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Copyright © Editora Novos Diálogos, 2011

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Capa e DiagramaçãoOliverartelucas

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Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Fonseca, Alexandre Brasil Relações e privilégios: estado, secularização e diversidade religiosa no Brasil / Alexandre Brasil Fonseca. – Rio de Janeiro : Novos Diálo-gos Editora, 2011. 153p.; 23cm. – (Protestantismo e sociedade) ISBN 978-85-64181-05-2 1.Religião e sociologia. 2. Religião ——Brasil. 3.Pluralismo reli-gioso. 4. Secularização. I. Título. II. Série.

CDD 261.1

Índices para catálogo sistemático:1. Sociologia: 301

2. Secularização: Religião: 239

F676 r

Al final de este viaje en la vida, quedará nuestro rastro invitando a vivir.

Al final del viaje está el horizonte. Al final del via-je partiremos de nuevo.

Al final del viaje comienza un camino, otro buen camino.

— Silvio Rodriguez

À Daniela e Daniel pelos outros bons caminhos que ainda iremos trilhar.

SUMÁRIO

Introdução .................................................................................................9

CAPÍTULO 1 Secularização: revisitando um conceito .............................................13

CAPÍTULO 2 O Paradigma da secularização: diferenciação, racionalização e societalização ............................................................27

CAPÍTULO 3 Pluralismo: revisitando outro conceito ..............................................37

CAPÍTULO 4 Um Estado e uma religião: primeiros movimentos ............................47

CAPÍTULO 5 Separação Igreja e Estado, passo fundamental ...................................59

CAPÍTULO 6 Amizades e perseguições: as várias religiões entram em cena ..............79

CAPÍTULO 7 A Irrupção pentecostal na política ...................................................101

CAPÍTULO 8 A questão do ensino religioso: caminhos para uma conclusão .........123

Palavras Finais ........................................................................................131

Referências Bibliográficas .......................................................................139

9INTRODUÇÃO

INTRODUÇÃO

Contrariando o adágio popular segundo o qual religião e política não se discutem, e muito menos se misturam, o objetivo deste livro é exatamente este: discutir religião e política. O crescimento dos evangélicos, especialmente sua presença na política, vem sendo associado na grande imprensa como uma ameaça à democracia por unir religião e política. Nas eleições presidenciais de 2010, a temática religiosa ganhou centralidade no discurso dos candidatos que disputaram o segundo turno, colocando em destaque algumas temáticas relacionadas à moral e a questões que foram pautadas por determinados gru-pos religiosos e, inclusive, pelo Papa.

Pastores ocuparam destaque no horário eleitoral gratuito, reuniões públi-cas foram promovidas e diversos manifestos foram distribuídos. Na Internet, mensagens variadas circularam e um vídeo postado por uma igreja tradicio-nal, com uma pregação de seu pastor titular recomendando o não-voto em um determinado partido, foi assistido por milhões de pessoas.

Este livro argumenta que não há reversão no processo de secularização iniciado no Brasil em 1890, após ter sido decretada a separação entre Igreja e Estado, e que prossegue sem maiores surpresas. Ainda não saímos dele e o nosso argumento é que o mesmo continuará o seu movimento em direção ao declínio do prestígio e da popularidade das religiões em comparação à situação existente no século vinte. A relação que agora se observa entre Esta-do e Religião não representa um retorno a uma situação de interdependência, mas sim a confirmação de uma separação que busca em novos espaços e situ-ações estabelecer influências.

10 RELAÇÕES E PRIVILÉGIOS

Algumas definições

A modernização criou problemas para a religião. Quais são os possíveis papéis que esta desempenhará em nossa sociedade moderna? A religião desaparecerá? Reflorescerá? Estas não são questões colocadas pelo paradigma da secularização conforme seus atuais formuladores. O argumento volta-se para a constatação de que houve declínio do significado da religião em nossa sociedade após a experi-ência da modernização. Diante do processo de diferenciação, a religião perdeu o espaço privilegiado que possuía, passando a compor como mais uma entre as várias esferas disponíveis. Um desdobramento desta situação é a redução do número de pessoas interessadas em religião. Com efeito, devemos considerar os contextos sociais e históricos de cada país, que representam diferenças na forma, intensidade e velocidade com que a secularização se desenvolve.

Antes de entramos nas questões específicas que nos interessam — seculari-zação, pluralismo religioso — é importante explicitar o que compreendemos por religião e modernidade. Duas palavras de uso recorrente e que possuem centralidade na produção sociológica. É com o advento do Renascimento que se associa o surgimento da modernidade; noções como razão e indivíduo passaram a compor as ideias da época na Europa de forma cada vez mais in-tensa, até a ocorrência de uma reforma e duas revoluções: a Protestante, por um lado, e a Francesa e a Industrial, por outro. O capitalismo se estabelece, o Homo Economicus é criado e os pais da sociologia surgem dizendo que as coisas não são bem assim, ou melhor, não precisam ser exatamente assim. A nova ciência que surge vai criando instrumentais para entender e explicar — e em alguns casos transformar — este contexto.

Não foi só a aparência da sociedade que mudou; as relações de produ-ção mudaram, a forma de organização das instituições também, as vilas se transformaram em cidades, a divisão do trabalho aprofundou-se e, como não podia deixar de ser, o próprio indivíduo mudou muito. Ele passou a encarar a vida e os que o cercavam de forma diferente; emancipou-se, destacou-se, individualizou-se. Esta nova fase da história ocidental convencionou-se cha-mar modernidade — hoje confrontada por um momento que seria “pós” — e se caracteriza a partir da percepção de que vivemos numa sociedade que experimenta o distanciamento tempo-espaço, em constante reflexividade a partir dos “mecanismos de desencaixe” oferecidos, e dentro de um ambiente multidimensional no âmbito das instituições — movidas pelo capitalismo, pelo industrialismo e pela racionalização (Giddens, 1991).

