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Relatos inéditos do Peregrino Russo
(Anônimo )
Anônimo
O
PEREGRINO RUSSO
TRÊS RELATOS INÉDITOS
Tradução
Tito Kehl
M M V I I I
A todos os mestres, para retribuir e para transmitir.
INTRODUÇÃO
Poucos textos da espiritualidade ortodoxa são tão populares no Ocidente como os
Relatos de um peregrino russo, tantas vezes traduzido em línguas europeias. O
manuscrito destes quatro Relatos anônimos foi assinalado pela primeira vez por
volta de 1860, nas mãos de uma monja, filha espiritual do estaroste Ambroise de
Optina. Ora, entre os documentos do estaroste, achavam-se três outros Relatos que
foram publicados na Rússia em 1911, reeditados na Tchecoslováquia em 1933, e
incorporados aos quatro primeiros na primeira edição de conjunto do Peregrino,
feita em Paris pela YMCA Press em 1948. São estes que apresentaremos aqui.
Estes três Relatos possuem um caráter mais abertamente didático dos que os
primeiros, É provável que tenham sido retocados e completados em Optina, este
celeiro espiritual da Rússia do século XIX para onde afluíam escritores, filósofos,
“buscadores de Deus”, aonde a tradição espiritual do Oriente cristão tomava uma
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nova consciência de si mesma para responder às buscas e inquietações que o
pensamento ocidental introduzia então na Rússia. Uma parte dos três Relatos é
constituída por respostas às objeções de um intelectual, e instruções sistemáticas,
verdadeiros pequenos tratados, intercalam-se entre narrações e diálogos; se
perdemos algo do pitoresco, ganhamos em elucidação.
Trata-se com efeito de uma apresentação bastante refletida da prece como
invocação do Nome de Jesus. O desenvolvimento, de tipo patrístico mais do que
cartesiano, é feito em “espiral” em torno de um eixo que podemos definir assim: a
salvação pelo amor, realizada na prece. “Não há limite para a misericórdia de
Deus”, e todo o problema para o homem consiste em saber acolher esta misericórdia
que transformará seu coração e fará germinar aí os “frutos do Espírito”.
O Quinto Relato é primeiramente dedicado ao arrependimento, este grande retorno
da inteligência e do coração. O homem é fascinado pelo abismo, e a história do
cocheiro que se atira na água gelada, como a do homem que salta dentro de um
fosso, evocam um Dostoievski rústico e antecipam a exploração dos “subterrâneos”.
Apenas a relação consciente com Deus, nem que seja através da mais humilde
oração, nos libera da negação, permite ao Pai intervir e nos proteger do caos
(história do estaroste tentado). O pensamento se explicita num verdadeiro tratado
consagrado à penitência e que mostra o que é realmente o pecado: decepção,
separação, esquecimento.
Segue-se uma dupla iniciação à “Oração de Jesus” A primeira, de caráter
propriamente espiritual, é dada por um monge grego vindo do Monte Athos[1]. As
diversas palavras da prece – “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de
mim pecador” – são apresentadas com suas respectivas acentuações, e descobrimos
que a compreensão espiritual de cada uma constitui um dom do espírito: a Prece de
Jesus é o lugar dos carismas como, em São Paulo, a reunião eucarística; sabemos
que a invocação não tem outro objetivo senão o de interiorizar a eucaristia.
A prece transforma a angústia em confiança tranquila. Aquele que reza não precisa
mais de um bode expiatório, ele intercede por toda a humanidade que o Cristo
reunificou[2]. E o episódio do desertor mostra que a oração reconcilia com os pais e
com a terra.
Vem então uma segunda iniciação, pelo estudo dos fundamentos neo-testamentários
da invocação, onde vemos, entre outras coisas, como João e os Atos dos Apóstolos
sublinham, dentro de uma perspectiva pneumatológica, o mistério e o poder do Nome
no qual Deus, em Jesus, revela-se “aquele que liberta”.
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O Sexto Relato desenvolve sobre a força do Evangelho que faz desaparecer as
aparências demoníacas (história do francês). Depois, retomando a problemática
paulina da salvação, ele procura o lugar do homem na oração: é a frequência desta,
a humilde quantidade de um apelo no qual se oferece a fé (O segredo da salvação
revelado pela prece perpétua).
A invocação é possível a todos, podemos orar “em todos os momentos, em todas as
circunstâncias e em todos os lugares”, a prece pode acompanhar o trabalho
intelectual mais absorvente, desde que o façamos na presença do Rei.
Como o jejum, a invocação implica uma antropologia unitária. O jejum deve levantar
em nós a fome de Deus. A evocação desperta o coração, pois “o coração do homem –
dizia Nicolas Cabasilas – foi criado como um cofre capaz de conter o próprio Deus”.
Aquilo que, definitivamente, impele o homem a rezar, é a exigência de ser, e o ser
revela-se comunhão. O homem encontra na prece, vale dizer na relação consciente
com Deus, a alegria de ser, esta “pleroforia” tão cara à espiritualidade oriental. O
homem é oração e um dos interlocutores do Peregrino, um monge veterano, podia
dizer, parafraseando santo Agostinho: “Reze e faça o que quiser” (O poder da
prece).
O Sétimo Relato é um elogio da vida contemplativa, mais especificamente sob sua
forma eremítica, onde reencontramos, em plena Europa moderna, a exigência
carismática do primeiro monaquismo. Uma polêmica vigorosa justifica, contra todo
moralismo utilitário, a gratuidade da adoração. O espiritual conduz uma exploração
pelos espaços interiores que ele nos deixa como um mapa. Seu exemplo e sua
irradiação designam, para além dos maiores sucessos político-sociais, o Reino que
ultrapassa a história, a relativiza e vivifica.
Este último Relato, o mais breve, é como os demais abundante em indicações
práticas: como conduzir-se na falta de um mestre espiritual; o que significa a oração
sem imagens; e o livro termina com o texto de uma sóbria e profunda prece em
intenção do próximo: em toda esta tradição, como sabemos, a fé veiculada na oração
deve frutificar em uma compaixão sem limites.
Olivier Clément
QUINTO RELATO
O estaroste: Um ano se passou desde a última vez que vi o peregrino, quando
uma discreta batida à porta e uma voz suplicante anunciaram-me a chegada
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deste irmão cheio de fervor. Entre, meu caro, agradeçamos juntos a Deus por ter
abençoado seus caminhos e por tê-lo trazido de volta.
O peregrino: Glória e agradecimentos ao Pai Altíssimo por sua bondade em
todas as coisas, que ele ordena como lhe apraz, e sempre para o nosso bem, nós
que somos peregrinos e estrangeiros numa terra estranha. Eis-me aqui, pecador,
que o deixei no último ano e que novamente, pela graça de Deus, pensei valer a
pena vê-lo e ouvir sua alegre acolhida. E certamente, você espera de mim uma
descrição completa da Cidade de Deus, Jerusalém, pela qual minha alma padecia
e para onde eu tinha a firme intenção de me dirigir. Mas nossos desejos nem
sempre se cumprem e foi o que aconteceu no meu caso. Não é de espantar;
como, pecador que sou, poderia me considerar digno de pisar o solo sagrado no
qual os pés divinos de Nosso Senhor Jesus Cristo deixaram suas pegadas?
Você se lembra, meu pai, que eu deixei este lugar no último ano acompanhado
de um velho homem surdo e que eu possuía uma carta de um negociante de
Irkutsk para seu filho em Odessa, pedindo-lhe que me enviasse a Jerusalém. Pois
bem, chegamos a Odessa sem problemas e em muito pouco tempo. Meu
companheiro logo adquiriu uma passagem num navio para Constantinopla e
partiu. Quanto a mim, saí a buscar o filho do comerciante conforme o endereço
que constava na carta. Num curto espaço de tempo encontrei a casa, mas lá fui
surpreendido e entristeci-me por saber que meu benfeitor já não era vivo. Ele
havia falecido há três semanas, após uma curta doença. Isto em muito me
desencorajou, mas ainda mantive a confiança no poder de Deus.
