RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO
SOBRE OS REMANESCENTES DA COMUNIDADE DE
QUILOMBO DO SERTÃO DE ITAMAMBUCA
(CAZANGA)
Ubatuba / São Paulo
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Sumário
Agradecimentos Apresentação .................................................................................................................................. 4 Introdução ....................................................................................................................................... 5 Notas metodológicas: pesquisa bibliográfica, documental e etnografia ................................. 7 Capítulo 1 - Atualizando o debate conceitual sobre quilombo ................................................. 8 1.1. Concepção de quilombo e identidade étnica ............................................................................ 8 1.2. Identidades emergentes e território ......................................................................................... 11 1.3. Memória e oralidade ................................................................................................................ 12 Capítulo 2 – Contexto histórico de Ubatuba: da escravidão à conservação ........................... 16 2.1. Sistema escravista e ciclos econômicos ................................................................................... 16 2.2. Um capítulo à parte: os negros libertos na economia cafeeira ................................................ 19 2.3. Turismo e unidades de conservação: dilemas para manutenção da cultura tradicional .......... 21 Capítulo 3 – O Sertão de Itamambuca ......................................................................................... 23 3.1. Localização e acesso................................................................................................................ 23 3.2. Ocupação e histórico fundiário ................................................................................................. 27 3.3. Lei de Congelamento de Núcleos Habitacionais Irregulares ................................................... 37 Capítulo 4 – Parentesco e ancestralidade escrava .................................................................... 41 4.1. Parentes de agora e parentes de outrora: a história familiar dos moradores do Sertão de Itamambuca .................................................................................................................................... 42 Capítulo 5 – Territorialidade e organização política ................................................................. 51 5.1. Conhecendo o território .......................................................................................................... 51 5.2. A ocupação histórica do território ........................................................................................... 53 5.3. Usos atuais do território .......................................................................................................... 57 5.4. Associação quilombola e reivindicação territorial ................................................................... 63 Considerações Finais e Conclusões ........................................................................................... 68 Referência Bibliográficas ............................................................................................................. 70 Anexos 1. Mapas 2. Fichas de Identificação 3. Genealogia 4. Documentos 5. Lei Municipal de Congelamento
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Agradecimentos
Agradeço especialmente à comunidade residente no Sertão de Itamambuca pela
presteza no fornecimento de informações históricas e genealógicas que compõem este
relatório e pela disposição em me guiar por trilhas desativadas em dias de chuva ou sol
excessivos.
À Cleide Azevedo, ITESP Ubatuba, pelo apoio logístico em diversas situações.
À Carlos Henrique e Ignez, ITESP São Paulo, que acompanham de perto o trabalho
de reconhecimento, participando ativamente das reuniões realizadas com a comunidade.
À Rita Barros pelo entusiasmo com o qual desenvolve sua pesquisa pessoal sobre a
história da comunidade remanescente de quilombo do Sertão de Itamambuca.
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Apresentação
Este Relatório Técnico Científico (RTC) vem cumprir as exigências legais relativas
aos procedimentos de reconhecimento de comunidades remanescentes de quilombo no
Estado de São Paulo, visando a emissão dos títulos de propriedade da terra ocupada pela
comunidade residente no Sertão de Itamambuca, município de Ubatuba.
A elaboração do RTC segue os parâmetros conceituais sugeridos pela ABA
(Associação Brasileira de Antropologia) e obedece as normas técnicas estabelecidas pelo
Grupo de Trabalho na aplicação dos dispositivos constitucionais concernentes aos direitos
de propriedade dos remanescentes de quilombo em território paulista1. A argumentação
desenvolvida aqui busca imparcialidade descritiva e não se posiciona quanto à causa e os
desdobramentos políticos que impulsionam a comunidade do sertão de Itamambuca na luta
por seus direitos territoriais. O reconhecimento foi elaborado com base em definições
conceituais e estudos de campo, e reúne evidências históricas - documentais e orais - sobre
a “condição quilombola” da comunidade em questão. Garante-se assim, a idoneidade
antropológica na realização de laudos periciais voltados à finalidade a que este relatório se
propõe.
Esclarecemos, contudo, que os textos antropológicos são, em larga medida, e
mesmo quando tratam-se de laudos periciais, instrumentos de tradução, no qual os
fundamentos teóricos da disciplina são convertidos em linguagem apreensível e adequada
aos processos administrativos e/ou jurídicos envolvidos, neste caso, no reconhecimento
oficial de comunidades remanescentes de quilombo. A natureza flexível e contextual do
escopo conceitual da antropologia é condição que garante sua aplicabilidade à diversidade
das formas sócio-culturais existentes, e não deve ser confundida com excesso de
subjetividade do processo de análise antropológico.
1 O Grupo de Trabalho, criado pelo Decreto estadual nº 40.723, de 21 de março de 1996, foi composto de representantes da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva”, Secretaria do Meio Ambiente, Procuradoria Geral do Estado, Secretaria de Governo e Gestão Estratégica, Secretaria de Cultura, Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no Estado de São Paulo, Subcomissão do Negro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção São Paulo - e Fórum Estadual de Entidades Negras. Os trabalhos deste grupo resultaram na criação de: a) Programa de Cooperação Técnica e de Ação Conjunta para identificação, discriminação e legitimação de terras devolutas do Estado ocupadas por remanescentes de comunidades de quilombos e de sua regularização fundiária, implantando medidas sócio-econômicas, ambientais e culturais e b) um Grupo Gestor para implementação do Programa.
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Introdução
O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, criado pela
Constituição Federal de 1988 dispõe que
Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando
suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes
os títulos respectivos.
Em São Paulo, a regulamentação deste artigo foi sendo criada por sucessivos
decretos estaduais. O Decreto nº 42.839, publicado em 4 de fevereiro de 1998 estabelece
critérios e mecanismos para identificação das comunidades remanescentes de quilombo,
conforme se lê nos artigos abaixo:
Artigo 2º - Os Remanescentes das Comunidades de Quilombo, assim
definidos conforme conceituação antropológica, obedecido ao disposto do
artigo 15 do Decreto 41.774 de 13 de maio de 1997, serão identificados a partir
de critérios de auto-identificação e dados histórico-sociais, escritos e/ou orais,
por meio de Relatório Técnico Científico, elaborado no âmbito do Instituto de
Terras do Estado de São Paulo, “José Gomes da Silva” – ITESP.
Artigo 3º - Dos mesmos Relatórios Técnicos Científicos constarão os limites
totais das áreas ocupadas, conforme territorialidade indicada pelos
Remanescentes de Comunidades de Quilombos, que levarão em consideração
os espaços de moradia, exploração econômica, social, cultural e destinados
aos cultos religiosos e ao lazer, garantindo-se as terras necessárias à sua
reprodução física e sócio-cultural.
Em conformidade com o estabelecido por lei, este relatório expressa a auto-
identificação dos moradores do sertão de Itamambuca como remanescentes de quilombo e
reúne as informações histórico-sociais que comprovam esta condição. A proposta de
delimitação territorial apresentada pela comunidade também foi submetida à análise de
dados históricos e da necessidade de manutenção do sistema cultural da comunidade aqui
abordada.
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O presente Relatório Técnico-Científico está dividido em capítulos que abordam os
seguintes temas: metodologia de pesquisa; breve discussão teórica sobre a concepção
moderna de quilombo e as questões que envolvem território, identidade, memória e
oralidade; apanhado histórico sobre a escravidão em Ubatuba; localização da área
abordada e informações sobre sua situação fundiária; genealogia e ancestralidade
escrava; relações com o território e usos atuais do território; desenvolvimento da
organização política da comunidade e os critérios de delimitação do território proposto.
Ao final, considerações finais e conclusões encerram o relatório.
Em anexo encontram-se os mapas de ocupação e o mapa com o limite territorial
reivindicado; fichas de identificação, onde constam todas as famílias reconhecidas, por
residência; diagrama de parentesco; cópia de documentos cartoriais utilizados na
pesquisa; textos sobre a Lei Municipal de Congelamento de Núcleos Habitacionais de
Ubatuba.
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Notas metodológicas:
pesquisa bibliográfica, documental e etnografia
As viagens para realização da pesquisa de campo e as reuniões sobre definição do
território reivindicado ocorreram entre setembro e dezembro de 2007. Durante a
permanência em área foram feitas entrevistas com os moradores do local, reuniões
comunitárias, reuniões com poder público local, visitas ao território e registro áudio-
fotográfico.
A pesquisa documental veio somar informações à versão etno-histórica elaborada
por meio da sistematização da fonte oral. Registros imobiliários, certidões de nascimento,
casamento e óbito e documentos de identificação complementaram e comprovaram
relações genealógicas, precisando nomes e datas significativas para a reconstrução da
história familiar do grupo. A Cúria Diocesana de Caraguatatuba concentra o acervo de
certidões antigas da população de Ubatuba, incluindo a população escrava.
A pesquisa bibliográfica foi realizada a longo da investigação e focaliza aspectos
conceituais - relativos à definição das comunidades remanescentes de quilombo atuais - e
históricos - sobre o sistema escravista em São Paulo, e particularmente em Ubatuba. Nota-
se em geral um número reduzido de referências sobre a trajetória das populações afro-
descendentes, sobretudo os negros no campo, após a abolição.
Ao longo do relatório, os termos “comunidade”, “moradores antigos”, famílias
residentes” e “grupo” serão utilizadas para designar o conjunto de pessoas aparentadas que
estão ligadas à ancestral escravo no Sertão de Itamambuca, excluindo-se os demais
moradores do local, que não são parentes.
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Capítulo 1
Atualizando o debate conceitual sobre quilombo
1.1. Concepção de quilombo e identidade étnica
Com a constituição de 88, as comunidades vivas de afro-brasileiros que vivem em sítios
conhecidos e não conhecidos dos antigos quilombos, passaram a ser designadas oficialmente
“remanescentes de quilombos” e existem em várias regiões do território brasileiro. Essas
comunidades, em sua grande maioria, estão fora do contexto urbano e se caracterizam, antes de
tudo, pela descendência de africanos escravizados. A generalização da designação oficial permite
a inclusão de comunidades com histórias locais bastante diferenciadas e exige uma reformulação
da noção clássica de quilombo, cujo exemplo mais emblemático é Palmares2.
A pesquisa histórica e etnológica desenvolvida por Nina Rodrigues sobre os quilombos de
Palmares indica que suas dimensões e formas de organização social e econômica apresentavam
traços semelhantes às formas tradicionais africanas (sobretudo dos povos meridionais, os bantos).
Embora haja divergência entre os historiadores sobre a população real, estima-se que a maior
“cidade” de Palmares chegou a 1.500 edificações, divididas em pequenas tribos ou vilas, que eram
chefiadas por um membro detentor de autoridade e prestígio local. No século XVII, em Palmares, a
mestiçagem já se processava no interior dos quilombos. As mulheres negras escravas eram
menos aptas a fugir dos engenhos e das fazendas onde trabalhavam, gerando escassez de
mulheres. Essa situação forçava o “rapto” de mulatas e brancas que viviam no entorno. Além
dessas mulheres, havia também foragidos não negros.
Que na organização de Palmares tivessem tido voto e peso os foragidos de cor
de todos os matizes, temperando e não mascarando o ascendente de chumbo
da direção africana, é coisa natural e com que se devia contar. Palmares
nascia desse mesmo ajuntamento de escravos e aventureiros de cor que nem
todos eram negros (Rodrigues, 2004: 95).
Esquematicamente, os “quilombos clássicos”, tais como aparecem na descrição de
Rodrigues, são aqueles locais isolados geograficamente, próximos de uma natureza “selvagem”,
2 Há diversas versões sobre a constituição e duração dos quilombos de Palmares, ou República de Palmares, como chamavam alguns. Historiadores fixam a data de 1630 para o início da formação desses quilombos.
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que abrigam um número razoável de negros escravos fugidos, com construções chamadas por
eles de “ranchos”, com capacidade de subsistência e reprodução3.
Esses atributos não são pré-requisitos formais para o reconhecimento que se faz
atualmente dos grupos remanescentes de quilombo; todavia, as descrições sobre o quilombo de
Zumbi ainda permeiam o imaginário coletivo.
A inadequação da definição clássica, pautada no binômio fuga/resistência, reside na
cristalização da existência dos quilombos num tempo passado, no qual vigorava a escravidão e os
assentamentos negros eram vistos apenas como focos isolados de resistência ao regime,
destituídos de positividade sócio-cultural e identitária. A atualização do conceito de quilombo na
antropologia vem desfazer esse imaginário e ampliar o conjunto diversificado de experiências
históricas e constituições étnicas de comunidades negras rurais cuja condição atual resulta do
período escravocrata4. O ponto agora é identificar as marcas históricas e sociais deixadas para
além da escravidão.
O estudo sobre a identidade e as formas de organização sócio-política dos
remanescentes de quilombo consiste em uma área razoavelmente recente na antropologia
brasileira, pois embora o artigo 68 complete 19 anos em 2007, a sua regulamentação só se
consolidou quase 8 anos depois. A experiência efetiva da maioria dos grupos negros
classificados na categoria de remanescentes de quilombo é ainda embrionária.
Segundo Arruti (1997), o emprego do termo “remanescente” no texto legal pode ser
visto como uma maneira de abordar a relação tensa entre continuidade e descontinuidade
histórica com o passado. Nota-se, contudo, que a expressão possui caráter ambivalente:
“remanescente” pode representar, por um lado, o “resto” ou a “sobra”, descaracterizada e
empobrecida de formas antepassadas; e, por outro, enfatizar o caráter de resistência
cultural e política que proporciona, no atual contexto, possibilidades territoriais, a retomada
de valores culturais perdidos e um retorno positivo às formas tradicionais.
Para resolver em parte esse dilema, deve-se recorrer aos pressupostos que
embasam os critérios de definição da identidade que está em jogo nesses grupos. Arruti
(1997) nota que a emergência desta nova categoria social demanda um deslocamento
analítico do eixo racial (que caracteriza a maior parte dos estudos sobre os afro-
descendentes) para o eixo étnico.
Com efeito, o tema da identidade étnica é central em todos os trabalhos
antropológicos sobre a questão quilombola, conforme orientações da Associação Brasileira
de Antropologia (ABA, 1995). Os critérios que definem uma identidade étnica podem ser
3 Almeida, 1999, reportando-se à definição empregada pelo Conselho Ultramarino de Portugal. 4 Ver Pereira, João B. B. “Estudos antropológicos das populações negras na Universidade de São Paulo”, in: Revista de Antropologia, vol. 24. São Paulo, 1981.
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derivados da idéia biológica de raça ou de aspectos que conformam a cultura. A
antropologia já rechaçou, há muito tempo, o critério racista, pois “é evidente que, a não ser
em casos de extremo isolamento geográfico, não existe população alguma que se
reproduza biologicamente, sem miscigenação com os grupos que está em contato. Com
esse critério, raríssimos e apenas transitórios seriam quaisquer grupos étnicos” (Carneiro da
Cunha, 1986 apud Anjos e Silva, 2004).
O critério cultural, por sua vez, deve ser aplicado com cautela, para evitar reproduzir
dois pressupostos equivocados: primeiro, o de tomar a existência da cultura como uma
característica primária, quando na verdade, a cultura é, antes de tudo, resultado da
organização do grupo étnico. O segundo erro é supor que a cultura partilhada pelo grupo
étnico seja, obrigatoriamente, a cultura dos ancestrais. Essa consideração pressupõe que a
cultura é estática, e não um sistema dinâmico. Se a definição de identidade étnica exigir que
o grupo reproduza exatamente a língua, religião, técnicas etc. de seus antepassados,
nenhum agrupamento humano poderá ser considerado um grupo étnico, pois a história
impulsiona a mudança cultural em toda parte. Para Carneiro da Cunha, “um mesmo grupo
étnico exibirá traços diferentes, conforme a situação ecológica e social em que se encontra,
adaptando-se às condições naturais e às oportunidades sociais que provêm da interação
com outros grupos, sem, no entanto, perder com isso sua identidade própria” (op. cit.).
Os grupos étnicos, entretanto, revelam mecanismos de resistência e processos de
afirmação étnica face às interferências na cultura tradicional. A tradição é, de certa forma,
algo inventado (como bem reconheceu Hobsbawn em A Invenção das Tradições, 1983) pois
resulta de uma seleção mais ou menos consciente de traços culturais que garantem a
preservação da identidade do grupo. Portanto, a cultura particular de um grupo étnico não é
tanto o seu pressuposto, mas de certa maneira um produto deste grupo (op. cit.).
Para tecer essas considerações, Carneiro da Cunha se debruçou sobre o conceito
antropológico de etnicidade, que busca compreender como opera essa dinâmica de
diferenciação cultural que decorre da construção de identidades contrastivas. Nas definições
clássicas de Barth, “o grupo étnico é uma forma de organização social em que os atores se
categorizam a si mesmos e aos outros com propósitos de interação” (1976: 16).
Esse autor evoca a dimensão relacional e contrastiva da identidade e sustenta que a
seleção de traços culturais diacríticos servem para diferenciar o nós e os outros. Nesses
termos, a identidade pode ser definida como uma linguagem que serve ao discurso político.