11INTRODUÇÃO

Já na definição de religião, duas são as direções usualmente adotadas. Uma, que a vê a partir da compreensão substantiva; e outra, que a compreen-de dentro de uma perspectiva funcionalista. A primeira faz perguntas do tipo: quem sou, de onde vim e para onde vou? A segunda, nos termos de como a religião opera, ou seja, como um conjunto de crenças e ações que se definem a partir da compreensão da existência de uma realidade sobre-humana (Bru-ce, 1996: 7). As implicações da adoção destas perspectivas sobre a religião são importantes para compreendermos seu papel na modernidade e suas impli-cações para a secularização. Os que defendem a existência de um reencanta-mento adotam, geralmente, a definição funcionalista, que tem a limitação de ser tão genérica que pode incluir terapias psicológicas ou mesmo formulações políticas. Mais do que definirmos a religião pelos problemas que ela resol-ve, devemos voltar nossas atenções também pelo caminho que elas adotam para resolvê-los. Aqui, nos colocamos ao lado daqueles que compreendem a religião por seu conteúdo e não por sua função, considerando que a mesma implica crenças, práticas e instituições as quais se fundamentam na existência do sobrenatural, ou supra-empirical em Dobbelaere (1981: 38), para agir no curso da vida cotidiana.

Como as religiões se portaram na esfera pública? De que forma Igreja e Estado se relacionaram nos cinco séculos de história da terra brasilis? Por intermédio de pesquisa documental e bibliográfica, buscamos apontar estas relações em cada época, especialmente preocupados com a presença de novas organizações e propostas religiosas. Por limitação de espaço, optamos por algumas tradições religiosas, sem termos condições de cobrir toda a gama existente. Nos capítulos primeiro e segundo nos detemos no paradigma da secularização e na forma com que os processos de diferenciação, societalização e racionalização se desenvolveram em direção à configuração de uma nova concepção, não só da religião, mas também de toda a mentalidade humana de nosso tempo. Já no terceiro capítulo discute-se o conceito de pluralismo, realidade recente que sofreu e sofre uma série de impedimentos para sua efe-tiva implantação entre a população. Nos capítulos quatro a sete discuto a pre-sença e a relação Igreja-Estado na história brasileira, concluindo, no capítulo oito, com a discussão sobre o ensino religioso nas escolas públicas.

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12 RELAÇÕES E PRIVILÉGIOS

Este livro reúne pesquisa desenvolvida e escrita como primeira parte da tese de doutorado Secularização, Pluralismo Religioso e Democracia no Brasil, defendida em novembro de 2002 na USP. Sou grato ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa de pesquisa usufruída durante o ano de 1998; ao Projeto Currents in World Christianity, da Universidade de Cambridge, pela bolsa de pesquisa oferecida por ocasião do concurso de jovens pesquisadores 2000-2001; e à Pew Foundation, pelos recursos disponibilizados no contexto da pesquisa Evangélicos e Democracia no Mundo em Desenvolvimento.

Vários pesquisadores contribuíram para a realização deste trabalho. Gos-taria de agradecer especialmente aos amigos Paul Freston e Ricardo Mariano, além de Claudinei Spirandelli, Isabel Arcoverde, Flávio Conrado, Tim Shah e Ziel Machado. Também sou grato pela orientação de Antônio Flávio de Oliveira Pierucci, contribuição fundamental para o desenvolvimento deste trabalho.

Por fim, uma nota de agradecimento a Flávio Conrado e Clemir Fernan-des pelo apoio e incentivo para a publicação deste material. Espero que esta publicação possa ser útil e sirva para estimular reflexões, críticas, debates e, principalmente, novos diálogos.

Alexandre Brasil FonsecaRecreio dos Bandeirantes, novembro de 2010

13SECULARIZAÇÃO: REVISITANDO UM CONCEITO

CAPÍTULO 1

SECULARIZAÇÃO: REVISITANDO UM

CONCEITO

A palavra secularização tem sua origem no latim saeculare, que sugere a ideia de época ou era. Posteriormente, dentro do Direito Canônico, foi uti-lizada para designar clérigos que retornavam ao laicato, abandonando sua função religiosa (desfradar). Utilizado em oposição a religioso (clero regular), também indicava aqueles religiosos que atuavam no mundo, num esquema antitético que nos remete ao par espiritual-mundano (Marramao, 1997). A noção de um tempo interminável também passou a ser associada ao termo, sendo adotado ao fim das orações cristãs: saecula saeculorum (para sempre e todo o sempre). Em meados do século dezenove, o pensador socialista George Holyoake — “o último homem a ser preso na Grã-Bretanha por blasfêmia”1 — defendia a reflexão dos problemas humanos sem o uso de explicações so-brenaturais e a adoção do secularismo, um sistema de crenças baseado na razão e na ciência, no lugar do cristianismo. Dentro deste movimento, foi fundada na Inglaterra, anos mais tarde, a National Secular Society [Sociedade Secular Nacional], obtendo expressão nacional e a eleição de alguns de seus líderes para a Câmara dos Comuns.

1 Holyoake foi editor das revistas Oracle of Reason, The Movement e The Reasoner. Para maiores informações ver National Co-operative Archive (http://archive.co-op.ac.uk/holyoake.htm) e http://www.learn.co.uk.

14 RELAÇÕES E PRIVILÉGIOS

Stefano Martelli (1995: 275) aponta a acepção valorativa negativa que o conceito foi tomando a partir do século dezenove, quando “adquiriu o signi-ficado de subtração de direitos e bens religiosos e de emancipação da tutela e controle da igreja”. Prática utilizada na espoliação de propriedades e direitos da Igreja Alemã durante a época napoleônica. Daí em diante, o termo passou a carregar um caráter negativo, contrário ao que fosse religioso.

