UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE
HILANA ERLICH
PPSSIICCAANNÁÁLLIISSEE EE CCIIÊÊNNCCIIAA:: UUMM SSUUJJEEIITTOO,, DDOOIISS DDIISSCCUURRSSOOSS
Dissertação de Mestrado
RIO DE JANEIRO, AGOSTO DE 2007.
PPSSIICCAANNÁÁLLIISSEE EE CCIIÊÊNNCCIIAA:: UUMM SSUUJJEEIITTOO,, DDOOIISS DDIISSCCUURRSSOOSS
HILANA ERLICH
“Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Psicanálise
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
como requisito parcial para obtenção do
Título de Mestre em Psicanálise”.
Orientadora: Sonia Alberti
RIO DE JANEIRO, AGOSTO DE 2007.
ii
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, dedico esse trabalho, por acompanharem de modo interessado e
presente meu percurso para além do mestrado, me incentivando a insistir ali onde desponta o desejo. Agradeço por estarem sempre ao meu lado!
À minha mãe que me apresentou à psicanálise, despertando desde criança minha curiosidade pelo assunto. Também pelas conversas preciosas, pelo amor e respeito ao caminho que venho trilhando.
Ao meu pai, por ter transmitido o valor do trabalho, pelo amor e por acreditar nos meus passos e escolhas.
Ao Jack, pelo amor, leveza, companheirismo, paciência, por me fazer rir nas situações mais adversas e pela generosidade em dividir meu amor com Freud e Lacan.
À Sonia Lea, pelas palavras de incentivo, que desde os primeiros momentos do mestrado até sua conclusão, foi presença fundamental.
Aos meus irmãos, Daniel e Roberto, pela parceria e por dividirem, seja perto ou longe, os momentos da vida.
À minha avó, que nos últimos anos tem me ensinado que é preciso ter coragem. À Profa Sonia Alberti, que vem contribuindo para minha formação desde a Residência, por compartilhar seus conhecimentos, e pela orientação ao longo desse valioso percurso.
À Profa Fernanda Costa-Moura e ao Prof. Marco Antônio Coutinho Jorge, por terem aceitado participar da banca examinadora e pelas preciosas contribuições que trouxeram à minha pesquisa.
À Mara Faget, pela escuta sensível e interlocução, fundamentais na elaboração e articulação de minhas idéias.
À Profa Ana Beatriz Freire, pela disponibilidade na troca de idéias.
À minha turma de mestrado, pelas discussões enriquecedoras e pela amizade que se formou.
Aos pacientes, que, no espaço público e privado, confiam a mim suas falas, sendo o motivo maior de minha dedicação, tanto quanto da possibilidade de exercer a função de psicanalista.
iii
O mistério da cousas, onde está ele? Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério? Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso? Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas É elas não terem sentido oculto nenhum. É mais estranho que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser E não haja nada que compreender
Sim, eis o que meus sentidos aprenderam sozinhos: -
As cousas não têm significação: têm existência. As cousas são o único sentido oculto das cousas.
Fernando Pessoa (Ficções do Interlúdio:1914-1935)
iv
RESUMO
A presente dissertação investiga a relação entre psicanálise e ciência através da noção
de um termo comum: o sujeito. A postulação lacaniana de que “o sujeito com o qual a
psicanálise opera é o sujeito da ciência” (1966), nos impulsiona nessa articulação, instigando
um exame mais apurado da mesma. Como definir este sujeito? O fato de Lacan apontar um
ponto de interseção desses campos permite dizer que a psicanálise é uma ciência? Qual o
lugar ocupado pelo sujeito nos respectivos campos? A fim de desdobrar estas questões,
seguiremos no primeiro capítulo o percurso trilhado por Lacan, que encontra no cogito
cartesiano o fio que lhe conduz ao sujeito de que se trata. No segundo capítulo, abordaremos a
relação entre o sujeito em questão e o conceito de simbólico, decorrendo daí a introdução dos
seguintes elementos: Outro, real, imaginário, significante e sujeito dividido. No terceiro
capítulo, articularemos as noções de sujeito, real e angústia, buscando avançar na tentativa de
afinar o que é esse sujeito para a psicanálise. Na medida em que o surgimento da psicanálise é
tributário de condições instaladas pela ciência moderna, examinaremos no quarto capítulo de
que forma a ciência moderna se constituiu, a partir das rupturas estabelecidas com o mito e a
episteme antiga. Na seqüência, situaremos o que a ciência trouxe de novidade, permitindo a
formulação do cogito e a abertura ao campo da psicanálise. Estudaremos ainda o tratamento
dado ao real no mito, ciência e psicanálise e sua relação com o sujeito. Esta pesquisa tem
como orientação fundamental as obras de Freud e Lacan, entre outros autores que abordaram
o tema em questão.
v
RÉSUMÉ
Cette dissertation recherche le rapport entre la psychanalyse et la science à travers la
notion d’un terme commum: le sujet. La postulation lacanienne concernant << le sujet avec
lequel la psychanalyse opère est le sujet de la science >> (1966), nous pousse à cette
articulation et nous inscite à en faire un examen plus approfondi. Comment peut-on definir ce
sujet ? Le point d’intersection de ces champs, montré par Lacan, nous permet de dire que la
psychanalyse est-elle une science ? Quelle est la place occupée par le sujet dans les respectifs
champs ? Afin de dédoubler ces questions, nous suivrons, dans le premier chapitre, le chemim
parcouru par Lacan qui trouve dans le cogito cartésien le fil qui le conduit au sujet traité dans
ce travail. Dans le deuxième chapitre, nous aborderons le rapport entre le sujet dont nous
avons parlé ci-dessus et le concept de symbolique, ce qui mène à l’introduction des éléments
suivants : Autre, réel, imaginaire, signifiant et le sujet partagé. Dans le troisième chapitre,
nous articulerons les notions de sujet, de réel et d’angoisse, pour avancer dans l’essai
d’affiner ce que c’est ce sujet pour la psychanalyse. Dans la mesure où l’apparition de la
psychanalyse est tributaire des conditions instalées par la science moderne, nous examinerons
dans le quatrième chapitre comment la science moderne s’est-elle constituée à partir des
ruptures établies avec le mythe et l’épistémé ancienne. Ensuite, nous situerons ce que la
science a apporté de nouveau, pour permettre la formulation du cogito et l’ouverture du
champs de la psychanalyse. Nous étudierons également le traitement disposé au réel dans le
mythe, dans la science, et dans la psychanalyse et son rapport avec le sujet. Cette recherche a
comme orientation fondamentale les oeuvres de Freud et de Lacan, parmi les autres auteurs
qui ont abordé le thème en question.
vi
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................1
CAPÍTULO I –
PSICANÁLISE E CIÊNCIA........................................................................................................7
CAPÍTULO II –
ARTICULAÇÕES SOBRE O SIMBÓLICO..............................................................................19
CAPÍTULO III –
DO SUJEITO DO COGITO AO SUJEITO DA CLÍNICA........................................................47
CAPÍTULO IV –
O QUE O SIMBÓLICO PODE FRENTE AO REAL OU O REAL COMO INTERROGAÇÃO
DO SIMBÓLICO (MITO, CIÊNCIA E PSICANÁLISE)..........................................................75
4.1- Lévi Strauss com Freud e Lacan: O mito na antropologia e na psicanálise.........................77
4.2- O Real e os Planetas: da episteme antiga à ciência moderna.................................................85
4.3- O Real e o Sujeito...........................................................................................................101
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................................................................................................110
vii
1
INTRODUÇÃO
A pesquisa proposta para esta dissertação de mestrado surgiu a partir do trabalho
desenvolvido em duas instituições. São elas: Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE -
UERJ), onde fui residente em Psicologia Clínico-Institucional, no período de 2002 a 2004, e o
Posto de Saúde Prof. Edgar Magalhães Gomes – Campo Grande, Cosmos (Secretaria
Municipal de Saúde SMS-RJ), onde, durante os anos de 2002 a 2006, fiz parte da equipe de
saúde mental. Apesar de suas particularidades e distinções, o trabalho em ambas trouxe ao
cotidiano da clínica uma marca comum: o encontro entre os discursos médico e psicanalítico.
A interface entre os respectivos discursos permeou e ainda atravessa minha clínica, já que
cada vez mais se cruzam no que tange ao trabalho em instituições de saúde.
Algumas diferenças se evidenciaram quanto à condução da clínica que estes dois
discursos instauram, dentre as quais destacamos a que concerne ao lugar do sujeito. A questão
referente ao lugar do sujeito na visão da psicanálise e na medicina foi o tema da monografia
de conclusão de Residência. Para tal estudo, foi preciso situar estes campos, enquanto
discursos com objetos, fundamentos e instrumentos próprios a seu sistema conceitual. Nesta
monografia 1, o discurso médico foi enfocado, segundo a ótica de Clavreul (1983) que, em seu
livro A Ordem Médica: poder e impotência do discurso médico o aborda através de uma
leitura psicanalítica. Verificamos como resultado as seguintes constatações: Do ponto de vista
médico, circunscrito no recorte supracitado, o diagnóstico, fundamentado nos sinais e
sintomas passíveis de observação, funciona como indicador de orientação do tratamento.
Desta forma, o sujeito, reduzido a um diagnóstico descrito no manual médico, é destituído de
qualquer referência que lhe diga respeito de modo singular. Assim, se o objeto de
investigação da medicina é a doença, ela, portanto exclui não só o sujeito afetado por sua
divisão, postulado pela psicanálise, como o próprio sujeito que concebe, que passa pela noção
de indivíduo.
Em contraponto, a psicanálise, por colocar seu acento no sujeito, pode ser capaz de
transmitir sobre este um saber desconhecido por outros discursos, qual seja, o de ser marcado
pelo inconsciente. A subjetividade excluída do discurso médico é privilegiada no discurso
psicanalítico, já que é a possibilidade de articulação entre sintoma e história do sujeito. A
clínica psicanalítica sugere não haver nenhum diagnóstico, ou qualquer outro saber
1 “Psicanálise e Medicina: um cruzamento” - monografia apresentada na conclusão da Residência em maio de 2004.
2
determinado, que informe mais sobre o sujeito do que sua fala. A partir da fala é que se pode
ter acesso à realidade psíquica, à posição discursiva do sujeito.
A psicanálise nasce no seio da medicina e adquire da clínica médica o ponto
fundamental de seu método. A clínica, enquanto lugar de investigação e terapêutica, é herança
da clínica médica. Destacamos que a palavra clínica vem do grego Klinés, que significa leito,
o que remete à função do divã para a psicanálise. Se, por um lado, a psicanálise se inicia a
partir da prática médica, por outro, faz uma ruptura com este discurso para instaurar um
discurso próprio, uma outra clínica. Este rompimento ocorre quando Freud percebe que seu
instrumento de saber não dá conta das manifestações de suas pacientes. Porque as histéricas
escaparam ao saber da medicina é que algum enigma se constituiu das manifestações que
apresentavam.
Desta forma pode-se dizer que a psicanálise surge dos furos do saber médico, ou seja,
de um ponto limite da medicina. Freud inaugurou com a psicanálise uma clínica, através de
um novo método para tratar do sofrimento psíquico, acrescentando um saber, ainda não
sabido. Contudo, se trouxe uma luz a esta clínica, permitindo alívio de sintomas, isto não
implicou dar conta dos furos. De outro modo, são justamente estes furos que passam a vigorar
em sua teoria e prática, uma vez que a marca da incompletude do sujeito é para o discurso
psicanalítico, uma marca absolutamente operante.
No início de sua obra, em 1895, Freud formula seu Projeto para uma Psicologia
Científica. Este Projeto, uma tentativa de estruturar uma psicologia conforme o paradigma de
ciência da época, apontava para os esforços do autor de verificar um Outro lugar para o
sujeito. Sob a forma de uma escrita minuciosa, Freud busca conferir consistência aos
processos psíquicos, representando-os como estados quantitativamente determinados de
partículas materiais especificáveis, os neurônios. O uso de termos neurológicos, com os quais
Freud descreve as idéias do Projeto, explicita a marca de sua formação e a preocupação em,
neste momento, alinhar a este saber sua proposta.
Segundo Foucault (2001:125), a medicina ganhou cunho científico por conta do
aparecimento da anatomia patológica. Ao localizar no corpo biológico a lesão, cuja
investigação e observação poderiam suscitar estudos para sua terapêutica, a medicina passa a
funcionar a partir dos mesmos pressupostos da ciência. “A ciência moderna surge quando a
observação, a experimentação e a verificação de hipóteses tornam-se os critérios decisivos,
suplantando o argumento metafísico” (Marcondes, 1998:150).
3
A afirmação de que a medicina pode ser classificada como pertencente ao campo da
ciência nos convocou a prosseguir este estudo, desdobrando, no entanto, a questão inicial
entre psicanálise e medicina para o exame do que circunscreve a relação entre psicanálise e
ciência. De acordo com Lacan, o surgimento da psicanálise é tributário de condições
instaladas pela ciência moderna, cujo discurso introduziu uma marca essencial à psicanálise,
que visamos verificar com detalhes nesta pesquisa. A obra de Lacan fornece meios para
pensar a psicanálise como um discurso que, sendo ao mesmo tempo historicamente
dependente do nascimento da ciência, é, entretanto, capaz de se sustentar por seus próprios
fundamentos.
O objetivo deste trabalho é investigar a relação entre psicanálise e ciência, através da
noção de um termo comum: o sujeito. A abordagem desta questão, pelo eixo do sujeito,
encontra numa afirmação de Lacan seu pontapé inicial. Em seu texto “A ciência e a verdade”
(1966a), Lacan diz que o sujeito com o qual a psicanálise opera é o sujeito da ciência. Tal
postulação sugere uma aproximação importante entre os dois campos, de modo a nos instigar
um exame mais apurado desta. Como definir este sujeito? O fato de Lacan apontar para um
mesmo sujeito em ambas permite dizer que a psicanálise é uma ciência? Será que este sujeito
reconhecido pela psicanálise é também aceito pela ciência?
A fim de desdobrar estas interrogações, seguiremos, no primeiro capítulo intitulado
“Psicanálise e Ciência”, a trilha indicada por Lacan, que tem no cogito cartesiano o fio que o
guia ao sujeito de que se trata. A importância do cogito para a psicanálise refere-se ao sujeito
como também à fundação do método científico, no qual ela se inscreve. O que fica sublinhado
a partir das considerações de Lacan é a importância do cogito para a psicanálise, uma vez que,
através dele, o sujeito é inaugurado em sua vertente simbólica. É somente nessa dimensão que
algo pode ter valor de existência para o ser falante.
Essa constatação nos leva ao segundo capítulo, “Articulações sobre o Simbólico”, no
qual abordaremos a relação entre o sujeito em questão e o conceito de simbólico, tal como
pensado por Lacan, o que nos remete ao início de seu ensino e à introdução de alguns
elementos cruciais nesta articulação, tais como as noções de: Outro, imaginário, real,
significante e sujeito dividido. Desse primeiro tempo em que a questão do simbólico, fala e
linguagem foi privilegiada, Lacan extrai uma de suas grandes contribuições à psicanálise, a de
que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Do estudo da linguagem, destacamos
o termo significante, já que é dele a função de representar um sujeito para outro significante.
4
Ressaltamos que o sujeito a que nos referimos é atravessado pelas dimensões do Real,
Simbólico e Imaginário, através das quais buscaremos delimitá-lo.
Após percorrer esses conceitos, retornamos ao cogito, com elementos que permitiram
uma nova leitura deste. A partir da perspectiva da psicanálise, mais precisamente da
introdução do inconsciente no cogito, Lacan (1957) o reformula: no lugar de “penso, logo
sou” - afirma: “penso onde não sou, logo sou onde não penso”, apontando assim um Outro
lugar para o pensamento que não o eu consciente.
Ainda hoje acompanhamos o debate sobre a cientificidade da psicanálise (Cezimbra,
2004). Esta polêmica pode ser bastante interessante, visto que proporciona repensar as
peculiaridades destes discursos e a possível interseção entre eles. As pesquisas que vêm sendo
desenvolvidas no campo da medicina e neurociências buscam fazer avançar o conhecimento
sob a forma de um discurso neuro-comportamental. O que se percebe ao lado destes estudos
que têm sua importância ao investigar imagens, funcionamento cerebral e circuitos
neuroquímicos, é um risco que se evidencia com a supressão do sujeito. Em nome deste
discurso, a subjetividade passa desapercebida. Isto se coloca uma vez que o específico da
psicanálise – o sujeito do inconsciente – pode sofrer um apagamento, por ser situado na visão
de alguns autores como uma localização cerebral, em detrimento do que aposta a psicanálise:
um efeito do discurso. Ao substancializar o inconsciente, perde-se de vista que a subjetividade
humana, como aponta a psicanálise, é marcada pela linguagem que é material. Não se trata de
partilhar mente e corpo. Ao contrário, a subjetividade de que se fala só pode ser enunciada a
partir de um corpo real, que também é subjetivado de modo singular por cada sujeito.
Diante disto, é fundamental que se possa conceituar tanto quanto é possível dizer deste
sujeito, que Lacan remete à psicanálise e à ciência, na medida em que têm relação direta com
a questão da linguagem, de modo a sustentar sua especificidade frente a leituras que não o
consideram tal como Freud o enunciou.
Considerando as conseqüências clínicas que o discurso psicanalítico pode acarretar,
pois que implica uma posição do analista frente ao sujeito e à direção do tratamento, cabe
avaliar como fazer valer o discurso psicanalítico no intercâmbio com outros discursos com os
quais, no âmbito da saúde mental, se entrecruza. Se não é possível substancializar o
inconsciente, de que modo sustentar os efeitos que produz? A fim de ilustrar a interface do
discurso psicanalítico com os discursos médico e pedagógico, concluímos o segundo capítulo
5
com um fragmento de caso clínico, pontuando que, apesar de o sujeito ser excluído e calado
pela ciência, ele não emudece, e é a clínica psicanalítica que pode acolhê-lo.
O título “Do sujeito do cogito ao sujeito da clínica” já indica que é à passagem do
primeiro tempo de origem do sujeito ao segundo momento, o de sua inclusão na clínica, que
dedicamos a investigação do terceiro capítulo. Apesar de tratar-se do mesmo sujeito, os dois
tempos destacados guardam suas diferenças no que tange ao modo como o sujeito é neles
tomado. Se o cogito inaugura o sujeito reduzido ao significante, fato que justifica a dívida da
psicanálise ao campo da ciência, a psicanálise, contudo, ainda que o reconheça como efeito do
significante, confere a partir da clínica que o sujeito não se resume a esse. Assim, na medida
em que o sujeito só se representa parcialmente, sendo na não representação que o real pode
comparecer pela angústia que o acomete, sugerimos articular os termos sujeito, real e
angústia, a fim de avançar mais nessa tentativa de afinar o que é esse sujeito para a
psicanálise. Para tal discussão, contamos com alguns textos centrais da obra freudiana que
versam sobre o tema da angústia, como “Inibições, sintomas e angústia” (1926a), e as
Conferências XXV (1917), e XXXII (1933a) sobre angústia. Dessas leituras, foi possível
afirmar com Elia que: “a emergência da angústia é a emergência do sujeito” (2004:13), na
medida em que a angústia é uma das formas de manifestação do sujeito frente ao real. Em
outras palavras, a angústia anuncia o núcleo real do sujeito.
Se a possibilidade de abertura ao campo da psicanálise é conseqüência da produção do
cogito e esse é resultante do campo científico, indagamos: o que surge de inovador no quadro
da ciência moderna que traz como efeito a formulação do sujeito? É essa a questão que nos
instiga no quarto e último capítulo, intitulado “O que o simbólico pode frente ao real? ou O
real como interrogação do simbólico – (mito, ciência e psicanálise)”. Para pesquisar o que
veio de novo com a ciência, foi necessário estudar o que a antecedeu tanto dentro como fora
de seu campo, isto é, a episteme antiga e o mito. Apostamos que analisar alguns aspectos
particulares do mito e da episteme antiga e em relação a que pontos a ciência moderna opera
uma ruptura com esses nos permitirá circunscrever melhor como a ciência moderna se
constitui. A partir daí, teremos mais condições de examinar o tratamento dado ao real nos
campos do mito e da ciência, bem como no da psicanálise. Nosso interesse acerca do real
desponta, pois, como vimos no capítulo anterior, o real concerne ao sujeito.
Dividimos o desenvolvimento desse último capítulo em três partes: na primeira - “Lévi
Strauss com Freud e Lacan: O mito na antropologia e na psicanálise” - retomamos o artigo de
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Strauss (1949) sobre eficácia simbólica, com o objetivo de ganhar elementos na discussão
sobre o tema do mito, e verificamos como o real é abordado no mito, bem como o mito é
tomado em psicanálise; na segunda parte - “O Real e os Planetas: da episteme antiga à ciência
moderna”, investigaremos essa passagem do antigo ao moderno e em que o sujeito da ciência
e psicanálise é tributário dessas mudanças; na terceira parte do capítulo, - “O Real e o
Sujeito”, discutimos a relação entre os termos sujeito e real, situando o último como resto da
operação da ciência, que, por ser não-todo dominado, insiste e retorna afetando o sujeito. É a
psicanálise que vai oferecer uma escuta e um trabalho ao sujeito acerca disso que não se cala,
tendo como direção que o sujeito tome lugar no real.
Esta pesquisa tem como orientação fundamental as obras de Freud e Lacan, entre
outros autores que abordaram o tema da relação entre psicanálise e ciência e seu sujeito. É a
diferença que aparece no encontro entre psicanálise e ciência, mais precisamente o tratamento
de ambas para com o sujeito, que nos incita a pesquisar sobre este e os respectivos campos
nessa relação. Se psicanálise e ciência é o cenário ou contexto que nos instiga, é também
ponto de partida, pré-texto2, para uma investigação acerca da noção de sujeito. Seja como
contexto ou pré-texto, são as aproximações e afastamentos entre psicanálise, ciência e o
sujeito que lhes concerne, que debruçamo-nos na construção do que se segue em nosso texto.
2 Observação de Marco Antônio Coutinho Jorge no exame de qualificação.
7
CAPÍTULO I
PSICANÁLISE E CIÊNCIA
A discussão sobre a psicanálise ser ou não uma ciência não é nova ao seu campo. Esta
questão requer um exame minucioso da relação entre ambas, uma vez que a ciência está
implicada no passo psicanalítico desde o nascimento deste. A relação entre elas vem da
origem da psicanálise que, apesar de não ter se restringido ao campo discursivo da ciência,
teve aí sua possibilidade de surgir. A psicanálise é filha da ciência na medida em que é
conseqüência da marca instaurada por ela. No entanto, apesar de derivar da ciência, não se
reduz a ela, operando uma ruptura para estabelecer sua especificidade. Dois movimentos
podem exprimir a relação de que se trata aqui, qual seja, de advir e romper. Se a psicanálise
advém da ciência, ela precisa romper com algo que marca sua filiação para valer-se de seu
nome. Desta forma, é possível delimitar pontos de aproximação e afastamento entre estes
campos que, mesmo sem compor um, compartilham elementos que atestam o fato de haver
uma interseção presente.
A afirmação lacaniana de que “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode
ser o sujeito da ciência” (Lacan, 1966a: 873) é não só o ponto de interseção por nós aqui
selecionado como também nosso ponto de partida para o estudo deste tema. De modo que a
direção colocada é a de tirar as conseqüências da postulação de Lacan, a fim de analisar a
questão que nos impulsiona. Foi a partir das contribuições deste autor que se pôde avançar
com novos elementos sobre este assunto. Ao introduzir um novo olhar neste debate, Lacan
permite afirmar o papel fundamental da ciência no surgimento da psicanálise.
Verifica-se uma diferença radical nas posições de Freud e Lacan no que tange a
relação entre psicanálise e ciência. Se para Freud, segundo Milner (1996), a ciência
representava um ponto ideal, não se pode dizer o mesmo quanto à posição de Lacan. Lacan
não acredita num ideal de ciência para a psicanálise, uma vez que para ele a ciência é
essencial à existência da psicanálise, não se colocando, portanto, como ideal. A ciência não é
exterior à psicanálise, “ao contrário, ela estrutura de maneira interna a própria matéria de seu
objeto” (Milner, 1996:31). Do ponto de vista de Lacan, se não existe um ideal de ciência para
a psicanálise, não há, portanto, para ela ciência ideal a seguir. “A psicanálise encontrará em si
mesma os fundamentos de seus princípios e métodos” (ibidem, p.31).
9
“Dizemos que essa via nunca se desvinculou dos ideais desse cientificismo, já que ele é assim chamado, e que a marca que traz deste não é contingente, mas lhe é essencial. E que é por esta marca que ela preserva seu crédito, malgrado os desvios a que se prestou, e isso na medida em que Freud se opôs a esses desvios sempre com uma segurança sem retardos e com um rigor inflexível” (ibidem, p.871-72).
Tomando as palavras de Lacan, interrogamos: Em que medida pode-se dizer que a
marca da ciência é essencial à psicanálise? Tal pergunta se coloca como motor deste estudo
que pretende articular estes dois campos distintos, porém entrelaçados. A pontuação de Lacan
de ser a ciência imprescindível ao aparecimento da psicanálise nos convoca a investigar qual
marca é essencial à psicanálise. Através das formulações lacanianas, estes dois campos se
estreitam pela noção de sujeito. Seria, então, o sujeito a marca essencial de que fala Lacan?
A afirmação lacaniana de que o sujeito com que a psicanálise opera é o sujeito da
ciência aponta para o fato de que o sujeito do inconsciente, sobre o qual a operação analítica
se dá, é o sujeito da ciência. Enquanto ponto comum entre ambas, o conceito de sujeito será
tomado por Lacan como fio condutor desta articulação. É pelo viés do sujeito que vai
trabalhar a proximidade destes campos. O conceito de sujeito da ciência é, apenas em parte,
lacaniano, uma vez que a definição de ciência moderna não é dele, ainda que seja dela
decorrente a figura do sujeito que compõe sua postulação. De acordo com Milner (1996), este
conceito advém da hipótese sustentada por Lacan de um sujeito da ciência, ou seja, de um
sujeito constituído pela determinação científica. Esta hipótese implica dizer que a ciência
moderna determina um modo específico de constituição de sujeito. Se o sujeito, lançado nesta
hipótese, é aquele que Lacan, em seguida, afirma ser o mesmo sujeito da psicanálise,
colocam-se as seguintes perguntas: o que há de específico na constituição deste sujeito pelas
determinações científicas que o faz sustentar que é o sujeito da psicanálise? Por que Lacan
insiste em afirmar que é o mesmo sujeito? De que modo ele chega a sua hipótese do sujeito da
ciência?
No intuito de precisar o conceito de sujeito da ciência, Lacan destaca um momento
historicamente definido do sujeito, que considerou ser o correlato da ciência, qual seja, o
cogito inaugurado por Descartes. Este momento representa o rechaço de todo o saber. A
oposição ao saber existente se deu pelo método cartesiano fundamentado na dúvida que passa
a incidir em tudo, sendo apenas sustentável o que a ela resistisse. Na medida em que tudo
passava pela dúvida, enquanto condição metódica, como adquirir alguma certeza? Angustiado
pelo efeito da pergunta por ele instalada, era preciso a Descartes a produção de uma resposta
10
que trouxesse uma ancoragem à condição subjetiva que se encontrava. Esgotando tudo o que
lhe passava pela cabeça através da dúvida, ele formula a seguinte resposta: - “só posso estar
certo de que penso, pois mesmo que disto duvide, ainda assim continuarei pensando” (Elia,
2000:21). O pensamento passa a ser assim aquilo que resiste à dúvida, tornando possível a
formulação do cogito.
O cogito cartesiano refere-se à seguinte postulação: “Cogito, ergo sum: penso, logo
sou” (Lacan, 1957:519). Conclui-se a partir daí que o ato de pensar é o que garante a
existência do sujeito já que, mesmo duvidando do pensamento, ele permanece. O pensamento
é exigível até para se duvidar. O privilégio de ser está no fato de haver pensamento. Uma vez
que há pensamento, ou seja, simbólico, linguagem, há ser. A existência do sujeito é afirmada
pelo ato de pensar. O cogito afirma o ser enquanto pensante. Ao tomar o cogito como
referência para sua definição de sujeito da ciência, portanto também da psicanálise, Lacan
sublinha a importância da dimensão simbólica do sujeito. Se Descartes afirma que o
pensamento é a garantia de existência, é Lacan quem supõe aí um sujeito. A formulação de
que há um sujeito do pensar é própria a Lacan, que se debruçou sobre o cogito, de modo a
dizer que, através dele, Descartes inventa o sujeito moderno. Lacan acrescenta à proposição
de Descartes de que existe pensar o fato de que existe um sujeito que pensa. E desta forma
demonstra a importância do cogito para que Freud tempos depois fundasse o inconsciente.
Descartes fundamentou a importância do pensamento para a existência do sujeito, e Freud
tomou este pensamento para formular sua teoria do inconsciente. O pensamento de que Freud
trata é o pensamento inconsciente por excelência, uma vez que, se ele se manifesta no sonho,
no ato falho, testemunha a divisão do sujeito. Na medida em que para a psicanálise o
pensamento é inconsciente, o sujeito do pensar é o sujeito do inconsciente. Este
desdobramento feito por Lacan aponta a condição que o cogito criou para o aparecimento da
psicanálise.
Segundo Milner (1996), a formulação do cogito faz de Descartes o primeiro filósofo
moderno. O cogito funda a ciência moderna, no sentido do moderno como uma ruptura com o
pensamento dominante até aquele momento. Se Galileu criou a ciência moderna, cujo modelo
é a física matematizada, Descartes o fez pelo viés da subjetividade. Desta forma ambos, do
lugar específico de onde trabalhavam, criaram condições para o surgimento da ciência
moderna:
11
“Podemos dizer que àquilo que se produziu como fundação da ciência no sentido moderno do termo, a física moderna, empírica e matematizada (Galileu), corresponde uma elaboração filosófica que consiste em tirar as conseqüências desse ato por relação à subjetividade (Descartes)” (Elia, 2000, op.cit, p.21).
Através do cogito, Descartes inventa o sujeito moderno, chamado de sujeito da ciência
por Lacan. Assim, Lacan atribui um sujeito da ciência inaugurado por Descartes, de modo que
por sua interpretação há na fundação da ciência também a invenção de uma nova concepção
de sujeito. E na medida em que a psicanálise é moderna, uma vez que só aparece a partir do
corte inaugurado pela ciência moderna, o sujeito freudiano não pode ser outro senão o sujeito
cartesiano. O pensamento cartesiano tem função crucial tanto para a psicanálise quanto para a
ciência.
Enquanto operação introdutória da ciência moderna, a física matematizada, ao
submeter seu objeto a tal operação, o despoja de suas qualidades. De acordo com Milner, uma
teoria do sujeito que pretenda responder a tal operação da física deverá também despojar o
sujeito de toda e qualquer qualidade. Este sujeito despojado de qualidades, que segue a
determinação científica, é o sujeito da ciência:
“ele não é mortal nem imortal puro nem impuro, justo nem injusto, pecador nem santo, condenado nem salvo; não lhe convirão nem mesmo as propriedades formais que durante muito tempo havíamos imaginado constitutivas da subjetividades como tal: ele não tem nem Si, nem reflexividade, nem consciência ”(Milner, 1996, op cit, p.33).
Este é o existente que o cogito faz emergir, ou seja, um sujeito sem qualidades, cujo
pensamento que atesta sua existência também é qualquer. Este existente, chamado de sujeito
por Lacan, responde ao gesto da ciência moderna, no sentido de trazer para o sujeito as
características científicas. O pensamento sem qualidades inaugurado pelo cogito é apropriado
tanto à ciência quanto à psicanálise, e pode-se colocar que esta é a marca da ciência essencial
à psicanálise, ou seja, o despojamento de qualquer qualidade para o sujeito. Deste modo,
Freud deve à ciência não ter se tornado humanista, já que a psicanálise não trata do homem,
mas do sujeito. Esta é a marca essencial da ciência à psicanálise, uma vez que a ciência foi a
primeira a falar de coisas sem homem, ainda que pelo preço de também eliminar o sujeito.
Foi com o surgimento das ciências humanas que a ciência passa a atribuir ao sujeito
qualidades, numa tentativa de torná-lo consistente. Desta forma atestam sua impossibilidade
em tratar o real do sujeito pelo simbólico já que, para tratar de algo que diz respeito ao sujeito,
12
precisam transformá-lo no que ele não admite e não é, ou seja, um indivíduo com atributos. A
psicanálise não pode ser classificada no campo das ciências humanas, pois não é com o
homem que ela opera. O homem com o qual as ciências humanas trabalham é o efeito no
sujeito da ciência de uma operação de humanização.
O sujeito de que se trata aqui sofre diversas determinações que não devem ser
desprezadas, no entanto sua questão ultrapassa características ou a contextualização social que
o envolve:
“O sujeito do inconsciente não é, em si mesmo, pobre ou rico, branco ou negro, tampouco – e aí se situa talvez o ponto mais escancarado da descoberta freudiana – homem ou mulher. É em sua relação com a alteridade, em que para ele consistem a linguagem, a família, a sociedade, enfim, todos os elementos do que Lacan denominou o Outro, que o sujeito vai sexuar-se, definir-se homem ou mulher, e definir seus demais atributos”(Elia, 2000, op cit, p. 26).
Sendo o inconsciente um pensamento sem qualidades, faz sentido que Freud tenha
colocado apenas uma regra de valor fundamental a seus pacientes: falar tudo o que vier à
cabeça. É somente através do discurso do sujeito que se pode ter notícias de seus
pensamentos, do que é da ordem do inconsciente. As manifestações inconscientes aparecem
no discurso do sujeito, revelando pensamentos ainda desconhecidos.
Através do cogito, Descartes fundou o método científico que fundamenta o discurso da
ciência e no qual também a psicanálise se inscreve:
“tornou-se possível a construção de uma linguagem conceitual dentro da qual os objetos, até então inapreensíveis, puderam adquirir existência. O cogito cartesiano inaugura uma cisão do objeto na ciência, e por conseguinte, no discurso: de um lado, o objeto real – por exemplo, a estrela no céu, – do outro o objeto construído como conceito, ou seja a simbolização do objeto, a estrela formulada no papel do astrônomo fazendo-a existir no papel e no cálculo científico, substituindo metaforicamente aquela que continua no céu” (Alberti, 2000:54).