Segundo Max Weber, as comunidades étnicas são “formas de organizações eficientes para
resistência ou conquista de espaços” (Weber apud Carneiro da Cunha, 1986). Essa última
citação reforça o caráter politizado do discurso étnico:
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etnicidade é uma construção social no tempo, um processo que implica uma
relação estreita entre a reivindicação cultural e a reivindicação política e que
tem como referencial último não apenas ‘os outros’, mas também o
Estado/Nação no qual o grupo étnico (portador de tal reivindicação) está
inserido (Ramirez, 1984: 219 apud Brandão, 1986: 148).
É exatamente essa dinâmica que se observa entre os grupos de remanescentes de
quilombo: a identidade construída sobre as bases da ancestralidade escrava é utilizada na
arena política como argumento que fortalece a reivindicação de direitos territoriais. A
questão territorial consiste em outro aspecto da relação entre identidade étnica e grupos
quilombolas e merece atenção especial.
1.2. Identidades emergentes e território
O reconhecimento, por parte do Estado, de comunidades remanescentes de
quilombo em todo Brasil, e o aumento de grupos que se auto-reconhecem como tal,
instauram um fenômeno acelerado de construção de identidades étnicas. Essas
“identidades emergentes”, para usar a expressão de Marcus (1991), são construídas a partir
da recuperação do passado escravo e da memória coletiva. Nesse processo, se observa
que a identidade quilombola pode se sobrepor às identidades locais preexistentes, sem
substituí-las.
No caso dos quilombos do litoral, como o de Caçandoca e Cambury, ambos em
Ubatuba, verifica-se a coexistência das identidades caiçara e quilombola. Mas esse fato não
é exclusivo da população do litoral. As comunidade reconhecidas no interior, são formadas
por quilombolas que são também caipiras. No quilombo de Ivaporunduva existe
continuidade cultural entre os moradores deste bairro negro e os demais bairros rurais da
região (Queiroz, 1983).
Na realidade, as identidades não são excludentes. E quando estão sobrepostas, não
devem ser tomadas como incoerentes ou forjadas. Elas são legítimas e acionadas conforme
o contexto de interação. Na construção da identidade étnica que sustenta a reivindicação de
aplicação dos direitos reservados aos remanescentes de quilombo, o que está em jogo é a
produção de novos atores na cena política.
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O fenômeno atual que assistimos, do surgimento, resgate ou descoberta de
comunidades remanescentes indígenas e de comunidades remanescentes de
quilombo, corresponde à produção de novos sujeitos políticos, novas unidades
de ação social, através de uma maximização da alteridade (Arruti, 1997:19).
Se considerarmos que os remanescentes de quilombo são, em sua imensa maioria,
populações rurais que sobrevivem da terra, compreende-se porque a luta política pela terra
promove a mobilização e coesão das comunidades.
As populações tradicionais5 possuem uma relação estreita com a terra. A terra é, a
um só tempo, capital natural, meio de sobrevivência, de reprodução da vida e da sociedade
e também expressão da territorialidade, elemento da construção étnica e identitária do
grupo. Este ponto é fundamental: território e identidade estão inextricavelmente vinculados e
ambos são condições para a reprodução do grupo social. O território, para além de sua
dimensão física, é um lugar que inspira um sentimento de pertencimento e está investido de
uma história particular, construída pela coletividade que o ocupa. Além da base material, o
território fornece os elementos da imaginação simbólica e integra os aspectos que servem à
construção da identidade étnica. Deve-se ressaltar que a socialização do espaço físico
envolve a produção de conhecimentos sobre seus processos e espécies naturais, seus usos
práticos e representações simbólicas sobre o ambiente. Esse repertório de saberes
tradicionais (ou etnoconhecimentos) é transmitido por gerações e constitui um patrimônio
cultural a ser preservado.
A preservação dos modos de vida tradicionais depende do interesse da própria
comunidade e da valorização por parte da sociedade envolvente. Os mecanismos que
permitem essa sustentabilidade cultural encontram-se, eles mesmos, numa característica
própria de comunidades tradicionais: a celebração da memória e a oralidade como forma de
transmissão dos saberes.
1.3. Memória e oralidade
Embora ainda haja certa resistência por parte da historiografia oficial, a fonte oral já
conquistou legitimidade para amparar pesquisas histórico-antropológicas sobre lugares e
populações que carecem de documentação suficiente.
5 Ver em anexo definição descritiva para “cultura tradicional”. As características aventadas por Diegues (1993) servem de referência conceitual para a classificação dos grupos caiçaras e quilombolas do litoral.
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A reconstituição das histórias familiares e da ocupação do sertão de Itamambuca foi
possível graças ao exercício da memória que os moradores atuais dessa terra foram
convidados a fazer durante as entrevistas. O momento da entrevista, além de estabelecer
uma relação particular entre o pesquisador e seu informante6, promove a construção e a (re)
atualização de um discurso sobre o passado. Esse processo é coletivo e está vinculado à
questão da memória.
A memória é mais do que uma lembrança individual; ela resulta da interação social
(Halbwachs, 1990). O conteúdo da memória não é exatamente o que o grupo viveu: “a
memória transita no tempo e no espaço” (Anjos e Batista, 2004: 55), ou seja, ela pode se
servir de eventos do presente e absorver experiências que ocorreram fora do grupo.
Embora os velhos sejam os portadores ‘por excelência’ das lembranças sobre o
passado, a memória coletiva só se concretiza quando essas lembranças são compartilhadas
com as gerações mais jovens. O relato sobre o passado instaura o pertencimento do
indivíduo ao grupo e a continuidade dentro do tempo (Pollack, 1992 apud Menezes, Aires e
Souza, 2004).
A legitimidade das narrativas sobre o passado “não reside apenas em sua
‘veracidade histórica’, mas, sobretudo, na sustentação que encontra no grupo: ela deve
possuir eficácia simbólica, constituindo-se como um elemento de coesão social” (op. cit.:
55).
Nas populações ágrafas (ou orais) indígenas ou negras, a memória coletiva possui
status de contrato social. Ela veicula uma autoridade legítima na comunidade. Mais do que
isso, a memória é o mecanismo por meio do qual o discurso mítico e histórico é produzido,
permitindo às novas gerações atualizarem tradições. É interessante notar que os moradores
da Fazenda, e os caiçaras em geral que residem em locais onde as frentes de expansão
turística não chegaram de forma avassaladora, exibem reminiscências dessa oralidade. Isso
se observa na socialização das crianças, no modo como os conhecimentos e as práticas
são transmitidos.
Portanto, na reconstituição histórica das famílias do sertão de Itamambuca, a
utilização do dado oral não pretende tratá-lo como verdade objetiva, mas como importante
fonte de expressão da memória coletiva. A análise da fonte oral permite acessar aspectos
do sistema simbólico e revela o conjunto de valores que orienta a coletividade na definição
de sua história territorial.
6 A reflexão sobre a interação entre o pesquisador e seus informantes constitui um campo privilegiado para abordar questões teóricas e práticas que decorrem da metodologia aplicada (Bourdieu, 1999). Com efeito, os aspectos que caracterizam a interação revelam e, mais do que isso, integram o processo social que se quer conhecer. A pesquisa de campo estabelece um espaço de negociação de identidades. No caso da pesquisa realizada com a comunidade da
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No relatório técnico sobre os remanescente de quilombo de São Miguel (RS), José
Carlos Gomes dos Anjos escreve que:
A memória coletiva se constitui, aqui, em um conjunto de referências históricas
comuns, que permitem a reprodução inventiva das narrativas básicas de
fundação do território. Se essas narrativas são, de algum modo, reajustadas
em função das urgências do presente e reproduzidas nas vivências e nos
valores compartilhados, é preciso salientar que elas não são evocadas em
função de exigências utilitaristas com a preocupação de atender a demanda
por terras, através de justificativas históricas. A premência primeira que rege a
estruturação dessas narrativas é uma tentativa de recolocar em ordem o
mundo vivido (Anjos e Batista, 2004: 64).
Deve-se considerar também que existem processos de silenciamento da memória
(Pacheco de Oliveira, 1994), que ocorrem sobretudo em populações que passaram por
experiência opressivas. No desdobramento desta idéia, e de acordo com as definições dos
critérios de identidade étnica expostos acima, o autor defende que não há necessidade
premente do grupo se pensar como continuidade cultural dos ancestrais. Nesses casos, por
meio da recuperação da experiência histórica de opressão pode-se explicar os motivos da
não identificação dos remanescentes de quilombo com seus ancestrais escravos. Entre os
aspectos dessa opressão, destaca-se a prática de dissolução das famílias de escravos, que
produz em seus descendentes uma verdadeira amnésia genealógica.
Gusmão (1995) reconhece esse processo de silenciamento da memória no caso do
quilombo do Campinho quando se depara com relatos que negam sistematicamente a
condição escrava de mulheres negras que, indubitavelmente, serviram aos seus senhores
nas fazendas de açúcar de Paraty como escravas. Para casos assim, análises provenientes
da psicologia social podem auxiliar na elucidação desses mecanismos coletivos de
ocultamento de identidades estigmatizadas.
A reconstituição histórica da comunidade do Sertão de Itamambuca evidencia uma
‘amnésia’ relativa quanto à condição escrava de muitos homens e mulheres negras que ali
moraram no século XIX. Essa é uma das questões que o presente relatório pretende
abordar. Contudo, paradoxalmente, a organização política em torno da questão do território
quilombola está gerando um processo dinâmico de construção da identidade pautada na
ancestralidade escrava. Nessa luta pela terra se instaura um movimento de coesão social
que, embora não desfaça as clivagens internas da comunidade, fortalece a todos enquanto
membros de uma coletividade política.
A regulamentação do artigo 68 suscita uma reviravolta histórica no jogo de
identidades negras, sejam elas entre caiçaras ou caipiras. Agora é o momento das
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comunidades contempladas pelos direitos reservados aos remanescentes de quilombo
descobrirem o seu novo lugar na arena política e social. As lutas pelo acesso ao direito e o
exercício dessa nova identidade mostrarão os caminhos para a reconstituição de seu
passado e a manutenção e continuidade de seu modo particular de estar no mundo.
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Capítulo 2
Contexto histórico de Ubatuba: da escravidão à conservação
2.1. Sistema escravista e ciclos econômicos
Para situar o contexto histórico que impulsionou a ocupação do Sertão de
Itamambuca é necessário retomar os ciclos econômicos que movimentaram a colônia e
conhecer as características do sistema escravista que se desenvolveu em São Paulo, e
particularmente em Ubatuba.
Durante o período colonial, as terras do litoral paulista foram divididas em grandes
propriedades chamadas sesmarias, concedidas pela coroa portuguesa aos colonos. A partir
daí, foram implantadas as primeiras atividades agrícolas da região, tanto a produção para
consumo interno como para exportação. O processo de ocupação do litoral paulista pelos
portugueses foi acompanhado da entrada maciça de africanos (sobretudo do tronco Banto,
provenientes de Angola e Moçambique) e do extermínio quase completo dos índios
Tupinambá, habitantes nativos da costa brasileira. Em 1637, ano da fundação oficial da Vila
da Exaltação de Santa Cruz do Salvador de Ubatuba, o genocídio tupinambá estava
praticamente concluído (Marcílio, 1986) e os fluxos de escravos para a região se
intensificaram. As marcas do encontro entre os três povos ainda são percebidas na cultura e
no fenótipo do povo local, mestiço por princípio, denominado caiçara.
Os dados sobre população escrava no litoral do século XVIII ao XIX indica um
incremento significativo na utilização dessa mão-de-obra na região. No início dos anos 1900,
a população de escravos de Ubatuba somava 25% da população total do município
(Marcílio, 1986). Esse contingente foi aumentando à medida que o desenvolvimento agrícola
no litoral e no Vale do Paraíba foi demandando o emprego de mão-de-obra nas fazendas
produtores de açúcar e café. Os dados censitários apresentados abaixo indicam o
crescimento da população escrava no Vale do Paraíba e no litoral paulista em três datas
distintas.
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Tabela 1
Características da População do Vale do Paraíba e Litoral - Província de São Paulo
1777 1804 1829
V. Paraíba Litoral V. Paraíba Litoral V. Paraíba Litoral
Total de Habitantes 23.003 14.565 35.539 23.749 62.706 269.621
População Escrava 4.901 4.304 8.805 7.674 19.151 75.783
Proprietários de Escravos 913 768 1.592 1.275 2.744 10.884
Chefes de Domicílio 3.621 2.209 6.101 3.489 10.351 42.203
% Domicílios com escravos 25 35 26 37 27 26
% Escravos na população 21 30 25 32 31 33
Fonte: Luna e Klein, 2005: 148
Na segunda metade do XVII, Ubatuba desponta na cena econômica da colônia,
ainda como extensão da economia do Rio de Janeiro e passa a sofrer as oscilações dos
ciclos do ouro, cana-de-açúcar e café.
Ouro
Com a descoberta do ouro em Minas, na virada do século XVII para o XVIII, Paraty
foi um pólo irradiador, assumindo papel importante no controle e circulação de minérios
(Mello e Souza, 1994) e Ubatuba sofreu indiretamente os efeitos da expansão econômica do
município vizinho. Durante o período da mineração, milhares de colonos portugueses foram
atraídos para o Rio de Janeiro e São Paulo, gerando riqueza na região sudeste do país. Foi
o maior movimento migratório já ocorrido na colônia até então. O capital gerado pelo ouro
intensificou a compra de escravos africanos, que também chegavam aos milhares,
desembarcando principalmente no porto de Paraty. De Paraty, subiam a serra, pelo
Caminho do Ouro que liga o litoral a Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, e de lá eram
levados para as minas auríferas e diamantíferas de Minas Gerais. Nesta época, muitas
trilhas foram abertas nas encostas da serra do mar por contrabandistas que visavam
escapar dos impostos de Portugal sobre os minerais extraídos. Parte destas rotas
alternativas desciam por Ubatuba.
Portanto, embora o centro econômico ligado ao ciclo do ouro estivesse no Rio de
Janeiro, a produção açucareira de Ubatuba cresceu nesse período graças a absorção de
mão-de-obra escrava nas fazendas onde haviam engenhos de cana.
18
Cana-de-açúcar
Em fins dos anos 1600, Ubatuba produzia aguardente, açúcar, fumo, anil e peixe
salgado. O porto exportava açúcar e importava produtos para as fazendas da costa e do
planalto, porém sua importância era secundária com relação ao escoamento realizado no
porto de Santos. Datam dos últimos anos do século XVII a construção dos primeiros
armazéns e da Igreja matriz da Vila de Ubatuba (Arnt e Wainer, 2006: 61).
A expansão da lavoura de cana em Ubatuba se deu nas últimas décadas do século
XVIII, mas foram raras as fazendas montadas no local para atender o mercado
internacional. Em Ubatuba, sempre foram as roças de subsistência que predominaram na
economia e paisagem agrária do município (Marcílio, 1986). Em 1799, o litoral norte de São
Paulo contava com 13 engenhos e 114 escravos (Luna e Klein, 2005: 61) e a comunicação
com o Vale do Paraíba tornava-se mais intensa por meio do caminho que ligava Taubaté a
Ubatuba, servindo para promover a circulação de mercadorias e escravos.
Café
Foi no ciclo do café que Ubatuba atingiu o ápice de sua importância na economia
colonial. A porção sul do Vale do Paraíba e as regiões litorâneas do norte (Ubatuba,
Caraguatatuba e São Sebastião) abrigaram as primeiras fazendas de café na primeira
metade do século XIX, movidas pela mão-de-obra escrava (Luna e Klein, 2005; p. 17; Prado
Junior, 1974 apud Arnt e Wainer, 2006 ). Nesse período, duas zonas tornaram-se o centro
dos novos setores exportadores em expansão na capitania de São Paulo: o Vale do Paraíba
e o Oeste Paulista. Embora a comunicação entre o Vale do Paraíba e os portos costeiros
setentrionais fosse dificultada pela serra do mar, o escoamento da produção do Vale
passava pelas estradas abertas entre Taubaté e Ubatuba.
A partir de 1818, aumentou a presença de estrangeiros em Ubatuba, entre os quais
investidores franceses interessados no café (Arnt e Wainer, 2004: 61). Em 1835, o porto de
Ubatuba assumiu posição efetivamente importante nesse ciclo, tornando-se o mais
importante pólo embarcador de café do país7. Em 1854 havia no litoral paulista 633
fazendas cafeicultoras que empregavam 7.165 escravos (Luna e Klein, 2005: 90)
Embora nessa época Ubatuba vivesse um momento de expansão, a ocupação do
território era ainda esparso, como demonstra o censo de 1824. Nesse ano, a Vila de
Ubatumirim, por exemplo, concentrava o maior número de unidades domésticas do
7 Nesse ano, o porto de Ubatuba embarcou 229.373 arrobas de café contra 76.336 arrobas no porto de Santos (Silva, 2004: 52).