Em meados do século vinte, uma corrente teológica que ficou conhecida como a da Morte de Deus buscou qualificar positivamente o termo, afirman-do ser bom para a religião a possibilidade de vivermos em uma sociedade secularizada. Foi Harvey Cox quem apresentou a “cidade secular”: à “luz da fé bíblica, a secularização e a urbanização não representam maldições sinis-tras que devemos evitar, mas sim oportunidades notáveis que precisam ser aproveitadas” (1968: 1), pois “as forças da secularização não têm nenhum interesse sério em perseguir a religião. A secularização simplesmente contorna a religião e avança rumo a outras coisas (...). A religião passa a ser privativa” (Ibid.: 13). Esta interpretação acabou dando um caráter ainda mais negativo à palavra.

Na sociologia, secularização geralmente é associada aos estudos de Weber e sua abordagem sobre racionalização. Weber pouco usou o termo “seculari-zação”, associando-o mais à separação do Direito Canônico e eclesiástico do secular em um uso jurídico-religioso: Secularização do Estado, redução da abrangência da religião. Mais usual foi o termo “desencantamento do mun-do” (Entzauberung der Welt), que se referia à eliminação da magia como meio de salvação em uma Europa marcada pelo racionalismo, em uma realidade que se caracterizava pela adoção do laissez-faire, por uma “aceitação mística” do mercado autorregulável e por todo um conjunto de práticas e ideias que acompanhavam o capitalismo emergente. Como indicou Pierucci (1998: 51):

Enquanto o desencantamento do mundo fala da ancestral luta da religião contra a magia, sendo uma de suas manifestações mais recorrentes e eficazes a perseguição aos feiticeiros e bruxas levada a cabo por profetas e hierocratas, vale dizer, a repressão político-religiosa da magia (Thomas, 1985), a secu-larização, por sua vez, nos remete à luta da modernidade cultural contra a religião, tendo como manifestação empírica no mundo moderno o declínio da religião como potência in temporalibus, seu disestablishment (vale dizer, sua separação do Estado), a depressão do seu valor cultural e sua demissão/liberação da função de integração social.

15SECULARIZAÇÃO: REVISITANDO UM CONCEITO

Foi a partir das reflexões weberianas que Berger construiu seu “Dossel Sa-grado” (1985). Compreendendo a secularização como “o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos”, Berger destaca três características: 1) Afeta a vida cul-tural e a ideação, resultando em declínio de conteúdos religiosos nas artes, filosofia, literatura e ciência; 2) Cria indivíduos que encaram o mundo e suas próprias vidas sem recorrer às interpretações religiosas; 3) Apesar de ser um fenômeno global das sociedades modernas, não se dá uniformemente.

A secularização dá origem a novas formas de arte e abre espaço para que mercado e Estado passem a ocupar o lugar antes reservado ao religioso. Tor-na-se possível a compreensão e a apropriação do mundo sem intermediários do sagrado. O homem, o indivíduo da Idade Média, emancipa-se e é capaz de determinar suas ações, é um “indivíduo liberal” que rompe com o religioso. É indivíduo que, quando vivia sob a égide da Igreja, tinha a divisa noli altum sapere [não conheça as coisas altas] como emblema, mas que com a chegada da “idade da razão” passa a não ter medo do conhecimento e busca com-preender as “coisas do alto”. Como afirmou Kant2 ao definir o Iluminismo: Sapere aude! [Ousa conhecer!] (Ginzburg, 1991: 117).

Retomando o texto Judaísmo Antigo de Weber, é possível encontrar nessa religião e sua “historização da ordem cósmica” a semente da secularização (cf. Berger, 1985). Uma primeira e significativa ruptura é com a magia que mar-cava a religião. Se o catolicismo, com suas características “politeístas” (Weber, 1991: 289), funcionou como recuo nesse movimento de enfraquecimento da influência do sagrado no Estado e na vida cotidiana, a Reforma Protestante aboliu as mediações entre o sagrado e o fiel. Nas palavras de Berger, o pro-testantismo “rompeu a continuidade, cortou o cordão umbilical entre o céu e a terra, e assim atirou o homem de volta a si mesmo de uma maneira sem precedentes na história” (Berger, 1985: 125).

O mundo passa a ser entendido sem a ajuda de interpretações sobre-huma-nas, tornando o homem capaz de tomar decisões independentemente de me-

2 “Esclarecimento [ou Iluminismo] é a saída do homem de sua menoridade. Menoridade esta que é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. E o culpado dessa menoridade é o próprio indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento!” (Kant, 2005 [1784]).

16 RELAÇÕES E PRIVILÉGIOS

diações religiosas. Com uma religiosidade que, ao recusar a função mediadora da Igreja e ao defender a “ascese intramundana”3, nega o mistério, o milagre e a magia, o protestantismo abre caminho para o “desencantamento do mun-do” estruturado dentro do racionalismo. Conformando parte fundamental — “juntamente com a economia industrial-capitalista em expansão, portador pri-mário do processo econômico moderno, ou seja, da dinâmica do capitalismo industrial” — na criação de uma religião privada, como aponta Berger:

A religião manifesta-se em sua forma tipicamente, a saber, como um complexo legitimante voluntariamente adotado por uma clientela não-coagida. Como tal, localiza-se na esfera privada da vida social cotidiana e está marcada pelas carac-terísticas típicas dessa esfera na sociedade moderna. Uma dessas características essenciais é a “individualização”. Isso significa que a religião privatizada é assun-to de “escolha” ou “preferência” do indivíduo ou do núcleo familiar, ipso facto carecendo de obrigatoriedade. Uma tal religiosidade privada, independente de quão “real” apareça para os que a adotam, não pode mais desempenhar a tarefa clássica da religião: construir um mundo no âmbito do qual toda a vida social recebe um significado último que abriga a todos (Berger, 1985: 145).

