Jaubert Knust Cardinot
Jaubert Knust Cardinot
Progressividade
em Biodanza
INTERNATIONAL BIOCENTRIC FOUNDATION
ASSOCIAÇÃO ESCOLA DE BIODANZA ROLANDO TORO DO RIO DE JANEIRO CURSO DE FORMAÇÃO DE DOCENTES
Progressividade em Biodanza
JAUBERT KNUST CARDINOT RIO DE JANEIRO – RJ
MARÇO DE 2002
Progressividade em Biodanza
Por Jaubert Knust Cardinot
Orientadora: Hedilane Alves Coelho
Monografia apresentada à Associação
Escola de Biodanza Rolando Toro do
Rio de Janeiro, para obtenção do grau de
professor titular de Biodanza.
Rio de Janeiro
2002
Progressividade em Biodanza
Jaubert Knust Cardinot
Aprovada em março de 2002
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________
Professora Didata Hedilane Alves Coelho – Orientadora
______________________________________________________
Professor Didata Antônio José Sarpe
______________________________________________________
Professora Ditada Eliana Aparecida Vieira de Almeida
Agradecimentos
Este trabalho é o fruto de um caminhar, um longo percurso de vida, que começou quando
conheci a Biodanza em 1987. Com ele eu celebro algumas conquistas. Muitos contribuíram, direta ou
indiretamente, para que esse caminhar fosse bem sucedido. Para estas pessoas o meu reconhecimento e
agradecimentos:
Aos meus pais, pela vida e por cada palavra ou gesto de carinho.
Aos meus filhos e irmãos, pela alegria de tê-los.
A minha namorada e companheira, Dina, pelo apoio e alegria de cada encontro.
A João Aylmer, pelo acolhimento e orientação num momento decisivo de vida.
A Rolando Toro, por toda sua doação criativa e pela direção que a Biodanza deu
ao meu caminhar.
Aos Diretores da Escola de Biodanza do Rio de Janeiro, pelo seu empenho em
dar o melhor de si na condução do Curso de Formação.
A todos os Professores da Escola de Biodanza do Rio de Janeiro, pelo exemplo
de integridade que me passaram.
Aos meus Facilitadores, Rosa, Dalma, Regina Labarte, Maria Dulce, Maria
Lúcia e Hedilane, pelo carinho e tolerância na facilitação do meu caminhar.
A Hedilane, pela orientação competente e carinhosa na elaboração deste
trabalho.
A Isis, pela amizade e importante apoio aos meus primeiros passos de
Facilitador.
Aos meus alunos dos Grupo de Biodanza, pela confiança, lealdade, carinho,
amizade e estímulo, sem os quais este caminhar não se realizaria.
Aos meus companheiros do Curso de Formação, pelo ideal compartilhado, pela
persistência e determinação, pelo apoio e cumplicidade.
Aos meus companheiros dos Grupos Regulares, pelas muitas vivências
compartilhadas, pelas lágrimas derramadas, pela sensibilidade despertada.
Minha gratidão, também, à Vida, por tantas oportunidades de renovação.
S U M Á R I O
1. INTRODUÇÃO............................................................................ 07
2. PROGRESSIVIDADE E BIODANZA .................................... 09
3. O QUE QUER A BIODANZA? ................................................... 11
3.1 Onde Estamos? ..................................................................... 11
3.2 Onde Queremos Chegar? .................................................... 18
4. DEFESAS OU RESISTÊNCIAS .................................................. 21
4.1 Defesa.................................................................................... 21
4.2 Defesa ou Resistência? ......................................................... 23
4.3 Contato e Resistência ............................................................ 24
4.4 Tipos de Resistência ..............................................................26
4.5 Resistência em Biodanza ...................................................... 31
5. COMO ATUA A BIODANZA? ................................................... 37
5.1 Princípios Fundamentais ....................................................... 37
5.2 A Ação da Biodanza .............................................................. 39
6. A AÇÃO PROGRESSIVA DA BIODANZA ................................ 45
6.1 Princípios que Determinam a Natureza Progressiva
do Sistema .............................................................................. 46
6.2 Critérios Gerais que Facilitam a Progressividade .................. 49
6.3 Progressividade em Cada Sessão ........................................... 52
6.4 Planejamento das Aulas de um Grupo de Iniciantes............... 53
6.5 A Música como Instrumento de Progressividade ....................57
6.6 Progressividade nas Consignas .............................................. 58
6.7 O Facilitador Centrado no Grupo ........................................... 60
7. LIMITAÇÕES À PRÁTICA DO PRINCÍPIO DE
PROGRESSIVIDADE ................................................................... 61
8. CONCLUSÕES ...............................................................................64
9. ANEXO “A” ................................................................................... 67
10. BIBLIOGRAFIA * ....................................................................... 68
* Notas bibliográficas são fornecidas ao final de cada capítulo.
7
1 INTRODUÇÃO
A Biodanza, como um Sistema de Desenvolvimento Humano, se apóia em
paradigmas e princípios, os quais nos dão a fundamentação teórica, filosófica e o
caminho metodológico a ser seguido pela prática. O nosso trabalho tem por objetivo
discutir um desses princípios: o Princípio da Progressividade.
Ao falar em progressividade, Rolando Toro se refere à necessidade de graduar a
intensidade e duração dos exercícios de forma a produzir um processo de mudança
evolutiva sustentável e sem agressão, desnecessária ao organismo biopsicológico dos
participantes.
Esse cuidado de Toro é bastante justificável uma vez que a Biodanza, ao
contrário de outros sistemas de desenvolvimento humano, direciona os trabalhos
terapêuticos através dos exercícios que são propostos em cada sessão. Com esta ação a
Biodanza correria o risco de ir além das possibilidades dos participantes que se iniciam
no processo de desenvolvimento que ela propõe.
Esse desenvolvimento envolve o relaxamento de defesas neuróticas que o
indivíduo elaborou ao longo de muitos anos de sua vida. Portanto, é necessário dar
tempo para que essas defesas se transformem e sejam substituídas por uma nova
estrutura de saúde. E é esse tempo, tão necessário ao participante que se inicia, que o
Princípio de Progressividade procura garantir, mas não é fácil.
Não é fácil assegurar a progressividade das vivências ao longo de um Curso de
Iniciação pela própria dinâmica do grupo, que para sobreviver precisa estar aberto, ou
pelo menos semi-aberto, e, com isso, alunos novos estarão sendo introduzidos num
grupo que já não é mais de iniciantes.
Para tratar dessa questão, procuraremos entender primeiro o que a Biodanza
propõe, quais as mudanças desejadas. Sabendo o que a Biodanza quer, surgirá
naturalmente a questão: o que nos impede de realizar essas transformações, se elas são
8
tão desejadas? E a resposta nos levará a examinar as defesas ou resistências que limitam
nosso desenvolvimento. A partir desse ponto, entraremos no exame detalhado da ação
da Biodanza, os instrumentos de que dispomos para atuar junto ao grupo, como essa
ação pode ser progressiva e quais são suas limitações práticas. Após percorrer todo esse
percurso, poderemos, então, tirar nossas conclusões quanto à maneira mais facilitadora
de se assegurar a progressividade num grupo de Biodanza.
9
2 PROGRESSIVIDADE E BIODANZA
Para desenvolver o tema “Progressividade em Biodanza” é necessário que se
entenda primeiro o que queremos dizer com progressividade e o que queremos dizer com
Biodanza, ou seja, é necessário conceituar, responder às perguntas: “o que é
progressividade?” e “o que é Biodanza?”.
O que é progressividade?
Segundo o Dicionário Aurélio, “progressividade é a qualidade daquilo que é
progressivo, ou seja, que progride, que vai se realizando gradualmente, que aumenta
pouco a pouco, evolui ou se desenvolve. Progressividade está relacionada à sucessão
ininterrupta e constante dos diversos estágios de um processo”.
A semente se desenvolve gradualmente até se tornar árvore adulta, rica em galhos,
folhas, flores e frutos. E é preciso muito tempo para que uma árvore dê frutos. Com o
homem também é assim, existe todo um processo evolutivo desde o útero da mãe até a
velhice, passando progressivamente pelas várias fases da vida humana, em seus aspectos
físico, emocional e espiritual. Uma pessoa doente, mesmo que a causa da doença seja
eliminada ( bactéria, vírus, germe, etc.) não fica boa da noite para o dia, é necessário tempo
para que o organismo reaja e restabeleça o estado de saúde do corpo.
Então, podemos entender que a progressividade se refere a uma qualidade que está
associada à própria natureza, à própria vida, ao próprio universo. A vida é assim, ela não
pula, não queima etapas, ela se desenvolve continuamente, progressivamente, e, quando
não o faz, quando a estagnação se instala, então já podemos pensar em desvio, doença ou
morte.
10
O que é Biodanza?
Aqui, por enquanto, queremos apenas entender o conceito, ou seja, do que se trata;
uma definição de Biodanza.
Rolando Toro , criador da Biodanza, declarou em 1978 : “A Biodanza é um sistema
integrado de desenvolvimento humano, baseado em vivências corporais, induzidas pela
música, movimento e comunicação em grupo, segundo um modelo teórico operatório”.
Atualmente, a definição oficial tem o seguinte teor: “Biodanza é um sistema de
integração afetiva, renovação orgânica e reaprendizagem das funções originárias de vida,
através da música, movimento e comunicação em grupo”.
Biodanza é, portanto, um sistema que trata da vida humana, do desenvolvimento de
potenciais de vida humana. Mas, como vimos acima, a vida é sempre progressiva.
Portanto, se Biodanza é um sistema de desenvolvimento de vida, então progressividade e
Biodanza estarão sempre unidas, ou seja, falar em Biodanza já é falar em progressividade,
em desenvolvimento progressivo de potenciais humanos.
Não que a Biodanza possa ser progressiva, ela tem que ser progressiva, ela é vida e
um dos seus paradigmas, na verdade o principal, é o Princípio Biocêntrico que coloca a
vida como centro de todo o Universo. Acreditamos que foi a percepção dessa conexão
entre vida e progressividade que levou Rolando Toro a colocar a progressividade como um
dos princípios básicos que iriam orientar todo o desenvolvimento metodológico do Sistema
Biodanza.
11
3 O QUE QUER A BIODANZA?
Já vimos no capitulo anterior, por sua definição, que a Biodanza se trata de um
sistema de desenvolvimento progressivo de potenciais humanos, o que implica evolução,
mudança, transformação evolutiva - progredir é realizar-se gradualmente. Então, surge a
pergunta: “Qual a transformação proposta, buscada ou sugerida pela Biodanza para o
homem de nosso tempo?”.
Para respondermos a esta indagação, nos formulamos duas outras questões às quais
procuraremos responder: “Onde estamos?” e “Onde queremos chegar?”.
A Biodanza, segundo seu criador, Rolando Toro, não é uma concepção isolada do
contexto da psicologia atual. Ela é, sim, uma extensão das Ciências Humanas:
“A imagem do homem atual, não é obra de um só pensador, senão
de uma verdadeira constelação de cientistas, filósofos, antropólogos e
artistas geniais que têm fecundado reciprocamente suas idéias.
Biodanza, a partir do “Princípio Biocêntrico”, encontra inspiração e confirmação teórica em uma infinidade de pensadores”.1
Toro nos dá, assim, abertura para responder às perguntas que formulamos a partir de outros pensadores, outras correntes de pensamento psicológico contemporâneo.
3.1. Onde Estamos?
Ou Quem é o Sujeito da Biodanza?
FREUD
Para Freud, a história do homem é a história de sua repressão. Para ele, a repressão
da estrutura instintiva humana é indispensável ao processo civilizatório, que começa
quando o objetivo primário do homem, ou seja, a satisfação integral de suas necessidades
12
instintivas é abandonada em prol da perpetuação da raça humana em civilização, o que
requer o desenvolvimento da função da razão, que transformará o homem em sujeito
consciente, pensante, capaz de examinar a realidade e distinguir entre o bem e o mal. Freud
entende que o princípio de realidade se opõe ao princípio de prazer:
de: para: satisfação imediata satisfação adiada prazer restrição do prazer júbilo(atividade lúdica) trabalho esforçado receptividade produtividade ímpeto instintivo repressão e segurança
O princípio de prazer é incompatível com o princípio de realidade já que a
satisfação das necessidades implica trabalho, restrição, renúncia e sofrimento. A
substituição do princípio de prazer por princípio de realidade implica a repressão dos
instintos sexuais e agressivos, surgindo com isso as instâncias psíquicas denominadas por
Freud de ID e EGO, este o mediador entre os impulsos instintivos e o mundo exterior. Da
influência desse mundo externo, da qual a criança depende, irá surgir uma nova instância
psíquica denominada por Freud de SUPEREGO, formada a partir das introjeções de valores
sociais e culturais e constituindo-se em força interna repressora, representante das
repressões ambientais.
ID, EGO e SUPEREGO, três instâncias psíquicas em constante conflito, do qual
surge o Sujeito Neurótico e seus Mecanismos de Defesa, um produto da civilização.
MARCUSE Marcuse, ao falar sobre a origem do indivíduo reprimido, discorda de Freud quanto à
necessidade de se opor prazer e civilização, pelo menos em termos absolutos. Para ele, a
civilização tem sido uma dominação organizada e o que é desenvolvimento histórico adquire
a dignidade e necessidade de desenvolvimento biológico universal.
Marcuse vê a necessidade de criação de dois outros conceitos:
1. Mais-Repressão :
Refere-se às “restrições impostas pela dominação social de um
determinado grupo ou indivíduo, a fim de se manter e consolidar uma
posição privilegiada”.2 Marcuse não nega a necessidade de controle
repressivo sobre os instintos para a vida em sociedade; o que ele denuncia
13
são os interesses específicos de dominação que introduzem controles
adicionais acima e além dos indispensáveis à associação humana, com
prejuízo para o desenvolvimento natural e saudável do indivíduo.
2. Princípio de Desempenho:
Refere-se à “forma histórica predominante do princípio de realidade.
Com os controles adicionais da Mais-Repressão e a racionalização dessa
dominação, os homens deixam de viver suas vidas para desempenhar
funções pré-estabelecidas, que não satisfazem suas necessidades e
faculdades”.² Trata-se de um trabalho alienado, penoso, sem gratificação
pessoal. É a própria negação do princípio do prazer. A atividade que
realiza, em geral, não atende às suas aptidões e desejos. Com a energia
instintiva domada, sublimada, o indivíduo se ajusta e vive sua repressão
“livremente”, desejando o que se supõe que deveria desejar e, às vezes,
até se sentindo feliz. Mas, para isso, tem que renunciar à sua liberdade e
ao seu desejo primário autêntico e se tornar obediente e cumpridor de
suas obrigações.
Com isso, como o homem passa a maior parte do tempo de vigília no
trabalho, então ele se torna um instrumento de desempenho alienado e sem
prazer. Sobraria o tempo livre, só que neste ponto o organismo já está
treinado para a alienação e, então, também esse tempo livre será marcado
pela alienação. Esse tempo livre reservado para o prazer se
transformará apenas num relaxamento passivo, visando à recuperação de
energia para o trabalho.