O cogito inaugura a possibilidade de tratar os objetos pelo simbólico, através da
linguagem, falar em conceito. Fazer existir no simbólico é a única forma pela qual o ser
humano por meio da linguagem pode apreender qualquer objeto. Se o cogito atesta a
existência do ser pelo fato de haver pensamento, é porque faz valer a dimensão simbólica. A
condição de existência se dá pelo fato de passar pelo pensamento. Desta forma, privilegiando
o simbólico, o cogito faz existir o sujeito enquanto objeto do pensamento, o que é
radicalmente distinto do sujeito em sua vertente real e imaginária.
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As determinações científicas criadas por Descartes dizem respeito à existência de um
pensável e um impensável, um dizível e um indizível, um conceituável e um impossível de
conceituar. Desta forma, pode-se dizer que a ciência testemunha o fato de que há um
impossível em jogo de dar conta, ainda que se debruce sobre o estudo do pensável, dizível e
conceituável, ou seja, daquilo que pode se apreender pelo simbólico. A psicanálise tem como
referência as mesmas determinações da ciência, no entanto, diferente desta, se ocupa também
do impensável, indizível, que diz respeito ao lado real do sujeito.
Segundo Lacan, psicanálise e ciência têm no eixo do sujeito um ponto de interseção.
Vale ressaltar que dizer ser o sujeito da ciência uma hipótese lacaniana, implica colocar ter
sido no campo da psicanálise, ou seja, do lugar de psicanalista ocupado por Lacan que surgiu
esta formulação. De modo que, pensar um sujeito no campo da ciência como proposto por
Lacan, só foi possível pela trilha de seu percurso, que o levou às origens da psicanálise, e daí
à ciência, apontando esta como imprescindível ao aparecimento da psicanálise. Uma vez que
o psicanalista é aquele que privilegia o sujeito em sua intervenção, pode-se dizer que Lacan
foi por esta via verificar como a ciência o trata. Deste modo, uma pergunta que pode ter
levado Lacan a esta direção é: Sendo a psicanálise produto da ciência, como relacioná-las,
senão retornando ao discurso que lhe deu origem, interrogando aí, que lugar dá a ciência ao
sujeito do inconsciente?
Se Lacan sustenta que a ciência inaugura uma nova concepção do sujeito, disto não
decorre que este sujeito seja por ela aceito em sua operação. Ao contrário, pode-se afirmar
que, para constituir-se enquanto tal, ela precisa excluir de seu campo este mesmo sujeito por
ela inventado. Ainda que o sujeito da psicanálise seja o mesmo da ciência, daí não resultam
sobre ele operações equivalentes. A posição que o sujeito ocupa nestes discursos e a forma
como ambas operam sobre ele são fundamentais na compreensão da relação entre psicanálise
e ciência.
Ao introduzir o sujeito no centro de seu discurso, a psicanálise passa a incluí-lo em seu
campo operatório. A psicanálise subverte o sujeito da ciência, inserindo-o em seu campo de
experiência como sujeito do inconsciente. Em contraponto, a ciência realiza uma exclusão do
sujeito da cena discursiva, que resta como elemento extraído, não por acaso, mas justo para
que o discurso opere na sua forma própria. Dizer que “o sujeito sobre quem operamos é o
sujeito da ciência”, já admite em si a especificidade psicanalítica, qual seja, a de tratar do
sujeito através de uma determinada operação. A ciência, de outro modo, faz uma operação, no
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entanto não sobre um sujeito, até porque exatamente este que precisa estar ausente. A ciência
deixa de fora de sua operação o sujeito por ela gerado, de forma a se poder afirmar que a
psicanálise inclui em seu campo o excluído pela ciência:
“a psicanálise constitui um saber inteiramente derivado porém não integrante do campo científico, porquanto resulta de uma operação de “subversão” desse campo pelo viés do sujeito: Lacan afirma a existência de um sujeito da ciência, constituído no e pelo mesmo ato fundador da ciência moderna com Galileu e formulado por Descartes” (Elia, 2000, op cit, p.21).
Dizer que a psicanálise compartilha do mesmo método que a ciência é dizer de acordo
com Elia que: “tratar o real pelo simbólico é a démarche científica por excelência” (idem,
1999:42). No entanto, se a psicanálise por um lado se inscreve neste método, por outro, ela
rompe para criar um método próprio, particular a ela. Pode-se dizer que um sujeito vem
buscar análise, ali onde pela emergência do real, seu recurso simbólico falha. O real implicado
na experiência da análise exige ser tratado pelo simbólico da teoria. É a única forma de se
tratar o real, ou seja, pela via do simbólico:
“A psicanálise, ao retomar uma démarche científica, subverte o sujeito suposto e excluído, a um só tempo, pela ciência, e trabalha a partir da inclusão do sujeito no campo de sua experiência, inclusão que curiosamente se faz, não por acaso ou contingência, pela via do inconsciente: retirado da condição de excluído, condição própria ao sujeito da ciência, o sujeito da psicanálise só pode ser incluído como sujeito do inconsciente” (idem, 2000:22).
Mas, se ambas tratam o real pelo simbólico, há uma diferença em seus recortes. A
tentativa da ciência é de fazer um recorte ali onde o simbólico possa nomear os fenômenos,
conferindo a este a possibilidade de tudo abarcar, ou seja, a ciência trata do real apenas
enquanto pode ser inscrito no simbólico. Uma vez que o campo da ciência é o das
representações, o que não pode ser nomeado fica fora de seu campo. No caso da psicanálise, o
simbólico é entendido como incompleto, permitindo com que o furo real da estrutura psíquica
apareça e seja cuidado. Esta distinção é exatamente o ponto crucial que faz da psicanálise um
método particular, já que é a única que opera sobre o real neste sentido, ou seja, incluindo-o
sem tentar dar conta dele. Talvez seja possível formular que a máxima elaboração simbólica
possível que o sujeito pode fazer do real é que seu recurso simbólico lhe falta para assimilá-lo.
A operação de castração é uma operação simbólica do fato de que há um real em jogo. O
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trabalho analítico é o de constatar este furo no simbólico, esta impossibilidade constituinte do
ser falante. Este é um trabalho somente possível ao método psicanalítico, em que o analista,
marcado pela castração pode operar um efeito desta natureza, causador de trabalho no sujeito.
Elia (1999), fala de uma relação de extimidade entre os campos da ciência e da
psicanálise, considerando a noção de “êxtimo” de Lacan, no sentido de um mais além em
relação ao seu referente. Segundo Elia, a psicanálise encontra-se num lugar mais além,
exterior ao referente da ciência, porém situada no interior desta. Ainda no domínio da ciência,
a psicanálise dela se afasta num ponto por aquela inapreensível. Deste modo, sem dispensar as
referências da ciência, ou seja, dela se servindo, a psicanálise, para operar como tal, precisa
também dela prescindir.
A fim de demarcar sua especificidade que comporta uma diferença radical para com a
ciência, a psicanálise precisou inaugurar um novo campo, um outro discurso. A ciência faz
parte de um discurso constituído pela invenção do sujeito cartesiano que precisa ser ejetado da
cena para que ela opere. Se ambas se confrontam com a dimensão real, agem frente a ela de
formas diferentes. O campo da psicanálise é êxtimo à ciência, já que foi criado a partir da
captação do efeito do sujeito foracluído no próprio corpo da ciência.
Lacan conceitua a dimensão real como aquilo que é impossível de simbolizar. É assim
que se apresenta tanto à ciência quanto à psicanálise, como algo que não cessa de não se
escrever, exigindo assim algum trabalho sobre a condição que impõe. A psicanálise trata
simbolicamente o real, através da inscrição de um impossível. Inscrição esta que constitui o
discurso psicanalítico, no que supõe um furo, um limite no simbólico. Esta operação toma o
real na sua própria condição, ou seja, condição de limite para o ser falante. No caso da
ciência, ao excluir o sujeito do seu campo, não o inclui como real, como o que não cessa de
não se escrever. Incluir o real como impossível a dizer é diferente de excluí-lo. Apesar de
excluído pela ciência, o real permanece consistindo, como no caso da psicose. Este real
excluído, que não por isto permanece mudo, foi tomado por Freud em sua manifestação,
sendo possível daí criar o método psicanalítico.
Segundo Elia (1999), a psicanálise é a ciência, com a condição de que a operação de
inscrição do furo no simbólico tenha tido lugar. “Propomos que esta operação seja uma das
interpretações possíveis da castração. Assim, a psicanálise é a ciência castrada” (p.52).
Tomar o simbólico como incompleto, furado, é o que dá o norte à ética da psicanálise.
Em seu Seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-60), Lacan indica a dimensão real
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como fundamental para orientar a prática clínica do analista. Como pensar uma ética referida
a algo que se escreve para o sujeito como impossível de simbolização? Vejamos um
fragmento da clínica: P chega ao grupo de recepção de saúde mental no Posto de Saúde onde
trabalho, bastante agitado. Nos três encontros do grupo queixou-se das coisas que perturbam
sua cabeça, porém quando perguntado sobre estas dizia:- “preciso de dinheiro”. P insistia em
dizer que precisava muito de dinheiro, que, conseguindo, resolveria tudo. Pergunto como
poderíamos lhe ajudar, ao que ele responde: - “Dra, estou desesperado, não tenho dinheiro, sei
que a Sra não pode me dar. Sabe o que é? Tem um buraco no teto da minha casa e quando
chove fica tudo inundado, preciso de dinheiro para tapar este buraco”. Privilegiar o real como
referência da clínica possibilitou uma escuta da posição subjetiva de P, para além do fato
concreto que trazia. P estava inundado pelo real. Angustiado, buscava ajuda para tapar o furo.
O buraco do teto (do simbólico) esgarçado pela presença do real o dificultava até para
expressar sua história. Como simbolizar o furo colocado pelo real, para poder trabalhar e
conseguir dinheiro para ajeitar o buraco no teto da casa? A referência à dimensão da
experiência real do sujeito direciona a escuta do psicanalista. É o furo no simbólico entendido
como algo que constitui o sujeito que vai orientá-lo na condução do tratamento.
Em sua conferência XXXV, intitulada ”A questão de uma Weltanschauung”, Freud
(1933b) já falava à sua forma da incompletude do simbólico. Ele situa a psicanálise na
qualidade de ciência especializada, indicando que ela pode aderir a uma Weltanschauung
científica. Aponta que na sua visão só existem dois tipos de ciências: pura ou aplicada e
ciência natural:
“...Weltanschauung (Cosmovisión) é uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo”(1933:146).3
Se uma Weltanschauung supõe responder a tudo, ou seja, não inclui em si o furo, a
psicanálise não pode ser classificada como uma. No entanto, Freud encontra características na
ciência, próprias a sua constituição e que divergem da formulação exposta sobre uma
Weltanschauung, encontrando aí um lugar para a psicanálise. Freud conclui que a
3 As referências à obra de Freud foram consultadas nas edições: Brasileira - Imago e Espanhola - Amorrortu, sendo essa última privilegiada em nossa leitura e tradução.
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Weltanschauung científica não é capaz de abranger tudo, que é incompleta e não pretende ser
auto-suficiente, nem construir sistemas. Esta incompletude, que desenha a Weltanschauung
científica, pode ser considerada como um ponto do qual a psicanálise se aproxima. Este
aspecto caracteriza algum acolhimento, se podemos assim dizer, da dimensão real. Se o real
escapa a qualquer teoria, sistema, ou forma de pensamento, é porque aponta em sua condição
um limite. De modo que uma suposta completude ou uma verdade absoluta cai por terra nesta
visão. A impossibilidade é inerente à própria constituição da ciência. Por não se constituir
como uma visão de mundo, a psicanálise não pretende ser um sistema completo. Ao contrário
pretende-se incompleta, fundada no vazio, no buraco do real e, enquanto discurso do singular,
abre espaço para questionar o que se apresenta de maneira fechada.
A Weltanschauung da ciência comporta certas características que lhe são próprias. Ela
rejeita elementos que lhe são estranhos, limitando-se ao seu saber constituído até o presente.
Sustenta ser a única forma de conhecimento aquela dada pelo método de pesquisa que
consiste na observação e elaboração intelectual, destituindo assim qualquer saber derivado da
revelação, intuição ou adivinhação. Ainda que algumas diferenças sejam colocadas entre estes
campos, a psicanálise aceita a Weltanschauung científica, na medida em que a ciência traz
uma marca essencial à psicanálise, qual seja, a invenção do sujeito cartesiano, por
conseguinte, a impossibilidade de totalização.
Freud situa, nesta conferência, a relação da psicanálise com a ciência em termos de
complementação e contribuição da primeira à segunda, uma vez que a psicanálise estendeu a
pesquisa científica à área mental. De acordo com Freud, a ciência estaria muito incompleta
sem a psicanálise. Isto nos remete ao apontamento feito por Lacan sobre o sujeito da ciência.
Se a ciência, como diz Freud, fica incompleta sem a psicanálise, é porque ela exclui o
elemento que somente a psicanálise, por seu método, reintroduz. O sujeito do inconsciente,
recolocado em cena pela psicanálise, atesta um ponto limite da ciência. Isto se destaca, já que
a ciência procura evitar fatores individuais e influências afetivas, ou seja, as variáveis que
advindas do sujeito podem atrapalhar o desenvolvimento de algum raciocínio.
A ciência tem como objetivo chegar à correspondência com a realidade, no que ela
entende como sendo aquilo que existe fora do ser humano, independente deste e decisivo para
a satisfação ou decepção de seus desejos. A essa correspondência com o mundo externo real
dá-se o nome de verdade. É em busca desta verdade que se debruça toda pesquisa científica.
Ao remeter a verdade ao inconsciente, a psicanálise passa a situá-la num lugar distinto ao da
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ciência. A verdade para a psicanálise está do lado de fora da ciência, visto que a ciência se
esforça em manter aí o que é da ordem do sujeito.
Freud aponta que a ciência oferece apenas fragmentos de suas descobertas,
colecionando observações de constâncias no curso dos eventos, aos quais dá o nome de leis.
Os achados científicos permanecem como provisoriamente verdadeiros, já que podem ser
substituídos por outros a que se confira maior grau de certeza. A possibilidade de refutar
idéias, colocando-as em dúvida, levando em conta fatores inesperados, dando andamento às
pesquisas, permite uma revisão de alguns pontos para aprimoramento e progresso do trabalho.
Este método empregado pela ciência tem grande semelhança à forma de investigação proposta
por Freud:
“O progresso no trabalho científico é o mesmo que se dá numa análise. Trazemos para o trabalho as nossas expectativas, mas estas devem ser contidas. Mediante observação, ora num ponto, ora noutro, verificamos alguma coisa nova; mas, no início, os elementos não se completam. Fazemos conjecturas, formulamos hipóteses, as quais retiramos quando não se confirmam, necessitamos de muita paciência para que estejamos prontos a todas as possibilidades, renunciamos às convicções precoces, de modo a não sermos levados a negligenciar fatores inesperados... Na análise, porém, temos de prescindir da ajuda fornecida à pesquisa, mediante a experimentação” (ibidem, p.160-61).
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CAPÍTULO II
ARTICULAÇÕES SOBRE O SIMBÓLICO
De acordo com Lacan (1966a), o sujeito, enquanto marca instaurada pelo discurso
científico é fundamental à psicanálise. Isto se coloca na medida em que este sujeito, cuja
constituição Lacan atribui à determinação científica, guarda em si uma especificidade crucial
para a prática psicanalítica. O sujeito da ciência, logo, o sujeito freudiano, é o sujeito
cartesiano, uma vez que resulta da formulação do cogito. Ainda que seja tomado de formas
distintas nos respectivos discursos, já que cada qual lhe atribuirá um lugar próprio, segundo a
lógica que o constitui, o sujeito permanece em sua definição.
Considerado como referência para a definição do sujeito da ciência, Lacan atesta com
o cogito a primazia do simbólico. Ao afirmar o ser enquanto prioritariamente pensante, o
cogito privilegia o que é da ordem do simbólico, uma vez que o pensamento é estruturado
com o mesmo estofo da linguagem. Sendo assim, o objetivo deste capítulo é desdobrar,
através de elementos da teoria psicanalítica, a articulação presente entre o sujeito em questão
e o conceito de simbólico trazido por Lacan.
Levando-se em conta que, do ponto de vista da psicanálise, o pensamento de que se
trata é o pensamento inconsciente, o sujeito do pensar, suposto por Lacan, é o sujeito do
inconsciente “...o inconsciente participa das funções da idéia ou até do pensamento” (Lacan,
1953c:260). Com relação ao pensamento, Lacan diz: “Pois Freud designa por esse termo os
elementos que estão em jogo no inconsciente, isto é, nos mecanismos significantes que acabo
de reconhecer nele” (1957:520).
Em seu texto “A ciência e a verdade” (1966a), Lacan faz a ligação entre pensamento e
linguagem a partir de uma determinada leitura do cogito, onde o afirma como referido à
linguagem. Ao escrever, penso: “logo sou” (p.879), aponta que o que está entre aspas, além de
ser o conteúdo do pensamento, é uma fala. Com isto demonstra que o que funda o ser é o
dizer: “logo existo”, ou seja, o ser só é fundado pelo pensamento na medida em que se vincula
à fala. Não há ser fora da possibilidade de se dizer “logo sou”, em que se afirma a existência,
através da linguagem. O pensamento depende da fala para se fazer valer no dito, o que indica
o papel fundamental da linguagem.
A questão da linguagem foi tomada por Lacan com bastante rigor de modo que, no
desenvolvimento de seus estudos e de sua clínica, pôde formular uma de suas mais conhecidas
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descobertas: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Apesar de ter se tornado
lugar comum no vocabulário lacaniano, essa frase merece destaque em nossa pesquisa e,
principalmente, neste capítulo que pretende articular dois termos nela contidos: inconsciente e
linguagem.
Na ótica lacaniana, é no discurso da ciência, através do cogito, que o sujeito, tal qual
tomado pela psicanálise, surge em sua definição. Enquanto despojado de qualquer qualidade,
o sujeito cartesiano é puro pensamento. Se para a ciência ele nada importa, à psicanálise, ao
contrário, interessa a escuta do pensamento. São os pensamentos, sejam eles quaisquer, que, a
partir de Freud, passam a situar-se no campo do inconsciente, que fazem valer, através da fala
do analisando, a clínica psicanalítica. A dimensão simbólica do sujeito ganha espaço, desde o
cogito e pela retomada feita pela psicanálise que se debruça sobre o que é da ordem do
pensamento, fala e linguagem do sujeito.
A ciência exclui o sujeito em todas as suas vertentes, de modo que o que é da ordem
de seu simbólico, ou seja, seu pensamento, também não é levado em conta. Esse sujeito, que
pode falar de seus pensamentos, é a psicanálise que recoloca em cena no intuito de produzir
algum saber que lhe diga respeito.
Em julho de 1953, numa conferência intitulada “O simbólico, o imaginário e o real”,
realizada na Sociedade Francesa de Psicanálise, Lacan estabelece pela primeira vez os três
registros psíquicos que nodulados constituem a realidade psíquica do ser falante. Nesta data,
Lacan dava os primeiros passos na abordagem do que nomeou de tripartição “real, simbólico
e imaginário” que, ao ganhar maior consistência ao longo de seu ensino, transformou-se numa
de suas mais importantes contribuições à psicanálise.
O ponto nodal da articulação entre os três registros reside na constatação de que a
estrutura psíquica do sujeito porta uma falta que a constitui. É em torno desta falta nuclear do
psiquismo que real, simbólico e imaginário fazem sua amarração. A marca de uma falta de
ordem real no centro do psiquismo denota um impossível de ser simbolizado. Assim sendo,
tanto imaginário quanto simbólico são afetados pela marca desta falta. A sinalização de uma
incompletude afeta todo o psiquismo humano, uma vez que o registro real figura neste como
eixo central da estrutura. Se o real diz de um impossível e está no núcleo do psiquismo, então
a referência a ele se fará sempre presente. O imaginário se opõe ao real, já que o real é da
ordem do sem sentido e o imaginário diz respeito ao que é da ordem do sentido. É através da
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instância simbólica exclusiva dos seres falantes que o sujeito ganha corpo, um corpo de
significantes, como recurso para a função de simbolizar o fato de haver falta.
Foi a partir do privilégio dado à dimensão simbólica que Lacan iniciou seu ensino em
1953. Nesse ano, num discurso proferido em Roma, fez questão de chamar a atenção dos
analistas para a importância das funções da fala e da linguagem, deixadas de lado pelos pós-
freudianos, percebendo que, por serem desprezadas, traziam conseqüências para a clínica
psicanalítica. Como campo central da psicanálise, a fala e a linguagem, segundo Lacan, teriam
caído em abandono desde Freud, de modo que acreditava ser fundamental retomá-las como
tema em seu discurso. Preocupado em apontar à comunidade psicanalítica os rumos que ela
seguia, visto que a prática dos pós-freudianos voltava-se para uma psicanálise ortopédica, a
proposta de Lacan era de reconduzir a experiência psicanalítica a seus fundamentos, ou seja, à
fala e à linguagem, na tentativa de conceituá-las. “Se a psicanálise pode tornar-se uma ciência
– pois ainda não o é –, e se não deve degenerar em sua técnica – o que talvez já seja um fato –
devemos resgatar o sentido de sua experiência” (Lacan, 1953c, op cit, p.268).
O movimento de retomada da fala e da linguagem como pontos cruciais da teoria
psicanalítica foi também um retorno à clínica, enquanto local privilegiado do aparecimento da
psicanálise a partir da fala das pacientes de Freud. Ao atender o pedido de suas pacientes
histéricas, que preferiam falar a que lhes falassem, Freud priorizou a fala dessas mulheres,
dando-lhe um lugar destacado. É a fala do sujeito que funda a psicanálise, por conseguinte,
aquilo que lhe constitui o fundamento, o alicerce. Assim, Lacan ressalta a fala do analisando
como meio de que o analista dispõe para tratá-lo, visto que o discurso revela o lugar de onde o
sujeito fala. Define da seguinte maneira o método psicanalítico:
“seus meios são os da fala, na medida em que ela confere um sentido às funções do indivíduo; seu campo é o do discurso concreto, como campo da realidade transindividual do sujeito; suas operações são as da história, no que ela constitui a emergência da verdade no real”(ibidem, p.259).
No intuito de salientar a função da fala na análise, aponta que toda fala pede uma
resposta, sublinhando assim o caráter de endereçamento inerente a ela, ou seja, o fato de que
toda fala é dirigida a um Outro, comportando a noção de alteridade, ainda que se esteja
falando sozinho. É o ouvinte a quem a fala se endereça que a interpreta, isto é, que a ela dá
sentido. Assim, pode-se dizer que é o analista quem interpreta a fala endereçada pelo paciente,
sendo no discurso deste que sua intervenção opera. A função da linguagem considerada
22
primordial para a psicanálise não é a informação, mas a evocação. O que se busca na fala é a
resposta do Outro. É preciso ressaltar que o analista não é idêntico ao Outro, ainda que o
sujeito possa atribuir-lhe este lugar, o que exige do analista um manejo da transferência.
Pode-se dizer que um sujeito busca análise por apostar que o analista detém o saber sobre algo
que lhe falta. O sujeito supõe que, se ele nada sabe, alguém deve saber, o que indica a própria
suposição de estrutura do inconsciente. A atribuição ao analista de um saber do qual ele,
sujeito, não sabe, caracteriza a transferência cujo pivô Lacan nomeou de sujeito suposto saber.
O sujeito se dirige ao analista acreditando que é ele quem sabe, desconhecendo, deste modo,
que o saber que não se sabe mora em Outro lugar. Embora seja o analista que lhe responda,
ele assim o faz através daquilo que do Outro pode recolher.
É a partir da articulação que faz Lacan entre linguagem e transferência, que se pode
destrinchar melhor o lugar delicado em que o analista é convocado. Segundo Lacan, havendo
linguagem, a transferência vai aparecer, pois o próprio funcionamento da linguagem coloca de
um lado o emissor e de outro um ouvinte. O analista ficaria no lugar do ouvinte, a quem a fala
do analisando se dirige. A transferência estabelecida significa atribuir a alguém este lugar de
ouvinte, autorizando que dê sua interpretação daquilo que escuta.
Apesar de ser colocado pelo sujeito num lugar de atribuição de saber, não é desta
posição que o analista deve responder. Há uma particularidade no seu trabalho que diz
respeito ao manejo da transferência:
“A função do analista é sustentar o lugar de não saber, já que somente daí é que se pode operar mudanças no sujeito falante. Ainda que saiba que o analisando lhe supõe um saber é ao inconsciente do sujeito que ele, analista supõe a verdade. Portanto, é preciso recolher e acolher a demanda do sujeito que lhe faz esta suposição para que a transferência estabelecida seja motor do trabalho”.(Erlich, 2005:6).
Como indica Lacan, quando o analista é convocado pelo sujeito, trata-se de exercer
uma função:
“A partir daí, surge a função decisiva de minha própria resposta, e que não é apenas, como se diz, a de ser aceita pelo sujeito como aprovação ou rejeição de seu discurso, mas realmente a de reconhecê-lo ou aboli-lo como sujeito. É essa a responsabilidade do analista, toda vez que intervém pela fala”( Lacan, 1953c, op.cit, p.301).
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Podemos retomar a definição de Anna O., paciente de Breuer: a psicanálise é uma
“talking cure”, ou seja, uma cura que se dá pela palavra. Dessa forma, com Anna O.,
sublinhamos a fala como essencial ao processo analítico, uma vez que é por meio dela que o
paciente pode rememorar sua história, reordenando-lhe uma amarração. “É justamente essa
assunção de sua história pelo sujeito, no que ela é constituída pela fala endereçada ao outro,
que serve como fundamento ao novo método a que Freud deu o nome de psicanálise” (ibidem,
p.258).
Considerando que cada sujeito é sujeito da sua história particular, cada qual será
marcado por um determinado texto. É com este texto que pode ser falado em análise que o
paciente chega a suas sessões. No entanto, há parte do texto que falta ao sujeito e Lacan
(1953c) a definiu como: “O inconsciente é a parte do discurso concreto, como transindividual,
que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente”
(p.260). Com esta definição, Lacan aponta para a falta constitutiva do psiquismo sob cuja
órbita estrutura-se o inconsciente. Este capítulo que está em branco, que falta ao acesso do
sujeito, pode ser em parte resgatado, já que se encontra escrito em outro lugar. Lacan aponta
alguns destes lugares como: o corpo enquanto núcleo do sintoma histérico, documentos,
arquivos, lembranças infantis, além de tradições que veiculam a história particular de cada
sujeito. Em suas palavras: “o que ensinamos o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é
sua história” (ibidem, p.263). Pode-se colocar então que o inconsciente é um texto próprio a
cada sujeito, portanto, com determinações particulares a cada um. Enfim, um texto tramado
por significantes, cujo lugar só pode ser o simbólico.
A partir dos estudos de Lacan, a introdução do terceiro termo, ou seja, do Simbólico,
permitiu a formulação de que a relação estabelecida no campo psicanalítico não é dual. Isso se
coloca porque não se trata da relação entre paciente e analista, mas de ambos numa
interlocução com o Outro. O conceito de Outro diz respeito a este lugar de exterioridade em
relação ao sujeito, habitado pela linguagem, portanto pelo inconsciente. Ao se estruturar como
linguagem, o inconsciente aparece na fala pontuando por esse Outro discurso, uma
interrupção. O Outro é um termo central na teoria lacaniana, posto que por anteceder o
sujeito, é imprescindível para a sua constituição. O analista instrumentaliza o sujeito a falar
com o Outro. Com isso, dizemos que a interpretação do analista opera um efeito no sujeito
por apontar-lhe algo que diz respeito a uma verdade sobre a qual não sabe. Nesse sentido, “O
24
sujeito vai muito além do que o indivíduo experimenta “subjetivamente”: vai exatamente tão
longe quanto a verdade que pode atingir... essa verdade de sua história...”(ibidem, p. 266).
É no retorno à obra de Freud que Lacan passa a sedimentar, com mais elementos, seu
ensino, que tem na letra freudiana sua base. É no texto freudiano que o estudo de Lacan
começa, como é também no relato do texto do analisando que algum trabalho pode se dar,
uma vez que é aí que algo de sua verdade pode aparecer. Dessa forma, diz-se também que um
ato falho, só é falho do ponto de vista do eu, na medida em que rompe com o saber que já se
sabe. Contudo, ao revelar uma verdade do sujeito, pode ser lido como um discurso bem-
sucedido. Podemos dizer que o que Lacan fez foi conceituar aquilo que já se encontrava de
forma embrionária, nos escritos de Freud, o que lhe permitiu desenvolver a partir de sua
leitura as contribuições que trouxe à psicanálise. Afinal, como ele mesmo diz, sua única
invenção de fato foi o objeto a.
A tese de que a linguagem estrutura o inconsciente, isto é, de que a outra cena que
determina o sujeito é feita de linguagem, tornou possível a compreensão de resoluções de
questões e sintomas pela via da análise. Isso se coloca visto que, se o sintoma, por exemplo, é
da ordem do inconsciente, então ele se estrutura como uma linguagem, de modo que é através
da linguagem que pode se desfazer. As modulações do discurso que se dão através das
operações de linguagem velam e revelam, ao mesmo tempo, o desejo do sujeito.
Considerando que o trabalho de análise se dá a partir daquilo que pode ser tratado pela
vertente simbólica do sujeito, ou seja, do que é possível colocar por meio da linguagem, é
também por meio dessa que o que é da ordem do desejo do sujeito pode vir à tona:
“Pois a descoberta de Freud é a do campo das incidências, na natureza do homem, de suas relações com a ordem simbólica, e do remontar de seu sentido às instâncias mais radicais da simbolização no ser. Desconhecer isso é condenar a descoberta ao esquecimento, a experiência à ruína” (ibidem, p.276).
A linguagem para Lacan é não só o tema com que impulsiona seu ensino como
também o que ele eleva ao estatuto de lei que rege o psiquismo humano. A lei de que se trata
é a lei do Outro, enquanto determinante para o sujeito, na mesma proporção em que aponta
para o lugar onde o desejo habita. Assim, a lei do ser falante é a lei do desejo, que só pode
aparecer através da mediação simbólica, manejada pela linguagem, o que coloca a
indissociável relação entre desejo e linguagem. “A linguagem é permeada pelo desejo e o
desejo inconcebível sem a linguagem, e feito da própria matéria-prima da linguagem”
25
(Fink,1998:73). Dizer que o desejo é o desejo do Outro implica situar, num lugar exterior ao
sujeito, o desejo que lhe afeta, de onde advém sua lei. A linguagem tem um funcionamento
automático, operando independente do sujeito. No entanto, requer leis, regras, operações,
construções que aparecem na modulação do discurso do sujeito. A linguagem como lei remete
ao simbólico, ao passo que somente através das palavras é que o homem faz valer sua lei. A
lei que superpõe a cultura ao reino da natureza é da ordem da linguagem, como no caso das
estruturas de parentesco. Aqui se introduz o complexo de Édipo enquanto orientador de uma
certa lógica subjetiva, fazendo reconhecer em seus efeitos a estrutura da linguagem, que
mesmo que não toda, coloca limites, impossibilidades para o sujeito. Dessa forma, a proibição
do incesto aparece como eixo subjetivo, na medida em que interdita certos objetos ao sujeito,
fazendo valer a impossibilidade, logo, a lei, que é a da linguagem.
Segundo Lacan: “É no nome do pai que se deve reconhecer o suporte da função
simbólica que, desde o limiar dos tempos históricos, identifica sua pessoa com a imagem da
lei” (1953c:279).
A importância atribuída à linguagem justifica-se por sua relação com as formações do
inconsciente. Isso se coloca já que, uma vez estruturadas pela linguagem, é através desta que
as formações do inconsciente se manifestam. Desse modo, no primeiro tempo de seu ensino,
Lacan inaugura a primazia do registro simbólico, campo da linguagem, instância estruturada
pelo significante. De seu ponto de vista, o mundo das palavras cria o mundo das coisas, na
medida em que, através da linguagem, um objeto pode existir no simbólico. Isso não significa
que a linguagem abarque tudo, mas que é apenas na dimensão do simbólico que algo pode ter
valor de existência para o ser falante. O universo humano é o universo simbólico.
Tendo em vista ser no campo do simbólico que algum trabalho pode se dar, então é aí
que a análise pode se desenrolar. Para Lacan, o que está em jogo numa análise é o problema
da relação no sujeito entre a fala e a linguagem. Há uma diferença entre fala e linguagem,
sendo que é à questão da linguagem enquanto estrutura que Lacan vai se dedicar. A fala pode
ser definida como a forma com que cada sujeito vai utilizar-se da linguagem.
Lacan (1957) aponta três paradoxos dessa relação: O primeiro aparece na loucura,
onde há uma fala que recusa a fazer-se reconhecer, aparecendo como obstáculo à
transferência. Além disso, há formação de delírio, podendo ser de natureza fabulatória,
cosmológica, idealista, etc... Enfim, seu efeito é de objetivar o sujeito numa linguagem
estanque, sem relativização, sem dialética, o que indica um comprometimento da dimensão
26
simbólica. De modo que fica no lugar de objeto; o sujeito é mais falado do que fala. O
segundo paradoxo trata dos sintomas, inibições e angústias na economia das diferentes
neuroses. O que ocorre aqui é que a fala é expulsa do discurso concreto que ordena a
consciência, sendo recalcada. O terceiro diz respeito ao sujeito que perde seu sentido nas
objetivações do discurso, ficando excluído o que é da ordem da subjetividade. A referência
dada por Lacan aqui é do homem moderno, cuja marcação da ciência ejeta o que é da ordem
do sujeito (p.283).
Dizemos que aquilo que está fora da possibilidade de ser abarcado pelo registro
simbólico tem lugar no real. E a experiência psicanalítica aponta esta marca no que tange ao
psiquismo humano, uma vez que não é possível simbolizar tudo. Isso implica, como vimos,
dizer que o inconsciente comporta em si uma falta constitutiva. Se o inconsciente, segundo
Lacan, é estruturado como uma linguagem, seguindo esse raciocínio, podemos dizer com
Jorge que, “ele é não-todo estruturado como uma linguagem” (2004:142), já que é marcado
pelo que é da ordem do real. Portanto, a parte do inconsciente estruturada, assim se apresenta
no simbólico como linguagem em torno de uma falta originária de um objeto que desde
sempre está perdido. É em torno dessa falta que o inconsciente se estrutura no simbólico
como uma linguagem. A própria palavra estruturada já aponta uma redundância, uma vez que,
para a psicanálise, a estrutura é a linguagem:
“Dito de outro modo, o inconsciente é um saber, um saber articulado em torno de uma falta de saber instintual – este bem poderia ser um dos nomes do objeto a, objeto faltoso e, por isso mesmo, causa do desejo – mas um saber não-todo que, dessa falta, só faz reconstituir a dimensão de seu enigma” (ibidem, p.141-42).