19
município: eram, ao todo, 70 fogos8, distribuídos ao longo da praia (Marcílio, 1986). E a
despeito da aparente autonomia dos núcleos domésticos, as comunidades sempre
mantiveram contatos com as cidades onde adquirem os bens que não fabricam (Willems,
2003 apud Arnt & Wainer, 2006: 16).
O que mais interessa aqui nas análises recentes de censos de população e de
produção9 é que o desenvolvimento agrícola de São Paulo e sua ascensão à posição de
potência mundial produtora de café no século XIX foi impulsionado pelo fluxo contínuo de
escravos africanos trazidos para o sudeste da colônia nesse período e não por uma
revolução tecnológica significativa. O trabalho era realizado com foice, machado e enxada e
praticamente não se usavam arados e animais, como nas propriedades do nordeste (Luna e
Klein, 2005). Portanto, o que garantiu o desenvolvimento de São Paulo foi o numeroso
contingente escravo trabalhando nas fazendas.
Ubatuba foi elevada a categoria de cidade em 1855. Dez anos mais tarde, a
produção cafeeira concentrou-se efetivamente no oeste paulista e Ubatuba saiu novamente
do cenário econômico da colônia. Houve um refluxo demográfico considerável10, que se
estendeu por muitas décadas, quando a abertura das estradas deu acesso à exploração
turística do litoral norte.
2.2. Um capítulo à parte: os negros libertos na economia cafeeira
A história dos negros libertos antes e após a abolição é pouco conhecida, mas
alguns estudos baseados em relatos de viajantes demonstram que à medida que as
fazendas de cana e café iam sendo desativadas, parte da mão-de-obra escrava obsoleta
tornava-se livre. Na zona do café, era comum que negros libertos se fixassem nas fazendas
de seus antigos donos e lá permanecessem (Franco, 1974 (1968): 95 e Siedler, 1945
(1835): 263-264 apud Carneiros da Cunha, 1984: 64; Gusmão, 1995). Outros se fixavam em
locais de difícil acesso, mas geralmente não muito longe das fazendas onde foram escravos.
A hipótese é que se instalando próximo às fazendas, os ex-escravos podiam comprovar sua
8 Fogos são unidades domésticas formadas por famílias nucleares que desenvolvem agricultura de subsistência. Cada fogo possui autonomia relativa: eventualmente os mutirões são convocados para realizar a construção de casas e trabalhos na roça. Antes da introdução do fogão a gás, cada unidade doméstica possuía o seu fogão a lenha. Como não havia luz elétrica, ao cair da noite, era possível contar as casas pelo número de fogos, que podiam ser vistos a distância. Esta é uma explicação possível para a utilização do termo “fogo” na designação tradicional da unidade doméstica caiçara. 9 Dados de 1750 a 1850. Esses documentos encontram-se no Arquivo do Estado de São Paulo, na cidade de São Paulo. 10 Em 1876, Ubatuba tinha 7.565 habitantes e em 1950 tinha 7.941 (SMA, 2005 apud Arnt e Wainer, 2006: 66).
20
alforria (quando esta não estava devidamente documentada), o que não seria possível em
locais onde não eram conhecidos. Assim foi se dando a ocupação do território pelos negros.
Nas regiões de café, os libertos parecem ter-se estabelecido nas vilas ou em terras
de cultivo mais difícil – por exemplo, nas encostas da Serra do Mar, periféricas às
grandes fazendas. O padrão é que desenvolvessem uma agricultura de subsistência
ou de mantimentos para o abastecimento das cidades (...) No Brasil, todo o
abastecimento das cidades acabou portanto, dependendo desses pequenos
agricultores, na maioria libertos. (Carneiro da Cunha, 1984: 62)
Koster, um viajante que andou pelo Brasil na época do cultivo de café, publicou suas
anotações de campo onde constam observações sobre a agricultura de subsistência e o
estoque de produtos encaminhado às cidades próximas.
Quanto à agricultura, só tenho a dizer em termos diretos que os estoques principais
de farinha, de feijão e de milho com que se aprovisionam as cidades, são cultivados
por pessoas livres de cor, estabelecidas por todo o país, onde o acaso ou a
inclinação as fixou. Moram em cabanas construídas de barro, que são de melhor ou
pior aparência, segundo a diligência ou a capacidade de seus donos, e a cada um
desses lugares é ligado um pedaço de terra para o trabalho de um ou de dois
homens. As terras pertencem sobretudo aos grandes agricultores e são alugadas às
classes inferiores de pessoas a baixo preço. As grandes lavouras dedicam-se ao
açúcar e ao algodão e raramente cultivam mais mandioca (o pão desta terra) ou
feijão do que é necessário para o consumo dos escravos (Koster, 1816:336 apud
Carneiro da Cunha, 1984: 62).
As descrições apresentadas sobre a economia de subsistência dos negros libertos
convergem com aspectos da chamada “economia rústica” típica dos caiçaras que habitam a
costa do Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro (Mussolini, 1952; Marcílio, 1986; Diegues,
1994). Há, sem dúvida, continuidade histórica e genealógica entre esses grupos de
lavradores formados por negros libertos e a conformação tradicional da população caiçara,
mestiça de negros, índios e brancos. Foi essa população mestiça de lavradores e
pescadores dispersos pelo território entre Ubatuba e Paraty que os primeiros fluxos de
turistas encontraram quando as estradas de asfalto foram abertas.
21
2.3. Turismo e unidades de conservação: dilemas na manutenção da cultura
“tradicional”
A partir da década de 70, o crescimento demográfico do litoral norte tornou-se o
maior do Estado de São Paulo: a população de Ubatuba, Caraguatatuba, São Sebastião e
Ilha Bela em 1970 era de 48 mil e pulou para 270 mil em 2005. Nos meses de verão
ultrapassa 1,3 milhão (SMA, 2005).
As frentes de expansão da indústria do turismo avançaram rapidamente no litoral. Os
caiçaras, seduzidos a vender suas posses, foram sendo paulatinamente expulsos das áreas
de praia e mudaram-se para bairros periféricos. A abertura da Rio-Santos no trecho entre
Ubatuba e Paraty, em 1974, promoveu a chegada maciça de turistas de São Paulo e Rio de
Janeiro e alterou profundamente a economia “anfíbia” (Willems, 2003) típica dos caiçaras,
caracterizada pelas atividades de pesca e agricultura de subsistência. Nas roças caiçaras
predominavam a mandioca, feijão, milho, batata-doce, cana-de-açucar e banana, mas havia
frutas em abundância, cultivadas nos terrenos próximos às residências: abacate, jaca,
jambo, limão, fruta do conde, jabuticaba, cambucá, goiaba, araçá, pitanga, cacau,
grumixama e coco são alguns exemplos. A coleta de palmito também serviu como fonte
alimentar e de renda para estas populações. Com o perigo da extinção da palmeira donde
se extrai o palmito, a atividade de coleta foi proibida.
A invasão turística do litoral contribuiu decisivamente para o declínio da agricultura
de subsistência e da pesca artesanal, pois gerou demandas que a produção tradicional não
seria capaz de suprir. No caso da pesca, os cercos e canoas dos pescadores tradicionais
não são páreo para as grandes embarcações pesqueiras, munidas de radar e equipamentos
que varrem o fundo do mar. Embora funcione sazonalmente, a economia turística cria
postos de trabalho e força as comunidades tradicionais caiçaras a se adaptarem às novas
alternativas de emprego.
Paralelamente e, em grande medida condicionadas pela ameaça que
desenvolvimento do turismo representa para o meio ambioente, diversas unidades de
conservação foram criadas em Ubatuba a partir dos anos 70 (Parque Estadual da Serra do
Mar, Parque Nacional da Bocaina, Terras Indígenas, Áreas de Proteção Ambiental e Áreas
tombadas pelo Patrimônio Histórico) somando 80% dos 748 km² do município (MMA, 2004
apud Arnt e Wainer, 2006). Estas unidades de conservação (com exceção das Terras
Indígenas) impõem, em maior ou menor grau, restrições a presença humana e ao uso dos
recursos, contribuindo para solapar as bases econômicas do modo de vida caiçara.
Portanto, em Ubatuba, os efeitos da preservação ambiental sobre as comunidades
ditas tradicionais são ambíguos: ao mesmo tempo que contêm o crescimento desordenado
e a especulação fundiária que expropria a população nativa, as restrições impostas alteram
22
o padrão de ocupação e subsistência tradicional, pressionando a população a se inserir no
mercado de trabalho gerado pelo turismo. O caso do sertão de Itamambuca é emblemático
desse tipo de processo. A maioria maciça dos moradores desta área trabalha em casas de
veraneio no condomínio Itamambuca, prestando serviços como jardineiros, faxineiros,
cozinheiros, pedreiros, pintores, marceneiros ou vigilantes.
Deve-se considerar que a velocidade com que as transformações se processam no
modo de vida das comunidades tradicionais faz com que muitas de suas características
mais contundentes tornem-se exceções na práxis dessas populações. Isso não significa,
entretanto, que a memória tenha sido perdida e que este processo seja completamente
irreversível. Nos últimos anos, algumas comunidades foram reconhecidas em Ubatuba, com
a finalidade de assegurar sua continuidade cultural. São elas: as comunidades
remanescentes de quilombo do Camburi e Caçandoca e as comunidades caiçaras de
Picinguaba e Ubatumirim. No Sertão da Fazenda há uma comunidade aguardando
oficialização do reconhecimento como remanescente de quilombo. E aqui, por meio deste
relatório, pretende-se verificar a condição quilombola do grupo familiar residente no Sertão
de Itamambuca.
23
Capítulo 3
Sertão de Itamambuca: espaço e histórico fundiário
Este capítulo localiza o Sertão de Itamambuca e aborda sua história fundiária,
buscando elucidar o processo de ocupação e transmissão de imóveis que culminou na
formação da atual malha fundiária da região.
3.1. Localização e acesso
O Sertão de Itamambuca situa-se à esquerda da rodovia Rio-Santos (BR 101,
sentido norte), na altura do quilômetro 37. O acesso se dá pela Estrada da Cazanga (ou
Estrada Municipal de Itamambuca, como é também conhecida atualmente), um antigo
caminho utilizado pelos moradores dos bairros do norte para chegar na cidade de Ubatuba
antes da construção da via de asfalto. A Estrada da Cazanga possui aproximadamente 6,5
km de extensão e liga Itamambuca ao Perequê-Açu, na altura do quilômetro 45 da BR,
cortando por dentro.
Cazanga e Sertão de Itamambuca são bairros vizinhos, mas não há consenso dos
moradores do lugar quanto ao emprego dos nomes: alguns chamam toda a região,
indistintamente, de Cazanga, considerando o nome antigo da estrada que corta a área;
outros distinguem Cazanga e Sertão de Itamambuca, reconhecendo dois núcleos
habitacionais distintos. A divisa dos bairros perpassa a Estrada da Cazanga na altura da
escola, a meio caminho entre o trevo do Perequê-Açu e a entrada para o Sertão de
Itamambuca.
O nome Itamambuca vem do tupi. Ita: pedra; mambuca: porosa. Acredita-se que
assim se chame devido à força das ondas que batem nas pedras na costeira da praia. O
nome Cazanga vem do quimbundo, língua bantu mais falada em Angola atualmente.
Cazanga é o nome de uma Ilha na Província de Luanda, mas o significado e etimologia não
estão disponíveis nos dicionários quimbundo consultados.
O Sertão de Itamambuca adentra o vale do rio Itamambuca e distancia-se do mar
numa inclinação branda em direção a serra. A área que acompanha o leito do rio estende-se
por mais de 7 km a partir da praia até chegar a altitude de 100 metros. O rio Itamambuca
nasce nas montanhas próximas a São Luiz do Paraitinga e desce as encostas da Serra do
Mar tornando-se caudaloso e criando poços com mais de 40 metros de diâmetro11. O
Itamambuca passa por baixo da rodovia Rio Santos e segue em direção ao mar,
11 O poço do Angelim é o maior do rio Itamambuca e está situado dentro do território proposto pela associação, próximo à divisa do Parque.
24
desaguando no canto direito da praia de Itamambuca. Um de seus principais afluentes é o
Rio Arataca, estreito fluxo d’água permanente que desaparece em meio à vegetação que
cresce em suas margens.
Enquanto se dirige ao seu destino final nas águas do Itamambuca, o Arataca segue
paralelo à Estrada da Cazanga, passando em frente ao núcleo de casas que se formou ao
longo da estrada, no entorno das igrejas, próximo à vida social do bairro.
No Sertão de Itamambuca, a cota 100 marca os limites do Parque Estadual da Serra
do Mar, unidade de conservação integral decretada em 1977. O Parque abrange 315.000
hectares e é a maior unidade de conservação da Mata Atlântica. As áreas do Parque que se
encontram no município de Ubatuba são administradas pelo Núcleo Picinguaba, sediado
próximo à praia da Fazenda, no quilômetro 7 da rodovia Rio-Santos.
Nas áreas de domínio do Parque incide legislação ambiental específica que restringe
a presença humana e proíbe manejo de espécies, extrativismo e atividades de cultivo em
áreas não previstas no Plano de Manejo. O Plano de Manejo do Parque Estadual da Serra
do Mar, aprovado em 2006, elaborou um zoneamento das áreas do Parque no qual as terras
do Sertão de Itamambuca acima dos 100 metros estão na Zona Primitiva12 e alguns trechos
isolados na Zona de Recuperação13.
12 A Zona Primitiva “é aquela onde tenha ocorrido pequena ou mínima intervenção humana, contendo espécies da flora e da fauna ou fenômenos naturais de grande valor científico. O objetivo geral do manejo é a preservação do ambiente natural e ao mesmo tempo facilitar as atividades de pesquisa científica e educação ambiental, permitindo-se formas primitivas de recreação” (IBAMA/GTZ 1996). 13 Zona de Recuperação: “é aquela que contém áreas consideravelmente antropizadas. Zona provisória; uma vez restaurada, será incorporada novamente a uma das zonas permanentes. As espécies exóticas introduzidas deverão
Rio Itamambuca Rio Arataca
25
O Plano reconhece quatro zonas histórico-culturais antropológicas em Ubatuba:
Camburi, Vila de Picinguaba, Sertão da Fazenda e Sertão de Ubatumirim. Nessas áreas,
além do reconhecimento da presença humana, as comunidades tradicionais têm acesso
diferenciado aos recursos naturais dentro da unidade de conservação, com atividades
extrativistas permitidas.
A distância do núcleo residencial do Sertão de Itamambuca até a pista da BR 101 é
de 2 a 4 quilômetros , trajeto que os moradores percorrem diariamente, a pé ou de bicicleta.
As pessoas que moram entre os núcleos do Sertão de Itamambuca e Cazanga utilizam a
Estrada do Ranário, que interliga a Estrada da Cazanga à BR 101. Há uma linha de ônibus
municipal que trafega por toda a extensão da Estrada da Cazanga, mas sendo apenas duas
vezes ao dia, não atende a necessidade da população. Quando precisam se deslocar ao
centro da cidade e outros bairros, os moradores caminham ou pedalam até a pista e
embarcam nos ônibus que atendem os bairros do norte (Camburi, Picinguaba, Almada,
Ubatumirim, Puruba e Promirim). A prefeitura disponibiliza condução escolar para as
crianças do Sertão de Itamambuca e Cazanga. A maioria das crianças até 10 anos
freqüenta a escola situada no condomínio. As crianças maiores se dirigem às escolas
próximas ao centro de Ubatuba.
ser removidas e a restauração deverá ser natural ou naturalmente induzida. O objetivo geral do manejo é deter a degradação dos recursos ou restaurar a área. Esta zona permite uso público somente para educação” (IBAMA/GTZ, 1996)
Estrada da Cazanga
27
3.2. Ocupação e histórico fundiário
Pode-se dividir a história recente de ocupação do Sertão de Itamambuca em três
fases principais. A primeira ocorreu durante o século XIX, quando o Sertão de
Itamambuca sediava uma fazenda de café, cuja produção era realizada com mão-de-obra
escravizada. Nessa fase, o crescimento populacional da região estava em franco
crescimento, mas o povoamento ainda era esparso. A segunda fase perdurou do início do
século XX até os anos 60,70 e se caracteriza pelo refluxo populacional relacionado à uma
espécie de “hibernação” econômica da região. Este é o período em que houve a
desativação da produção cafeeira e a permanência dos escravos e suas famílias nas
terras, antes da retomada que se deu com o surgimento dos mercados imobiliário e
turístico. A terceira fase, que se estende desde os anos 70 até os dias atuais, apresenta
um crescimento desordenado da população residente, com a chegada de migrantes
mineiros e de outros estados e a alteração do padrão tradicional de ocupação - com a
diminuição dos terrenos - e usos da terra. Se o congelamento do Sertão de Itamambuca
produzir efeitos concretos sobre a ocupação da região, ou seja, paralisar o processo de
urbanização do bairro, haverá uma reconfiguração do padrão de ocupação que vem se
instaurando no local.
As informações reunidas a seguir procuram elucidar fatos e identificar indivíduos
significativos da história de ocupação do Sertão de Itamambuca, com atenção aos
conflitos territoriais que os moradores antigos do local enfrentaram e ainda enfrentam no
processo de ocupação pós anos 70.