REICH
Com Reich o inconsciente estudado por Freud assume dimensão corporal. São as
couraças musculares que se formam a partir das tensões musculares decorrentes da repressão
dos instintos e das emoções. Essa repressão é realizada pelo próprio Superego, fiel
representante psíquico da repressão familiar, social e política.
Reich criou a expressão caráter neurótico, em oposição a caráter genital, com base na
blindagem muscular do caráter. Para ele, o caráter neurótico é aquele em que o organismo é
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regido por uma blindagem tão rígida que não pode, voluntariamente, alterá-la ou eliminá-la.
Constrangimento é a expressão total do organismo blindado.3 A pessoa blindada não tem
consciência disto, sente apenas a distorção de suas percepções internas da vida. Segundo
Reich, ela se descreve como apática, rígida, limitada, vazia, ou queixa-se de palpitações,
prisão de ventre, insônia, insatisfação nervosa, etc., etc.
O homem blindado ou encouraçado de Reich é um homem imobilizado, que busca se
instalar ou se acomodar devido à sua incapacidade de viver uma vida plena. A couraça física
e emocional suscita no homem o desejo de não sair do lugar existencial que criou para si,
tornando-o rígido, mecânico, rotineiro, sem permitir-se nenhuma transformação, o que se
deve ao enfraquecimento do metabolismo energético que impede toda excitação viva.
Em seu livro “O Assassinato de Cristo” Reich declara: “...se queremos descobrir o
homem, é preciso tomar consciência da tendência de todo homem encouraçado: o ódio ao
vivo”.4 Para Reich, Cristo representa o princípio da vida em si e, por isso mesmo, teria sido
assassinado. O homem blindado, encouraçado, prisioneiro de si mesmo, se adapta
rapidamente à vida na prisão e se acostuma com a agitação, com a pressa, com o nervosismo
e com a ansiedade. Esse homem estagnado, ainda segundo Reich, só não suporta uma coisa:
que se mostre a ele sua verdadeira situação. E sua triste situação é a prisão à qual não só se
submete, mas faz questão de permanecer nela e luta desesperadamente para não sair, pois
não suporta a vida viva que desconhece mas teme como a própria morte.
CREMA
Crema fala em patologia da normalidade para se referir ao que ele considera a grande
praga de nossa época: o “normótico”, ou seja, aquela pessoa que só aspira à normalidade
medíocre, buscando se adaptar sempre, sem confiança em si nem fé na vida.
É, como diz Crema, “o sujeito que lê o jornal pela manhã e sai para sua vidinha
medíocre: se estiver tudo bem no seu canteirinho...”.5 O normótico é aquela pessoa que não
tem escuta, ela é fruto da educação massificante e não se dá conta de que vivemos uma crise
de extinção da espécie humana. Ele não liga quando se fala em poluição atmosférica, buraco
de ozônio, extinção da floresta amazônica, etc. Para Crema, a falta de escuta do normótico o
leva a acreditar que a crise que estamos vivendo é azar, não tem sentido, ele não se dá conta
de que tudo depende de tudo, de que tudo está ligado com tudo. Com isso se perde o
15
indivíduo, se perde o Homem com sua enorme fonte de potenciais inatos de criatividade e
liderança.
TORO
Numa reflexão sobre os valores de nossa cultura, Rolando Toro escreve: “A cultura
está estruturada sobre um esquema de poder e se caracteriza, aproximadamente, com o que
“Chame” denominou de “sociedade agonística”: um modo de agrupamento zoológico,
baseado na tensão e no medo provocado pela emergência do macho mais forte,
sedimentando-se o grupo em torno de papéis e hierarquias de poder, mantendo uma
permanente vigilância frente a situações de perigo, nas quais as únicas repostas possíveis
são a luta, a fuga ou a evitação”.6
Sob o título “Análise da Patologia de nossa Civilização” Toro escreve: “Pela
primeira vez na história, os homens têm consciência de viver dentro de uma cultura
enferma”.(6) Essa cultura , diz Toro, é o resultado da influência de quatro grandes vertentes,
de onde vieram seus valores, glórias e equívocos. De cada uma dessas culturas Toro destaca
seus principais equívocos, os quais ainda hoje de algum modo são vivenciados por nós:
Cultura Oriental:
Valores anti-vida, buscando suprimir desejos, sensações e sentimentos
em função de uma vida futura desencarnada. Desvalorização da vida
terrena , considerada uma ilusão.
Cultura Judaico-Cristã:
Castração dos instintos, intolerância frente à possibilidade de prazer e
uma enorme carga de culpa transmitida através dos séculos: a
repressão sexual, o sexo é visto como pecado.
Cultura Grega:
O dualismo platônico, com a dissociação entre o corpo e a alma, e o
“penso logo existo” de Descartes.
Cultura Romana:
Onipotência e discriminação humana. O poder absoluto e a separação
entre senhores e escravos: o imperialismo.
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Para Toro, assim como para Reich e Marcuse, o problema básico é cultural. A
cultura, segundo Toro, estaria infiltrada por uma profunda dissociação que abrange todos
os ramos do saber: Educação, Psicologia, Medicina, Sociologia, etc. Ele compara a situação
a uma traição à vida, da qual participam, consciente ou inconscientemente, milhares de
intelectuais em todo o mundo.
Toro chamou a esse processo destrutivo de Conspiração Neoplatônica, cuja
característica básica é a separatividade: corpo-alma, homem-natureza, matéria-energia,
indivíduo-sociedade, etc.
Toro afirma: “A cultura dissociativa desqualifica a vida presente, dessacraliza-a e
sabota seu valor e significado intrínseco para pô-la a serviço de valores anti-vida”.(6) Para
ele , nossa civilização está à deriva, onde prevalece a visão exterior, tecnológica, sem
nenhuma orientação interna para a essência do homem. Vivemos, diz ele, uma existência
alienada, sem naturalidade e sem alegria, resultando numa desorganização energética social,
com grande contraste com a eficácia alcançada na área tecnológica. A educação, com raras
exceções, não tem cumprido com sua tarefa de dar às pessoas orientação para o
desenvolvimento de seus potenciais internos.
Toro dá à repressão um sentido muito mais amplo do que Freud, Berne ou Reich. A
repressão, diz ele, não é somente um sistema de normas introjetadas, no sentido do Superego
de Freud. Não são, tampouco, os mandatos parentais descritos por Berne, nem também as
forças ideológicas e sociopolíticas de Reich. A repressão dos impulsos vitais, para Toro, é
uma “ESTRUTURA” que infiltra a existência em todos os seus detalhes, em todas as
circunstâncias e nas mais variadas formas:
- na forma das cidades - na arquitetura das casas - no vestiário - nos livros e discos - nos programas de estudo universitário - nos alimentos - nos gestos e movimentos
O sujeito resultante dessa estrutura “coisificante” é, segundo Toro, o “SUJEITO
DISSOCIADO”. Dissociação para ele é sinônimo de enfermidade, é um transtorno grave,
uma enfermidade dentro de um sistema que, como tal, para funcionar precisa estar
integrado.
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Dissociação, segundo a Gestalt, é falta de relação entre a parte e o todo. Num
organismo, significa falta de relação em feed-back entre os diferentes órgãos e sistemas
intra-orgânicos. Dissociação, portanto, é a perda da auto-regulação espontânea do
organismo, é a homeostase enlouquecida.
O indivíduo dissociado, é um indivíduo ausente, seu movimento é mecânico,
automático. Mantêm-se sempre distante psiquicamente, num alheamento defensivo que o
impede de se envolver e de se comprometer com aquilo que está realizando. Sente-se isolado
de tudo e de todos, sua atitude perante a vida é de impotência e indiferença.
Sofremos as conseqüências de uma sociedade em cujo desenvolvimento tem
predominado valores como poder, autoridade, força, competição, lógica e intelectualidade.
Por outro lado, aspectos importantes da experiência humana como os sentimentos, a
intuição, a receptividade e a sensibilidade foram e continuam sendo negligenciados por
homens e mulheres em busca de sucesso e poder. Com essa polarização de valores e
atitudes, o homem moderno é um sujeito desesperado consigo mesmo e com a própria
humanidade, sente-se solitário e vazio apesar das conquistas e avanços tecnológicos que o
levaram a se distanciar de sua própria natureza. Esse homem ainda busca sua felicidade e
bem estar, mas percebe-se isolado e receoso diante de seus semelhantes. Sua capacidade de
amar não evoluiu tanto quanto seu intelecto, o que o leva a buscar meios e formas para
sentir-se amado, aceito e valorizado.
DISSOCIADO: este é o Sujeito da Biodanza, uns mais outros menos, varia o grau da
enfermidade, mas a natureza é sempre a mesma. As pessoas que procuram um grupo de
Biodanza , em algum grau foram reprimidas , sufocadas em seus impulsos por expressão
autêntica de si mesmos, resultando em medo, insegurança, busca exagerada de aceitação,
temor ao desconhecido, submissão, rigidez ou apego ao passado e, como resultado de tudo
isso, dissociação, que pode atingir o nível corporal, orgânico e existencial , um estado de
alienação da própria vida.
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3.2. Onde queremos chegar?
Ou
O Sujeito Biodançado
“As raízes da dança então no trabalho e na oração. E um trabalho está mais próximo da oração quando não tem por objetivo somente manter e reproduzir a vida, mas também engrandecê-la e abrir-lhe horizontes novos. O trabalho torna-se então, como a dança, criação e poesia”7
Roger Garaudy
Se o sujeito da Biodanza é o Sujeito Dissociado , como vimos acima, então o
“Sujeito Biodançado” que buscamos deve ser um sujeito inteiro, integrado. Para a
Biodanza, um ser humano integrado é aquele que sente, age e pensa de forma coerente; seu
movimento é pleno de sentido, autenticidade, harmonia e fluidez. Trata-se de uma atitude
sensível perante a vida, não só consigo mesmo, mas também com o outro e com o
Universo.
Na busca de uma base filosófica para dar sustentação ao seu sistema de
desenvolvimento humano, Toro propõe um princípio anterior a qualquer outro e base para
toda a sua obra: o Princípio Biocêntrico. A partir deste princípio, Toro enfatiza a
necessidade de reformulação dos nossos valores culturais, tomando como referencial básico
o respeito à vida, todas as formas de vida. A vida passa a ser o centro e o ponto de partida
de todas as disciplinas e comportamentos humanos. Com isso, Toro restabelece a noção de
sacralidade da vida.
O Princípio Biocêntrico é uma declaração de amor à vida, que propõe a potenciação
da vida de forma a conduzi-la a seus valores mais altos. Ele surge de uma proposta anterior
à cultura e se nutre dos impulsos primitivos que geram vida. Segundo a abordagem da
Biodanza, a nossa cultura obstrui, desorganiza e perverte nossos impulsos instintivos,
enfraquecendo nossa auto-estima e dando origem a todo tipo de patologia social.
Já não sabemos mais como viver, precisamos recorrer aos livros de auto-ajuda, aos
terapeutas e aos “gurus” em busca de orientação para a nossa vida diária, para nos dizer
aquilo que saberíamos se estivéssemos em conexão com nossos impulsos de vida. Para a
Biodanza não é necessário obstruir, reprimir nem desviar a manifestação dos instintos e
negar o corpo para alcançar o estado supremo de conexão com o divino. Ao contrário, os
instintos é que têm a função de conservar a vida e permitir seu desenvolvimento. Seu
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resgate, segundo Toro, será, no futuro, a tarefa mais essencial para criar uma Civilização
para a vida.
Toro resume a proposta da Biodanza em seis itens:
1. Resgatar os instintos cuja função é a conservação da vida.
2. Dar às pessoas a oportunidade de comunhão e empatia.
3. Lutar contra as ideologias e os preconceitos.
4. Reforçar e expressar a identidade e a segurança de si mesmo,
eliminando os fatores paranóicos.
5. Desenvolver na consciência da humanidade o sentido de Sacralidade da
Vida.
6. Aumentar a consciência ética cuja fonte é a inteligência do coração.8
A partir desta proposta e em ressonância com outros pensadores orientados por uma
visão integradora do homem e pelo respeito à vida, Toro propõe uma nova civilização que
se desenvolverá a partir da cultura biocêntrica, com as seguintes características:
1. A vida aqui e agora possui um valor intrínseco. Ela é a expressão
máxima do sentido do Universo.
2. Corpo e alma, matéria e energia, são aspectos de uma mesma realidade.
O ser humano é uma unidade integrada ao Cosmos.
3. A sexualidade é um impulso natural e saudável. Seu objetivo imediato é
o prazer, o encanto e a voluptuosidade...
4. O amor comunitário é o fundamento da consciência comunitária. Justiça
e liberdade para todos, com governos democráticos e ausência de
exploração do homem.9
Dessa nova cultura surgirá um novo homem que terá como característica marcante
de sua personalidade o desenvolvimento pleno e integrado das polaridades feminina e
masculina, condição necessária, segundo Cardella, para o desenvolvimento da capacidade
de amar a si mesmo e ao próximo.
É essa polarização, que na cultura chinesa corresponde aos princípios Yin e Yang,
que deve ser integrada por homens e mulheres.
Ao homem, com seus aspectos Yang já desenvolvidos, cabe integrar a polaridade
Yin, feminina, a saber: aceitação e expressão dos sentimentos e das necessidades,
receptividade, sensibilidade, afetividade, vulnerabilidade, suavidade, intuição, compreensão
e interiorização.
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À mulher, com seus aspectos Yin já desenvolvidos, cabe integrar a polaridade Yang,
masculina , a saber: independência, atividade, aspirações, segurança, racionalidade,
concentração e determinação de valores próprios.
Com essa integração de polaridades complementárias se dá o desenvolvimento e
amadurecimento da pessoa e concretiza-se o processo de diferenciação da personalidade
através do qual ela se torna um indivíduo inteiro, integrado, pleno, aberto ao
relacionamento amoroso com tudo que é vivo, e esse relacionamento transcorre
harmoniosamente pois a fluidez é uma de suas principais características.
O que buscamos na Biodanza, na verdade, como resultado do desenvolvimento e
integração de potenciais, e da fluidez entre aspectos opostos da personalidade, é o indivíduo
confiante, com auto-estima elevada, que tem amor por si e pela vida. Criativo, ele reage ao
novo com independência, coragem e ousadia. Amoroso, ele busca oportunidades de
contato real com as pessoas e novas fronteiras e desafios para a sua vida, tornando-se assim
um ser verdadeiramente humano.
N O T A S: 1 Toro, Rolando. Aspectos Psicológicos de Biodanza, P.67 2 Marcuse, Herbert. Eros e Civilização, p.51 3 Reich, Wilhelm. Análise do Caráter, p. 433 4 Reich, W. O Assassinato de Cristo, p. 24 5 Crema, Roberto. Palestra sobre Liderança no 3º Milênio, Fita. 6 Toro, Rolando. El Inc. Vital y Principio Biocentrico, p.42, 43 e 51 7 Garaudy, Roger. Dançar a Vida, p. 117 8 Toro, Rolando. Aspectos Psicologicos em Biodanza, p. 79 9 Toro, Rolando. El inc. Vital y Principio Biocentrico, p. 50
21
4 DEFESAS OU RESISTÊNCIAS
“O Homem é capaz de tudo, contanto que não se transforme” Pietro Ubaldi
Como vimos anteriormente, a Biodanza busca uma transformação existencial, de
sujeito reprimido, dissociado para sujeito integrado, pleno, aberto ao relacionamento
amoroso com tudo o que é vivo. E isso parece desejável a todo ser humano. Então, surge a
pergunta que procuraremos responder nesse item: o que nos impede?