A afirmação de ser o inconsciente estruturado como uma linguagem se coloca na
medida em que ele se apresenta, na clínica, através de suas formações, tais como sonhos, atos
falhos, sintomas, etc... É, portanto, por meio delas que se pode ter acesso ao inconsciente. No
entanto, seu núcleo, enquanto real, é inabordável pelo simbólico. O que é da ordem do real
também comparece na clínica, quando o sujeito fica sem palavras. O sujeito só tem notícias
do furo real, pelo simbólico, quando este falha enquanto repertório possível para o sujeito
fazer face ao sem sentido. Entretanto, é somente pelo recurso simbólico que o sujeito pode
tangenciar o real e tratá-lo.
A primazia dada ao registro simbólico no primeiro tempo do ensino de Lacan está em
consonância com a importância que atribuía à linguagem e à fala na análise, já que, através
27
delas, o psicanalista recebe seu material, seu instrumento e seu enquadre. É somente na fala,
no discurso do sujeito, que seu desejo pode se revelar. A constatação de que o que é da ordem
do inconsciente se apresenta no discurso, levou Lacan à seguinte colocação: “...para-além da
fala, é toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente”
(Lacan, 1957 op cit, p.498).
Se as manifestações inconscientes aparecem no campo da fala do sujeito, é porque têm
a linguagem como estrutura. Se o inconsciente se estrutura como uma linguagem, é por meio
desta que se pode ter acesso às suas manifestações, portanto é através da escuta que o
psicanalista o reconhece. O analista pede que o sujeito associe livremente para que, na sua
fala, possa aparecer o que é estruturado como linguagem, ou seja, o que é da ordem do
inconsciente.
A linguagem precede a existência do sujeito, isto é, ela já está lá antes do sujeito vir a
sê-lo. Dessa forma, já há para ele um lugar inscrito na rede simbólica, que demarca um lugar
subjetivo a ser ocupado. O nome próprio é um exemplo de inscrição simbólica que advém do
Outro como marca para o sujeito. O valor atribuído à linguagem propiciou com que se
tornasse objeto científico, através dos estudos inaugurados pela lingüística.
Segundo Lacan, a linguagem não é imaterial, mas um corpo estruturado. No intuito de
se aprofundar quanto a essa estrutura, Lacan foi buscar na lingüística os elementos que
pudessem lhe servir para fundamentar sua tese de ser o inconsciente estruturado como uma
linguagem. Assim, destaca o seguinte algoritmo inaugurado e formalizado por Ferdinand de
Saussure que marca a etapa moderna da ciência lingüística:
“S - significante” (ibidem, p.500). s - significado
O destaque desse algoritmo, por Lacan, se dá na medida em que para a psicanálise seu
valor está apenas na pura função do significante. Assim, foi na função do significante que
Lacan salientou aquilo que de fato é fundamental à disciplina psicanalítica. A fim de retificar
o paralelismo postulado por Saussure entre significante e significado, Lacan marca que é
preciso livrar-se da ilusão de que o significante atende à função de representar o significado.
Ao contrário de Saussure que dizia que o significante serve para exprimir o significado, Lacan
sustenta que o primeiro atua sobre o segundo, criando-o.
28
Com o propósito de ilustrar essa diferença em relação a Saussure, Lacan exemplifica a
forma incorreta da função do significante, através do desenho: uma árvore no lugar do
significado; acima dela, no lugar do significante, a palavra “árvore”, apontando que a função
do significante não é a de nomear um objeto, nem representá-lo simbolicamente. A forma
correta que utiliza para designar a função do significante se dá através da ilustração de duas
portas semelhantes e contíguas, sendo que acima de uma se encontra o significante “Homens”
e, acima da outra, o significante “Damas”. O que extrai desse exemplo é a função do
significante que, ao precipitar um sentido na imagem das portas, as transforma em sanitários,
criando assim um novo significado, demonstrando que de fato o significante inventa o
significado, sendo o primeiro que determina o segundo.
O que a psicanálise trabalha na sua relação com a estrutura da linguagem, ou seja, com
o algoritmo saussuriano, é notadamente o significante, na medida em que esse aponta algo
relacionado ao sujeito. O significante é aquilo que da linguagem remete a um sujeito. Assim,
é à primazia do significante que Lacan dá relevo, no tocante ao sujeito, uma vez que,
enquanto que no inconsciente o significado é abolido, é do significante a função de
representar o sujeito para outro significante.
A linguagem é o terceiro ausente e ao mesmo tempo presente tanto na relação analítica
quanto em toda relação humana. É Outro, que não o paciente-analista, apontando para a
dimensão de alteridade, que se presentifica na fala do sujeito. O Outro também diz respeito ao
lugar em que o inconsciente é discurso; o Outro que no seio do sujeito o agita, portanto, Outro
do desejo enquanto inconsciente. O conceito de Outro (grande Outro) de Lacan concerne a
uma dimensão de exterioridade em relação ao sujeito cuja função lhe é determinante. O
inconsciente se produz na transferência e aparece no discurso de um sujeito na direção do
analista, transcendendo os dois. O inconsciente se impõe enquanto Outro.
No que concerne ao analista, este se encarrega de recolher o significante que vem do
Outro com sua escuta para transmiti-lo ao analisando. Só é possível dizer do significante, ou
seja, constatar sua função, a partir de seus efeitos. De modo que é o efeito no sujeito que
informa ao analista se o que ele recolheu do Outro fez função de significante. Uma vez que é
não-todo, pode se abrir a pluralidade de sentidos, passando, portanto, a exercer uma função:
29
“O inconsciente não se encontra num suposto mais-além da linguagem, nem em qualquer profundeza abissal ou oculta; ele se acha nas palavras, apenas nas palavras e é nas palavras enunciadas pelo sujeito que ele pode ser escutado. Estruturado como uma linguagem é nela que o inconsciente se acha profundamente enraizado” (Jorge, 2002a:80).
De acordo com Lacan (1957), a concepção do significante pode se referir à palavra, à
frase, ao fonema, a tudo, enfim, que se defina segundo sua estrutura, designada pelo
significante lingüístico. A estrutura do significante está no fato de ser articulado, ou seja, de
estar remetido à cadeia significante, onde um puxa o outro. Isso implica duas condições
estruturais no que tange à sua determinação. A primeira trata da sua composição ser regulada
nos moldes da lei dessa ordem fechada, de acordo com uma cadeia, ou seja, anéis cujo colar
se fecha no anel de outro colar. A segunda diz respeito à redução de suas unidades a
elementos diferenciais. Esses elementos são os fonemas, que representam a unidade mínima
sonora da língua. Sua importância reside na questão da binariedade do significante (S1-S2),
condição inerente à sua definição:
“Lacan formula que o significante surge num par e dá o exemplo do par noite /dia e do par homem/ mulher; estes exemplos ilustram... que, não apenas a coisa está inteiramente ausente da representação significante, mas também que o outro significante, ausente, é o que está ato contínuo sendo referido pelo primeiro. Vê-se que o que está em jogo, para Lacan, em sua definição do significante é a rigor uma visão que enfatiza o caráter puramente diferencial do significante, decalcado por ele da concepção saussuriana do signo: o significante enquanto tal não é jamais senão um-entre-outros, referido a esses outros, não é senão a diferença para com os outros”(Jorge, 2002a:82).
Lacan (1957) designa por letra o suporte material que o discurso toma da linguagem.
Pode-se dizer que a letra mantém uma relação de extimidade com o significante, isto é, se de
um lado ela está presente em sua estrutura, de outro, mantém-se fora, não sendo possível
apreendê-la. A letra sozinha, isolada, não permite nenhuma simbolização, é da ordem do real.
Por exemplo, a letra “a”, desarticulada, não significa nada, no entanto, ao se ligar a outras
letras, pode vir a produzir algum sentido. A questão da letra remete pensar na relação entre
real e simbólico, uma vez que, sendo o simbólico não-todo, tudo o que a ele se refere, como o
significante, vai apresentar esta face de incompletude. Assim, seria possível arriscar dizer que
a letra é a face da linguagem que, ao mesmo tempo em que permite que se formem
significantes, mantêm-se fora deste em sua vertente real? Se o significante é o que representa
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o sujeito, portanto, no simbólico, a letra permanece do seu lado real, não abordável. A letra é
aquilo que esvazia o significante, ou seja, separa-o de sua função de significar:
“Se Lacan chama atenção para o aspecto literal do significante, é porque a letra é o significante em sua materialidade, isto é, por ser irredutível às formações significantes, ela funciona como um operador assemântico que engendra a significação” (Freire, 1996:30).
Neste momento não vamos nos deter na questão da letra, deixando-a como um
apontamento importante a ser desenvolvido com mais cuidado, no que respeita à questão da
linguagem. No que se refere ao significante, o que Lacan sublinha não tem a ver com o fato de o
sujeito reconhecê-lo, mas com a possibilidade de, ao utilizar-se de uma língua, dizer algo
completamente diferente do que ela diz. Com isso aponta para o fato de que o significante
pode surtir no sujeito um efeito de surpresa, de chiste, posto que pode remeter a alguma coisa
diferente do óbvio, causando assim algum impacto, por vacilar significações estabelecidas. O
significado torna-se um efeito do significante.
A teoria do significante é, com Lacan, uma exigência de fundamentação teórica da
psicanálise, cuja definição exige a suposição do sujeito. Freud não postula esta exigência, no
entanto, ao operar com ela, permitiu a Lacan seu reconhecimento.
A obra de Lacan tem esta marca de apontar para a importância de se reconhecer, nos
textos que fundam a psicanálise, a verdade da descoberta freudiana. Se o ensino de Lacan se
impôs na direção de re-visitar o texto freudiano foi porque somente a partir dos elementos que
lá se encontram é que seria possível retificar os rumos trilhados pela psicanálise, apontados
por Lacan como destoantes da proposta original.
Segundo Lacan, o algoritmo saussuriano S/s define a tópica do inconsciente e, uma
vez que sua função opera, num segundo momento é possível dizer que ali algo do lugar do
inconsciente manifestou-se. O que se extrai como desenvolvimento desse algoritmo que
aponta para a incidência do significante no significado, ajusta-se à seguinte formulação:
“ f(S) I ” (Lacan, 1957 op cit, p.518). s em que, sendo I= um, lê-se: A função do significante é tal que sempre no lugar do
significante, seja ele qualquer, sua função será de determinar o significado. Qualquer que seja,
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o significante tem como função agir sobre o significado. O que implica dizer que o
significado é determinado pelo significante. Entre eles há uma barra que os separa, enquanto
ordens distintas, designando a resistência à significação, ou seja, o fato de que o significante
não se reduz a representar o significado. A partir da presença do significante no significado,
mais precisamente dos elementos da cadeia significante horizontal e de suas contigüidades
verticais, pôde-se verificar os mecanismos de duas estruturas fundamentais: metonímia e
metáfora. Lacan recorre a estas duas figuras de linguagem, a fim de nomear a função que o
significante desenha na linguagem. Freud já havia nomeado essas operações através dos
mecanismos do deslocamento, em que ocorre o transporte da significação (metonímia), e a
condensação, em que, pela superposição dos significantes, ganha campo a metáfora.
Na estrutura metonímica temos a seguinte formulação:
“ f (S...S’) S = S (–) s ” (ibidem, p.519).
em que se lê, em termos psicanalíticos, que é a conexão do significante com outro
significante, ou seja, da cadeia significante horizontal que permite a supressão mediante a
qual o significante instala a falta do ser na relação de objeto, o que promove a possibilidade
do desejo. Ao se inscrever na relação do ser com o objeto, a falta aponta que nenhum objeto
pode completar o sujeito. A metonímia é uma operação da linguagem na qual a parte é tomada
pelo todo, ou seja, o todo é representado por apenas uma de suas partes. Uma ilustração
conhecida desse mecanismo aparece com a conexão dos significantes “trinta velas”, em que o
significante “navios”, ao ser elidido, passa a ser representado pelas velas.
Dessa forma, o “navio”, enquanto todo, fica esvaziado, sendo representado por uma de
suas partes, nesse caso “velas”. O sinal – colocado entre parênteses representa um menos do
significado, uma vez que, ao reduzir o significado “navio” a trintas velas, ele não é como um
todo representado. Assim a falta é instalada pelo significante enquanto não-todo. A ligação do
navio com a vela está no significante, ou seja, é na seqüência que vai de palavra em palavra
que a metonímia se apóia. O sinal atesta a manutenção da barra que resiste à significação,
marcando a irredutibilidade da relação do significante com o significado. Isso ocorre por duas
razões: primeiro que sua função é a de determinar o significado e segundo que só em parte
pode representá-lo.
32
A estrutura metafórica segue esta demonstração:
“ F (S) S = S (+) s ” (ibidem, p.519).
S
Ela indica que é na substituição do significante por outro significante que se produz um efeito
de significação, ocorrendo o surgimento de um novo significado, portanto o sinal +. Lacan
recorre ao seguinte verso de Victor Hugo, para exemplificar a metáfora: “Seu feixe não era
avaro nem odiento...”(ibidem, p.510), em que o significante “feixe” remete ao personagem
Booz, substituindo-o assim na cadeia significante, através do que aponta o pronome “seu”. A
metáfora é uma operação que brota entre dois significantes, um substituindo o outro e
assumindo seu lugar na cadeia significante, enquanto o outro permanece oculto, porém em
conexão com o resto da cadeia. A metáfora se apóia na fórmula de uma palavra por outra. O
sinal + atesta a transposição da barra de resistência, portanto a emergência da significação. A
transposição aponta justamente a passagem do significante para o significado.
Apesar de tomar emprestada da lingüística a formulação de Saussure, ao trazer seu
algoritmo para o campo psicanalítico, foi preciso imprimir-lhe uma mudança. Isso porque,
sendo o sujeito aquilo que de fato interessa à psicanálise, é preciso incluí-lo sempre na cena.
Em se tratando das relações da psicanálise com outros campos, como a ciência e a lingüística,
aquela preserva, frente a estas, a especificidade de operar com o sujeito. Dessa forma, se, na
postulação de Saussure, o sujeito está excluído, foi preciso a Lacan inseri-lo exatamente aí
onde o que é da ordem do inconsciente se expressa, através do significante. Sendo assim,
Lacan estabelece uma proximidade entre sujeito e significante, dando consistência à sua
teorização.
A partir do momento em que Lacan leva o sujeito em consideração junto ao algoritmo
saussuriano, aponta que: o significante é o que representa um sujeito para outro significante,
donde se vê a íntima relação entre ambos. Se o sujeito só pode se fazer representar através do
significante é porque mesmo constituído por real-simbólico-imaginário, somente a nível
simbólico é que se faz representar. Isso se coloca, já que o real do sujeito aparece pela falta
marcada no simbólico, ou por outra, pela impossibilidade de simbolização, não sendo
possível, portanto, ter acesso a esta vertente.
Do ponto de vista da psicanálise, o sujeito é representado através do significante para
outro significante. Assim, a representação de um sujeito depende do significante destacado
33
por outro significante nele. Neste sentido, pode-se dizer que cada sujeito será representado por
um determinado significante para outro significante, sendo que sua representação não lhe
pertence, e sim a outro. Isso aponta que é o outro, também enquanto significante, que
interpreta o sujeito. Um sujeito será representado de forma particular através de um
determinado significante que o representa também para outro determinado significante, num
determinado momento.
Assim, pode-se dizer que não existe uma representação única e total de um sujeito,
tendo em vista que sua representação será o resultado do efeito de um significante em outro
significante, a cada transferência que estabelecer. Enquanto referido à ordem simbólica, o
significante é não-todo, como se vê na metonímia; ele não diz tudo do sujeito, representando-
o apenas parcialmente. Daí a formulação lacaniana do sujeito barrado, na medida que nenhum
significante basta para representá-lo integralmente. O sujeito, desse modo, está sujeito ao
significante. Ele é intervalar, pontual e aparece no “entre” dos significantes:
“A psicanálise, ao contrário, tendo o real encravado no coração de sua prática, é a experiência mesma da impossível totalização do sentido - sentido que abriga no seu cerne o não sentido, essa região de heterogeneidade e diferença a impedir, tornar impossível, qualquer coisa da ordem de uma totalização” (Souza, 1996:13).
O sujeito, tal como definido pela psicanálise é inaugurado pelo cogito, na medida em
que ele implica uma destituição subjetiva, cuja origem está na experiência feita por Descartes
de um despojamento do saber. A destituição subjetiva por ele vivenciada veio como efeito da
dúvida que, ao ser utilizada enquanto método, permitiu o questionamento de todo o edifício
de idéias estabelecidas. Como conseqüência, Descartes sofreu um esvaziamento,
descentramento da imagem que o definia como sujeito. Isso ocorreu, já que era esse saber
existente que conservava a constituição dessa unidade, conferida por uma consistência
imaginária.
No momento em que o lugar de identidade sofre um abalo, essa imagem se desfaz por
um instante, não mais sustentando uma síntese. Se o que a sustentava ligava-se ao saber, então
por um momento desse processo, através da dúvida, ao cair o saber, eis que surge o sujeito na
sua certeza de sujeito pensante. Descartes procurava algo que pudesse lhe trazer garantias, no
entanto descobre que somente a cada vez em que o pensamento se presentifica é que pode
afirmar sua existência. Quanto a isto não havia dúvida.
34
O valor do cogito para a psicanálise não está na dúvida, enquanto instrumento tal qual
funcionou para Descartes, mas no efeito de sujeito que esta acarreta. Trata-se do sujeito que se
funda num para além da consciência, que encontra sua ancoragem no momento evanescente e
pontual em que duvida. Despojado de garantias, atributos e significações, só pode se
constituir, como resíduo, na dúvida, na incerteza do saber, no intervalo entre dois
significantes, num instante. Este instante de interrogação, em que algo da verdade do sujeito
aparece e causa uma ruptura com o que antes já estava estabelecido, é o que Lacan nomeia de
sujeito do inconsciente. Trata-se de um intervalo, cuja pontualidade da manifestação acarreta
uma desorganização da estrutura consistente do eu. A desfiguração da imagem instalada por
esse momento de aparição de sujeito provoca imediatamente uma operação que busca a
configuração, a constituição de uma síntese que reorganize o saber. E, como efeito desta
tentativa de compor uma unidade surge aquilo que Freud nomeou como o lugar do eu.
Como exemplo, podemos pensar no ato falho que, enquanto manifestação do sujeito
do inconsciente, ao ser escutado, introduz uma nova significação, fazendo corte no saber
existente do eu, logo, convocando ao trabalho. Esta experiência causa estranheza ao eu, que se
surpreende com o aparecimento de algo que aponta, neste primeiro momento, um sem sentido
na sua rede construída de sentido. Lacan provoca: “Qual é, pois esse outro a quem sou mais
apegado do que a mim, já que, no seio mais consentido de minha identidade comigo mesmo, é
ele que me agita?” (Lacan, 1957, op cit, p.528).
Segundo Alberti (1999), o eu descentrado por Freud de um lugar soberano do
psiquismo ressurge no movimento da história psicanalítica, ou pela nomenclatura “ego”,
readquirindo o lugar no centro da esfera imaginária, tal como proposto pela psicanálise pós-
freudiana, ou como sujeito barrado, tornando-se um dos termos da fantasia. O eu que
abordamos aqui é aquele que o cogito faz surgir, que nomeamos ou de sujeito barrado ou de
eu dividido entre saber e verdade. A parte desta divisão do eu que diz respeito à verdade
refere-se ao que chamamos de sujeito do inconsciente.
Pode-se dizer que o sujeito do inconsciente e o eu são operações que se dão na
linguagem, guardadas suas particularidades. Na visão de Descartes, o eu é identificado à
consciência. A noção de o eu ser em sua maior parte inconsciente adveio com Freud. Através
do cogito, o eu conclui que existe, toda vez que diz: “eu penso”. É preciso repetir estas
palavras para convencer-se disso. Assim, tal como o sujeito do inconsciente, o eu também
aparece numa formulação linguajeira, num instante.
35
O que Lacan extrai do cogito é a noção da divisão subjetiva, em que o sujeito marcado
por um saber surpreende-se com a aparição de um saber não sabido. Conclui-se daí que o
sujeito da ciência nomeado por Lacan equivale ao que estamos chamando de eu dividido entre
saber e verdade. No entanto, se Lacan diz tratar-se do mesmo sujeito, completamos ao situar
uma diferença crucial: ao incluir a parte da divisão do sujeito, cujo sujeito do inconsciente
aparece para revelar uma verdade, a psicanálise se distingue da ciência. Ainda que a ciência
tenha inaugurado o sujeito dividido, dele ela nada quer saber, excluindo o que é específico à
psicanálise.
Considerando o sujeito do inconsciente como o que porta uma verdade, a psicanálise
passa a situar o campo do simbólico como não-todo. Isso se coloca, na medida em que este
sujeito só pode aparecer enquanto furo, numa estrutura que não é totalizadora, ou seja, é
incompleta. O saber do eu dividido é incompleto, o que possibilita espaço para o não-saber
advir. Diante da constatação deste furo, o eu busca tamponá-lo, na tentativa de sustentar uma
imagem inteira, uma unidade que vele o furo. Esta operação diz respeito à dimensão
imaginária do eu:
“O eu não é o sujeito e ambos são, de fato, absolutamente heterogêneos, pois o eu (corpo próprio) se forma a partir da matriz imaginária produzida no estádio do espelho como um verdadeiro rechaço da pulsão (corpo espedaçado). O eu é essencialmente imagem corporal, ao passo que o sujeito é efeito do simbólico, do Outro, da linguagem.” (Jorge, 2002a, op.cit, p.23).
O processo de destituição subjetiva implica uma queda desta vertente do eu que se
pretende total, de modo que o saber que o sustentava cai, fazendo aparecer a verdade da
divisão. Este saber é um saber egóico, em outras palavras, saber sabido, que muitas vezes
aponta o engano do sujeito.
No intuito de obter um contraste na articulação com o sujeito do inconsciente, o
conceito de eu neste capítulo será privilegiado em algumas passagens em sua dimensão
imaginária. Se o primeiro porta um não sentido frente ao segundo, o eu na vertente
imaginária, ao contrário, busca conferir sentido. No entanto, ressaltamos que o eu não se
reduz ao imaginário, sendo também atravessado pelos registros, real e simbólico. Uma vez
que se pretende investigar acerca do conceito de sujeito do inconsciente, introduzido pelo
pensamento psicanalítico, faz-se necessária sua articulação com o conceito de eu nessa teoria,
de modo que não é possível pensá-lo dissociado deste. Assim, sugerimos, para o próximo
36
capítulo, o aprofundamento do conceito de eu, a partir da leitura dos textos de Freud e Lacan
sobre o assunto.
Ainda que o termo inconsciente já se fizesse presente antes do surgimento da
psicanálise, foi somente a partir da descoberta freudiana que ele ganhou novo status. Segundo
Freud (1917), o narcisismo universal dos homens sofreu três golpes importantes. O primeiro
se deu a partir das pesquisas de Copérnico, no século XVI, e sua descoberta de que não era a
terra o centro do universo, mas o sol. O segundo golpe tem o nome de Charles Darwin como
referência, já que foi graças às suas pesquisas que se verificou a ascendência animal do
homem. Os golpes cosmológico e biológico antecederam o terceiro advindo com Freud e sua
concepção de inconsciente, marcando o golpe psicológico.
A descoberta freudiana atesta o fato de que “o eu não é o senhor de sua própria casa”
(Freud, 1917:135). Isso implica dizer que ali onde o eu se pensa único no comando dos
processos psíquicos, equivoca-se, uma vez que os processos inconscientes determinam sua
morada. Freud destrona o eu do lugar de unidade e saber, como considerado por Descartes,
para outro, do conflito e da divisão. A consciência e a razão são derrubadas de seu lugar de
verdade, passando a representar o lugar do engano. A subjetividade deixa de ser entendida
como um todo unitário, identificado à consciência, para ser uma realidade dividida entre os
sistemas consciente e inconsciente. Numa passagem deste mesmo artigo, Freud comenta o
que se verifica em algumas neuroses:
“Os pensamentos emergem de súbito, sem que se saiba de onde vêm, nem se possa fazer algo para afastá-los. Esses estranhos hóspedes parecem até ser mais poderosos do que os pensamentos que estão sob o comando do eu. Resistem a todas os recursos de coação utilizadas pela vontade, permanecem imutáveis pela refutação lógica, indiferentes frente às afirmações contraditórias da realidade. Ou os impulsos surgem, como se fossem de alguém estranho, de modo que o eu os rejeita; mas, ainda assim, os teme e adota medidas preventivas contra eles. O eu diz para consigo que isto é uma doença, uma invasão estrangeira e aumenta sua vigilância, mas não pode compreender por que se sente paralisado de uma maneira tão rara” (ibidem, p.133).
A subjetividade à luz da psicanálise é essencialmente clivada, e o inconsciente,
enquanto verdade desconhecida pelo eu, é o que a constitui fundamentalmente. Em seu texto
“A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957), Lacan fala da
subjetividade, lançando a seguinte questão: “O lugar que ocupo como sujeito do significante,
em relação ao que ocupo como sujeito do significado, será ele concêntrico ou excêntrico?”
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(p.520). Poderíamos dizer que, através desta interrogação, Lacan aponta para a divisão do
sujeito?
Apesar de introduzir esta pergunta, Lacan não indica o que quer dizer com estes
termos. Assim, na tentativa de abordar o sujeito a partir dos termos significante e significado,
lançamos a hipótese de pensar o sujeito do significante, referido ao momento em que o
inconsciente surge num intervalo, apontando uma verdade, fazendo vacilar as bases do eu.
Quanto ao sujeito do significado, propomos uma aproximação com a noção de eu, em sua
vertente imaginária, na medida em que através desta, busca dar sentido, consistência ao
sujeito do significante. O eu em sua vertente imaginária aponta para esse lugar de identidade,
reconhecimento, constituído pelas qualidades que o sujeito atribui a si mesmo enquanto um
saber. É um lugar em que imaginariamente o sujeito acredita saber tudo de si, porém a
emergência do inconsciente aponta o furo que esta vertente tenta tamponar.
A destituição subjetiva promovida pelo cogito faz aparecer a noção de divisão do
sujeito entre saber e verdade. Uma vez que interroga a certeza do saber estabelecido, o cogito
faz surgir a verdade disjunta do saber:
“Esse fio (cogito) não nos guiou em vão, já que nos levou a formular, no fim do ano, nossa divisão experimentada do sujeito como divisão entre o saber e a verdade, acompanhando-a de um modelo topológico: a banda de Moebius, que leva a entender que não é de uma distinção originária que deve provir a divisão em que esses dois termos se vêm juntar” (Lacan, 1966a, op.cit, p.870).
Se o sujeito, do ponto de vista da psicanálise, divide-se entre saber e verdade, como
situá-lo a partir desses termos? Lacan aponta que é em virtude da relação de um significante
com outro significante, que resulta a emergência do sujeito,
“... no instante mesmo em que S1 intervém no campo já constituído dos outros significantes, na medida em que eles já se articulam entre si como tais, que ao intervir junto a um outro, do sistema, surge isto, S/, que é o que chamamos de sujeito como dividido” (Lacan, 1969-70:13).
A articulação dos elementos S1 e S2 é fundamental no que tange à questão do sujeito
para a psicanálise. No próprio desenvolvimento que faz Lacan dessa problemática, começa
falando de um e chega a outro, apontando a indissociável relação desses. No que tange a S1
diz: “Ele intervém numa bateria de significantes que não temos direito algum, jamais, de
considerar dispersa, de considerar que já não integra a rede do que se chama um saber”
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(ibidem, p.11). Esse saber, constituído pela associação da bateria de significantes, é o que
Lacan chamou S2. Trata-se do saber do Outro, que aparece enquanto encadeado por
significantes, num conjunto que é faltoso. E, como efeito dessa organização que dá lugar ao
saber, surge o eu.
A fim de articular a questão do saber e da verdade, precisamos lançar mão daquilo que
Lacan nomeou de A (o campo do grande Outro). O Outro, como citamos anteriormente, diz
respeito ao que é da ordem da linguagem, portanto, ao lugar do significante. Ambos se dão
num segundo momento à linguagem, na medida em que só podem se constituir nela.
De um modo radical, podemos dizer que o que existe é a linguagem, sendo o sujeito
uma operação nela. O sujeito não se identifica com o Outro, porém precisa dele para aparecer.
Constatar que a linguagem fala em “mim” é privilegiá-la frente ao sujeito. É formular que o
discurso não é meu, mas sou dele o efeito. Isso aponta a alteridade da linguagem, uma vez que
ela não é propriedade do sujeito, ainda que apareça em sua fala:
“A linguagem funciona. A linguagem “vive” e “respira”, independentemente de qualquer sujeito falante. Os falantes, para além de simplesmente usarem a linguagem como instrumento, também são usados por ela; eles são os joguetes da linguagem e são ludibriados por ela. A linguagem tem vida própria” (Fink,1998, op.cit, p.32).
Dizer que o inconsciente é o discurso do Outro implica uma referência à fala do
sujeito, no entanto, não como sendo sua, já que o Outro diz respeito a esta exterioridade que o
determina, enquanto lugar de alteridade do significante. Essa exterioridade do simbólico em
relação ao homem é a própria noção do inconsciente. De modo que o sujeito é determinado
por marcas que advêm do Outro, independente de sua vontade, ele já nasce banhado na
linguagem, recebendo dela suas representações.
No discurso do Outro, há um lugar simbólico predeterminado para o sujeito vir a
ocupar, antes mesmo de seu nascimento. “Que a via aberta por Freud não tem outro sentido
senão o que retomo – o inconsciente é linguagem -, isso que é agora aceito já o era então para
mim, como se sabe” (Lacan, 1966a, op. cit, p.881).
O Outro recebe assim este nome, na medida em que nunca é o mesmo, não tem
identidade definida, é pura alteridade. É preciso marcar que não existe nada para além da
linguagem, ou seja, não há metalinguagem. O que implica dizer que não há outro campo para
o sujeito falante, distinto do campo da linguagem. Sendo assim, se é na fala do sujeito que sua
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verdade aparece, é porque se encontra nas palavras, e surpreende a cada vez que surge. A
verdade se funda no fato de ser transmitida na fala. Diante disso, pode-se colocar que não há o
verdadeiro sobre o verdadeiro. A verdade não existe toda, mas somente aquela que desponta
no discurso e, conforme as leis da linguagem, ela também é não-toda.
Se o sujeito do significante fura o sujeito do significado, ele o faz numa cadeia
integrada e como conseqüência desfaz momentaneamente uma imagem, sustentada pelo
saber, de modo que isso denuncia a presença da dimensão imaginária no eu. Porém esta
vertente, no que tange ao eu, nodula-se com o simbólico, ou seja, com a rede tecida de
significantes e com o real.
O sujeito do significante, por aparecer através do significante, presentifica o registro
simbólico. No entanto, retomando a questão lançada por Lacan, ele apresenta-se numa
excentricidade quanto ao sujeito do significado, apontando um fora do saber, um não saber
cuja verdade habita. Diante desta face de alteridade, excentricidade, cuja experiência informa
sobre o sujeito do significante e de sua representação ser parcial, poderíamos dizer, no que
tange sua nodulação, que ela se dá na articulação entre as dimensões simbólica e real?
Se a única forma com que o sujeito pode ser representado é através do significante
para outro significante, num intervalo pontual, então, neste momento ele aparece. No entanto,
logo em seguida o sujeito desaparece, deixando a marca de sua evanescência. Sendo assim, o
sujeito não pode ser apreendido como tenta fazer, através da dimensão imaginária, o sujeito
do significado. De modo que o sujeito irrompe num estalo, e só aí é representado, pode-se
concluir que ele não pode ser representado em sua totalidade. Sendo sua representação apenas
parcial, isto aponta para o núcleo real, para o irrepresentável do sujeito. Diante disso,
questionamos: seria o vazio da dimensão real o lugar do sujeito prioritariamente?
Enquanto constituído pela linguagem, na rede tecida pela cadeia significante, o saber
por este aspecto diferencia o simbólico de sua parte que lhe escapa. Para a psicanálise o saber
diz respeito à parte estruturada do inconsciente, no entanto, enquanto não-todo, ele também
comporta um ponto que é de não-saber, que abre espaço para o aparecimento da verdade.
Tanto o saber quanto a verdade são veiculados pela linguagem:
“Acreditamos que podemos compreender a afirmação lacaniana de que o sujeito da psicanálise implica, em sua práxis, o sujeito da ciência como dizendo respeito ao fato de o sujeito ser efeito do significante – mesmo que aí ele se faça representar em um ponto de evanescência, já que não há nessa cadeia nenhuma significação que possa responder por ele” (Freire, 1996, op.cit, 43).
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Diante disso, pode-se dizer que o sujeito que surge no discurso científico, tal qual
formulado através do cogito cartesiano, é essencial à psicanálise, na medida em que esse
sujeito não é outro senão o sujeito do significante. O sujeito do significante é aquele que
aparece num instante pontual, abalando através do não sentido que porta a consistência de
sentido que estrutura o eu na sua dimensão imaginária. Na ótica lacaniana, a ciência inaugura
o sujeito em sua vertente simbólica, ou seja, podendo ser representado parcialmente pelo
significante. E é com esse sujeito que a psicanálise opera, incluindo-o em todas as suas
vertentes.
Em 1957, Lacan trabalha a questão do sujeito a partir de uma operação de subversão
no cogito cartesiano, operação esta que se faz pela inclusão do inconsciente. O cogito aponta
o pensamento como garantia do ser, porém o pensamento, ao qual o cogito cartesiano se
refere, é o pensamento consciente. Assim sendo, limita a existência do sujeito ao campo da
consciência, atribuindo à parte do eu consciente o ato de pensar. Se Descartes deu o passo de
formular o cogito, foi Lacan quem tirou as conseqüências para pensar o sujeito.
É preciso destacar que Lacan em alguns momentos de sua obra trabalhou a formulação
do cogito, no entanto, neste capítulo, vamos nos limitar apenas ao que propôs em 1957,
registrando que não foi sua última palavra sobre a questão.
A virada que Lacan dá no cogito, em 1957, é formulada da seguinte maneira: “penso
onde não sou, logo sou onde não penso” (p.521). Ao introduzir o que é da ordem do
inconsciente no cogito, aponta uma separação entre ser e pensar, como se dando em lugares
distintos. A experiência psicanalítica se opõe ao cogito na medida em que atribui o que é da
ordem do pensamento ao Outro que determina o sujeito. Diante disso, interrogamos: Se o
pensamento tem lugar no Outro e o ser encontra-se separado desse, portanto fora do
simbólico, pode-se dizer que o lugar do ser é da ordem do real?