Toda a casa estava de luto, e a viúva que permanecia com seus três filhos
pequenos achava-se em grande miséria, chorando todo o tempo e desfalecendo
de tristeza várias vezes ao dia. Sua angústia era tão grande que dizia-se que ela
também não viveria por muito mais tempo. No entanto, em meio a tudo isto, ela
me recebeu amavelmente, mas no estado em que se encontravam seus negócios
ela não pode me enviar a Jerusalém. Ela pediu-me que permanecesse com ela por
cerca de uma quinzena até que seu sogro viesse a Odessa, como ele havia
prometido, para colocar em ordem os negócios da infeliz família. Assim, fiquei.
Uma semana se passou, um mês, depois outro, mas, ao invés de vir, o
negociante escreveu para dizer que seus próprios negócios não lhe permitiam
deslocar-se e aconselhava sua nora a desfazer-se dos seus sócios e funcionários
e viajar imediatamente a Irkutsk. Começou a agitação da mudança e, como vi que
já não podia ser útil, agradeci sua hospitalidade e tomei meu caminho. Mais uma
vez eu me vi errante através da Rússia.
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Eu pensei e pensei. Para onde iria agora? No fim, decidi que antes de qualquer
coisa eu poderia bem ir a Kiev, que há anos não visitava. Assim eu me pus a
caminho. Naturalmente, eu me atormentava por não ter podido manter meu
voto de ir a Jerusalém, mas pensava, refletindo, que mesmo isto não poderia ter
acontecido sem a intervenção providencial de Deus e assim me tranquilizava,
esperando que Deus que ama os homens aceitaria minha intenção pelo ato e
não deixaria minha viagem ser interrompida sem uma edificação espiritual. E
assim foi, pois eu encontrei pessoas que me mostraram muitas coisas que eu não
sabia e que, para minha salvação, iluminaram minha alma obscurecida. Se a
necessidade não houvesse me obrigado a esta viagem, eu não teria encontrado
estes benfeitores espirituais.
Eu seguia durante o dia com a oração, e ao entardecer, quando me detinha
esperando a noite, eu lia a minha Filocalia para reafirmar e estimular minha
alma na luta contra os invisíveis inimigos da salvação.
A meio caminho, cerca de sessenta e quatro verstas[3] de Odessa, fui
testemunha de uma coisa surpreendente. Havia um longo comboio de carroças
carregadas de mercadorias; seriam no mínimo trinta. Passei por elas. O primeiro
condutor, chefe da fila, caminhava ao lado do seu cavalo e os demais seguiam
em grupo a certa distância. A estrada acompanhava uma represa alimentada por
um córrego, e o gelo que derretia sob a primavera ficava à deriva e acumulava-se
nas margens com um barulho terrível. De súbito, o condutor chefe, um homem
jovem, deteve seu cavalo e logo toda a fila parou também. Os outros condutores
correram para ele, viram que ele começava a se despir e lhe perguntaram o
porquê. Ele lhes respondeu que tinha grande desejo de banhar-se na represa.
Alguns, espantados, começaram a rir-se dele, outros começaram a repreendê-lo
tratando-o como louco e o mais velho, seu próprio irmão, tentou impedi-lo
empurrando-o para fazê-lo partir; o outro se defendia e se recusava a fazer o que
lhe era dito. Alguns dos jovens condutores, tomando água da represa nos baldes
que usavam para dessedentar os cavalos, jogaram-na para satisfazer o homem
que desejava banhar-se, tanto sobre a cabeça como sobre as costas, dizendo: “Aí
está, somos nós que vamos banhá-lo.” Assim que a água tocou seu corpo, ele
gritou: “Ah, isto é bom!” Ele sentou-se no chão e eles continuaram a lhe jogar
água. Depois, rapidamente, ele se deitou e morreu. Todos foram tomados de
pavor, sem compreender porque aquilo havia acontecido.
Eu permaneci com eles cerca de uma hora, depois retomei meu caminho. Mais
ou menos a cinco verstas adiante, vi uma aldeia junto à estrada, e entrando nela
encontrei um velho sacerdote que seguia pela rua. Pensei em contar-lhe o que
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acabara de ver para perguntar-lhe o que pensar disto. O sacerdote conduziu-me
à sua casa, e eu contei-lhe a história, pedindo-o que me explicasse a causa de tal
evento.
- Nada posso dizer-lhe, caro irmão, exceto talvez isto: que existem na
natureza muitas coisas espantosas que não podemos conhecer. Isto, penso eu,
foi disposto por Deus que mostra com mais clareza aos homens seu poder e sua
intervenção providenciais na natureza, produzindo às vezes nas próprias leis
destas alterações anormais e súbitas. Uma vez fui testemunha de um caso
desses. Perto de nossa aldeia existe uma ravina profunda e abrupta, não muito
larga, mas com setenta pés ou mais de profundidade. Dá medo olhar seu fundo
escuro. Sobre ela foi construída uma passarela. Um homem de minha paróquia,
pai de família muito respeitado, foi subitamente tomado, sem nenhuma razão,
do irresistível desejo de atirar-se do alto desta pequena ponte para as
profundezas da ravina. Ele lutou contra esta ideia e resistiu ao impulso durante
uma semana. No fim, já não lhe foi mais possível conter-se. Ele levantou-se de
manhã, saiu precipitadamente e atirou-se no vazio. Logo ouvimos seus gemidos
e com grandes esforços o tiramos do abismo; ele tinha as pernas quebradas.
Quando lhe perguntamos a razão de sua queda, ele respondeu que apesar do
grande sofrimento que experimentava agora, tinha o espírito em paz por haver
cumprido o irresistível desejo que o havia obcecado durante uma semana, e pelo
qual arriscara sua vida.
Ele passou um ano inteiro no hospital até curar-se. Eu ia vê-lo e muitas vezes
encontrava os médicos ao seu redor. Como você, eu queria saber deles a causa do
ocorrido. Os médicos respondiam unanimemente que se tratava de um
“frenesi”. Quando eu lhes pedia uma explicação científica do que era isto, nada
mais conseguia arrancar deles, senão que se tratava de um desses segredos da
natureza inacessíveis à ciência. Quanto a mim, pensava que se, em presença de
um destes mistérios da natureza, a pessoa se pusesse a orar a Deus e a pedir
conselho a homens espirituais, este irresistível “frenesi”, como diziam os
médicos, não poderia de modo algum triunfar.
Em realidade, encontramos na vida humana muitas coisas das quais não
conseguimos ter uma compreensão clara.
Enquanto conversávamos, escureceu e acabei passando a noite ali. No dia
seguinte pela manhã, o prefeito enviou seu secretário para pedir ao sacerdote
que enterrasse o morto no cemitério e para dizer que os médicos, depois da
autópsia, não encontraram nenhum sinal de loucura e declararam que a morte
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fora devida a um ataque súbito.
- Como você vê, disse-me o sacerdote, a ciência médica não pode fornecer
nenhuma razão precisa para este incontrolável impulso para a água.
E assim despedi-me do sacerdote e retomei meu caminho. Após haver viajado
por muitos dias, e sentindo-me muito fatigado, cheguei a uma cidade comercial
bastante importante chamada Bielaia Tserkov. Como já se aproximava o
crepúsculo, pus-me a procurar um alojamento para passar a noite. No mercado,
encontrei um homem que parecia ser também um viajante. Ele perguntava nas
lojas pelo endereço de uma pessoa que vivia nos arredores. Quando me viu, veio
até mim e disse:
- Você parece ser também um peregrino. Tentemos juntos encontrar um
homem chamado Evreinov que mora nesta cidade. É um bom cristão, ele
mantém um esplêndido albergue e acolhe muito bem os peregrinos. Veja, eu
tenho aqui algo escrito a seu respeito.
Aceitei com alegria, e logo encontramos a casa. Embora o proprietário não
estivesse, sua esposa, uma boa senhora, nos recebeu amavelmente e nos
ofereceu, sobre o celeiro, uma mansarda separada para repousarmos.