Rolando Toro, ao falar sobre o Princípio de Progressividade em Biodanza , afirma:
“No podemos quebrar las defensas que un individuo há elaborado a traves de anos porque corremos el riesgo de dejarlo sin continente para
su identidade y poner gravemente en peligro su homeostasis. Las
defensas neuróticas tienen que ser reemplazadas por la nueva estrutura
de salud”.1
Parece-nos, então, que Toro atribui às defesas neuróticas do indivíduo o papel de
impedi-lo de realizar a tão desejada transformação existencial. Se é assim, torna-se
importante compreender o que significa exatamente uma defesa.
4.1. Defesa
Examinando o significado do termo “defesa” no Dicionário Aurélio encontramos:
resguardo, proteção, ato ou forma de repelir um ataque, impedimento, interdição,
proibição...etc.
Como Toro fala em defesas neuróticas, entendemos que ele está tomando
emprestado este termo da Psicanálise, na qual a defesa é definida como:
“Conjunto de operações cuja finalidade é reduzir, suprimir qualquer modificação suscetível de pôr em perigo a integridade e a constância do
indivíduo biopsicológico. O ego, na medida em que se constitui como
22
instância que encarna esta constância e que procura mantê-la, pode ser
descrito como o que está em jogo nessas operações e o agente delas. De
um modo geral, a defesa incide sobre a excitação interna (pulsão) e,
preferencialmente, sobre uma das representações (recordações, fantasias) a
que está ligada, sobre uma situação capaz de desencadear essa excitação na
medida em que é incompatível com este equilíbrio e, por isso, desagradável
para o ego” 2
4.1.1. Quando as Defesas se Tornam Neuróticas
Karen Horney, também psicanalista, fala em personalidade neurótica de nosso
tempo. Para ela, neuróticas são as pessoas que têm reações diferentes dos indivíduos
comuns, dentro de uma determinada cultura e num determinado tempo, ou seja, uma
neurose implica um afastamento do normal daquela cultura. Esse afastamento, segundo
Horney, tem duas características básicas:
“uma certa rigidez nas reações, ou seja, falta de flexibilidade que nos permite reagir diferentemente ante situações diversas”,
“uma certa discrepância entre potencialidades e realizações, ou seja, a despeito dos dons e de possibilidades externas favoráveis a seu
desenvolvimento, a pessoa permanece improdutiva ou, apesar das
possibilidades, a pessoa não consegue desfrutar do que tem”. 3 Horney não nega a origem das neuroses nas experiências vividas na primeira
infância, mas destaca a influência das condições culturais específicas em que vivemos. Diz
ela: “Na verdade, as condições culturais não só dão peso e cor às experiências individuais,
mas, no final das contas, determinam sua forma particular”. 4
É Horney ainda quem escreve:
“nossa cultura produz pessoas normais e pessoas neuróticas. As normais,
apesar dos seus medos e defesas, são capazes de corresponder às sua
potencialidades e de desfrutar daquilo que a vida lhes oferece. As neuróticas, ao
contrário, sofrem mais que as comuns, pagam um alto preço por suas defesas,
traduzido sob a forma de uma diminuição da vitalidade e do desenvolvimento, ou,
mais explicitamente, de uma diminuição de suas capacidades de realização e
contentamento.5
Por normalidade ela se refere à aprovação de certos padrões de conduta e
sentimentos dentro de um certo grupo, que impõe esses padrões a seus membros. Tais
padrões são variáveis segundo a cultura, a época, a classe social e o sexo.
23
A neurose para Horney é um afastamento do normal e seu motivador básico é
sempre a ansiedade. E é essa ansiedade que leva ao afastamento do normal cultural e à
inibição, tornando as pessoas incapazes de fazer, sentir ou pensar certas coisas. Essas
inibições podem atingir funções motoras, afetivo-motoras ou mentais, tais como:
dificuldade de se movimentar com liberdade, de estabelecer contato afetivo com outras
pessoas, de concentração e de formar ou expressar opinião.
Rolando Toro tem uma concepção diferente, mais ampla, do que é uma pessoa
neurótica. Como já vimos no capítulo três, quando tratamos do sujeito da Biodanza, ele não
reconhece, como, aparentemente, o faz Horney, que as pessoas normais produzidas pela
cultura sejam saudáveis. Para Toro, nossa cultura é dissociativa, ela desqualifica a vida
presente, produzindo pessoas às quais chamamos de “normais”. Mas essas pessoas normais
estariam, na verdade, enfermas, neuróticas, ou “normóticas”, segundo Roberto Crema.
Na visão de Toro, uma sociedade como a nossa, cujos valores são o poder, a
autoridade, a força, a competição, a lógica e a intelectualidade, só pode gerar indivíduos
neuróticos, com dificuldade de entrar em contato com a vida e realizar sua humanidade
plena. Portanto, para a Biodanza, as defesas se tornam neuróticas não somente quando
afastam o indivíduo da normalidade cultural, mas sempre que essas defesas impedem o
indivíduo de realizar todo o seu potencial genético, com expressão plena de sua
identidade.
4.2. Defesa ou Resistência?
Como vimos acima, a defesa neurótica é um conceito que surgiu com a
Psicanálise, assim como o conceito de resistência que se refere à oposição pelo analisando,
durante a sessão psicanalítica, de entrar em contato com o seus conteúdos inconscientes.
Neste trabalho, entretanto, usaremos os dois termos como semelhantes, já que
estamos tomando o termo resistência da Gestalt-Terapia e, neste Sistema, o conceito de
resistência é equivalente ao conceito de defesa da Psicanálise. Preferimos trabalhar com o
conceito de resistência por considerá-lo mais apropriado para o nosso trabalho, pois ele se
refere explicitamente à dificuldade de entrar em contato, e contato é a proposta básica da
Biodanza.
24
A importância de compreender a resistência, ou seja, nossa preocupação em incluir
esse tema nesse trabalho é, acredito, da mesma natureza que levou Roberto Crema a falar
sobre resistência em três capítulos do seu livro Análise Transacional Centrada na Pessoa e
Mais Além. É Crema quem escreve:
“Considero que representa uma lacuna na Análise Transacional (AT) a ausência de uma teoria consistente sobre a resistência. Conforme entendo, não
pode haver uma abordagem centrada na pessoa sem uma definição e compreensão
deste tema essencial, que alicerce e dirija uma adequação de atitude do facilitador
frente ao processo de resistência à mudança, de modo especial quando se trata de
uma tecnologia potente, como a AT. Como já afirmei, um analista transacional
“tecnicista” fácil e freqüentemente pode desrespeitar, invadir e mesmo agredir o cliente com intervenções “ativas”, caso não possua um enfoque sobre o que é a resistência, e o porquê e como as pessoas resistem.” 6
Ora, se na Análise Transacional isto é verdadeiro, então, para a Biodanza é ainda
muito mais relevante. Primeiro, por se tratar de um processo exclusivamente grupal, o que
dificulta estar centrado numa pessoa, individualmente, e segundo, por ser um sistema tão
ou mais potente do que a AT.
4.3. Contato e Resistência
“Somos seres em relação, existir é, em si, um modo de relacionar-se. E
relação é reciprocidade. Nós vivemos no fluxo torrencial da reciprocidade
universal, irremediavelmente encerrados nela” Martin Buber
Roberto Crema, citando Fritz Perls, fundador da Gestalt-Terapia, escreve: “o
contato com o meio e a fuga dele, esta aceitação e rejeição do meio, são as funções mais
importantes da personalidade global”.7 Para Perls, ainda segundo Crema, a neurose surge
quando o indivíduo se mostra incapaz de alterar suas formas de interação com o seu
ambiente, e fixa-se num modo de atuar obsoleto, afastando-se de suas necessidades inatas
de contato com outros seres humanos.
O conceito de resistência utilizado por Crema na Análise Transacional é, segundo
ele, o mesmo da Gestalt-Terapia, isto é, relaciona-se intrinsecamente com o de contato.
Entrar em contato é o movimento natural do mundo e das pessoas, e toda mudança se dá
através do ou no contato. O contato emocionado mobiliza todo o organismo.
25
A energia da pessoa, como diz Crema, está sempre dirigida ou para entrar em
contato ou para resistir. No primeiro caso, há envolvimento que conduz ao
desenvolvimento; no segundo, o sistema fecha-se em si mesmo, na conduta de evitação da
interação potencialmente transformadora.
Roberto Crema, enquanto Analista Transacional, e apoiando-se no conceito de
resistência da Gestalt-Terapia, escreve:
“Resistência , neste enfoque, é qualquer coisa que fazemos que interrompe
ou diminui o ritmo deste movimento, que interfere no contatuar. Resistir é
fazer qualquer coisa que impeça ou minimize o contato; é sempre resistir ao
contato com algum aspecto de si mesmo, do outro ou da Natureza.” 8
É importante lembrar que a resistência é um “mecanismo” psíquico cuja função
capital é manter a integridade do organismo. É, em última instância, como diz Crema, a
energia usada para a auto-preservação da individualidade tal como se apresenta. Dizemos
“Não” ao contato pelo medo de dissolução do modo de ser com o qual nos identificamos e
queremos manter, com consciência ou não.
A resistência só se torna prejudicial quando o quadro referencial de resistência da
pessoa já não satisfaz, tornando-se uma limitação na sua vida, aprisionando-a numa
pequena cela que a impede de contatar, existir e expandir-se no mundo. Enfim, bloqueando
seu processo evolutivo.
É importante, repito, que o Facilitador de Biodanza entenda a resistência como uma
auto-proteção do indivíduo, ainda necessária para ele naquele momento, segundo seu nível
de consciência, de forma que no planejamento de suas aulas o Princípio de Progressividade
esteja sempre presente.
Vendo a resistência como uma busca de proteção ou resguardo contra alguma coisa
real ou imaginária, acredito que o Facilitador ficará mais sensibilizado para não tentar
quebrá-las. Pois, conforme diz Toro:
“Transgredir el princípio de progressividade puede desencadenar en la persona un “stress”emocional doloroso, elevar sus niveles de
culpabilidad y provocar sentimentos de angustia incontrolables”. 9
26
4.4. Tipos de Resistência
Cardella, citando Freud, escreve: “o amor e o trabalho são as duas áreas mais
importantes da vida humana”.10 Mas, diz ela, o amor se torna impossível quando o
indivíduo não é capaz de estabelecer limite entre si mesmo e o outro. A auto-proteção
neurótica, ainda segundo Cardella, caracteriza-se por um modo de funcionar que “garanta”
proteção e segurança ao indivíduo e, paralelamente, dificulta a auto-realização, inclusive
de suas potencialidades amorosas.
A Gestalt-terapia, segundo Cardella, descreve seis modos, ou estilos de contato,
dependendo da funcionalidade ou da rigidez com que são utilizados pelo indivíduo em seu
meio. Apesar de este trabalho não ter a pretensão de se aprofundar no exame desses
diversos tipos de resistência estudados pela Gestalt-terapia , apresentaremos a seguir as
principais características de cada um deles, conforme descrições e observações de Crema e
Cardella.
1.
Trata-se de uma resistência primária, que está na base de todas as demais,
sendo a transação genérica entre o indivíduo e o seu ambiente nos primeiros anos de
vida. Introjetar é trazer as coisas para dentro, sem crítica: é engolir sem mastigar; é
o mecanismo psicológico de internalização do outro pelo qual o indivíduo incorpora
padrões de pensar, sentir e atuar exteriores que não são digeridos, permanecendo
como “corpos estranhos” no seu organismo. É introjetando que o indivíduo
internaliza valores anti-vida e suprime desejos, sensações e sentimentos legítimos,
transformando-se em sujeito dissociado.
A dificuldade em se desfazer da introjeção deve-se ao seu caráter primordial
e indispensável na primeira infância, em que o meio precisa ser absorvido para o
organismo sobreviver.
Quando mais tarde, diz Crema, a pessoa deixa de introjetar mandatos e
figuras parentais, começa a introjetar crenças, ou seja, informações sem experiência,
através do que engole ouvindo ou do que engole lendo. Tais crenças se depositam
27
na mente da pessoa, interferindo no seu contato direto com a realidade, e ela passa a
ver o mundo de segunda mão. Passa a ter uma coleção de conhecimentos, em vez de
estar consciente.
Na introjeção, não há contato, posto que o objeto é engolido, tornando-se
“eu”, por um processo de generalização que subtrai o “não-eu” da consciência e
que, portanto, não pode ser contatado como um outro.
Cardella pode constatar o mecanismo de introjeção de crenças dos seus
clientes, através de suas verbalizações, revelando concepções negativas do amor
transmitidas culturalmente, tais como:
“Não sou digno de amor”,
“Não devo confiar totalmente em ninguém , posso ser
traído ou abandonado e vou sofrer muito com isso”,
“Só serei amado se for bom, inteligente, doente, frágil, alegre, seguro, etc.”, entre muitas outras.
Através das introjeções, os indivíduos permanecem retraídos na fronteira de
contato, já que este é experimentado com muita ansiedade. Neste caso, o amor é
concebido como verdadeira ameaça.
Para Crema, trabalhar com a introjeção é facilitar para que a pessoa
desenvolva a discriminação, sem a qual torna-se impossível a escolha. Também há
que se exercitar a assertividade e a capacidade de dizer “NÃO”. Não é possível,
segundo Crema, a coragem de viver e se diferenciar do meio sem o acesso à
agressividade.
2. Projeção: quando eu me derramo no mundo
Para a Psicanálise, a projeção é um mecanismo de defesa pelo qual o ego se
protege da ansiedade, repelindo os seus maus objetos internos, anteriormente
introjetados, e projetando-os em objetos externos.
Projetar um sentimento significa não suportar conviver nem atuar de acordo
com ele. A pessoa que tem um mandato introjetado de não sentir raiva, por
28
exemplo, terá que projetar sua raiva nos outros, vivenciando-se como um santo no
meio de furiosos.
Não só os sentimentos chamados “negativos”, como a raiva, são projetados
no outro. Cardella fala do mecanismo de projeção também nas manifestações
amorosas, quando se observa a projeção de expectativas. A utilização freqüente de
projeções, diz ela, impede o indivíduo do contato amoroso, pois o indivíduo que
projeta constantemente exige que o parceiro esteja disponível, feliz e satisfeito em
sua companhia, o tempo todo.
Trabalhar com a projeção, segundo Crema, é facilitar para que o projetor,
primeiro, tome consciência da alienação que está fazendo de alguma parte sua,
segundo, assuma a responsabilidade por seus pedaços de identidade lançados fora.
