trabalho do cientista social que, em vez de isolar assepticamente o investigador do seu objecto de estudo, o desafia a ser contaminado por este, o leva a intervir activamente na realidade que estuda e a no separar os papis de investigador e de cidado. A investigao social deve ser utilizada para melhorar a sociedade, segundo princpios humanistas de solidariedade e de libertao.

    Na Sociologia de interveno, a sociologia um vrus que toca a toda a gente. Ela deve ser feita pelos prprios grupos sociais, sendo o socilogo antes de mais aquele que propaga o vrus do que aquele que produz a sociologia como momento particular do saber social.

    Aps esta breve introduo a dois aspectos que consideramos fundamentais para se perceberem as diferentes aproximaes sociolgicas ao estudo da realidade social, passamos a descrever algumas perspectivas possveis de estudo e compreenso dos problemas sociais, para o que seguimos de perto as sete correntes sociolgicas propostas por Rubington e Weinberg (1995) na sua obra de sntese sobre esta matria, sendo apresentadas pela ordem cronolgica em que dominaram o pensamento sociolgico norte-americano, como defendem estes autores.

    Dividimos as perspectivas em duas categorias, segundo a linha positivista ou relativista que adoptam, de acordo com o que foi exposto acima.

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  • 1.2. As perspectivas de estudo dos problemas sociais

    1.2.1. As perspectivas da Sociologia Positivista

    1.2.1.1. Patologia SocialOs avanos e os sucessos de disciplinas j instaladas, como a biologia e a medicina, influenciaram profundamente os socilogos a adoptarem a analogia do organismo ao seu objecto de estudo: a sociedade. Adoptaram igualmente um modelo mdico de diagnstico e de tratamento. Os problemas sociais so entendidos como doenas ou patologias sociais.

    O pensamento organicista, cujo autor mais consistente foi o britnico Herbert Spencer, defende que a sociedade e os seus elementos podem sofrer malformaes, desajustamentos e doenas, semelhana dos organismos vivos. Este argumento pressupe um estado de sade ou de normalidade do organismo, sendo que as pessoas e as situaes que interfiram com este estado de normal funcionamento do organismo social so assim considerados problemas sociais.

    Para a corrente da Patologia Social, um problema social uma violao de expectativas morais (Rubington, Weinberg 1995:19). A condio de sade ou normalidade do organismo definida por valoraes do Bem e do Mal.

    A patologia pode ser encontrada no indivduo ou no mau funcionamento institucional. Foi a perspectiva do Homem Delinquente da escola positiva italiana de criminologia, donde se destacaram Cesare Lombroso, Ferri e Garfalo (Dias, Andrade 1984).

    Uma vez que o problema est no indivduo, essencial que se identifiquem as caractersticas que diferenciam o elemento doente daqueles que so normais. Para Cesare Lombroso, era claro que a explicao do comportamento criminal dos indivduos estava em caractersticas fisiolgicas particulares, como o tamanho dos maxilares, assimetria facial, orelhas grandes ou a existncia de um nmero anormal de dedos. J no sc. XX, avanaram-se outras explicaes de base psicolgica ou biolgica, ao nvel de anormalidade cromossomtica (um duplo cromossoma Y) ou predisposio gentica para a extroverso, que segundo Eysenck est ligada a comportamentos de violao de normas (Aggleton 1991; Dias, Andrade 1984).

    Esta corrente voltou a ganhar alguma importncia na dcada de 1960, mas os novos patologistas sociais afastaram-se da procura de deficincias nos indivduos e centraram-se antes nas deficincias na socializao. Segundo esta nova aproximao patologia social, os problemas sociais seriam o resultado da incorporao de valores errados pelos indivduos, fruto de uma sociedade doente. Neste sentido, a soluo para os problemas

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  • sociais passaria necessariamente pela educao moral da sociedade e pela incorporao de valores moralmente correctos.

    A grande crtica, e para muitos autores fatal, que se coloca a esta perspectiva reporta-se definio de patologia: como podemos definir o que patolgico? Vytautas Kavolis (citado em Rubington, Weinberg 1995:35-39) props a conceptualizao de patologia como sendo um comportamento destrutivo ou auto-destrutivo. Para Kavolis a definio de comportamento destrutivo seria possvel em termos absolutos, isto , igual em todas as sociedades humanas.

    Mas, apesar desta tentativa de Kavolis, os autores relativistas, como Carl Rosenquist (citado em Rubington, Weinberg 1995:45-50) defendem que impossvel chegarmos a uma definio objectiva do que patolgico, at porque a sade da sociedade passa muitas vezes pela doena de algumas das suas partes. Para Rosenquist, a nica forma de se estudarem os problemas sociais passando ao lado do que constitui a sua condio problemtica e aceitar o julgamento social como um dado.

    1.2.1.2. Desorganizao SocialAinda segundo Rubington e Weinberg (1995), os quatro tericos mais importantes da desorganizao social foram Charles Cooley, Thomas, Znaniecki e William Ogburn.

    Cooley teorizou a distino entre grupos primrios e secundrios, sendo que nos grupos primrios os indivduos vivem relacionamentos face a face, mais intensos e duradouros, enquanto que nos grupos secundrios as relaes sociais so mais impessoais e menos frequentes. Na sua obra de 1909, precisamente intitulada Social Organization (citado em Rubington, Weinberg 1995), Cooley definiu a desorganizao social como sendo a desintegrao das tradies.

    De forma semelhante, Thomas e Znaniecki, no seu estudo clssico sobre os imigrantes polacos, conceptualizaram a desorganizao social como a quebra de influncia das regras sociais sobre os indivduos.

    O contributo de Ogburn centrou-se no conceito de desfasamento cultural (cultural lag) que este autor props. Para a perspectiva da desorganizao social, a sociedade no um organismo mas sim um sistema, composto por vrias partes interdependentes.

    Aos tericos acima mencionados, gostaramos de acrescentar os nomes de Robert Park, Ernest Burgess e Roderick McKenzie, os quais consideramos incontornveis ao falarmos em desorganizao social, no seguimento dos estudos que levaram a cabo sobre a organizao espacial da cidade. Efectivamente, o fenmeno da urbanizao central para a perspectiva da desorganizao social ao estar relacionado com o enfraquecimento das relaes face a face e das tradies sociais.

    Para os autores da Escola de Chicago a desorganizao social, e por conseguinte os problemas sociais, tm uma distribuio

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  • desigual pelas zonas da cidade, apresentando maior intensidade na zona II1, precisamente uma zona de Transio, onde se concentram os migrantes recentes (imigrantes e populao vinda das zonas rurais) e onde maior a quebra do peso das tradies.

    Embora o conceito de desorganizao social se tenha revelado inicialmente de grande utilidade para a compreenso de um mundo onde a mudana comeava a ser cada vez mais rpida, comearam a ser postas em evidncia as fraquezas desta perspectiva.

    Passamos a apresentar as crticas apontadas por Marshal Clinard (citado em Rubington, Weinberg 1995:81-82) ao conceito de desorganizao social:

    a) o seu poder explicativo para a sociedade em geral reduzido, por ser um conceito demasiado vago e subjectivo.

    b) confundiu-se desorganizao social com mudana social, o que desde j deixa por explicar porque que nem todas as mudanas originam desorganizao, e implica que se prove que a situao anterior era de organizao.

    c) um conceito fortemente sujeito aos julgamentos de valor do investigador, tal como o conceito de patologia. Por um lado, tende-se a considerar desorganizao numa perspectiva negativa, como se todas as situaes de desorganizao sejam por essncia ms.

    d) por outro lado, aplicou-se o conceito de desorganizao social a situaes que no so de desorganizao, mas que, pelo contrrio, traduzem outros tipos de organizao, de que um exemplo tpico o que se passa nos bairros de lata.

    e) o sistema social pode acolher em si focos de desorganizao ou a existncia de comportamentos desviados sem que tal comprometa o seu funcionamento, desde que outros objectivos do sistema estejam a ser alcanados, contrabalanando as influncias desestabilizadoras que possam existir.

    f) no seguimento da crtica anterior, ao constatarmos a existncia de diferentes formas de organizao social, no podemos inferir que tal situao seja desastrosa para a sociedade podendo pelo contrrio ser indispensvel para a manuteno da coeso social.

    Outra crtica importante a apontar que a perspectiva da desorganizao social utiliza frequentemente explicaes circula-

    ________________________________1 Relembrando o sistema das zonas concntricas proposto por Burgess, Park e McKenzie, comeamos por uma zona I que corresponde rea central de negcios onde esto instalados grandes armazns, sedes de empresas, escritrios, pequena indstria, espaos de divertimento e outros servios; a zona II a zona de Transio, rea deteriorada e de guetos, habitada principalmente por trabalhadores no especializados e imigrantes; segue-se a zona III onde habitam os trabalhadores mais especializados e a segunda gerao de imigrantes; as zonas IV e V so reas de residncia das classes mais elevadas, respectivamente zona de apartamentos e zona de moradias dos trabalhadores pendulares (commuters).

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  • res para os problemas de desorganizao (Aggleton 1991), isto , o mesmo facto considerado indicador e causa de desorganizao social (por ex. o desemprego).

    1.2.1.3. Conflito de ValoresUm outro modo de ver os problemas sociais consider-los como o reflexo de um conflito de valores na sociedade relativamente a uma dada situao.

    Esta perspectiva concebe a sociedade como um palco onde se confrontam grupos sociais com interesses diferentes, fazendo deste conflito permanente a dinmica central da vida social. Os problemas sociais da resultantes s podem ser solucionados pela resoluo dos conflitos que esto na sua origem, pela negociao e consenso, ou pela coero e imposio.