Meu companheiro disse-me que era comerciante em Moghilev, e que havia
passado dois anos na Bessarábia como noviço num mosteiro, mas apenas com
passaporte temporário. Ele agora estava retornando o caminho para obter da
corporação dos comerciantes o consentimento para sua entrada definitiva na
vida monástica.
- Aqueles mosteiros, sua constituição, sua ordem e a vida estrita dos
numerosos e piedosos startsi[4] que aí vivem me agrada sobremaneira.
Ele assegurou-me que os mosteiros da Bessarábia, ao lado daqueles da Rússia,
eram como o Paraíso comparado com a terra, e incentivou-me a acompanhá-lo.
Enquanto falamos sobre estas coisas, chegou um terceiro hóspede em nosso
quarto. Era um sub-oficial que voltava para casa de licença. Vimos que ele estava
esgotado pela viagem. Dissemos juntos nossas orações e nos deitamos para
dormir. No dia seguinte de manhãzinha já estávamos todos de pé e nos
preparando para retomar o caminho; já íamos agradecer aos nossos anfitriões,
quando ouvimos soarem os sinos das matinais. O comerciante e eu nos
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perguntamos o que fazer: como partir, tendo ouvindo os sinos, sem antes irmos
à igreja? Era preferível aguardar e dizermos nossas preces na igreja, após o que
poderíamos partir alegremente.
Tendo tomado esta decisão, fomos chamar o sub-oficial. Mas ele nos disse:
- O que significa ir à igreja quando se viaja? Que importa a Deus se vamos
ou não? Partamos, e depois diremos nossas orações. Vão vocês, se quiserem,
não eu. No tempo que vocês vão passar nas matinais, eu estarei a cinco verstas
daqui ou quase, e quero chegar em casa o quanto antes.
Diante disto, o comerciante respondeu:
- Irmão, não corra tanto com seus projetos sem antes saber quais são as
intenções de Deus!
E assim fomos à igreja, enquanto ele tomava seu caminho.
Ficamos durante as matinais e durante a Liturgia [eucarística]. Depois
regressamos à nossa mansarda para preparar nossos apetrechos e partir; mas,
que vimos então? Nossa anfitriã, carregando um samovar.
- Aonde vão vocês?, disse ela, precisamos tomar uma taça de chá. E também
farão o desjejum conosco. Não podemos deixá-los partir famintos.
Ficamos, portanto. E não fazia meia hora que estávamos sentados ao redor do
samovar, quando chegou nosso sub-oficial correndo e ofegante:
- Chego a vocês com dor e alegria ao mesmo tempo!, disse ele.
- O que aconteceu?, perguntamos nós.
- Depois que eu os deixei e parti, veio-me a ideia de ir ao café para obter
algumas moedas trocadas e ao mesmo tempo comer alguma coisa para melhor
enfrentar o caminho. Para lá me dirigi; troquei meu dinheiro, comi alguma coisa
e parti como um passarinho. Quando já havia caminhado cerca de três verstas,
resolvi contar as moedas que o homem o café me dera. Sentei-me à beira do
caminho, saquei minha carteira e tranquilamente examinei seu conteúdo.
Subitamente descobri que meu passaporte não estava ali: havia apenas o
dinheiro e alguns papéis. Fui tomado de pânico, como se houvesse perdido a
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cabeça! Num relance, vi tudo o que havia se passado: naturalmente, eu o deixara
cair enquanto pagava o café. Era preciso voltar correndo: e eu corri e corri! Outra
ideia temível me ocorreu: e se ele não estivesse lá! Seria um enorme problema!
Precipitei-me para o homem do balcão e indaguei-o, mas ele nada vira.
Fiquei desesperado! Então, comecei a refazer todo o meu caminho e a procurar
por toda parte, por onde andara, por onde estivera e – acreditem! – tive a sorte
de encontrar meu passaporte. Lá estava ele, ainda dobrado, no chão entre a
palha e a poeira, pisado no meio da sujeira. Graças a Deus! Eu estava tão feliz, é
como se uma montanha tivesse sido tirada de minhas costas. É claro, o
passaporte estava sujo e coberto de terra, vai valer-me um safanão, mas isso não
importa. Em todo caso, já posso voltar para casa e relembrar meu berço querido.
Mas eu quis vir aqui para contar-lhes. E o que é melhor é que, à custa de correr
em meu desespero, tenho os pés em carne viva e mal consigo andar. Assim, vim
também pedir alguma pomada para fazer um curativo.
- Eis aí, meu irmão, disse o comerciante, o que aconteceu porque você não
quis nos escutar e vir conosco à igreja. Você queria tomar uma grande dianteira
sobre nós e, ao contrário, ei-lo aqui de volta, e ainda por cima estropiado. Bem
que eu lhe disse para não correr tão afoito atrás dos seus planos. Veja agora
aonde você está. Não custava nada ter ido conosco à igreja, mas você disse: “Que
diferença faz a Deus que rezemos?” Foi aí, caro irmão, que você errou.
Naturalmente, Deus não tem necessidade de nossas preces de pecadores, mas
apesar de tudo, ele gosta que rezemos. O que lhe agrada, é não só a oração que o
próprio Espírito Santo eleva em nós e nos ajuda a oferecer, mas cada impulso,
cada pensamento oferecido em sua glória. Em troca, a misericórdia infinita de
Deus oferece recompensas generosas. O amor de Deus prodigaliza a graça mil
vezes mais do que o merecem as ações humanas. Se você lhe der o menor
trocado, ele retornará a você em ouro. Se você simplesmente se propuser a ir ao
encontro do Pai, ele virá ao seu encontro. Diga apenas uma palavra breve, ainda
que sem convicção: “Receba-me, tem piedade de mim”, e ele correrá a abraçá-lo.
Eis como o Pai celeste nos ama, por indignos que sejamos. E simplesmente
devido a este amor, ele se alegra com cada passo que damos, ainda que pequeno,
na direção da salvação. Mas você pensou: “Que glória poderá haver aí para Deus?
Que vantagem há para nós, se apenas rezamos um pouco e logo deixamos
nossos pensamentos errarem por aí novamente, ou se ao contrário nos
empenhamos no bem, como dizer uma prece com cinco ou seis inclinações, ou
soltar um suspiro sincero ao invocar o nome de Jesus, ou ainda prestar atenção a
um bom pensamento, dedicar um tempo a uma leitura espiritual, abstermo-nos
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de comida, suportar em silêncio uma afronta?” Tudo isso não lhe parece bastar
para a sua salvação, e parece inútil a você praticá-lo. Não! Nenhum destes atos
humildes é feito em vão. Deus, que tudo vê, levará isto em conta e o
recompensará nesta vida. São João Crisóstomo afirma: “Nenhum bem, de
nenhum tipo, por insignificante que seja, será desdenhado no Juízo equânime.
Se os pecados devem ser buscados com tal minúcia que prestaremos conta de
cada palavra, desejo ou pensamento, quanto mais os bons atos, por mínimos
que sejam, serão tomados em consideração e contarão diante de nosso Juiz
cheio de amor!”
Eu vou contar-lhes um caso que testemunhei no ano passado. No mosteiro da
Bessarábia em que eu vivia, havia um estaroste, monge de vida santa. Um dia ele
foi assaltado por uma tentação: sentiu um grande apetite por peixe seco. Mas,
como era impossível que houvesse no mosteiro nesta época, ele concebeu a
ideia de ir buscar no mercado. Ele lutou contra esta ideia durante muito tempo,
e controlava-se pensando que um monge deve satisfazer-se com o que é
preparado para todos os irmãos e que ele deve, por todos os meios, evitar as
tentações. Por outro lado, percorrer o mercado no meio da multidão seria para
um monge uma fonte de tentações, além de inconveniente. Mas no final, as
mentiras do inimigo prevaleceram sobre suas objeções e ele, cedendo ao seu
desejo, decidiu-se a partir para procurar o peixe.