“Os conteúdos do inconsciente não nos fornecem, em sua enganosa ambigüidade decepcionante, nenhuma realidade mais consistente no sujeito do que o imediato; é da verdade que eles extraem sua virtude, e dentro da dimensão do ser: Kern unseres Wesen, termos que são de Freud”(ibidem, p.522).
Em outro fragmento prossegue: “Kern unseres wesen, o âmago de nosso ser: não é tanto a isto que Freud nos ordena visar, como fizeram muitos outros antes dele através do vão adágio do “Conhece-te a ti mesmo”; são as vias que a ele conduzem que ele nos dá para revisar.Ou melhor, o isto que ele nos propõe atingir não é o que possa ser objeto de
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um conhecimento, mas isto - acaso ele não o diz?- que constitui meu ser, e sobre o qual ele nos ensina que eu testemunho tanto ou mais em meus caprichos, minhas aberrações, minhas fobias e meus fetiches quanto em meu personagem vagamente policiado”(ibidem, p.530-31).
Segundo Lacan, o ser é anterior à constituição do sujeito, assim como o Outro, de
modo que: “... a neurose é uma questão que o ser coloca para o sujeito, lá onde ele estava
antes que o sujeito viesse ao mundo” (ibidem, p.524). Sendo o sintoma o que aponta a
natureza de uma neurose, podemos através dele ter uma indicação do ser. Isso se coloca uma
vez que, por ser estruturado como uma linguagem, portanto, não-todo, algo do sintoma resiste
à significação, presentificando na clínica o real da estrutura. Daí a postulação de que: “O
sintoma é o que muitas pessoas têm de mais real”, usada por Jorge (2004) como título de um
artigo. Enquanto incompleto, como vimos, o simbólico, estruturado como uma linguagem
funciona como instrumento na travessia de uma análise, na direção de desvendar o sintoma,
para dar acesso ao impossível do real. Se de um lado o sintoma pode ser desenrolado numa
análise linguajeira, por outro, ele testemunha o real em jogo para o sujeito:
“Trata-se aqui daquele ser que só aparece no lampejo de um instante vazio do verbo ser, e eu disse que ele formula sua questão ao sujeito. Que significa isso? Ele não a coloca diante do sujeito, pois o sujeito não pode vir para o lugar onde ele a coloca, mas coloca-a no lugar do sujeito, ou seja, nesse lugar, ele coloca a questão com o sujeito, tal como se enuncia um problema com uma caneta e como o homem de Aristóteles pensava com sua alma” (Lacan, 1957, op.cit, p.524).
Lacan afina sua subversão com a postulação: “O que cumpre dizer é: eu não sou lá
onde sou joguete de meu pensamento; penso naquilo que sou lá onde não penso pensar”
(ibidem, p.521). A introdução da negativa no cogito reformula sua postulação que afirma que
eu penso e sou. O eu não pode se afirmar no pensamento, porque não é ele quem pensa, posto
que o pensamento que pensa ser seu tem lugar no Outro. Aquilo que o eu pensa ser, ou seja,
aquilo que pensa ser legítimo, se dá no Outro. Diante disso, Lacan vem marcar que não penso
e não sou, sublinhando assim o engano do eu.
Se o que move o sujeito, determinando suas ações, o habita sem que ele saiba, assim o
faz de modo imperativo e inconsciente. Disso o sujeito nada sabe e aí não pode afirmar seu
ser. Lacan interroga: “O que assim pensa em meu lugar será, pois, um outro eu?” (ibidem,
p.527).
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Essa é a herança científica recebida pela psicanálise, uma vez que a ciência privilegia
o registro simbólico em sua operação. Se podemos dizer que a psicanálise é filha da ciência, é
na medida em que a ciência inaugura o sujeito em sua vertente simbólica, isto é, possibilita
apreender o sujeito enquanto objeto, através do significante que o representa, apesar de no
mesmo golpe excluí-lo de sua operação. A psicanálise, ao introduzir esse mesmo sujeito na
sua cena, passa a operar com ele, fazendo valer seu simbólico, pelo viés do significante.
Apesar de excluído e calado pela ciência, o sujeito não deixa de se manifestar, de
modo que, justo por isso, se fez possível à psicanálise reconhecê-lo e acolhê-lo. Concluiremos
este capítulo com um fragmento de caso clínico que ilustra o acolhimento do sujeito em sua
singularidade, ali onde somente a psicanálise, a partir de seu discurso, pode fazê-lo,
considerando que para outros discursos ele não se insere como tal. Dizemos com outros
discursos, especificamente o discurso médico e pedagógico, uma vez que, no que tange a este
atendimento, a interface destes com o discurso psicanalítico foi uma constante.
Trata-se de um menino de nove anos, chamado aqui de Diogo, que chegou,
encaminhado por uma neurologista, ao serviço de Saúde Mental do Posto de Saúde da rede
pública do Município do Rio de Janeiro, onde trabalho. Nosso primeiro contato, em fevereiro
de 2005, ocorreu no grupo de recepção que funciona como o dispositivo de porta de entrada
do serviço. Diogo vem trazido pela mãe que relata haver já dois meses ter ele parado de falar.
A neurologista, primeira profissional a quem a mãe procurou, solicitou uma bateria de exames
e o encaminhou ao serviço de saúde mental.
A mãe de Diogo fala no grupo de recepção da dificuldade em lidar com o filho que
está muito agitado e não lhe obedece mais, o que ficou visível durante a reunião. Segundo a
mãe, Diogo sempre falou normalmente, mas perdera a fala a partir de um episódio de surto da
tia, irmã da mãe. Nesse episódio presenciado pelo menino, a tia ameaçou a mãe com uma
tesoura, dizendo que iria matá-la. Desde então, o menino perdeu o apetite, ficou muito
agitado, não conseguia dormir, além de perguntar muitas vezes à mãe se ela iria morrer. A
partir daí, passou a ter dificuldade de se desligar da mãe, em seguida, parou de falar.
Em entrevistas, a mãe relata que aos seis anos Diogo perdera o pai, vitimado por um
enfarte. Ele era muito ligado ao pai, e sua mãe conta que na época o menino chorou, ficou
triste, mas não reparou alterações em seu comportamento. Depois desse episódio, perdera o
avô que levou um tiro, e também se separou da irmã, quando esta casou e mudou-se de casa.
Essas diversas perdas e separações parecem ter vindo à tona, quando sua mãe foi ameaçada de
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morte. Pode-se entender que a necessidade de tê-la por perto o tempo todo apontava o medo
que tinha de perdê-la. A mãe, por sua vez, sem entender o que tinha acontecido, questionava
se o filho era maluco. Ficava muito angustiada de não conseguir se comunicar com ele.
Diogo só entrava na sala, acompanhado pela irmã que o trazia. Nas sessões, gostava de
repetir a mesma brincadeira, pegava a bola e começava a jogá-la para mim e para a irmã,
passando a bola. Durante muitas sessões passamos a bola e da bola fomos também passando à
palavra... .Diogo começa a emitir sons incompreensíveis, mas endereçados junto da bola que
jogava vezes para a irmã, vezes para a analista. Devolver a bola a Diogo é uma forma de
construir um laço, dando-lhe também a palavra, pela via da aposta. Aos poucos começou a
balbuciar algumas palavras, de forma desarranjada ainda. Na medida em que o movimento de
passar a bola na transferência, foi propiciando a passagem à fala, podemos dizer que aquela
estava no lugar daquilo que causa, ou seja, o objeto a.4 Referindo-se ao objeto a, Lacan
(1966b) diz: “Este objeto é aquele que fazemos sair de seu lugar através da psicanálise como a
bola que escapa à confusão para se oferecer à marca do gol” (p.51).
É possível pensar que, apesar da irrupção de real que o deixou sem palavras, Diogo
vem podendo, pela via transferencial, dar um contorno simbólico ao que não tem palavras.
Apostar que Diogo tem algo a dizer do seu jeito, acolher a forma como chega as sessões e
como nelas pode permanecer foi a chance de acolhê-lo, do modo que pôde expressar o
sofrimento por que vem passando. Numa de suas sessões, encostou o dedo indicador no braço
e me perguntou: “a Vanice?“. A irmã me diz que ele perguntava se eu iria dar vacina.
Pergunto: você quer tomar vacina para quê? Ele põe a mão no coração e diz: dor.
A agitação de Diogo, que manifestava sua angústia, dor trazia incômodo não só a sua
mãe como também aos profissionais de sua escola. Um dia, a diretora disse à mãe de Diogo
que não seria mais possível mantê-lo na escola, já que não parava quieto na sala, além de
pular o muro da escola até a linha do trem por diversas vezes, colocando-se em risco. Não era
possível diante de tantos alunos dar atenção particularizada a ele. Por outro lado, era
fundamental preservar este laço. Em conversa com a diretora, encontramos a solução de ele
ficar na sala o tempo que agüentasse e, quando começasse a ficar muito agitado, ficaria na
sala com ela. Assim ocorreu durante alguns meses, mas a diretora não mais pôde sustentar
esta estratégia, já que tinha muitas tarefas fora de sala, não disponibilizando tempo para um só
4 Observação de Marco Antônio Coutinho Jorge no exame de qualificação.
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aluno, que lhe demandava atenção e não lhe obedecia. Nesta época, me disse que seria melhor
ver uma outra escola, com classe especial.
A neurologista que o tinha encaminhado saiu de licença, por problemas de saúde,
portanto não pude contar com a avaliação dos exames que indicou. A idéia de lançar mão de
alguma medicação atravessava o tratamento, pois seria uma tentativa de amenizar-lhe o nível
de angústia, ajudando-o junto com a análise, na manutenção de seus laços sociais. A diretora
num discurso muito alarmista apontava o remédio como solução mágica. A mãe, por outro
lado, falava das melhoras de Diogo, mas também me perguntava se a medicação poderia
ajudá-lo. No entanto, em poucos meses, Diogo apresentava mudanças importantes: passou a
comer, a dormir e começou a emitir sons. Ao lado disso, não havia psiquiatra no município
que pudesse acompanhá-lo, uma vez que alegavam não saber medicar crianças. Os serviços
próprios a essa clientela não dispunham de vaga. Como sairia de férias, deixamos para
resolver essa questão no meu retorno.
Na volta das férias, a mãe chega dizendo que o tio não agüentou a agitação de Diogo e
o levou a um psiquiatra da rede particular de saúde. A primeira coisa que Diogo fez quando
entrou na sessão foi colocar a mão na barriga e depois na boca, fazendo gesto de vômito. A
mãe relata que lhe foram prescritas cinco medicações e que ele tem vomitado muito desde
então. Conversamos sobre essa questão e resolvemos que seria melhor encaminhá-lo a um
serviço da rede, já que precisava ser acompanhado de perto. O único lugar que se
disponibilizou a atendê-lo foi o Caps infantil Pequeno Hans. Lá, foi avaliado e, como
conseqüência houve a diminuição dos remédios.
Apesar da medicação, Diogo continuava agitado na escola, preocupando muito a
diretora que demandava à analista a melhora urgente do menino. Como o discurso
psicanalítico pode ajudar a sustentar a dimensão subjetiva do sujeito na interface com outros
discursos? Tal interrogação permeou o atendimento, já que o encontro com o discurso
pedagógico foi uma constante. Foi preciso um trabalho delicado com a diretora da escola, de
modo a escutá-la e orientá-la, além de trocar impressões no acompanhamento do caso. Uma
outra medida que pensamos para que pudesse continuar indo à escola foi que sua mãe o
acompanhasse, diminuindo, assim, bastante sua angústia.
Este pequeno fragmento foi selecionado no intuito de apontar que, mesmo medicado,
ou seja, acolhido pelo discurso médico e pelo discurso pedagógico, a dimensão subjetiva não
foi tamponada, de modo que se fez necessária a interlocução com os profissionais, a fim de
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sustentar o tempo de trabalho do sujeito tal como se apresentou. Esse sujeito, mesmo sem
palavras, não desistiu de “falar” e demonstrar pela angústia o tamanho do sofrimento que
experimentava. De modo que podemos colocar que, por mais que seja capturado por diversos
discursos que não acolham a dimensão do sujeito atravessado pelo real, simbólico e
imaginário, o sujeito aparece ou escapa e, ao não se permitir ser enredado nesse enredo que só
o exclui, permanece manifestando-se para quem puder reconhecer e escutar. É claro que se a
medicação fez sua função, e a escola, enquanto referência para manutenção dos laços do
sujeito também fez efeito, por outro lado, não dão conta daquilo que é da ordem do real do
sujeito. A clínica psicanalítica enquanto clínica que acolhe o que é da ordem do real do
sujeito, sob cujo efeito ele fica sem palavras, uma vez que lhe falta representação para lidar
com o que escapa ao simbólico, é a única que, ao incluir o real na cena, inclui o sujeito e sua
manifestação, seja ela qual for sem tamponar essa dimensão já que é disto que se trata de
tratar, ou seja, de tratar o real pelo instrumento do simbólico. É uma clínica que exige tempo e
trabalho, em outras palavras, trabalho num tempo de elaboração particular a cada sujeito.
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CAPÍTULO III
DO SUJEITO DO COGITO AO SUJEITO DA CLÍNICA
Esse capítulo se destina a pensar a passagem do sujeito tal como surgido na
formulação do cogito à sua aparição na clínica psicanalítica. Os dois tempos que se destacam
aqui apontam para dois momentos do sujeito, que, apesar de ser o mesmo, é neles tomado de
forma bastante diferente. De seu ponto de origem à sua inclusão na clínica, uma mudança de
posição em relação ao olhar sobre esse sujeito teve lugar. Do momento do cogito ao da
clínica, houve um giro quanto à perspectiva do sujeito, protagonizado por Freud. Não se trata
de pensar essa passagem no sentido de uma evolução, mas de reconhecer que somente a partir
do segundo tempo, o da clínica, é que se pode determinar o tempo anterior. Isso se coloca na
medida em que, ao imprimir sua diferença com relação ao sujeito, criando condições
operacionais sobre ele, a psicanálise pôde no mesmo gesto valer-se do cogito para romper e ir
além. É no reconhecimento que faz do sujeito para além do significante, mas como efeito
dele, que a psicanálise inaugura um método de tratamento.
É do ponto de vista da psicanálise que nos debruçaremos sobre esses dois momentos
do sujeito, a fim de acompanhar essa passagem, no que concerne especialmente à clínica
psicanalítica, isto é, investigando do lugar da clínica o que é esse sujeito. Considerando que,
no tempo do cogito, o sujeito veio à tona na seqüência de um instante de angústia, ou seja,
que o fator angústia está presente desde o nascimento do sujeito, apresentando-se também na
clínica e indagando Freud, escolhemos tomá-la como ponto comum e central no tocante à
noção de sujeito. É na articulação do conceito de sujeito com os termos angústia e real que
apostamos avançar nessa problemática, na tentativa de melhor delinear o que é o sujeito para
a psicanálise.
A primeira formulação do conceito de sujeito surge no campo filosófico com
Descartes, que o formula numa correspondência ao diálogo científico (Galileu), campo que
ofereceu condições para seu advento. No campo da psicanálise, raramente encontramos
passagens no texto freudiano que explicitem o sujeito como conceito, segundo Elia (2004),
podemos dizer que é um conceito lacaniano. Contudo, o sujeito aparece no texto freudiano na
categoria do Ich. De acordo com Quinet (2000), o Ich está referido em algumas passagens de
Freud ao eu e em outras ao sujeito como, por exemplo, no caso da Ichspaltung:
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“Com efeito, a expressão sujeito do inconsciente não é encontrada nos textos de Freud, menos ainda nos textos dos pós-freudianos. Mas não é apenas a expressão que constitui a novidade do que é próprio a Lacan; é também, e sobretudo, o que ela implica quanto à posição do inconsciente e, daí pra frente, quanto ao estatuto do discurso analítico” (Baas e Zaloszyc, 1996:19).
A partir de Lacan, pode-se dizer que a categoria de sujeito em psicanálise é uma
categoria moderna, na medida em que é contemporânea ao aparecimento da ciência moderna,
com o cogito cartesiano. Ao colocar em dúvida tudo o que pensava, Descartes passou a se
perguntar sobre o que poderia garantir a existência das coisas, inclusive sua própria
existência. O que garantia que ele mesmo e o mundo não eram uma ilusão? De princípio,
descarta os cinco sentidos como uma via verdadeira para responder à pergunta, já que para
ele, visão, tato, olfato, enfim, os sentidos eram enganadores. Através do processo de tudo
duvidar, foi levado a se deparar com a falta daquilo que buscava: as garantias. Esse momento
de suspensão, de falta de resposta e garantia é o instante da angústia, que trouxe como efeito a
formulação do cogito. É no exercício da dúvida que encontra uma certeza, qual seja, a de estar
duvidando, o que afirma o ato de pensar. O cogito passa a garantir o sujeito do pensar,
chamado por Descartes, de acordo com Elia (2004) de res cogitans (substância pensante), em
oposição a res extensa (substância material), atestando a existência do sujeito em sua vertente
simbólica. É no campo da filosofia com Descartes que, pela primeira vez, voltou-se o saber
para o sujeito, à subjetividade.
O cogito inaugura e revela o sujeito reduzido ao significante, única forma como pode
se representar. Da apresentação da formulação: “penso, logo sou”, se extrai que o eu existe
porque pensa. O eu é aquele que pensa no cogito, sendo assim reduzido ao significante
pensar. Assim, através daquilo que pensa, o eu (sujeito) será representado para outro
significante, ficando redutível a esse. Na medida em que é o significante que pode representar
o sujeito, sendo esse reduzido pelo primeiro, é possível deduzir como fez Descartes, que o
sujeito é um determinado significante, num determinado momento. No entanto, o que a
psicanálise vai apontar é que o sujeito não se reduz à representação significante e é na não
representação que a angústia pode emergir:
“Não é anódino que o sujeito apareça em um momento que poderíamos qualificar de momento de angústia na história do pensamento. A aparição do sujeito no cenário do pensamento se fez através da angústia e da incerteza em relação ao que se dera até então como um mundo mais ou menos compreensível para o entendimento do homem. Não se trata de dizer que não tenha havido crises no
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pensamento até esse momento, mas de saber discernir a magnitude dessa crise em particular – o advento da ciência moderna e sua separação da filosofia – a fazer a verificação precisa de seu valor de corte maior” (idem, 2004:13).
O momento de angústia que fez o sujeito aparecer foi aquele vivido por Descartes.
Diante da queda das certezas estabelecidas, a angústia, funcionando como motor, o fez criar o
método que o levou ao cogito. Considerando que, desde seu nascimento, o sujeito está em
relação com a angústia, interrogamos: o que se pode verificar da relação entre essas duas
formas de emergências?
A fim de examinar a questão colocada, utilizaremos elementos trazidos por Freud e
Lacan, uma vez que podem nos instrumentalizar no desenvolvimento da mesma. O cogito
lança o sujeito em sua vertente simbólica, reduzindo-o ao significante. O sujeito é recortado
pelo significante como se verifica no caso a seguir: N busca análise para sua filha que,
segundo ela, está deprimida, desmotivada, principalmente com os estudos, o que preocupa N
em particular. Relata que entende que a filha esteja assim, pois percebe que os pais estudam,
trabalham e nunca conseguem nada, o que segundo N deve instaurar na filha um
questionamento do porquê e para que estudar se não há resultados. Ao falar daquilo que
nomeia como seus insucessos, N diz:- “eu sou um fracasso, nunca nada deu certo para mim,
mas gostaria que fosse diferente para minha filha”. Essa vinheta ilustra, a partir do discurso de
N, sua redução enquanto sujeito a um dos significantes que podem representá-la, nesse caso,
identifica-se com o significante fracasso. Tal identificação traz conseqüências ao sujeito.
Nessa entrevista específica, o significante fracasso representou-a como sujeito. É por conta
dessa redução que a psicanálise tem condições de operar com esse sujeito, na medida em que
opera sobre seu discurso, denunciando o que se inaugura na ciência, ou seja, o sujeito
resumido ao significante. Todavia, se o sujeito da psicanálise é sujeito do pensamento
inconsciente, esse pensamento não o identifica de modo absoluto e por isso o sujeito pode ter
muitas identificações, que são numa análise desfolhadas. “Da análise, espera-se que o sujeito
conheça os significantes primordiais que o determinaram em sua história e em sua vida a
partir da decifração do inconsciente, para que possa deles se desalienar escapando de seu
poder de comando” (Quinet, 2000:45). Ou conforme Baas e Zaloszyc:
“Na medida em que a palavra é o intermediário único da sua experiência, a psicanálise tem a ver com a existência do significante e de seus efeitos, e o sujeito, na experiência analítica, não é de forma alguma prévio, mas suposto e assujeitado
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ao significante, onde encontra suas identificações e do qual é um efeito” (op. cit, 1996:1).
A partir da escuta do discurso de seus pacientes, Freud estabeleceu uma relação entre
inconsciente, sujeito e palavra falada. É na fala que o inconsciente, estruturado como uma
linguagem, poderá emergir, através dos significantes que compõem seu material, que, por não
portarem em si um sentido constituído, se definem como constituintes desse, sendo então,
aqueles que fazem significar:
“...de todas as formas pelas quais a estrutura simbólica, significante, da linguagem pode se atualizar em um ser falante, a fala é a única que permite, por seu modo encadeado, diacrônico, como discurso desdobrado no tempo em uma seqüência de palavras, que o plano do significante seja destacável da significação. A fala, por ser uma cadeia de palavras, permite o divórcio entre significante e significado, necessário para evidenciar a primazia material do esqueleto significante sobre o revestimento muscular que são as significações produzidas pelo primeiro” (Elia, 2004, op. cit, p.22).
No cogito, o que diz respeito ao sujeito que está para além do simbólico, ou seja, em
exterioridade ao pensamento, é desprezado, já que o sujeito se resume a um ser do pensar. Em
contraponto, apesar de operar com o sujeito limitado ao significante, a psicanálise o reconhece
para além desse, inclui-o em seu campo como um sujeito nodulado pelos três registros.
Segundo Baas e Zaloszyc, a tese lacaniana visa a
“reconhecer o sujeito como o que não tem identidade, ou melhor, como essa própria falta, cuja afirmação é exigida pela lógica, a posição do inconsciente. Lacan escreve (sujeito barrado do desejo) para indicar essa não-identidade fundamental, a impossível identificação do sujeito a si próprio” (op.cit,1996:19).
É na medida em que o real incide no simbólico, marcando uma falta no Outro, que
dizemos que não há nesse lugar nenhum sentido capaz de conferir uma identidade ao sujeito,
ou seja, falta um significante que o represente de forma absoluta:
“O sujeito como efeito da articulação significante é o sujeito do pensamento inconsciente, que Lacan identifica com o sujeito como descreve Descartes. É o ponto em que Freud e Descartes convergem. Em Descartes, a certeza do sujeito é apreendida através da dúvida e, para Freud, como vimos, a dúvida que aponta o lugar de um branco, que surge no pensamento, nos fornece a certeza de que aí se
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encontra o inconsciente como pensamento ausente (da consciência). Descartes parte do pensamento e chega na existência; Freud parte do pensamento inconsciente e chega no desejo” (Quinet, 2000, op. cit, p.13-14).
No que tange à relação do sujeito ao significante, podemos dizer que, se apenas o
significante pode representar o sujeito, na falta desse, o sujeito, apesar de não se representar,
se manifesta; ali onde faltam palavras, emerge seu lado real. Uma vez que o real é sem
palavras, apontando assim o simbólico como não-todo, no momento que vem à tona, deixa o
sujeito em seus moldes, sem palavras, sem representação. Na falta de palavras, o sujeito
emerge revelando a invasão do real, o que lança a questão: estaria a angústia manifestando a
vertente real do sujeito?
Em seu texto intitulado “Inibições, sintomas e angústia”, Freud (1926a) levanta o
problema da angústia como ponto principal, trazendo novas considerações acerca do tema. No
lugar da primeira teoria da angústia, considerada como produto de uma transformação da
libido acumulada, da excitação não descarregada, Freud passa a pensá-la como reação a
situações de perigo. “A angústia surgiu originalmente como uma reação a um estado de perigo
e é reproduzida sempre que um estado dessa espécie se repete” (p.127). Ele abandona aqui a
teoria que por tanto tempo sustentara. Strachey (1959) coloca na introdução do texto que, na
Carta 75 (1897) de sua correspondência com Fliess, Freud já era tomado por dúvidas sobre a
relação que construía entre angústia e libido, apontando assim que desde então o que pôde, em
1926, afirmar já se esboçava de alguma forma. Outro aspecto mencionado por Strachey
refere-se ao fato de que no texto de 1926a, apenas no que tange à neurose de angústia, Freud
ainda sustenta a primeira teoria. No entanto, segundo o editor, em 1933a numa conferência
sobre o assunto, ele de vez a deixa de lado também no tocante à neurose de angústia. Com a
queda da primeira teoria da angústia e a partir da nova distinção entre angústia automática e
angústia sinal não houve mais motivos para conservar a diferença entre angústia neurótica e
angústia realística. No que tange ao aumento de excitação e excesso, vale registrar que houve
alguns avatares na obra de Freud, que dizem respeito a sua teorização em relação à pulsão de
morte, a um mais além do princípio do prazer, todavia não exploraremos esse ponto aqui.
Segundo Freud, a angústia pode surgir de duas formas: como reação direta e
automática face a uma situação traumática, análoga ao nascimento, cuja essência é a
experiência de desamparo do eu, frente ao acúmulo de excitações externas ou pulsionais com
as quais não consegue lidar, ou como sinal de perigo que anuncia a iminência do trauma,
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resposta do eu à ameaça de ocorrência de uma situação traumática. Nesse caso, ao imaginar a
situação, o eu antecipa o trauma, a fim de reduzir a experiência aflitiva a um mero sinal,
encontrando assim um meio de evitar o perigo. A essas duas formas, Freud nomeou
respectivamente, angústia automática e angústia sinal. Considerando a relação entre perigo e
angústia, questionamos com Freud: Qual o perigo que pode despertar a angústia ou que ela
anuncia como alerta ao eu?
O caminho que seguiremos no desenvolvimento dessa questão é aquele indicado e
trabalhado por Freud no artigo de 1926a, em que recorre ao caso clínico do pequeno Hans, a
fim de ilustrar e destrinchar, com alguns fragmentos, a questão da angústia articulando-a às
noções de sintoma e inibição. Trata-se nesse caso de uma fobia histérica infantil. O pequeno
Hans recusava-se a andar pela rua porque se angustiava frente a cavalos. Freud destaca que o
menino sofria não de uma angústia indeterminada de cavalos, mas de uma angústia bem
definida de que o cavalo ia mordê-lo. “Essa idéia, na realidade, esforçava-se por retirar-se da
consciência e ser substituída por uma fobia indefinida, na qual somente a angústia e seu
objeto ainda apareciam” (p.97).
O que dessa apresentação constitui o sintoma de Hans? Segundo Freud: “Um sintoma
é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado latente, é
uma conseqüência do processo de recalque” (1926a:87). O recalque ocorre quando o eu se
recusa a associar-se a um investimento pulsional provocado no isso. Por meio do recalque o
eu impede que a idéia que é veículo da pulsão se torne consciente. A idéia, portanto, persiste
como uma formação inconsciente. Se o recalque incide sobre a idéia, qual o destino do
impulso pulsional a ela ligado, que ativado no isso buscava satisfação? Freud aponta que a
pulsão obteve uma resposta indireta. Ocorre que quando o eu se opõe a um processo pulsional
do isso, pode apenas com um sinal de desprazer alcançar ajuda do princípio de prazer que
regula o aparelho psíquico, a fim de chegar a seu objetivo. Isso se torna possível em virtude
da vinculação do eu com o sistema perceptual, cuja função está ligada à manifestação da
consciência, que recebendo excitações de fora e de dentro do psiquismo que a alcançam por
meio das sensações de prazer e desprazer, busca orientar o curso dos fatos psíquicos no
sentido do princípio de prazer. Assim, o eu retira seu investimento (pré-consciente) do
representante pulsional (idéia) a ser recalcado e a utiliza para despertar angústia, sentida como
desprazer. Uma vez que o eu consegue, com a ajuda do princípio de prazer, inibir o
pretendido processo excitatório do isso, o prazer esperado da satisfação se transformará em
53
desprazer, angústia. Uma vez despertada a angústia, o recalque é colocado em marcha, a fim
de resolver o perigo anunciado.
Quando o eu recorre ao sinal de desprazer e atinge seu propósito de sufocar por inteiro
o impulso do isso, fica-se sem saber o que ocorreu. Só se pode descobrir algo sobre o ocorrido
nos casos em que o recalque falha em maior ou menor grau, pois surgirá o sintoma. Pode-se
então dizer que o sintoma surge como uma formação entre a pulsão e uma nova idéia
substituta. Apesar do recalque, a pulsão pode encontrar no sintoma um substituto mais
deslocado, não reconhecível como satisfação. No lugar de derivado e substituto da moção
pulsional que, por efeito do recalque, teve seu destino alterado, o sintoma executa o papel da
primeira, renovando suas exigências de satisfação, obrigando o eu a dar o sinal de desprazer e
a colocar-se numa posição defensiva:
“Embora o ato de recalque demonstre a força do eu, ao mesmo tempo revela sua impotência e quão impenetráveis à influência são os impulsos pulsionais do isso, pois o processo psíquico que se transformou em um sintoma devido ao recalque mantém agora sua existência fora da organização do eu e independentemente dele” (ibidem, 1926a:93).
Apesar do recalque, a pulsão insiste continuamente na busca de satisfação o que exige
do eu um dispêndio permanente de energia, a fim de manter sua ação defensiva. A proteção
do recalque é vista na clínica pelo fenômeno da resistência. A pesquisa de Freud no texto
segue a direção de desvendar, no caso Hans, qual o impulso recalcado (a que satisfação
renunciou), seu sintoma-substitutivo e o motivo do recalque. Aponta que Hans encontrava-se,
na época do tratamento, na atitude edipiana ciumenta e hostil em relação ao pai, a quem
também amava, salvo quando a mãe era causa da desavença. Há, portanto, um conflito devido
à ambivalência de afetos dirigidos à mesma pessoa. Freud sublinha que a fobia do menino
deve ter sido uma tentativa de solucionar esse conflito. De acordo com Freud, o impulso que
sofreu efeito do recalque foi um impulso hostil dirigido ao pai, equivalente ao impulso
assassino do complexo de Édipo. Se Hans estava apaixonado pela mãe e por isso queria
livrar-se do pai, é natural que temesse a vingança dele e daí ficasse com medo. O que
transformou sua reação emocional em neurose foi a substituição do pai por um cavalo. Esse
deslocamento, que para Freud pode ser denominado sintoma, permitiu uma solução ao
conflito. A escolha de um cavalo como causador de angústia foi determinada, segundo Freud,
pelo fato de Hans brincar de cavalos com o pai. Na medida em que o cavalo era um
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deslocamento do pai, o medo de ser mordido era, portanto, algo que se referia ao pai. Freud
situa que o impulso hostil contra o pai fora recalcado pelo processo de ser transformado em
seu oposto. No lugar da agressividade por parte do paciente para com o pai, surgiu
agressividade do pai para com o paciente, sob a forma de medo de vingança:
“Pequeno Hans desistiu de sua agressividade para com o pai temendo ser castrado. A angústia de que um cavalo o mordesse pode, sem nenhuma força de expressão, receber o pleno sentido da angústia de que um cavalo arrancasse fora com os dentes seus órgãos genitais - o que o distinguia de uma fêmea” (ibidem,1926a:103).
É na vivência da ameaça de castração que o perigo é anunciado pela angústia, ou seja,
a angústia sinaliza o perigo que significa perder algo valioso. No caso de Hans, é a ameaça de
perder seu órgão genital que o faz abrir mão do projeto edipiano.
O desenvolvimento sexual da criança, segundo Freud, avança até a fase fálica,
contemporânea ao complexo de Édipo, na qual o órgão genital masculino assume papel
principal, frente ao feminino. De acordo com as observações de Freud, é por conta da
manipulação que se pode perceber que o interesse do menino volta-se nessa época para o
pênis; ele descobre que os adultos o desaprovam e ameaçam tirá-lo. Acontece muitas vezes do
motivo da ameaça ser menos por estar mexendo e mais por molhar a cama, o que acarreta
trabalho para quem limpa. “é minha opinião ser essa ameaça de castração o que ocasiona a
destruição da organização fálica da criança” (1924:183). No entanto, apesar de temerem
perder o pênis, Freud salienta que os meninos não são de fato castrados por estarem
apaixonados por suas mães, na fase do Édipo: “não se trata de a castração ser ou não ser
realmente efetuada; o que é decisivo é que o perigo ameaça de fora e a criança acredita nele”
(1933a:80).
Segundo Freud, o menino não cede de suas brincadeiras como uma reação imediata,
pois num primeiro momento não acredita na ameaça. “A observação que finalmente rompe
sua descrença é a visão do órgão genital feminino... Com isso, a perda de seu próprio pênis
fica imaginável e a ameaça de castração ganha seu efeito adiado” (op.cit. 1924:183). A partir
da percepção da diferença sexual o menino passa a acreditar que pode perder seu órgão
valioso, de modo que, quando sofre a ameaça de castração, relembra ou é despertado da real
possibilidade de perda, visto que para ele a menina já o perdeu. A masturbação para Freud
constitui apenas uma descarga da excitação pertinente ao complexo de Édipo que oferece para
a criança duas possibilidades de satisfação, ativa e passiva, nas quais: “certamente o pênis
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devia desempenhar uma parte nela, pois as sensações em seu próprio órgão eram prova disso”
(ibidem, 1924:184). A ameaça de castração, que nesse momento é significada pela ameaça de
perder o pênis, ocasiona a destruição do complexo de Édipo:
“Se a satisfação do amor no campo do complexo de Édipo deve custar à criança o pênis, está fadado a surgir um conflito entre seu interesse narcísico nessa parte de seu corpo e a catexia libidinal de seus objetos parentais. Nesse conflito, triunfa normalmente a primeira dessas forças: o eu da criança volta as costas ao complexo de Édipo” (ibidem,1924:184).
Ocorre então que os investimentos de objeto são abandonados e substituídos por
identificações: “A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no eu e aí forma o núcleo do
supereu, que assume a severidade do pai e perpetua a proibição deste contra o incesto,
defendendo assim o eu contra o retorno do investimento libidinal do objeto” (ibidem,
1924:184). Freud ainda sublinha que as tendências libidinais são, em parte, dessexualizadas e
sublimadas e, em parte, inibidas em seu objetivo, transformadas em impulsos de afeição.
Constatamos assim ter sido a angústia de castração a força motriz do recalque.