Tudo isso deve ser feito com muito cuidado, lentamente, diz Crema, uma vez que é
muito assustador o confronto com o que não se tolera conviver.
Crema enfatiza a importância do sentir na recuperação de uma parte de si
mesmo, antes rejeitada. Como a resistência não é só crença, mas também sentir e
agir, é necessário uma vivência emocional para que ocorra a mudança real de
atitude.
3. Retroflexão: quando eu sou o meu mundo
Retrofletir significa voltar a energia de contato com o mundo para si mesmo.
Quando a pessoa retroflete, ela altera a função originalmente dirigida do indivíduo
para o meio ambiente, voltando-a para si mesmo.
Segundo Crema, “a função primária da retroflexão é impedir que a pessoa
faça o que quer fazer: a ação que se quer completar com o mundo volta-se para si
mesma, o contato com passa a ser autocontato”.11
Crema menciona dois tipos de retroflexão muito importantes; um pelo dano
que causa e outro pela freqüência com que ocorre. O primeiro é a retroflexão de
ódio e destruição na qual a pessoa bloqueia a energia de contato resultando em
ansiedade crônica e conseqüentes enfermidades psicossomáticas, como a úlcera e a
29
impotência sexual. O segundo, é a retroflexão de controle na qual a pessoa volta
contra si mesmo sua tendência a dominar os outros e passa a se expressar através de
uma disciplina muito rígida, suprimindo necessidades, sentimentos, emoções e toda
forma de expressão.
Para Crema, o trabalho terapêutico deve facilitar que a pessoa se dê conta do
seu movimento em relação ao mundo. A partir daí, a pessoa poderá se apoderar de
sua energia de contato e exploração do meio ambiente, num equilíbrio sadio entre
contatar a si mesmo e contatar com o mundo.
4. Deflexão: quando eu me disperso no mundo
Crema, referindo-se à Psicanálise, escreve: “deflexão é uma reação de
defesa em que a atenção se desvia do objeto de desagrado”. E completa:
“a deflexão é uma manobra que o indivíduo realiza para impedir um
contato direto com o outro. A evitação do contato real e intenso, percebido
como perturbador por introjeções anteriores, realiza-se pela desfocalização,
nunca se parando num ponto, como se a pessoa estivesse jogando,
permanentemente, água fria que apaga o calor do verdadeiro contatuar”. 12
Crema cita as formas mais freqüentes de deflexão, todas com o objetivo de
tirar a vitalidade e a importância do contato, tais como: não olhar para o outro
enquanto fala; não prestar a atenção; saltar de um assunto para o outro,
constantemente; falar sobre em vez de falar para; generalizar em vez de especificar;
tagarelar sem objetividade; usar de cortesia em vez de franqueza, etc.
Podemos ver a deflexão como uma desqualificação; seja de si mesmo, do
outro ou da situação. A deflexão, tal como a desqualificação, é um tipo de
comunicação que nega a própria comunicação, no sentido de que ela busca evitar o
acontecimento ou aprofundamento do contato.
Para trabalhar com a deflexão, segundo Crema, é necessário deter o defletor
em algum ponto de sua “fuga ao contato” e sugerir-lhe contatar com o que está
sentindo naquele exato momento. Com isso a pessoa tem chance de tomar
consciência do seu movimento dispersivo e superficial.
30
5. Confluência: quando eu me confundo no mundo
Crema define a confluência como a falta de limite entre si mesmo e o outro
ou o ambiente, ou seja, é a fusão de duas pessoas, ou grupo de pessoas, em que elas
negam suas individualidades e diferenças, caracterizando-se assim como um
mecanismo de evitação de contato.
O ser humano vivencia duas tendências opostas, uma de fusão, outra de
individuação, enquanto que a saúde mental está no equilíbrio entre estas duas
tendências. Na confluência prevalece a tendência de fusão, resultando em simbiose
e confusão, cuja origem pode ser atribuída a uma introjeção anterior que impede o
indivíduo de expressar suas diferenças. Na verdade, a pessoa nem sequer percebe
essas diferenças, o nós prevalece em detrimento do eu e do você. As diferenças que
poderiam ser manifestadas no pensamento, nas atitudes, nos comportamentos e
sentimentos são “boicotadas” ou camufladas na relação.
A confluência é vista como uma resistência ao contato uma vez que o
relacionamento amoroso só se dá entre pessoas maduras e diferenciadas, conscientes
de suas próprias individualidades.
Para Crema, o trabalho do facilitador na Análise Transacional consiste em:
“ressaltar as diferenças e a capacidade de se opor e criticar. Especialmente o grupo é facilitador, neste caso, já que oferece uma enorme
diversidade de diferenças individuais, impossibilitando, ou, pelo menos,
dificultando a transação de confluência. A pessoa confluente necessita da
permissão para ser diferente; para expressar pensamentos, emoções e
atitudes dissonantes, que a diferenciem dos demais.”
E Crema complementa, citando os Polsters:
“Os antídotos para a confluência são o contato, a diferenciação e a articulação. O indivíduo deve começar a experienciar escolhas,
necessidades e sentimentos que são seus e que não têm que coincidir com os
de outras pessoas. Ele deve aprender que pode encarar o terror da
separação dessas pessoas e ainda permanecer vivo.” 13
31
6. Proflexão: quando eu manipulo o mundo
Para Cardella a principal característica deste mecanismo é que a pessoa só
faz aos outros o que ela espera que lhe façam. Há uma ação em direção ao outro,
mas esta ação tem a intenção de manipular esse outro para que ele satisfaça suas
necessidades. Não há entrega, disponibilidade nem “preocupação” com o bem estar
do outro, condições necessárias a uma legítima troca amorosa.
O indivíduo que proflexiona não tem coragem de explicitar suas expectativas
nem de expressar seus desejos. Ele relaciona-se somente através de jogos de
controle e manipulação, não permitindo que se conheçam suas expectativas e
necessidades reais. O uso dessa manipulação se fundamenta em sua baixa auto-
estima e sentimento de não ser digno de ser amado.
A partir do momento que ele não respeita a si mesmo, também não respeita
as necessidades do outro, transformando toda a possibilidade de contato autêntico
em troca de interesses e resistência ao contato.
Crema não tratou desse tipo de resistência, contudo entendemos que a forma
de trabalhar a proflexão seja através da valorização e qualificação do indivíduo,
demonstrando interesse e respeito por seus sentimentos de forma a restituir-lhe a
auto-estima e conseqüente confiança de se expressar com honestidade.
4.5. Resistência em Biodanza
Antes de entrarmos especificamente no aspecto da resistência em Biodanza
gostaríamos de fazer uma recapitulação de alguns aspectos já tratados em capítulos
anteriores.
Para Ana Freud, filha e discípula de Freud, o Ego do neurótico adulto teme os
instintos porque teme o seu Superego, representante psíquico das repressões culturais. As
defesas do Ego seriam motivadas pela ansiedade do Superego frente a possibilidade de uma
manifestação instintiva do Id, ou seja, a ansiedade estaria sempre na origem do processo
defensivo e esse processo buscaria barrar uma possível manifestação instintiva
considerada hostil à luz do Superego.
32
Toro, considerando que a cultura obstrui, desorganiza e perverte os instintos, propõe
como tarefa mais urgente para a recuperação da saúde a restauração da base instintiva da
vida e a busca de orientação nesses impulsos primordiais.
Vemos, assim, que no grupo de Biodanza estaremos nos defrontando abertamente
com o processo defensivo dos alunos, pois será nosso propósito que a pessoa entre em
contato com aquilo que ela mais teme; ela mesma: seus impulsos, sensações, desejos,
necessidades, sentimentos, emoções... e que faça isso na presença de um outro ou outros.
Em Biodanza, convidamos a pessoa para um contato sincero consigo mesmo e com
o outro, para se expressar com criatividade e autenticidade. Então nos deparamos com toda
a força da resistência ao contato, nos diversos tipos estudados pela Gestalt-terapia.
A título de ilustração, apresentamos abaixo alguns comportamentos que,
acreditamos, podem ser tomados como exemplos de resistência neurótica em um grupo de
Biodanza:
1. Introjeção
Alguns participantes têm uma grande “fome” por novidades, estão sempre na
expectativa de algo novo. Os exercícios propostos são realizados apressadamente.
Mal o Facilitador começa a fazer a consigna, esses participantes já estão se
movimentando, sem nenhum cuidado em entender a proposta e perceber sua
finalidade. Engolem inteiro os exercícios sem se dar conta das mensagens vivenciais
que eles buscam transmitir. Resultado: fazem mecanicamente, não vivenciam.
Outros tentam introjetar a Biodanza inteira: num primeiro momento, ficam
deslumbrados com o grupo, mas logo se afastam, enfastiados, em busca de uma
nova teoria ou sistema que dê conta de suas angústias. Essas pessoas não sabem ou
não podem refletir sobre suas vivências nem dão tempo a si mesmas para
compreender e absorver a proposta da Biodanza. Buscam algo que as salvem sem
se dar conta de que tudo começa pela sua própria atitude frente ao mundo.
33
2. Projeção
Fenômenos de intensa proyección se facilitan a través de los grupos,
hasta tal punto que podríamos decir que los demás pasan a representar
las cualidades reprimidas inconscientes.”
Rolando Toro
Toro, ao falar sobre os primeiros momentos de vida de um grupo, chama a
atenção para as reações ambivalentes de cada participante em relação ao próprio
grupo: amor e ódio se sucedem como resultado das projeções de medo ao amor, de
desejo de contato, de impulsos agressivos, de temor à rejeição, etc.
Toro explica ainda que, ao entrar num grupo de Biodanza, o indivíduo expõe
sua identidade a uma série de riscos pelo simples fato de enfrentar identidades
diferentes. Com isso torna-se inevitável que os mecanismos de resistência
utilizados por ele e, em especial, a projeção se manifeste e crie uma série de
dificuldades ao contato tão desejado.
O participante que introjetou a crença de que não é digno de ser amado, e
não aceita a si mesmo, através do mecanismo de projeção pode perceber essa
rejeição num outro participante, ou mesmo no grupo, passando a evitar iniciativas
de contato com medo de ser rejeitado. Esse participante terá dificuldade em escolher
um outro participante para uma dança em pares, por exemplo. Ele teme a rejeição e,
por isso, prefere se deixar escolher. É mais “seguro” na sua maneira de perceber o
mundo.
O participante raivoso através da projeção pode se sentir ameaçado. E o
participante muito reprimido sexualmente pode ver seu desejo no outro e se sentir
constrangido ou estimulado!
3. Retroflexão
Na retroflexão a pessoa controla as emoções através de disciplina rígida e
autocontrole, resultando em falta de expressão, o que é muito comum num grupo de
Biodanza. O ambiente no grupo convida à expressão, ora de alegria, ora de
entusiasmo, ora de prazer, ora de ternura, etc., mas o participante que retroflete suas
34
emoções continua seu movimento mecânico, sem expressão, fugindo a um contato
mais profundo consigo mesmo e com o outro. Essa falta de espontaneidade limita
toda a expressão da identidade, nas suas mais variadas formas, desde o caminhar,
que é “robotizado”, até a carícia, que é mecânica. O grito não sai, fica preso na
garganta. O canto não tem potência nem melodia, é tímido, sufocado ou estridente.
4. Deflexão
Nessa forma de resistência o participante evita o contato pela dispersão ou
desfocalização de sua atenção. Podemos ver claramente esse tipo de resistência no
grupo de Biodanza pela dificuldade dos participantes em olhar o outro, não só numa
Roda de Olhar, onde o contato é certamente mais intenso, mas até mesmo nos
exercícios iniciais de Sincronização Rítmica ou Melódica.
Também nos exercícios de acariciamento o participante evita um contato
mais íntimo pelo mecanismo da desfocalização: em alguns casos a evitação se dá
pelo desvio do olhar do corpo da pessoa que está sendo acariciada, noutros o
participante simplesmente fecha os olhos e “viaja”.
O Relato de Vivências é outra situação na qual a resistência dos
participantes, por deflexão, se mostra com toda sua força: o participante evita
entrar em contato consigo mesmo e falar de suas vivências. E faz isso falando do
outro, generalizando ou puxando um assunto que não tem nada a ver com a sua
vivência. Com isso ele se sente mais “protegido”, pois conseguiu desviar o foco de
atenção de si mesmo.
5. Confluência
Podemos observar a falta de limite entre si mesmo e o outro ou a negação da
individualidade de cada um, que caracterizam a confluência, em inúmeras situações
no grupo de Biodanza:
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Dificuldade em iniciar um movimento próprio, diferente dos
demais. O participante busca no grupo a orientação para seu
movimento e repete o que vê.
Dificuldade de entrar na Roda e se expressar livremente, através
do movimento ou da voz. O participante teme se destacar e
mostrar sua diferença.
No Relato de Vivências o participante teme expressar opinião
própria sobre algum tema em discussão. A ansiedade o deixa
mudo. Às vezes arrisca uma pergunta...
6. Proflexão
A manipulação do outro, como forma de resistir ao contato, pode se
apresentar na forma negligente, sem presença, de fazer uma carícia, quando o
Facilitador propõe um Acariciamento em Pares, com troca. O participante faz por
interesse, não tem coragem de assumir que não deseja se doar, que só deseja
receber, ser acariciado. Então, ele “dá” sua carícia como um elemento de troca de
interesses, sem nenhuma intenção de se comunicar amorosamente com o outro. A
ternura é um sentimento que ele desconhece.
O que existe de comum em todos essas formas de resistência é uma grande inibição
da expressão, da capacidade de entrar em intimidade e de vivenciar um autêntico contato.
Acima de tudo, o que se percebe é a falta de presença, ou seja, falta de vinculação consigo
mesmo, numa atitude de alheamento defensivo, evitando ir além de suas fronteiras bem
guardadas. Sem vínculo consigo mesmo, torna-se impossível o vínculo com o outro.
O aluno está na sessão; é convidado a se movimentar, a se expressar e entrar em
contato. Então, a saída defensiva que ele encontra é a falta de presença, o fazer
mecanicamente o que lhe foi sugerido, mantendo-se distante. Ele não está presente e, com
isso, também não concede presença: desvia o olhar, fala, “brinca”, abraça apressadamente...
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É como se ele não pudesse reconhecer a presença do outro, que parece assumir a categoria
de uma grande ameaça à sua integridade.
Quando na aula seguinte, durante o tempo reservado para a intimidade verbal, se
pergunta: então como foi a aula passada?, ele não sabe, não tem nada íntimo a dizer, pois
não vivenciou a si mesmo, estava noutro lugar, ocupado em se defender.
N O T A S:
1 Toro, Rolando. Tomo: Teoria da Biodanza, p. 12 2 Laplanche. Vocabulário da Psicanálise, p. 107 3 Horney, Karen. A Personalidade Neurótica..., p. 18 4 Idem, idem, p. 8 5 Idem, idem, p. 20 6 Crema, Roberto. Análise Transacional ..., p. 51 7 Idem, idem, p. 55 8 Idem, idem, p. 56 9 Toro, Rolando. Tomo: Teoria da Biodanza, p. 12 10 Cardella, Beatriz. O Amor na Relação Terapêutica, p. 41 11 Crema, Roberto. Análise Transacional..., p. 86 12 Idem, idem, p. 92 13 Idem, idem, p. 97
37
5 COMO ATUA A BIODANZA?
Podemos entender a Biodanza como uma fonte de estímulos vivenciais para uma
vida com mais intensidade, ou seja, mais vitalidade, mais vínculo afetivo, mais
comunicação, mais expressão autêntica, mais prazer... e mais presença.