    A perspectiva do conflito de valores, ao definir os problemas sociais em relao a valores ou interesses dos grupos sociais envolvidos, coloca em evidncia a importncia da definio subjectiva, sem a qual a condio objectiva de base no seria s por si um problema social.

    Os tericos mais importantes desta corrente na sociologia norte-americana foram Richard Fuller e Richard Myers. Segundo estes autores, podem ser distinguidos trs tipos de problemas que afectam as sociedades (citados em Rubington, Weinberg 1995:93-98):

    a) problemas fsicos

    b) problemas remediveis (ameliorative)

    c) problemas morais

    Relativamente aos problemas fsicos, que no so causados pela aco humana (por ex. sismos ou furaces), existe consenso geral de que a condio objectiva indesejvel e nada se pode fazer para controlar as causas do problema2.

    Os problemas remediveis (por ex. delinquncia juvenil), apresentam consenso quanto indesejabilidade da situao e quanto necessidade de agir para a corrigir, mas criam-se conflitos no que diz respeito ao contedo da aco, ou seja, o que fazer.

    Por fim, os problemas morais (de que podem ser ex. o consumo de marijuana ou a eutansia) so os mais complexos, pois no existe consenso quanto prpria indesejabilidade da situao.

    Ainda segundo Fuller e Myers, os problemas sociais evoluem segundo trs fases (citados em Rubington, Weinberg 1995:98-108):

    1) inicialmente processa-se a tomada de conscincia do problema, quando os grupos sociais comeam a encarar uma dada situao incompatvel com os seus valores mais importantes, reconhecendo a necessidade de agir,

    ________________________________2 O que constitui um problema fsico muda com o avano cientfico e tecnolgico, medida que a cincia domina o conhecimento das causas de certos fenmenos e concebe meios de os controlar.

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  • 2) segue-se uma fase de determinao poltica, isto , um processo de clarificao dos valores e das posies em presena e definio de propostas de aco,

    3) por fim, a fase das reformas, na qual so postas em prtica determinadas solues para o problema, que podem ser levadas a cabo por agentes pblicos ou por organizaes privadas.

    A fase da consciencializao dos problemas pode ser considerada como estando sempre em aberto.

    1.2.1.4. Comportamento DesviadoA inteno de integrar campos, que tantas vezes estavam em oposio, est na base da perspectiva do comportamento desviado. Observou-se uma clara tentativa de conciliar as duas grandes escolas que dominavam o pensamento acadmico da sociologia norte-americana:

    a) a Escola de Harvard, de nfase terica,b) e a Escola de Chicago, iminentemente emprica e

    descritiva.

    Na Universidade de Harvard, pontificava a figura de Talcott Parsons e dos seus alunos, que iam desenvolvendo o pensamento funcionalista-estrutural. Sendo uma escola com forte pendor terico, a se discutia o pensamento de socilogos clssicos europeus, com especial destaque para Durkheim e Max Weber. precisamente com o conceito de anomia que Robert Merton, um aluno de Parsons, ir dar um importante contributo para a perspectiva do comportamento desviado.

    Para Durkheim, o conceito de anomia significava uma ausncia de normas, um quebrar das regras (Aggleton 1991; Barata 1990; Timasheff 1979).

    O conceito de anomia em Merton um tanto diferente: refere-se antes a um desfasamento entre metas culturais a atingir e os meios que a sociedade proporciona para o efeito. Se determinadas metas culturais forem enfatizadas mas os indivduos no dispuserem dos meios sancionados pela estrutura social, estaremos perante uma situao de anomia.

    Daqui resulta que o comportamento desviado entendido como normal em relao a situaes anormais, concepo que j Durkheim tinha avanado3.

    Segundo Merton, o desfasamento entre meios e metas d origem a quatro tipos de adaptao individual:

    a inovao, na qual as metas so mantidas mas so utilizados novos meios para as alcanar (por ex: roubar ou subornar),

    o ritualismo, pelo qual se renuncia s metas, mas se sobrevalorizam os meios,

    ________________________________3 Os comportamentos desviados apresentam mesmo funes sociais, nomeadamente como definio do contrrio do comportamento aceitvel na sociedade e catalizadora da coeso social.

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  • a evaso, na qual tanto os meios como as metas so renunciados (por ex: alcoolismo),

    e a rebelio, quando se pretende instaurar novas estruturas de metas e de meios.

    Como vimos acima, tambm a Universidade de Chicago influenciou a perspectiva do Comportamento Desviado. a que Edwin Sutherland desenvolve a teoria da associao diferencial, apresentada pela primeira vez em 1938 (Aggleton 1991; Rubington, Weinberg 1995).

    Sutherland, mais tarde em parceria com Donald Cressey, apresenta em nove pontos este processo de gnese do comportamento criminoso (citado em Rubington, Weinberg 1995:149-151):

    1. o comportamento criminoso apreendido, no inato,

    2. aprendido pela interaco com outros indivduos num processo de comunicao,

    3. a aprendizagem mais importante feita em grupos primrios4,

    4. a aprendizagem envolve, por um lado, as tcnicas necessrias ao crime e, por outro lado, os motivos, as racionalizaes e as atitudes a ele ligadas,

    5. os motivos e os impulsos so aprendidos segundo a definio favorvel ou desfavorvel aos cdigos legais. Podemos estar num meio no qual os cdigos legais so definidos favoravelmente e so para ser observados, ou, pelo contrrio, podemos estar rodeados de indivduos que so favorveis violao dos cdigos legais,

    6. um indivduo torna-se delinquente pela razo de encontrar um excesso de definies favorveis violao da lei em detrimento das definies desfavorveis violao da lei,

    7. a associao diferencial varia em termos de frequncia, durao, proximidade e intensidade,

    8. o processo de aprendizagem dos comportamentos criminosos e no criminosos integra todos os aspectos normalmente envolvidos em qualquer tipo de aprendizagem,

    9. as necessidades e os valores gerais (ex: segurana, riqueza material) que so reflectidos pelo comportamento criminoso no explicam este mesmo comportamento, uma vez que outros comportamentos no criminosos tambm os reflectem.

    10. Em meados dos anos 50, Albert Cohen, na sua teoria da subcultura delinquente (Cohen, 1968), sustentou que os jovens da classe trabalhadora enfrentavam uma situao de anomia no sistema escolar, pensado segundo os valores da classe mdia. Na escola eram ensinados a prosseguir estes valores mas eram-lhes vedados os meios legtimos para os

    ________________________________4 Esta proposio secundariza a importncia dos mass media na aprendizagem dos comportamentos desviados.

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  • poderem atingir. Em resultado, estes jovens uniam-se e formavam uma cultura prpria que violava os cdigos legais. As novas normas eram socializadas atravs do processo da associao diferencial.

    Outra teoria de sntese foi proposta por Richard Cloward e Lloyd Ohlin nos anos 60 (Cloward e Ohlin 1966). Na sua teoria da oportunidade, estes autores sustentam que no basta considerarmos a estrutura de oportunidades legtimas na gnese do comportamento delinquente: igualmente essencial ter em conta a estrutura de oportunidades ilegtimas .

    A perspectiva do comportamento desviado entende que os problemas sociais reflectem, de forma mais ou menos directa, violaes das expectativas normativas da sociedade, sendo que todo o comportamento que viola essas expectativas um comportamento desviado. A soluo para os problemas de comportamento desviado dever passar pela ressocializao dos indivduos e pela mudana da estrutura social de oportunidades, de forma a que sejam aumentadas as oportunidades legtimas e diminudas as oportunidades ilegtimas.

    Outros socilogos no se interessaram pelo processo como etiologia e revolucionaram o modo como os problemas sociais estavam a ser estudados.

    1.2.2. As perspectivas da Sociologia Relativista

    Neste ponto iremos abordar trs perspectivas que seguem uma viso relativista da cincia, de base interaccionista (o labeling e o constructivismo social) e estruturalista (a perspectiva crtica). Nelas se defende, em oposio ao positivismo, que o conhecimento socialmente construdo. Se assim , a questo central saber como que a realidade faz sentido para as pessoas e atravs de que processos estas do e partilham significados sociais.

    1.2.2.1. LabelingMead, que foi professor de filosofia na Universidade de Chicago, concebeu a formao do Ego como o resultado das interaces sociais com Outros Significativos (Aggleton 1991; Barata 1990a). As pessoas interagem fundamentalmente atravs de smbolos (sons, imagens, gestos, etc.) e os seus significados emergem da interaco social.

    Herbert Blumer desenvolveu a ideia de que os significados no so dados, mas requerem uma interpretao activa por parte dos actores sociais envolvidos (Aggleton 1991).

    Erving Goffman introduziu o conceito de identidade social, para se referir s qualidades pessoais que permanecem constantes em diferentes situaes (Aggleton 1991). Defendeu ainda que a identidade social pode ser consolidada pelas reaces dos outros ao comportamento dos indivduos. Se as reaces forem negativas, as pessoas podem ser foradas a aceitar uma spoiled identity, processo que Goffman define como de estigmatizao.

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  • Se certo que os autores acima referidos foram fundamentais para a teoria do labeling, os nomes pioneiros da perspectiva propriamente dita so indiscutivelmente os de Edwin Lemert e Howard Becker. Edwin Lemert defendeu, no incio dos anos 50, a teoria de que o desvio definido pelas reaces sociais e introduziu os conceitos de desvio primrio e desvio secundrio (Aggleton 1991; Rubington, Weinberg 1995). Esta distino de conceitos baseia-se numa outra distino que Lemert estabeleceu entre comportamento desviado (deviant act) e papel social desviado (deviant role). Existe uma multiplicidade de causas, biolgicas e sociais, para os comportamentos desviados, isto , para o desvio primrio. Mas a causalidade dos papis sociais desviados, ou desvio secundrio, reside na interaco social entre o indivduo que definido como desviado e a sociedade onde se insere. A reaco social ao desvio primrio est assim na origem do desvio secundrio.