Segundo Freud, foi a idéia de ser castrado pelo pai que sofreu efeito do recalque e aparecia
por distorção pela idéia substituta de ser mordido por um cavalo. “Foi a angústia que produziu
o recalque e não como eu anteriormente acreditava, o recalque que produziu a angústia” (op.
cit,1926a:104). O motor da defesa do eu é o complexo de castração, que tenta desviar as
tendências do complexo de Édipo. O eu se vê exigido a trabalhar por conta do perigo que
sente e lhe causa angústia, perigo esse de ordem pulsional. Uma exigência pulsional não é em
si perigosa, mas passa a ser um perigo interno porque sua satisfação provocaria um perigo
externo, o da castração.
Ao levar em consideração as três neuroses, fobia, histeria de conversão e neurose
obsessiva, Freud (1926a) coloca: “O ponto de arranque das três neuroses é a destruição do
complexo de Édipo, e em todas, o motor de oposição do eu é angústia de castração. Porém é
somente na fobia que essa angústia aflora e é reconhecida” (p.117). No caso de fobias: “o eu
deve proceder contra um investimento de objeto libidinal que provém do isso – um
investimento que pertence ou ao complexo de Édipo positivo ou negativo – porque acredita
que lhe ceder lugar acarretaria o perigo de castração” (ibidem, p.118). É por conta do
mecanismo de projeção que na fobia há substituição de um perigo interno pulsional por outro
externo e perceptual. “A vantagem disto é que o indivíduo pode proteger-se contra um perigo
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externo, dele fugindo e evitando a percepção do mesmo, ao passo que é inútil fugir de perigos
que surgem de dentro” (ibidem, p.120).
“Dissemos que logo que o eu reconhece o perigo de castração dá o sinal de angústia e inibe através da instância do prazer-desprazer o iminente processo de investimento no isso. Ao mesmo tempo forma-se a fobia. E agora a angústia de castração é dirigida para um objeto diferente e expressa de forma distorcida, de modo que o paciente teme, não ser castrado pelo pai, mas ser mordido por um cavalo ou devorado por um lobo. Essa formação substitutiva apresenta duas vantagens óbvias. Em primeiro lugar, evita um conflito devido à ambivalência, pois o pai é também um objeto amado e em segundo, permite ao eu deixar de gerar angústia, pois a angústia que pertence a uma fobia é condicional; ela só surge quando o objeto dela é percebido – e com razão, visto que é somente então que a situação de perigo se acha presente” (ibidem, p.119).
No caso da menina, na comparação com o sexo oposto, a falta do pênis é entendida
como resultado da castração, ou seja, ela o possuía numa época anterior e depois o perdeu; a
menina sente que foi injustiçada, donde decorre o que Freud nomeou inveja do pênis: “Dá-se
assim a diferença essencial de que a menina aceita a castração como um fato consumado, ao
passo que o menino teme a possibilidade de sua ocorrência” (op.cit, 1924:186).
“Enquanto, nos meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo complexo de castração, nas meninas ele se faz possível e é introduzido através do complexo de castração. Essa contradição se esclarece se refletimos que o complexo de castração sempre opera no sentido de seu conteúdo: ele inibe e limita a masculinidade e incentiva a feminilidade” (Freud, 1925:275).
A percepção da diferença sexual abre a porta na menina para o complexo de Édipo, na
medida em que ela entra no Édipo em função da castração. Referindo-se ao Édipo na menina,
Freud diz: “raramente ele vai além de assumir o lugar da mãe e adotar uma atitude feminina
para com o pai” (op.cit, 1924:186). A renúncia ao pênis acompanha a tentativa de uma
compensação. “Ela abandona seu desejo de um pênis e coloca em seu lugar o desejo de ter um
filho; com esse fim em vista, toma o pai como objeto de amor” (op.cit, 1925:274). O
complexo de Édipo na menina inicia-se no desejo do pênis, depois a sua renúncia, deslizando
para o desejo de receber do pai um bebê como presente.
Considerando a angústia de castração como motor do eu para efetuar o recalque, surge
para Freud uma questão no que tange a esse processo em meninas, pois embora reconheça
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nelas uma organização fálica e um complexo de castração, como se pode falar em angústia de
castração ali onde a castração já se deu? Essa pergunta nos leva a questionar se o que está em
jogo na angústia de castração se resume à ameaça de perda do órgão genital em sua
representação anatômica, ou o pênis estaria representando algo para, além disso?
Pode-se colocar que é na fase fálica ou genital, a partir da percepção da diferença
sexual, que a angústia pode em sua emergência ser pela primeira vez representada, isto é, ser
vinculada a um objeto, o que permite a Freud por conta desse momento definir angústia como
angústia de castração. Esse objeto encontra sua imagem no órgão sexual masculino, enquanto
representante de algo precioso para o sujeito, no caso o menino, sob cuja ameaça de perda,
emite o sinal de angústia. “... a angústia de castração constitui o medo de sermos separados de
um objeto valioso...” (op.cit, 1926a:130). Freud relaciona a angústia de castração à ameaça de
perda: “A castração pode ser retratada com base na experiência diária das fezes que estão
sendo separadas do corpo ou com base na perda do seio da mãe no desmame” (ibidem, p.123).
A ameaça de castração é o representante da angústia de castração, ou seja, a possibilidade
da perda do objeto é o que representa a angústia, disparando-a. O pênis é o primeiro
representante da angústia de castração, pois só retroativamente podemos situá-la em
diferentes fases libidinais, ou seja, representá-la por diferentes objetos como seio, fezes,
separação da mãe e o nascimento. Isso se torna possível, pois não se trata do pênis em si e sim
daquilo que ele representa que adquire a mesma significação no deslocamento para outros
objetos e situações. A fim de desdobrar melhor essa colocação retomaremos o caso Hans para
perguntar: O que estava em jogo na relação de Hans com o pênis a ponto de ceder de seu
desejo diante da emergência da angústia? Qual o perigo de perdê-lo? Enquanto objeto que,
num primeiro momento, pôde ser ligado ao afeto de angústia como determinante, o pênis não
se reduz a uma realidade corporal, mas ocupa principalmente valor simbólico. A alternativa
com que se deparam os sujeitos na fase fálica a partir da diferença entre os sexos cabe nos
termos: ter o falo ou ser castrado. A oposição não está na anatomia feminina e masculina, mas
na presença ou ausência de um termo. Apesar de não ser o falo, ao pênis é atribuído
prevalência enquanto símbolo diferencial, implicando conseqüências psíquicas. Para Hans, o
pênis foi na vivência do complexo de castração, o representante do falo, o que fez com que na
partilha dos sexos ficasse do lado de “quem tem”. Freud aponta que o interesse narcísico pelo
pênis é que fez Hans abandonar o Édipo infantil. Isto permite observar que o órgão nesse
momento conferia a Hans uma unidade egóica, isto é, uma imagem de completude. A
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equivalência do pênis ao falo permitiu com que, ao se deparar com a castração, optasse pela
integridade narcísica. Se o falo é o significante do desejo, é por isso o representante da falta,
de modo que ter, ou não, o falo não elimina o fato de que há falta. Segundo Laplanche e
Pontalis (1983): “o que caracteriza o falo e se encontra nas suas diversas metamorfoses
figuradas é ser um objeto destacável, transformável – e neste sentido, objeto parcial” (p.227).
Assim, pode-se dizer que a castração, a falta de objeto que pode tanto causar angústia quanto
desejo, é a experiência que ameaça o sujeito, posto que o coloca em face de sua condição
humana de desamparo. No caso da menina, o determinante da angústia é a ameaça de perder o
amor do objeto. Essa intimidação se coloca, pois o objeto do qual teme perder o amor é
colocado no lugar do objeto a, de modo que perdê-lo a colocaria em estado de desamparo. O
objeto parcial representa uma proteção da vivência de desamparo, anunciada quando da
ameaça de perda. Em ambos, na menina e no menino, a vivência do complexo de castração é
concomitante ao nascimento do supereu, na medida em que é através dessa instância que a
ameaça se dá: “Expressando-o de modo mais geral, o que o eu considera como sendo o perigo
e ao qual reage com um sinal de angústia consiste em o supereu dever estar com raiva dele ou
puni-lo ou deixar de amá-lo”. (op.cit, 1926a:132). E dessa forma: “Vemos agora que não há
perigo algum em considerarmos a angústia de castração como a única força motora dos
processos defensivos que conduzem à neurose” (ibidem, p.135).
A associação entre castração e desamparo, permite dizer que o perigo que a angústia
sinaliza é o perigo da situação traumática de desamparo. É possível fazer uma equivalência
entre o que Freud nomeia como trauma e o real de Lacan, ou seja, um momento em que o
sujeito é invadido por algo frente a que não tem recurso simbólico, diante do que surge a
angústia como transbordamento de afeto do sujeito. “... a angústia tem uma função biológica
indispensável a cumprir como reação a um estado de perigo...” (ibidem, p.127). Enquanto
função, pode-se pensar na angústia como último recurso do sujeito face a uma situação
traumática, de vez que o real por ela anunciado, desperta o desprazer, porém já como anteparo
ao insuportável. A angústia então é uma das formas de manifestação do sujeito frente ao real.
Dessa forma, é possível com Elia afirmar que a relação do sujeito à angústia é de
equivalência, isto é: “a emergência da angústia é a emergência do sujeito” (op.cit, 2004:13),
na medida em que a angústia anuncia a vertente real do sujeito, indicando que o sujeito não se
reduz ao significante.
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A colocação de que: “O eu é a sede real da angústia” (Freud, 1926a, op.cit, p.89),
salienta a intimidade entre sujeito e angústia, situando no eu o lugar da angústia como
manifestação do real. Segundo Freud, a angústia se manifesta como um estado afetivo de
caráter desprazeroso que se faz acompanhar de sensações físicas, geralmente ligadas a órgãos
respiratórios e ao coração, onde os processos de descarga desse fenômeno se dão. Os atos de
descarga e sua percepção permitem considerar que a angústia aparece no próprio corpo: “De
conformidade com nossos pontos de vista gerais, devemos estar inclinados a pensar que a
angústia se acha baseada em um aumento de excitação que, por um lado, produz o caráter de
desprazer e, por outro, encontra alívio através dos atos de descarga” (ibidem, p.126). O relato
fisiológico não é o bastante para Freud que une às sensações de angústia e suas inervações,
um fator histórico, formulando o estado de angústia como reprodução de alguma experiência
cujas condições levaram ao aumento de excitações e à descarga, gerando seu caráter
específico de desprazer. Sendo a angústia uma reprodução, é sempre reação a um perigo
anterior, ou seja, já vivido, a que ela remonta. Em outras palavras, qualquer angústia é
secundária ao trauma primordial. Freud observa que: “No caso dos seres humanos, o
nascimento proporciona uma experiência prototípica desse tipo, e ficamos inclinados a
considerar o estado de angústia como uma reprodução do trauma do nascimento” (ibidem,
p.126).
Se Freud lança mão de um momento primeiro, isto é, do ato de nascer, como
originário da angústia para pensar sua emergência, em que medida o faz? Por que o
nascimento é considerado o protótipo do trauma?
“No ato do nascimento há um verdadeiro perigo para a vida. Sabemos o que isso significa objetivamente; mas num sentido psicológico nada nos diz absolutamente. O perigo do nascimento não tem ainda qualquer conteúdo psíquico. Não podemos possivelmente supor que o feto tenha qualquer espécie de conhecimento de que existe a possibilidade de sua vida ser destruída. Ele pode somente notar uma enorme perturbação na economia de sua libido narcísica. Grandes somas de excitação nele se irrompem, produzindo novas espécies de sensações de desprazer, e muitos órgãos adquirem maior investimento, prenunciando assim o investimento de objeto que logo se estabelecerá” (ibidem, p.128).
Freud então faz referências ao livro de Otto Rank, The trauma of Birth, em que o autor
sustenta a hipótese de que o afeto de angústia é conseqüência do fato do nascimento ser um
trauma, de modo que toda angústia é uma tentativa de descarga, de ab-reagir o trauma do
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nascimento, ou seja, uma reação tardia de liberação da energia estrangulada, consistindo sua
técnica terapêutica em superar esse trauma. No entanto, se, num primeiro momento, as idéias
de Rank contribuíram para o pensamento freudiano, foi somente na rejeição e desconstrução
dessa teoria que Freud avança, considerando o nascimento para além de um primeiro
momento no sentido cronológico, mas como paradigma para pensar o traumático. “O
nascimento foi encarado como sendo o protótipo de todas as situações ulteriores de perigo...”
(ibidem, p.151). Assim, no que tange à clínica da psicanálise, não se trata de retornar ao
momento do nascimento para obtenção da cura, ainda que a regressão tenha lugar nesse
tratamento, não é essa sua concepção. A direção que se coloca é de acolher o trauma que se
impõe ao sujeito, incluindo-o na cena, de modo a proporcionar o trabalho de elaboração.
Diferente de Rank, Freud não acredita que o momento do nascimento imprima
qualquer inscrição psíquica no bebê, senão sensações tácteis e acúmulo de excitações
relacionadas a esse processo. Segundo Rank, há uma analogia entre a reação de angústia
posterior e o trauma que interrompeu o momento de felicidade intra-uterina, de modo a
justificá-la exclusivamente por esses termos. De acordo com Freud, essa teoria não pode ser
sustentada e é contrariada em situações como:
“Quando, por exemplo, uma criança é deixada sozinha no escuro, seria de esperar-se que ela, de conformidade com seu ponto de vista, recebesse de bom grado o reestabelecimento da situação intra-uterina; contudo, é precisamente em tais ocasiões que a criança reage com angústia. E se isto for explicado afirmando-se que a criança está sendo lembrada da interrupção que o evento do nascimento causou em sua felicidade intra-uterina, torna-se impossível fechar os olhos por mais tempo ao caráter exagerado de tais explicações” (ibidem, p.129).
O trauma se delineia como aquilo que se repete e que não se escreve jamais para o
sujeito. É como o que não cessa de não se inscrever que o real do trauma comparece para o
sujeito, sendo a angústia sua manifestação afetiva, ou seja, o que aparece referente à economia
psíquica. Na medida em que o real não se inscreve, o que se apresenta para o sujeito tal como
no nascimento é esse acúmulo de excitação que causa desprazer. A angústia, revelando a falta
de ligação simbólica, de inscrição, convoca o sujeito a buscar alguma associação,
representação para dar contorno a esse real. Se o real não se inscreve, qual a inscrição que
marca o sujeito para que dê o sinal frente ao trauma? É possível dizer que a não inscrição já se
configura como uma inscrição, ou seja, que o real se inscreve como falta, de modo que é na
iminência de uma situação que remete ao desamparo que o sinal de angústia advém. Nas
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palavras de Freud: “É fácil dizer que o bebê repetirá sua emoção de angústia em toda situação
que recorde o evento do nascimento. O importante é saber o que recorda o evento e o que é
recordado” (ibidem, p.128). Se não há inscrição no nascimento, o que dá notícias do trauma
ao sujeito, ao que associa que remete a um perigo que recorda o trauma?
A indicação dada por Freud para se pesquisar essa interrogação encontra-se no exame
das ocasiões em que crianças de colo, ou um pouco mais velhas, sentem angústia. A criança
de colo deseja a presença da mãe, pois sabe através da experiência que ela satisfaz suas
necessidades. Assim, o perigo que se configura, e do qual deseja se proteger, diz respeito à
não satisfação da crescente tensão devida à necessidade, da qual as quantidades de estímulo se
elevam, causando desprazer. Com isso, registra-se a vinculação entre angústia e insatisfação,
de forma que a segunda desperta a primeira. A criança depende absolutamente da mãe para
efetuar sua satisfação, o que aponta a falta do objeto mãe como perigoso. Tanto a situação da
criança de colo como o nascimento despertam a reação de angústia, na medida em que, em
ambas, há um acúmulo de estímulos que precisam ou ser dominados psiquicamente ou
descarregados, ou seja, há um excesso nesses dois momentos que invade o sujeito, diante do
qual o sujeito se vê sem recurso para lidar:
“Quando a criança houver descoberto pela experiência que um objeto externo perceptível pode pôr termo à situação perigosa que lembra o nascimento, o conteúdo do perigo que ela teme é deslocado da situação econômica para a condição que determinou essa situação, a saber, a perda do objeto” (ibidem, p.130).
As palavras de Freud apontam para uma possível simbolização de que no a posteriori
o sujeito lança mão a fim de dar um contorno com palavras ao que antes, por não ter inscrição
simbólica, apresentava-se como excesso, deixando o sujeito a mercê do desprazer. O cenário
psíquico do sujeito passa a configurar-se de outra forma quando o momento da situação
econômica de transbordamento dá lugar à perda do objeto como determinante da angústia, na
medida em que, nesse segundo tempo, o sujeito encontra uma representação como recurso. A
situação da criança como feto é substituída para ela por uma relação de objeto psíquica com a
mãe. “Mas não nos devemos esquecer de que durante sua vida intra-uterina a mãe não era um
objeto para o feto, e que naquela ocasião não havia absolutamente objetos” (ibidem, p.131). A
introdução de um objeto na relação com a criança permite que uma operação simbólica ganhe
lugar, no sentido de nomear, ligar o determinante da angústia a um objeto presente, real. Essa
passagem é marcada pela possibilidade de enlaçamento, inexistente no tempo que o antecedia.
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Se o tempo do nascimento é marcado como um momento em que não há relação objetal
estabelecida, isto é, há ausência de objeto, mesmo que aí a separação da mãe seja o
determinante da mais antiga angústia, ela só é assim significada num momento posterior. Isso
implica dizer que só é possível construir em análise a situação de desamparo primordial,
enquanto situação mítica, porém, constituinte do sujeito, num segundo momento em que a
perda de um objeto parcial, no caso a mãe, falta, revelando o que é central no psiquismo
humano.
O que se verifica com essa exposição é uma tentativa de circunscrever o real
traumático do nascimento, ou seja, o momento da falta de objeto, do desamparo, através da
simbolização possível que o momento seguinte instaura pelo estabelecimento de uma relação
objetal. Dessa forma, o perigo anterior, protótipo da origem da angústia, dá lugar a outro
perigo, possível agora de ser representado, a partir da experiência com um semelhante. De
acordo com Freud, é a ausência da mãe, ou figura que cuida do bebê, que agora constitui o
perigo para a criança de colo, portanto, determinante da angústia. A mãe passou a ocupar o
lugar de um objeto na relação com a criança, o que permite uma simbolização. É só no a
posteriori, já numa relação objetal estabelecida, que se pode significar a experiência de
desamparo.
Freud aponta que cada período da vida do sujeito tem seu determinante de angústia, ou
seja, o objeto sinalizador do perigo da angústia vai se deslocando. Pode ocorrer de
determinantes distintos persistirem lado a lado, de modo que o eu reaja com angústia numa
fase ulterior à apropriada. “O perigo de desamparo psíquico é adequado ao período de
imaturidade do eu; assim como o perigo da perda do objeto à falta de autonomia dos
primeiros anos da infância, o perigo de castração à fase fálica, e a angústia frente ao supereu
ao período de latência” (ibidem, p.134).
No entanto, é preciso destacar que, se essa operação de simbolização foi realizada, ela
não tampona o fato de que o objeto de que se trata não é a mãe, e sim aquele desde sempre
perdido. A emergência da angústia se dá quando, na perda do objeto parcial, se coloca para o
sujeito a inexistência do objeto. A leitura de uma equivalência entre ambos foi feita por
alguns psicanalistas pós-freudianos, o que levou Lacan a sinalizar o objeto causa de desejo
não como objeto mãe, mas como objeto perdido, objeto a:
“O significado da perda de objeto como determinante da angústia se estende consideravelmente além desse ponto, pois a transformação seguinte da angústia, a
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saber, a angústia de castração, que pertence à fase fálica, constitui também medo de separação e está assim ligada ao mesmo determinante” (ibidem, p.131).
Segundo Freud, a angústia tem uma relação com a expectativa, na medida em que é
angústia ante algo. Também afirma: “tem um caráter de indeterminação e ausência de objeto”
(ibidem, p.154), de modo que é diante da falta do objeto ou da ameaça de perdê-lo que
emerge, uma vez que essa falta remete ao desamparo fundamental, que se encontra na ordem
da constituição do sujeito. Todo encontro e toda perda de objeto presentificam a falta para o
sujeito, já que todo objeto é parcial em sua satisfação para o sujeito, portanto, aponta para o
fato de que não há o objeto total.
É por conta dessa marca da falta de objeto, característica da condição de desamparo de
todo sujeito falante, que o movimento de busca por objetos o impulsiona a fim de que possa
com esses objetos estabelecer algum laço afetivo, social, posto que precisa dessa rede para
sobreviver. No entanto, como o sujeito procura algo que não sabe que está desde sempre
perdido, imaginariamente pode crer na completude do objeto, ou seja, de que há um objeto a
ser encontrado que vai lhe satisfazer totalmente. É essa ilusão que cai no encontro com os
objetos parciais. Na medida em que o objeto da angústia aparece pela falta, isto é, como
objeto a, quando o sujeito encontra um objeto a que refere sua angústia, sua reação já se
configura sob a forma de medo.
Uma nota se faz necessária a fim de esclarecer a articulação entre os termos: objeto a,
falta e falo. Segundo Alberti: “Para Lacan, o que é fundante para o sujeito neurótico é o
Nome-do-Pai, que, no matema da constituição do sujeito neurótico, barra o desejo da mãe
(NP/DM)” (1999:119). Pode-se dizer que a operação de inscrição do Nome-do-Pai é fundante,
já que ao inscrever o falo, portanto a falta que é fálica permite ao sujeito o acesso ao desejo,
ou seja, abre a possibilidade de o sujeito se fundar na condição de sujeito desejante. Na
medida em que a criança vive suas primeiras relações com a figura materna, é no desejo da
mãe que está localizada no início de sua vida como objeto. Nesse momento, a mãe é aquela
com quem o bebê se satisfaz. Até a barra do pai se inserir não existe sujeito desejante, pois o
bebê encontra na mãe sua satisfação. Com isso, dizemos que a relação da mãe com o bebê
está nesse tempo revestida pelo imaginário de completude, posto que a falta ainda não se
inscreveu. Do lugar de agente da castração, o pai tem a função de barrar o desejo da mãe pelo
objeto bebê, entrando como terceiro nessa relação, proibindo ao bebê o acesso ao gozo com a
mãe, como também a mãe com o bebê como objeto de gozo. Isso se dá na medida em que o
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pai aponta para a mãe algo que ela deseja e que o bebê não pode lhe dar. O pai barra a mãe
para o bebê, que até esse momento é objeto de seu desejo. É quando a mãe não está presente
que a criança é levada a pensar que há um terceiro nessa relação até então dual. A entrada do
pai pontua para o bebê que ele, pai, é quem tem aquilo que a mãe deseja, passando a ser então
o detentor do objeto. Assim, o bebê conclui que, se a mãe não está com ele, é porque está com
o pai. Quando o bebê chora e a mãe não vem, isto é, quando não é atendido por ela, é como se
o bebê pensasse que alguém tem alguma coisa que ela quer e que ele, bebê, não tem. Isso
implica o reconhecimento pelo bebê de sua falta e da falta da mãe, pois ele não tem aquilo que
ela deseja e na medida em que ela procura isso em outro lugar é porque à ela também falta. O
sujeito então se vê castrado e percebe a castração da mãe.
Como conseqüência, o bebê constrói um personagem que tem algo que nem ele nem a
mãe têm; esse alguém é o pai. Assim, ao pai é atribuído o falo. Isso nos permite sublinhar a
relação entre falta e falo, já que enquanto o falo não se inscreve pela metáfora paterna, isto é,
essa operação simbólica da qual o pai enquanto função é o agente, não se inscreve a falta que
é fálica. O significante Nome-do-Pai incide de forma a apontar que há falta no Outro, no
discurso (nesse caso o Outro é a mãe), ao inscrever o falo através da falta como objeto que
não se tem, portanto, que se deseja. O sujeito do desejo nasce da própria falta:
“A releitura de Lacan da obra de Freud mostra que muito antes ainda de descobrir a falta ou a existência do órgão no seu semelhante, a criança, desde o momento em que percebe não poder satisfazer à mãe, ou seja, desde o momento em que se dá conta da presença de alguém com quem a mãe procura satisfazer-se – normalmente o pai – percebe que lhe falta alguma coisa. Toda vez que a mãe não a procura para preencher essa falta, a castração logo se presentifica” (idem, 1999:147).
O falo será o representante da falta, na medida em que só aparece como objeto de
desejo quando o sujeito se depara com algo que não tem. A psicanálise nos ensina que o falo é
o objeto que se quer ter, mas que nenhum sujeito, seja mulher ou homem, o detém. O engano
do sujeito neurótico é acreditar que alguém tem o falo. Entre o objeto causa de desejo e o
objeto de desejo há uma diferença que merece ser mencionada. O objeto a, objeto causa de
desejo é aquilo que cai do Outro quando o significante Nome-do-Pai se inscreve nele, é o
objeto perdido que vai mover o sujeito a desejar, a buscar o que falta, ainda que sua busca seja
vã, já que de partida esse objeto é para sempre inalcançável. Quando se inscreve como barra,
o Nome-do-Pai opera a castração no Outro, produzindo um objeto perdido, nunca mais
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recuperável. O Nome-do-Pai opera assim a separação do bebê com a mãe, fazendo com que o
Outro se estruture segundo as leis da castração, isto é, como não-todo.
Pode-se pensar em dois tempos da relação mãe-bebê. No primeiro, o bebê chorava e a
mãe vinha lhe atender, resultando na baixa de excitação e no prazer com essa. O segundo é
marcado pela entrada do pai, aquele que é uma exceção à regra, posto que tem o que ninguém
mais tem e que a mãe quer. A entrada do pai é o momento em que se inscreve o objeto do
desejo do sujeito, isto é, o falo. É aqui que o bebê se dá conta de que teve a mãe e agora já não
tem mais, porém quando tinha não sabia. Só quando repara que já não é mais objeto de desejo
da mãe, que percebe que um dia o fora.
É a inscrição da metáfora paterna que permite a partir da barra do desejo da mãe que o
bebê se torne sujeito desejante e não só objeto do desejo da mãe. Ao mesmo tempo se
inscreve o objeto perdido, objeto que cai e estará para sempre perdido porque agora a mãe não
se volta mais para o bebê. Como efeito, o bebê passa a desejar ter aquilo que lhe falta, e, ao
crer que o pai tem o objeto de desejo, passa a desejar ser como o pai, implicando uma
identificação simbólica com a figura paterna, a fim de ter como o pai aquilo que lhe falta.
Quando a mãe da satisfação cai para sempre como objeto perdido, o bebê passa a desejar a
mãe, porém na referência de ser a mulher do pai, pois identificado com o pai, agora o bebê
quer aquilo que o pai deseja. Há, portanto uma diferença crucial no que tange à posição
psíquica do sujeito que antes tinha a mãe e agora passa a desejá-la. O bebê deseja o falo,
aquilo que só o pai tem na busca de recuperar um tempo perdido. A partir daí, o falo
representará aquilo que o sujeito não tem, mas quer ter, ou seja, o significante do desejo. Isso
indica que, para a criança completar a operação de castração do Outro, que implica em
separar-se da mãe, precisa crer que o pai tem o objeto de desejo da mãe. É preciso sublinhar
que a operação descrita ocorre na neurose, já que na psicose o Outro não é barrado e goza do
sujeito. Quando o Nome-do-Pai não se inscreve no simbólico, quando fica foracluído como na
psicose, a criança percebe-se como objeto de gozo da mãe e não como objeto de desejo.
Voltando à questão da angústia, Freud refere-se a ela como sinal de salvação, pois ao
anunciar o perigo, permite com que algum movimento no sentido de proteção do eu tenha
lugar. Enquanto produto, resultado do desamparo psíquico, a angústia revela ao sujeito a
condição inerente ao ser humano. O eu pode sentir-se desamparado seja frente a um perigo
real ou face à exigência pulsional constantemente crescente, quando não encontra recursos
para manejar. Referindo-se ao que uma pessoa sente na angústia neurótica, Freud (1933a) diz:
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“Aquilo que ela teme é, evidentemente sua própria libido. A diferença entre essa situação e a
da angústia realística reside em dois pontos: que o perigo é um perigo interno, ao invés de
externo, e que esse perigo não é conscientemente reconhecido” (p.78).
Há duas reações possíveis face ao perigo, quais sejam, uma reação afetiva, através da
irrupção de angústia, e uma reação protetora. As reações podem seguir uma forma apropriada,
isto é, uma dando sinal de angústia para que a outra surja, ou pode ocorrer que a angústia
paralise o sujeito, impedindo seu movimento. Na conferência XXV sobre a angústia, Freud
(1917) aponta o estado de preparação para o perigo que se manifesta através de um aumento
da atenção sensória e tensão motora como uma reação pertinente, na medida em que pode ser
uma vantagem à percepção do sujeito. Sua ausência pode ser responsável por graves
conseqüências. Dessa preparação decorre a ação motora, a fuga ou defesa ativa aliada à
angústia. “Por conseguinte, o estado de preparação para a angústia parece-me ser o elemento
adequado daquilo que denominamos geração de angústia, o elemento inadequado”(p.359-60).
Segundo Freud, o significado de uma situação de perigo consiste na estimativa do
sujeito quanto à sua própria força em comparação à magnitude do perigo e no reconhecimento
de sua condição de desamparo face ao perigo. Diante disso, é possível fazer uma sutil
distinção entre uma situação traumática e uma situação de perigo. O determinante da
expectativa configura uma situação de perigo, o sinal da angústia coloca o sujeito na posição
de espera e previsão do trauma, o que permite, se possível, um movimento no sentido de sua
autopreservação. O sinal anuncia que uma situação de desamparo virá, de modo que o sujeito
se comporta como se o trauma já tivesse chegado. A angústia é assim de um lado uma
expectativa de um trauma, de outro uma repetição dele. Essa constatação aponta para a
relação entre angústia e repetição, à qual se pode aliar o trauma, enquanto repetição do que
não se inscreve:
“Assim os dois traços de angústia que notamos têm uma origem diferente. Sua vinculação com a expectativa pertence à situação de perigo, ao passo que sua indeterminação e falta de objeto pertencem à situação traumática de desamparo - a situação que é prevista na situação de perigo” (Freud, 1926a, op.cit, p.155-56).
O perigo aponta uma situação reconhecida, lembrada e esperada de desamparo, e a
angústia é a reação original ao desamparo no trauma, reproduzida na situação de perigo como
sinal de ajuda:
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“Mas o que é de importância decisiva é o primeiro deslocamento da reação de angústia de sua origem na situação de desamparo para uma expectativa dessa situação – isso é, para a situação de perigo. Depois disso vêm os deslocamentos ulteriores, do perigo para o determinante do perigo – perda do objeto e das modificações dessa perda com as quais já nos familiarizamos” (ibidem, p. 156)
Essa colocação aponta para o recurso simbólico presente no sujeito como uma forma
de lidar com as situações de perigo que remetem ao desamparo, visto que nos deslocamentos
pode encontrar um objeto cuja representação permita amarrar o que se apresenta sem ligação.
Partindo da constatação de que a vivência da perda do objeto, de uma separação, é por
si só reconhecidamente dolorosa, Freud (1926a) interroga o que determinaria uma reação de
angústia, levando em conta que também a dor e o luto são reações possíveis em face da perda
do objeto. Apesar de posta a pergunta, Freud não tem a pretensão de respondê-la nesse artigo,
mas esboçar algumas conjeturas, e para tal lança mão da relação entre a mãe e a criança. Uma
situação traumática configura-se na ausência do objeto, no caso da mãe, porém isto se dá se
na época a criança sentir que a mãe é a única pessoa que pode satisfazer suas necessidades, o
que, na falta dela, coloca a criança imersa em desamparo. Se a necessidade em relação à mãe
não estiver presente, a situação configura-se como perigosa. Assim, pode-se dizer que o
primeiro determinante da angústia que o eu introduz é a perda da percepção do objeto que é
equacionada com a perda do próprio objeto. Mais adiante, o sujeito aprende que o objeto pode
estar presente, porém aborrecido com ele, então a perda do amor do objeto torna-se o novo
perigo mais duradouro e determinante da angústia. O que formulamos a partir daí é que o que
se perde com o objeto, que é angustiante para o sujeito, é o amor que ele investia e que
recebia, que de alguma forma relacionava-se a um amor que amparava o sujeito em sua
condição de desamparo.
Há uma diferença importante no que tange à situação do nascimento e a de sentir falta
da mãe. Este aspecto relaciona-se com o fato de que, no nascimento, não havia objeto,
portanto, não se podia sentir falta, a angústia era a única reação que ocorria face ao
desamparo. Nas situações que se seguiram, a criança encontra na mãe um objeto que pode
satisfazê-la, recebendo ela assim, sempre que sente necessidade, um intenso investimento. Há
uma expectativa pelo objeto que pode pôr fim à insatisfação, de vez que, quando se espera e
ele não aparece, uma forte reação de angústia advém.
De acordo com Freud, uma situação perigosa envolve características como separação,
perda de um objeto amado, perda do amor do objeto, perigo da castração e a perda do amor do
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supereu, que presentificam o trauma, na medida em que conduzem a uma vivência de
desamparo. A angústia se apresenta para o sujeito quando a operação de castração não tem
lugar, ou seja, quando não opera no sujeito o fato de que aquilo que ele acha que pode perder,
nunca de fato teve. Ao passo que o sujeito faz operar a castração, pode dar outro destino à
angústia. A operação de castração é a de fazer valer o fato de que não há objeto total para
satisfazer o sujeito, de modo que sua satisfação será sempre parcial com os objetos parciais
que encontrar.
Considerando a inexistência do objeto para o sujeito, podemos dizer que todo e
qualquer objeto que o sujeito encontre na vida mantém a característica de parcialidade, ou
seja, é parcial em sua satisfação, comportando a dimensão de falta, de incompletude ao
sujeito. Ainda que o sujeito imaginariamente acredite que encontrou o objeto, vai se deparar
com a falta que o habita, já que todo objeto só pode ser parcial, portanto, anuncia a falta do
objeto total. A reação de angústia frente à perda de um objeto que só pode ser parcial traz à
tona com toda a sua intensidade, para além da dor da perda, o fato de que em se tratando do
objeto, esse, não há. É justamente por conta dessa condição de desamparo que o constitui e
que imprime a falta, que o sujeito permanece durante o percurso de sua vida na posição de
quem busca. No entanto, enganado na procura do objeto, o sujeito nesse movimento
desconhece a inexistência dele. É na experiência de um desencontro ou da perda do objeto
parcial que o sujeito tem notícias da falta que o determina, portanto, a chance de fazer algo
com isso.