Depois de ter deixado o mosteiro e enquanto caminhava pela rua, ele percebeu
que não tinha seu terço à mão, e se pôs a pensar: “Irei eu como um soldado sem
sua espada?” Ele se preparava para voltar a buscá-lo quando, procurando em sua
bolsa, achou-o. Ele o tirou, fez o sinal da cruz e, de terço à mão, foi-se
calmamente. Quando se aproximava do mercado, viu um cavalo parado diante
de uma loja, atrelado a uma carroça carregada de enormes barris. De repente este
cavalo, assustando-se com sabe-se lá o que, arrancou bruscamente e atropelou o
monge, atingindo-o nas costas e atirando-o ao chão mas sem fazer-lhe grande
mal. Em seguida, a dois passos dele, a carga inclinou-se e a carroça se fez em
pedaços. Ele ergueu-se prontamente e, ao passar o susto, maravilhou-se pelo
modo como Deus poupara sua vida, pois se a carga houvesse tombado meio
segundo antes, ele teria sido esmagado como a carroça. Sem pensar mais, ele
adquiriu seu peixe, voltou ao mosteiro, comeu-o, disse suas orações e deitou-se
para dormir.
Mal havia adormecido, e em sonhos um estaroste de aspecto indulgente, que ele
não conhecia, apareceu-lhe e disse:
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“Eu sou o protetor desta casa e desejo instruí-lo para que você compreenda e se
lembre da lição que lhe foi dada. Veja: sua falta de esforço contra o pensamento
do prazer, e sua preguiça em discerni-lo e dominá-lo deram ao Inimigo a chance
para atacá-lo. Ele havia preparado o desastre para você. Mas seu anjo guardião
pressentiu-o e lhe sugeriu oferecer uma prece e lembrar-se do terço. Como você
escutou esta sugestão e a pôs em prática, isto salvou-o da morte. Veja portanto o
amor de Deus pelos homens, e sua generosa recompensa ao menor olhar que lhe
voltamos.”
Dizendo estas palavras, o estaroste da visão desapareceu rapidamente da cela. O
monge ajoelhou-se e, ao fazê-lo, acordou, encontrando-se não sobre seu leito,
mais de joelhos, prosternado no umbral da porta. Ele contou a história de sua
visão em benefício espiritual de muitos, inclusive meu próprio.
O amor de Deus verdadeiramente não tem limites para conosco, os pecadores.
Não é maravilhoso que um ato tão pequeno – não mais do que tirar o terço da
bolsa, tomá-lo nas mãos e invocar uma vez o nome de Deus – tenha podido
salvar a vida de um homem, e que na balança do Juízo, um só curto momento de
invocação de Jesus possa compensar numerosas horas de preguiça? Na verdade,
eis o pagamento em ouro em troca de uma mísera moeda. Veja, irmão, o poder
da oração e do nome de Jesus, quando o invocamos. João de Carpathos, na
Filocalia, diz que quando, na prece de Jesus, invocamos o santo Nome e
dizemos: “Tem piedade de mim pecador”, a cada apelo a voz de Deus responde
em segredo: “Meu filho, seus pecados estão perdoados.” E ele acrescenta que, no
momento em que dizemos a oração, nada nos distingue dos santos, dos
confessores e dos mártires. Pois, diz são João Crisóstomo, “por mais cobertos de
pecados que sejamos, quando pronunciamos a oração, ela nos purifica de
imediato. A misericórdia de Deus para conosco é grande, embora nós, os
pecadores, sejamos descuidados, embora sequer lhe dediquemos uma hora em
agradecimento e troquemos pelos negócios e o dia-a-dia a oração que tem mais
importância do que todo o resto, esquecendo-nos de Deus e de nosso dever. É
por isso que muitas vezes rejeitamos as dores e as calamidades que o Amor
infinito da Providência divina utiliza também para nossa edificação e para elevar
nossos corações para Deus.
Quando o mercador terminou de falar ao suboficial, eu lhe disse:
- Que alívio você trouxe também à minha alma pecadora! Eu me
prosternaria de bom grado aos seus pés!
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Ouvindo estas palavras, ele voltou-se para mim e disse:
- Você parece gostar bastante de histórias religiosas. Espere, eu vou ler-lhe
outra semelhante a esta que contei. Eu tenho aqui um livro com o qual eu viajo,
intitulado Agapia, ou A Salvação dos pecadores. Há aí uma grande quantidade de
coisas interessantes.
Ele tirou o volume de sua bolsa e começou a ler uma magnífica história a
respeito de Agatônico, a quem desde a infância os piedosos pais ensinaram a
dizer diariamente, diante do ícone da Mãe de Deus, a prece que inicia com
“Alegra-te, Virgem que esperas Deus.” Assim ele o fez todos os dias. Mais tarde,
tendo crescido, ele se deixou absorver pelos negócios e pela agitação da vida, e
começou a dizer a oração cada vez mais raramente, terminando por abandoná-
la.
Um dia, ele abrigou para que passasse a noite um peregrino que lhe disse ser um
eremita de Tebaida e que tivera uma visão na qual recebera ordem de procurar
um certo Agatônico e repreendê-lo por haver abandonado a oração à Mãe de
Deus. Agatônico desculpou-se dizendo que ele havia repetido a prece por anos a
fio sem obter nenhum resultado. O eremita então lhe disse:
“Lembre-se, cego e ingrato, quantas vezes esta oração o ajudou e o salvou do
desastre. Lembra-se como, na sua juventude, você foi milagrosamente salvo de
um afogamento? E quando uma epidemia levou tantos amigos seus, enquanto
você conservou a saúde? Lembra-se da vez em que, levando um amigo, a carroça
virou? Ele quebrou a perna, mas você saiu ileso. Não sabe você que um
conhecido seu, jovem e forte, está estendido, doente e fraco, enquanto você
goza de boa saúde?”
Ele recordou a Agatônico muitas outras coisas. Para terminar, disse-lhe:
“Saiba então que todas estas penas foram afastadas de você pela proteção da
santíssima Mãe de Deus, graças a esta curta prece que, a cada dia, unia o seu
coração a Deus. Tome cuidado daqui para frente, retome-a e não abandone mais
o louvor à Rainha dos céus, para que ela não o esqueça.”
Quando ele terminou de ler, fomos chamados para o almoço, após o qual, com
as forças renovadas, agradecemos nossos anfitriões e tomamos nosso caminho.
Depois nos separamos, e cada qual foi para o seu lado, como melhor lhe
parecesse.
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Caminhei durante quase cinco dias, reconfortado pelas histórias que ouvira do
bom mercador de Bielaia Tserkov, e já me aproximava de Kiev. Porém de
repente, sem nenhuma razão, comecei a sentir-me triste e pesado, e meus
pensamentos se encheram de opacidade e desencorajamento. A oração vinha-
me penosamente e uma espécie de indolência tomava conta de mim. Vendo
adiante um bosque guarnecido de espessos arbustos à beira do caminho, nele
entrei para repousar um pouco, buscando um lugar apartado aonde eu pudesse
me sentar e ler a Filocalia, a fim de elevar meu espírito enfraquecido e combater
minha preguiça. Encontrei um local tranquilo e comecei a ler Cassiano o
Romano[5], na quarta parte da Filocalia, sobre os Oito Pensamentos de Evagro. Já
estava lendo com prazer há cerca de meia hora quando percebi inesperadamente
a silhueta de um homem a uns cem metros de mim, mais para o interior da
floresta. Ele estava imóvel, ajoelhado. Eu fiquei feliz em vê-lo, pois concluí que
ele rezava, e voltei à minha leitura. Continuei a ler por uma hora ou mais, e
olhei outra vez para ele. O homem continuava lá, sempre ajoelhado e sem o
menor movimento. Fiquei muito emocionado e pensei: “Como existem fiéis
servidores de Deus!”
Enquanto eu refletia sobre isto, subitamente o homem caiu por terra e ficou
estendido calmamente. Fiquei surpreendido e como não havia visto seu rosto,
pois ele estava de costas para mim quando ajoelhado, senti-me curioso para
avançar e ver quem era. Tratava-se de um jovem camponês, com cerca de vinte e
cinco anos. Ele tinha o rosto simpático, bom aspecto, mas muito pálido. Estava
vestido com um caftan comum, com uma corda de fibra de tília à guisa de cinto.