O processo acima descrito — a secularização dos indivíduos a partir da privatização do religioso, e a interpretação de que a secularização é o caminho necessariamente reservado à humanidade — é a principal fonte das discordâncias em torno do tema4. Interpretações distintas e defensores

3 “A diferença entre o ascetismo calvinista e o medieval é evidente. Consistiu no desapa-recimento do consilia evangelica e na subsequente transformação do ascetismo em atividade terrenal (...) No curso de seu desenvolvimento o Calvinismo anexou a isto algo de positivo: a ideia da necessidade de se provar de cada um a fé, na atividade secular (...). Baseando sua ética na doutrina da predestinação, substitui a aristocracia espiritual dos monges, alheia e superior ao mundo, pela aristocracia espiritual dos predestinados santos de Deus, integrados no mundo” (Weber, 1983: 84-5).

4 Boa parte das críticas não se detém nos trabalhos dos principais formuladores, prefe-rindo adversários mais débeis e autores marginais para desqualifi car a secularização. Como salienta Bruce (2002), seria o caso de Stark que cita tanto em livro de 1985 como em outro de 2000 o mesmo texto extraído de um livro para cursos de graduação de um antropólogo de meados do século vinte, Anthony Wallace, como referência para a sua argumentação. Bruce dedica um livro (1999) como resposta aos argumentos de Stark, afi rmando apresentar “a estaca para o peito do vampiro”. Não conseguiu. Casanova (2001) indica as limitações de ambas abordagens, salientando que as explicações de Bruce são difi cilmente refutáveis para a Europa e não são totalmente adequadas para os Estados Unidos, enquanto que a argumen-tação de Stark dá conta do caso americano, mas não representa resposta para o que acontece no velho continente.

17SECULARIZAÇÃO: REVISITANDO UM CONCEITO

do reencantamento/dessecularização surgiram apontando singularidades de países e afirmando que o “fim da religião” não se sustenta diante de toda a efervescência religiosa experimentada no Terceiro Mundo, por exemplo. A atual efervescência religiosa necessariamente não contraria ou desmente a separação entre a religião e o Estado (disestablishment), a qual primeiramen-te se deu por ocasião da formação dos Estados modernos europeus com a Paz de Westfália de 16485, chegando posteriormente na América Latina no final do século dezenove e inaugurando aqui também uma era de tolerância religiosa. Nas palavras de Weber, a religião passa a ser um segundo violino e deixa de influenciar diretamente as outras esferas sociais, principalmente a do direito e das leis, acontecendo em meio à pluralização do campo reli-gioso.

Um segundo importante passo na direção de elaboração do conceito foi dado por David Martin ao propor uma Teoria Geral da Secularização (1978). Com o objetivo de sistematizar o conhecimento em torno do tema para paí-ses com tradição majoritariamente cristã, Martin apresenta um quadro mais amplo de análise onde busca desenvolver modelos para o processo de se-cularização diante de diferentes realidades históricas e contextos culturais. Considerando-a como um processo universal que atinge as sociedades in-dustriais, ele aponta seis tendências amplas: 1) as instituições religiosas têm dificuldades de crescimento em áreas dominadas pela indústria pesada; 2) maior adversidade é enfrentada se a área em questão for homogeneamente proletária; 3) a prática religiosa diminui proporcionalmente ao tamanho da concentração urbana; 4) mobilidade social e geográfica levam à erosão de co-munidades religiosas estabelecidas territorialmente; 5) as religiões passam a se organizar de forma diferenciada como resposta à diferenciação da sociedade, sendo criadas diferentes denominações e seitas; 6) as religiões tornam-se par-cialmente diferenciadas das outras esferas institucionais, a que se segue uma compartimentalização do papel do indivíduo religioso, o qual é encorajado a variar em suas opções, contribuindo para a desintegração institucional.

5 Em meados do século vinte, representava um fascínio cronológico e simbólico a infor-mação de que a expressão séculariser teria sido primeiramente utilizada na Paz de Westphalia diante “do nascimento do Estado moderno, cuja soberania ‘intramundana’ vinha pôr um ponto fi nal no longo e sanguinolento capítulo das guerras civis de religião na Europa” (Mar-ramao, 1997: 17). Nova gênese foi encontrada no uso pela Igreja Católica francesa do século dezesseis para indicar a passagem de um religioso “regular” à situação “secular”.

18 RELAÇÕES E PRIVILÉGIOS

A partir de cinco eventos históricos cruciais6, são propostos modelos resultantes relacionados à forma como a religião se estrutura em cada sociedade. Teríamos o americano, demarcado pela presença do pluralismo religioso e uma cultura religiosamente popularizada. O anglo-saxão, no qual a religião é parcialmente desalojada do establishment político-religioso por uma substancial discórdia. O latino, em países onde há o monopólio católico e onde atuam movimentos com inspiração de ideologias secularizantes. E, por fim, o russo em que ocorre a privatização oficial da religião e das crenças, estando as instituições religiosas sujeitas a ataques. Diante desses aconteci-mentos históricos, dos padrões específicos de cada realidade e alimentados pelos pensamentos produzidos pelo Iluminismo e pelo calvinismo é que são apresentadas as categorias que orientarão a análise em relação ao processo de secularização, onde são consideradas situações de monopólio total (Igreja Católica ou Ortodoxa ou Secular), duopólio (protestante e católico) ou plu-ralismo protestante.