Para isso a Biodanza dispõe do que se convencionou chamar “Mecanismos de
Ação”, cuja função é estimular a integração do organismo e desenvolver os pontenciais
humanos inatos, de forma que o participante vá aos poucos liberando-se da rigidez dos
comportamentos defensivos e, com isso, harmonizando-se com a fluidez da vida.
Esses “Mecanismos de Ação” estão relacionados a exercícios e, às vezes, se
confundem com eles, que são propostos pelo Facilitador segundo sua percepção das
necessidades do grupo. A Biodanza é, portanto, um Sistema de Desenvolvimento Humano
que utiliza uma abordagem indutora de vivências na busca dos seus objetivos.
Neste capítulo procuraremos entender a natureza da ação desses exercícios.
Contudo, antes de tratarmos especificamente dessa questão, consideramos ser necessário
apresentar dois princípios fundamentais no estabelecimento da base sobre a qual se dá a
ação da Biodanza.
5.1. Princípios Fundamentais
Os princípios estabelecidos por Toro se destinam a dar uma estrutura operatória ao
Sistema; eles são a base para todo o desenvolvimento teórico e metodológico que se segue.
Entendemos que o processo vivencial e a estrutura grupal são os dois princípios mais
fundamentais do Sistema, sem os quais não se pode falar em Biodanza. É conveniente
ressaltar que não estamos nos esquecendo do Princípio Biocêntrico, espinha dorsal do
Sistema criado por Rolando Toro, ao qual já nos referimos no Capítulo três, item 3.2.
38
5.1.1. Processo Vivencial
Em Biodanza a vivência é prioritária. É a partir dela que se busca estimular o acesso
à identidade e à sua expressão. Na verdade, a eficácia de um exercício de Biodanza
depende da profunda integração entre a música, o movimento e a vivência. Entende-se que
é a partir dela que se dá a transformação desejada, é ela a fonte propulsora do projeto
existencial. A vivência emocionada tem o poder de regular e integrar as funções
neurovegetativas, ativando-as ou moderando-as.
A integração do vivenciado à consciência e à regulação visceral, que caracteriza a
integração necessária dos três níveis de aprendizagem humana, dar-se-á posteriormente,
complementando o processo de transformação existencial.
5.1.2. Estrutura Grupal
“A finalidade da relação é o seu próprio ser, ou seja, o contato com o Tu. Pois, no contato com cada Tu, toca-nos um sopro da vida eterna.”
Martin Buber
A vivência em Biodanza se dá em grupo semanal, sob a orientação de um
Facilitador, onde as pessoas se encontram com o propósito de “dançar a vida”. Dançar em
grupo, descobrindo, progressivamente, os rituais de aproximação e encontro, buscando um
nível mais elevado de comunicação afetiva, resultado da maior liberdade na expressão da
própria Identidade.
A vivência de si, observa Toro, surge durante a “convivência”,1 ou seja, é na
presença do outro que nossa identidade se revela. O grupo é, portanto, fundamental nesse
processo de encontrar-se a si mesmo e, com isso, poder vincular-se ao outro.
É no grupo que cada participante vai encontrar reforço para seus aspectos saudáveis
e desenvolver seus potenciais através de cinco linhas de vivência. No grupo de Biodanza
cada um de seus participantes deve encontrar proteção, estímulo e desafio, com propósito
de ajudá-lo nas transformações que busca realizar.
Segundo Toro, uma das funções que o grupo assume é de dar permissão aos seus
membros para reduzir a força dos mecanismos de defesa e deixar que a energia afetiva
reprimida comece a circular com mais espontaneidade, dando lugar à vivência. Assim, o
39
grupo de Biodanza deixa de ter características repressoras, como outros grupos sociais, e
passa a ter uma função permissiva, o que facilita o processo de reparentalização, ou seja, a
modificação dos padrões de resposta adquiridos durante a infância.
. Quando o grupo atinge esse nível de integração ele se torna, como diz Toro (3), um
biogerador, um centro gerador de vida no qual cada um projeta seus sentimentos, desejos e
necessidades e passa a perceber melhor a essência do outro. Com isso, o participante deixa
de ver esse outro como um limite real para a sua expressão e se torna permeável à presença
e potência do outro, o que se manifesta como emoções integradoras de grande intensidade.
5.2. A Ação da Biodanza
Preferimos usar a expressão “Ação da Biodanza” no lugar de “Mecanismos de
Ação” por entendermos que o conceito de “mecanismo” está fortemente relacionado com
o conceito de equipamento ou máquina e a ação da Biodanza visa exatamente ao
contrário, ou seja, sair do movimento mecanizado, automático, próprio das máquinas.
Antes de entrarmos nos aspectos mais específicos de atuação da Biodanza,
gostaríamos de acrescentar algumas idéias sobre a importância de um corpo bem
“organizado” para uma expressão mais autêntica da identidade, reforçando, assim, a
abordagem corporal seguida por Toro. Essa importância pode ser observada nas palavras
de Oliveira, ao tratar sobre o desenvolvimento da psicomotricidade: .
“Todo ser tem seu mundo construído a partir de suas própias experiências corporais. O corpo deve ser entendido não somente como algo biológico e orgânico
que possibilita a visão, a audição, o movimento, mas é também um lugar que
permite expressar emoções e estados interiores. O corpo é uma forma de expressão
da individualidade”.2
O corpo é, portanto, como diz Oliveira, a maneira de ser da pessoa. É através dele
que ela estabelece contato com as entidades do mundo, que se engaja no mundo, que
compreende os outros. Conhecendo-o, ela tem mais habilidade para se diferenciar ou se
identificar com as entidades do mundo, fortalecendo assim sua própria identidade.
Voltando ao tema deste item, que é a Ação da Biodanza, entendemos que ela pode
ser analisada por dois enfoques: primeiro, pela natureza das vivências que são propostas ao
grupo e, segundo, pelo resultado dessas vivências sobre cada participante ou, mais
40
especificamente, pela alteração provocada por essas vivências no funcionamento fisiológico
e comportamental dos participantes.
Pessoa, ao escrever sobre esse tema, tratou dos dois aspectos: sob o título
“Mecanismos de Ação” ela colocou a natureza das vivências e sob o título “Efeitos” ela
descreveu as mudanças fisiológicas ou comportamentais correspondentes.
Neste trabalho apresentaremos os dois aspectos num bloco só, como fez Toro na
apostila do Curso de Didatas,3 apesar de não estarmos reproduzindo integralmente aquele
trabalho. Resumimos a Ação da Biodanza em oitos itens que passamos a descrever.
5.2.1. Ação sobre a Identidade
Generalizando, podemos dizer que a Biodanza atua através de vivências que
funcionam como uma grande fonte de estímulos aos potenciais genéticos intrínsecos de
vitalidade, sexualidade, criatividade, afetividade e transcendência, os quais têm um efeito
terapêutico sobre todo o organismo, integrando-o, harmonizando-o e estimulando sua
expressão mais autêntica. Em outras palavras, a Biodanza atua sobre as bases instintivas da
identidade, compreendida como o conjunto de qualidades essenciais da pessoa e que lhe
conferem sua singularidade, procurando “abrir caminho” à sua livre expressão.
5.2.2. Ação Integrativa
Buscando superar as dissociações motoras e afetivo-motoras induzidas pela
estrutura cultural e pelos conflitos pessoais, a Biodanza atua sobre a psicomotricidade,
reorganizando o esquema corporal através de exercícios de integração que envolvem o
movimento, as emoções subjacentes a esse movimento, o tônus muscular, a sensibilidade e
os sentidos. A evolução da motricidade é facilitada trabalhando as diversas categorias de
movimento, desde o ritmo até o movimento sensível e expressivo.
5.2.3. Ação Vitalizadora
Buscando despertar e desenvolver a alegria e o ímpeto vital, assim como a harmonia
e a capacidade de repouso e sono, a Biodanza atua sobre a função homeostática do
organismo: ora com exercícios rítmicos, rápidos, que produzem calor, suor, riso e liberação
da respiração; ora com exercícios lentos, suaves, promovendo a integração afetivo-motora.
41
A estimulação alternada dos sistemas simpático-adrenérgico e parassimpático-colinérgico
reforça o equilíbrio neurovegetativo necessário à função de autorregulação do organismo.
5.2.4. Ação Desrepressora
Buscando o desenvolvimento da sexualidade e a revalorização corporal, a Biodanza
atua sobre as couraças defensivas do ego através de exercícios de contato e carícia, de
danças de sedução e de danças eróticas de expressão da feminilidade e da masculinidade. A
dissolução das couraças, resultantes da desrepressão sexual, restaura a função de contato e
desperta o desejo, permitindo ao participante vivenciar seu corpo como fonte de prazer,
assumir suas preferências e realizar sua própria identidade sexual.
5.2.5. Ação Reintegradora
A Ação Integrativa da Biodanza (item 5.2.2) cria condições para uma reintegração
afetiva de cada participante com seu semelhante, através do desenvolvimento do processo
de identificação e da aprendizagem de formas de comunicação e encontro em “feed-back”.
Com essa abertura amorosa para o contato com o outro, a Biodanza busca a reintegração
de cada participante ao seu grupo social (retribalização), à espécie (humanização) e ao meio
ambiente (ecologia).
Para essa reaprendizagem afetiva são criadas situações de encontro e comunicação,
e rituais de vínculo, que atuam sobre o grupo despertando seus potenciais afetivos de amor,
amizade, altruísmo e solidariedade.
Uma abordagem básica para essa reaprendizagem é enfatizar o que Toro chamou de
“Princípios do Encontro Corporal”, buscando desenvolver as atitudes e habilidades
necessárias à reeducação do “estilo de encontro”.
5.2.6. Ação de Diferenciação
Nesta ação a Biodanza busca o desenvolvimento dos potenciais individuais dos
participantes para inovação e mudança, mediante exercícios de expressão. Os exercícios
são concebidos para devolver ao participante sua capacidade de expressão mais profunda e
desenvolver sua criatividade existencial, capaz de renovar e enriquecer seu estilo de vida.
42
Como exemplos podemos citar os exercícios de: expressão primal, integração yin-yang,
comunicação expressiva e elaboração criativa.
O participante é convidado a conectar-se consigo mesmo, sair do seu padrão
habitual, automático e experimentar novas formas de expressão, através do movimento e da
voz, diferenciando-se do grupo e experimentando-se a si mesmo, num ato de ousadia e
independência.
5.2.7. Ação Terapêutica
Este título foi dado por Toro à ação da Biodanza através do transe. Transe e
regressão são fenômenos que, freqüentemente, se produzem de forma simultânea. Santos,
citando Toro, define regressão nos seguintes termos:
“A regressão é, basicamente, um estado emocional que induz a aparição de
potenciais arcaicos. Este estado se caracteriza por um relaxamento de todos os
músculos e harmonização das funções viscerais. A atividade cortical e os sistemas
de alerta diminuem seus umbrais de resposta. No estado de regressão ocorre
ativação parassimpática, renovação orgânica e inibição simpático-adrenérgica. O
pulso, acelerado no começo, vai-se tornando mais lento e a respiração se
regulariza. Há também uma ativação dos mecanismos de termorregulação e
tendência ao sono. Durante o estado de regressão produz-se uma reativação de
padrões primitivos de desenvolvimento e uma reorganização dos impulsos vitais
obstruídos ou reprimidos pela aprendizagem. Este estado tem o caráter de
associação básica com o âmnio e requer condições especiais de proteção e
continente afetivo.” 4
As vivências de transe e regressão ativam as funções trofotrópicas de reparação
biológica, otimizam a homeostase e levam a um processo de renovação biológica em todo o
organismo, que é experimentado como um verdadeiro renascimento. Além disso, essas
vivências modificam os padrões de resposta adquiridos durante a infância, levando a um
processo de reparentalização com reflexo nas atitudes e crenças individuais dos
participantes.
Esta é a ação terapêutica da Biodanza. O transe integrativo e renovador através de
vivências (música-movimento-emoção), onde o grupo funciona como matriz de
renascimento.
43
5.2.8. Ação Transcendente
É também através do transe e regressão que a Biodanza atua sobre a percepção,
buscando a expansão da consciência para além das limitações do ego e, com isso, alcançar
as experiências de Êxtase e Íntase que nos abrem o caminho para uma relação com a
Totalidade. Para esta ação a Biodanza inclui também as chamadas Posições Geratrizes que,
segundo Pessoa, constituem verdadeiros arquétipos gestuais e geram danças espontâneas de
grande riqueza e profundidade existencial.
5.2.9. Ação de Reculturação
A Biodanza atua sobre o sistema de crenças dos participantes, buscando uma
transvalorização cultural, ou seja, uma nova cultura com valores pró-vida em substituição à
cultura atual com seus valores e costumes produtores de patologia . Isto é feito na primeira
parte da sessão, quando o Facilitador apresenta novas idéias que refletem uma visão de
mundo coerente com os objetivos e princípios da Biodanza, levando os participantes a
ampliarem seus horizontes e libertarem-se dos seus preconceitos.
Também nessa primeira parte da sessão cada participante pode compartilhar com o
grupo aquilo que vivenciou na sessão anterior, o que contribui para aumentar a consciência
da experiência vivida. Com isso, cada participante assume as vivências fortalecedoras de
sua identidade sadia, o que possibilita a revisão de antigas crenças e contribui para o
desenvolvimento de uma nova maneira de pensar e ver e atuar no mundo.
Essa é a natureza da ação da Biodanza, as várias formas que ela assume, sempre no
sentido de maior conexão com a vida, intrapessoal e interpessoal. Cada ação complementa
e é complementada pelas demais, parte de um todo integrado que busca desenvolver a
totalidade do ser humano, naquilo que ele tem de melhor: sua autenticidade amorosa.
Trata-se, como vimos, de uma ação diretiva, forte, potente, planejada no tempo para atingir
seus objetivos. Por tudo isso, essa ação deve ser progressiva, como veremos no capítulo
seguinte.
44
N O T A S: 1 Toro, Rolando. Identidad e Integracion, p. 9 2 Oliveira, Gislene. Psicomotricidade, p. 47 3 Toro, Rolando. Mecanismos de Acción de Biodanza, Cap. 7 4 Santos, Mª Lucia. Metodologia em Biodanza, p. 25
45
6 A AÇÃO PROGRESSIVA
DA BIODANZA
No capítulo quatro examinamos o que impede o indivíduo de realizar a
transformação tão desejada e concluímos que a maior barreira é ele mesmo ou uma
parte dele que se manifesta defensivamente, resistindo ao contato com seus próprios
sentimentos, emoções, necessidades e desejos.