Nada mais havia de especial nele. Ele não possuía embornal, nem sequer bastão.
O ruído de minha aproximação acordou-o e ele se levantou. Eu lhe perguntei
quem era; ele me disse que era originário da província de Smolensk e que vinha
de Kiev.
- E para onde vai agora?, perguntei-lhe.
- Nem mesmo eu o sei; para onde me conduza Deus, respondeu.
- Faz tempo que você deixou sua casa?
- Sim, perto de quatro anos.
- Aonde você viveu por todo este tempo?
- Eu andei de santuário em santuário, pelos mosteiros e as igrejas. Minha
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casa já não fazia sentido para mim. Sou órfão e não tenho parentes. Além disso,
tenho um pé torto. Assim, sigo errando pelo mundo.
- Alguém que temia a Deus, ao que parece, ensinou-o a não vagar por não
importa onde, mas a visitar os lugares santos, disse-lhe eu.
- Pois bem, veja você, respondeu ele; não tendo pai nem mãe, desde criança
cresci no meio dos pastores, e fui feliz até a idade de dez anos. Depois, um dia,
eu conduzi o rebanho de volta para casa, sem perceber que a melhor ovelha
estava faltando. Nosso patrão era um homem duro e desumano. Quando ele
chegou ao entardecer e viu que sua ovelha tinha-se perdido, ele atirou-se sobre
mim com injúrias e ameaças. Ele jurou que, se eu não a encontrasse, ele me
bateria até a morte e ainda quebraria meus braços e pernas. Sabendo o quanto
ele era cruel, eu parti em busca da ovelha, voltando aos lugares aonde ela havia
pastado durante o dia. Eu procurei e procurei por mais de metade da noite, mas
não encontrei nem traço seu em parte alguma. Era uma noite muito escura,
também, pois aproximava-se o outono. Quando eu estava mais profundamente
enfiado dentro da floresta – e, em nossa província as florestas são imensas –
ergueu-se subitamente uma tempestade. Era como se as árvores vacilassem. Ao
longe os lobos puseram-se a uivar. Fui presa de enorme terror, a ponto de meus
cabelos eriçarem-se sobre minha cabeça Tudo se tornava mais e mais
apavorante, a tal ponto que pensei em desfalecer de pânico e horror. Então caí
de joelhos e fiz o sinal da cruz; e, com todo meu coração, disse: “Senhor Jesus
Cristo, tem piedade de mim!”
Mal acabara de dizer estas palavras e senti-me inteiramente em paz, como se
não tivesse tido o menor contratempo. Todo o meu medo desapareceu e eu senti
o coração alegre, como se eu tivesse sido transportado aos céus. Eu estava cheio
de felicidade, mas veja, não parava um instante de dizer a oração. Ainda hoje
não sei quanto tempo durou a tempestade, nem como passei o resto da noite. Vi
chegar o dia e ali estava eu, ajoelhado no mesmo lugar. Levantei-me
calmamente, compreendi que jamais encontraria a ovelha, e comecei a retornar
à sede. Mas tudo ia bem em meu coração e eu repetia a prece para
contentamento do coração. Assim que eu cheguei à aldeia, o patrão viu que não
trouxera a ovelha e me bateu até que eu fiquei meio morto; ele quebrou-me este
pé, como você pode ver. Depois deste castigo, eu fiquei deitado, quase sem poder
me mover, durante seis semanas. Tudo o que eu sabia era que eu recitava a
oração e que ela me reconfortava. Quando me senti um pouco melhor, passei a
vagar pelo mundo, e como não me interessava o acotovelamento das multidões,
que além disso propiciam ocasião para muitos pecados, tomei a decisão de ir de
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um lugar santo a outro, e sempre pelo interior das florestas. Eis como se
passaram já quase cinco anos.
Quando ouvi este relato, meu coração encheu-se de alegria porque Deus julgou-
me digno de encontrar um homem tão bom, e perguntei-lhe:
- E você ainda utiliza a oração até hoje?
- Eu não poderia viver sem ela, respondeu ele. Veja, cada vez que eu
rememoro como caí de joelhos pela primeira vez dentro daquela floresta, é como
se alguém me empurrasse de novo de joelhos, e eu começo a rezar. Eu não sei se
a minha humilde oração agrada ou não a Deus. Pois, ao rezar, às vezes sinto
uma grande felicidade, como que uma leveza da alma, uma espécie de alegre
plenitude; mas em outras ocasiões, sinto um peso triste e um enfraquecimento
espiritual. Apesar de tudo, meu desejo é de continuar orando, até a morte.
- Não fique aflito, meu querido irmão. Tudo agrada a Deus e serve à nossa
salvação – tudo, sem exceção, das coisas que sobrevêm durante a prece. É o que
dizem os santos Padres. Seja a leveza ou a pesandez do coração, tudo está certo.
Nenhuma prece, boa ou ruim, é insuficiente aos olhos de Deus. Leveza, calor e
alegria mostram-nos que Deus nos recompensa e nos consola do esforço,
enquanto que o peso, a obscuridade e a secura significam que Deus purifica e
fortifica a alma, e com esta prova salutar a salva, preparando-a na humildade
para as alegrias do porvir. Como testemunho disto, vou ler-lhe algo que foi
escrito por são João Clímaco.
Encontrei a passagem e a li. Ele escutou-a com atenção e alegrou-se. Depois
agradeceu-me muito, e nos despedimos. Ele partiu diretamente para as
profundezas da floresta e eu retomei meu caminho. Continuei em minha rota,
agradecendo a Deus por haver-me considerado, pecador que sou, digno de
receber tal ensinamento.
No dia seguinte, com a ajuda de Deus, cheguei a Kiev. A primeira e principal
coisa que eu desejava fazer era jejuar um pouco, confessar e comungar nesta
santa cidade.
Fiquei hospedado perto dos Santos[6], porque era mais cômodo para ir à igreja.
Um bom ancião cossaco acolheu-me e, como vivia só em sua cabana, ali
encontrei tranquilidade. Durante a semana na qual me preparava para fazer a
confissão veio-me a ideia de fazê-la o mais detalhada possível. Pus-me então a
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rememorar e examinar todos os meus pecados desde a minha juventude, com
toda precisão, e, para não omitir nada, escrevi tudo o que pude lembrar nos
menores detalhes. Assim enchi toda uma folha de papel.
Fiquei sabendo que em Kitaevaya Poustina, a cerca de sete verstas de Kiev, havia
um sacerdote de vida ascética e grande discernimento. Quem se confessava com
ele encontrava uma atmosfera de terna compaixão e levava um ensinamento
para a salvação e a paz da alma. Fiquei contente por saber disso e parti
imediatamente para ir até ele. Solicitei sua assistência e conversamos por alguns
momentos, e depois estendi-lhe a minha folha de papel. Ele a leu inteiramente
e me disse:
- Meu caro, uma grande parte do que você escreveu aqui é totalmente fútil.
Escute. Em primeiro lugar, não confesse pecados dos quais você já se arrependeu
e que lhe foram perdoados. Não volte a eles, pois isto equivaleria a colocar em
dúvida o sacramento da penitência. Depois, não traga para a sua lembrança as
outras pessoas que estiveram associadas aos seus pecados: julgue apenas a você
mesmo. Em terceiro lugar, os santos Padres nos proíbem de mencionar todas as
circunstâncias dos pecados, e nos mandam confessá-los em termos gerais, de
modo a afastar a tentação tanto de nós mesmos como do confessor. Em quarto
lugar, você veio para se arrepender, mas não se arrepende por não saber
arrepender-se – vale dizer, sua penitência é tíbia e negligente. Em quinto lugar,
você se estendeu sobre todos esses detalhes, mas não se deu conta do mais
importante: você não expôs o pecado mais grave de todos! Você não confessou
nem escreveu que você não ama a Deus, que você odeia seu próximo, que você
não crê no Verbo de Deus e que você não passa de puro orgulho e ambição. O
mal está enraizado nestes quatro pecados, nos quais reside toda nossa
depravação espiritual. Eles são as raízes mestras de onde nascem os brotos de
todos os pecados diante dos quais sucumbimos.