    Segundo Lemert, a sequncia de interaco que leva ao desvio secundrio pode ser esquematizada com a seguinte evoluo (Lemert citado em Rubington, Weinberg 1995:194):

    1. ocorrncia do desvio primrio

    2. sanes sociais

    3. recorrncia do desvio primrio

    4. sanes sociais mais pesadas e maior rejeio social

    5. continuao do desvio, agora com possvel hostilidade e ressentimento por parte do indivduo desviado para com aqueles que o sancionam

    6. o coeficiente de tolerncia chega a um ponto crtico, que se reflecte nas aces formais de estigmatizao do indivduo levadas a cabo pela comunidade

    7. fortalecimento do comportamento desviado como reaco estigmatizao e s sanes

    8. aceitao do estatuto de desviado por parte do indivduo estigmatizado e consequentes ajustamentos com base no novo papel social

    Esta perspectiva reforada por Howard Becker ao introduzir o conceito de labeling, que deu o nome a esta corrente, e o conceito de carreira desviante.

    Becker defendeu que o comportamento desviado aquele que a sociedade define como desviado. Os problemas sociais, tal como os comportamentos desviados, so definidos pelas reaces sociais a uma alegada violao das normas ou expectativas sociais, e podem ser ampliados por essas mesmas reaces.

    Para que algum seja rotulado de desviado necessrio percorrer uma srie de fases sequenciais, num processo de interaco dinmico, a que Becker apelidou de carreira desviante.

    O que a perspectiva do labeling constatou que nem todos os que

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  • violam as normas so rotulados de desviados5, o que nos leva a considerar que, em ltima instncia, todo este processo traduz uma certa equao do poder na sociedade : quem define as regras, quem aplica os rtulos, quem rotulado.

    Este aspecto est relacionado com algumas das crticas feitas a esta corrente: afirmar que o desvio originado antes de mais pela formulao das regras que so violadas e pelas reaces a esta violao das normas, soa como uma desculpabilizao e desresponsabilizao dos comportamentos em vez de uma explicao dos mesmos.

    1.2.2.2. Perspectiva CrticaA perspectiva crtica, tambm denominada de perspectiva radical, veio a centrar-se na questo da influncia do poder na definio dos comportamentos desviados e dos problemas sociais, e numa concepo alargada da contextualizao social do desvio.

    Partilham com a corrente interaccionista a posio de que os problemas sociais so definies sociais, mas preocupam-se em explicar em termos estruturais porque que certas situaes se transformam mais facilmente em problemas sociais do que outras.

    Assume, portanto, uma postura de conflito na gnese dos problemas sociais. Segundo a tradio marxista, os modos de produo da infra-estrutura econmica determinam relaes sociais distintas. No estdio capitalista de desenvolvimento, a diviso social mais importante a que separa os que possuem os meios de produo, a classe capitalista, dos que tm unicamente a sua fora de trabalho para vender, e que constituem a classe trabalhadora.

    Os interesses da classe capitalista e os da classe trabalhadora so irremediavelmente opostos. A vida social consequentemente caracterizada pelo conflito.

    Todas as instituies sociais esto assim interligadas e dominadas pela infra-estrutura econmica. A abordagem realidade social deve ser holstica e analisar cada fenmeno social em relao a todo o sistema social.

    Para a perspectiva crtica, os problemas sociais advm das relaes sociais impostas pelo modo de produo, e traduzem a necessidade de controle da classe capitalista e a necessidade de resistncia e acomodao das classes exploradas.

    A soluo para os problemas sociais reside, em ltima instncia, na mudana (de preferncia revolucionria) do sistema social de classes para uma sociedade sem classes, isto , sem explorao humana, sem injustias e sem desigualdades.

    O surgimento da corrente crtica e a sua influncia no pensamento________________________________5 Ver por exemplo o interessante estudo de William Chambliss, de 1973, The Saints and the Roughnecks (citado em Rubington, Weinberg:205-219), que ilustra as diferenas na imposio do rtulo de delinquente a jovens provenientes de classes sociais distintas.

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  • sociolgico datam dos anos 70, uma dcada de crise e de profunda crtica social, no seguimento alis da dcada anterior. Foi um perodo de renascimento das grandes discusses tericas.

    Os autores mais significativos desta abordagem foram os socilogos britnicos Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young (1975; 1981), responsveis pela obra fundamental The new criminology, que deu nome corrente da nova criminologia ou criminologia radical. Segundo Taylor, Walton e Young, o desvio deve ser analisado de forma materialista e histrica: materialista porque deve ser analisado o contexto material no qual surge o desvio; histrica poque se deve relacionar o desvio com a evoluo histrica dos modos de produo.

    Esta perspectiva tem sido fortemente criticada por autores positivistas que argumentam ser este tipo de abordagem mais uma ideologia do que uma teoria cientfica. Da mesma forma que a teoria do labeling foi criticada por se limitar a explicar o processo da rotulagem social e no os comportamentos desviados, tambm se apontou perspectiva crtica o facto de se ter centrado na explicao da gnese das leis e no funcionamento das instituies de controle e ter negligenciado neste processo a explicao dos comportamentos desviados.

    Outro tipo de crtica relativa nfase dada por esta corrente s questes de classe e ao poder econmico, quando existem outras fontes de conflito social, com base no gnero, idade ou nas diferenas tnicas (Marshall Clinard e Robert Meir citados em Rubington, Weinberg 1995:279-280). Efectivamente, a perspectiva crtica aborda estas questes, mas considera-as como sendo dependentes da infra-estrutura econmica.

    Como perspectiva de conflito que , torna-se mais plausvel quando na sociedade no h claramente um consenso quanto definio do que sejam comportamentos ou pessoas desviados. Como notam Marshall Clinard e Robert Meir (citados em Rubington, Weinberg 1995:280), existem leis que beneficiam claramente toda a sociedade (como sejam as leis contra homicdios), e algumas acabam por proteger mais as classes trabalhadoras do que as classes capitalistas (segundo Clinard e Meir, as leis que penalizam os roubos e os assaltos so disso exemplo).

    1.2.2.3. Constructivismo SocialA afirmao de que a realidade social socialmente construda pode ser subscrita, num sentido amplo, por todos os socilogos, independentemente do seu posicionamento terico. Ao falarmos aqui em constructivismo social estamos a referir-nos a correntes tericas cuja ideia central e geradora a de que as pessoas criam activamente a sociedade.

    Os autores que introduziram formalmente esta perspectiva foram Peter Berger e Thomas Luckmann, com a obra The social construction of reality, publicada nos EUA em 1966 (Berger, Luckmann 1999; Corcuff 1997). Ambos os socilogos foram alunos

    15

  • de Albert Schutz, considerado o pai da sociologia fenomenolgica e um dos mentores da teoria do labeling.

    Berger e Luckmann (1999) defendem que a sociedade uma produo humana e o Homem uma produo social. Para estes socilogos, a sociedade ao mesmo tempo uma realidade objectiva e subjectiva. objectiva porque exteriorizada, relativamente aos actores sociais que a produzem, e objectivada, sendo constituda por objectos autnomos dos sujeitos sociais. uma realidade subjectiva porque interiorizada atravs da socializao.

    Quando Berger e Luckmann publicaram The social construction of reality a teoria do labeling estava em plena expanso. Mas em razo do seu prprio desenvolvimento as vozes crticas cedo comearam a surgir no interior da teoria. As de John Kitsuse e de Malcolm Spector foram duas delas.

    Embora a teoria do labeling tenha defendido que o desvio s desvio quando assim reconhecido socialmente, acabou por no pr em causa essas mesmas definies, isto , no questionou porque que certos comportamentos eram definidos como desvio e outros no, e desenvolveu a sua construo terica volta das definies de desvio socialmente estabelecidas. A perspectiva do labeling preocupou-se fundamentalmente em explicar o processo pelo qual o rtulo de desvio era afixado aos indivduos. Para Kitsuse e Spector a questo que dever ser colocada , antes de mais, saber porque que algumas situaes so consideradas problemas sociais e outras no. O que pretendem explicar o surgimento do prprio rtulo de problema social. Segundo estes autores, somente atravs desta problematizao sociolgica ser possvel chegarmos a uma teoria social dos problemas sociais.

    A condio objectiva do problema social , portanto, posta de lado pela perspectiva constructivista, pois esta no essencial para a existncia de um problema social.

    a definio subjectiva do problema social que se revela essencial para a existncia do mesmo e como tal s esta deve ser investigada pelos socilogos. Problemas como a violncia conjugal, o trabalho infantil, a discriminao das mulheres ou a poluio ambiental so exemplos de situaes que s se converteram em problemas sociais quando se estabeleceu com sucesso um movimento de reivindicao que definia estas situaes como problemas.

    Um problema social s se constitui em razo de todo um processo de reivindicao e reaco social. Daqui resulta que para a perspectiva constructivista importa identificar quem considera que existe uma situao inaceitvel e exige aco reparadora, ou seja, quem define uma dada situao, real ou virtual, como

    problema social; quais as razes que apresenta; quem reaje a esta pretenso e que tipo de dinmica se estabelece entre as duas partes(Rubington, Weinberg 1995).

    16

  • Somente aps o estudo emprico do processo de definio de cada problema social que podem ser elaboradas possveis solues para o mesmo.