No capítulo cinco examinamos a atuação da Biodanza como um Sistema que
busca o desenvolvimento do indivíduo, no sentido de uma maior e melhor expressão de
sua identidade, e descobrimos que ela atua em sentido oposto às resistências, buscando
integrar movimentos, sentimentos e pensamentos, que se apresentam dissociados em
função do processo repressivo existente na própria cultura.
Na verdade a Biodanza procura agir sobre a essência e não romper as couraças
defensivas. As defesas se tornam desnecessárias à medida que a essência se fortalece.
Contudo, para esse trabalho de fortalecimento da essência e integração do indivíduo
em sua singularidade, faz-se necessária uma transformação lenta e progressiva dos
diversos sistemas intra-humanos, em direção a um novo continente, estruturado num
nível mais elevado de integração.
A partir das vivências integradoras da Biodanza, torna-se possível a
reestruturação do sistema de crenças do participante, de suas couraças musculares e de
seu sistema de vínculos afetivos primários. Uma vivência integradora pode alterar uma
crença e influenciar todo o sistema. Mas a mudança deve ser gradual para não
prejudicar o funcionamento geral do sistema. Mudanças excessivas não dão tempo ao
organismo de reestruturar suas leis gerais de funcionamento. O participante pode
desenvolver um estado doloroso de angústia, resultando no enrijecimento das defesas e
conseqüente abandono do grupo.
46
A questão que surge, então, é como atuar de forma a não ir além das
possibilidades reais de cada participante. A resposta que encontramos foi
“progressividade”, ou seja, agir gradualmente, com suavidade, passo a passo, sem
ansiedade para atingir os resultados esperados.
Além dos princípios já tratados no capítulo anterior, Rolando Toro, na sua
função de criador da Biodanza, estabeleceu e definiu vários outros que, adicionados aos
paradigmas, criaram uma base sólida e consistente para o desenvolvimento teórico e
metodológico do Sistema. Dentre os vários princípios criados, queremos destacar, aqui,
aqueles que estão mais diretamente relacionados ao método progressivo de ação da
Biodanza.
6.1. Princípios que Determinam a Natureza Progressiva do Sistema
No que se refere à ação progressiva da Biodanza, Toro estabeleceu não só o
princípio de progressividade, propriamente dito, mas também o princípio de
autorregulação e o princípio de reciprocidade, todos buscando assegurar o
desenvolvimento progressivo dos participantes, como veremos a seguir.
6.1.1. Princípio de Progressividade
No capítulo dois, procurando responder à pergunta “o que é progressividade?”,
chegamos à conclusão de que progressividade se refere a uma qualidade que está
associada à própria natureza. A vida, dizíamos, se desenvolve continuamente,
progressivamente...
Toro, reconhecendo a natureza progressiva de todo processo de desenvolvimento
humano, escreve:
“El entrenamiento en Biodanza debe estar sujeto rigurosamente al principio de progressividad. En el planeamiento de un Curso de Iniciación y en
la estructuración de cada sesión, han de graduarse la intensidad y duración de
los ejercicios, de modo que se produza un proceso de cambio evolutivo.
Es necesario que un profesor modere su ansiedad por producir
modificaciones rápidas y espectaculares. Una evolución progresiva hacia la
salud, configura un estilo y un “sentido”de trabajo que da tiempo al alumno para asumir sus propios cambios. La idea de “quebrar corazas caracterológicas” tiene que ser resachada como procedimiento. No podemos
quebrar las defensas que un individuo há elaborado a través de anos, porque
corremos el riesgo de dejarlo sin continente para su identidad y poner
gravemente en peligro su homeostasis. Las defensas neuróticas tienen que irse
47
transformando, vale decir, tienen que ser reemplazadas por la nueva estructura
de salud.
Por outra parte, trasgredir el principio de progressividad puede
desencadenar en la persona un “stress” emocional doloroso, elevar sus niveles de culpabilidad y provocar sentimentos de angustia incontrolables.
Cada alumno evoluciona hacia la salud en relación a sus propios
patrones. La técnica no fomenta actitudes competitivas ni ansiedad de
rendimiento artificial. El principio de progressividad es coherente com los
conceptos de integración y desarrollo. Todo proceso de maduración está sujeto
a un ritmo interior y puede potenciarse solamente a través de un reciclaje
progressivo de los procesos vitales.” 1
Fizemos questão de transcrever integralmente o texto de Toro, em sua própria
língua, por ser este o ponto fundamental de nosso trabalho. É essa necessidade de se
respeitar as defesas ou resistências dos participantes que queremos enfatizar. Que as
aulas sejam planejadas de modo a garantir um processo suave e progressivo de
transformação evolutiva dos participantes, sem criar ameaças adicionais ao seu
equilíbrio emocional responsável pela integridade do organismo.
6.1.2. Princípio de Autorregulação
Coerente com a proposta fundamental da Biodanza de agir sempre a favor da
vida, o princípio de autorregulação reconhece a necessidade de se respeitar os
mecanismos naturais de regulação intraorgânica. Nas palavras de Toro, “...a Biodanza
se baseia no conhecimento fisiológico das funções de autorregulação e só reforça essas
funções, facilitando e permitindo seu fluir já programado através de milhões de anos de
evolução”. 2
Isto quer dizer que a Biodanza não interfere nas funções orgânicas de circulação,
calor, atividade-fadiga, sono-vigília, alimentação, etc. Seu objetivo é reforçar e
harmonizar essas funções, cuja autorregulação é natural no ser humano saudável e fazer
isso de forma progressiva.
6.1.3. Princípio de Reciprocidade
Já vimos anteriormente que a Biodanza é por princípio uma atividade grupal e
vivencial. Também vimos, quando tratamos da ação da Biodanza, que o contato, a
carícia e o encontro em “feed-back” são utilizados como ferramentas facilitadoras no
processo de desrepressão e abertura ao contato com o outro.
48
Sendo esses alguns dos instrumentos de que se vale a Biodanza, fica evidente a
necessidade de se estabelecer critérios para o relacionamento dentro do grupo de forma
a garantir o desenvolvimento progressivo e evitar conflitos. O Princípio de
Reciprocidade tem essa finalidade, ou seja, ele é uma regra de funcionamento do grupo
que deve ser passada aos alunos, verbal e vivencialmente.
O Princípio de Reciprocidade estabelece que o relacionamento deve se dar em
“feed-back”. Segundo Toro, isto significa que:
“...o Facilitador não pode exercer autoridade alguma para provocar
contatos forçados. Cada participante deverá ter liberdade suficiente para
aceitar ou rechaçar um determinado contato. Deste modo, as situações de
encontro propostas devem permitir a cada indivíduo graduar a forma e a
quantidade de contato que nesse momento pode oferecer. Nenhum participante
deve ser forçado a dar ou receber um contato que não deseja, seja por pressão
do grupo ou por indicação direta do Facilitador. A aproximação progressiva em
“feed-back” permite que cada um seja informado sobre a quantidade de
aproximação que é permitida.” 3
Toro cita textualmente a necessidade do Facilitador dar proteção à pessoa inibida
para que ela possa ensaiar progressivamente seus contatos. Também a pessoa muito
desinibida deve ser informada de que não pode exercer a liberdade de contato sem estar
autorizada pela outra pessoa. Se assim não for, observa Toro, ambos entram em
patologia: o inibido, por suportar um contato que não deseja, faz o jogo de vítima; o
desinibido, por invadir seu companheiro, faz o jogo de perseguidor.
Havendo encontro em “feed-back”, evita-se o reforço da patologia e desenvolve-
se uma nova forma de se relacionar, com responsabilidade e reciprocidade.
Não é necessário o uso da palavra para informar ao outro o limite de contato
desejado. Como diria Pierre Weil, “ o corpo fala!...”. O corpo, observa Toro, emite
sinais claros de aceitação ou evitação, o que ocorre alternadamente durante o encontro.
A reciprocidade se dá pela aproximação progressiva, o que permite que cada
pessoa perceba o limite do outro de forma dinâmica e regule o quanto de contato é
possível naquele momento. Se um dos participantes percebe que o outro não está em
condições de aceitar mais intimidade, então ele, atento ao princípio de reciprocidade,
deve esperar que o outro estabeleça o nível de contato possível. Com isso, cresce o nível
de confiança dentro do grupo, a permissão para o contato aumenta gradativamente e o
relacionamento se torna cada vez mais encantador.
Apesar de não ser necessário o uso da palavra, como dissemos acima, já que o
corpo fala, é minha opinião de que poderá haver invasão mesmo com a colocação de
49
limites corporais, quando algum dos participantes tem dificuldade de perceber as
limitações dos demais. Neste caso, os participantes devem ser orientados para trazer o
problema para o grupo, na aula seguinte, durante o relato de vivências, de forma a evitar
perpetuar uma situação patológica que poderá levar a pessoa vitimada a abandonar o
grupo.
Evidentemente, o grupo deve ser orientado para que a colocação de um
problema dessa natureza seja feita de forma delicada , não com acusações, mas
sinalizando para o outro sobre o sentimento de constrangimento que sua ação possa ter
causado. Sabemos que esta é uma atitude dificílima para uma pessoa tímida, contudo
cabe ao Facilitador, percebendo a situação, facilitar para que ela venha à luz e possa ser
verbalizada.
Caso venha a entrar um novo membro para o grupo após o início do curso, mais
do que nunca a reciprocidade deve ser enfatizada. Primeiro, porque essa pessoa
provavelmente necessitará de tempo para chegar ao nível de contato já existente no
grupo e, segundo, porque ela, na sua busca de aceitação, poderá ultrapassar seus
próprios limites, correndo o risco de desencadear sentimentos conflitantes, resultando
no abandono do grupo e retardamento do seu desenvolvimento existencial.
6.2. Critérios Gerais que Facilitam a Progressividade
O Grupo, como vimos no capítulo cinco, é essencial para a metodologia da
Biodanza. É ele que cria as condições necessárias para o reflorescimento da Identidade.
Ele é fonte de estímulo de proteção e de desafio, tudo isso extremamente necessário no
processo de abertura ao contato com o mundo. Contudo, se o grupo for muito
heterogêneo, se os participantes estiverem em níveis muito diferentes de
desenvolvimento, ele será também fonte de dificuldades para a progressividade de cada
participante. Ele poderá se tornar uma ameaça para os mais inibidos.
Foi, acredito, procurando dar uma solução metodológica para o problema e criar
condições de manter o Princípio de Progressividade, que Toro criou dois níveis para os
cursos semanais de Biodanza, determinados pelo grau de intensidade e profundidade
vivencial: o Curso de Iniciação, para iniciar o processo de integração, e o Curso de
Aprofundamento, para aprofundar a intensidade das vivências.
50
6.2.1. O Curso de Iniciação
Este curso, como o próprio nome indica, é uma introdução, os primeiros passos
no desenvolvimento vivencial proposto pelo Sistema. Sua duração, prevista por Toro,4
é de um ano, podendo haver repetência para aqueles que sentirem necessidade. Ele se
destina às pessoas com pouca ou nenhuma experiência em Biodanza e, por isso mesmo,
pressupõe um nível menor de aprofundamento, suas vivências são menos intensas do
que as do curso avançado. No item 6.4 trataremos detalhadamente do planejamento das
aulas de um Curso de Iniciação.
6.2.2. O Curso de Aprofundamento e Radicalização de Vivências
Trata-se do curso semanal de nível avançado, por definição do próprio Toro,4
que pressupõe um grau maior de aprofundamento vivencial. Destina-se às pessoas que
hajam superado o nível inicial e estejam avançadas em seu próprio processo de
integração através do Sistema Biodanza. Sua duração, segundo Toro, é de um a dois
anos, podendo haver repetência para aqueles que sentirem necessidade.
Toro deixa bem claro a diferença entre aprofundamento e radicalização de
vivências. No Aprofundamento de Vivências eleva-se o grau de intensidade vivencial
nas cinco linhas de vivências. Trata-se, portanto, de uma continuação do Curso de
Iniciação, só que com mais intensidade. A Radicalização de Vivências é diferente, trata-
se do resultado final esperado, de todo o processo vivencial, na vida de cada
participante. Ela consiste em desenvolver uma compreensão essencial da Biodanza
como sistema de otimização da existência humana, incorporando ao próprio estilo de
vida as mudanças já vivenciadas através da Biodanza. Pode-se dizer que com a
Radicalização de Vivências os três níveis de aprendizagem (Vivencial, Cognitivo e
Visceral) se integram, dando lugar a um novo jeito de ser no Mundo, ou seja, um
renascer.
6.2.3. Classificação dos Exercícios
Além de criar dois níveis para os cursos semanais, Toro5 ainda classificou os
exercícios de Biodanza em quatro categorias, do ponto de vista funcional. As três
primeiras categorias se referem aos exercícios básicos, de mais fácil realização, próprios
do Curso de Iniciação. A 4ª categoria se refere aos exercícios específicos de
aprofundamento. Podemos ver, também nessa classificação, o cuidado de Toro em dar
51
aos Facilitadores de Biodanza uma orientação para a introdução dos exercícios com
progressividade ao longo dos cursos de Iniciação e de Aprofundamento.
1ª categoria: Integração Motora
Esses exercícios fazem parte da Ação Integrativa e Vitalizadora
da Biodanza. Eles se caracterizam por sua ação integradora
particularmente eficaz ao nível motor. São os vários exercícios de
caminhar, as danças rítmicas, os jogos de vitalidade, os exercícios de
fluidez, os movimentos segmentares, os exercícios de extensão e
elasticidade integrativa, entre outros.
2ª categoria: Integração Afetivo-Motora e Expressão
Esses exercícios complementam a Ação Integrativa e são parte da
Ação de Diferenciação da Biodanza. Eles têm o objetivo de integrar os
gestos com as emoções, no sentido de reduzir progressivamente a
dissociação afetivo-motora. Incluem-se nesta categoria os exercícios em
pares, tais como: coordenação rítmica, sincronização rítmica,
sincronização melódica, danças de eutonia, dar e receber a flor, etc.
Exemplos de exercícios de expressividade são: as posições geratrizes do
código I e suas respectivas danças, a dança yin, a dança yang, a dança
yin-yang e a dança de expressão melódica, etc.
3ª categoria: Comunicação Afetiva e Comunhão
Esses exercícios fazem parte da Ação Reintegradora da Biodanza.
Eles evocam vivências de comunhão entre os participantes do grupo a
partir da comunicação dos próprios sentimentos e emoções, através dos
gestos, do olhar e do contato sensível em feed-back. Essas vivências são
importantes para a integração do grupo e incluem todas as formas de
encontro previstas no Catálogo Oficial, as rodas em suas diversas
modalidades, os exercícios de contato e acariciamento sensível, a fluidez
em grupo com contato sensível e o grupo compacto de embalo, entre
outras.
52
4ª categoria: Exercícios Específicos de Expressão dos Potenciais Genéticos
Aqui vamos encontrar todas as formas vivenciais de ação da
Biodanza: Ação Integrativa, Vitalizadora, Desrepressora, Reintegradora,
de Diferenciação, Terapêutica e Transcendente. São exercícios do Curso
de Aprofundamento nas cinco linhas de vivência e sua realização requer
maior maturidade vivencial do grupo e de cada um de seus participantes.