Uma década depois, Martin (1990 e 1991) revê o conceito, concentrando--se nas tensões existentes para pensar em uma teoria da secularização na Amé-rica Latina. Se alguns países corroboram a noção da diminuição do sagrado e seus cidadãos apresentam uma consciência “desencantada”, em outros ocorre o oposto, como é para o autor o caso do Brasil: “No Brasil, por exemplo, a atmosfera inteira é completamente viva, e esta opinião não é restrita às clas-ses menos sofisticadas. O Brasil mantém um mercado aberto e próspero na comunicação do espírito no qual todos vão comprar” (Martin, 1991: 471).

Para Martin, a realidade latino-americana (e dos países orientais) provo-ca uma reflexão acerca de sua teoria geral da secularização. Ao afirmar que “Foi na Europa que o modelo sociológico da secularização foi inventado, e para onde, talvez, ele seja mais adequado”, já que o processo de secularização na América Latina foi “influenciado pela Europa, mas não foi determina-do pela Europa”, possuindo características peculiares decorrentes da união de elementos ocorridos no processo europeu com outros experimentados na América do Norte — processo devidamente modificado segundo contextos históricos e sociais específicos —, o autor recoloca a questão da seculariza-ção, sem negar sua aplicabilidade. Completa afirmando que, para a América Latina, “a questão mais ampla é se este novo movimento persiste, porém

6 1) O sucesso ou o insucesso da Reforma Protestante; 2) Guerra Civil Inglesa; 3) Revo-lução Americana; 4) Revolução Francesa; 5) Revolução Russa.

19SECULARIZAÇÃO: REVISITANDO UM CONCEITO

como parte da transição no escopo mais extenso e abarcador da secularização” (Martin, 1990: 3).

Um espírito revisionista também pode ser encontrado nos textos poste-riores de Peter Berger, chegando a afirmar recentemente no prefácio de um livro sobre dessecularização: “a suposição de que vivemos em um mundo secularizado é falsa (...). [e] toda a literatura de historiadores e cientistas so-ciais geralmente chamadas de ‘teoria da secularização’ está fundamentalmente equivocada”, para então concluir com sua peculiar ironia e indicando que “entregou os pontos”: “uma vantagem de ser um cientista social, ao contrário de ser, digamos, filósofo ou teólogo, é que você se diverte tanto quando suas teorias são consideradas falsas como quando são verificadas!” (1999: 2).

Mariz (2001) e Bruce (2001) apresentam questões importantes e interessan-te perspectiva em relação à postura de um dos primeiros formuladores da secu-larização. De um lado, Mariz relativiza este texto apontando para o movimento dialético que ele apresenta, além de salientar que o mesmo se dá em virtude da afirmação de um processo que, para existir, tem como fundamental necessidade uma primeira secularização, salientando que não há questionamento sobre se a mesma tenha ocorrido. Já Bruce desenvolve seus argumentos tendo em vista o conjunto da obra de Berger, confrontando os motivos aduzidos para a “revi-são”. No próximo tópico retornamos a este tema.

Neste caminho revisionista, também é possível encontrar o belga Dobbe-laere (2000) que atenua as possibilidades de efeitos da secularização no nível micro, ao contrário do que afirmou em 1981, abrindo espaço para a principal discordância de Stark e de seus colaboradores (Finke, Iannaccone e Bainbrid-ge, 1985, 1987 e 2000)7, para quem as consequências da secularização no nível societal não representariam o declínio do religioso na esfera privada. Pelo contrário, aconteceria aumento da religiosidade entre os indivíduos em decorrência da presença de maior oferta religiosa em um mundo pluralizado8. Esta posição foi sugerida como um “novo paradigma” para o estudo socioló-gico da religião, tendo sido inspirada não no “velho” paradigma da seculari-zação, mas na história dos Estados Unidos (Warner, 1993: 1045).

7 Sobre Escolha Racional e Religião consultar o obrigatório artigo de Warner (1993) e os livros organizados por Young (1996) e Jelen (2002). Em português, ver Guerra (2000) e Frigério (2000). Como exemplo de estudos sobre religião e política na América Latina a partir da abordagem da rational choice, ver Gill (1998).

8 No próximo capítulo apresentaremos uma discussão sobre pluralismo religioso.

20 RELAÇÕES E PRIVILÉGIOS

Diante de tanta incerteza de seus defensores, há maiores possibilidades para ataques e questionamentos. O francês9 Gilles Kepel fica um pouco fora deste constante embate, porém, num livro do início da década de 1990, destacou--se em meio às possibilidades de um possível reencantamento do mundo. O autor aborda processos de “recristianização”, “reislamização” e “rejudaização” a partir da década de 1970, “não para se adaptar aos valores seculares”, escreve Kepel, “e sim para voltar a dar uma base sagrada à organização da sociedade, modificando-a se preciso” (Kepel, 1991: 12). Os movimentos tratados no livro A Revanche de Deus representam uma tentativa de superação da modernidade, a qual reservou à religião papel de coadjuvante, restritamente na esfera privada.

As constatações de Kepel não se opõem diretamente à teoria da secularização. O autor aponta esses movimentos religiosos como indicadores de “disfunções da sociedade”, auxiliando-nos a refletir sobre o momento vivido pelo mundo. Não percebemos intenção em apontar esses movimentos como comprovação de um erro ou equívoco do “velho paradigma”. Kepel complementa: “...o ob-jetivo é pôr abaixo a organização jurídica da laicidade, que limita a expressão da identidade religiosa ao domínio privado, e instituir um sistema no qual essa identidade consiga adquirir ‘uma condição de direito público’” (Idem: 236).