    Esta posio constructivista, que Rubington e Weinberg consideram de posio subjectiva radical (1995:292) fortemente criticada, nomeadamente por aqueles que enfatizam a aplicabilidade da investigao no melhoramento da sociedade e que acusam esta perspectiva de menosprezar o sofrimento causado pelas situaes objectivas que secundarizam. Os constructivistas sociais argumentam em resposta que o conhecimento do processo de reivindicao de problemas sociais pode ser produtivamente aplicado s mais variadas situaes sociais: para que se d a devida ateno s condies objectivas causadoras de sofrimento necessrio antes de mais que exista quem reivindique eficazmente por elas (Joel Best citado em Rubington, Weinberg 1995:341-351).

    igualmente importante reconhecer que nem todos os autores constructivistas pem completamente de lado as condies objectivas dos problemas sociais, nem esta corrente afirma que no se devem estudar estas situaes objectivas: o que afirmam que este no deve ser o tipo de problema sociolgico a ser respondido pelos socilogos que pretendem estudar os problemas sociais enquanto definio de fenmenos sociais.

    Podemos exemplificar esta ideia com o fenmeno da delinquncia juvenil: segundo o constructivismo social, ou estudamos a delinquncia juvenil, investigando aspectos como as causas do comportamento desviado dos jovens, a evoluo dos casos de delinquncia, ou a sua distribuio pelos estratos scio-econmicos, ou ento estudamos o problema social da delinquncia juvenil, ou seja, como que a sociedade veio a reconhecer este fenmeno como problema social, e neste caso no essencial que se saibam as causas do comportamento desviado em questo.

    17

  • 1.3. SntesePerspectivas de estudo dos problemas sociais

    Perspectiva Definio de Problema Social Elemento Central

    Patologia Social Violao de expectativas morais Pessoas

    Desorganizao Social Falha no funcionamento das regras sociais Regras sociais

    Conflito de Valores

    Situao incompatvel com os valores de um grupo social Valores e Interesses

    Comportamento Desviado Violao de expectativas normativas Papis sociais

    Labeling Resultado da reaco social a alegada violao de normas ou expectativas Reaces sociais

    Perspectiva Radical

    Resultado da explorao da classe trabalhadora

    Relaes de classes sociais

    Constructivismo social

    Processo pelo qual grupos sociais reivindicam que uma dada situao um problema social

    Processo de reivindicao

    Fonte: Adaptado de Rubington e Weinberg (1995)

    18

  • 2. Perspectivas poltico-doutrinrias sobre os problemas sociais2.1. Os problemas sociais e a alterao do

    papel do EstadoOs modos como os problemas sociais tm sido encarados pela sociedade, bem como foram concebidos e implementados os sistemas para lhes dar resposta, evoluram significativamente ao longo da histria humana. Nas sociedades pr-industriais, em regra,

    (...) a legitimao da interveno (foi), quase exclusivamente, de ordem tico-religiosa, no se considerando que o Estado (tivesse) o dever de ajudar, nem o cidado o direito de esperar ajuda. O modelo de interveno (era) claramente assistencial (Carmo, 1999: 55).

    2.1.1. O Estado protectorA progressiva centralizao do poder nas mos do soberano que se registou concomitantemente com a desagregao da sociedade do Ocidente medieval, deu origem a um modelo de Estado a que alguns autores chamaram Estado Protector (Rosanvallon, 1984).

    Partindo da ideia de que o poder no uma simples capacidade de obrigar, mas que traduz a resultante da tenso entre tal capacidade e a vontade de obedecer (Moreira, 1997), poder-se- afirmar que a centralizao registada resultou de duas tendncias:

    um processo de concentrao da capacidade de obrigar por parte do poder poltico, de que foram expresso, entre outras, a criao dos exrcitos nacionais e a concentrao progressiva do poder tributrio;

    a emergncia de um consenso crescente sobre a vontade de obedecer, do sector que mais tarde se viria a chamar sociedade civil.

    O modelo de Estado que daqui resultou, privilegiou os fins de segurana e de justia em detrimento do fim de bem estar social que, por regra, foi remetido para a esfera da sociedade civil, ainda que por vezes se tenham observado incurses orientadoras dessa actividade, por parte do poder estatal, no tanto por via directa mas por intermdio de aces das casas reais e da aristocracia6.

    ________________________________6 Em Portugal, registam-se diversos exemplos desse tipo de intervenes, sobretudo a partir do sculo XV, de que o exemplo mais significativo foi a criao de condies para a proliferao do movimento das Misericrdias (Tavares, 1989: 267 e sgs).

    19

  • O Estado Protector

    Para garantir a eficincia do Estado Protector, o prncipe recorreu a dois tipos de pessoas:

    aos polticos profissionais e semi-profissionais que actuavam ao seu servio sendo elementos da sua confiana.

    aos funcionrios profissionais que pouco a pouco foram aumentando na Europa, em funo da progressivamente maior complexidade dos problemas que ao Estado competia resolver. Assim se passou no campo da administrao financeira, da tcnica guerreira e da actividade jurdica, em que o profissionalismo especializado tomou o lugar do amadorismo polivalente. Iniciou-se deste modo e simultaneamente, o predomnio do absolutismo do prncipe sobre os feudos e a lenta abdicao que o mesmo prncipe faz da sua autocracia, em favor dos funcionrios profissionais, cujo auxlio lhe era indispensvel para vencer o poder feudal.

    Apesar da complexificao crescente descrita por Max Weber, a verdade que o aparelho que serviu de suporte ao Estado Protector era de pequena dimenso, com uma organizao difusa e com um sistema de deciso pouco profissionalizado, se o compararmos com as modernas administraes pblicas.

    2.1.2. O Estado ProvidnciaCom a revoluo industrial e a emergncia de problemas econmicos e sociais que da resultaram, o Estado foi chamado a assumir funes

    20

    Desagregao da sociedade feudal

    Concentrao da capacidade de obrigar

    pelo poder poltico

    Maior consenso na vontade de obedecer por

    parte da sociedade civil

    Estado Protector

    Objectivos:. Produzir segurana. Reduzir a incerteza

    Fins dominantes do Estado:. Segurana. Justia

    Caractersticas dominantes do aparelho de Estado:. Pequena dimenso. Organizao relativamente difusa. Pilotagem centralizada

  • de regulao e de orientao progressivamente maiores, sobretudo nas reas da poltica econmica e social, tendo emergido a conscincia crescente de que o Bem-Estar constitua um fim do Estado, a par dos referidos anteriormente.

    Para realizar tal finalidade, o seu aparelho administrativo teve de assumir uma dimenso progressivamente maior, com uma organizao cada vez mais complexa7 e uma pilotagem progressivamente mais profissionalizada8.

    As tendncias para a dimenso crescente da Administrao Pblica e para a assuno de um papel cada vez mais intervencionista na tentativa de resoluo dos problemas econmicos e sociais, tiveram como resultado o aumento das despesas pblicas e, naturalmente, da carga fiscal para lhes fazer face.

    este o quadro geral em que se inscreve a polmica, permanente desde h dois sculos, entre as correntes que advogam o dever do Estado em intervir na resoluo dos problemas sociais e econmicos e as que defendem que tais problemas seriam melhor resolvidos pela sociedade civil.

    O Estado Providncia________________________________7 A complexidade da organizao pode ser observada atravs de trs indicadores: a instaurao de mais patamares hierrquicos, diferenciando crescentemente os papis de mando e de obedincia, a diviso de trabalho, num processo de crescente especializao funcional, e o aumento de sistemas de regulamentao.8 Exemplos recentes desta tendncia so, o aumento das qualificaes formais pedidas nos concursos de ingresso funo pblica e o peso crescente da formao complementar como parmetro de avaliao nos concursos de acesso.

    21

    Revoluo industrial

    Crescimento e radicalizao das funes do Estado

    Problemas econmicos Problemas sociais

    Estado Providncia

    Objectivos:. Produzir segurana. Reduzir a incerteza. Promover a regulao e a orientao scio-econmica

    Fins dominantes do Estado:. Segurana. Justia. Bem estar

    Caractersticas dominantes do aparelho de Estado:. Dimenso progressivamente maior. Organizao progressivamente mais complexa. Pilotagem progressivamente mais profissionalizada

  • 2.2. As perspectivas liberaisDuma forma simplificada pode dizer-se que a perspectiva liberal foi resultado de uma lenta sedimentao de natureza econmica, doutrinria e poltica que ocorreu na Europa a partir do sculo XV.

    Gnese do liberalismo

    2.2.1. GneseCom a expanso europeia e a consequente diversificao de mercados e acumulao de capital, a burguesia consolidou-se como classe social.

    Paralelamente a este processo, a ordem poltica foi tambm ela profundamente alterada, como atrs foi referido, apresentando como traos dominantes, a centralizao do Poder real e o consequente enfraquecimento da velha aristocracia, apoiada na ascenso da burguesia.

    Acompanhando esta dupla tendncia e escorando-a ideologicamente, foram surgindo diversas doutrinas econmicas e sociais, como o mercantilismo, a fisiocracia e todo um corpo filosfico que procurou

    22

    Movimentos delegitimao doutrinria

    Gnese econmica Gnese poltica

    Expanso(sculos XV e XVI)

    (implica diversificaode mercados;

    acumulao de capital)

    Centralizao dopoder real

    Industrializao Guerras religiosas(sculo XVII)

    Nova ordemeconmica

    (consolidao daburguesia)

    Consolidao danova ordem poltica(o Estado-Nao aoservio da economia

    subsidiada)

    Liberalismo

    . Mercantilismo

    . Fisiocracia

    . Movimentosde reacoaos excessosdo Prncipeque culminamna Revoluofrancesa

  • limitar o despotismo do prncipe, que veio a criar condies para a revoluo francesa.

    O liberalismo deve ser compreendido no seu sentido mais global (como uma) doutrina baseada na denncia de um papel pais activo do Estado e na valorizao das virtudes reguladoras do mercado (Rosanvallon, 1984: 49).