Segundo Freud, a dor é a reação real à perda do objeto, enquanto a angústia é a reação
ao perigo que essa perda acarreta que se encontra na representação da perda do próprio objeto.
“...angústia vem a ser uma reação ao perigo de uma perda do objeto” (ibidem, p.158), o que
assinala o fator de ameaça presente no tocante à angústia. O luto tem como função convocar o
sujeito desolado a fazer o trabalho de desinvestir no objeto, isto é, retirar dele a libido, a fim
de que possa separar-se, já que não existe mais. A separação de um objeto é dolorosa, pois
antes ele satisfazia o sujeito e agora não mais, exigindo que se retire o investimento,
expectativa, desfazendo o laço. As reações de luto, dor e angústia não se dão separadas, ao
contrário, muitas vezes encontram-se presentes num mesmo sujeito em determinada situação
de perda. Retomando nossas considerações acerca do cogito com Descartes, dizemos que a
angústia por ele experimentada o convocou à busca de algum significante que pudesse dar
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contorno ao vazio instaurado a partir da falta de resposta. A formulação do cogito teve como
função amarrar com palavras a invasão do sem palavras que a angústia presentificou. No
entanto, isso só foi possível num a posteriori, revelando que o simbólico, por ser não-todo,
falha. É quando falta a amarração pelas palavras que se tem notícias do real do sujeito, o que
permite formular a angústia como a apresentação do que não se amarra. Enquanto uma das
formas de manifestação do sujeito é o afeto que surge frente ao real, que, sem véu, não
engana:
“O postulado fundamental da psicanálise diz que a estrutura do sujeito se organiza a partir de um furo. Esse furo organizador na estrutura é correlato ao conceito do objeto perdido, o que implica que aquilo que poderia dar satisfação ao sujeito é perdido desde sempre como condição necessária ao desejo, que por definição é insatisfeito” (Quinet, 2000,op.cit, p.87).
Na medida em que o desamparo, a falta do objeto é central e constituinte de todo ser
falante, cada sujeito será convocado a se posicionar frente ao furo, lançando mão de alguma
amarração a título de tornar possível o viver. Freud (1926a) faz referência a duas maneiras de
circunscrever o real, quais sejam, a inibição e o sintoma, os quais na relação com a angústia,
apresentam-se como formas de amarrá-la.
O conceito de inibição é definido como expressão de uma restrição de uma função do
eu. As inibições do eu, seja na relação sexual, no ato de comer, no trabalho e locomoção
representam o abandono de uma função porque sua prática produz angústia. “O eu renuncia a
essas funções, que se acham dentro de sua esfera, a fim de não ter de adotar novas medidas de
recalque – a fim de evitar um conflito com o isso” (op.cit, 1926a:86). As inibições também
servem à finalidade da autopunição, como ocorre nos casos em que o eu fica proibido pelo
supereu de ter êxito em alguma atividade. Assim, o eu desiste da função para evitar conflito
com o supereu. O sujeito inibido em sua ação fica numa posição defendida e prevenida, na
tentativa de evitar conflitos, pagando com isso o preço de renunciar a suas funções. Freud
também aponta que a inibição, além de funcionar como medida de proteção, pode ser
resultado de um empobrecimento de energia, quando o eu se vê numa tarefa psíquica que
demande um dispêndio de energia maior, como no caso do trabalho de luto.
O sintoma é assim nomeado quando uma função do eu passa por alguma modificação
ou quando nova manifestação surge desta. Ele é produto do recalque e surge como substituto
de uma satisfação pulsional, constituindo uma via indireta desta. De sua relação com a
70
angústia, Freud diz: “...se criam sintomas a fim de evitar uma situação de perigo cuja
presença foi assinalada pela geração de angústia. Nos casos que examinamos, o perigo em
causa foi o de castração ou de algo remontável à castração” (ibidem, p.122).
Enquanto formas de amarração, a inibição e o sintoma são arranjos onde o eu é
removido da situação de perigo. Se, de um lado, sinalizam tentativas de fuga do eu, de outro,
apontam essa impossibilidade visto que o eu não pode fugir de si mesmo. Assim, é quando a
angústia emerge e sinaliza que o enlace não costura totalmente, bem como, quando alguma
questão se coloca para o sujeito, que temos notícias da existência do furo, e aí se pode escutar
isso que não se cala. O que a análise propõe é que o sujeito, ao incluir o furo como marca,
possa encontrar outra forma de amarração, sem precisar restringir-se a formações
sintomáticas.
Foi na apresentação disso que insiste que, a partir da clínica, o sujeito se fez escutar
por Freud. Para além do espaço físico, a clínica enquanto dispositivo não é o único lugar em
que o sujeito do inconsciente se manifesta, mas é aquele que tem condições de operar com
esse, logo onde algum saber pode ser produzido. Através do método psicanalítico, Freud foi
estabelecendo um dispositivo que requer a função operante do analista a fim de realizar o
trabalho de acesso ao saber inconsciente. Esse dispositivo refere-se à associação livre que,
através da repetição e da transferência, introduz na experiência da psicanálise as condições da
produção das formações inconscientes, isto é, atos falhos, sonhos, lapsos, sintomas e chistes.
Solicitar ao analisando que diga tudo o que vier à cabeça, sem emprestar qualidades ao seu
dizer, é uma tentativa de criar pela fala uma via para a emergência do sujeito do inconsciente.
No que o analisando vai falando, pode se surpreender com algo que escapa. De acordo com
Elia (2004), o conceito de sujeito irrompe na experiência e se impõe ao trabalho teórico do
analista, exigindo dele elaboração. O processo de análise é condição, caminho ao que é
específico do sujeito do inconsciente. “O saber sobre o sujeito não está ao alcance de todos, e
não estará ao alcance de ninguém que não queira se dar ao trabalho psicanalítico” (op.cit,
p.10).
Freud verificou que os processos inconscientes determinam o sujeito, permitindo que
se formule um inconsciente do qual se está sujeito. Apesar da relação entre sujeito e
inconsciente, é preciso sublinhar que não se equivalem. Supor um sujeito do inconsciente é
diferente de dizer que o sujeito é o inconsciente. Nesse trabalho enfocamos o termo sujeito de
duas maneiras. Uma, aponta para o sujeito entendido pelo viés da psicanálise, qual seja,
71
dividido entre saber e verdade, marcado pelos funcionamentos inconsciente e consciente. A
outra se refere ao inconsciente propriamente dito, donde age um sujeito suposto, animado pelo
desejo.
Tal como inconsciente e sujeito não se identificam de todo, o mesmo ocorre entre
inconsciente e recalque. O recalcado é parte do inconsciente, porém o inconsciente vai além
dele. Segundo Freud, é possível chegar a um saber do inconsciente depois que sofreu tradução
ou transformação para algo consciente, aparecendo assim distorcido. A temática do
inconsciente em Freud permeia grande parte de sua obra, mas é num dos textos que compõem
os artigos sobre metapsicologia, intitulado “O inconsciente” (1915) que se dedica mais
detalhadamente ao assunto, destacando o engano da equivalência entre psíquico e consciente.
A metapsicologia em Freud é a descrição de um processo psíquico sob os pontos de vista
tópico, econômico e dinâmico, o que corresponde à localização em instâncias, distribuição de
investimentos e conflito das forças pulsionais.
O reconhecimento de que os dados da consciência apresentam lacunas aponta para o
fato de que, em certos momentos, o conteúdo da consciência é reduzido. Daí se explica a
estranheza quanto aos pensamentos, conclusões que repentinamente vêm à cabeça, bem como
lembranças ocultas. Além disso, há atos psíquicos que só podem ser explicados pela
pressuposição de outros atos, que a consciência desconhece, como sonhos e sintomas, que em
conjunto permitem afirmar que os processos psíquicos são inconscientes em si mesmos.
“Assim sendo, devemos adotar a posição segundo a qual o fato de exigir que tudo quanto
acontece no psiquismo deve também ser reconhecido pela consciência, significa fazer uma
reivindicação insustentável” (p.163).
Os fenômenos lacunares são indicadores da realidade do inconsciente, referindo-se às
formações do inconsciente que, ao irromperem, produzem uma descontinuidade no discurso
consciente. A fala do sujeito é ultrapassada por outra fala que se impõe, causando
esquecimento, troca de nome, lugar, cujo sentido escapa. Esse atropelamento de uma fala por
outra indica algo agindo no sujeito, que causa estranheza apesar da paradoxal familiaridade
que comporta. A lacuna aparece presentificando uma ausência, apontando que, no lugar de
um esquecimento, há uma falta, o que indica que o que se deseja rememorar está inscrito em
outro lugar. No entanto, a lacuna não está vazia, mas ocupada por um nome que não está
presente, impedindo que outro venha em seu lugar. Quanto a essa divisão Freud coloca:
72
“Todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo e que não sei como ligar ao resto de
minha vida psíquica devem ser julgados como se pertencessem a outrem” (ibidem p.166).
A apresentação do aparelho psíquico formulado em três sistemas nomeados,
respectivamente, inconsciente, pré-consciente e consciente, constitui a primeira tópica,
freudiana, que mais tarde dará lugar à segunda tópica definida pelos conceitos de eu, isso e
supereu. Aos sistemas correspondem os estados de um ato psíquico. O inconsciente é situado
como um sistema que se contrapõe a outro sistema pré-consciente / consciente, que é em parte
inconsciente, mas não é o inconsciente, delimitando-se como outro lugar psíquico. Pode-se
dizer que um ato psíquico geralmente passa por duas fases no tocante a seu estado, entre as
quais se interpõe um tipo de teste (censura). Na primeira fase, o ato psíquico é inconsciente e
pertence ao sistema inconsciente. Ao tentar passar para a consciência, o ato psíquico pode, ou
não, conseguir atravessar a censura. Se for rejeitado, permanece inconsciente, e diz-se que foi
recalcado. Se atravessar o teste, entra na segunda fase, no consciente. Mesmo sendo capaz de
tornar-se consciente, ainda não o é, o que permite denominar de pré-consciente sua condição.
Apesar da topografia, Freud registra que não se trata de localizar anatomicamente os
sistemas, mas de considerar localidades a título de pensar nas operações, mecanismos que
podem reger o psiquismo. Sublinhamos esse apontamento, visto que muitas leituras não
tomam o inconsciente em sua articulação com a linguagem, reduzindo-o a uma localização
cerebral. Na tentativa de substanciá-lo, faz-se uma correspondência entre lugar psíquico e
lugar anatômico, eliminando assim o que diz respeito ao sujeito. Freud (1915) enfatizou que o
inconsciente não se relacionava a uma substância de ordem cerebral, corpórea, apesar de
concebê-lo como lugar psíquico. Ainda que mencione que pesquisas consideravam a
vinculação entre a atividade psíquica e funções do cérebro, ele mesmo contesta que ainda
pouco se sabe, lembrando que tentativas de localização dos processos psíquicos como
conceber idéias armazenadas em células nervosas e excitações que percorrem fibras nervosas
fracassaram:
“O mesmo fim aguardaria qualquer teoria que tentasse reconhecer, digamos, a posição anatômica do sistema consciente. – atividade consciente da alma – como estando situada no córtex, e localizar os processos inconscientes nas partes subcorticais do cérebro. Verifica-se aqui um hiato que, por enquanto, não pode ser preenchido, e não constitui tarefa da psicologia preenchê-lo. Nossa topografia psíquica, no momento, nada tem a ver com a anatomia; refere-se não a localidades anatômicas, mas a regiões do aparato psíquico, onde quer que estejam situadas no corpo” (ibidem, p.170).
73
O inconsciente não é uma coisa ou lugar anatômico, mas uma determinação impressa
por uma lei de articulação própria. O que o define é o modo pelo qual opera, sobre cuja
pesquisa Freud se debruçou. Seu núcleo consiste em representantes pulsionais que buscam
descarregar sua energia (investimento), o que implica reconhecer que são carregados de
desejo. As leis que regem o funcionamento do inconsciente diferem do sistema consciente. No
inconsciente, os impulsos pulsionais existem lado a lado sem se influenciarem mutuamente,
mesmo que haja entre eles contradições, ambivalências. Assim, quando dois desejos
incompatíveis do ponto de vista da consciência são ativados, a nível inconsciente se
combinam para alcançar uma finalidade intermediária, de modo que não se elimina um pelo
outro. Não há lugar para a negação e dúvida no inconsciente, visto que só aparecem pelo
trabalho da censura entre o inconsciente e o pré-consciente.
O processo primário é o modo de funcionamento do sistema inconsciente,
caracterizado pelos mecanismos de deslocamento e condensação. No deslocamento, uma idéia
pode ceder à outra todo o seu investimento, isto é, desloca sua energia para outra idéia e, na
condensação, apropria-se do investimento de várias outras idéias, condensando-as. Aqui a
energia psíquica é móvel e tende a se escoar livremente, passando de uma representação a
outra, buscando descarga rápida e direta. No processo secundário que domina o pré-
consciente-consciente, a energia é ligada e a descarga retardada, possibilitando escoamento
controlado. Os processos citados são correlativos aos princípios do prazer e da realidade, ou
seja, enquanto os processos inconscientes buscam a satisfação pelo caminho mais rápido, os
processos conscientes são obrigados a desvios e adiamentos da satisfação. Outra propriedade
do sistema inconsciente é a ausência de temporalidade, seus processos não são ordenados
temporalmente e não se alteram com sua passagem, sendo exclusiva do consciente a
referência ao tempo.
Freud aponta que há idéias conscientes e inconscientes. No entanto, em relação à
pulsão, nunca pode tornar-se consciente apenas a idéia que a representa. Mesmo no
inconsciente a pulsão só se representa por uma idéia. Se a pulsão não se liga a uma idéia, ou
não se manifesta como um estado afetivo, não teremos notícias dela. No tocante às emoções e
afetos, Freud exclui a possibilidade do atributo inconsciente. Ainda que o impulso afetivo
original seja inconsciente, o afeto sempre se tornará conhecido pela consciência. Contudo, em
virtude do recalque, ocorre uma ruptura entre a idéia e o afeto a ela vinculada, sofrendo cada
qual vicissitudes isoladas e diferentes. O afeto pode seguir três caminhos: pode permanecer
74
todo ou em parte como é, pode ser transformado num afeto qualitativamente diferente,
sobretudo em angústia, ou pode ser impedido de desenvolver-se. O recalque pode inibir que
uma pulsão transforme-se numa manifestação de afeto, o que é sua finalidade. Dessa forma,
para que o afeto chegue à consciência deverá ligar-se a outra idéia substitutiva, sendo
considerado então manifestação dela. Pode-se dizer que o objetivo da análise é levantar o
recalque a fim de operar a desmontagem do sintoma.
75
CAPÍTULO IV
O QUE O SIMBÓLICO PODE FRENTE AO REAL?
OU O REAL COMO INTERROGAÇÃO DO SIMBÓLICO
(MITO, CIÊNCIA E PSICANÁLISE)
A descoberta do inconsciente freudiano se deu num momento posterior ao surgimento
da ciência moderna que, segundo Lacan, criou condições para o aparecimento da psicanálise.
Assim, de que forma o sujeito, tal como postulado em psicanálise, estaria colocado na ciência,
antes do tempo em que Freud a ele pôde atribuir sua marca inconsciente? Ainda que não tenha
sido inaugurado como sujeito do inconsciente, já que da verdade do sujeito a ciência desde
sempre nada quer saber, é nesse campo que a noção de sujeito dividido entre saber e verdade
surge pela primeira vez. É a ciência que funda o sujeito como efeito do significante, fato que
justifica a dívida da psicanálise a esse campo. Contudo, se é no campo da ciência que surge o
sujeito por ela descartado, não seria já o sujeito da ciência conseqüência de algo que se
estabeleceu no próprio campo que lhe deu origem? Em outras palavras, o que veio com a
ciência, o que insere como novidade no discurso vigente no mundo e que teve como resultado
a produção do sujeito do cogito, por conseguinte a abertura à psicanálise?
A ciência a que nos referimos aqui é a moderna, visto que é a partir dela que o sujeito
do cogito é concebido. A emergência desse sujeito sem qualidades, que não tem duração, que
só aparece em ato, é conseqüência do que foi instaurado pela ciência.
Pretende-se desenvolver a questão colocada, destacando alguns aspectos trazidos pela
ciência, de modo a analisar em que medida têm relação com o surgimento do sujeito. No
entanto, analisar o novo da ciência requer investigar com o que ela rompe tanto dentro de seu
campo, quanto ao que antecedeu a este. Referimo-nos respectivamente à episteme antiga e ao
mito.
Seguindo a argumentação dessa pesquisa, utilizaremos os conceitos de real e
simbólico, já que concernem ao sujeito em questão. Apesar desses elementos não serem
utilizados na ciência, posto que têm seu fundamento no campo psicanalítico, a própria
psicanálise com Lacan permite reconhecê-los como embriões da ciência. Esse capítulo visa
examinar o real em jogo no mito, ciência e psicanálise, mais especificamente o lugar dado a
esse e a forma como é tratado pelos respectivos campos, numa articulação, contraponto, ao
simbólico, considerando esse último a única via possível para abordar o real.
76
De acordo com Marcondes (1998), os diferentes povos da Antiguidade, tais como
babilônicos, chineses, indianos, egípcios, persas e hebreus, tiveram visões próprias da
natureza e maneiras diversas de explicar os fenômenos e processos naturais. No entanto,
somente os gregos fizeram ciência, coincidindo o surgimento dessa com a emergência do
pensamento filosófico, o que permite reconhecer na cultura grega o princípio do pensamento
filosófico-científico. Ponto de partida que merece um exame mais aprofundado, o que não
poderemos fazer aqui no momento, mas que nos serve para avançar sobre a questão do
surgimento do conhecimento científico na Grécia por volta do século VI a.C, caracterizando-
se por uma forma específica de o homem tentar entender o mundo que o cercava, o real.
Anteriormente ao pensamento filosófico-científico, prevalecia na cultura grega o
pensamento mítico que consistia em uma forma de explicar aspectos da realidade humana,
como a origem do mundo, funcionamento da natureza, através de um discurso fictício,
imaginário. Marcondes (1998) situa o mito como fruto de uma tradição cultural. “As lendas e
narrativas míticas não são produto de um autor ou autores, mas parte da tradição cultural e
folclórica de um povo. Sua origem cronológica é indeterminada e sua forma de transmissão é
basicamente oral” (p.20). Por ser parte da cultura, o mito configura a visão de mundo dos
indivíduos, isto é, opera como lentes através das quais os sujeitos enxergam e vivenciam sua
realidade, pressupondo adesão e aceitação de todos. Dessa forma, não se questiona ou discute
o mito, que permanece como visão global, excluindo outras perspectivas a partir das quais ele
poderia ser interrogado. “O mito não se justifica, não se fundamenta, portanto, nem se presta
ao questionamento, à crítica ou à correção” (ibidem, p.20). O apelo ao mistério, ao
sobrenatural, à magia é um dos elementos centrais no pensamento mítico. São os deuses,
espíritos, o destino que governam a natureza, a sociedade, isto é, as causas dos fenômenos
naturais e o que acontece aos homens, tudo é comandado por uma realidade exterior ao
mundo humano e natural, os quais somente os sacerdotes, magos são capazes de interpretar,
mesmo que parcialmente. Eles funcionam como intermediários entre o mundo humano e o
divino.
Segundo Vernant (1957) “A lógica do mito repousa nesta ambigüidade: operando
sobre dois planos, o pensamento apreende o mesmo fenômeno, por exemplo, a separação da
terra das águas, simultaneamente como fato natural no mundo visível e como geração divina
no tempo primordial” (p.355).
77
O interesse pelo mito se liga à relação que mantém com a ciência, mas também à
psicanálise, já que o sujeito pode fazer uso dele em suas construções. Consideremos a seguir
algumas contribuições de Lévi Strauss e da psicanálise acerca do tema.
4.1. Lévi Strauss com Freud e Lacan: O mito na antropologia e na psicanálise.
Segundo Lévi-Strauss (1955):
“Alguns pretendem que cada sociedade exprime, nos mitos, sentimentos fundamentais, tais como o amor, o ódio ou a vingança, que são comuns a toda a humanidade. Para outros, os mitos constituem tentativas de explicação de fenômenos dificilmente compreensíveis: astronômicos, meteorológicos, etc.” (p.238).
A fim de ganhar elementos no desenvolvimento do tema, retomemos o capítulo de
Antropologia Estrutural sobre a eficácia simbólica (Lévi-Strauss,1949), no qual o autor
retoma a narrativa de um texto de caráter mágico-religioso em torno da cura operada pela
figura do xamã que é solicitada para ajudar a parteira num parto difícil ocorrido na tribo
indígena dos “Cuna” no Panamá.
A classificação Cuna distingue três tipos de médicos indígenas nomeados: nele,
inatuledi e absogedi. O xamã é considerado um médico da categoria nele, como aponta
Strauss: “Empregamos até aqui, em lugar de nele, o termo xamã” (p.216). Ainda referindo-se
ao xamã, diz: “... o talento do nele é considerado como inato, e consiste numa visão que
descobre imediatamente a causa da doença, ou seja, o lugar do arrebatamento das forças
vitais, especiais ou gerais, pelos maus espíritos” (ibidem, p.217). Sua intervenção consiste em
invocar os espíritos protetores para encarnarem, por seu apelo, nas imagens sagradas,
esculpidas, de modo que possa lhes conduzir à morada de “Muu”, potência responsável pela
formação do feto. “O parto difícil se explica, efetivamente, porque Muu ultrapassou suas
atribuições e se apoderou do purba ou alma da futura mãe” (ibidem, p.216). Para essa tribo,
cada parte do corpo, cada órgão tem uma alma correspondente. A alma do útero é
considerada, na ocasião, a responsável pela desordem patológica. “Muu aparece aí como um
fator de desordem, uma “alma” especial que capturou e paralisou as outras “almas” especiais,
e destruiu assim a cooperação que garantia a integridade do “corpo principal” (ibidem, p.219).
O canto que o xamã entoa consiste na busca da “alma” perdida, cujo conjunto compõe a força
vital, que será restituída após alguns rituais como: vitória sobre animais ferozes, torneio entre
78
o xamã e os espíritos protetores contra esta potência com a ajuda de chapéus mágicos e uso de
plantas medicinais. Vencida, a potência liberta a alma da doente, o parto se dá e o canto
termina. “O combate não foi empenhado contra a própria Muu, indispensável à procriação,
mas somente contra seus abusos” (ibidem, p.216). Assistido por seus espíritos protetores, o
xamã empreende uma viagem ao mundo sobrenatural para arrancar a alma do espírito
maligno, assegurando a cura da parturiente que, além de ter tido a alma capturada, sofria de
febre, fraqueza e enfraquecimento de visão. Para atingir Muu, o xamã e seus assistentes
devem seguir a rota do caminho de Muu, que, segundo Strauss, aparece no texto como: “o
caminho de Muu e a morada de Muu, não são, para o pensamento indígena, um itinerário e
uma morada míticos, mas representam literalmente a vagina e o útero da mulher grávida”
(ibidem, p.217), onde o xamã travará seu combate.
O xamã não toca o corpo da parturiente nem lhe administra remédios. O canto é
constituído de uma manipulação psicológica do órgão doente de onde a cura é esperada.
Determinadas representações psicológicas são evocadas para combater perturbações
fisiológicas. Trata-se de conduzir a doente, cuja sensibilidade está exacerbada pelo sofrimento
e cuja percepção do real está diminuída, a reviver uma situação inicial. “A cura começa, pois,
por uma história dos acontecimentos que a precederam” (ibidem, p.223). A técnica da
narrativa visa reconstituir a experiência real de dor e incompreensão da parturiente, de forma
que o mito trata de substituir os protagonistas que descrevem um complicado percurso de uma
anatomia mítica, que corresponde menos à estrutura real dos órgãos genitais que a uma
geografia afetiva. Nas palavras de Lévi-Strauss:
“Vai-se, pois, passar da realidade mais banal ao mito, do universo físico ao universo fisiológico, do mundo exterior ao corpo interior. E o mito, desenvolvendo-se no corpo interior, deverá conservar a mesma vivacidade, o mesmo caráter de experiência vivida à qual, graças ao estado patológico e a uma técnica obsidente apropriada, o xamã terá imposto as condições” (ibidem, p.223).
O canto tem por finalidade principal descrever e nomear as dores à doente, visando
com isto que sejam apreendidas pelo pensamento. “A cura consistiria, pois, em tornar
pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis para o espírito as
dores que o corpo se recusa a tolerar” (ibidem, p.228). Em outras palavras, é uma tentativa de
buscar uma representação simbólica a uma situação real. A fim de justificar a eficácia da
mitologia do xamã diz: “Que a mitologia do xamã não corresponda a uma realidade objetiva,
não tem importância: a doente acredita nela, e é membro de uma sociedade que acredita”
79
(ibidem, p.228). Do ponto de vista da psicanálise, pode-se colocar que, justamente por não
corresponder a uma realidade objetiva, a mitologia do xamã tem eficácia, pois a doente e a
sociedade, para além de lhe darem crédito, não a questionam, de modo que ela passa a
funcionar como verdade. Diante disso, afirmamos que não há outra realidade senão a
psíquica, ou seja, o que ganha valor de realidade é determinado pela posição subjetiva do
sujeito que é marcada pelo discurso do qual participa. O xamã oferece à parturiente uma
representação para sua vivência real e dolorosa baseada em seu sistema mitológico. Os
espíritos protetores, malfazejos e outras representações fundamentam um sistema coerente da
concepção indígena do universo. Os elementos estranhos são as dores, que, por apelo ao mito,
o xamã vai reintegrar num conjunto sobre o qual os elementos se apóiam.
O xamã oferece uma linguagem à doente a partir dos símbolos que compartilham, na
qual podem exprimir estados não-formulados, isto é, que ainda não foram simbolizados,
elaborados. De acordo com Lévi-Strauss (1949), a possibilidade de expressão verbal permite
ordenar de modo inteligível uma experiência real, provocando desbloqueio do processo
fisiológico, reorganizando-o num sentido favorável. As representações evocadas pelo xamã
permitem simbolizar algo que até então não tinha representação, determinando assim uma
modificação das funções orgânicas. Vale sublinhar que a explicação e o entendimento do
vivido real estão remetidos diretamente à cultura indígena, compartilhada por todos da tribo.
É a um mito coletivo que a doente vai ser remetida, recebendo-o como tradição.
Em seu texto “Tratamento psíquico” Freud (1890) descreve diversas curas milagrosas,
baseadas na fé, divindades, crença, que a princípio não têm explicações, soam como mágicas.
Freud já percebera que o efeito das poções curativas, fórmulas mágicas dos sacerdotes,
passava pela palavra, via influência daquele a quem se procurava, ressaltando assim a
importância da transferência. Para Lévi-Strauss (1949), não há razão de duvidar da eficácia de
certas práticas mágicas. No entanto, sua eficácia implica a crença da magia que se apresenta
sob três aspectos complementares e indissociáveis: “a crença do feiticeiro na eficácia de suas
técnicas; em seguida, a crença do doente que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no poder
do próprio feiticeiro; finalmente, a confiança e as exigências da opinião coletiva” (p.194). Na
medida em que não se interroga o mito, ele passa a operar como uma verdade inabalável.
Referindo-se ao sistema xamanístico, Lévi-Strauss diz: “Diversamente da explicação
científica, não se trata, pois, de ligar estados confusos e inorganizados, emoções ou
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representações, a uma causa objetiva, mas de articulá-los sob forma de totalidade ou sistema”
(ibidem, p.211).
Ao xamã é atribuído tanto pela coletividade como por ele próprio um saber, sendo
desse lugar que ele intervém pela via de um saber-fazer. Enquanto a paciente do xamã é seu
objeto de intervenção, ou seja, é ele que fala o que aconteceu e dá a solução para seu
sofrimento, ao analisando, em contrapartida, é dado lugar de sujeito. A ele é pedido que fale
livremente o que lhe vier à cabeça e é no discurso que algo referente a sua verdade pode
aparecer, sempre de modo parcial. Se o xamã acredita ter a verdade da paciente, no caso do
analista, é ao inconsciente que se atribui uma verdade particular a cada sujeito.
Tendo em vista que somente onde há endereçamento e suposição de saber pelo viés da
transferência é que algo da ordem da eficácia pode se dar, entende-se que os termos
transferência e eficácia são indissociáveis. Se as intervenções do xamã e do psicanalista
produzem eficácia, pode-se dizer que ambas se dão a nível simbólico? Segundo Lévi-Strauss,
a eficácia simbólica consistiria numa propriedade indutora de transformações psíquicas e
orgânicas do estado do paciente vindas de fora. No entanto, a eliminação de sintomas, alívio
momentâneo e mesmo curas milagrosas conferem uma determinada eficácia simbólica
diferente de como propõe a psicanálise. Para a psicanálise, a eficácia simbólica é específica ao
seu campo, na medida em que opera a partir de um simbólico furado pelo real, implicando,
portanto, efeitos no sujeito. No mito, por sua vez, pode-se dizer que se por um lado há uma
eficácia que implica na articulação do simbólico já que se dá por meio da linguagem, por
outro há um simbólico que se pretende sem furos, já que está entrelaçado ao imaginário que
lhe confere toda sorte de significações, oferecendo uma representação ao real em jogo. Com
isso, dizemos que o mito dispõe sempre ao sujeito alguma explicação para o inexplicável,
buscando assim tamponar a dimensão da falta. A eficácia simbólica para a psicanálise diz
respeito a um trabalho que inclui o sujeito do inconsciente, considerando que é pela via do
discurso sob transferência que o que é da ordem do desejo pode aparecer, se oferecendo à
elaboração. A eficácia a nível simbólico implicará então a mudança de posição subjetiva do
sujeito, o que pode trazer consigo alívio de sintomas:
“Apesar de tanto o xamã quanto o psicanalista trabalharem a partir do referencial da linguagem, se situam nela de modos diferentes. No caso do xamã, é possível indicar um trabalho pelo viés imaginário, já que ambos ele e a tribo lhe supõem verdadeiramente um saber-poder. Assim, uma vez o sujeito do inconsciente excluído da cena, prevalecendo o registro imaginário sob o simbólico no tratamento do real, não se pode falar em castração. E é justo este, o ponto central
81
da clínica psicanalítica, ou seja, que o analista opere a partir da castração, incluindo o sujeito e o real na cena discursiva” (Erlich, 2005, p.7-8).
Quanto ao tratamento do real pelo mito, pode-se dizer que o faz articulando simbólico
e imaginário. O mito é feito de linguagem e se articula na estrutura discursiva. Ainda nesse
escopo, citamos Lévi-Strauss:
“... o mito faz parte integrante da língua; é pela palavra que ele se nos dá a conhecer, ele provém do discurso. Se queremos perceber os caracteres específicos do pensamento mítico, devemos pois demonstrar que o mito está, simultaneamente, na linguagem e além dela”(op.cit, 1955:240).
Entretanto, o mito se diferencia da ciência e da psicanálise na medida em que
privilegia os efeitos que promovem imaginário, sem interrogá-los. É preciso destacar que o
imaginário também está em jogo na ciência e na psicanálise. Ambas o incluem em sua
articulação com o real e o simbólico, porém na tentativa de desbastá-lo. Apesar de igualmente
operarem o procedimento de desimaginarização tendo como referencial o simbólico furado,
guardam uma diferença, pois para a ciência há no horizonte a promessa do avanço, o ideal de
tudo simbolizar e para a psicanálise de partida, isso é impossível. “O discurso da ciência
rejeita a presença da coisa, uma vez que em sua perspectiva, se delineia o ideal do saber
absoluto, isto é, de algo que estabelece, no entanto, a coisa, não a levando ao mesmo tempo
em conta” (Lacan, 1959-60:164).
Considerando que o imaginário tem como função preencher lacunas, conferindo
sentido ao sem sentido, o procedimento de desbastá-lo segue a direção de interrogar um saber
que tem como efeito uma verdade totalizadora, tal como se apresenta uma imagem, isto é,
fechada. Como conseqüência dessa operação cai o que é da ordem do imaginário, ou seja, cai
a realidade psíquica do sujeito na qual ele se posicionava, dando lugar a outro saber, por
conseguinte a outra verdade. A direção de uma análise é a de que a operação de parcialidade
do saber, portanto da verdade compareça para o sujeito, tendo como resultado uma outra
posição subjetiva, já que não se trata de trocar de saber e de verdade, mas de fazer operar o
fato de que ambos sejam eles quaisquer, são parciais.
Também no caso da ciência, quando um saber é interrogado e não mais se sustenta,
derruba a meia verdade que representava, e no lugar dessa advém outra meia verdade
informada de um novo saber. Porém, apesar de o saber e a verdade referirem-se a um recorte
circunscrito, a ciência faz uma operação de tentar transformar imaginariamente as verdades
82
parciais que descobre em verdades absolutas, fazendo crer na validade do universal,
desprezando o particular. Dessa forma, pode-se dizer que se de um lado procede a
desimaginarização, por outro, ao formular algum saber que opera, lança-o como verdade
universal, recobrindo imaginariamente o furo. Da perspectiva psicanalítica, dizemos que o
imaginário reside na ciência quando ela sustenta o projeto de domínio do real, e do universal,
apesar de também ter como direção desbastar o imaginário. “A ciência, como se sabe, não é
uma revelação; muito depois de seus primórdios ainda lhe faltam os atributos de
determinação, imutabilidade e infalibilidade pelos quais o pensamento humano tanto anseia”
(Freud, 1926b: p.218).
Lévi-Strauss (1949) aponta: “Talvez descobriremos um dia que a mesma lógica se
produz no pensamento mítico e no pensamento científico, e que o homem pensou sempre, do
mesmo modo” (p.265). Essa colocação nos faz pensar que o homem sempre tentou dar conta
do real através de algum discurso que o abordasse, porém justamente por usar do discurso
como recurso, vai de encontro a uma falta. É a essa falta que a psicanálise vem dar lugar,
apontando-a como estrutural da dimensão simbólica do sujeito, trazendo então uma nova
perspectiva que implica um trabalho psíquico para cada sujeito, no qual o que se pretende
absoluto já não tem mais lugar:
“... o pensamento dispõe sempre de demasiadas significações para a quantidade de objetos nos quais ele pode enganchá-las. Dilacerado entre esses dois sistemas de referência, o do significante e do significado, o homem exige ao pensamento mágico que lhe forneça um novo sistema de referência, no seio do qual os dados até então contraditórios possam se integrar. Mas sabe-se que esse sistema se edifica as custas do progresso do conhecimento”. (ibidem, p.213).