Os detalhes da natureza desses exercícios não serão objeto desse
trabalho, a não ser aqueles exercícios específicos que devem ser
introduzidos já no Curso de Iniciação.
6.3. Progressividade em Cada Sessão
Uma das principais características do Modelo Teórico da Biodanza é a continua
pulsação vivencial entre os dois pólos da consciência humana: “Consciência
Intensificada de Si Mesmo” e “Regressão”. Esta pulsação, ou trânsito, deve estar
presente em cada sessão, pois é através dela que a Biodanza realiza sua ação
vitalizadora, integrando as funções ergotróficas e trofotróficas.
O ponto que queremos tratar aqui se refere à necessidade de que esse trânsito
seja feito com progressividade, de forma a não causar mal-estar aos participantes, o que
poderia anular os benefícios planejados para a sessão.
Ao tratar desse tema, Toro chama a atenção para a “necessidade de que a
estrutura da sessão permita aos participantes fluir organicamente para novos níveis de
intensidade e qualidade vivencial, sem interrupção do estado orgânico emocional.” 6
Sua orientação é para colocar exercícios que estimulam uma pulsação suave entre os
dois pólos extremos da consciência, com efeitos harmonizadores e facilitadores do
equilíbrio neurovegetativo. A título de exemplo, ele sugere as Seqüências de Fluidez, a
Dança de Extensão Harmônica, a Sincronização Melódica em Pares, a Dança em Pares
com Samba Cadenciado, O Movimento Segmentar de Peito-Braços e a Dança Sensível
de Braços.
Também a volta da Regressão ao estado de Consciência de Si precisa ser lenta e
progressiva. Sair bruscamente da Regressão é como ser acordado por um despertador
estridente, causa mal-estar e irritação. A indicação clássica da Metodologia, para essa
ativação progressiva, é a Roda de Ativação Progressiva na qual a música deve começar
com muita suavidade e ir crescendo ritmicamente, aos poucos. Uma alternativa é
colocar duas músicas bem encadeadas e com ativação crescente.
53
Para esse encerramento é necessário ouvir Toro, segundo o qual “a ativação
final da sessão não deve ser intensa em nenhum caso”. É que muita intensidade no final
da sessão pode destruir o estado interno de harmonia cuidadosamente conquistado ao
longo da sessão. A necessidade que alguns participantes, e até mesmo Facilitadores, têm
de terminar as sessões sempre com euforia, pode ser uma indicação de que ainda não
entenderam completamente a proposta da Biodanza que busca a harmonização e não a
euforia festiva.
6.4. Planejamento das Aulas de um Curso de Iniciação
Planejar implica em definir objetivos e estabelecer estratégias de ação para
alcançar esses objetivos. Toro definiu objetivos globais e específicos para o Curso de
Iniciação e, no nosso entendimento, estabeleceu o Princípio de Progressividade como
estratégia básica.
6.4.1. Objetivos do Curso de Iniciação
Os objetivos globais do Curso de Iniciação se referem às cinco linhas de
vivências, ou seja, a estimulação dos potenciais genéticos nas linhas de Vitalidade,
Afetividade, Criatividade, Sexualidade e Transcendência, e a estabilização das
mudanças evolutivas já realizadas nessas linhas.
Os objetivos específicos do Curso de Iniciação é começar o processo de
integração corporal, em seus vários aspectos (integração motora, afetivo-motora,
sensório motora, etc.), e introduzir com progressividade alguns dos exercícios das cinco
Linhas de Vivências.
6.4.2. Estratégia de Ação para o Curso de Iniciação
A estratégia básica da Biodanza para o sucesso de um Curso de Iniciação é a
progressividade, que se refere ao aumento gradual de intensidade vivencial, desde o
início até a conclusão do curso. Portanto, cada sessão é uma etapa, com intensidade
vivencial crescente, no percurso de realização dos objetivos.
Uma Abordagem Progressiva para os Objetivos Globais
É na obra de Maria Lúcia Pessoa Santos que vamos encontrar uma sugestão para
a abordagem progressiva das linhas de vivências. Santos, considerando a Vitalidade
54
como a linha menos reprimida e a Afetividade como a base para a reorganização do
projeto existencial, sugere como caminho facilitador a introdução progressiva dos
exercícios na seguinte seqüência de linhas de vivências:
1ª. Vitalidade-Afetividade
2ª. Vitalidade-Afetividade-Criatividade
3ª. Vitalidade-Afetividade-Sexualidade-Criatividade
4ª. Vitalidade-Afetividade-Criatividade-Sexualidade-Transcendência
A primeira seqüência, segundo Pessoa,7 favorece a integração do esquema
corporal e a alegria de viver, enquanto que a segunda seqüência favorece o caminho
apolíneo, simbolizador e diferenciado.
Progressividade em Direção aos Objetivos Específicos
Já sabemos que o objetivo específico do Curso de Iniciação é começar o
processo de integração e introduzir com progressividade alguns dos exercícios das
cinco linhas de vivências.
Sabemos também que esse processo de integração compreende os exercícios de
integração motora, integração afetivo-motora, expressividade, comunicação afetiva e
comunhão, assim como uma introdução aos exercícios de regressão e à carícia
Vimos no capítulo quatro, que o que impede a pessoa de ser ela mesma e se
expressar com autenticidade é a resistência e que resistir é resistir ao contato. Contato
consigo mesmo, com seus sentimentos e, conseqüentemente, contato com o outro.
Portanto, um caminho facilitador, que leve em consideração o caráter protetor da
resistência, é aquele em que o contato é estimulado, suave e lentamente, dando ao
participante condições dele mesmo regular a intensidade de contato possível para ele.
A questão então é como essa suavidade pode ser mantida ao longo do curso , de
forma a criar condições favoráveis à expressão saudável de cada participante. Uma
condição básica é que cada sessão seja uma etapa no percurso de realização desses
objetivos específicos
Com os exercícios do Curso de Iniciação buscamos essa suavidade, estimulando
progressivamente a vitalidade e a afetividade. A criatividade também é suavemente
estimulada com as danças simples de expressão. E com as Posições Geratrizes do
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Código I e suas danças, oferecemos aos participantes a possibilidade de melhorar sua
expressividade e estimulamos vivências delicadas e sutis de transcendência.
Abaixo examinaremos cada uma das categorias de exercícios do Curso de
Iniciação, procurando sempre ressaltar os aspectos que nos remetem ao Princípio de
Progressividade .
.
Integração Motora
No inicio do curso devem predominar os exercícios de integração motora, pois é
através desses exercícios que os alunos aprendem a liberar seus movimentos, a
desenvolver sua capacidade rítmica, começam a dissolver suas tensões crônicas e a
superar suas dissociações.
Portanto, no início, vamos dar prioridade aos exercícios segmentares, que
trabalham os segmentos corporais. Vamos trabalhar as diversas categorias de
movimento, pois é através da percepção das sensações experimentadas em relação ao
corpo em movimento que se organiza o esquema corporal.
Desejamos alcançar a graciosidade do movimento, mas vamos começar pelo
ritmo, sinergismo, deslocamento, agilidade, até chegar à fluidez que requer equilíbrio,
leveza, suavidade, concentração e muita sensibilidade.
Integração Afetivo-Motora
Como vimos acima, na classificação de Toro, aqui surge o “outro” nos
exercícios de Biodanza. É nas danças em pares, rítmicas ou melódicas, coordenadas ou
sincronizadas, com eutonia de mãos ou de dedos, que vamos buscando integrar emoção
e movimento de forma que o participante possa estar cada vez mais presente , em
conexão consigo mesmo e com o outro, agora um cúmplice na busca da integração. A
progressividade aqui recomenda que comecemos pelas danças rítmicas, mais fáceis para
os iniciantes, e que façamos muitas trocas, facilitando a integração com o grupo e
evitando que o contato com uma mesma pessoa seja muito prolongado, o que poderia
causar constrangimento.
As danças expressivas da Linha da Criatividade fazem parte dos exercícios de
Integração Afetivo-Motora e devem ser introduzidas progressivamente, de acordo com
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o desenvolvimento dos participantes, começando pelas Posições Geratrizes do Código I
e suas respectivas danças.
Comunicação Afetiva e Comunhão
Como vimos anteriormente, quando tratamos dos objetivos globais do Curso de
Iniciação, os exercícios da Linha de Afetividade são básicos para a reorganização do
projeto existencial do participante de um grupo de Biodanza. A partir dessa constatação,
Toro orienta no sentido de trabalhar, já no Curso de Iniciação, todas as formas de
Comunicação Afetiva previstas no Catálogo de Exercícios, enfatizando sempre a
reciprocidade que, conforme vimos anteriormente, é um princípio básico para a
suavidade do aprendizado.
Toro complementa seu raciocínio, sugerindo que o encontro humano seja
trabalhado através do que ele chamou “Princípios do Encontro Corporal”: sintonia,
iniciativa recíproca, reciprocidade, sincronicidade, fluidez, diálogo psicotônico,
eurritmia, integração, diversificação, compressão-descompressão, incondicionalidade e
expressividade. Com isso estaremos dando aos participantes condições para desenvolver
as atitudes e habilidades necessárias à reeducação do “estilo do encontro”. Mas esse
trabalho deve ser muito suave, sentindo o grupo, de forma a não criar tensões
desnecessárias. O feed-back deve ser sempre enfatizado em cada encontro, de forma que
cada participante se sinta à vontade para não ir além de suas possibilidades de contato.
Nas primeiras sessões de um Grupo de Iniciação pode ser necessário trabalhar
apenas a Integração Motora e a Integração Afetivo-Motora, deixando a Comunicação
Afetiva, que requer mais sensibilidade e contato físico, para um segundo momento,
dependendo da evolução do grupo.
A Comunhão, no entanto, estará presente desde os primeiros momentos do
Grupo de Iniciação. Começamos com uma Roda de Integração, acolhemos numa Roda
de Embalo e finalizamos com uma Roda de Ativação. As outras Rodas, de
Comunicação, de Fluidez, de Olhar, etc., vêm depois, na medida em que o grupo se
mostrar mais aberto ao contato.
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Introdução aos Exercícios de Regressão e à Carícia
Desde as primeiras sessões os participantes de um Grupo de Iniciação já
vivenciam a regressão suave, através de exercícios como a Roda de Embalo, o
Segmentar de Pescoço e a Integração dos Três Centros. Aos poucos, progressivamente,
podemos introduzir exercícios de regressão moderada como a Regressão por
Acariciamento de Rosto e o Dar e Receber Continente em Pares. Toro chama a atenção
para a necessidade de obediência rigorosa à progressividade, pois somente assim
seremos capazes de criar as condições desejadas de integração afetivo-motora.
Um dos pontos mais sensíveis no Grupo de Iniciação se refere à introdução dos
exercícios de acariciamento, necessários ao restabelecimento pleno da função de
contato. Podemos começar com o toque simples, ainda sem as características afetivas da
carícia. E é sempre bom lembrar que as diversas partes do corpo têm significado
diferente do ponto de vista defensivo. O toque de mãos e nos ombros ameaçam menos,
pois são mais socialmente aceitáveis e praticados, independentemente de um maior
vínculo afetivo.
Segundo Toro, o momento ideal para propor exercícios de acariciamento é
quando os participantes começam a manifestar espontaneamente a necessidade de
contato, através de seus próprios gestos e iniciativas de aproximação.
No Anexo “A” apresentamos uma Lista de Exercícios da Linha da Sexualidade,
sugeridos por Toro para os Grupos de Iniciação, com vivências em ordem progressiva
de intensidade.
6.5. A Música como Instrumento de Progressividade
A Biodanza utiliza músicas exclusivamente orgânicas como meio para a
deflagração de vivências. São músicas que contêm os atributos biológicos de fluidez,
harmonia, ritmo, tônus e unidade de sentido. Esses atributos são percebidos pelos
participantes do grupo sob a forma de emoções, tais como: harmonia, tranqüilidade,
ternura, entusiasmo, euforia, vitalidade, erotismo, etc.
A intensidade das vivências que buscamos em Biodanza se fundamenta na
unidade música-movimento-emoção. Portanto, além da natureza específica do exercício,
também a música é um elemento valioso na progressividade dessa intensidade vivencial
e do resultado que se espera alcançar.
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Isto significa que além da qualidade de indução da música, deve-se prestar
atenção também ao aspecto quantitativo do seu potencial deflagrador de vivências.
A Escola de Biodanza fornece um Catálogo de Músicas para todos os exercícios
oficialmente aprovados por Toro. Contudo, é necessário que o Facilitador desenvolva
muito sua sensibilidade musical, de forma que ele possa escolher, dentre as várias
músicas que são sugeridas no Catálogo, aquela que melhor atende à intensidade
vivencial que ele deseja induzir em uma determinada sessão.
Uma orientação básica para a progressividade num Grupo de Iniciação pode ser
resumida nos seguintes itens:
1. Utilizar primeiro as músicas com menor potencial deflagrador de vivências e
perceber seu efeito sobre o grupo.
2. À medida que o grupo se mostrar mais integrado, experimentar uma música
com maior capacidade de indução e observar o efeito.
3. Nos primeiros exercícios de toque e carícia cuidar para que a música tenha
um conteúdo afetivo e não erótico.
4. Observar se o texto da canção está adequado à vivência que se quer induzir,
principalmente quanto ao aspecto erótico da letra da música em vivências de
comunicação afetiva.
5. Cuidar para que a passagem de vivências com temas clássicos suaves para
vivências com temas populares e ligeiros seja feita com suavidade.
6. Nas primeiras sessões, evitar músicas com muito tempo de duração.
7. Se decidir interromper a música antes do final, não cortar bruscamente,
abaixar lentamente o volume de forma que os participantes não percebam a
interrupção.
6.6. Progressividade nas Consignas
A consigna é um outro elemento do Sistema Biodanza importantíssimo na
indução do exercício e, portanto, também responsável pela progressividade das
vivências.
A consigna, observa Santos, “dá um marco referencial nítido para a dança da
vida, ao estabelecer a relação entre a estrutura do exercício, seus objetivos, efeito
regulador e a repercussão que poderá ter na existência”.8
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Para Toro, a qualidade das vivências depende em grande parte das consignas:
“ Hay consignas simples, descriptivas y hay consignas en que el profesor
se compromete, se entusiasma y da permiso. El profesor influye en el estado de
ánimo de los alumnos, creando matices y variaciones del tono afectivo a través
de las consignas.” 9
Se a consigna é tão fundamental assim na qualidade das vivências, então ela
pode ser também um instrumento valioso na busca da progressividade.
De acordo com os adjetivos que utilizamos nas consignas, induzimos exercícios
com maior ou menor grau de intensidade, segundo a Linha de Vivência. Assim, por
exemplo, na Linha da Vitalidade poderemos utilizar adjetivos como: alegre, vital,
eufórico, tranquilizador, energizante, etc. Na Linha da Afetividade utilizaremos:
amável, terno, solidário, etc. Na Linha da Criatividade: livre, criativo, diferente, ousado,
intenso, grandioso, misterioso, etc. Na Linha da Sexualidade: sensual, erótico,
apaixonado, arrebatado, etc. E na Linha da Transcendência: harmônico, sublime, eterno,
ilimitado, oceânico, etc.