    2.2.2. As teses esta a tese defendida por grande parte dos principais autores do liberalismo positivista clssico, como Adam Smith, Jeremias Bentham, Burke, Humbold, do liberalismo utpico como Paine e Godwin e do neoliberalismo como Robert Nozick ou John Rawls. Em todos estes autores encontramos uma forte crtica excessiva dimenso do Estado, variando, no entanto, nos critrios definidores das suas funes e na definio do seu campo de actuao. o caso, mais recente, da corrente neoliberal , que deve ser entendida como uma crtica, da crtica economia de mercado.

    Para discutir esta questo, Rosanvallon (1984) parte da teoria das internalidades (Wolf, 1979). De acordo com esta teoria, a aco do Estado tem, com frequncia, efeitos imprevistos (internalidades), que pervertem as intenes de justia e de promoo do Bem-Estar das suas polticas. Um exemplo deste tipo de efeitos perversos o do ciclo vicioso das despesas pblicas descrito por este autor:

    O crescimento das necessidades dos cidados (econmicas, sociais, de segurana, etc.), implica uma presso sobre o Estado no sentido de as colmatar (aumento da procura de Estado).

    O aumento da procura de Estado, obriga este a concentrar recursos e articul-los para dar resposta s necessidades (aumento da oferta de Estado).

    Para que a oferta de Estado cresa, este obrigado a fazer mais despesas pblicas.

    O aumento das despesas pblicas determina um aumento dos impostos para lhes fazer face.

    O aumento da carga fiscal sobrecarrega os cidados o que, naturalmente, lhes aumenta as necessidades e a procura de Estado, e assim sucessivamente.

    No que respeita aos problemas sociais e econmicos, o pensamento liberal tem evoludo, ainda que partilhe de uma ideia comum: o mercado melhor regulador que o Estado e, por consequncia, os problemas scio-econmicos devem ser atacados predominantemente pela sociedade civil.

    Em suma, a posio liberal face aos problemas scio-econmicos pode resumir-se em dois aspectos:

    A maior parte dos problemas sociais e econmicos resultam de uma excessiva interveno do Estado

    A resoluo dos problemas sociais e econmicos deveria ser deixada aos mecanismos (naturais) de auto-regulao do mercado.

    23

  • 2.2.3. As limitaesEm traos gerais os crticos perspectiva liberal apontam-lhes as seguintes limitaes (Rosanvallon, 1984):

    Os limites da aco do Estado so, em regra, insuficientemente operacionalizados.

    Normalmente a crtica aco do Estado bem feita, nomeadamente no que respeita aos efeitos perversos da burocracia, baseada na teoria das internalidades. No entanto, os efeitos imprevistos do funcionamento do mercado que condicionam fortemente a emergncia e o agravamento dos problemas scio-econmicos no so convenientemente equacionados.

    De acordo com Suzanne de Brunhoff (1987), a conjuntura vista como um cenrio de guerra econmica o que implica, por parte dos decisores polticos, uma atitude de nacionalismo econmico. Neste contexto, as funes econmicas e sociais do Estado procuram atingir dois objectivos:

    reforar a frente de combate econmica, apostando em polticas de obteno de encomendas no estrangeiro e em estratgias de financiamento e de proteccionismo dos sectores sociais mais fortes, como os segmentos que apostam no desenvolvimento tecnolgico e nas exportaes;

    ajudar a tratar dos feridos da guerra econmica (pobres e novos pobres, grupos mais atingidos como os jovens, as mulheres, os idosos, os imigrantes e os desempregados de regies industriais sinistradas).

    Neste cenrio, o reforo da frente de combate normalmente mais forte que a ajuda ao tratamento dos feridos da guerra econmica, criando-se um ambiente tendente a retirar os direitos sociais e econmicos aos cidados.

    2.3. As perspectivas marxistas2.3.1. GneseO pensamento marxista enquadra-se historicamente na Europa do sculo XIX, em plena revoluo industrial, na tentativa de analisar a sociedade coeva e de propor solues para as disfunes sociais que ento se viviam.

    A abundante obra de Marx (1818-1883) reflecte isto mesmo, no devendo ser entendida como um sistema fechado mas, pelo contrrio, uma teoria em permanente evoluo, por vezes mesmo contraditria, contrariamente imagem que as correntes ortodoxas posteriores fizeram passar.

    Para isso muito contribuiu o prprio percurso existencial de Karl Marx: nascido e criado numa famlia de origem judia, cujo pai se viu na contingncia de se baptizar para no ser alvo de medidas discriminatrias anti-semitas (Mclellan, 1974: 5), fez a sua formao

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  • inicial na Alemanha, onde nasceu, tendo vivido sucessivamente exilado em Frana, na Blgica e no Reino Unido.Na Alemanha onde viveu at 1843, analisou e criticou a filosofia alem do seu tempo, tendo sido profundamente influenciado pelo pensamento de Hegel e pelo convvio com os Jovens Hegelianos, radicais seus amigos na Universidade (Mclellan, 1974:10).

    Em Frana, onde chegou exilado em Outubro de 1844, Marx continuou a trabalhar nos seus escritos filosficos e econmicos Correspondncia de 1843, Sobre a questo judaica (1843-44), Para uma crtica da filosifia do Direito de Hegel: Introduo (1844), Manuscritos econmicos e filosficos (1844), Comentrios a O rei da Prssia e a reforma social (1844), A sagrada famlia (1844-45) tendo aprofundado o pensamento de socialistas franceses e comeado a estudar a economia poltica britnica, nomeadamente a obra de Adam Smith e David Ricardo, atravs de tradues francesas.

    Em Bruxelas, para onde foi deportado em Janeiro de 1845 e permaneceu durante trs anos, continuou os seus estudos de economia e comeou uma colaborao permanente com Engels9, que se manteve at ao fim da vida. So dessa poca as Teses sobre Feurbach (1845), A ideologia alem, (1846) e A misria da filosofia (1847), este ltimo em rplica ao livro de Proudhon intitulado A filosofia da misria, em que publicita pela primeira vez as suas teses sobre o materialismo histrico10.Regressado a Paris em 1848, onde soube da publicao em Londres do Manifesto comunista, que havia escrito com Engels no ano anterior para a Liga Comunista, l residiu por uns meses a convite do governo provisrio formado aps a abdicao do rei Lus Filipe, tendo voltado Alemanha devido conjuntura de maior liberdade poltica que ento se vivia, onde ficou por pouco tempo, como jornalista, tendo sido de novo expulso, sucessivamente para Paris e para Londres, em Agosto de 1848.

    Em Londres, onde viveu at sua morte (1883), escreveu, entre outros, A luta de classes em Frana (1850), O 18 de Brumrio de Lus Bonaparte (1850), Crtica da Economia Poltica (1859) e Crtica do Programa de Gotha (1875), continuando as suas investigaes econmicas, que culminaram com a publicao da obra minumental em trs volumes, O capital (1865, 1867 e 1869/79).A influncia da gigantesca obra de Marx foi enorme na evoluo do pensamento filosfico11, econmico, sociolgico e poltico12 do sculo XX, bem como no desenrolar dos acontecimentos que marcaram a sua histria, pelas foras que congregou13 e pelas reaces que suscitou14.

    ________________________________9 A colaborao entre os dois amigos havia tido j um primeiro episdio, em Paris, com o trabalho A sagrada famlia.10 Lassalle, o proeminente dirigente socialista alemo dos anos sessenta, disse a respeito do livro que, na sua primeira metade, Marx mostrava-se um Ricardo tornado socialista, e na segunda parte um Hegel tornado economista (Mclellan, 1974:63).11 Nomeadamente no desenvolvimento do materialismo dialctico.12 Cfr. Aron, 1994, op.cit. A sua principal contribuio foi o desenvolvimento da abordagem materialista histrica e a sua aplicao anlise do capitalismo.13 As tentativas de aplicar as concepes marxistas nas estratgias de conquista e exerccio do Poder foram muitas e diversificadas, como se sabe, podendo agrupar-se em dois grandes conjuntos: aquelas que ocorreram em sociedades com alguma estrutura industrial, de que os exemplos mais significativos foram o sovitico e os regimes comunistas da Europa de Leste, e as que se observaram em sociedades dominantemente pr-industriais, cujo modelo dominante foi o chins.14 As reaces vieram de todos os quadrantes polticos, tanto de regimes totalitrios, como de regimes demo-liberais.

    25

  • 2.3.2. As tesesO pensamento de Marx relativamente ao papel do Estado no idntico ao longo da sua obra, nela se encontrando

    desde uma posio idealista defendida na Gazeta Renana, em 1843, em que descrevia a possibilidade da existncia de uma associao de homens verdadeiramente livre num estado idealizado, concebido, com base no modelo hegeliano, como uma incarnao da razo (Mclellan, 1974: 293),

    passando pela afirmao de que o Estado era uma expresso da alienao humana semelhante religio, ao direito e moralidade (Manuscritos de 1844), um biombo que esconde as verdadeiras lutas inter-classes, assumindo-se como instrumento da classe dominante (Ideologia Alem), uma mera comisso de gesto dos assuntos da burguesia (Manifesto),

    at afirmao de que poderia desempenhar, apesar de todas as crticas, algum papel positivo em favor das classes oprimidas (A guerra civil em Frana), ou mesmo que poderia ser, quando em situao de ditadura do proletariado, instrumento de mudana para a sociedade comunista (Crtica do Programa de Gotha).

    Apesar desta aparente ambivalncia, parece ser constante o reconhecimento do importante papel que cabe ao Estado como instrumento da classe dominante (seja ela a burguesia ou o proletariado), nas funes de regulao e orientao da sociedade global.