Como em outras áreas do litoral paulista, o histórico de ocupação do Sertão de
Itamambuca está marcado por conflitos fundiários e por uma cadeia possessória não
conhecida. Para solucionar imprecisões dominiais de terras na região, a Ação
Discriminatória14 realizada pelo ITESP apura a titularidade das glebas, identificando terras
devolutas e particulares, apresentando a documentação comprobatória da cadeia
sucessória de imóveis na área.
Embora a Ação Discriminatória forneça dados fundiários importantes para
visualizar a situação imobiliária, a malha fundiária do sertão de Itamambuca não é ainda
completamente conhecida. É possível, outrossim, estabelecer um retrato da ocupação, o
que não reflete a situação formal das terras, mas permite rastrear os desafios no
reconhecimento territorial de uma comunidade quilombola no local.
14 Processo ITESP n°848/2000.
28
Segundo informações orais recolhidas por meio de entrevistas realizadas com
moradores antigos do Sertão de Itamambuca (parentes e não parentes de membros da
comunidade), o primeiro proprietário de terras no Sertão de Itamambuca e Cazanga que
se tem notícia chamava-se Modesto Antônio Barbosa. Modesto era senhor de escravos
no final do século XIX e possuía uma fazenda no lugar denominado “Itamonbuca”15 onde
se plantava café e havia um engenho de cana. No período em que a produção de café do
Vale do Paraíba era escoado pelo porto de Ubatuba, a fazenda de Modesto Antônio
Barbosa produzia café utilizando mão-de-obra escrava. Com o declínio da economia
cafeeira na região, a produtividade da fazenda de Modesto caiu, assim como o interesse
pela área. Modesto Barbosa dividiu seus imóveis e os transmitiu a seus ex-escravos, que
lá viveram e deixaram descendentes. O documento transcrito a seguir (cópia anexada ao
final) fornece evidências probatórias do beneficiamento dos ex-escravos de Modesto
Barbosa.
“Luiza, Manoel, Rita, Josefa e Francisca Paulo, ex-escravos de Modesto Antonio
Barbosa adquirem do Espólio de Modesto Antonio Barbosa, em decorrência de folha de
pagamento extraída dos autos de inventário de Modesto Antonio Barbosa, pelo escrivão
do 1° Ofício desta cidade, José Bruno Rodrigues em 19 de março de 1945, pelo valor de
193$000 Cr$ 193,00, sem condições o seguinte imóvel: Luiza – ficou com uma parte de
terreno sítio Jiçara, deste município e comarca, no valor de 18$60 e com uma parte de
terras denominado Saco Grande, no valor de 4$000. Ao legatário Manoel Paulo, coube a
casa à Rua Direita, desta cidade, n° 23 – avaliada e uma parte em 50$00. Uma parte de
terras no sítio Jiçara no valor de 13$100 e uma parte de terras no lugar denominado
Saco Grande, no valor de 4$000. A legatária Rita, coube uma parte de terras no sítio
Jiçara no valor de 26$000 e uma parte de terras no valor de 4$000. A legatária Josefa,
coube terras no sítio Jiçara, no valor de 26$000 e nas terras Saco Grande no valor de
4$000. A legatária Francisca coube uma parte de terras no sítio Jiçara no valor de
26$000 e uma parte de terras no sítio Saco Grande no valor de 4$000. Ao legatário
Manoel Paulo coube ainda 13 (treze) braças de terras na Barra do Itamambuca pelo
valor de 13$000 – Valor dos Imóveis Sítio Jiçara – avaliado 110$000 – Saco Grande –
20$000 – Barra do Itamambuca 13$000 – Casa à Rua Direita por 50$000 – Total 193,00,
conforme folha de pagamento extraída do inventário de Modesto Antonio Barbosa,
processado e julgado por sentença de 25 de abril de 1888 pelo cartório de 1° Ofício
desta comarca. Certifica ainda que a margem da transcrição na coluna de Averbações,
constam as seguintes anotações: Destes imóveis foram transmitidas partes a Manoel
Paulo Barbosa, conforme transcrição n° 999, folha 70 do L° 3-E. Ubatuba, 30/4/1951.
Tereza Paulo Barbosa e outros adquiriram o restante do imóvel, conforme a transcrição
n° 1.109 folhas 15 do livro 3-F. Ubatuba, 2 de junho de 1952”. 15 Grafia utilizada na certidão fornecida pelo Setor de Paleografia do Arquivo do Estado (transcrição do registro n°498 do livro 124 de Ubatuba, folha n° 111).
29
Dos nomes mencionados no documento, Luiza, Rita e Manoel Paulo figuram na
genealogia dos atuais residentes do Sertão do Itamambuca. A história genealógica será
abordada adiante. Por hora, deve-se reter as referências ao histórico fundiário da região.
Atualmente, a maior parte dos dois sítios mencionados no documento - Jiçará e Saco
Grande - pertencem a duas empresas que vem traçando um histórico de conflitos
territoriais com a população loca, que se considera proprietária original das terras. O
documento acima não informa a data do inventário de Modesto Barbosa, dificultando a
localização do mesmo nos arquivos. A ausência do inventário é em parte compensada
pela memória de pessoas antigas da região que prestaram depoimentos, e por
documentos que confirmam relações genealógicas e datas que contribuem na
reconstituição do histórico fundiário do local.
Há pouco material documental sobre a vida das pessoas que moravam nesta
região no período entre a desativação da fazenda de café e os anos 60 e 70, quando
chegam os primeiros compradores de grandes porções de terra no Sertão de
Itamambuca. Se, como narram os moradores antigos, as famílias dos descendentes de
escravos ficaram nas terras trabalhando para usufruto e, como se sabe, a economia do
município de Ubatuba arrefeceu com a crise do café, é bem provável que durante pelo
menos 50 anos, os moradores do Sertão de Itamambuca experimentaram uma “vida
rústica”, típica das populações rurais, caracterizada pela atividade de cultivo, produção de
farinha e um certo despojamento de convenções e instituições sociais formais. Em
comunidades rurais é comum as pessoas não conhecerem precisamente sua idade e se
casarem sem protocolos rituais e religiosos. Nesse período, a ocupação do Sertão de
Itamambuca permaneceu estagnada, voltando a crescer apenas quando os novos
acessos ao litoral trouxeram a atividades ligadas ao turismo, reaquecendo a economia do
litoral norte e revalorizando as terras entre a serra e o mar.
No sertão de Itamambuca, por sua proximidade ao centro da cidade, as pressões
territoriais vieram rapidamente. A comunidade que ali vivia com base em uma “economia
rústica” foi paulatinamente perdendo espaço. Seduzidos a vender aleatoriamente suas
posses, sem assessoria jurídica e por preços irrisórios, os lavradores, em sua maioria
analfabetos, assinaram contratos de compra e venda de sítios herdados que pertenciam à
toda a família.
Este processo varreu praticamente toda a população que vivia na praia de
Itamambuca, mas os efeitos sobre o sertão também são visíveis. O desmembramento e
loteamento sistemáticos de terras em Itamambuca começaram na década de 70, quando
as primeiras casas do condomínio Itamambuca foram construídas junto à praia. Já nessa
época, os moradores nativos foram chamados para auxiliar na construção das casas e
nas obras de infra-estrutura. Nestes 30 anos, o loteamento de Itamambuca tornou-se o
30
maior e mais luxuoso condomínio do norte de Ubatuba e criou uma economia local,
absorvendo mão-de-obra dos bairros próximos e gerando renda para muitas famílias. O
tamanho dos lotes varia de 500 a 1.500m² e atualmente existem casas sendo vendidas
por até R$ 1.500.00,00 (um milhão e meio de reais).
No sertão de Itamambuca, onde as terras são mais baratas, houve nos últimos 10
anos um fluxo migratório, principalmente de pessoas provenientes de Minas Gerais,
trazendo à região uma demanda por pequenos lotes para fins residenciais. Os moradores
originais do Sertão de Itamambuca e Cazanga atenderam a demanda e lotearam suas
terras gerando um adensamento populacional desordenado que alterou, em algumas
áreas, o padrão tradicional de organização territorial da comunidade. Onde a
concentração de forasteiros é maior, o padrão disperso das habitações caiçaras cedeu
lugar à um modelo urbano, no qual os terrenos são menores, as casas mais próximas
umas das outras e os quintais pequenos, impossibilitando até mesmo atividades de cultivo
doméstico.
No Sertão de Itamambuca, as glebas são de tamanhos variáveis. Além da
proliferação de pequenos lotes16, existem duas grandes propriedades: a Correias Mercúrio
Indústria e Comércio e a Cassanga Administração e Participações. Outras 3 áreas de
tamanhos intermediários também estão situadas em locais que a comunidade reconhece
como sendo parte de seu território histórico (sobre o território, ver capítulo a seguir). São
elas: a gleba da família Paioletti; a gleba de Renê André Reindl (proprietário da área
conhecida como Ranário); e Silvino Teixeira Leite Filho. No relatório apresentado na Ação
Discriminatória, as três glebas mencionadas e parte da Cassanga Administração e
Comércio são indicadas como terras devolutas por falta de documentos que comprovam
domínio.17
As relações estabelecidas historicamente entre os moradores originais do sertão
de Itamambuca com as duas maiores empresas da região (Correias Mercúrio e Cassanga
Administração e Participações) merecem atenção especial, pois figuraram como tema
proeminente na fala de diversos membros do grupo. Com a contribuição dos relatos de
membros da comunidade – sobretudo daqueles que acompanharam a chegada dessas
empresas à região - funcionários e ex-funcionários da empresa, pôde-se elaborar uma
versão local desta história.
16 Ver o volume de habitações de pessoas de fora e os nomes correspondentes aos lotes nos mapas de ocupação (Anexo 1). 17 Folhas 174 e 175 do Processo ITESP 848/2000.
31
• Correias Mercúrio S/A Indústria e Comércio
A empresa, criada em 1945 para fabricar correias de transmissão de energia.
Sediada em Jundiaí, Estado de São Paulo, tem representantes em 16 estados brasileiros
e atua no setor de agro-negócios (açúcar, álcool e destilados; adubos e fertilizantes;
armazéns gerais e cerealistas; cítricos; fumageiros e cigarros, óleos e rações, frigoríficos
e alimentos; agropecuária, avicultura e suinocultura, montadora e fábricas de
equipamentos); extração e transformação (mineração e siderurgia; mármores e granitos;
carboríferas; cimento e indústria de agregados; salineiras; alumínio e gusa); e industrial
(corrimãos para escada rolante; papel, papelão e celulose; vidrarias; têxtil; metalúrgicas e
fundições; bebidas; calçados; montadoras e fabrica de equipamentos; cerâmicas;
químicas e petroquímicas; madeiras, móveis e aglomerados).
A Correias Mercúrio adquiriu
terras no Sertão de Itamambuca no
início da década de 70 e manteve o
nome original da Fazenda, alterando
apenas a grafia (de Jiçará para Jissará).
A área que pertence à Correias
Mercúrio sobe as encostas da serra do
Mar e faz divisa com áreas de
preservação do Núcleo Santa Virgínia
do Parque Estadual da serra do Mar.
Ao longo desses quase 40 anos, a Correias Mercúrio utilizou a área do sertão de
Itamambuca para fins agrícolas e, durante um tempo limitado, para extração de minério.
Atualmente, milhares de pés de palmito pupunha são cultivados na área.
A obtenção da Fazenda Jissará foi paulatina; a empresa foi comprando as posses
dos moradores nativos. José Benedito dos Santos18 foi um dos primeiros a vender uma
área para a empresa, em 1971. Conforme relato de sua irmã Maria Benedita dos Santos,
ou Mariazinha19, a empresa ocupou uma área maior do que a que foi vendida. José Luís
Januário Leite20 e seu irmão Benedito Domingos Leite21, que morava nas imediações da
casa 4 da Correias Mercúrio quando a área foi comprada, trabalharam para a empresa,
juntamente com o pai, Benedito Januário Leite (ou Jordão, como era conhecido). Logo
que a empresa comprou terras no sertão de Itamambuca, o pai e os dois filhos fizeram a
abertura das picadas divisórias da propriedade, percorrendo o perímetro total das áreas
compradas e das áreas invadidas pela empresa. Benedito Domingos afirma que a 18 Ou Dito, como é chamados pelos familiares. Ver anexo 2: fichas de identificação, casa 34. 19 Idem: casa 30. 20 Ver Anexo 2: Fichas de Identificação, Casa 9. 21 Idem: casa 2.
32
Correias Mercúrio ocupou terras que não comprou. No seu entendimento, a empresa
adquiria terrenos descontínuos e registrava um perímetro maior, que incluía áreas entre
as terras compradas. Além disso, as terras na margem direita do rio Itamambuca também
foram invadidas pela empresa.
Em entrevista realizada durante a elaboração deste relatório, José Januário Leite
fornece o seguinte relato sobre a implantação da empresa no local:
“A casa 1 da Mercúrio, onde mora o Maurão22, a Oulizia vendeu. A segunda casa, lá em
cima, foi o pai da Creusa, meu sogro, que vendeu. Só que no meio tinha um pedaço que
não tinha dono, porque o tio dela tinha ido embora e eles pegaram também, e pegaram
aquela outra parte de cima. Aí, lá em cima, na casa 4, quem vendeu foi um tio meu. Ali
pra baixo da divisa com o terreno da Mariazinha tem uma casa, não tem? Ali quem
vendeu foi um tio meu, o falecido Benedito Barbosa, irmão da minha mãe. Ficava pra
baixo da casa da Mariazinha, faz divisa com o terreno da Mariazinha. E ali onde mora a
Mariazinha, o Zezinho, esse que vai na reunião, vendeu aquilo ali para a Mercúrio, olha
só. O José Benedito dos Santos, irmão da Mariazinha! Ele mora no Sumidouro. Ele
vendeu aquilo ali pra Mercúrio. Ele morava com a madrinha Vicentina e o padrinho
Bastião, ou Sebastião23, eu chamava assim, não sei o nome verdadeiro. Ele morava com
eles. Então, aí ele morreu, o Zezinho ficou com essa posse. O Zezinho é casado com a
minha prima, Maria o nome dela. Aí o Zezinho vendeu, só que quando ele vendeu, esse
meu tio, o pai da Mariazinha e do Zezinho, tava em São Paulo; ele começou a trabalhar
na Correias Mercúrio. Foi o filho dele que vendeu; ele saiu e a casa ficou lá; era uma
casa grande, de forro de madeira. Aí, trouxeram esse tio meu, o pai da Mariazinha, pra
morar na mesma casa. Aí foi morando, morando, morando. Hoje essa casa foi
desmanchada. As casas que tem são tudo nova. Era lá em cima. Aí, a minha tia, que
morreu ficou. Mandaram meu tio embora, que queriam a casa. A minha tia que morreu, a
tia Maria, botou panca que ela não tinha vendido nada, que quem tinha vendido era o
filho, e ela tinha direito. Foi brigando com a Mercúrio e entrou esse Dito, advogado e
ganhou as terras. A Mercúrio comprou, mas perdeu. Você vê, se ela tivesse tanto direito
ela ganhava a terra. Ela perdeu pra Tia Maria. Aí o Dito pegou, não sei como é que ele
fez, e tirou usucapião”
A fala de José Luís narra a venda sucessiva de partes do Sítio Jiçará e localiza as
áreas ocupadas abusivamente pela empresa. Nesse processo, muitas famílias que
residiam nessas terras foram removidas: Enedina Oliveira24, por exemplo, lembra-se que
22 Funcionário da Correias Mercúrio. Chama-se Márcio e mora com a família na Casa 1 da empresa. É pai de Marciléia, ver anexo 2: ficha de identificação, casa 28. 23 Refere-se a Antonio Manoel de Souza Temperado, ou simplesmente Temperado, como era conhecido pelos antigos moradores do Sertão de Itamambuca. 24 Ver anexo 2: Fichas de Identificação: casa 24.
33
quando era jovem seus pais foram pagos para deixarem a casa onde moravam, pois a
Correias Mercúrio queria desocupar a área e demolir casas velhas. A casa da família de
Enedina ficava em local isolado das outras residências, subindo o rio Itamambuca. Oulizia
Domingas dos Santos25, a pessoa mais idosa da comunidade, morou durante muitos anos
em casa de pau-a-pique onde hoje está situada a Casa 1 da Correias Mercúrio. Sua casa
também foi demolida para ceder lugar à casa de alvenaria onde residem os funcionários
da empresa. Em suma, quando os ocupantes tradicionais da região deram por si, a
Correias Mercúrio havia se implantado em quase todo o sítio Jiçará.
Desde então, as
relações entre a Correias
Mercúrio e os moradores são
conflituosas. A empresa
trancou o acesso ao terreno
de sua propriedade com
portões e arame farpado. São
dois portões: um na entrada,
próximo à Casa 1 e outro
depois da casa de Mariazinha
(foto ao lado), impedindo a
passagem para as trilhas ao
longo do rio Itamambuca e para as encostas da serra. A população local não aceitou o
fechamento do acesso a seu território histórico e abriu uma passagem na cerca de arame
ao lado do portão.