Fiquei muito surpreso de ouvir isto, e disse:
- Perdoe-me, Pai, mas como é possível não amar a Deus, nosso Criador e
nosso Salvador? No que iremos crer, senão no Verbo de Deus, onde está toda a
verdade e toda a santidade? Eu desejo o bem de todos os meus semelhantes,
porque os odiaria? Eu não tenho nada de que me orgulhar; de fato, cheio de
inumeráveis pecados, nada tenho que mereça ser louvado e ninguém pode
invejar minha pobreza e minha saúde débil. Ora bem, se eu fosse um homem
instruído e rico, então sim eu seria culpado das coisas das quais me fala.
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- É uma pena, meu caro, que você tenha compreendido tão pouco daquilo
que lhe disse. Mas, vejamos! Você aprenderá mais depressa se eu lhe der estas
anotações. Eu me sirvo dela para minhas próprias confissões. Leia-as do começo
ao fim, e você verá com clareza a prova exata do que eu lhe disse agora.
Ele me deu as anotações e eu as li. Ei-las a seguir.
***
UMA CONFISSÃO QUE CONDUZ
O HOMEM INTERIOR À HUMILDADE
Voltando atentamente meu olhar sobre mim mesmo e examinando as disposições da
minha consciência, verifiquei por experiência própria que eu não amo a Deus, que eu
não amo meus semelhantes, que eu não tenho fé e que eu sou um poço de orgulho e
cupidez. Tudo isto, eu encontrei realmente em mim mesmo, depois de um exame
detalhado dos meus sentimentos e de minha consciência. Assim é que:
Eu não amo a Deus , pois se eu amasse a Deus eu pensaria continuamente nele
com uma alegria profunda. Cada pensamento de Deus me encheria de prazer e
delícias. Ao contrário, com muito mais frequência e ardor, eu penso nas coisas do
mundo, e pensar em Deus é para mim um árduo e árido trabalho. Se eu amasse a
Deus, falar com ele na oração seria meu alimento e minha felicidade e me arrastaria
numa comunhão ininterrupta com ele. Mas ao contrário, não só eu não encontro
nenhum gosto na prece, como ainda orar exige de mim um esforço. Eu luto
relutantemente, eu estou enfraquecido pela preguiça, e estou pronto a me envolver
com não importa qual bagatela sem importância, encurtando minhas orações e me
desviando do caminho. Meu tempo voa com as ocupações fúteis, mas quando estou
ocupado com Deus, quando me ponho em sua presença, cada hora me parece um
ano. Alguém que ama pensa no amado o dia inteiro sem parar, forma imagens dele
para si, preocupa-se com ele e em nenhuma circunstância o ser amado deixa os seus
pensamentos. Quanto a mim, de minha parte, se de todo um dia eu reservo uma hora
para mergulhar na lembrança de Deus, para inflamar por ele meu coração, vinte e
três horas eu me apresso a abandonar em ferventes oferendas aos ídolos de minhas
paixões.
Eu não quero outra coisa do que falar sobre assuntos frívolos e sobre coisas que
degradam a alma; isto me dá prazer. Mas quando se trata de meditar sobre Deus, é
a aridez, o aborrecimento e a preguiça. Mesmo quando sou involuntariamente
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conduzido por outro a temas espirituais, esforço-me para mudar de assunto até que
a conversa convenha aos meus interesses. Sou um curioso insaciável das novidades e
dos eventos políticos; procuro ardentemente satisfazer meu amor pelos
conhecimentos da ciência e das artes. Mas o estudo das Leis de Deus, o
conhecimento de Deus e da fé pouco me atraem e não respondem por nenhuma
necessidade de minha alma. Não apenas considero-os como ocupação não essencial
para um cristão, mas ainda, conforme a ocasião, como uma espécie de supérfluo
com o qual me ocupo eventualmente em meu lazer, nas horas vagas. Definitivamente,
se reconheço o amor a Deus como baseado na observação dos mandamentos – “Se
vocês me amam, observem meus mandamentos”, disse Nosso Senhor Jesus Cristo –
não apenas eu não os observo, como pouco me esforço por fazê-lo, e de tudo isso, na
verdade, resulta que eu não amo a Deus. É o que diz Basílio o Grande: “A prova que
um homem não ama a Deus e a Cristo reside no fato de que ele não cumpre os
mandamentos.”
Eu também não amo ao meu próximo, pois não somente não sou capaz de
sacrificar minha vida por ele – como pede o Evangelho – como sequer estou disposto
a sacrificar meu conforto, meu bem-estar e minha paz pelo bem do meu próximo. Se
eu o amasse como a mim mesmo, como ordena o Evangelho, suas aflições me
afligiram e suas alegrias me alegrariam. Mas ao contrário, eu ouço histórias
estranhas e infelizes sobre meu próximo e não sou atingido; eu não me perturbo
absolutamente ou, o que é pior, chego até a sentir um certo prazer. A má conduta de
um irmão, ao invés de deixá-la passar com amor, eu a proclamo e censuro. Seu bem
estar, suas honrarias e suas alegrias não me alegram como se fossem comigo, e não
sinto nenhum prazer nelas, como se fossem inteiramente estranhas a mim. Ainda por
cima, elas suscitam em mim a inveja ou o desdém.
Eu não tenho nenhuma fé religiosa , nem na imortalidade, nem no Evangelho. Se
eu estivesse firmemente persuadido sem nenhuma dúvida de que para além do
túmulo se encontra a vida eterna e a recompensa dos atos desta vida, eu pensaria
nela continuamente. A própria ideia de imortalidade me encheria de temor e eu
levaria esta vida como um estranho que se prepara para retornar um dia ao seu país
natal. Ao contrário, eu nunca penso na eternidade e considero o fim desta vida sobre
a terra como o limite da minha existência. Este pensamento secreto nasce em mim:
“Quem sabe o que acontece no momento da morte?” Se eu digo que acredito na
imortalidade, é uma simples afirmação mental e meu coração está longe de ter a
mesma firma convicção. Minha conduta e meus constantes cuidados em satisfazer a
vida de meus sentidos o provam bem.
Se meu coração tivesse fé nos santos Evangelhos como Palavra de Deus, eu me
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ocuparia deles e os estudaria continuamente, neles encontraria minhas delícias e
neles colocaria toda minha atenção com profundo fervor. A sabedoria, a graça e o
amor acham-se ocultos aí. Dia e noite eu faria de minha felicidade o estudo das Leis
de Deus. Ali estaria o meu alimento, meu pão cotidiano, e meu coração guardaria
espontaneamente a suas leis. Nada na terra poderia me fazer desviar. Porém ao
contrário, se de tempos em tempos eu ouço a Palavra de Deus, ou é por necessidade
ou pelo amor em si de conhecer; de resto, eu não presto muita atenção a ela e a
considero morna e sem interesse. Geralmente eu chego ao final de minha leitura sem
nenhum proveito, sempre pronto a mudar para uma leitura mundana na qual
encontro mais prazer e mais assuntos novos e interessantes.
Eu sou um poço de orgulho e egoísmo dos sentidos . Todas as minhas ações o
confirmam. Quando vejo algo de bom em mim, logo quero colocá-lo bem à vista ou
vangloriar-me disto perante os outros ou perante mim mesmo para admirar-me deste
bem. Embora eu transpareça uma humildade exterior, eu a imputo inteiramente aos
meus próprios méritos e considero-me um pouco superior aos outros, ou no mínimo
menos mau do que eles. Se pego uma falta em mim, apresso-me a desculpá-la e
encobri-la, dizendo: “Eu sou assim” ou “Não tenho do que me envergonhar”. Eu fico
furioso contra os que me tratam com pouco respeito e os julgo incapazes de apreciar
o valor das pessoas. Eu me vanglorio dos meus dons; os fracassos de minhas
empreitadas, eu os tomo como insultos pessoais. Eu encontro prazer na infelicidade
dos meus inimigos. Se por acaso me esforço para algo de bom, é para extrair daí
alguma glória, uma satisfação espiritual ou uma consolação terrestre. Em uma
palavra, eu faço continuamente de mim mesmo meu próprio ídolo e o sirvo sem
parar, buscando em cada coisa um alimento para minhas paixões e ambições.