Lévi-Strauss (1949) aponta para o fato de que o mito provém da ordem da linguagem,
afirmando assim sua dimensão simbólica:
“A substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe, mas na história que é relatada. O mito é linguagem; mas uma linguagem que tem lugar em um nível muito elevado, e onde o sentido chega, se é lícito dizer, a decolar do fundamento lingüístico sobre o qual começou rolando” (ibidem,p.242).
Se ambos, ciência e mito, lançam mão da articulação entre imaginário e simbólico, o
último privilegia o imaginário sobre o simbólico. Em contraponto, ao operar um
procedimento de desimaginarização, a ciência passa a tratar o real pelo simbólico, na medida
83
em que insere a crítica frente a um discurso marcado pela crença, em que a interpretação
mitológica assume o lugar de verdade inquestionável. Nesse processo, a ciência inaugura o
real, que, apesar de desde sempre ter estado aí, passa a existir como tal, revelando sua crueza
no que aparece como o sem sentido, fazendo cair a verdade total pretendida pelo mito.
Referindo-se à experiência analítica, Lacan (1953b) diz: “Ela implica sempre, no seio
de si mesma, a emergência de uma verdade que não pode ser dita, pois o que a constitui é a
fala, e seria preciso de alguma forma dizer a fala propriamente dita, o que é, a bem dizer, o
que não pode ser dito como fala” (p.10). Na medida em que a verdade se articula pela fala, é
também não-toda, em outras palavras não se pode dizê-la toda, é sempre meia verdade, já que
marcada pelo real. Isso se coloca, pois a linguagem por estrutura comporta uma falta e sendo
por esse viés que a verdade pode ser dita, ela é, portanto, sempre parcial. A psicanálise coloca
em evidência a descompletude imanente à verdade de qualquer saber, relativizando-a.
Considerando o real, a falta de sentido em jogo para todo sujeito, Lacan (1953b) aponta que
há, no seio da experiência analítica o que podemos denominar mito:
“O mito é o que confere uma fórmula discursiva a alguma coisa que não pode ser transmitida na definição da verdade, pois a definição da verdade não pode apoiar-se senão sobre si mesma, e que é na medida em que a fala progride que ela a constitui. A fala não pode apreender-se a si mesma nem apreender o movimento de acesso à verdade como uma verdade objetiva. Ela pode exprimi-la – e isto, de uma maneira mítica” (ibidem, p.10).
Diante desse pequeno fragmento, pode-se concluir que uma verdade é sempre meia e
contingente, restando verdadeira até ser interrogada e desconstruída, dando lugar a uma nova
verdade, na qual o sujeito se posiciona. Assim, se diante da falta de sentido, do impossível
colocado pelo real, o sujeito constrói seu mito particular, ele o sustenta como uma verdade
que marca sua realidade subjetiva. Por não encontrar palavras, explicações, o sujeito precisa
criar seu mito, a fim de seguir a narrativa de sua história, tamponando o furo a partir de uma
interpretação simbólica predominantemente imaginária. Da perspectiva psicanalítica, o mito é
a historinha, narrativa, recheio da fantasia, esta última operando como função constitutiva
para o sujeito, servindo como tela protetora do real.
Em seu artigo “O mito individual do neurótico”, Lacan (1953b) busca circunscrever o
que é mito:
“Se nos fiamos na definição do mito como uma certa representação objetiva de um epos ou de uma gesta que exprime de maneira imaginária as relações fundamentais características de um certo modo de ser humano em uma época determinada, se o
84
compreendemos como manifestação social latente ou patente, virtual ou realizada, plena ou esvaziada de seu sentido, desse modo de ser, podemos então certamente reencontrar sua função na própria vivência do neurótico” (ibidem, p.10).
O que Lacan nomeia de mito individual do neurótico é aquilo que se manifesta como
um roteiro fantasioso, apresentação de um pequeno drama que reflete as relações inaugurais
do sujeito e aponta para a constelação original que presidiu o nascimento do sujeito, seu
destino, as relações familiares fundamentais, marcadas por determinados traços, as quais
adquirem valor na medida em que o sujeito as apreende subjetivamente.
No exemplo ilustrado da cura xamanística percebe-se que o mito é tomado como
referência de um sistema no qual o universo da tribo está baseado, e é recebido pela tradição
coletiva, o que traz segundo Lévi-Strauss (1949) um sentimento de segurança ao grupo. Para a
psicanálise, ao contrário, o mito é considerado como o tesouro individual. Se no primeiro o
mito é transmitido ao sujeito pelo grupo, no segundo, o sujeito vem à análise falar do seu
mito, encontrar-se com ele, podendo reconhecê-lo como tal. “O doente atingido de neurose
liquida um mito individual, opondo-se a um psicanalista real; a parturiente indígena supera
uma desordem orgânica verdadeira, identificando-se com um xamã miticamente transposto”
(p.230).
O que Freud postulou como fundamento de toda neurose, isto é, o complexo de Édipo,
tem valor de mito. Se de um lado o Édipo é fundamento, posto que é fator estruturante na
constituição do sujeito, por outro comparece como mito. Fazendo um recorte do Édipo em sua
vertente mítica, dizemos que esse vem ser a história, narrativa a completar a falta de sentido,
vem recobrir o impossível em jogo no real, além de conferir significação ao sujeito. Isso se
coloca na medida em que a história de cada sujeito contará com a triangulação do par parental
enquanto função, o que permitirá do aspecto simbólico que se tenha uma representação na
constituição de seu lugar no mundo da linguagem. Porém, é também nessa relação a três que o
sujeito a se constituir experimentará a entrada na linguagem, por conseqüência, a perda de um
objeto que será para sempre perdido, o que coloca em jogo o fato de nunca ser por completo,
pois a plena satisfação será interditada. Vale ressaltar que o recorte feito aqui diz respeito à
neurose, o que não significa que não haja Édipo na psicose, porém guarda suas
particularidades, que não abordaremos nesse trabalho:
“No lugar da falta de um significante que diga do seu desejo, o sujeito neurótico fixa, como um clichê estereotípico, uma história, que passa a ter o valor de sua verdade subjetiva. Tal história, no caso da estrutura neurótica, corresponde à
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construção de seu mito individual. Lá, no lugar da falta real, que não pode ser apreendida pela palavra, o mito permite, ao sujeito, imprimir uma fórmula discursiva que vale como sua verdade subjetiva” (Bueno, 2002:115-116).
Diante do fascínio dos pós-freudianos pelo imaginário, Lacan empreendeu o trabalho
de desmontagem do edifício imaginário no qual se encontrava a psicanálise, o que o levou a
dizer no início de seu ensino: “Em suma, todo o esquema do Édipo deve ser criticado” (op.cit,
1953:18). Parece-nos que Lacan deu um passo além de Freud, ao incluir um quarto elemento
no mito de Édipo, qual seja, a morte. “...o que está em questão na estrutura quaternária é o
que constitui a segunda grande descoberta da psicanálise, não menos importante do que a
função simbólica do Édipo, a relação narcísica” (ibidem, p.18). O estatuto do quarto
elemento, nomeado por Lacan como morte imaginária, introduz uma mobilidade ao sujeito.
“É, com efeito, da morte imaginada, imaginária que se trata na relação narcísica. É igualmente
a morte imaginária e imaginada que se introduz na dialética do drama edipiano, e é dela que
se trata na formação do neurótico...” (ibidem, p.19). A relação narcísica, segundo Lacan, é a
experiência fundamental do desenvolvimento imaginário, de modo que uma análise deve ter
como direção intervir nisso que constitui o narcisismo, isto é, o imaginário, a fim de que o
sujeito possa fazer o trabalho de, ao desbastá-lo, tomar nova posição no real. Considerar a
condução de uma análise como tal é contrapô-la de modo radicalmente diferente da dos pós-
freudianos, visto que o Édipo para esses poderia servir exclusivamente para fins explicativos,
para simbolizar, encontrar representação para o sujeito de sua história, tal o mito para uma
tribo. O que Lacan vem acrescentar com sua releitura de Freud está para além da questão da
explicação, de encontrar significado, já que introduz o furo como aquele que aponta uma falta
na possibilidade de representar. Dessa forma, trazendo o real para o centro da clínica, Lacan
trabalha com a impossibilidade da representação, imprimindo como direção do trabalho que o
sujeito posicione-se no real pelo ato.
4.2. O Real e os Planetas: da episteme antiga à ciência moderna
Continuemos nossa investigação com o artifício de que Lacan lança mão em seu
Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-55), no qual
toma os planetas como termo de referência para mostrar o que os seres falantes não são.
Interroga por que os planetas não falam e, a essa pergunta, responde da seguinte maneira: “Os
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planetas não falam – primeiro, porque não têm nada a dizer – segundo, porque não têm tempo
para isto – terceiro, porque se os fez calar” (p.298). A interrogação lançada por Lacan e em
seguida sua resposta sugerem um interessante diálogo entre os campos da ciência e
psicanálise, apontando como o céu instiga a curiosidade do ser falante. Esse campo estudado
pela astronomia toca o real inalcançável, real este que também diz respeito a um dos registros
mais caros à psicanálise. Uma das razões atribuídas por Lacan ao fato de os planetas e estrelas
não falarem está justamente na condição real de sua dimensão. Nesse Seminário, define a
noção de real da seguinte forma: “O sentido que o homem sempre deu ao real é o seguinte – é algo que se reencontra no mesmo lugar, quer não tenha estado aí, quer tenha estado. Talvez este real se tenha movido, mas neste caso, a gente o procura em outro lugar, procura por que ele foi demovido, a gente também pensa que, por vezes, ele possa ter movido seu próprio movimento. Mas ele está sempre justo em seu lugar, quer estejamos lá, quer não estejamos lá. E nossos próprios deslocamentos não têm, em princípio, salvo exceção, influência eficaz sobre estas mudanças de lugar” (ibidem, p.370).
Para Lacan, a percepção de que havia coisas que estavam sempre no mesmo lugar, tal
como astros que se deslocam, mas são encontrados de novo lá onde estavam, configurou um
importante progresso para a humanidade. Essa percepção, segundo o autor, não foi dada ao
homem inicialmente pelos planetas e sim pelas estrelas, o que permitiu nomear constelações,
tais como as “Três Marias”, “Ursa Maior” entre outras:
“As estrelas são reais, integralmente reais, não há nelas, em princípio absolutamente nada que seja da ordem de uma alteridade para com elas próprias, são pura e simplesmente o que são. Que a gente as encontre sempre no mesmo lugar, eis uma das razões que faz com que elas não falem” (ibidem, p.300).
De acordo com Lacan, antes das ciências exatas, o homem já pensava o real como o
que está no mesmo lugar. “Sempre se reencontrará, na mesma hora da noite, tal estrela em tal
meridiano, ela tornará a voltar lá, ela está sempre justamente lá, é sempre a mesma” (ibidem,
p.371). A diferença, segundo Lacan, é que o homem da antiguidade acreditava que sua ação
tinha relação com a conservação da ordem. As cerimônias e ritos eram tidos como
indispensáveis para a manutenção das coisas em seus lugares, o que garantia o pensamento de
que o real não se desarranjaria. Referindo-se ao homem antigo, diz: “Ele não pretendia fazer
lei, ele pretendia ser indispensável à permanência da lei” (ibidem, p.371), o que aponta que o
rigor da noção do real, tal como enunciada por Lacan, lá estava.
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A perspectiva da ciência exata surgiu quando o homem percebeu que suas danças,
rituais, invocações, enfim, sua participação não influenciava a ordem das coisas. Foi quando
essa convicção antiga caiu, que uma abertura à nova visão se deu. “A partir do momento em
que o homem pensa que o grande relógio da natureza roda sozinho e continua marcando a
hora, mesmo quando ele não está aí, nasce a ordem da ciência” (ibidem, p.371). A referência
ao sistema solar, segundo Lacan, é essencial, visto que decifrá-lo foi um dos passos decisivos
para constituir tal ciência:
“Lacan constata que a origem da linguagem do cientista ou da apreensão do real pelo simbólico data desde o mapeamento feito, na Grécia, dos movimentos dos astros – o que se testemunha, por exemplo, pelo fato de o mapa do céu ter sido uma das primeiras formas de simbolização da humanidade” (Freire, 1996:36).
A ciência moderna surge, por um lado, inspirada pela antiga episteme e, por outro,
numa ruptura a certos aspectos dessa. A episteme antiga deriva do pensamento filosófico-
científico que se originou na Grécia. Pode-se dizer com Marcondes (1998), que é de uma
insatisfação com o tipo de explicação do real encontrada no mito que nasce o pensamento
filosófico-científico:
“... o pensamento mítico tem uma característica paradoxal. Se, por um lado, pretende fornecer uma explicação da realidade, por outro lado, recorre nessa explicação ao mistério e ao sobrenatural, ou seja, exatamente àquilo que não se pode explicar, que não se pode compreender por estar fora do plano da compreensão humana. A explicação dada pelo pensamento mítico esbarra assim no inexplicável, na impossibilidade do conhecimento” (op.cit, p.21).
Bem como Marcondes (1998), Vernant (1957) afirma que o nascimento da filosofia na
cidade grega de Mileto inaugura o começo do pensamento científico, caracterizado por uma
lógica racional, uma nova forma de reflexão positiva sobre a natureza. “Na escola de Mileto,
o logos ter-se-ia pela primeira vez libertado do mito como as escaras caem dos olhos do cego”
(p.349).
“O nascimento da filosofia aparece, por conseguinte, solidário de duas grandes transformações mentais: um pensamento positivo, excluindo toda forma de sobrenatural e rejeitando a assimilação implícita estabelecida pelo mito entre os fenômenos físicos e agentes divinos; um pensamento abstrato, despojando a realidade dessa força de mudança que lhe conferia o mito, e recusando a antiga imagem da união dos opostos em benefício de uma formulação categórica do princípio de identidade” (ibidem, p.358).
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A contribuição dos filósofos milésios, segundo Vernant, é de uma inovação radical.
Isso se coloca, pois um dos aspectos que menciona diz respeito à mudança da forma e do
conteúdo que se transmitia. O quadro da cultura grega arcaica era desenhado por uma
civilização fundamentalmente oral, ou seja, a educação nela se dava pela transmissão de
cantos poéticos de geração em geração. O conjunto do saber era armazenado nas narrativas
lendárias que funcionavam como enciclopédia dos conhecimentos comuns. “É nesses cantos
que se encontra consignado tudo o que um grego deve saber acerca do homem e do seu
passado – as façanhas dos heróis de outrora –, acerca dos deuses, das suas famílias, das suas
genealogias acerca do mundo, da sua figura e das suas origens” (ibidem, p.377). Assim, por
não serem cantores, poetas, narradores, os primeiros filósofos exprimiam em textos escritos o
fio de uma narrativa que não se desenrolava na linha da tradição, mas expunha uma teoria
explicativa, concernente a fenômenos naturais e à organização do cosmo. Eles buscavam os
princípios permanentes sobre os quais repousa o equilíbrio dos diversos elementos de que é
composto o universo, sem deixar que nenhum ser sobrenatural interviesse nos esquemas. A
estranheza de um fenômeno, no lugar de ser tratado na linguagem do mito, levando à
interpretação divina, levanta um problema. Vai-se do encantamento à interrogação:
“Do oral ao escrito, do canto poético à prosa, da narração à explicação, a mudança de registro corresponde a um tipo de investigação inteiramente novo; novo pelo objeto que designa: a natureza, physis; novo pela forma de pensamento que aí se manifesta e que é totalmente positivo” (ibidem, p.377).
Vernant (1957) sublinha que o surgimento desse pensamento está associado às
transformações de todas as ordens pelas quais a sociedade grega passou e que conduziram ao
advento da pólis, cidade. A abertura ao conhecimento, à ciência, ocorre, portanto, quando a
explicação do mundo natural é procurada com base em causas naturais, isto é, nele próprio e
não numa realidade misteriosa, num mundo divino. “E esta natureza, separada do seu pano de
fundo mítico, torna-se ela própria problema, objeto de discussão racional” (ibidem, p.356).
Essa tentativa caracterizou o pensamento dos primeiros filósofos desse período chamados pré-
socráticos, que, embora com diferenças, sustentavam alguns pontos comuns. Para Marcondes
(1998), o apelo à noção de causalidade por esses filósofos constitui característica central da
explicação científica, isto é, o estabelecimento de uma conexão causal entre determinados
fenômenos naturais. Em grande parte por esse motivo, “...consideramos as primeiras
tentativas de elaboração de teoria sobre o real como início do pensamento científico. Explicar
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é relacionar um efeito a uma causa que o antecede e o determina... é tomar um fenômeno
como efeito de uma causa” (op.cit, p.24).
Apesar de ambos, mito e ciência lançarem mão de um nexo causal, as referências a
que recorrem para a explicação causal diferem: o mito se refere a causas sobrenaturais, e o
pensamento filosófico-científico a causas naturais. Esse último rompe com o mito no que
tange ao caráter regressivo da explicação causal. Com isso dizemos que se explica sempre
uma coisa por outra, o que pode levar à busca de uma causa anterior, mais originária, até o
infinito, podendo tornar inválido o sentido de uma explicação, pois essa levaria ao
inexplicável, a um mistério como no pensamento mítico. Diante disso, surge a necessidade de
se estabelecer uma causa primeira, ou conjunto de princípios, como ponto de partida para o
processo racional. A fim de evitar a regressão ao infinito da explicação causal, os primeiros
filósofos postulam a existência de um elemento primordial. O primeiro desses elementos a ser
formulado foi a água, em seguida, outros princípios explicativos foram adotados como o fogo,
o ar e o átomo, além da doutrina dos quatro elementos, terra, água, ar e fogo. A importância
da noção de “arqué” (elemento primordial) está na tentativa desses filósofos em apresentar
uma explicação da realidade, através de um princípio básico que a permeie e unifique pela via
de um elemento natural. “Tal princípio daria precisamente o caráter geral a esse tipo de
explicação, permitindo considerá-la como inaugurando a ciência” (ibidem, p.26).
O que caracteriza esse pensamento cuja ciência teve sua origem é seu logos. “O logos,
é, portanto, o discurso racional, argumentativo, em que as explicações são justificadas e estão
sujeitas à crítica e à discussão” (ibidem, p.26). É esse logos que permite a passagem do mito à
razão, na medida em que é um discurso que não recorre aos deuses, ao mistério na descrição
do real. Ele se baseia numa explicação, em que as razões dadas não se apresentam como fruto
de inspiração ou revelação, mas: “simplesmente do pensamento humano aplicado ao
entendimento da natureza” (ibidem, p.26). Para Marcondes (1998), é o caráter crítico desse
saber que constitui um dos aspectos fundamentais desse pensamento. “As teorias aí
formuladas não o eram de forma dogmática, não eram apresentadas como verdades absolutas
e definitivas, mas como passíveis de serem discutidas, de suscitarem divergências e
discordâncias, de permitirem formulações e propostas alternativas” (ibidem, p.27). Na medida
em que são tomadas como construções do pensamento humano, e não de revelações divinas,
estavam abertas a reformulações e correções. A única exigência era de que na divergência a
nova hipótese fosse justificada e fundamentada, também sendo possível submetê-la à crítica.
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“A razão grega é a razão que permite agir de modo positivo, refletido, metódico, sobre os
homens, mas não transformar a natureza” (Vernant, 1957, op.cit, p.374).
Conforme Vernant (1957), dois traços caracterizam o novo pensamento grego: a
rejeição do sobrenatural na explicação dos fenômenos e a ruptura com a lógica da
ambivalência, a procura de uma coerência interna no discurso, definição rigorosa de
conceitos:
“A escola de Mileto não viu nascer a Razão; ela construiu uma Razão, uma primeira forma de racionalidade. Essa razão grega não é a razão experimental da ciência contemporânea, orientada para a exploração do meio físico e cujos métodos, instrumentos intelectuais e quadros mentais foram elaborados no curso dos últimos séculos, no esforço laboriosamente continuado para conhecer e dominar a Natureza” (Vernant, 1996:94).
O pensamento racional tende a eliminar os aspectos polares e ambivalentes presentes
no mito, ele renuncia a utilizar as associações por contraste, a acasalar e unir os opostos em
nome de um ideal de não-contradição e univocidade, afastando qualquer raciocínio que seja
ambíguo. Segundo Vernant (1957), a primeira condição do chamado pensamento racional é a
separação da natureza, dos deuses, do homem. Isso se coloca, na medida em que: “No mito, a
diversidade dos planos ocultava uma ambigüidade que permitia confundi-los. A filosofia
multiplica os planos para evitar a confusão. Através dela, as noções de humano, de natural, de
divino, melhor distintas, definem-se e elaboram-se reciprocamente” (p.358).
“A sua razão não é ainda a nossa razão, esta razão experimental de ciência contemporânea, orientada para os fatos e para sua sistematização teórica. Elaborou é certo uma matemática, primeira formalização da experiência sensível, mas, precisamente, não procurou utilizá-la na exploração do real físico. Entre a matemática e a física, o cálculo e a experiência, faltou a conexão; a matemática ficou solidária da lógica” (ibidem, p.373).
Essa nova racionalidade traz uma nova concepção de verdade, aberta, acessível a todos
e que fundamenta em sua própria força demonstrativa seus critérios de validade. A verdade
será correlata de um saber que se justifica no raciocínio. “É o rigor formal da demonstração, a
sua própria identidade em todas as suas partes, a sua congruência em suas mais longínquas
implicações, que estabelecem seu valor de verdade” (ibidem, p.380).
A transição das narrativas míticas e religiosas para o pensamento filosófico-científico
é caracterizada por um discurso em que: “tudo que se afirma deve ser submetido à discussão,
91
à argumentação, à justificação, preocupando-se assim com os critérios de verdade e de
justificabilidade” (Marcondes, 1998, op.cit, p 42).
De acordo com Oliveira (2006), a concepção de ciência criada pelos gregos
(Episteme), enquanto um saber racional que buscava compreender a complexa estrutura do
real define-se como saber teórico sobre a realidade. A episteme era um tipo especial de
conhecimento, que deveria ser marcado por critérios rigorosos, garantidores de validade. Dois
termos são centrais para a compreensão do conceito de saber epistêmico, quais sejam:
validade e demonstração. Outra marca da episteme é a necessidade. Pode-se resumir a
episteme como um tipo de conhecimento universal e necessário, isto é, uma forma de saber
cuja validade não varia nem com as mudanças do espaço, nem do tempo ou com as variações
que o mundo social, cultural e psicológico sofre. É preciso que seja um saber que possa ser
compreendido levando à aceitação de todos. No que tange à demonstrabilidade do
conhecimento epistêmico, Oliveira afirma que demonstrar é deixar os adversários de uma
idéia sem qualquer outra saída da perspectiva racional. Frente a uma demonstração, restariam
aos contrários à verdade apresentada, paradoxos que não se constituem em uma contra-
argumentação válida.
O cosmo dessa episteme antiga era o mundo natural e o celeste enquanto realidade
ordenada, harmônica, regida por uma ordem racional e hierárquica, tendo a causalidade como
lei principal, onde a razão significa existência de leis e princípios que regem a realidade. A
episteme era um saber teórico de caráter livre e gratuito, infundado, sem fins específicos,
caracterizando-se por uma atitude contemplativa, especulativa, dirigida a uma realidade
abstrata e ideal, desvinculada da prática. Somente no início do período moderno, nos séculos
XVI-XVII com Galileu Galilei e Francis Bacon, ciência e técnica serão pensadas interagindo,
sendo a técnica aplicação prática do conhecimento científico. Na visão grega clássica, ciência
e técnica eram radicalmente diferentes. Marcondes (1998) define episteme como verdadeiro
conhecimento em oposição a doxa, opinião. O que se verifica aí é a articulação, desde os
primórdios da ciência, entre os termos saber e verdade, ou seja, a ciência como apresentação
de um saber que se pretende verdade:
“É a racionalidade deste mundo que o torna compreensível, por sua vez, ao entendimento humano. É porque há na concepção grega o pressuposto de uma correspondência entre razão humana e a racionalidade do real – o cosmo – que este real pode ser compreendido, pode-se fazer ciência, isto é, pode-se tentar explicá-lo teoricamente” (Marcondes, 1998,op.cit, p.26).
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Da episteme antiga à moderna, uma revolução teve lugar. No entanto, se de um lado
houve rupturas, por outro é preciso reconhecer algumas filiações. De acordo com Marcondes
(1998) essa revolução sofreu influências de Platão pela valorização da matemática na
explicação do cosmo e dos pitagóricos que anteciparam o modelo heliocêntrico proposto por
Copérnico, mas é de Aristóteles a inspiração pela ênfase na pesquisa experimental e na
importância da investigação da natureza. Com isso, aponta que a ciência moderna resulta da
contribuição de diferentes pensadores, além dos citados, ao longo da história e: “em certos
aspectos, rompe de fato decisivamente com a ciência antiga, mas em outros inspira-se ainda
em teorias clássicas” (ibidem, p.151).
Para Marcondes (1998), uma das principais transformações do ponto de vista
metodológico científico ocorre por um lado quando se torna mais importante salvar os
fenômenos observáveis, isto é, representá-los adequadamente àquilo que a observação
astronômica e os cálculos matemáticos revelavam do céu, no lugar de abordá-los a partir de
uma visão teórica e por outro lado, quando a observação, experimentação e verificação de
hipóteses tornam-se os critérios decisivos, suplantando o argumento metafísico. A visão
aristotélica de cosmo não salvava os fenômenos observáveis, era estritamente teórico,
fundamentado numa hierarquia, considerando idéias de perfeição.
Segundo Koyré (2006), a revolução científica do século XVII tem como fundamento
os seguintes pontos: a validação do modelo heliocêntrico de Copérnico por Galileu,
substituindo o mundo geocêntrico; a formulação do universo infinito, indefinido, iniciado por
Nicolau de Cusa e Giordano Bruno, no lugar de um mundo fechado como todo finito e bem
ordenado no qual a estrutura espacial materializava uma hierarquia de perfeição e valor e a
geometrização do espaço, através da geometria euclidiana, isto é, extensão infinita e
homogênea considerada a partir daí como idêntica ao espaço real do mundo, ao invés do
espaço aristotélico, como conjunto diferenciado de lugares intramundos. O caminho do
mundo dos antigos aos modernos, ou como Koyré intitula seu livro, “Do mundo fechado ao
universo infinito”, levou pouco mais de cem anos. Do ponto de vista da idéia de ciência, o que
muda é a valorização da observação e do método experimental, em oposição a uma ciência
contemplativa dos antigos, além da tentativa de formalização pela matematização da natureza:
“A ciência ativa moderna rompe com a separação antiga entre a ciência (episteme), o saber teórico, e a técnica (téchne), o saber aplicado, integrando ciência e técnica e fazendo com que problemas práticos no campo da técnica levem a
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desenvolvimentos científicos, bem como com que hipóteses teóricas sejam testadas na prática, a partir de sua aplicação na técnica” (Marcondes, 1998, op.cit, p.151).
A invenção do primeiro instrumento científico por Galileu, o perspicillum (telescópio),
permitiu a descoberta de novos planetas, estrelas, montanhas na lua, até então jamais
alcançados a olho nu. “Poder-se-ia mesmo dizer que não só a astronomia, mas também a
ciência como tal, entraram, com a invenção de Galileu, em uma nova fase de seu
desenvolvimento, a fase que poderíamos chamar de instrumental” (Koyré, 2006:82). Só com
Newton, praticamente no século XVIII, é que se tem a formulação de uma ciência físico-
matemática plenamente elaborada em um sistema teórico. A ciência moderna opera
transformações tanto em relação à visão do cosmo quanto aos aspectos metodológicos.
“Enquanto o homem medieval e o antigo visavam à pura contemplação da natureza e do ser, o
moderno deseja a dominação e a subjugação” (ibidem, 2006:5).
Para Marcondes (1998), o conflito entre os dois modelos de ciência - o antigo e o
moderno-, suscitou no século XVI questões acerca dos postulados científicos, pois pensadores
céticos levantavam dúvidas sobre a possibilidade de o homem, através de qualquer teoria
científica, conhecer de forma certa e definitiva o real. Isto se colocava na medida em que
teorias falsas tinham sido tomadas durante vinte séculos como verdadeiras, o que interrogava
sobre a veracidade de teorias consideradas verdadeiras em tal época. Como ter certeza de estar
livre do erro? Esse questionamento mergulhou o homem num mar de incertezas. “Descartes
assume então a missão de fundamentar ou legitimar a ciência, demonstrando de forma
conclusiva que o homem pode conhecer o real de modo verdadeiro e definitivo” (p.163).
Através do cogito, encontra uma certeza irrefutável: na medida em que se pensa, as coisas e o
próprio pensador existem. Inaugura assim o método científico, de fazer o real ser apreendido
pelo simbólico:
“Ora, se o objetivo de Descartes é fundamentar a ciência então é necessário encontrar uma ponte entre o pensamento subjetivo e a realidade objetiva, entre o mundo interior e o mundo exterior. Só poderá haver ciência quando o pensamento puder formular leis e princípios que expliquem como o real funciona” (ibidem, p.169).
Nesse método, toda proposição deve ser rejeitada caso haja o menor motivo de dúvida,
a fim de se chegar ao verdadeiro conhecimento. Descartes encontra na dúvida o fundamento
para construir o edifício do saber:
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“a duvida é o que oferece à intuição uma espécie de critério negativo de evidência: quanto menos eu puder duvidar de um conhecimento, mais ele me parecerá evidente, ou seja, verdadeiro, então, um conhecimento absolutamente indubitável será absolutamente evidente e verdadeiro para mim” (Baas e Zaloszyc, 1996:7).
Essa pequena consideração acerca da passagem do mito à episteme antiga e depois à
ciência moderna revela dentre muitos aspectos que vieram com a ciência moderna uma
mudança na abordagem do real. De modo mais radical, talvez possamos situar a emergência
de um novo real, infinito, aberto, que exige ser tratado com precisão, observação e
verificação. Afirmar que o real existe e interroga o homem desde sempre só é possível a partir
da ciência moderna, na medida em que, ao formulá-lo como tal, permite rever a forma como
era tratado até então. É com a ciência moderna que podemos dizer que o simbólico é furado,
na medida em que o real foi reconhecido como não-todo simbolizável. Diante da falta de
saber sobre o real, a ciência busca fazer um procedimento de mestria a fim de simbolizá-lo,
tornando-o inteligível e verificável. Na medida em que o saber instalado pela ciência torna
simbolizado o real, produzindo efeitos reais, passa a tratar sua significação como verdade,
como traduzindo uma verdade:
“... até Descartes o fundamento do sujeito e da realidade é “metafísico”, isto é, um discurso que não se reconhece como tal e que se supõe a tradução mesma do real enquanto perfazendo uma totalidade. É obra de Descartes, através da dúvida metódica, esse esvaziamento da metafísica enquanto essa significação absoluta, a qual toda produção humana e todos os entes tinham que encontrar consistentemente seu lugar. Em seu lugar Descartes propõe uma imbricação entre Discurso e Método; de um lado, o Discurso relativiza-se, isto é, não afirma mais uma verdade última, mas de outro, a verdade não perde poder de ordenar o discurso pois é para identificar sua incidência que temos o Método”(Leonel.F.1996:137).
É pela exigência de coerência de simbolização própria à ciência, pela precisão que o
antigo mundo fechado, mais ou menos explicado pela metafísica, torna-se infinito. Essa
exigência requer critérios rigorosos, diante do que muitas vezes não há explicação.
Esbarrando nesse ponto, a ciência constata o real puro como impossível, enquanto aquele que
interroga o simbólico, que, ao mesmo tempo em que convoca a buscar significação, topa com
sua falta. A ciência, portanto, o inaugura como tal, na medida em que, apesar de o real estar
desde sempre presente, ao abordá-lo pelo simbólico como não-todo, o estabelece de uma nova
forma. É no encontro com o real que a ciência moderna busca tentar contorná-lo, a partir de
um saber que dele dê conta, operação que ameniza o efeito por ele provocado. “Cai por terra,
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portanto, a definição clássica do conhecimento científico como certeza absoluta, como
verdade universal e necessária” (Marcondes, 1998, op.cit, p.173).
“Podemos considerar que a grande contribuição cartesiana à filosofia, do ponto de vista da questão do método e da fundamentação do conhecimento, é o germe da atitude crítica introduzida pela dúvida, que dá portanto início ao desenvolvimento da longa reflexão sobre os limites do conhecimento humano e ao questionamento da concepção tradicional de ciência que caracteriza a filosofia moderna” (ibidem,p.173).
Considerando que, para o ser falante, o mundo, a realidade é uma realidade construída
através da linguagem, tudo o que surge como sua formulação, independente do campo, é
necessariamente atravessado pelo simbólico. Assim, se o simbólico é o recurso que o sujeito
dispõe para estar no mundo, logo, é ele que indica, dá sinal ao sujeito daquilo que ele não
sabe. O real, tal como constatado pela ciência, isto é, como aquele que enquanto puro é
impossível de ser capturado, só se apresenta através do simbólico, na medida em que é a
impossibilidade de abordagem do simbólico, isto é, seu furo, que dá notícias da existência do
real como resistente à significação. No que o sujeito experimenta a falta de pelo menos um
significante que conceda uma significação, está aí afetado pelo real. De outro lado, pode-se
dizer que é justamente essa experiência da falta de representação que convoca, instala o
movimento de busca, de demanda de saber, significante que possa vir a fazer significação
para o sujeito. É, portanto o real que faz de um lado resistência ao simbólico que de outro, por
esse motivo o coloca em marcha, em movimento. O sujeito frente ao real passa a demandar
significante que se enlace com outro significante a fim de numa rede construir algum saber
possível que permita suportar minimamente a falta como experiência do humano, diante do
que todo sujeito está despreparado.
No que instala essa articulação entre simbólico e real, a ciência lança luz ao real como
impossível de abarcar e ao funcionamento simbólico tal como Lacan formulou. Só se pode ver
o simbólico por causa da ciência, visto que o convoca a fim de tentar circunscrever o real. No
que esbarra com o furo, torna a demandar mais significantes para tal tarefa, evidenciando seu
caráter descompleto.