A concretização desses objetivos parece ainda muito distante da realidade e pouco provável. Esses movimentos representam “minorias cognitivas”10 que necessitam criar “contracomunidades” (Berger, 1997: 43) para sustentarem--se. As tentativas “pelo alto” de retomada da esfera pública pela religião — atuação junto às instâncias de poder (político, econômico, jurídico, simbó-lico) — se mostraram inconsistentes, restando mais espaço para ações “por baixo” — de “des-privatização” da religião. Para o Berger de 1976, “num mundo ‘livre de surpresas’ a tendência geral de secularização continuará” (Ibid., p. 55), secularização que “não é tão abarcadora assim, como muitos pensaram, [e] de que o sobrenatural, banido da respeitabilidade cognitiva por autoridades intelectuais, pode sobreviver em recantos e fendas ocultas da cultura” (Ibid., p. 52). Assim, Beger se opõe ao “fim da religião” como um todo na sociedade, como também se opõe a uma “ressurreição dos deuses”.

9 Temos outro francês que oferece importante contribuição ao debate: Marcel Gauchet (1985 e 1998).

10 “Por minoria cognitiva entendo um grupo de pessoas cuja visão do mundo difere signifi cativamente da visão generalizada em sua sociedade e simplesmente aceita como tal” (Berger, 1997: 26).

21SECULARIZAÇÃO: REVISITANDO UM CONCEITO

Já para Martelli (1995), vivemos na “pós-modernidade” e todos os ele-mentos que indicam o ressurgimento do religioso configuram um processo pendular entre secularização e dessecularização. Estaríamos entrando numa era de “eclipse da secularização”, confirmada pela emergência dos “novos mo-vimentos religiosos”. Para o pensador italiano, esse momento “constitui o desmentido de uma concepção da secularização como racionalização irrever-sível de qualquer âmbito de vida” (p. 354).

Estas discussões em torno da secularização consumiram toneladas de pa-péis em dezenas de livros e artigos acadêmicos publicados nas principais re-vistas de sociologia de todo o mundo. Ao estudarmos a presença da religião na sociedade brasileira é inevitável não nos voltarmos para a discussão em torno destes pólos opostos: secularização/desencatamento e dessecularização/reencantamento. Berger, apesar da mudança em seus humores, salienta a centralidade do tema: “esta interação entre as forças de secularização e con-trasecularização é, eu sustentaria, um dos tópicos mais importantes para a sociologia da religião contemporânea” (1999: 7).

Na sequência, apresentamos os pontos essenciais do paradigma da secu-larização a partir dos dois autores que tentaram avançar na consolidação de um paradigma para o estudo da religião na sociedade moderna pelas ciências sociais: Brian Wilson e Steve Bruce11.

Teoria, mito, hipótese, doutrina, ideologia ou paradigma?

Acima temos alguns dos substantivos que já foram relacionados à seculariza-ção na sociologia mundial dos últimos 50 anos. Quando evocado, este vocábulo indica basicamente o fim da centralidade da religião na sociedade moderna12. Qualquer outro comentário ou observação decorrente é alvo de controvérsia ou disputas. Não nos detemos especificamente neste já cansativo debate, pois existe bibliografia mais do que suficiente para municiar os interessados. Voltamos nossa atenção principalmente para a bibliografia mais recente, especialmente o trabalho do britânico Steve Bruce (1992, 1996, 1999 e 2002), indicando alguns dos ele-mentos que ele apresenta na construção do paradigma da secularização.

11 Comentário de Stark (Stark & Finke, 2000: 71) sobre Bruce: “Steve Bruce, da Univer-sidade de Aberdeen, tem sido, há bastante tempo, um dos proponentes mais conservadores da tese da secularização”.

12 Para uma visão geral das defi nições da secularização na sociologia ver, entre muitos outros: Dobbelaere (1981 e 1984), Woodhead & Heelas (2000), Marteli (1995) e Tschannen (1991).

22 RELAÇÕES E PRIVILÉGIOS

Um primeiro recorte sociológico que pode ser feito em relação às aborda-gens sobre a secularização é geográfico. Como lembram Swatos & Cristiano (2000, p. 2), os principais e mais consistentes proponentes do conceito são europeus: David Martin, Bryan Wilson, Roy Wallis, Karel Dobbeleare, Peter Berger (este emigrou para os Estados Unidos) e mais recentemente Steve Bru-ce. Numa briguinha entre colônia e império, são os americanos os principais críticos e questionadores desta formulação13. Por exemplo, Hadden (1987) en-fatiza que mais do que uma teoria, a secularização representa uma doutrina, uma ideologia estabelecida, durante muitos anos, representando muito mais um produto social e cultural do contexto em que foi criada. Argumenta, ainda, que a secularização é “uma confusão de ideias utilizadas imprecisamente”. Outro oposicionista é o padre sociólogo14 Andrew Greeley, da Universidade de Chica-go, que afirma a centralidade da religião para o ser humano (1972).

Rodney Stark e seus colaboradores, porém, baseados na teoria da economia religiosa15, são os principais protagonistas desta oposição. Estes consideram que a preocupação com o sobrenatural, com as questões espirituais, é uma condição humana sine qua non e — lembrando o Homo Economicus de Adam Smith, ins-pirador das proposições do economista Iannaccone (1991) — adotam o pressu-posto do que poderíamos chamar de um Homo Religiosus, pressuposto segundo o qual o ser humano estaria naturalmente — e racionalmente para fazer jus à Teoria da Escolha Racional que adotam — propenso a buscar nas religiões as compen-sações necessárias para continuar vivendo diante do insucesso de ter acesso aos bens [rewards] que desejam alcançar na vida cotidiana16. A crítica básica a esta

13 Autores italianos também têm se manifestado: Marteli (1995), Guizardi (1990) e Ac-quaviva (1961).

14 Vale a pena uma visita ao seu site: http://www.agreeley.com.

15 “Economias religiosas consistem em um mercado de seguidores potenciais e atuais (demanda), um conjunto de organizações (fornecedores) buscando servir este Mercado, e as práticas e doutrinas religiosas (produtos) oferecidas por várias organizações” (Stark e Finke, 2000, p. 36). Ver também Finke e Stark, 1988.