Examinando tudo isto, eu vi que sou orgulhoso, corrupto, descrente, sem amor a
Deus e que odeio ao meu próximo. Que estado poderia ser mais culpado? A condição
dos espíritos das trevas é melhor do que a minha, pois eles, embora não amem a
Deus, odeiem os homens e vivam do orgulho, ao menos creem e temem. Mas, e eu?
Pode haver destino mais terrível do que o que se apresenta a mim? Qual sentença
será mais severa do que a que julgará a vida irresponsável e tola que reconheço em
mim?
***
Ao ler de ponta a ponta este modelo de confissão que o sacerdote me havia
dado, eu estava horrorizado e pensei: “Justos céus! Que pecados espantosos
escondem-se em mim, e como até agora não os havia visto!” O desejo de ser
purificado fez-me perguntar a este verdadeiro pai espiritual se me ensinaria as
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causas de todos esses males e seus remédios. Assim, ele começou a instruir-me:
- Veja, caro irmão, não amar a Deus provém da insuficiência da fé, e a causa
desta insuficiência é a recusa em estudar a ciência verdadeira e sagrada, a
indiferença para com as luzes da alma. Em uma palavra, se você não tem fé, você
não pode amar; se você não estiver convencido, você não pode amar, e para
chegar à convicção é preciso um completo e exato conhecimento do problema.
Pela meditação, pelo estudo da Palavra de Deus e pela observação de suas
próprias experiências, você despertará em sua alma uma sede e uma
impaciência, ou, como alguns o chamam, uma “perplexidade” que leva ao
insaciável desejo de ver as coisas mais de perto e mais completamente, a fim de
penetrar mais profundamente em sua natureza.
Um autor espiritual fala disto nos seguintes termos: “O amor, diz ele, cresce
geralmente com o conhecimento, e quanto mais profundo e extenso for o
conhecimento, mais amor haverá nele, mais facilmente o coração se submeterá
e se abrirá ao amor de Deus, contemplando atentamente sua plenitude, a beleza
do mundo de Deus e o amor infinito de Deus pelos homens.”
Você pode ver que a causa desses pecados é a recusa preguiçosa em pensar nas
coisas espirituais, recusa que anestesia a própria sensação de necessidade destes
pensamentos. Se você quer saber como superar este mal, esforce-se pela
iluminação do espírito por todos os meios e com todas as suas forças, chegue lá
pelo estudo diligente da Palavra de Deus e dos santos Padres, pela via da
meditação e dos conselhos espirituais e pela conversação com aqueles que são
sábios em Cristo. Ah!, caro irmão, quanta infelicidade a nossa, apenas por causa
da preguiça em buscar a luz da alma na Palavra da verdade. Nós não estudamos
dia e noite a Lei de Deus, e não oramos a ele sem parar e diligentemente. É por
isto que nosso homem interior tem fome e frio, ele está frustrado a ponto de
não ser mais capaz de dar sequer um passo corajoso na direção da virtude e da
salvação! Assim, bem amado, tomemos a resolução de utilizarmos esses
métodos, e ocupemos tanto quanto possível o nosso espírito com o pensamento
das coisas celestes; e o amor jorrará do alto em nossos corações e inflamar-se-á
em nós. Assim o faremos e rezaremos tanto quanto pudermos, pois a prece é o
meio principal e o mais forte para nossa renovação e nosso bem estar. Nós
oramos nos termos que a Santa Igreja nos ensinou: “Ó Deus, tornai-me capaz de
vos amar hoje tanto quanto no passado amei os meus pecados.”
Eu escutei tudo isso com atenção. Profundamente emocionado, pedi a este santo
sacerdote que ouvisse minha confissão e me desse a comunhão. De modo que
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na manhã seguinte, tendo tido a graça de receber a comunhão, demonstrei a
intenção de retornar a Kiev com este santo viático. Mas o bom padre, que estaria
no Alojamento por dois dias, cedeu-me durante este tempo a hospitalidade de
sua cela, para que eu pudesse me dedicar livremente à oração. Passei estes dois
dias como se estivesse no paraíso. Com as orações do meu estaroste, por indigno
que eu seja, desfrutei de uma perfeita paz. A prece afluía ao meu coração com
tanta facilidade e alegria que durante este tempo, creio eu, esqueci-me de tudo e
até de mim mesmo; não havia mais nada em meu pensamento senão Jesus
Cristo, e ele somente.
Ao final, o sacerdote regressou, e eu lhe pedi opinião e conselho:
- Aonde irei agora em minha rota de peregrino?
Ele deu-me sua benção, dizendo:
- Vá então a Pochaev venerar a marca milagrosa do pé da puríssima Mãe de
Deus e ela guiará seus passos no caminho da paz.
Fiando-me em seu conselho, em três dias parti para Pochaev. Ao longo de umas
duzentas verstas o caminho era ladeado por albergues e aldeias judias, e
raramente pude encontrar uma habitação cristã. Numa colônia, percebi a
existência de um albergue cristão. Entrei nele para passar a noite e pedir um
pouco de pão para minha marcha, pois minhas reservas se esgotavam. Ao ver
meu anfitrião, um velho de bom talho, percebi que ele era originário da mesma
província que eu, Orlov. Entrei diretamente no salão, e sua primeira pergunta
foi:
- De que religião é você?
Eu respondi que era cristão, e ortodoxo.
- Ortodoxo, verdadeiramente, disse ele rindo. Vocês são ortodoxos nas
palavras, mas nos atos não passam de pagãos. Eu conheço tudo da sua religião,
meu irmão. Um culto sacerdote convenceu-me uma vez, e eu a experimentei:
entrei na sua Igreja e nela permaneci por seis meses. Depois disto, voltei aos
costumes da minha comunidade. Entrar para a sua igreja não passa de um erro.
Os leitores murmuram o ofício não importa como, com partes que faltam e
outras que não se compreende mais. O canto não é melhor do que o que se ouve
nos cafés. E as pessoas ficam todas juntas, homens e mulheres reunidos; todos
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falam durante o ofício, viram-se, olham ao redor, andam de um lado para outro
e não nos deixam tranquilidade nem paz para rezarmos. Que espécie de
adoração é esta? Um pecado, e isto é tudo! Enquanto que entre nós, como o
ofício é piedoso, podemos ouvir tudo o que é dito, nada é omitido, o canto é dos
mais tocantes e o povo se mantém tranquilamente, homens de um lado,
mulheres do outro, e cada qual sabe as inclinações e genuflexões que devem ser
feitas em cada momento, segundo os ensinamentos da santa Igreja. Realmente,
e com toda a sinceridade: quando entramos em uma de nossas igrejas, sentimos
que ali se adora a Deus; mas nas suas, não conseguimos distinguir se estamos
numa igreja ou num mercado.
Por tudo isto compreendi que o ancião era um desses velhos crentes radicais.
Mas seu discurso era tão plausível que eu não podia discutir com ele e menos
ainda convertê-lo. Pensei comigo apenas que seria impossível converter os
velhos crentes à verdadeira Igreja enquanto não pusermos em ordem nossos
próprios ofícios, com o clero dando o exemplo em primeiro lugar. Estes velhos
crentes não conhecem nada da vida interior, eles se apoiam sobre as coisas
exteriores, e são estas que nós negligenciamos.