    Se a esta constatao acrescentarmos que, na perspectiva marxista, os problemas econmicos e sociais so resultantes, em ltima anlise, da situao de explorao de uma classe em benefcio de outra num cenrio de permanente luta de classes, poderemos entender as duas estratgias defendidas por esta corrente, consoante detenha ou no o controle do Estado:

    quando o Estado no controlado pela classe trabalhadora15, s organizaes desta classe cabe fazer presso16, no sentido de que o poder poltico lhes faa concesses, em nome de uma paz social ameaada, no sentido de prevenir e atenuar os problemas sociais; uma vez que a raiz dos problemas est no sistema de dominao, qualquer reivindicao de soluo para os problemas referidos deve ter em ateno, ainda que a longo prazo, a conquista do poder pela classe trabalhadora;

    quando o Estado controlado pela classe trabalhadora, deve centralizar a definio de rumos e a articulao de meios para fazer face aos problemas sociais e econmicos; neste sentido, deve-lhe competir um papel dominante no planeamento e organizao da economia e da proteco social17.

    ________________________________15 expresso inicial proletariado, foi sendo preferida a designao mais populista classe trabalhadora, na qual poderiam sentir-se identificados vrios grupos progressistas de origem burguesa como aqueles que Gramsci designava intelectuais orgnicos.16 Atravs dos grupos de interesse ou de partidos que a representem.17 Mesmo no caso singular do sistema titista de socialismo jugoslavo, a concentrao de poder foi um facto, o que alis, parece ter sido um sistema eficaz para evitar a balcanizao do pas que voltou a verificar-se posteriormente.

    26

  • 2.3.3. As limitaesCorrendo o risco de simplificar em demasia as crticas que tm sido feitas perspectiva marxista de ver os problemas sociais, podemos agrup-las em dois conjuntos:

    do ponto de vista doutrinrio as que sublinham que, ao privilegiar a luta de classes como instrumento de interveno, o marxismo provocou danos elevados na coeso social, lanando as classes sociais umas contra as outras, gastando considerveis energias sociais necessrias ao crescimento econmico e ao desenvolvimento social, em nome da igualdade e em detrimento da liberdade.

    Do ponto de vista poltico, as que o acusam de falta de eficcia e de eficincia uma vez que, nos pases em que foram aplicadas as concepes marxistas de ataque aos problemas sociais e econmicos, os resultados obtidos foram muito inferiores aos previstos (ineficcia) e, os avanos conseguidos, foram-no frequentemente a custos econmicos e sociais muito elevados (ineficincia), uma vez que exigiram uma mquina estatal excessivamente pesada.

    2.4. As perspectivas conciliatriasSe nos reportarmos aos trs valores centrais da Revoluo Francesa, a Liberdade , a Igualdade e a Fraternidade , observa-se que os dois primeiros foram claramente apadrinhados pela perspectiva liberal (liberdade) e marxista (igualdade), um em detrimento do outro. Quanto ao valor da Fraternidade, foi remetido, em regra, para a esfera da sociedade civil, no sendo considerado uma questo poltica to relevante como a da Liberdade ou da Igualdade.

    2.4.1. Os fundamentosOs fundamentos da interveno do Estado relativamente aos problemas sociais e econmicos podem encontrar-se na constatao de efeitos imprevistos (positivos18 ou negativos19) do funcionamento do mercado a que Pigou, em 1920, chamou externalidades (cit in Rosanvallon, 1984: 49).

    2.4.2. Os pilares do Estado IntervencionistaA expresso Estado-Providncia surge na Frana do segundo imprio, criada por pensadores liberais hostis ao aumento das atribuies do Estado, mas igualmente crticos em relao a uma filosofia individualista demasiado radical (Rosanvallon, 1984: 111).

    Procurava-se com esta designao fazer referncia a um modelo de Estado intervencionista, que na Alemanha da dcada de 1880 era apelidado de Estado Social e no Reino Unido, j nos anos 40 do sculo

    ________________________________18 Dois exemplos: o desenvolvimento de novos materiais de confeco a partir da investigao espacial (Toffler, 1970) e o desenvolvimento da indstria de transportes navais a partir da criao do contentor (Drucker, 1985).19 Por exemplo: a diminuio da camada de ozono em virtude da produo de aerossis, os estragos ambientais causados pela energia nuclear, pela implantao de sistemas de monocultura ou pela excessiva concentrao urbana.

    27

  • XX, passou a ser crismado de Estado de Bem-Estar.

    2.4.2.1. O primeiro pilar: o seguro obrigatrio de Bismarck

    O primeiro passo para a construo do modelo de Estado intervencionista foi dado na Alemanha, nas dcadas de 1870 e 1880, por iniciativa dos governos do chanceler Bismarck, em resposta presso conjugada, do movimento trabalhista alemo devida situao de alto risco em que se encontravam os trabalhadores da indstria e da aco de grupos de acadmicos20 e polticos21 que se juntaram, para denunciar os malefcios das opes liberais e para defender uma interveno do Estado no combate aos problemas sociais.

    A resposta poltica a tal conjuntura traduziu-se num conjunto de leis que procuraram melhorar a proteco social dos trabalhadores atravs de mecanismos de seguro obrigatrio, numa altura em que os sistemas de proteco eram meramente mutualistas. As leis estruturantes de tal sistema foram as seguintes:

    Lei da responsabilidade limitada dos industriais em caso de acidentes de trabalho (1871)

    Lei do seguro obrigatrio (1881)

    Leis do seguro-doena (1883), dos acidentes de trabalho (1884) e do seguro velhice-invalidez (1889), que aplicaram a lei de 1881 a essas trs reas de risco social.

    2.4.2.2. O segundo pilar: a teoria intervencionista de Keynes

    A segunda contribuio que permitiu legitimar e estruturar o intervencionismo do Estado foi dada pelo economista John Maynard Keynes que

    no era um socialista, embora partilhasse de muitas das preocupaes de Marx e dos sociais democratas. Como Marx, Keynes pensava que o capitalismo possua elementos irracionais, mas acreditava que estes podiam ser controlados de forma a defender o capitalismo de si prprio (...) (Este autor) mostrou a forma como o capitalismo de mercado podia ser estabilizado atravs da gesto da procura e da adopo de um sistema de economia mista (Giddens, 1999: 19).

    Os princpios defendidos por este autor, aplicados para combater a crise de 1929 pelo Presidente americano Franklin Roosevelt na poltica do New Deal, basearam-se numa vigorosa interveno estatal atravs de investimentos pblicos que criaram muitos empregos. Ao faz-lo, aumentaram o poder de compra das famlias o que provocou um crescimento da procura, revitalizou a economia e, por consequncia, reduziu os problemas sociais e econmicos.

    ________________________________20 Ex: o grupo cujos participantes ficaram conhecidos por socialistas de ctedra (Wagner, Schaeffle e Schmoller) que, em 1872, declaram guerra ao liberalismo num documento que ficou conhecido por Manifesto de Eisenach (Rosanvallon, 1984:118).21 Como Ferdinand Lassalle, uma das principais figuras do socialismo alemo.

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  • 2.4.2.3. O terceiro pilar: o relatrio BeveridgeO intervencionismo estatal para dar resposta a problemas sociais teve, no Reino Unido, razes muito anteriores ao sculo XIX, podendo-se situ-lo no sculo XVI, com a aprovao das Leis dos pobres, no reinado de Isabel I.

    Com esse conjunto de leis foram institudas diversas medidas de proteco aos indigentes de acordo com a sua condio face ao trabalho (1601), proibindo as parquias de se livrarem deles e obrigando-as a dar-lhes trabalho (1662).

    , em plena segunda guerra mundial (1942), com o Relatrio Beveridge, que se lanam as bases recentes dos sistemas de segurana social, de acordo com quatro princpios:

    O princpio da universalidade (de populao-alvo), segundo o qual a proteco social seria devida a toda a populao, qualquer que fosse a sua situao face ao emprego ou ao rendimento.

    O princpio da unicidade (de inputs do sistema), pelo qual uma nica quotizao cobriria todos os riscos de privao de rendimento.

    O princpio da uniformidade (de outputs do sistema), que preconizava a uniformidade das prestaes, independentemente do rendimento dos beneficirios.

    O princpio da centralizao (organizacional), que obrigava criao de um sistema nico de proteco social (sade e segurana social) para todo o pas.

    O relatrio Beveridge constituiu um claro avano relativamente ao conjunto de medidas estipuladas por Bismarck, uma vez que inclua, sob proteco do estado, diversos grupos que aquele sistema no contemplara, como as mulheres domsticas, as crianas e outros inactivos.

    2.4.3. A situao actualNo perodo de vinte e cinco anos que se seguiu ao termo da segunda guerra mundial o modelo intervencionista, resultante dos trs tipos de contribuies acabados de referir, foi aplicado com bastante xito nos pases mais industrializados, auxiliado pela conjuntura propcia conjugao de esforos de reconstruo e de expanso econmica.

    Os ingredientes bsicos que proporcionaram consistncia poltica a este modelo de Estado intervencionista, foram trs:

    1. o pleno emprego como objectivo estratgico,2. a organizao da proteco social em torno de um sistema de

    servios universais ou quase universais para satisfao das necessidades bsicas e

    3. o empenho em manter um nvel nacional mnimo de condies de vida (Mishra, 1995: xi).

    Com as duas crises do petrleo ocorridas nos anos setenta a situao econmica mundial alterou-se drasticamente, iniciando-se um perodo de

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  • recesso que teve dois efeitos conjugados nos sistemas de proteco social:

    por um lado, aumentou a procura de Estado, devido ao crescimento do desemprego provocado pela recesso econmica;

    por outro lado, a diminuio das contribuies para o sistema de segurana social, em funo da crise e do envelhecimento demogrfico dos pases industrializados, condicionou a reduo da oferta de Estado, para fazer face s necessidades.