16 Bruce argumenta que esta representa uma teoria ateísta em relação à abordagem adota-da para a religião, pois ela considera que ao não conseguir os bens — concretos e imediatos — as pessoas se contentam com os compensadores oferecidos pelas religiões — distantes e intangíveis: “Para Stark e Bainbridge, a religião é inerentemente defeituosa e pode ser deseja-da apenas por compensação por algo que não está disponível e que é melhor porque é deste mundo e imediato. Resumindo, enquanto a maioria dos cientistas sociais tenta permanecer neutra sobre as reivindicações de verdade da religião, Stark e Bainbridge constroem sua teoria sobre premissas substantivamente ateístas” (1999: 34).

23SECULARIZAÇÃO: REVISITANDO UM CONCEITO

teoria — da qual Stark se defende em seu trabalho mais recente17 — é o peso da escolha racional nas decisões religiosas. Com isso, os processos culturais ficam em segundo plano, o que não nos parece um locus adequado quando nos detemos no estudo da religião — elemento social que é bastião da tradição e ocupa impor-tante papel na socialização dos indivíduos.

A proposição básica adotada considera que, diante de uma situação de competição, a religião florescerá. Por isso, o monopólio religioso impede o crescimento da religião. Porém, diante do evento da secularização — que se expressa com o fim do monopólio, com a liberdade religiosa e a separação entre a Igreja e o Estado — temos como consequência a abertura em direção à pluralização, situação que transmite a possibilidade da existência de várias empresas religiosas que, concorrendo no mercado em busca de espaço, diver-sificam suas ofertas e atraem um maior número de consumidores. A seculari-zação seria, portanto, um processo autolimitado cujo início representaria, no futuro, não menos religiosidade, mas, ao contrário, maior religiosidade. No período de monopólio religioso, o compromisso com as crenças era de baixo rigor; porém, numa situação plural, o envolvimento será mais intenso em meio a uma série de novas opções que lutam dentro de um mesmo espaço. Considerar o papel da diversidade em outra direção é um dos principais ques-tionamentos da teoria de Stark e colaboradores. Abordamos este tema mais detidamente no próximo capítulo.

De uma origem neutra, o termo secularização tornou-se arma ideológica. Alguns autores chegaram a propor o fim de seu uso18, enquanto outros o consideram ainda válido: alguns favoráveis, outros contrários. Analogamen-te, como apontamos em nosso trabalho sobre mídia (Fonseca, 1997), discus-sões valorativas em nada acrescentam às ciências sociais, não sendo o caso de

17 Dentro de sua defi nição de racionalidade humana, ao salientar questões de preferência e gostos: “Dentro dos limites de informação e compreensão, restritos pelas opções disponí-veis, guiados por seus gostos e preferências, os seres humanos tentam fazer escolhas racionais” (Stark e Finke, 2000: 38).

18 “Parece-me que a secularização continua, contudo, sendo um conceito de fundo em sociologia, e aqui faço um reparo parcial a uma proposta, bastante radical e ingênua, levan-tada tempos atrás, a de abolir o próprio termo secularização [G. Guizzardi, Secolarizzazione: Alcuni nodi essenziali, 1973], pois que, se o tema é evitável, o conceito não o é e permanece, a despeito de tudo, ambivalente” (Guizzardi & Stella, 1990, p. 240). Stark utiliza em alguns momentos o termo dessacralização, o qual seria o mesmo do que esta interpretação macro da secularização que todos compartilham.

24 RELAÇÕES E PRIVILÉGIOS

avaliarmos se a secularização é “boa” ou “má”. Entendemo-la como um fato social, e como tal deve ser tratada19.

Como vimos, Berger aponta para uma dessecularização; Martin afirma que a sua teoria pode não ser tão geral quanto pensava; e Dobbelaere argu-menta que a situação religiosa no nível individual não pode ser explicada exclusivamente pela secularização do sistema social. Esta recente posição de Dobbelaere é amplamente adotada quando falamos sobre secularização. Pa-rece não haver discordância de que, diante dos acontecimentos que levaram à formação do mundo como o conhecemos modernamente, o sagrado saiu do lugar de protagonismo que ocupava e a relação entre religião e sociedade foi alterada. A sociedade que era regida por conceitos e valores religiosos tornou--se secular, secularizada.

Porém, se ficarmos neste minimum minimorum, caímos em nível pura-mente descritivo, como salientam Swatos & Cristiano (2000), ou podemos encerrar o debate, como apontam Stark & Finke (2000). Ou seja, todos — contrários ou favoráveis — concordam a respeito da existência da secula-rização, que ela aconteceu. Não há dúvidas de que, em um momento da história, as relações entre o Estado e a Igreja foram rompidas, na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina. Não há como negar a secularização em seu “sentido forte”, considerando-a como “secularização do Estado, da lei, da normatividade jurídica geral” (Pierucci, 1998: 61) o que implica a “decadência do poder hierocrático” (Weber apud Ibid.: 61). O foco de discórdia é a sua repercussão na vida cotidiana desta nova sociedade que foi formada a partir de processos como o de diferenciação e de racionalização. O problema é a afirmação do declínio da religião. Em relação às opiniões compartilhadas por todos, temos o seguinte:

Não há discussão de que na maior parte do mundo ocidental, pelo menos, houve suficiente separação entre igreja e estado, o principal locus da dife-renciação, de modo que as pessoas são capazes de viver suas vidas longe da ‘interferência’ direta da religião e podem escolher entre várias religiões sem

19 “O termo ‘secularização’ refere-se a processos disponíveis empiricamente de grande importância na história ocidental moderna. Se esses processos devem ser deplorados ou sau-dados é irrelevante no âmbito do universo de discurso do historiador ou do sociólogo. É possível, na verdade, sem um esforço tão grande assim, descrever o fenômeno empírico sem assumir uma posição valorativa” (Berger, 1985: 119).