O fato de planetas e estrelas estarem sempre no mesmo lugar remetendo assim a sua
dimensão real, justifica em parte o porquê de não falarem. Mas para Lacan: “Seria, no
entanto, um engano, crer que sejam tão mudos assim” (1954-55: 301), de modo que afirma
que a ciência os fez calar e que isso se mantém. Lacan atribui à ciência, mais especificamente
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a Newton, a operação de fazê-los calar definitivamente. O que Newton, segundo Lacan, fez
foi uma apreensão do real pelo simbólico, reduzindo-o a uma determinada linguagem, de
modo a que essa linguagem passa a ser o acesso a esse real, isto é, fala do real. Na medida em
que essa linguagem passa a representar algo da ordem do real, ela ao mesmo tempo em que
cala o real, o faz falar unicamente através de sua própria “língua”. A razão verdadeira da
mudez de estrelas e planetas é que foram calados, transformados em astros, isto é,
circunscritos numa determinada linguagem científica que bastou em parte, para que mais
sobre eles se perguntasse:
“Só se fica definitivamente seguro que os planetas não falam a partir do momento em que se lhes arrolhou o bico, ou seja, a partir do momento em que a teoria newtoniana forneceu a teoria do campo unificado sob uma forma que foi, desde então, completada, mas que já era perfeitamente satisfatória para todos os espíritos humanos. A teoria do campo unificado está resumida na lei da gravitação, que consiste essencialmente no seguinte – há uma fórmula que mantém tudo isto junto, numa linguagem ultra-simples que comporta três letras” (ibidem, p.302).
Ao criar o campo unificado, isto é, uma certa linguagem para circunscrever o real,
Newton o reduziu a tal linguagem fazendo calar qualquer manifestação ou questão que daí
adviesse. Diante da constatação desse real, a ciência se esforça em dominá-lo
circunscrevendo-o tanto quanto possível sob a forma de teoremas, fórmulas, axiomas, o que
traz como efeito calá-lo. O objetivo da ciência é esvaziar, reduzir o real, a uma fórmula,
número, ao discurso, fazendo crer que ele cabe nela:
“Para Lacan, através de Koyré, essa revolução da ciência, que pertence a Galileu e Descartes, consistiu na delimitação do real pelo simbólico, pelas suas fórmulas que atingem o mundo por seus ideais científicos de formalização, ou seja, mundo teorizável em seu ideal de um saber completo” (Freire, 1996, op.cit, p.35).
Pode-se então dizer que o conceito de real em psicanálise encontra seu ponto
originário no real tal como abordado pela ciência. Referindo-se a Lacan em “Radiophonie”,
Freire (1997) observa que foi a ciência que constatou que o real puro, em si, é impossível e
que só existe realidade no sentido daquilo que sob o real construímos pelas fórmulas. “... para
a ciência o real é impossível, porque a fórmula que o cerca não o esgota completamente em
seu devir” (p.79). É impossível tocar o real puro, mesmo através de letrinhas, a ciência o
apreende por via da linguagem:
97
“O joguinho simbólico a que se resumem o sistema de Newton e o de Einstein tem, afinal, pouquíssimo a ver com o real. Esta ciência, que reduz o real a umas poucas letrinhas, a um pacotinho de fórmulas, aparecerá sem dúvida, com o recuo dos tempos como uma espantosa epopéia, e talvez também se tornará delgada como uma epopéia de circuito um tanto curto” (Lacan, 1954-55, op.cit, p.373).
O real, tal como Lacan o formulou, é aquilo que escapa ao simbólico, é o sem sentido.
É esse o real da ciência, isto é, aquele que remete ao mesmo, homogêneo, que causa um não-
senso, posto que irredutível à linguagem. Essa impossibilidade de tocar o real, ou seja, sem a
mediação da linguagem e mesmo através dela, tomando que ele escapa, foi uma constatação
da ciência, que demonstrou que o real só se presentifica pelo simbólico, pelas fórmulas
simbólicas que, no limite, podem se reduzir a letrinhas. Foi a partir da ciência que se fez
possível um acesso aos objetos reais, tais como planetas e estrelas, que, através da construção
de uma linguagem conceitual, ganharam nova existência simbólica. Isso implica dizer que a
ciência testemunha que há um real inefável em jogo para todo sujeito, já que da passagem do
real ao simbólico algo não pode ser apreendido tal como é, algo se perde quando da captura
pela linguagem.
Na medida em que utiliza uma linguagem específica, a ciência através de fórmulas
criou um mundo ideal, teórico, resumido a letrinhas, buscando atingir o mundo real, empírico.
No entanto, apesar do rigor, os mundos não se equivalem, o que se percebe é a
impossibilidade de alcançar o mundo sensível, perceptível. “Impossibilidade que se constata
no fato de, por exemplo, nenhum homem ter testemunhado, em nenhum lugar empírico e em
tempo algum, um corpo em movimento, se prolongando ad infinitum, tal como postula a lei
da inércia” (Freire,1996, op.cit, p.27). O mundo criado tornou-se impossível, pois a estrutura
simbólica não alcança o mundo sensível. A própria ciência faz a constatação da
irredutibilidade do mundo real frente ao mundo ideal, simbolizável. Essa irredutibilidade
demonstra que: “a realidade simbólica exige a morte da coisa, ou melhor, de que para que um
organismo indiferenciado se torne simbólico, isto é, nomeado, uma parte desse inanimado, da
coisa, deve-se perder” (ibidem, p.18). Ainda nessa via, Vernant (1957) referindo-se a
matemática aponta:
“Se esta disciplina pode tomar a forma de um corpo de propostas deduzidas inteira e exatamente a partir de um número restrito de postulados e de axiomas, é porque ela não visa as realidades concretas nem mesmo essas figuras que o geômetra revela no curso da sua demonstração. Ela tem por objetivo puros conceitos, que ela própria define, e cuja idealidade, a perfeição, a objetividade, a plena inteligibilidade – está ligada ao seu não-pertencer ao mundo sensível” (p.381).
98
Por outro lado, a apreensão do real, por algumas fórmulas, aponta um efeito no real o
que as torna saberes verdadeiros, ou verdades, até prova contrária. E essas verdades, enquanto
perduram, organizam a vida dos sujeitos. Como ilustração, temos a descoberta do movimento
de rotação da terra, que determina a duração de um dia, já que a terra leva vinte e quatro horas
para rodar em torno dela mesma. Enquanto resta como verdade, esse é o tempo do dia em que
os sujeitos balizam suas vidas e compromissos.
Verifica-se que é sempre e somente a partir da linguagem que algo pode ser abarcado,
apreendido, e que a coisa como tal, o real puro, já não o é mais, pois no momento em que é
nomeado passa a ter sua existência reduzida pela linguagem. E no que a linguagem apreende,
a coisa em si se perde como tal. No tocante ao universo humano, nada é puro em si, já que
necessariamente é permeado pela linguagem, única forma de fazer o universo existir. Isto
implica dizer que o universo humano é o da linguagem, e o que através dela se tenta
apreender, mas encontra barreira, aponta sua impossibilidade de tudo abarcar. Em outras
palavras, aponta a parcialidade do simbólico. Como diz Lacan, quanto aos planetas: “A
questão de saber se eles falam não fica resolvida pelo simples fato de eles não responderem.
Não se está sossegado – algo pode, um dia, nos surpreender” (op.cit, 1954-55:303).
A constatação de que o real puro é inatingível pertence tanto à ciência quanto à
psicanálise, que, ao tomarem o universo humano como permeado pela linguagem, atestam que
não há universo possível ao ser falante fora da linguagem. A linguagem utilizada pela ciência
moderna como modo de apreensão do real é a formalização matemática:
“A formalização não é outra coisa senão a substituição, a um número qualquer de uns, disso que se chama uma letra. Pois, que vocês escrevam que a inércia é mv2/2, o que quer dizer isto? – senão que, qualquer que seja o número de uns que vocês coloquem sob cada uma dessas letras, vocês estão submetidos a um certo número de leis, leis de grupo, adição, multiplicação, etc.” (Lacan, 1972-73:177).
Esta lei é antes de tudo lei de linguagem, e como diz Galileu: “A natureza é um livro
escrito em linguagem geométrica; para compreendê-la é necessário apenas aprender a ler esta
linguagem” (apud, Marcondes, op cit, p.152). Na medida em que pretende dominar o real,
esgotá-lo pela linguagem, a ciência instala, através do simbólico, um saber sobre o real. Em
outras palavras, instaura o saber na sua dimensão de significante. Por exemplo,
“...encontramos as três letrinhas da fórmula da gravitação, (f = m.a) que instauram um saber
sobre qualquer movimento entre qualquer corpo, em qualquer época” (Freire, op.cit, 1996,
p.25).
99
É na ciência tal como isolada por Koyré que Lacan se baseia. Segundo Koyré há um
corte entre a episteme antiga e a ciência moderna, galileana, cujo modo de operação é a física
matematizada. Ao matematizar os objetos, a ciência galileana o despoja de suas qualidades,
buscando atingi-lo em seu status real. A operação de depurar e desqualificar o objeto de seus
atributos, a fim de apreendê-lo pela matematização, realiza a tentativa de chegar o mais
próximo do puro objeto, do real puro. Para Milner (1996), o que há de moderno na ciência é o
rompimento com a noção de episteme:
“... o que há de episteme num discurso é somente a reunião daquilo que esse discurso apreende de eterno e de necessário em seu objeto. Daí decorre que um objeto se presta tanto mais naturalmente à episteme quanto mais facilmente ele deixa revelar o que nele o faz eterno e necessário – de modo que não há ciência do que pode ser diferente do que de fato é, e que a ciência mais acabada é a ciência do mais eterno e do mais necessário objeto” (Milner, p.39).
Milner (1996) destaca dois discriminantes que, segundo Koyré, distinguem uma
ciência galileana. No primeiro, Koyré afirma ser uma ciência galileana aquela que combina
dois traços: a empiricidade e a matematização. Koyré admite que todo existente empírico
pode ser tratado por alguma técnica e que a matematização é o paradigma de toda teoria.
Desse modo, pode-se dizer que a ciência moderna, galileana, é uma teoria da técnica, ou seja,
a matematização constitui seu modelo de teoria para abordar a técnica, e a técnica é uma
aplicação prática da teoria. Deste discriminante, Milner deduz que a ciência tem por objeto o
conjunto do que existe empiricamente, isto é, o que se pode chamar universo. E a ciência o
trata com bastante precisão, através da matematização. Segundo Marcondes (1998), o
empirismo é uma forma de saber derivado da experiência sensível e de dados acumulados
com base nessa experiência, permitindo a realização de fins práticos.
O segundo discriminante estabelece que, na medida em que a ciência toma o empírico
por objeto, a técnica pode e deve lhe oferecer os instrumentos, já que, enquanto literal e
precisa, a ciência pode se valer dos instrumentos fornecidos pela técnica. A ciência se torna
teoria da técnica e a técnica aplicação prática da teoria. “O universo da ciência moderna é a
um só tempo e pelo mesmo movimento um universo da precisão e um universo da técnica”.
(Milner, 1996, op.cit, p.38). A combinação da matematização dos caracteres, na tentativa de
precisá-los melhor, constitui a inovação da ciência.
A eleição da matemática como modelo para a ciência herdada dos gregos deriva da
postulação da episteme antiga, do necessário e eterno, já que figuras e números guardam em si
100
a propriedade de não ser outra coisa do que são, apresentando-se sempre da mesma forma. Os
números são uma via de acesso ao mesmo, ao que está sempre no mesmo lugar, aludindo
assim ao real:
“A peripécia não reside, portanto no fato de a ciência moderna se tornar matemática; a ciência antiga já o era e, sob certos aspectos, a ciência moderna o é menos que ela. Mais que a matemática, é preciso dizê-la efetivamente matematizada. Da matematização a mola propulsora primeira é o número, como letra, e, portanto o cálculo – não a boa forma das demonstrações. Para os gregos, a ciência é matemática, que não é matematização, não concorre o número na medida em que ele permite a conta, mas aquilo que faz com que o número seja um acesso ao mesmo em si; entendamos o logos como demonstração necessária” (ibidem, p.44).
A ciência moderna rompe com o eterno e necessário, pois mesmo na tentativa de
matematizar inclui o empírico que escapa às noções da episteme, admitindo que eterno é o
que ele não é. A ruptura moderna requer que a matemática, em alguma medida, deixe de estar
ligada ao eterno e ao perfeito, onde os números não mais funcionarão como números, chaves
de ouro do mesmo, mas como letras, e como tais devem apreender o diverso no que ele tem
de incessantemente outro. O conceito de letra, referido no segundo capítulo é aqui assinalado
para registrar sua aproximação ao real, na medida em que esvazia o significante de sua função
de significar. Além disso, o fato de a ciência lançar suas proposições como passíveis de serem
refutáveis aponta para a inclusão da noção de descompletude.
O real, tal como colocado pela ciência moderna, explode com as noções de perfeição,
harmonia, valor, sentido e limite da episteme, em que supostamente o saber dava conta do
mundo. Diante de uma cosmologia harmônica, ordenada, onde tudo tinha o seu lugar, tal
como na “física de Aristóteles onde as coisas ocupam um lugar que lhes é próprio, um lugar
que corresponde à sua natureza em um mundo bem ordenado” (Freire, op. cit, 1996:34), o real
aponta um furo desse universo fechado, perfeito, criando uma nova visão, agora infinita, ou
seja, vislumbrando uma parcialidade do saber adquirido. É nessa perspectiva que o sujeito
emerge, como passível de ser representado parcialmente pelo simbólico. Milner (1996) aponta
duas proposições que, segundo ele, podem ser depreendidas de Freud e Lacan: “o imaginário
como tal é radicalmente estranho à ciência moderna e a ciência moderna, enquanto literal,
dissolve o imaginário” (p.47). Considerando que a episteme antiga em seu tratamento do real
recorre a um simbólico que se apresenta organizado, ordenado, fechado, poderíamos dizer
101
que, se por um lado rejeita o imaginário do mito, ou seja, o mundo divino, por outro instaura
um simbólico suposto total, sem furos, onde tudo encontra seu lugar?
Referindo-se à ciência galileana, Milner coloca:
“ela consiste, em primeiro lugar, no fato de que a matemática, na ciência, possa soletrar todo o empírico, sem levar em conta nenhuma hierarquia do ser, sem pôr em ordem os objetos numa escala que vai do menos perfeito – intrinsecamente rebelde ao número – ao mais perfeito, quase integralmente numerável”(ibidem, p.43).
Apesar de reconhecer o real como impossível, visto que é inerente à sua constituição, a
ciência parte do pressuposto de que é possível simbolizar o real, de vez que se ainda não foi
possível, é que se precisa caminhar mais, desenvolver novas pesquisas etc, fato que evidencia
uma forma histérica na lida com o real. Ao reconhecer o real como tal, pode-se dizer que a
ciência inaugura o simbólico como não-todo, ou seja, na medida em que há muitas perguntas
sem respostas, constata uma falta no simbólico, ainda que a entenda como passível de ser
respondida. Do ponto de vista da psicanálise, mais precisamente seu ponto de partida inclui
um impossível que diz respeito à simbolização total do real. É também pelo simbólico que vai
tratar do real, mas tendo como fundamento um simbólico não-todo, visto que é um fato da
estrutura discursiva. Da operação da ciência, haverá sempre um resto que sobra do qual ela
nada quer saber, resto esse a que a psicanálise se volta posto que se articula ao sujeito:
“Porém, se, tanto para a psicanálise quanto para a ciência, a primazia do significante sobre a realidade é uma constatação – uma vez que não há mundo senão através da linguagem – quanto à irredutibilidade do real ao simbólico, elas se distinguem: enquanto para a ciência essa irredutibilidade deve ser superada em nome de um conhecimento possível e mais completo sobre o real, para a psicanálise que não tem uma Weltanschauung, essa irredutibilidade é imanente ao ser falante, ao ser sexuado” (Freire, 1996, op.cit, p.27-28).
4.3. O Real e o Sujeito:
A operação da ciência de tentar delimitar o real pelo simbólico incide no campo do
humano, donde o cogito surge como produto. O “penso, logo sou” equivale à simbolização
possível do sujeito, em outros termos, à única forma de se fazer representar, pelo significante.
De um lado a ciência viabiliza a formulação do sujeito, de outro, o exclui da cena. É
justamente por se voltar ao resto da ciência, àquilo que nesse campo fica esquecido, que a
psicanálise passa a estabelecer um laço, passa a se encontrar com a ciência, ainda que dela a
102
ciência nada queira saber. Esse encontro pode se dar nos campos férteis de onde essa pesquisa
teve seu início, o hospital, o posto de saúde, locais em que ciência e psicanálise esbarram no
cotidiano. E mesmo na clínica particular, onde no discurso de um sujeito, pode-se escutar
diferentes falas que remetem à inclusão ou não daquilo que diz respeito ao sujeito. No
entanto, a resultante desse encontro, que podemos qualificar de “faltoso”, não é uma adição,
posto que não se trata de a psicanálise vir completar o saber da ciência, mas por ser um
discurso que insere a descompletude como constatação, fazer diferença e, paradoxalmente,
acrescentar pela falta.
O real da ciência interessa à psicanálise na medida em que se relaciona com o sujeito
do qual trata, pois o real afeta o sujeito. O real como resto da ciência, enquanto não-todo
dominado, retorna, e é a clínica psicanalítica que pode lhe dar lugar. Apesar de a ciência
insistir na tentativa sempre mais e mais rigorosa de calar o real, buscando reduzi-lo todo ao
simbólico, é esse real que, ao retornar sempre no mesmo lugar escapando ao sentido, abala o
sujeito. Isso implica dizer que a ciência falha em sua proposta, já que, o real não-todo
absorvido pelo simbólico sobra. Proposta essa que para a psicanálise é da ordem do
impossível, na medida em que o simbólico, por estrutura é não-todo, tornando essa tarefa
inviável. É como resto que o real comparece, causando o sujeito que frente a ele responde de
diversas formas. É o sujeito, portanto, que dá noticias do real, que face à falta de recurso
simbólico aparece.
O sujeito excluído da operação da ciência é retomado como protagonista da cena
psicanalítica, de modo que é à psicanálise que concernem suas dores, questionamentos,
sofrimento, dúvidas, enfim, o que diz respeito à subjetividade, na relação com o real que lhe
causa. Ainda que o sujeito se depare com uma gama de discursos que oferecem explicações
para lidar com o real, somente o discurso psicanalítico dá lugar ao real tal como se apresenta,
tendo como direção que o sujeito se posicione a partir daí.
Enquanto resto da ciência, o real continua a provocar questões subjetivas inquietando
o sujeito, que frente a isso produz interrogações. O real interroga o sujeito sobre o lugar que
ocupa, sobre sua identidade, os limites de seu corpo, sua existência, etc... “É
incontestavelmente real que estrela não tem boca, mas ninguém nem sonharia com isto, no
sentido próprio do verbo sonhar, se não houvesse seres providos de um aparelho de proferir o
simbólico, isto é, os homens para fazer com que se repare nisto” (Lacan, 1954-55, op.cit,
p.300). Lacan aponta que o que há de singular ao ser humano é o recurso simbólico, de modo
103
que apenas a partir dele, somente o homem pode lançar questões tais como: O que as estrelas,
os planetas significam? Qual o sentido do mundo? De onde viemos, para onde vamos? Por
que os planetas não falam? É ao ser falante que esse tipo de interrogação acomete diante do
que o sujeito não encontra resposta, portanto, terá de se ver com isso. Estas são perguntas que
a ciência abafou, e a psicanálise, ao acolher o sujeito afetado por elas, dá espaço para que a
partir daí um trabalho tenha lugar. Como ilustração, selecionamos um fragmento do
atendimento clínico de M, 17 anos que, no ano de prestar o vestibular, se queixa de não
conseguir aprender matemática, ele diz: - “fico observando a turma, olhando para o quadro e
não entendo como conseguem aprender aquelas fórmulas malucas, nunca entendi porque dois
mais dois são quatro, não entra na minha cabeça, de onde saiu isso?”. É esse sujeito que sofre,
interroga e não encontra uma resposta satisfatória, que é afetado pelo real que a psicanálise
recolhe, com a proposta de trabalhar acerca disso.
Apesar da constatação de que: “a ciência opera sobre um suposto real puro
transformando-o em pura fórmula, foracluindo seu sentido para o sujeito e fazendo calar as
estrelas” (Freire, 1996, op cit, p.37), o real retorna, colocando questões. Pode-se dizer que na
medida em que a ciência não encontra algumas respostas, exclui as perguntas que lhes
correspondem, excluindo o sujeito que as faz. Isso implica o fato de que a ciência exclui o
sujeito já que, enquanto o real o afeta e o faz questionar, não lhe interessa, pois tem como
proposta estabelecer saberes objetivos, sem desvios postos pela subjetividade. Referindo-se à
psicanálise Quinet (2000) diz:
“Enquanto para esta o real em jogo é relativo à castração e à falta no Outro, o real para a ciência é tudo aquilo que ainda não foi simbolizado por seu discurso. O projeto da ciência de colonizar todo o real com seus significantes lhe confere um aspecto de loucura ao rejeitar de sua esfera qualquer subjetividade” (p.151).
Ao tomar o real como irredutível ao simbólico, a psicanálise oferece aos sujeitos, que
desejem atravessar o processo, uma possibilidade de fazer algo com isso que os afeta. No
lugar de adiar o encontro com o real, negá-lo, imaginarizá-lo, buscar explicações que
tamponem sua dimensão, entre outras formas que apontam para um não querer saber do
sujeito acerca desse, a psicanálise pretende que o sujeito depare-se com a impossibilidade
trazida por esse, cujo efeito é de tomar posição frente à castração. Ao se debruçar sobre esse
sujeito sob o qual o real afeta, a psicanálise a partir da clínica promove condições para o
sujeito que é levado a investigar sobre a significação de suas questões encontre um espaço de
104
trabalho. Ainda que a significação que o sujeito possa vir a encontrar seja nenhuma, já que o
real resiste à significação, é no encontro com essa falta que o sujeito tem a chance de mudar
de posição frente ao real, ou melhor, no real.
Pode-se dizer que a ciência calou o que é real não porque supunha que o real falava,
mas na medida em que suscitava questões aos sujeitos, como aos cientistas. Desta forma,
fazer calar os planetas é calar o efeito do real nos sujeitos, em última instância, calar o sujeito.
Foi esse real constatado pela ciência que a levou a simbolizá-lo, no mesmo ato excluindo o
sujeito.
A psicanálise retoma as noções de sujeito e real, tais como fundadas na ciência,
entretanto, ao tomar o simbólico como não-todo a partir do real que resiste à significação,
subverte o sujeito que passa a ser sujeito do inconsciente. Em outras palavras, um sujeito
marcado pelo inconsciente que, enquanto não-todo estruturado como linguagem, afeta o
sujeito no real. Pode-se dizer que a psicanálise dá lugar à verdade do sentido para o sujeito
que a ciência exclui, já que ela busca calar a falta de sentido do real. Referindo-se ao
esquecimento da dimensão de verdade na qual a ciência se constituiu, Lacan comenta: “a
ciência esquece as peripécias nas quais ela nasceu, no momento em que ela se constituiu”
(1966a:869).
“O real é a resposta da psicanálise à foraclusão da verdade do sujeito, operada pela ciência. Se a ciência se constitui sob uma forma idealizada de uma Weltanschauung, sob uma estrutura de linguagem que exclui o sujeito, cabe à psicanálise tratar o real excluído, que retorna. É portanto, o sujeito foracluido pela ciência que retorna à psicanálise. Retorno que se presentifica tanto nos atos falhos (chistes,esquecimentos etc.) quanto, de uma maneira mais radical, no próprio real – que escapa à linguagem” (Freire,1996, op.cit, p.33).
Considerando a marca real que constitui o sujeito, pode-se colocar a hipótese de que o
sujeito na ciência é excluído para que a operação de tentativa de totalizar um saber verdadeiro
se dê, já que somente o sujeito pode lançar novas interrogações sobre o mundo, na medida em
que sob ele o real retorna, pedindo escuta. Disso resulta que o sujeito excluído da ciência é o
mesmo que retorna sob a forma de real, sob forma inconsciente.
Se psicanálise e ciência coincidem no interesse pelo real irredutível, que retorna ao
mesmo lugar, impossível, sem-sentido, a primeira se distingue da segunda, já que o real que
concerne à psicanálise é também e, sobretudo, aquele que toca o sujeito. “Trata-se de um real
105
que interessa ao ser falante, não porque suscite a questão do sentido pelas fórmulas que o
calam, mas porque concerne ao sujeito, frente à verdade do seu desejo” (ibidem, p.37).
Se o mundo antigo organizava-se nos moldes de uma ordenação em que tudo tinha um
lugar, poderíamos dizer que o mesmo se passava no tocante ao sujeito, isto é, também o
sujeito encontrava no laço social feito pela cultura um lugar simbólico no qual havia respostas
e atributos para si? Parece que podemos responder afirmativamente a essa questão, tendo em
vista nossa pesquisa, o que permite dizer que o procedimento da ciência moderna de romper
com um mundo finito, ordenado, incide também no campo humano de modo a desqualificar o
sujeito de seus atributos:
“Isso, por seu turno implica o abandono, pelo pensamento científico, de todas as considerações baseadas em conceitos de valor, como perfeição, harmonia, significado e objetivo, e finalmente a completa desvalorização do ser, o divórcio do mundo do valor e do mundo dos fatos” (Koyré, 2006, op.cit, p.6).
Havia uma costura na linguagem que gerava determinada conotação, significação e que
sofre um rompimento a partir do real que emerge com a ciência moderna como efeito da
dúvida e interrogação de qualquer postulado insustentável. Este corte pode ser evidenciando,
por exemplo, com a mudança radical que se produziu em relação ao problema da queda dos
corpos. “É muito diferente pensar que os corpos caem porque o lugar natural daquilo que é
pesado, grave, é o mais baixo... e afirmar que os mesmo corpos que parecem cair estão, na
verdade, sendo atraídos pela Terra porque estão próximos a ela e têm menos massa do que
ela” (Elia, 2004:11-12) A descrição da lei que postula que matéria atrai matéria na razão
direta das massas e inversa das distâncias, aponta o abalo que adveio com a ciência.
Pode-se dizer com Freire (1996) que os significantes se fundam na ciência como
significantes sem intenção, ou seja, na constatação da impossibilidade de acasalamento entre
significante e significado. Podemos entender que a colocação de Freire diz respeito ao fato de
que ao introduzir um novo real, a ciência moderna faz surgir um significante desamparado de
significado, significantes que não dizem nada a ninguém, na medida em que se desfaz a solda
que ligava significante e significado? Como conseqüência da operação da ciência, o homem
passa a ter a seu encargo que responder questões que o coletivo não mais respondia, pois o
edifício de saber estabelecido não mais funcionava, tal como experimentou Descartes. É esse
significante, que não se vincula ao antigo significado dado pelas qualidades de um mundo
106
regido por valores, que aparece, dando lugar ao sujeito que, tomando aí seu lugar, vai
questionar sobre seu lugar, já que não encontra mais atributos que lhe respondam.
Ainda nessa linha podemos situar a colocação de Benjamim (1985), quando se refere a
rupturas que vieram com a primeira guerra mundial e à revolução da técnica “Uma nova
forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao
homem” (p.115). Ao constatar que a experiência transmissível pelo homem na cultura perde
lugar, sendo subtraída do homem, Benjamim aponta o surgimento de uma nova barbárie. A
barbárie de que fala é resultante dessa pobreza de experiência, mas é positiva, pois: “Ela o
impele a partir para frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com
pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda” (ibidem, p.116). É possível dizer
que a barbárie de que nos fala Benjamim diz respeito a essa desconstrução operada pela
ciência que, de um lado arrasa uma construção estabelecida do mundo antigo, e de outro
engendra um movimento?
Na medida em que constatamos a estreita ligação entre sujeito e significante, como
também entre ciência e linguagem, indagamos: Se a ciência opera com o significante que dá
lugar ao sujeito, porém ejetando esse último de seu campo, poderíamos dizer que isto decorre
do fato de que ela opera sobre o significante, reduzindo-o pelo modelo de formalização à
letra? Se é na ciência que se constitui o significante sem significação que convoca o sujeito,
é, no entanto, a psicanálise que o resgata e lhe dá lugar, visto que a ciência procede a sua
exclusão.
Nesse capítulo, verificamos que os registros do real, simbólico e imaginário não
existem sozinhos e precisam se articular a fim de engendrar o psiquismo. É nessa perspectiva
que mito, ciência e psicanálise também se articulam como um nó, já que esse sujeito, que vem
à análise falar de seu mito, só pôde surgir daquilo que foi instaurado pela ciência, sendo assim
efeito dessa. Contudo, apesar da íntima ligação entre ambos, somente a psicanálise inclui o
real em sua operação, articulado ao simbólico e imaginário, implicando que qualquer crença
numa verdade absoluta como pretende o mito e a ciência inúmeras vezes cai por terra, visto
que há uma impossibilidade que diz respeito à linguagem na qual o sujeito, enquanto ser
falante, se constitui.
107
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apresentaremos aqui o percurso trilhado nessa pesquisa, destacando os pontos
principais a que chegamos em nosso desenvolvimento. Sublinhamos que estes pontos não
esboçam um fechamento ou esgotamento da questão, instalando uma abertura a novas
interrogações e relançando o desejo de prosseguir nossa investigação. A inclusão da falta, não
só do ponto de vista teórico, mas enquanto operação que permeou o movimento de tecedura
desse texto nos permite apontar considerações, que são finais na referência a esse estudo, mas
ponto de partida para outros. No lugar de uma conclusão acabada, nos coloca em face de um
momento, o de concluir.
Na origem de nossa questão, está a experiência clínica. Foi nesse cenário permeado pela
interlocução dos discursos psicanalítico e médico, que se evidenciou a diferença quanto ao
olhar e direção do tratamento do sujeito, surgindo daí uma pergunta. Qual a concepção e o
lugar do sujeito para a psicanálise e para a ciência? Junto à interrogação advinda da clínica,
encontramos nas palavras de Lacan (1966a), uma interseção entre esses campos curiosamente
no mesmo ponto que da clínica nos chamou a atenção: o sujeito. Se a clínica nos fez perceber
um afastamento, Lacan postulou uma aproximação, nos instigando ao exame dos encontros e
desencontros desses campos. O sujeito passa a ser então o fio de condução dessa investigação,
tornando-se também, uma questão. Como definir a noção de sujeito que Lacan refere à ciência
e à psicanálise e qual a relação dos respectivos campos?
Verificamos a partir dessa pesquisa que a ciência moderna é resultante de um
rompimento com a episteme antiga. Esse corte, promovido pelo procedimento de
desimaginarização, cria um novo real, irredutível ao simbólico, permitindo a passagem do
mundo fechado, harmônico, ordenado por referências de valores e perfeição, ao universo
infinito, no qual o sujeito encontra condições de sua emergência. A mudança na abordagem
do real incide também no campo humano, esvaziando o enquadramento até então fundado em
significados e valores estabelecidos e compartilhados. Concluímos assim que a destituição
subjetiva que levou Descartes à produção do cogito não é outra coisa, senão a mesma
operação, no campo da subjetividade, de desbastamento do imaginário introduzida pela
ciência moderna.
Averiguamos então que a marca instalada pela ciência, que Lacan afirma ser fundadora,
portanto, fundamental para o surgimento do campo inaugurado por Freud, diz respeito a esse
108
despojamento de qualidades, atributos e significações. Decorre daí outra marca essencial, a
noção de sujeito do cogito: “penso, logo sou”, que afirma o ato de pensar como o que garante
a existência do sujeito no simbólico. Seguindo as determinações científicas, o cogito inaugura
o sujeito reduzido ao significante, única forma de representar-se para outro significante.
Demonstramos que a emergência desse sujeito, denominado sujeito da ciência por Lacan, é
efeito do abalo produzido pela queda de um saber, apontando sua divisão subjetiva entre saber
e verdade.
Constatamos a partir do cogito que o universo do sujeito é o da linguagem, que através
da representação faz o mundo existir. No entanto, pontuamos ser o método instaurado pelo
cogito de tratar o real pelo simbólico, no qual a psicanálise se inscreve, revelador da
impossibilidade de capturar o real puro. O fato de a ciência testemunhar um real puro nos
permitiu concluir que os conceitos de real e simbólico têm sua origem neste campo.
Entretanto, sua operação que tem como ideal tudo simbolizar, nos leva a pontuar tais
conceitos como sendo mais próprios à psicanálise. Diferenciamos então o real para a
psicanálise como relativo à castração, à falta no Outro, e na ciência como o que ainda não foi
simbolizado.
Se o sujeito da ciência, como vimos, é reduzido ao significante, sendo consciente o
pensamento que o resume, é porque despreza o que está para além desse. Conferimos que
Lacan subverte o sujeito da ciência, em sujeito do inconsciente, apontando um Outro lugar
para o pensamento. Isso implica o fato de o inconsciente que, é não-todo estruturado como
linguagem e determina o sujeito, denunciar a irredutibilidade deste ao significante, o que
muitas vezes desperta angústia. Ainda podemos sustentar como Lacan o fez em 1966, que se
trata do mesmo sujeito? Respondendo de um modo breve, óbvio e acabado às nossas
considerações, dizemos que não, porém, privilegiando nosso recorte de aproximações e
afastamentos, sugerimos outra resposta: Só é possível concordar com Lacan que o sujeito com
o qual a psicanálise opera é o sujeito da ciência, se sublinharmos o verbo operar. É somente
por esse gesto, ausente na ciência, que implica a inclusão do sujeito em seu campo, que a
psicanálise, subvertendo-o em sujeito do inconsciente, homenageia por um lado, a ciência, por
ter instaurado o sujeito do significante, fato que permite operar sobre seu discurso, mas, por
outro, com ela rompe, reinventando seu próprio sujeito, que em parte, é o da ciência. Ao tratar
o real excluído da ciência, que retorna afetando o sujeito, a psicanálise atesta a falha do
projeto científico de colonizar o real.
109
Na medida em que deduzimos que o sujeito para a psicanálise pode em parte ser
representado, sendo outra parte esse vazio de representação, em que se manifesta o desejo,
interrogamos: é o desejo dizível? Se a verdade do desejo tem uma nodulação com o real,
sendo daí que advém, será possível articular no discurso isso que lhe causa? De outro modo,
se de um lado, pode-se formular o desejo, é sua causa, impossível de dizer?
Inferimos ainda que a ciência se constitui sob uma estrutura de linguagem que exclui a
verdade do sujeito. Considerando sua relação com a linguagem e os quatro discursos
propostos por Lacan, indagamos: a ciência pode configurar um discurso? Segundo Jorge
(2002b), Lacan aventa a possibilidade de um discurso da ciência, do qual não fornece a
fórmula. Olivieri (2002) pontua que Lacan pensou a ciência a partir do discurso do mestre em
O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70) e quatro anos mais tarde em
Televisão (1974), afirmou que teria quase a mesma estrutura do discurso histérico. Essas
pontuações nos remetem ao título de nossa dissertação: “psicanálise e ciência: um sujeito,
dois discursos”. É possível afirmar o mesmo sujeito para ambas, apesar de este sofrer
operações diferentes? Quanto ao sujeito, nossa consideração está posta e quanto ao discurso?
Lançamos essas perguntas que, entre outras surgem como efeito desse estudo, para
futuros trabalhos.
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