    Esta situao fez perder pouco a pouco a confiana depositada no modelo de Estado-Providncia22, propiciando o estabelecimento de polticas neoconservadoras em vrios pases, como se observou nos Estados Unidos com Ronald Reagan e no Reino Unido com Margaret Thatcher, fortemente aliceradas nas doutrinas neoliberais.

    Do ponto de vista do modelo neoconservador, sendo grande parte dos problemas sociais decorrentes de uma excessiva despesa pblica , a sua soluo passava pela reduo da oferta de Estado, operacionalizada numa poltica de privatizaes, tanto da economia como dos servios sociais.

    O excessivo custo social das medidas implementadas, e a sua ineficcia23 conduziram a uma reaco por parte das sociais-democracias, no sentido de adaptar o modelo de Estado Providncia aos novos desafios. Foi neste contexto que comearam a emergir novas propostas polticas que colheram a aceitao da opinio pblica eleitoralmente manifestada24.

    ________________________________22 A perda de confiana na aco do Estado (e no apenas do Estado-Providncia) no se deveu apenas s crises petrolferas: teve a ver com a situao de anomia provocada pela mudana acelerada que causou um autntico choque do futuro (Toffler, 1970, 1980, 1991), que afectou a sua credibilidade em dois aspectos: as tendncias para a globalizao e a localizao (vide captulo sobre as questes econmicas) puseram em causa o conceito tradicional de soberania; a crise do sistema organizacional burocrtico questionou as administraes pblicas como principais instrumentos da realizao dos fins do Estado (Carmo, 1985, 1997; Bilhim, 2000; S, 1997).23 a administrao Reagan chegou ao poder com a promessa de reduzir o dfice oramental. O que aconteceu foi que, no tempo de Reagan, o dfice oramental elevou-se como nunca. No Reino Unido, tambm o advento do governo Thatcher coincidiu com um crescimento, e no um decrscimo das despesas pblicas (...) A estrutura dos servios sociais universais, nomeadamente a educao, a sade e a segurana social, tambm se manteve em grande parte intacta, quer nos Estados Unidos quer no Reino Unido, apesar das proclamaes neoconservadoras sobre privatizao e retraco da assistncia social (Mishra, 1995:7).24 Foram exemplos desta tendncia, a vitria de Clinton nos Estados Unidos, bem como a de Tony Blair no Reino Unido, com a sua poltica de terceira via (Giddens, 1999).

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  • 2.5. Em Portugal2.5.1. A perspectiva intervencionista na

    evoluo constitucionalConstituio Caractersticas

    Constituio de 1822 Pretende criar instituies liberais e democrticas No passou de um projecto pois o seu suporte social era

    dbil (burguesia mercantil), os inimigos, muitos e, a secesso do Brasil, uma questo urgente, que remeteu a organizao das FESE para segundo plano

    Carta Constitucionalde 1826

    Sendo conservadora mantm as FESE numa perspectiva liberal

    Constituio de 1838 Mantm a concepo de uma monarquia liberal assente na aliana do Rei com a burguesia (Jorge Miranda)

    Constituio de 1911 No altera a perspectiva liberal das funes do Estado, condimentando-as de laicismo, anti-clericalismo e municipalismo.

    D grande realce poltica de Educao.

    Constituio de 1933 Corporativista, apresenta um cariz muito mais intervencionista, pretendendo ser a pedra de toque em que as FESE so sensivelmente maiores e mais complexas.

    Explicita princpios de proteco famlia, incumbncias econmicas do Estado, organizao de interesses sociais, da empresa e do direito ao trabalho.

    Constituio de 1976 influenciada pelas doutrinas marxistas e do Estado-Providncia.

    Consolida medidas socializantes das FESE Identifica trs sectores de propriedade (pblico,

    cooperativo e privado) Consagra direitos, liberdades e garantias democrticas Explicita princpios de proteco aos cidados e aos

    trabalhadores em particular, em diversos domnios das FESE: Educao, Sade, Segurana Social, Habitao, Trabalho, etc.

    Evoluo das funes econmicas e sociais do Estado nasConstituies Portuguesas

    A figura procura registar algumas caractersticas das constituies portuguesas desde 1822, para da se poder ter uma ideia sobre a evoluo doutrinria quanto ao entendimento das funes econmicas e sociais do Estado. A partir da sua leitura pode-se observar:

    As constituies do perodo monrquico foram todas elas marcadas por concepes liberais, no modo como olhavam os problemas sociais e econmicos, considerando no ser dever do Estado intervir na sua resoluo.

    A primeira constituio republicana, de 1911, mantm a tradio liberal. No entanto, o laicismo e o anti-clericalismo dominante, tiveram como consequncia a assuno da educao como dever do Estado , sendo-lhe dado um realce que as anteriores constituies no apresentavam.

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  • A constituio de 1933 intervencionista, num quadro doutrinrio corporativista. Era permitido e incentivado o papel da Igreja Catlica na poltica social. O modelo de interveno social preconizado foi marcado pela viso bismarckiana, separando claramente os subsistemas de previdncia (de seguro obrigatrio) e de assistncia (em que ao Estado competia uma funo supletiva em relao interveno da sociedade civil).

    A constituio de 1976 foi tambm intervencionista, mas fortemente influenciada pela perspectiva marxista, nomeadamente no que respeitava ao controlo da actividade econmica, social e poltica. O modelo beveridgeano de prestaes universais foi consagrado atravs da criao de um sistema integrado de segurana social, de um servio nacional de sade e da responsabilidade do Estado pelo sistema educativo, ainda que em cooperao com a sociedade civil.

    2.5.2. A perspectiva intervencionista na evoluo do planeamento

    Outro indicador interessante, revelador do modo como evoluiu o interesse poltico pelos problemas sociais e econmicos a sua presena no planeamento. Isto porque a funo planeamento est presente em todos os sistemas polticos contemporneos, expressando um quadro normativo que pretende traduzir o querer comum dos respectivos povos.

    Assim, pela anlise dos sucessivos planos, possvel inferir as representaes dos decisores polticos sobre o modo como concebem as funes econmicas e sociais do Estado e, em particular, como concebem o seu papel relativamente resoluo dos problemas sociais e econmicos.

    Em Portugal, a primeira experincia de planeamento, no sentido que hoje lhe damos, parece ter surgido apenas em 1935, com a Lei 1914 de 24 de Maio, que ficou conhecida por Lei da Reconstituio Econmica. Um outro aspecto de sublinhar foi o facto de permitir estruturar a realizao de grandes obras de infra-estruturas, dado o seu horizonte temporal ser de 15 anos.

    O Primeiro Plano de Fomento (1953-58), manteve o intervencionismo econmico que, sendo uma novidade e um salto de qualidade no caso portugus, preconizava uma interveno econmica do Estado bastante modesta se a compararmos com o que se praticava na Europa de ento.

    O Segundo Plano de Fomento (1959-64), apresentou pela primeira vez o conceito de Plos de Desenvolvimento, regies onde se iriam concentrar recursos para promover a modernizao do pas. Para suportar financeiramente esse esforo foi ento criado o Banco de Fomento Nacional.Com o Plano Intercalar (1965-67), surgiu a necessidade de se proceder realizao de estudos de conjuntura para calcular se o acrscimo de despesas com a defesa obrigaria a recorrer a emprstimos externos (estava-se em pleno esforo de guerra do Ultramar).Observa-se pela primeira vez, neste documento, um conjunto de preocupaes de natureza social, nomeadamente no que respeita

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  • correco dos desequilbrios regionais e definio de uma poltica de repartio de rendimentos.

    A interveno social e econmica do Estado portugus vista atravsde alguns marcos do planeamento

    Marcos Caractersticas

    Lei 1914 daReconstituionacional (24/5/35)

    Apenas contempla poltica financeiraBase dos planos seguintesComo tinha vigncia de 15 anos permitiu a realizao de gran-des obras de infra-estruturas.

    1 Plano deFomento(1953-58)

    Total dos investimentos previstos: 13.5 milhes de contos, 6 dos quais destinados ao Ultramar, correspondendo a 2% do PNB.Na mesma poca: 5 a 10 % na Irlanda, 10 a 15 % em Frana; 15 a 20 % no Reino Unido; 20 a 25% na Alemanha; 25 a 30 % na Sucia

    2 Plano deFomento(1959-64)

    Objectivos: Subida do PNB, subida do nvel de vida, incremento do emprego, melhoria da balana de pagamentos.Conceito-chave: Plo de desenvolvimentoCriao do Banco de Fomento Nacional para financiar progra-mas de mdio prazo (1959)

    Plano Intercalar(1965-67)

    Lanamento de estudos de conjuntura para indagar se o acrs-cimo de despesas militares obrigaria contraco de emprsti-mos externosProgressos metodolgicos na feitura do Plano.Comeam a registar-se, no prprio Plano, preocupaes sociais.

    3 Plano deFomento(1968-73)

    Consolidao dos progressos metodolgicosIncio do planeamento regional

    4 Plano deFomento(1974-79)

    Maior preocupao com a promoo socialPreocupao com o ordenamento do territrioSuspenso pela Revoluo

    Plano Econmicoe Social (1975)

    Medidas estratgicas para execuo dos trs objectivos da Revoluo (os trs Ds): Descolonizar, Democratizar e Desenvolver.Trs polticas bsicas: planeamento regional, descentralizao administrativa e subordinao do poder econmico ao poder poltico.Poltica de austeridade face ao 1 choque petrolfero (reduo das balanas comercial e de pagamentos).Polticas de combate ao desemprego, de estabilizao da inflao e de redistribuio de rendimentos.Suspenso em 11 de Maro de 1975.