25SECULARIZAÇÃO: REVISITANDO UM CONCEITO

serem civilmente incapacitadas (...). Não há também nenhuma dúvida de que a separação entre igreja e estado tem consequências para as organizações religiosas e para as vidas dos cidadãos. (Swatos & Cristiano, 2000: 6).

Menos religiosidade, declínio do religioso etc. são algumas das formula-ções que soltam faíscas e trazem inflamadas argumentações, não só no mun-do anglo-saxão, mas também por essas bandas tupiniquins (ver Pierucci, 1997). Há tanta religião à nossa volta que muitos argumentam que seria, no mínimo, irresponsável falar em uma secularização individual (Chaves, 1994). Para isso, é preciso comprovação empírica. Esta é a grita geral. É exatamente na divulgação destes dados20 quantitativos que se abrigam os opositores, pois, segundo eles, com a alta frequência às reuniões religiosas nos EUA, maior do que no passado, não é possível falarmos em declínio da religião. Índices estatísticos utilizados na economia são aplicados para comprovar o nível de pluralização religiosa, ao lado de correlações variadas; tudo com o objetivo de provar que há mais atividade religiosa, mais religião, nos dias de hoje.

Qual é a relação entre atividade religiosa e religiosidade? Como mensurar o quanto religiosas ou não são as pessoas? Este é um dos principais proble-mas que se apresentam nesta discussão. É certo que o quadro atual desanima aqueles que portavam categorias marxistas ou mesmo freudianas acerca do futuro da ilusão religiosa opiácea, porém não nos parece que um reencanta-mento do mundo ou, muito menos no caso ocidental, um processo de desse-cularização, estejam a caminho. A religião não voltou a ocupar a centralidade e o poder de outrora. Isto pode até vir a acontecer, mas não está acontecendo e é improvável que aconteça num futuro próximo.

Secularização não significa ateísmo ou mesmo desaparecimento das reli-giões. Como apresentamos a seguir, sua formulação é mais um instrumen-to que nos ajuda no entendimento de nossa realidade, fornecendo, no caso

20 Por sinal, muito questionados por Bruce (1999), Hadaway, Marler e Chaves (1993) e Dobbelaere (1981: 136). Mesmo o cientista político Robert Putnam, que não tem “nada a ver com a história”, questiona a interpretação de intensa atividade religiosa no fi nal do século vinte: “Em anos recentes, a contínua vitalidade da religião na América tem sido ‘redescober-ta’ pelos especialistas; e no fi nal do século, como o principal sociólogo da religião observou, ‘especialistas o tem feito através da conversa sobre a secularização. Eles demonstram seu valor dizendo o que é bom para os que vão às igrejas’. Por causa dessas lutas quase religiosas sobre o destino da religião, é importante pesar cuidadosamente a evidência confl itiva sobre as ten-dências na participação nas instituições religiosas na última metade do século” (2000: 69).

26 RELAÇÕES E PRIVILÉGIOS

brasileiro, importantes elementos para uma melhor compreensão de nossa história e do momento que agora vivemos. Bruce — ao estudar o que acon-teceu na Europa e sem reivindicar uma aplicação universal, como tampouco aspectos de irreversibilidade — não duvida em relacionar a secularização com o declínio da religião, tanto no aspecto social como no individual, ressaltan-do sua não-inevitabilidade. Ele argumenta que o que aconteceu e acontece apresenta os efeitos de um processo que se manifesta por intermédio de três declínios do religioso: 1) Em sua popularidade, com menor envolvimento das pessoas com as igrejas; 2) Em seu poder, com menor abrangência e in-fluência de suas instituições; e 3) Em seu prestígio, com menor impacto de suas crenças (1996: 26). Bruce não abre mão de continuar entendendo a se-cularização primeiramente como um processo macro, mas que não deixa de repercutir entre as pessoas em direção ao declínio da religião na vida privada. Para isso, ele apresenta detalhadamente, em recente livro (2002), o paradig-ma da secularização21.

Antes de entrarmos propriamente na formulação, cabe uma digressão epistemológica. Por que paradigma da secularização e não teoria? Se lembrar-mos das definições e do trabalho de Thomas Kuhn, fica mais fácil entender a adoção desta proposta. Parece que há um acordo generalizado segundo o qual os conceitos em torno da secularização abordam realidades tão distintas que se torna impossível a formulação de uma teoria sistemática e definitiva. Por isso, a compreensão dela como um paradigma seria mais indicada, servindo para nos oferecer pistas de interpretação. O paradigma da secularização nos oferece um modelo que nos orienta no desenvolvimento de análises e pesqui-sas das situações que nos propomos investigar. Como enfatiza Bruce a vida social é complexa e não poderiam deixar de ser complexas suas formas de interpretação.

21 Sobre a adoção do termo paradigma para acompanhar a secularização, ver também Tschannen, 1991. A proposta que adotamos se diferencia da apresentada por Tschannen em um ponto, já que ele indica três componentes: Racionalização, diferenciação e mundializa-ção. Nossa abordagem, inspirada em Bruce (1999 e 2002), é menos abrangente e detalhada do que a formulada pelo sociólogo escocês.


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