Conta Valnir Coutinho26, presidente da Associação dos Remanescentes de
Quilombo do Sertão de Itamambuca, que quando seu sogro, Benedito Jordão, vendeu
parte de suas terras para a Correias Mercúrio, houve conflito porque a empresa quis
remove-lo de uma área que não havia sido acordada na negociação da gleba vendida27.
Essa informação contrasta, entretanto, com o fato de Jordão ter sido funcionário da
Correias Mercúrio e ter tido relações profissionais amistosas com a empresa. E conflita
sobretudo com o fato de Benedito Jordão e Correias Mercúrio terem respondido
conjuntamente, como réus, a uma ação de reintegração de posse movida por Gustavo
Masset Junior e Yvone Masset, em 1975. O apelo de reintegração de posse foi julgado e
indeferido. O êxito obtido por Benedito Jordão e Correias Mercúrio deveu-se,
principalmente, à antiguidade de Benedito Jordão na área. Se houve conflitos entre
25 Idem: casa 25. 26 Ver Anexo 2: Fichas de Identificação, casa 5. 27 Nessa área moram hoje os filhos, netos e bisnetos de Jordão.
34
Benedito Jordão e a Correias Mercúrio, isso se deu posteriormente e não se configurou
como conflito deflagrado. Sua existência não foi mencionado por outros membros da
família de Benedito Jordão.
O único processo jurídico empenhado contra a Correias Mercúrio por parte de
membros da comunidade foi a ação de usucapião movida por Benedito José dos Santos e
sua família, e que já foi mencionada no relato de José Januário Leite, supra. O resultado
favoreceu a família Santos, que recuperou parte das terras que haviam sido vendidas à
empresa. O documento anexado contém informações do processo e o memorial descritivo
desse terreno.
Atualmente a Correias Mercúrio possui 6 casas de alvenaria construídas no interior
do Sítio Jiçará, mas apenas duas estão ocupadas por funcionários. Na Casa 1 reside um
casal cuja filha, Marciléia, casou-se com um morador nativo do Sertão de Itamambuca,
Carlos Henrique Leite28.
• Cassanga Administração e Participações
ou Cassanga Administração, Participação e Comércio Ltda
“Pessoa jurídica de qualificação desconhecida”, assim caracteriza a Ação
Discriminatória o proprietário da gleba de número 101. A “Fazenda Cazanga”, nome pelo
qual a propriedade é conhecida pelos moradores da região, abrange parte considerável
do bairro da Cazanga e uma porção menor do Sertão de Itamambuca, fazendo divisa com
áreas da Correias Mercúrio.
Segundo constam relatos de pessoas antigas da região, as terras da Cassanga
Administração e Participações pertenceram outrora a Manoel Paulo Barbosa, um dos
beneficiários que consta do documento em que Modesto Antônio Barbosa transfere seus
imóveis a seus ex-escravos (transcrição acima). No levantamento da cadeia sucessória
do imóvel que consta na Ação Discriminatória, a Cassanga não apresentou
documentação que comprove domínio sobre as glebas que possui.
Segundo o presidente da Associação Quilombola, Valnir Coutinho, uma parte das
terras da Cassanga foi vendida nos anos 60 para Erothides Demétrio Correa Junior, na
mesma época em que Eugenio29 comprou terras na área da praia pra construir o
condomínio Itamambuca. Com a morte de Erothides Correa, seu filho, Eduardo Correa e
Dr. Paulo30, advogado de Erothides, envolveram-se em processo judicial na disputa pelos
direitos de propriedade da área. Não foi possível localizar informações sobre o desfecho
da disputa, mas o fato é que, na região de divisa entre o Sertão de Itamambuca e a 28 Idem: casa 28. 29 O nome completo não foi identificado. 30 O nome completo não foi identificado. Dr. Paulo é o modo pelo qual os moradores da região se referem a um dos “proprietários” das terras da Cassanga.
35
Cazanga, na qual incide a reivindicação territorial da comunidade Dr. Paulo assumiu a
administração da propriedade.
No final de década de 80, Dr. Paulo contratou dois funcionários para permanecer
na área e zelar pelo patrimônio da empresa: em 1987 trouxe Modestino; e dois anos mais
tarde, Orlando. Na época em que foi contratado como encarregado geral, Orlando era
casado com a irmã do Dr. Paulo. Quando perguntado sobre a propriedade, Orlando
informa que a Cassanga Administração e Participações moveu ação contra o Estado
exigindo indenização de áreas que foram incorporadas ao Parque Estadual da Serra do
Mar e diz que Dr. Paulo possui 206 alqueires de terras escrituradas n região.
Modestino e Orlando não recebem salário e o vínculo com Dr. Paulo tornou-se
quase inexistente há muitos anos. Em retribuição pelos anos de serviços prestados, Dr
Paulo cedeu a cada um o terreno onde moravam. Com o relativo abandono da área, e
considerando a antiguidade de mais de 20 anos nas terras, Modestino e Orlando
assumiram o controle de áreas adjacentes às suas posses. Modestino repassou um
terreno ao lado do seu para uma família construir uma casa e Orlando sublocou metade
da sua residência para o casal Carlos Henrique Leite e Marciléia31.
Em 2005, entretanto, Dr. Paulo introduziu mais um caseiro na propriedade: Wilson
Lino e sua companheira Valdinéia Barbosa32. A casa que habitam desde 2005 situa-se à
beira da estrada da Cazanga, um pouco adiante da casa de Modestino e foi cedida por Dr.
Paulo para moradia. Em troca, o casal zela pela área. Nas adjacências desta casa estão
situadas as maiores evidências históricas da ocupação escrava no local, com ruínas de
edificações construídas com imensas pedras sobrepostas.
Deve-se atentar para o fato de que Valdinéia Barbosa é neta de Jonas Barbosa,
que por sua vez é herdeiro das posses de sua avó escravizada Luiza Barbosa. Segundo
Valnir, Jonas vendeu parte das terras que hoje pertencem à Cassanga. Porém, o mais
preocupante é verificar a situação precária de moradia e saúde dos descendentes de
Jonas, residindo em casas pequenas, pouco arejadas e escuras, espremidos entre
grandes casas de forasteiros que permanecem vazias a maior parte do ano. Valnir
menciona que a apropriação das terras da Cassanga Administração e Participações não
ocorreu de forma legal e existem protestos movidos contra a empresa. Na constituição do
patrimônio fundiário da Cassanga diversas áreas foram griladas. Não foi possível localizar
documentação referente a esta informação na elaboração deste relatório. O que se torna
evidente ao caminhar pela área é o número de ocupantes que se instalaram no interior da
gleba da Cassanga.
31 Ver anexo 2: fichas de identificação, casa 28. 32 Idem: casa 30.
36
• La Bell Intesa (extinta)
A área que pertence a Geni Paioletti e possui cerca de 74 hectares. Na Ação
Discriminatória, sua gleba (n°98) é previamente classificada como terra devoluta. Geni é
proprietária da extinta La Bell Intesa ltda e hoje possui um haras na Vila Itamambuca,
núcleo urbano próximo à praia, vizinho ao condomínio. Embora a La Bell não exista mais
juridicamente, a placa que lhe atribui a propriedade permanece afixada na Estrada de
acesso ao Sertão de Itamambuca. A área em questão estende-se dos dois lados da
Estrada da Cazanga e seus limites são, grosso modo, os seguintes: ao sul a Rodovia Rio-
Santos; ao leste o rio Itamambuca; ao norte as áreas da Correias Mercúrio e de Eugenio
(proprietário inicial da área do condomínio Itamambuca); e a oeste o Ranário. A matrícula
do imóvel em nome da empresa não se encontra no Cartório de Registro de Imóveis de
Ubatuba.
Na época do pai de Geni havia um bananal na propriedade. Atualmente, o bananal
está abandonado, mas ainda colhe-se eventualmente alguns cachos. Há três casas
construídas dentro da propriedade e os caseiros contratados pela proprietária residem
nessas casas.
• Ranário
A área conhecida como ranário pertence a René André Reindl e é das poucas que
possui escritura de Venda e Compra (ver Ação Discriminatória n° 848/00, folhas 113-115).
Uma parte da área, cerca de 20.000 m² foi adquirida de Alexandre Del Nero. Outra parte,
519.410 m² foi obtida por meio de ação de usucapião. A reconstituição da cadeia
sucessória do imóvel remonta à 1893, ano em que Maria José de Jesus transmitiu o
imóvel a Benedicto José Vianna Barboza. O sobrenome Barboza certamente não figura
fortuitamente na história possessória do imóvel. O parentesco de Benedicto com Modesto
Antônio Barbosa não é conhecido, mas supõe-se uma relação genealógica em virtude não
apenas do sobrenome, mas da localidade e da época em que viveram.
Na década de 80 e 90, o ranário estava em atividade. Quando foi desativado, as
estruturas do criadouro de rãs passaram a ser utilizadas para cultivo de plantas. Há
diversas casas dentro da propriedade que estão alugadas.
As glebas descritas aqui são as de maior relevância na malha fundiária que se
sobrepõe ao território quilombola indicado pela comunidade residente no sertão de
Itamambuca. Mas há dezenas de outras glebas que devem ser analisadas em termos de
sua situação formal para prosseguir nos trâmites de reconhecimento territorial e,
37
futuramente, para a titulação. Os ocupantes destas glebas estão elencados no mapa de
ocupação ao final do relatório.
3.3. Lei de Congelamento de Núcleos Habitacionais Irregulares
Sertão de Itamambuca, Cazanga e Ranário são núcleos habitacionais congelados
pela prefeitura de Ubatuba desde 2005. Todos os ocupantes dessas áreas estão
expressamente proibidos de reformar, ampliar ou construir em seus terrenos até que uma
solução para as irregularidades seja formulada e apresentada para o conjunto das
residências de cada núcleo.
A Lei de Congelamento de
Núcleos Habitacionais Irregulares33
faz parte de um programa de ações
da prefeitura que visa conter,
fiscalizar e regularizar a situação
fundiária em locais onde o
crescimento desordenado e a
proliferação de edificações vêm
descumprindo a legislação vigente,
sobretudo a legislação ambiental.
O congelamento não é aplicado por residência, mas atribuído a um conjunto de
casas no qual se verifique grande incidência de irregularidades e tendências à
intensificação da ocupação nesses espaços. As soluções para retirar um núcleo do
congelamento também são, segundo o presidente da Comissão de Congelamento da
prefeitura, Claudinei Salgado, aplicadas coletivamente. A prefeitura estabelece os núcleos
prioritários e elabora um programa de reassentamento e/ou regularização conforme o tipo
de irregularidade em cada um. Evidentemente, há residências que não estão irregulares
dentro de um núcleo congelado. Estas serão liberadas assim que as soluções para as
demais forem implementadas.
Há, em Ubatuba, 19 núcleos habitacionais congelados. Segundo a Lei de
Congelamento, os tipos de área submetidos ao congelamento são:
- as APP (Áreas de Preservação Permanente);
- áreas no interior do PESM (Parque Estadual da Serra do Mar);
- loteamentos irregulares e/ou clandestinos
33 Lei municipal n°2710, de 2005, em anexo neste relatório.
38
- áreas públicas
- áreas de risco
Para identificar os núcleos irregulares, a prefeitura disponibilizou técnicos em
campo que fotografaram e mediram as casas, no intuito de inibir ampliações na mesma.
Um plano de comunicação social foi desenvolvido com assistentes sociais que foram à
campo para cadastrar, informar e esclarecer os moradores do núcleo congelado. Por fim,
a prefeitura afixou uma placa informando que se trata de uma área ocupada
irregularmente e que está congelada pela prefeitura. Na placa consta também a data de
congelamento e o número de edificações congeladas. Segundo Claudinei Salgado, os
próprios moradores, cientes da importância de conter o aumento de ocupações irregulares
em seus bairros fiscalizam e denunciam os vizinhos que descumprem a lei.
Segundo levantamento realizado pela equipe da prefeitura, o Sertão de
Itamambuca, Cazanga e Ranário somam 176 edificações34 paralisadas. No Sertão de
Itamambuca, o congelamento se deve às edificações existentes no interior de APPs
(casas que se encontram a menos de 30 metros do rio Arataca e do rio Itamambuca);
loteamentos irregulares (subdivisão de terrenos que não atende exigências legais, como
por exemplo abertura de acesso à nova residência) e áreas de risco (casas construídas
muito próximas umas das outras em declividades superiores a 30º).
As construções em áreas de preservação e de risco não são passíveis de
regularização. Nesses casos, a prefeitura prevê a elaboração de projetos específicos para
resolver cada situação particular. As demais áreas podem ser regularizadas observando-
se a legislação ambiental e a lei de parcelamento do solo35.
Nas entrevistas realizadas com os moradores do Sertão de Itamambuca, o
descontentamento com o congelamento é generalizado. Pessoas que estavam
construindo no momento do congelamento tiveram de paralisar a obra e abandonar a
casa. É o caso, por exemplo, de Cleiton Coutinho, filho de Natalia Maria Leite e Valnir
Coutinho36, que abandonou a obra em terreno ao lado dos pais.
Por receio de represálias, alguns moradores deixam de fazer pequenas obras de
manutenção e acabam se expondo a riscos. Na Cazanga, Elza Maria dos Santos e sua
família37, aguarda autorização para consertar o telhado de sua casa (foto abaixo).
Enquanto isso, além de chover na residência, o risco de desabamento do telhado ameaça
a integridade da família.
34 Levantamento cedido por Claudinei Salgado. Ver em anexo. 35 A nova Lei de Uso do Solo de Ubatuba altera uma série de diretrizes que norteiam as construções no município. Na data de entrega deste relatório, a nova lei ainda não havia entrado em vigor. 36 Ver anexo 2: fichas de identificação, casa 5. 37 Idem: casa 37
39
Por outro lado, no Sertão de Itamambuca, alguns moradores concordam com a
demolição das casas à beira do rio Arataca e a remoção das famílias. As pessoas mais
antigas no local se incomodam com os dejetos lançados no rio e a poluição visual e
sonora criada pelo aglomerado de casas na área. Para a Associação dos Remanescentes
de Quilombo do Sertão de Itamambuca, o congelamento é um “mal necessário” para
solucionar a ocupação irregular no bairro e considera que a remoção das pessoas para
outro local, no próprio bairro, pode ser uma alternativa viável.
Detalhe:telhado de Elza
Construções congeladas no sertão de Itamambuca. Menos de 30 metros do rio Arataca.
Nota-se que a população, embora sinta-se cerceada em seus direitos, têm
respeitado a imposição da prefeitura e não prosseguiu reformas ou ampliações de suas
casas. As poucas tentativas de burlar o congelamento foram punidas com ação
demolitória, caso que ocorreu no Ranário38.
A prefeitura ainda não estabeleceu um prazo para apresentar um projeto de ações
para solucionar as irregularidades no Sertão de Itamambuca, Ranário e Cazanga.
Segundo Claudinei Salgado, a prioridade da Comissão de Congelamento é elaborar
projetos em núcleos mais populosos e onde as pressões de ocupação à revelia da lei são
maiores; estas três áreas, segundo ele, o congelamento já cumpriu uma de suas
finalidades que é estancar o crescimento desordenado.
A proposição territorial quilombola apresentada pela comunidade residente no
Sertão de Itamambuca deverá ser uma variável considerada pelo governo municipal no
38 O caso foi notificado na imprensa local e serviu para inibir outras obras em andamento. Ver anexo 5.
40
momento de elaborar propostas de regularização fundiária na área. Nesse sentido,
governos municipal e estadual deverão procurar ações coordenadas para o cumprimento
dos direitos relativos às comunidades remanescentes de quilombo e aos demais
ocupantes do bairro, tendo em vista a necessidade premente de se dissolver
irregularidades na ocupação do município de Ubatuba.
41
Capítulo 4
Parentesco e ancestralidade escrava
Este capítulo dedica-se a apresentar as relações genealógicas do grupo familiar
que ocupa o Sertão de Itamambuca. A reconstituição da genealogia elaborada para fins
de identificação dos remanescentes de quilombo do Sertão de Itamambuca indica que
existe uma família - com diversas ramificações, mas todas inter-relacionadas - cujos
ascendentes residiam no mesmo local, comprovadamente, há mais de 150 anos. Os
grupos familiares que descendem dessas pessoas têm, portanto, uma relação centenária
com o Sertão de Itamambuca.
Cruzando a história oral narrada em depoimentos colhidos em campo, o
conhecimento histórico já publicado sobre a escravidão em Ubatuba e os documentos
reunidos na pesquisa, comprova-se a existência de escravos no Sertão de Itamambuca
que eram parentes do atuais moradores do local. Ora, a antiguidade da ocupação do
grupo e sua ascendência escrava fornecem as bases para o direito territorial sobre esta
área.