    O Planeamento naConstituio daRepblica (1976)

    Ideias-fora (Ttulo III, 2 Parte):O plano um instrumento bsico para construir a sociedade socialista.A sua orientao , de facto, imperativa.Legitimao das regies Pano

    O Planeamento naConstituio daRepblica(Reviso de 1982)

    Instaurao da orientao de planeamento indicativo

    As melhorias registadas no Plano Intercalar aparecem consolidadas no Terceiro Plano de Fomento (1968-73), onde so explicitadas medidas de Planeamento Regional.

    No Quarto Plano de Fomento (1973-79), que foi suspenso pela Revoluo de 1974, j transparece uma maior preocupao com o ordenamento do territrio e com a promoo social.

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  • O primeiro esforo de planeamento aps revoluo regista-se no Plano Econmico e Social (1975) que, no entanto nunca entrou em vigor, em virtude da radicalizao poltica aps os acontecimentos do 11 de Maro25.

    Nesse plano eram contempladas diversas medidas de interveno econmica e social, a curto e mdio prazos, marcadas pelo combate ao desemprego, estabilizao da inflao e redistribuio dos rendimentos, defendendo uma poltica de austeridade para fazer face aos efeitos do choque petrolfero ocorrido em 1973. O planeamento regional, a descentralizao administrativa e a subordinao do poder econmico ao poder poltico eram defendidas como polticas estruturantes do plano.

    A Constituio de 1976, de acordo com a perspectiva marxista ento vigente, valorizou o Plano como instrumento bsico para construir a sociedade socialista (artigo 91), apresentando-o com uma natureza imperativa.

    Do que se acaba de referir, pode sublinhar-se que as preocupaes de intervencionismo econmico foram muito mais precoces que as sociais, correspondendo alis ao esprito do tempo em que os planos foram concebidos. Com efeito, s com o Plano Intercalar e com os Terceiro e Quarto Planos de Fomento que comeam a registar-se timidamente, tendo sido uma preocupao efectiva s aps a revoluo de 1974.

    ________________________________25 Uma das razes da suspenso do Plano foi o facto dele ter um cariz considerado demasiado reformista pelas foras polticas dominantes, ainda que respeitasse escrupulosamente os trs Ds do Programa do Movimento das Foras Armadas (descolonizao, democratizao e desenvolvimento). Os seus principais autores foram Melo Antunes, Victor Alves, Maria de Lourdes Pintasilgo, Rui Vilar e Victor Constncio.

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  • 3. Grandes problemas ambientais3.1. Gesto da gua

    3.1.1. IntroduoA gua uma das principais necessidades para a existncia de vida na Terra, constituindo conjuntamente com o ar um dos bens essenciais ao homem.

    Refira-se que, de toda a gua existente na Terra, apenas cerca de 3% doce e nem toda directamente utilizvel. Desta forma, considera-se que, de toda a gua existente na Terra, apenas 0,03% est facilmente acessvel ao consumo humano. Destes 0,03 % refira-se ainda que 52 % encontra-se em lagos, 38 % retida no solo, 8 % est na atmosfera sob a forma de vapor de gua, 1 % est acumulada na biomassa dos organismos e apenas 1 % est nos rios (Alves, 1998).

    Alm do facto da gua disponvel para consumo humano ser reduzida, os resduos resultantes das diferentes actividades do homem, ou seja, os efluentes de origem antropognica, so descarregados nos diferentes meios receptores existentes na Terra, em especial no meio aqutico.

    Os diferentes contaminantes que se podem encontrar na gua provm de diversos factores resultantes de, causas naturais (e.g. erupes vulcnicas), descargas pontuais de guas residuais e de resduos sem

    tratamento adequado ou poluio difusa, como por exemplo devido a escorrncias agrcolas.

    Esses contaminantes podem ser fsicos (e.g. slidos suspensos e temperatura), qumicos (e.g. metais pesados, hidrocarbonetos halogenados ou

    Bifenilos Policlorados PCBs) ou biolgicos (e.g. microrganismos patognicos).

    3.1.2. Disponibilidade de guaSegundo dados recentes, perto de 2 bilies de pessoas ainda no tm acesso a gua potvel e a sistemas de redes de abastecimento e mais de 1 bilio de pessoas no est servida com adequados sistemas de tratamento de gua (Gleick, 1996).

    provvel que a evoluo do consumo de gua na Europa se mantenha estvel at prxima dcada, embora no resto do mundo seja previsvel um aumento do consumo devido ao desenvolvimento econmico, crescimento da populao e aumento dos processos de irrigao. O aumento do consumo de gua de 1990 para 2050 projectado para um factor de 2,12 relativamente ao uso domstico, 2,37 relativamente ao uso industrial e 1,06 relativamente ao uso agrcola.

    A disponibilidade de gua apresenta ainda o maior problema em reas de escassez de gua onde rios e outros cursos de gua atravessam fronteiras de diferentes pases. Este facto ir ocasionar conflitos entre esses pases, que s podero ser evitados quando a distribuio da gua puder ser discutida em conjunto. Este problema um dos desafios que se colocam ao nvel da gesto da gua tendo em conta o

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  • desenvolvimento sustentvel (ver sub-captulo Instrumentos de Poltica de Ambiente). Portugal e Espanha so um bom exemplo onde esta questo se coloca.

    A quantidade de gua disponvel afectada pela sobre-explorao de aquferos e/ou pelo desvio de cursos de gua, originando a diminuio do seu caudal e modificando por sua vez a quantidade de gua disponvel.

    Face a toda esta problemtica igualmente previsvel um aumento na utilizao das fontes no convencionais de gua como a dessalinizao e a reutilizao da gua, essencialmente em pases com problemas de escassez de gua.

    3.1.3. Qualidade da guaSegundo dados da EEA (1995), apenas cerca de 4 % das guas residuais apresentam tratamento antes de serem descarregadas. previsvel que a quantidade de esgotos contaminados aumente e que as prticas de agricultura intensiva continuem, com a consequente utilizao excessiva de fertilizantes, originando a eutrofizao das zonas costeiras e a contaminao de aquferos. Esta contaminao dos aquferos pode tambm dever-se intruso salina resultante da explorao de guas subterrneas ao longo da costa, onde esto centralizadas reas urbanas, industriais e de turismo (EEA, 1999).

    3.2. Efeito de estufa e alteraes climticas3.2.1. IntroduoO balano trmico ideal para a manuteno da vida na Terra proporcionado principalmente pela presena de vapor de gua e dixido de carbono (CO2) existente na atmosfera. Estes gases absorvem a radiao solar infravermelha, emitida pela superfcie terrestre impedindo assim que a radiao seja perdida para o espao. Este fenmeno natural denomina-se efeito de estufa, uma vez que permite o aquecimento da superfcie terrestre e promove a subida da temperatura da troposfera com consequente aumento da evaporao e precipitao.

    No entanto, a libertao de CO2 resultante da converso dos combustveis fsseis, tem sido responsvel pela amplificao deste fenmeno nos ltimos sculos, em conjunto com outros gases como o metano (CH4), os xidos de azoto (NO2, NO), os Cloro-Fluor-Carbonetos (CFCs), e o ozono troposfrico26 (O3). O dixido de carbono e o metano tm sido responsveis pelo incremento de cerca de 80 % da temperatura global em consequncia do aumento drstico das emisses de origem antropognica nos ltimos 140 anos (IPCC, 1992). No apenas a queima de combustveis fsseis responsvel pelo efeito de estufa.

    ________________________________26 No confundir o ozono troposfrico existente na camada inferior da atmosfera (troposfera), com o ozono estratosfrico. Os hidrocarbonetos no queimados na combusto dos combustveis fsseis nos veculos de transporte e nas indstrias, por aco da radiao solar podem converter-se em ozono. Este gs um poluente, pois trata-se uma substncia altamente reactiva que pode provocar efeitos negativos na sade pblica e nos ecossistemas.

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  • 3.2.2. Alteraes climticasAinda que exista uma relao clara entre o aumento da temperatura e a emisso de alguns gases que contribuem para o efeito de estufa, no possvel afirmar com certeza que se trata de uma relao causa-efeito.

    Os modelos de clima estimam que o aumento ser de 2C no ano 2100, comparativamente aos nveis de 1990. Dado que previsvel o crescimento da economia, estima-se que as concentraes mdias globais dos trs gases que mais contribuem para o efeito de estufa se alterem. Assim, para o ano 2050, comparativamente ao ano de 1990, est projectado o aumento em cerca de 45 % no caso do CO2, 80 % no caso do CH4 e 22 % no caso do N2O.

    Ser necessria at o ano de 2100 uma reduo de 50 70 %, em relao ao verificado em 1990, das emisses globais de CO2 para estabilizar a concentrao de CO2 (IPCC, 1996). No entanto, mesmo que as emisses sejam imediatamente reduzidas algumas alteraes climticas no podero ser evitadas devido dinmica dos sistemas climatricos.

    3.2.3. O protocolo de QuiotoO encontro mundial onde pela primeira vez se regulamentaram as emisses dos gases com efeito de estufa foi a III Conferncia das Partes da Conveno Quadro das Alteraes Climticas ocorrida em Quioto em 1997, onde vrios pases assinaram um protocolo no sentido da reduo global de 5,2 % em relao aos nveis de 1990, das emisses dos gases que contribuem para o efeito de estufa: dixido de carbono (CO2), metano (CH4), xido nitroso (N2O), hidrofluorcarbonetos (HFCs), perfluorcarbonetos (PFCs), e enxofre hexafluoreto (SF6)


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