O que queremos ressaltar aqui é a necessidade de que a consigna seja adequada
ao nível do grupo. A consigna para um determinado exercício em um Grupo de
Iniciação não será a mesma, para o mesmo exercício, em um Grupo de
Aprofundamento.
O Facilitador precisa ajustar sua fala de acordo com a intensidade que espera
induzir através da consigna:
a) “Vamos buscar uma outra pessoa para um encontro. Somo todos
irmãos, formamos uma grande fraternidade...”
Convida a uma vivência bem diferente de:
b) “Vamos entrar em sintonia com uma outra pessoa e nos aproximar
lentamente. O objetivo do encontro é a fusão total, de corpo e alma ...”
O objetivo da consigna é motivar o movimento e a vivência. E o Facilitador faz
isso com sua expressividade, conteúdo e exaltação. Então será necessário graduar essa
exaltação de forma a obter a progressividade desejada.
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6.7. O Facilitador Centrado no Grupo
A metodologia da Biodanza nos dá um bom referencial teórico para uma ação
progressiva no desenvolvimento dos potenciais humanos. Princípios que devem ser
obedecidos, critérios para a seleção dos exercícios e das músicas, a qualidade da
consigna, são todos elementos importantes e que devem ser considerados no
planejamento das aulas. É, sem dúvida, necessário o domínio da metodologia para um
bom trabalho em Biodanza. Mas não é suficiente.
Centrando-se na técnica, o “facilitador” pode mostrar toda sua potência, mas é
quando este “facilitador” se centra no grupo que ele se torna um verdadeiro Facilitador
com “F” maiúsculo. Então ele estará facilitando para que cada participante descubra sua
própria potência.
Estar centrado no grupo é estar totalmente presente nas sessões, atento para o
processo do grupo de forma a poder detectar suas necessidades e possibilidades,
facilitando para que cada participante possa assimilar a si mesmo e transformar-se.
Centrado no grupo o Facilitador poderá detectar o momento certo para propor
um determinado exercício e avançar suave e progressivamente, conduzindo o grupo em
direção a um nível mais elevado de integração.
N O T A S:
1 Toro, Rolando. Tomo:Teoria da Biodanza, p. 12 2 Idem, idem, p.14 3 Idem, idem, pp. 12 e 13 4 Toro, Rolando. Metodologia IV, Curso Semanal e Maraton de Biodanza 5 Toro, Rolando. Metodologia II, La Sesion de Biodanza 6 Idem, idem. 7 Santos, Mª Lúcia. Metodologia em Biodanza, p. 114 8 Idem, idem, p. 133 9 Toro, Rolando. Metodologia II, La Sesion de Biodanza
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7 LIMITAÇÕES À PRÁTICA
DO PRINCÍPIO DE PROGRESSIVIDADE
No capítulo anterior abordamos exaustivamente a importância da
progressividade no planejamento das aulas de um Grupo de Iniciação e as
recomendações metodológicas do Sistema para uma atuação compatível com o nível do
grupo.
Foi no final da Formação, antes mesmo de começarmos nosso trabalho de
facilitação, que sentimos a necessidade de conhecer melhor o caminho progressivo da
Biodanza. Como a progressividade em Biodanza é um princípio básico, queríamos saber
exatamente como colocá-lo em prática de forma a nos manter dentro da ortodoxia do
Sistema.
A prática, ao longo desses quatro anos de facilitação, nos mostrou, contudo, que
existem dificuldades na aplicação do Princípio de Progressividade, nos moldes
propostos por Toro, que precisam ser reconhecidas e examinadas para que se possam
buscar soluções alternativas que minimizem o problema.
A grande questão para a progressividade em Biodanza, segundo nosso
entendimento, é a dificuldade prática de se manterem dois grupos, como determina a
metodologia do Sistema criado por Toro: um grupo de Iniciação e outro de
Aprofundamento.
Atualmente, pelo menos aqui no Rio de Janeiro, o número de pessoas que
buscam um determinado Facilitador não é suficiente para a abertura de uma nova turma
a cada ano. Com isso, por conta da sobrevivência do grupo, o iniciante é convidado a
participar de um grupo já em andamento.
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A entrada de alunos novos num Grupo de Aprofundamento traz questões sérias e
difíceis de resolver:
1. Se o Facilitador dá prioridade ao aprofundamento das vivências, o
iniciante não passa pelo processo de integração, com a
progressividade que sua condição requer, podendo causar-lhe
estresse emocional e levá-lo a abandonar o grupo.
2. Se o Facilitador dá prioridade aos iniciantes, os alunos que já
passaram pelo processo de integração inicial e já estão demandando
vivências de aprofundamento, se vêem retornando seguidamente ao
início dos trabalhos e podem se desmotivar.
3. O Facilitador, que busca atender a duas partes com necessidades
bem diferenciadas, acaba por se frustar, já que não consegue atender
bem a nenhuma das duas.
Nesses poucos anos facilitando grupos de Biodanza (um de adultos e outro de
adultos na 3ª idade), percebemos que as pessoas que buscam a Biodanza podem ser
classificadas, grosseiramente, em dois tipos básicos, segundo o grau de integração que
apresentam:
1. Aquelas que já apresentam um bom nível de integração, expressão e
comunicação: caminham com sinergismo, têm um bom ritmo,
expressam-se na roda com desembaraço e comunicam-se com
facilidade. Esses, quando chegam ao grupo, são uma bênção para o
Facilitador. Bastam algumas sessões para que já se sintam integrados
ao grupo e possam participar igualmente das vivências de
aprofundamento.
2. Aqueles que trazem um alto nível de dissociação: têm dificuldade
com o ritmo, sua expressão corporal é mecânica e a comunicação
inibida. São pessoas que requerem, como prevê Toro, um tempo mais
longo para seu processo de integração; isto é, necessitam começar em
um Grupo de Iniciação.
Então, surge a pergunta: o que fazer com essa pessoa do segundo grupo, que
quer fazer Biodanza, mas não está qualificada para começar num grupo que já está em
nível de aprofundamento?
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O Facilitador precisa de novos alunos para a sobrevivência do grupo. Mas se o
processo de introdução de um novo participante no grupo se repete com muita
freqüência, o grupo não caminha e pode se desmotivar. É verdade que o participante de
um Grupo de Aprofundamento pode desfrutar de uma sessão introdutória, mas ele não
estará se aprofundando nas vivências.
Na prática, o resultado da manutenção de um único grupo é que ele se torna
misto, seus participantes estão em etapas diferentes de seus processos de integração.
Com isso, aumenta a dificuldade no planejamento progressivo das sessões, com prejuízo
para o desenvolvimento do grupo. Devemos atender adequadamente ao participante que
se inicia ou continuamos aprofundando, com prioridade para os participantes que já
passaram pelo processo inicial de integração? Segundo nosso entendimento, qualquer
desses caminhos deixa muito a desejar.
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8 CONCLUSÕES
O ser humano, no processo de imersão cultural, desenvolve variados
“mecanismos” psicológicos de defesa, resultando em atitudes e comportamentos
contrários à sua necessidade básica de se comunicar. E ele sofre com isso, pois se sente
alienado de si mesmo e da vida.
A Biodanza busca dar conta desse sofrimento, com uma ação diretiva, potente,
visando à integração do indivíduo e o fortalecimento de sua identidade, de forma que
ele possa ir, aos poucos, abrindo mãos de suas defesas, percebendo melhor suas
necessidades e desejos e, com isso, se expressando com mais autenticidade e liberdade.
Face à força dessas defesas do ego -- a resistência que o indivíduo faz ao seu
desenvolvimento – e a essa ação diretiva da Biodanza, podemos entender o cuidado de
Toro em dar rumos metodológicos ao Sistema, que garantam a progressividade das
sessões e respeitem as possibilidades de cada participante, assegurando-lhes um
processo de crescimento suave, compatível com as dissociações que apresentam ao
ingressar no grupo.
Apesar de entender todo esse cuidado metodológico e reconhecer sua
necessidade , não podemos deixar também de reconhecer as dificuldades que o
Facilitador de Biodanza encontra para atuar progressivamente na prática, seguindo
rigorosamente a orientação metodológica do Sistema, a partir do momento em que o
grupo passa para a fase de aprofundamento de vivências. As alternativas que podemos
visualizar apresentam grandes limitações:
1. Fechar o grupo ao ingresso de iniciantes. Isso, a longo prazo, seria condená-
lo à morte por insuficiência de participantes.
2. Manter o grupo totalmente aberto e atender rigorosamente às necessidades de
progressividade dos iniciantes. Isso seria condenar o grupo à estagnação,
pois estaríamos sempre recomeçando.
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3. Manter o grupo aberto e continuar aprofundando normalmente. Não é nada
fácil, para a maioria das pessoas, iniciar seu desenvolvimento em Biodanza
num Curso de Aprofundamento. Acreditamos que muitos desistam
exatamente por não terem a chance de começar pelo princípio num Curso de
Iniciação. Além disso essa pessoa pode ficar chocada, não entender a
proposta da Biodanza e pôr em jogo a reputação do Sistema.
É necessário, portanto, que o Facilitador encontre um caminho de facilitação, no
qual o novo participante possa ser rapidamente integrado ao grupo e este possa
continuar seu processo de aprofundamento progressivo.
A solução para esse impasse metodológico nos parece muito pessoal. Não existe
uma solução nos manuais de Biodanza. Temos que encontrar nosso caminho seguindo
nossa experiência, através de tentativas que poderão não funcionar. Mas estaremos
aprendendo a lidar, cada vez melhor, com o desafio que é a entrada de um novo
participante em nosso grupo, que agora é misto.
No início mantivemos o grupo totalmente aberto e tivemos muitas decepções e
surpresas desagradáveis. Alguns procuravam o grupo só por curiosidade e logo se
afastavam, com frustração para o grupo. Outros não ficavam por falta de condições
mínimas de se integrar ao grupo. Eram pessoas com alto nível de dissociação, que só
trouxeram dificuldades para o grupo. Não havia como essas pessoas acompanharem o
grupo a curto prazo. Elas precisavam de muito trabalho de integração motora e afetivo-
motora, antes de iniciar o trabalho de comunicação afetiva.
Então decidimos buscar um caminho alternativo, que foi se desenvolvendo a
partir das dificuldades que encontramos e das conversas com outros Facilitadores. Um
princípio ficou bem claro para nós: a necessidade de estar sempre centrado no grupo,
no seu interesse, no seu caminhar, facilitando para que esse caminhar seja tão suave
quanto possível.
Adotamos, então, alguns procedimentos de proteção para o grupo e para as
pessoas que demonstram interesse em participar dele:
1. Regular a entrada de novos participantes, avaliando o momento do grupo.
Em alguns momentos do grupo, dependendo do que se está trabalhando, não
é recomendável o ingresso de um iniciante.
2. Fazer uma avaliação, através de entrevista, da pessoa que busca o grupo:
quem é essa pessoa?, o que busca?, que experiência traz?, ela requer todo o
66
processo inicial de integração?, reúne condições de se integrar rapidamente
ao grupo?.
3. Evitar colocar no grupo que está aprofundando pessoas que claramente
necessitam de muito trabalho inicial de integração.
4. Estabelecer, com o grupo, uma semana do mês para receber as pessoas que
querem conhecer o grupo, evitando assim a possibilidade de haver pessoas
novas em duas ou mais sessões do mesmo mês.
5. Preparar o grupo para receber o novo participante, enfatizando a necessidade
de muita atenção com a reciprocidade nas situações de encontro. Não basta
que o Facilitador seja progressivo, é necessário que o grupo entenda a
necessidade de progressividade dos novos participantes.
6. Ao receber um novo participante, julgado apto a se integrar aos demais,
acompanhá-lo de perto, protegendo-o quando necessário, tanto no grupo
quanto fora dele, através de sessão individual para orientação e
esclarecimento de dúvidas relacionadas ao Sistema Biodanza e às próprias
vivências do iniciante.
Acreditamos que esses cuidados contornem, em parte, alguns problemas
relacionados à progressividade, mas ainda requer muita sensibilidade e criatividade do
Facilitador para que as sessões atendam ao mesmo tempo participantes que se
encontram em momentos diferentes do seu processo evolutivo.
Dissemos em parte por que dessa forma deixamos de fora aquelas pessoas que
mais precisam da Biodanza. Aqueles cujo nível de dissociação é muito alto e necessitam
começar pelo começo, passo a passo, com muita progressividade. Para essas pessoas, a
única solução é um Grupo de Iniciação nos moldes previstos por Toro.
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9 A N E X O “A”
PROGRESIVIDAD1
Uno de los problemas mas dificiles de resolver en la linea sexual es el de la
progresividad.
Los profesores frecuentemente, no organizan los ejercicios de sexualidad com la
progresividad necesaria para superar el miedo que los alumnos tienen al contacto. Esta
dificuldad genera ataques del medio ambiente y desprestigian el Sistema Biodanza. He
aqui una serie de ejercicios ordenados progresivamente para proponerlos en un tiempo
razonablemente lento:
1. Ronda de integración inicial
2. Sincronización rítmica com outro
3. Sincronización melódica com outro
4. Eutonia en pareja
5. Eutonia en grupo 3
6. Ronda eutónica
7. Juego de contacto “Caminando”
8. Segmentario de caderas y pelvis
9. Ritmos tropicales en parejas
10. Juegos de samba
11. Ronda de mecimiento
12. Ronda de miradas
13. Encuentro fugaz
14. Aproximación y Encuentro en feed-back
15. Encuentros afectivos (dando continente com una mano en el rostro y la otra sobre el
corazón del companero)
16. Danza de Contacto mínimo
17. Autoacariciamiento
18. Acariciamiento anónimo de las manos en grupo 5
19. Acariciamiento sensible del cabello, a dos, alternándose
20. Acariciamiento de las manos en parejas, recíproco
21. Ejercicios segmentarios compartidos
22. Un minuto de eternidad
23. Acariciamiento regresivo del rostro del companero (dar y recibir continente)
24. Acariciamiento del pecho en parejas, alternadamente
25. Acariciamiento de los pies del companero
26. Fluidez en pareja
27. Fluidez en grupo com contacto sensible
28. Grupo Compacto de Mecimiento
29. Acariciamaiento de un companero en pie, en grupo 5, alternándose (“lluvia de caricias”)
30. Samba 5
31. Acariciamiento de un companero acostado, en grupo 5, alternándose
32. Grupo Compacto de Acariciamiento
1 Toro, Rolando. Lineas de Vivencia, 1997.
68
68
10 BIBLIOGRAFIA
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Janeiro, Imago, 1969.
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Janeiro, Imago, 1969.
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ALAB, 1991.
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Musical, Metodologia II - La Sesion de Biodanza, Metodologia III - La Sesion de
Biodanza, Metodologia IV - Curso Semanal y Maraton de Biodanza, Metodologia
V - El Grupo de Biodanza. IN: Obra de Rolando Toro, Santiago do Chile, 2000.