O exercício da memória empreendido pelos moradores durante as entrevistas
permitiu reunir informações precisas sobre nomes e relações de parentesco dos antigos
ocupantes. Na maioria das vezes, as versões se complementam e confirmam eventos
narrados por outros membros da família, aumentando a precisão e confiabilidade dos
dados orais. A sistematização destas informações foi convertida em um diagrama
genealógico que perfaz 8 gerações de parentes domiciliados na área39. Os registros de
nascimento, casamento e óbito mais antigos, asseguram datas e permitem uma projeção
de ocupação que supera 150 anos no Sertão de Itamambuca. As ruínas de edificações
existentes em diversas partes da área são também indícios desta antiguidade e
constituem evidências concretas da existência de uma fazenda colonial na área.
O diagrama construído com base nas informações genealógicas do grupo familiar
identificado na pesquisa indica uma rede densa de parentesco que envolve 37
residências, sendo 35 no Sertão de Itamambuca e duas na Cazanga. Nem todas as
pessoas que figuram na genealogia, entretanto, participam dos assuntos comunitários
relacionados à associação quilombola (ver capítulo 6). As Fichas de Identificação que
constam do anexo 2 apresentam o levantamento, por edificação, dos núcleos familiares
ligados pelo parentesco e não está condicionado à adesão ou não à associação.
39 O diagrama de parentesco apresenta apenas 7 gerações pois não incorpora as crianças.
42
4.1. Parentes de agora e parentes de outrora: a história familiar dos
moradores do Sertão de Itamambuca
O levantamento das informações orais foi feito por meio de entrevistas com
membros do grupo familiar que reside no sertão de Itamambuca e algumas pessoas que
residem fora, que por sua idade e conhecimento, também foram procuradas e ouvidas. Os
depoimentos mais significativos são das pessoas mais velhas, sobretudo Oulizia
Domingas dos Santos, de 82 anos de idade; Nelson Januário Leite, de 80; e Presciliana
dos Santos, de 76 anos40. Jorge de Jesus Barbosa (1936-2007) também possui um relato
importante, mas o acesso a ele se deu por meio de registro audio-visual feito por
membros da Associação dos Remanescentes de Quilombo do Sertão de Itamambuca
meses antes de sua morte, em 19 de agosto de 2007. Infelizmente, quando se deu o
início da pesquisa de campo, Jorge já havia falecido.
40 Ver anexo 2, fichas de identificação: casa 1.
Jorge Oulizia
Nelson Presciliana
43
Os inter-casamentos ocorridos na geração ascendente de Oulizia, Nelson e
Presciliana gerou entre eles um curioso parentesco: Nelson e Presciliana são imãos por
parte de mãe. E Presciliana é irmã de Oulizia por parte de pai. Entretanto, Presciliana e
Oulizia são também primas, pois suas mães eram irmãs entre si. E, finalmente, Nelson e
Oulizia são primos de primeiro grau. Portanto, o pai de Oulizia e Presciliana gerou filhos
com duas mulheres que eram irmãs, o que resulta nessa sobreposição da categoria de
irmão e primo recaindo sobre seus descendentes.
Oulizia, Nelson e Presciliana têm em comum a avó, Rita Maria Barbosa, e
confirmam que esta mulher, a quem conheceram vagamente quando crianças, foi
escravizada e trabalhava no Sertão de Itamambuca para um senhor chamado Modesto
Antônio Barbosa. A descrição física de “Vó Rita”, segundo adjetivos utilizados por seus
parentes, remete à uma senhora negra, “muito preta” e já “bem velhinha”, que morava
sozinha e cozinhava no chão, com panelas apoiadas sobre três pedras. Seus cabelos
brancos, “muito enrolados e colados na cabeça” não negavam sua idade. Sua casa era
escura e esfumaçada, devido ao fogo de lenha.
Rita Maria Barbosa era conhecida pelos familiares como Rita Ernesto, pois seu
companheiro e pai dos seus filhos chamava-se Ernesto Alves Moreira. Na certidão de
nascimento de Oulizia, constam esses nomes, figurando como avós maternos. Os
documentos pessoais de Rita não foram localizados de modo que não se pode precisar
sua data de nascimento e óbito. Entretanto, a partir dos registros existentes de seus filhos,
depreende-se sua idade aproximada, e torna-se evidente suas relações genealógicas com
os moradores atuais do Sertão de Itamambuca. Tereza Rita Barbosa, filha de Rita, faleceu
em 1953 com 75 anos; seu ano de nascimento é 1878. Outra filha de Rita, Elisa Maria
Barbosa, faleceu em 1960 com 72 anos de idade; sua data de nascimento é 1888. Se
considerarmos, hipoteticamente, que Rita deu à luz sua filha mais velha, Tereza, com
aproximadamente 20 anos, estima-se que seu nascimento tenha ocorrido por volta dos
anos 1860.
Segundo conta o neto Nelson Januário Leite, Rita possuía dois irmãos: Antônio
Paulo Barbosa (ou Antonio de Paula Barbosa, não se sabe qual nome é o correto) e
Manoel Paulo Barbosa. Antônio nasceu em 1855 e morreu aos 92 anos de idade no ano
de 1947.
O outro irmão é Manoel Paulo Barbosa. Seus documentos pessoais não foram
localizados, mas Nelson conta que, quando criança, conheceu o tio-avô e gostava de ficar
em sua companhia. Nelson conheceu todos os filhos de Manoel Paulo e disse o nome
deles uma a um. Entre os filhos de Manoel Paulo, Joaquim Barbosa é o que possui mair
significância no diagrama genealógico: ele é pai de Abraão Damazio Barbosa, senhor de
70 anos que reside na área da família Santos (Sítio Jiçará). Abraão confirma as
44
informações de Nelson sobre seu avô Manoel Paulo e acrescenta que ele era negro e
falava com sotaque português. Tal lembrança apresenta-se como um interessante indício
do ambiente colonial daquele tempo: não importa se o sotaque português se deve à
influência dos ancestrais africanos (angolanos ou moçambicanos que já falavam o
português na colônia) ou dos colonos portugueses.
Na história oral reconstituída por meio dos relatos, Luiza é a primeira referência
como ancestral escrava. Mas muito pouco se sabe sobre ela. Conta-se apenas, e
vagamente, que ela era escrava de Modesto Barbosa e viveu na mesma época que Rita,
Antônio Paulo e Manoel Paulo. Há, entretanto, informações conflitantes com relação ao
parentesco entre eles. Além do documento no qual Luiza é beneficiada com terras de
Modesto Barbosa, seu nome aparece na certidão de óbito de Antonio Paulo, na condição
de mãe. Embora membros da comunidade afirmem que Antônio Paulo, Manuel Paulo e
Rita fossem irmãos, há quem negue que Luiza fosse mãe de Manuel Paulo, pois eles
tinha idade próxima41. Se o documento de óbito de Antonio Paulo estiver correto, uma
projeção da data de nascimento de Luiza ponta para os anos 1830, considerando
hipoteticamente que ela deu à luz Antônio quando tinha 20 anos. Esta senhora, Luiza, só
poderia ter sido conhecida pessoalmente por membros muito velhos da comunidade.
O documento (transcrição à página 27 supra) no qual Modesto Antônio Barbosa
expressa o desejo de deixar suas terras aos seus ex-escravos e as duas primeiras
gerações constantes da genealogia dos moradores do Sertão de Itamambuca têm em
comum 3 nomes: Luiza, Manoel Paulo e Rita. Somadas as evidências espaço-temporais
(locais e datas), descarta-se a hipótese de que a reincidência destes nomes ocorra por
coincidência. Luiza, Manoel Paulo e Rita são efetivamente ex-escravos de Modesto,
residiram no Sertão de Itamambuca e Cazanga na segunda metade do século XIX, e seus
descendentes residem até hoje no local.
Não é possível precisar o motivo pelo qual Antônio Paulo Barbosa – assumido pela
comunidade como irmão de Rita e Manoel Paulo - não fora beneficiado no documento de
Modesto. Mas pode-se, a partir de relatos coletados em campo, sugerir uma causa. Entre
os moradores do Sertão de Itamambuca, a informação mais difundida sobre a vida de
Modesto Barbosa é que ele teve filhos com algumas de suas escravas, entre elas, Luiza.
Assim acredita, por exemplo, Abraão, quando afirma que seu avô Manoel Paulo era filho
adotivo de Modesto Barbosa. Os documentos de Manoel Paulo não foram encontrados,
não sendo possível comprovar sua ascendência. Entretanto, na certidão de óbito de
Antônio Paulo consta que seu pai chamava-se Paulo Barbosa. Portanto, o beneficiamento
de terras aos ex-escravos de Modesto Barbosa pode estar atrelado à sua condição de pai.
41 Informação cedida por Abraão, neto de Manoel Paulo, residente no Sertão de Itamambuca, na gleba da Família Santos (fora da área reivindicada).
45
Embora não comprovada a paternidade de Modesto Barbosa, os descendentes de Luiza
afirmam que cresceram ouvindo as histórias sobre os filhos que a bisavó Luiza teve com
seu senhor.
Modesto Barbosa, evidentemente, não se casou com nenhuma escrava e parece
não ter registrado filhos com elas. Em 1862, ele se casou com Francelina Antônia
Barbosa, na cidade de Ubatuba. A data presente no documento reforça a hipótese de que
Luiza, nos anos 1860 era uma mulher em idade reprodutiva e poderia ter dado à luz Rita,
Manoel e Antônio.
Em documento cedido pelos moradores do Sertão de Itamambuca consta a
existência de um processo de inventário dos bens deixado por Luiza Maria Barbosa e
Benedita Maria Barbosa. O processo, de número 277/67, não foi localizado. Os
descendentes de Benedita Maria Barbosa, dos quais apenas um, Elmo Alves Mateus42
reside atualmente no Sertão de Itamambuca, consideram que o processo tenha sido
roubado dos arquivos em virtude de interesses fundiários.
Uma neta de Benedita,
chamada Rita Maria Barbosa
(homônima da escrava, que a
partir daqui será chamada Vó
Rita, para evitar equívocos),
reside no bairro do Perequê-Açu,
em Ubatuba, e foi procurada para
uma entrevista. É ela quem expõe
a versão mais elaborada e
informada sobre o roubo do
inventário e conta sobre os filhos
que Modesto Barbosa teve com
suas escravas. Segundo Rita, sua avó Benedita era filha de Modesto Barbosa com uma
escrava chamada Luiza. Rita confirma a versão, já mencionada, segundo a qual a escrava
Vó Rita era filha da escrava Luiza, sendo, portanto, irmã de Antônio Paulo Barbosa e
Manoel Paulo Barbosa. Embora os três irmãos tenham o sobrenome de seu senhor é
possível que nenhum dos três seja filho dele com Luiza. Isto é o que Rita afirma: segundo
ela, apenas Benedita, sua avó, era filha de Luiza com Modesto Barbosa.
Embora não haja comprovação documentada da paternidade de Modesto, Rita
conta que Benedita e Luiza foram contempladas com partes de sua fazenda. O inventário
do patrimônio deixado por elas desapareceu dos arquivos deixando toda a família sem a
42 Idem: casa 10.
Rita Maria Barbosa, com 89 anos
46
documentação que comprova seus direitos territoriais sobre uma parte de terras do Sertão
de Itamambuca. O advogado que elaborou o inventário, chamado Antônio Bran, era de
São Luís do Paraitinga e sumiu levando os documentos familiares e a certidão do terreno
que fora doado para Benedita. “Esse terreno é muito invejoso. Foi terreno em quantidade
que eu perdi. Ele (Modesto Barbosa) era dono da cidade”, lamenta-se Rita Maria Barbosa.
Dos descendentes de Benedita que habitam o Sertão de Itamambuca restam
apenas Elmo e seus filhos. Sua esposa, Célia Regina Leite, também integra a genealogia
da família, mas pelo lado de Vó Rita. A maioria maciça dos parentes com ascendência
escrava que ainda residem no Sertão de Itamambuca são os descendentes de Vó Rita.
Voltemos, porquanto, à sua história familiar.
A pessoa que melhor conheceu a Vó Rita
Ernesto foi sua filha Maria Rita do Rosário, mais
conhecida como Maria Jordão. Maria Jordão é mãe de
Nelson e Presciliana, e foi ela quem contou aos seus
filhos e netos sobre o passado escravo de sua mãe.
Maria Jordão é um elo fundamental na transmissão da
memória sobre o passado escravo e os descendentes
que hoje residem no Sertão de Itamambuca. Ela
levava seus netos pequenos (como lembra, por
exemplo, a neta Jucilene Leite dos Santos43) para
visitar a avó Rita, que morava em pequena casa de
pau-a-pique no caminho para a Cazanga. “Maria era
aventureira e muito andeja, gostava de caminhar a
pé”, lembra a neta Jucilene. Foi através dos relatos de Maria Jordão que seus familiares
afirmam, por exemplo, que Modesto Barbosa não praticava crueldades com seus
escravos e que deixou documentado o seu desejo de lhes doar as terras que foram de
sua fazenda de café no Sertão de Itamambuca.
Maria Jordão nasceu em 1905, em Ubatuba, e teve uma vida conturbada. Mãe de
5 filhos de três pais diferentes, Maria apresentou transtornos mentais que lhe renderam
duas internações no hospital psiquiátrico de Franco da Rocha. Depois da primeira
internação, Maria Jordão retornou ao Sertão de Itamambuca e retomou a vida familiar e o
trabalho na roça. Entretanto, quando a lua estava clara, conta Presciliana, sua mãe ficava
agitada e às vezes tinha surtos psicóticos. Em uma de suas crises, foi novamente
internada, e desta vez fugiu da clínica. Maria ficou desaparecida por quase 10 anos.
Quando finalmente retornou ao Sertão de Itamambuca deixou a todos muito surpresos e
43 Idem: casa 18.
Maria Jordão
47
emocionados. Então contou que trabalhou em São Paulo prestando serviços domésticos
até conseguir uma carona para casa.
Embora fosse doente, Maria Jordão exibia uma vitalidade notável e conhecia
muitas pessoas na região. Sua primeira casa situava-se onde hoje mora a neta Neusa
Regina Leite44 (ver localização em mapa de território histórico). Todo o morro que
circunda essa casa era área de cultivo dela: “fazia trabalho de homem e mulher:
trabalhava na roça, preparava farinha e cuidava da plantação” (depoimento de Ângela
Maria Leite45, sua neta). Contam os netos que, quando crianças, a avó brigava se
colhessem as frutas antes de estarem maduras.
Maria Jordão casou-se no ano de 1921, aos 16
anos, com Luiz Januário Corrêa Leite e teve com ele três
filhos: Nelson Januário Leite46, e os já falecidos Benedito
Januário Leite, conhecido como Benedito Jordão, e Maria
Januário Leite. Benedito Jordão é pai de José Luís,
Benedito Domingos, Natália, Luís Henrique e Ângela. Todos
moram no Sertão de Itamambuca, com exceção da última.
Maria Januário faleceu a poucos anos e morava com sua
filha Enedina de Oliveira Santos, que reside no ertão de
Itamambuca. Além de Enedina, Maria Januário teve outros
filhos: João, que mora na área, Rivelino e Flavio, impedidos de construírem suas casas no
Sertão de Itamambuca devido ao congelamento, e o já falecido Juventino, cuja família
recebeu ordem judicial para desocupar a casa onde moravam, no Sertão de Itamambuca,
pois esta seria demolida.
Não se sabe se Luiz Januário foi embora, deixando Maria com seus filhos para
criar, ou se faleceu, deixando-a viúva. Nelson conta que não chegou a conhecer seu pai.
O fato é que, após a partida de Luiz Januário, Maria amigou-se com João Fidelix dos
Santos, homem que já tinha filhos com Delfina, irmã dela. João e Maria tiveram uma filha.
Seu nome: Presciliana dos Santos.
44 Idem: casa 9. 45 Idem: casa 15. 46 Idem: casa 20.
Benedito Jordão
48
Os filhos que João Fidelix teve com Delfina são: Oulizia Domingas dos Santos e os
já falecidos Benedito José dos Santos e Francisco Fidelis. Oulizia ainda mora no Sertão
de Itamambuca: é a mulher mais velha da comunidade e seus filhos moram em pequenas
casas construídas ao lado da sua. Oulizia não tem netos residindo no Sertão de
Itamambuca. Oulizia é das poucas que ainda se lembra das cantigas de chiba (ou
fandango), que se fazia no Sertão de Itamambuca quando ela era criança (a transcrição
das catingas está no anexo 2 – Fichas de Identificação: casa 26)
O irmão de Oulizia, Benedito José dos Santos, tem 3 descendentes47 habitando
casas no Sertão de Itamambuca, dentro do território indicado pela associação quilombola,
e outros 7 parentes residindo em áreas adjacentes ao território proposto48. Dentre os
filhos de Benedito, deve-se mencionar Maria Benedita dos Santos, a Mariazinha, que
contribuiu ativamente para este relatório, fornecendo relatos sobre a história das famílias
que ocuparam e ocupam o Sertão de Itamambuca. Mariazinha, hoje com 71 anos, é uma
senhora respeitada na comunidade pois é a segunda regente da igreja evangélica do
Sertão de Itamambuca, puxando os cantos durante o culto. Desde que tornou-se
evangélica, Mariazinha deixou de cantar as cantigas que aprendeu quando crianças. Em
47 Nilton, Valdinéia e Wagner. 48 Mariazinha, Claudete, Clenilce, Eva, Luís Carlos, Carlos Arnaldo e José Benedito (ver em Fichas de Identificação).
João Francisco dos Santos, Valdir dos Santos, Tereza Barbosa Leite e as crianças: Luís Carlos Leite e Cleiton Coutinho dos Santos
49
entrevista realizada em sua casa, perguntamos se ela ainda se lembrava dos versos. Ela
responde:
“Ô Meu São Gonçalinho
Ele é tão bonitinho
Ele come seu pão
Ele bebe seu vinho
Ora veja São Gonçalo” (Dança de São Gonçalo. Forte influência ibérica. Já não é mais praticada pelos moradores do lugar)
“Ai, Meu Divino Espírito Santo, oiá”
(Um coro de mulheres, outro coro de homens. É a Folia de Reis, que ocorria durante a noite,
passando de casa em casa em procissão, tocando e cantando. Origem na tradição cirstã misturada à
musicalidade africana. Usa-se pandeiro, tambor, reque-reque).
Mariazinha conta também que além da Dança de São Gonçalo e Folia de Reis,
havia festas em que se tocava dançava a congada e o chiba (ou fandango).
Francisco Fidelis, o terceiro filho de João Fidelix e Delfina deixou dois filhos que
figuram na genealogia da comunidade residente no Sertão de Itamamabuca: José
Francisco dos Santos, que se casou com a prima Mariazinha49 e Orlando Fidelis, que se
casou com Dora Barbosa. Dora, por sua vez, entra na genealogia não só como esposa de
Orlando, mas sobretudo como neta do escravo Antônio Paulo Barbosa. Além de Maria
Jordão e Delfina, Vó Rita teve pelo menos mais duas filhas: Tereza e Elisa.
Por parte Antonio Paulo Barbosa, os descendentes que ainda residem no Sertão
de Itamambuca são: Cláudio, Valdinéia, Alessandra, Elza, Silvio e Silvano. Todos estes
descendem também de Vó Rita, como indica a tabela abaixo. Manoel Paulo Barbosa,
irmão de Antônio e Vó Rita possui apenas um descendente que ainda reside no Sertão de
Itamambuca: Abraão Damazio Barbosa é companheiro de Eva Severino, genro de
Mariazinha. Os filhos de Eva, entretanto, não são de Abraão, mas do primeiro marido.
A descrição da densa rede de parentesco realizada até aqui não se estenderá aos
parentes mais jovens. Suas relações com os parentes mais antigos pode ser visualizada
no diagrama de parentesco anexado ao final e nas fichas de identificação que localizam
cada pessoa no interior das famílias das quais fazem parte.
O diagrama genealógico dos moradores do Sertão de Itamambuca que se
reconhecem como remanescentes de quilombo evidencia uma macro-unidade familiar na
qual os elos de filiação remontam até 6 gerações ascendentes. Por meio da análise do
diagrama, nota-se que todos os núcleos residenciais apontados nas Fichas de
49 O casamento entre primos era uma prática matrimonial comum na população caiçara. Outros casamentos entre primos são o de Oulizia e Jorge e o de Nelson e Ângela. Anderson e Valdinéia também são primos, mas de segundo grau.
50
Identificação (anexo 2) estão relacionados por laços de parentesco consangüíneo ou afim.
A única residência habitada por um parente afim é a casa de Maria Felisbina dos Santos
(Casa 17). Maria Felisbina é sogra de um homem cuja família é nativa do Sertão de
Itamambuca. E na Casa 38 reside Magda Maria Coutinho, agregada associada que foi
incorporada neste levantamento. Todas as demais casas identificadas são habitadas por
parentes consangüíneos.
Tabela 2 Escravos e seus descendentes no Sertão de Itamambuca e Cazanga
(não inclui crianças)
Luiza
Vó Rita Antonio Paulo Manoel Paulo
41. Abraão Damazio Barbosa 1. Silvio Santos
2. Silvano Santos
3. Wagner Severino
4. Alessandra Aparecida da Silva
5. Cláudio Barbosa
6. Valdinéia Barbosa
7. Elza Maria dos Santos50
8. Presciliana dos Santos 25. Jucilene L. dos Santos
9. Benedito D. Leite 26. Nelson Januário Leite
10. Adriana Vieira Leite 27. Leide Laura N. Santos
11. Natalia Maria Leite 28. Mario Luís Leite
12. Cleder C. dos Santos 29. José Dijalma Leite
13. Luís Henrique Leite 30. João de Oliveira
14. Paula Leite de Oliveira 31. Enedina de O. Santos
15. Neusa Regina Leite 32. Oulizia D. dos Santos
16. José Luís Januário Leite 33. Carlos Henrique Leite
17. Célia Regina Leite 34. Maria B. dos Santos
18. Valdinéia Severino 35. Eva S. dos Santos
19. Maicon T. de Oliveira 36. José B. dos Santos
20. Wagner T. de Oliveira 37. Luís C. dos Santos
21. Ângela Maria Ramos 38. Carlos A. dos Santos
22. Nelson Claudinei Leite 39. Clenilce dos Santos
23. Julio César do Rosário 40. Claudete dos Santos
24. Nilton Santos Souza
50 Os primeiros 7 nomes são daqueles que descendem ao mesmo tempo de Rita e Antonio Paulo
51
No Sertão de Itamambuca, o parentesco é o principal instrumento para identificação dos
“remanescentes de quilombo”. Fazem parte desta categoria todos os descendentes dos
escravos Luiza Babosa e seus filhos Rita Maria Barbosa, Antônio Paulo Barbosa e Manoel
Paulo Barbosa que residem no Sertão de Itamambuca e possuem uma relação centenária
com este território. É pelo parentesco que se torna possível distinguir, dentre todos
moradores da região, aqueles que possuem um passado familiar enraizado nessas terras
daqueles que chegaram posteriormente. A territorialidade e os usos atuais que os
parentes aqui identificados mantêm no território serão o assunto do capítulo a seguir.
52
Capítulo 5
Territorialidade e organização política
5.1. Conhecendo o território
A antiguidade da ocupação das famílias que descendem de Luiza Barbosa é um
aspecto fundamental da unidade comunitária e da legitimação territorial. Com efeito, os
parentes de Luiza ocupam o Sertão de Itamambuca há pelo menos 150 anos. Ao longo
desses anos, essas pessoas foram inscrevendo sua trajetória de vida no espaço,
impulsionadas pela necessidade e curiosidade de conhecer o ambiente e utiliza-lo como
fonte de recursos. Após a desativação da fazenda cafeeira, a ação humana das famílias
remanescentes no Sertão de Itamambuca foi empreendida para fins de subsistência.
Agricultura familiar, extrativismo e caça eram a base da economia até fins da década de
60. Essa forte dependência dos recursos naturais e do trabalho direto com a terra
produziu um conhecimento minucioso sobre as espécies vegetais e animais da região.
Mas a floresta, para além de sua importância como fonte alimentar, fornece matéria prima
para remédios, construção de casas (antigamente feitas de pau-a-pique), móveis e
utensílios domésticos.
O território hoje está entrecortado de caminhos e atalhos pela floresta que levam
às áreas de cultivo, às espécies vegetais relevantes, às casas de parentes e
acampamentos de caçadores. As trilhas para outros bairros de Ubatuba ou ao alto da
serra, nas imediações de Natividade da Serra e São Luis do Paraitinga, são caminhos
conhecidos até hoje, e eles próprios tratam de manter abertos para circular pela região.
Enquanto as famílias viveram da agricultura familiar, do extrativismo e da caça, as
intervenções sobre o meio não foram excessivamente predatórias, pois a densidade
populacional era pequena, assim como a demanda.
Conhecer o território foi uma das ênfases na elaboração deste relatório.
Durante o trabalho de campo, diversas caminhadas foram realizadas com intuito de
mapear as referências espaciais que evidenciam a antiguidade da ocupação e os locais
de moradia e roça abandonados, zonas de extração e de caça. Os Mapas de Ocupação
(Anexo 1) expõem esses pontos de ocupação histórica, conforme a localização indicada
pelos guias nas caminhadas pelo território e geo-referenciados por meio da utilização de
um GPS. Em caminhada para o Morro do Caxambu, o mais alto da região, com mais de
600 metros de altitude, pôde-se avistar parte do território reivindicado, principalmente a
porção situada na Cazanga.
53
Os rios são importantes referências espaciais que orientam os caminhos abertos
na mata. O rio Itamambuca é o maior da região; subindo em direção à serra encontram-se
dois grandes poços naturais conhecidos como Água Rasa e Angelim, que são locais de
lazer para os moradores da região. O rio Arataca nasce na serra e desce até encontrar o
Itamambuca em local próximo à concentração de casas que se vê na Área 151. Conta
51 Ver Mapa de Ocupação e Proposta de Limite Territorial - Detalhamento Área 1 (Anexo 1).
Caminhada para Morro do Caxambu. Luís Henrique Leite e seu cunhado Valnir Coutinho localizam pontos do território reivindicado no mapa.
Vista do Morro do Caxambu. Ao fundo: praias do Perequê-Açu, Itaguá e Grande
54
Benedito Domingos Leite que o curso do rio Arataca foi alterado com a construção da
rodovia Rio Santos e que, antes, o encontro dele com o Itamambuca se dava em local
próximo à rodovia. O rio do Cavalo é o menor dos três que cortam o Sertão de
Itamambuca. Sua nascente parece ser em local próximo à nascente do Arataca, mas suas
águas correm para outra direção, rumo à região do Ranário, onde é drenado para o
abastecimento doméstico, de restaurantes e de empreendimento hoteleiro à beira da
rodovia.
Ao andar pelas trilhas que cortam a floresta, os guias locais – principalmente
homens mais velhos – mostram onde ficam localizadas antigas áreas de cultivo de seus
ancestrais. Pés de café, mandioca, milho, banana, palmeiras e diversas árvores frutíferas,
algumas de grande porte, evidenciam a antiguidade do manejo da flora no Sertão de
Itamambuca. Os locais onde estão situadas determinadas espécies vegetais tornam-se
referência para descrever espaços da floresta. É comum ouvi-los dizer, por exemplo, que
“a casa de fulano era ali perto de onde estão os pés de jabuticaba” ou “vá pela trilha até
os pés de café...” As ligações estabelecidas historicamente entre a comunidade e o
Sertão de Itamambuca, contudo, ultrapassam a mera utilização para fins produtivos ou
residenciais. A territorialidade se relaciona com o sentimento de pertencimento a um lugar
e se manifesta nos depoimentos de membros da comunidade quando se referem ao lugar
onde nasceram e cresceram seus parentes. Nota-se que, para essas pessoas, a floresta
que cobre as encostas da Serra do Mar não é apenas mais uma porção de mata Atlântica.
Trata-se de uma floresta antropizada, intimamente relacionada com seus moradores. O
trabalho de campo revelou que os eventos marcantes (os “causos”) de parentes antigos
são narrados com ênfase ao local onde ocorreram, fazendo do espaço não um cenário
destas histórias, mas parte constitutiva da memória coletiva.
Estas relações ecológicas e históricas estabelecidas com o território consiste em
um dos componentes principais da identidade sócio-cultural deste grupo de parentes. A
manutenção dessas relações é crucial para sua continuidade.
5.2. A ocupação histórica do território
Segundo contam membros da comunidade que descende dos escravos de
Modesto Barbosa, as terras doadas a Luiza, Rita e Manoel Paulo incluem o Sítio Jissará,
que se espraia pelas duas margens do rio Itamambuca até as encostas da serra, e o
Saco Grande, área que compreende a porção centro-oeste da região que abrange
Cazanga e Sertão de Itamambuca. O Sítio Jissará hoje pertence à Correias Mercúrio e
55
grande parte do Saco Grande é reconhecida como propriedade da Cassanga
Administração e Participações.
No interior dessas áreas, alguns pontos de ocupação histórica foram indicados
pelos moradores nativos do Sertão de Itamambuca. São eles:
• Ruínas da sede da Fazenda de Modesto Barbosa
• Ruínas de casas (moradia) e casas de farinha antigas de membros da comunidade
• Áreas de cultivo antigas
• Cemitério onde eram enterrados escravos de Modesto Barbosa
• Áreas de extração
Dentre estes pontos, apenas as evidência do cemitério não são percebidas no
local. A área onde os escravos eram enterrados fora indicada por membros da
comunidade que ouviram histórias dos mais velhos sobre isso. Quanto às ruínas e áreas
de cultivo abandonadas, todavia, as evidências da antiguidade de ocupação são
indubitáveis, como demonstram as fotos a seguir.
Paredes de pedra que
resistiram ao tempo.
Localizadas próximo à
sede da antiga fazenda
de Modesto Barbosa.
56
Valnir Coutinho, acima, acredita que as pequenas janelas são evidências da existência de uma senzala na antiga fazenda de Modesto Barbosa. Ao lado, equipe do ITESP em campo. Abaixo: samambaias cobrem muro de pedra da sede da fazenda de Modesto Barbosa.
57
A julgar pelo tamanho dos pilares de pedra que ainda se encontram de pé, pode-
se afirmar com segurança que estas ruínas, situadas à beira da estrada da Cazanga,
evidenciam uma ocupação antiga e estruturada na área. Os moradores antigos contam
que neste local funcionava a sede da fazenda cafeeira de Modesto Barbosa. Atualmente,
estas ruínas estão dentro da área que pertence à Cassanga Administração e
Participações, no Saco Grande.
Já a região do Sítio Jissará era utilizada para plantio de café e alimentos para a
família Barbosa e seus trabalhadores escravizados. Não se sabe se os negros que
trabalhavam para Modesto moravam em casas de pau-a-pique espalhadas pelas terras
ou se efetivamente residiam em senzala construída de pedra. Segundo a versão oral
local, Modesto Barbosa não praticava crueldades com seus empregados, que acabavam
permanecendo como escravos em troca de casa e comida.
Acima da última casa habitada do Sertão de Itamambuca, que pertence hoje a
Mariazinha, existe uma grande área coberta de sapé, indício de cultivo intensivo na terra.
Essa área, segundo contam, não foi cultivada por parentes conhecidos, ascendentes de
primeira ou segunda geração. Trata-se de uma área trabalhada há mais tempo,
provavelmente no tempo em que a fazenda de Modesto Barbosa era produtiva. Mais
adiante, subindo pela trilha que margeia o rio Itamambuca, encontra-se uma área plana
com pés de café distribuídos esparsamente, em meio à diversas outras espécies. Essas
plantas são, certamente, remanescentes de uma grande plantação.
Ruínas de grandes construções e reminiscências de cafezais são evidências de
uma ocupação que remonta ao período colonial do século XIX, quando o café era
cultivado com mão-de-obra escrava no Vale do Paraíba e em algumas fazendas do litoral.
As demais provas de ocupação histórica indicadas são mais recentes, mas não
deixam de contribuir para o mapeamento do histórico de ocupação da região pelos
parentes de Luiza. Áreas de cultivo antigas como a de Nelson Leite e sua mãe Maria
Jordão está localizadas nos mapas (Anexo 1). Essas áreas estavam ativas até a chegada
do empreendimento de Itamambuca (condomínio) e a chegada da Correias Mercúrio à
região, tempo em que o trabalho na terra passou a ser substituído por outros trabalhos
assalariados. A produção de farinha de Maria Jordão era realizada em um forno que
ficava próximo à sua casa, onde hoje residem todos os seus netos e bisnetos. Há,
também, adiante dos pés de café encontrados na mata, ruínas de uma casa de pedra
onde morava a família de Enedina Oliveira quando ela era criança. Devido ao clima úmido
e a rápida regeneração do ambiente de mata atlântica, resta apenas um metro erguido do
muro de pedra da casa e enormes jabuticabeiras no local.
59
5.3. Usos atuais do território
Atualmente, a maioria maciça dos moradores do sertão de Itamambuca foi
absorvida pelo mercado de trabalho gerado pelo condomínio Itamambuca e na rede de
estabelecimentos hoteleiros da região. Os homens trabalham como pintores, pedreiros ou
jardineiros e executando todo o tipo de “serviços gerais”. As mulheres trabalham como
faxineiras, empregadas domésticas ou cozinheiras, recebendo por dia ou por mês. As
exceções existem, mas são poucas: há uma auxiliar de enfermagem, um presidente de
associação remanescente de quilombo, um funcionário da SAI (Sociedade dos Amigos de
Itamambuca). De modo geral, as mulheres que não trabalham em casas de veraneio
ficam em suas próprias casas realizando os afazeres domésticos e cuidando dos filhos.
Em algumas casas, a família mantém uma pequena horta no quintal com temperos e
algumas frutas. São poucas as residências que contam com quintal grande o suficiente
para uma atividade de cultivo significativa. Dentre as maiores áreas, destacam-se o
terreno de Mariazinha, cuja família ainda mantém roça de mandioca e feijão, e diversas
frutas como abacaxi e banana; e o terreno de Benedito Domingos e Paula Leite, no qual
cultivam uma variedade grande de árvores frutíferas, temperos, palmeiras (pupunha e
jussara) e flores. Ainda se vê criação de galinhas em muitos quintais, como as de Creusa
dos Santos. Nas Fichas de Identificação (anexo 2), as informações sobre a ocupação
profissional dos moradores são mencionadas caso a caso.
60
Embora os moradores antigos do Sertão de Itamambuca fossem lavradores até
final da década de 1960, esta atividade sucumbiu às pressões conservacionistas e
turísticas dos novos tempos. Ainda nota-se, sobretudo em pessoas com 40 anos ou mais,
a aptidão, familiaridade e o interesse pelo trabalho na terra. Estas são as que afirmam que
se o território quilombola for reconhecido, muitas áreas, por exemplo no Sítio Jissará,
serão reativadas.
Das atividades tradicionais realizadas pelos moradores do sertão de Itamambuca,
o artesanato desponta como a mais praticada. O artesanato é fonte de renda para vários
moradores do sertão de Itamambuca. Há um conhecimento mais ou menos difundido
sobre as melhores fibras, os diversos tipos de madeira e as formas de extração e
tratamento desses materiais para usos artesanais.
Um dos artesãos
mais reputados da região é o
falecido Benedito José dos
Santos, que aparece
tecendo um balaio na foto ao
lado. Benedito era bisneto
de Luiza, neto de Vó Rita,
filho de Delfina e João
Fidelix, meio-rmão de Oulizia
dos Santos, pai de
Mariazinha, avô de Elza e
bisavô de Valdinéia (ver
genalogia).
Era um homem de quem
todos gostavam, sobretudo
Claudete dos Santos, sua neta mais
dedicada no aprendizado do artesanato
com fibras vegetais da floresta. Foi com
o avô que ela aprendeu a tecer bolsas,
chapéus, cestos e tapetes. Até hoje
Claudete extrai as fibras para produzir
seu artesanato e suas peças são
apreciadas pelos turistas que visitam
Itamambuca. Não raro, ela confecciona
61
peças sob encomenda.
• Timumpeva
Cipó resistente do qual se retira a fibra para
confecção de balaios e cestas. Utilizado
também nas amarrações das casas de
pau-a-pique.
• Taboa
Fibra extraída de planta que cresce em brejos e nas margens dos rios. Utilizada na
confecção de tapetes, cestos, bolsas, chapéus etc.
62
• Cipó-Imbé:
Mais flexível que o timumpeva, o imbé é
muito utilizado na amarração de casas de
pau-a-pique. A casca pode ser utilizada
separada do miolo.
• Bananeira
A fibra da bananeira é extraída do tronco (ou caule) da planta. A sua utilização na
confecção de peças artesanais é uma novidade no Sertão de Itamambuca; as
qualidades da fibra ainda estão em fase de experimentação.
A casca trançada é bastante
resistente, e antigamente servia de
corda para transportar as canoas
escavadas nas encostas da serra até
o mar.
63
• Embaúba
A fibra de embaúba, extraída do tronco, é utilizada na confecção de cestos e esteiras.
A criatividade dos artesãos inventa outros objetos, como lustres e vazos
Além destas, há outras fibras que não puderam ser registradas neste relatório.
O artesanato em madeira também é comum no Sertão de Itamambuca. Porém, o bairro
vizinho, Cazanga concentra o maior número desses artesãos. A madeira extraída de
dentro da área do PESM é ilegal e isso parece inibir o corte de árvores no Sertão de
Itamambuca.
Embora a confecção de peças artesanais com fibras e madeiras locais esteja viva
no Sertão de Itamambuca, programas de melhorias poderiam ser desenvolvidos com a
comunidade para potencializar a produção e a comercialização dessas peças.
Se ponto de vista da realização de atividades tradicionais de subsistência a
comunidade do sertão de Itamambuca já não se caracteriza diferencialmente dos demais
moradores do bairro, o artesanato com fibras naturais recoloca a importância da relação
com o território em termos econômicos. Há diversas famílias que se dedicam à confecção
de artesanato e complementam a renda familiar com a venda de artesanato. São elas: as
famílias de Valnir Coutinho, Claudete dos Santos, Silvio Santos, Silvano Santos, Valdinéia
Barbosa e Wagner dos Santos.
64
Na definição do território quilombola, as áreas reservadas para extrativismo devem
ser consideradas para manutenção da renda familiar dos moradores originais do Sertão
de Itamambuca.
5.4. Associação quilombola e reivindicação territorial
Nos últimos anos, nota-se um movimento de organização de comunidades
remanescentes de quilombo no litoral norte de São Paulo. Acompanhando a trajetória
organizacional das comunidades de Caçandoca, Camburi e Sertão da Fazenda (todas em
Ubatuba), a comunidade do Sertão de Itamambuca criou sua associação de
remanescentes de quilombo e fundamentou sua auto-identificação com pesquisas
cartoriais e depoimentos orais que resultaram numa versão sobre sua ancestralidade
escrava, sua territorialidade e, enfim, sua condição quilombola.
Este relatório vem apenas “certificar” este auto-reconhecimento, compilando as
informações genealógicas e históricas sobre os parentes que residem desde tempos
imemoriais no Sertão de Itamambuca, apresentando uma avaliação técnica do
desenvolvimento histórico e cultural desta comunidade no território.
A Associação dos Remanescentes de Quilombo do Sertão de Itamambuca,
presidida por Valnir Coutinho dos Santos foi fundada inicialmente com o nome de
Cazanga, ao invés de Sertão de Itamambuca. Devido ao fato da maioria dos parentes
residir no Sertão de Itamambuca, e do território reivindicado estar concentrado sobre essa
área, o nome foi alterado. Embora a opção pela mudança não tenha sido consensual na
comunidade, pois há quem considere que a região como um todo pode ser designada
Cazanga, o novo nome já está em uso e o estatuto da associação já incorporou a
mudança. Porém, em vista da popularidade do nome inicial, tanto dentro como fora da
comunidade, a designação Cazanga é mantida entre parênteses para identificação rápida
e inequívoca da comunidade.
As reuniões da Associação ocorrem quase toda terça-feira, por volta de 20 horas,
em um pequeno galpão situado atrás da igreja católica. Durante a elaboração do relatório,
diversas reuniões foram realizadas com a presença dos técnicos do ITESP. O
acompanhamento da organização comunitária que envolve o tema quilombola é
acompanhado de perto pelo ITESP. Nessas ocasiões, assim como em conversas com
membros da comunidade em outros contextos, pôde-se perceber as dificuldades e
desafios que a associação encontra para se fortalecer e tornar-se representativa. Com o
tempo, a direção da associação desgastou-se perante os associados e passou a trabalhar
65
praticamente isolada, sem o respaldo e o conhecimento dos demais associados. A
insatisfação dos moradores na condução dos assuntos comunitários esvaziou as reuniões
e provocou desinteresse das pessoas. Isso se refletiu no baixo índice de associação,
mesmo considerando os laços de parentesco que reúne a todos num mesmo complexo
familiar.
As principais questões que suscitaram divergências internas se referem aos
critérios para aceitação ou não de associados e a falta de comunicação e esclarecimentos
sobre as ações da direção. Durante o trabalho de campo, uma série de queixas foram
registradas, tanto por parte dos descendentes de Luiza, como por parte dos demais
moradores que chegaram ao Sertão de Itamambuca nas últimas 3 décadas. A direção da
associação impôs uma regra restritiva à participação das pessoas nos assuntos
comunitários. Aqueles que não estivessem oficialmente associados e não contribuíssem
com taxa mensal não poderiam comparecer às reuniões nem votar nas decisões
coletivas. O caso de Mariazinha foi emblemático deste tipo de conflito. Mariazinha deixou
seu terreno fora da área reivindicada pelo quilombo (ver capítulo 3) e não era bem-vinda
nas reuniões sobre o assuntos que envolvem o destino de seus familiares.
A falta de flexibilidade da direção e sua dificuldade em fortalecer a unidade dos
membros da comunidade na associação fez com que alguns associados se afastassem
dos assuntos relativos ao quilombo. No final da elaboração deste relatório, uma nova
direção estava sendo composta e André Aparecido (genro de Enedina Oliveira) assumiria
a presidência. Deve-se atentar para o fato de que a posse de André representa a
repetição e aprofundamento da frágil legitimidade que a direção da associação quilombola
do Sertão de Itamambuca apresenta externamente, pois ele será o segundo presidente
não nativo (tanto Valnir como André são de fora, e se relacionam com a comunidade local
por laços de parentesco afim). André, além de não-quilombola, reside fora da área, o que
cria certamente distanciamentos insuperáveis em relação à vida cotidiana da comunidade.
Outra fonte de críticas à associação provém dos moradores não aparentados, e
que a esta altura do relatório, podem ser designados não-quilombolas. Até a finalização
deste relatório, a direção da associação não havia convocado uma reunião com seus
vizinhos para esclarecer o processo de reconhecimento de comunidades remanescentes
de quilombo e de seu território em curso no Sertão de Itamambuca. Os moradores não-
quilombolas souberam informalmente que o reconhecimento de uma comunidade
quilombola na região poderia resultar em sua remoção da área e se mostraram muito
preocupados com essa possibilidade. No levantamento da ocupação geral da região, as
visitas realizadas de casa em casa permitiram contactar os moradores, informá-los sobre
o processo em curso e sobre o compromisso ético que o Estado deverá apresentar com
relação aos cidadãos que obtiveram seus terrenos honestamente.
66
A indignação dos moradores não quilombolas reside sobretudo no fato de terem
sido os próprios quilombolas a venderem suas posses. Cristiane Germano da Silva Lopes,
de 41 anos, reside na área desde 1999 na casa que construiu em terreno vendido por
Tereza Barbosa Leite, esposa de Benedito Jordão. Cristiane apresentou documento que
comprova a compra52. Outros casos semelhantes ao de Cristiane ocorrem no Sertão de
Itamambuca e Cazanga. Portanto, o Estado deve encontrar formas compensatórias justas
para a população não quilombola que reside no local.
Conforme demonstra o mapa de ocupação, das 105 edificações registradas, 31
pertencem a quilombolas (uma delas está abandonada, em obra paralisada pelo
congelamento) e encontram-se dentro da área reivindicada; 7 pertencem à quilombolas,
mas situam-se fora da área reivindicada; e 69 pertencem à não-quilombolas. Embora
sejam 69 edificações não-quilombolas, o número de proprietários é menor: várias pessoas
possuem mais de uma edificação em seu terreno e nesses casos, cada edificação foi
considerada.
Tabela 3
Edificações quilombolas e não-quilombolas no Sertão de Itamambuca e Cazanga
Quilombolas Não-quilombolas
Dentro da área Fora da área Dentro da área
30 7 69
Uma das ações que a direção da associação pretende fazer após o esperado
reconhecimento territorial é remover as famílias que se encontram próximas ao rio
Arataca, pois sua presença ali tem contribuído para a poluição do rio Itamambuca. A
prefeitura de Ubatuba já mapeou - pelo programa de congelamento de núcleos
habitacionais irregulares - todas as residências que se encontram em situação irregular no
Sertão de Itamambuca. O reconhecimento do território quilombola viria fortalecer a
necessidade premente de se retirar essas residências e encontrar uma área para
reassentar as famílias. A associação já se mostrou solícita em disponibilizar uma área
dentro do território quilombola para reassentar, de forma mais organizada, os vizinhos que
residem em áreas de proteção ambiental e outras zonas irregulares.
A delimitação do território reivindicado levou em consideração critérios ligados à
ocupação histórica, à ocupação atual e às áreas que possuem potencial econômico. Com
52 Cópia deste e de outros documentos de compra/venda de terrenos que envolvem quilombolas estão anexados ao final do relatório.
67
exceção do limite estabelecido na cota 100 (linha dos 100 metros a partir do nível do mar)
que respeita as divisas do Parque Estadual da Serra do Mar e tem como finalidade evitar
disputas territoriais com o Estado, as divisas do território foram desenhadas de modo
relativamente aleatório durante as reuniões comunitárias. Como nem todas as divisas
passam por trilhas ou rios, não foi possível perfazer a pé o perímetro territorial para
capturar os pontos exatos. Portanto, o polígono desenhado no mapa representa uma
proposta de limite territorial bastante imprecisa. O polígono foi estabelecido coletivamente
durante reuniões comunitárias e a equipe do ITESP e respeitou critérios definidos pela
comunidade. O perímetro foi desenhado diretamente sobre a foto aérea da região.
Reuniões comunitárias para discussão dos limites territoriais. Acima, a direção da associação Valnir e Ângela; equipe do ITESP apresentam foto aérea da região (à dir);
À Esq: traçando as divisas territoriais indicadas pela comunidade; localizando pontos no mapa (abaixo)
68
As áreas do Sítio Jissará foram incorporadas levando-se em consideração o histórico de
ocupação das famílias nessa área e os conflitos antigos com a Correias Mercúrio (ver
capítulo3). A região do Saco Grande foi incorporada em vista da ocupação histórica e
atual. As áreas nas imediações da rodovia foram incorporadas em virtude de seu
potencial econômico e por terem sido parte da propriedade que Modesto Antônio Barbosa
deixou para seus ex-escravos Luiza, Rita e Manoel Paulo Barbosa, os moradores mais
antigos de que se tem notícia nas terras do Sertão de Itamambuca.
As questões que a associação tem enfrentado nos assuntos relativos ao quilombo
fazem parte de um processo de aprendizado de toda comunidade. O desafio de criar
mecanismos de representação legítimos aparece em diversos contextos em que se
experimenta uma forma nova de organização política. Erros e acertos advém da
experiência com essas novas formas. Acredito no potencial que a Associação dos
Remanescentes de Quilombo do Sertão de Itamambuca saberá, cada vez mais, conduzir
os assuntos comunitários de maneira democrática e representar o interesse coletivo
acima de tudo.
69
Considerações Finais
e Conclusões
Considerando que:
• a comunidade formada pelos descendentes de Luiza Barbosa se auto-
reconhecem como remanescentes de quilombo;
• o auto-reconhecimento vem acompanhado de um processo de organização
política e de construção de uma identidade coletiva baseada no passado escravo e
no processo de territorialização do grupo;
• o conceito antropológico de identidade étnica foi aceito pelo Grupo de Trabalho
criado pelo Governo do Estado de São Paulo e vem sendo utilizado nos processos
oficiais de reconhecimento de remanescentes de quilombo e de regularização
fundiária;
• conforme o Relatório Final do Grupo de Trabalho acima mencionado, o território
delimitado deve satisfazer a reprodução física e cultural de cada grupo
étnico/tradicional e só pode ser dimensionado à luz da interpretação antropológica
e em face da capacidade do meio ambiente circundante, tendo em vista a melhoria
da qualidade de vida de seus habitantes e a conservação dos recursos naturais
para as gerações vindouras;
• as pressões econômicas que forçaram os moradores originais do sertão de
Itamambuca a se desfazerem de suas posses e tornarem-se dependentes do
mercado de trabalho gerado pelo turismo;
• os moradores não-quilombolas do Sertão de Itamambuca devem ter reconhecidos
seus direitos possessórios para fins de compensação nos processos de
regularização fundiária;
• a maioria dos membros da comunidade foram absorvidos pelo mercado gerado
pelo turismo;
• a delimitação territorial deve ser definida equilibrando-se critérios de ocupação
histórica, ocupação atual e necessidades sócio-econômicas e culturais da
comunidade;
• o território indicado está ocupado em sua maioria por não quilombolas de baixa e
média renda que adquiriram seus terrenos junto aos quilombolas ao longo dos
anos 80 e 90;
• o instrumento legal que sustenta e legitima a reivindicação territorial para fins de
titulação, representado pelo artigo 68 do ADCT;
70
Conclui-se que:
1. os moradores do Sertão de Itamambuca e Cazanga que descendem de Luiza
Barbosa, Rita Maria Barbosa, Manoel Paulo Barbosa e Antônio Paulo Barbosa são
remanescentes de quilombo, conforme os critérios oficiais de reconhecimento
adotados pelo Governo do Estado de São Paulo e devem gozar dos direitos que
este reconhecimento lhes assegura;
2. urge a regularização fundiária do território quilombola e as desapropriações
cabíveis para assegurar o direito da comunidade de permanecer em suas terras e
obter acesso aos recursos naturais de que sempre dispuseram, respeitando-se a
legislação ambiental;
3. o limite territorial apontado pela comunidade está de acordo com evidências da
ocupação histórica;
4. o Estado deverá estimular iniciativas de caráter sócio-cultural e econômico que
permitam a sustentabilidade da comunidade quilombola em seu território.
Recomendação:
• Para proceder a regularização fundiária, o Estado, representado por órgãos
estaduais e municipais, deverá apresentar alternativas e soluções para as
dezenas de famílias de baixa renda residentes no local, procurando reduzir
processos de expulsão.
• Na delimitação final do território quilombola, recomenda-se que a associação
elabore um zoneamento da área e um plano e uso para as áreas reivindicadas.
São Paulo, 26 de dezembro de 2008.
________________________________________
Anna Maria de Castro Andrade
Antropóloga
71
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