Assim é que me decidi a partir, e já estava à saída quando vi, para minha
surpresa, pela porta de um quarto particular, um homem que não parecia ser
russo; ele lia, estendido sobre o leito. Ele fez-me um sinal e perguntou quem eu
era. Eu lhe respondi, e então ele começou a falar:
- Escute, amigo. Você não aceitaria ocupar-se de um doente, digamos por
uma semana, até que, com a ajuda de Deus, eu esteja melhor? Eu sou grego,
monge do monte Athos. Estou na Rússia para recolher as esmolas para meu
mosteiro e, no caminho de volta, caí adoecido; tenho as pernas por demais
doloridas para conseguir andar. Por isso aluguei este quarto. Não diga não,
servidor de Deus! Eu lhe pagarei.
- Não é preciso pagar-me. Eu vou ajudá-lo o melhor que puder, com a ajuda
de Deus.
Assim é que fiquei com ele. Aprendi muitas coisas referentes à salvação de
nossas almas. Ele me falou de Athos, a montanha sagrada, dos grandes ascetas,
dos numerosos eremitas e anacoretas. Ele tinha consigo um exemplar da
Filocalia em grego e um livro de Isaac o Sírio. Lemos juntos e comparamos a
tradução eslava de Paissy Velitchkovsky com o original grego. Ele declarou que
seria impossível traduzir a Filocalia com mais exatidão e fidelidade do que o fez
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Paissy para o eslavo.
Eu observei que ele estava sempre em oração e que era muito versado na prece
interior do coração, e como ele falasse o russo à perfeição, eu o questionei sobre
este assunto. Ele me disse muitas coisas a respeito, e eu escutei atentamente;
muitas anotei por escrito. Assim, por exemplo, foi nestes termos que ele me
instruiu sobre a excelência e a grandeza da prece de Jesus:
- A própria forma da prece de Jesus mostra quão grande é esta oração. Ela
consiste de duas partes. Na primeira, Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus [1], ela
dirige nossos pensamentos para o mistério de Jesus Cristo e, como dizem os
Padres, é assim um resumo do Evangelho. Na segunda parte, tem piedade de mim,
pecador, ela nos coloca diante do fato de nossa natureza decaída. É notável
como o desejo e a demanda de uma alma pobre e humilde não poderiam ser
expressos em termos mais sábios, mais claros e mais exatos do que estes: tem
piedade de mim. Nenhuma outra fórmula poderia ser tão satisfatória e completa.
Se disséssemos, por exemplo: “Perdoe-me, desculpe minhas faltas, purifique-
me de minhas transgressões, esqueça minhas ofensas”, tudo isto não exprimiria
senão uma demanda: a de ser liberado da punição, o medo de uma alma fraca e
sem energia. Mas dizer: tem piedade de mim não expressa apenas o desejo do
perdão por medo, mas o chamado sincero do amor filial, que coloca sua
esperança no amor de Deus e confessa humildemente ser demasiado fraco para
dobrar sua própria vontade e vigiar atentamente a si mesmo. É um apelo de
misericórdia – e portanto de graça – que se manifestará pela força com que Deus
nos tornará capazes de resistir à tentação e de vencer nossa inclinação para o
pecado. É como um devedor insolvente que pede ao seu financiador – que é seu
amigo – não apenas de perdoar-lhe uma dívida, mas ainda de apiedar-se de sua
extrema pobreza e dar-lhe uma esmola. É isto que exprimem estas palavras
profundas: tem piedade de mim. É como se disséssemos: “Senhor misericordioso,
perdoe meus pecados e me ajude a corrigir-me; desperte em minha alma um
desejo vivo de seguir seus mandamentos. Distribua sua graça perdoando meus
pecados presentes e voltando meus pensamentos, minha vontade e meu
coração, apenas na sua direção.”
Maravilhado com a sabedoria de seu discurso, pedi-lhe que instruísse minha
alma pecadora, e ele continuou a ensinar-me coisas maravilhosas.
- Se você quiser, disse ele (e percebi que era um erudito, pois estudara na
Academia de Atenas), eu lhe falarei sobre o tom em que se deve dizer a oração
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de Jesus. Já ouvi inúmeros cristãos tementes a Deus dizerem oralmente esta
prece, como manda o Verbo de Deus e conforme a tradição da santa Igreja. Eles a
utilizam não apenas em suas orações privadas, mas também na igreja. Se você
escutar atentamente a agradável recitação desta prece, você observará para seu
proveito espiritual que o tom da voz que reza varia conforme a pessoa. Assim,
alguns colocam a ênfase sobre a primeira palavra, e dizem Senhor Jesus Cristo,
para depois prosseguir num tom uniforme. Outros começam com um tom
uniforme e acentuam apenas a palavra Jesus como uma exclamação, para depois
voltar ao tom neutro do começo. Outros ainda começam e seguem a prece sem
acento, até as palavras finais tem piedade de mim, quando então elevam a voz
em êxtase. Finalmente, outros dizem toda a oração – Senhor Jesus Cristo, Filho de
Deus, tem piedade de mim – com toda a ênfase na fórmula Filho de Deus .
Agora, escute. Existe sempre apenas uma e mesma prece. Os cristãos ortodoxos
possuem uma única e mesma fé, e todos sabem que esta oração sublime entre
todas contém duas coisas: o Senhor Jesus e o apelo a ele. Isto é reconhecido por
todos. Porque então isto não é expresso sempre da mesma maneira, no mesmo
tom? Porque a alma se exprime de modo assim tão particular, porque ela se
exprime com ênfases peculiares, acentuando, não o mesmo ponto para todos,
mas pontos diferentes para cada um? Muitos dizem que pode ser o resultado do
hábito ou da imitação, ou que isto depende de diferentes interpretações dos
termos segundo pontos de vista individuais, ou ainda que é apenas o modo mais
fácil e espontâneo que ocorre a cada um. Não é o que eu penso. Eu quero
encontrar uma razão mais elevada, algo desconhecido tanto do auditor quando
da própria pessoa que reza. Não haveria aí um impulso oculto do Espírito Santo,
“que intercede por nós com suspiros inefáveis”, e que não poderia ser inventado
por quem não sabe nem porque nem como rezar? E, se é por intercessão do
Espírito Santo, segundo a palavra do Apóstolo, que cada qual invoca o nome de
Jesus Cristo, o Espírito, que age em segredo e dá a oração àquele que ora,
empresta um tom particular a cada um, apesar de sua falta de força.
Assim ele pode dar a um o temor reverencial de Deus, a outro o amor, a um
terceiro a certeza da fé, a um outro a humildade irradiante da graça, e assim por
diante.
Se é assim, aquele que recebeu a graça de reverenciar a força do Todo-Poderoso
insistirá particularmente na palavra Senhor, na qual ele encontrará a grandeza e
o poder do Criador do mundo. Um outro, a quem foi dada a efusão secreta do
amor no coração, está fora de si e cheio de alegria quando exclama Jesus Cristo,
tal como estes estarostes que não podem ouvir o nome de Jesus, mesmo nas
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conversas banais, sem sentir um influxo particular de amor e alegria. Aquele que
crê inabalavelmente na divindade de Jesus Cristo, consubstancial ao Pai, é
gratificado com uma fé ainda mais fervente dizendo as palavras Filho de Deus .
Aquele que recebeu o dom da humildade e tem uma profunda consciência de sua
própria fraqueza humilha-se repetindo as palavras Tem piedade de mim, e
derrama seu coração nestas últimas palavras da prece de Jesus. Ele encarece a
esperança que põe na bondade do amor de Deus e ab-roga sua própria queda no
pecado. É aí, na minha visão, que devemos procurar as causas das diferentes
entonações com que se pronuncia a oração do Nome de Jesus. E você poderá
reconhecer, escutando, para glória de Deus e sua própria edificação, qual emoção
atinge mais especialmente este ou aquele, qual dom espiritual ele possui. Muitas
pessoas me indagaram a respeito:
“Porque todos estes sinais dos dons espirituais escondidos não aparecem juntos
e reunidos? Não algumas, mas todas as palavras da oração seriam então
impregnadas com um único e mesmo tom de arrebatamento.”
Eu lhes respondi deste modo: uma vez que a graça de Deus reparte seus dons
com sabedoria a cada qual segundo sua força, como vemos nas santas Escrituras,
quem pode pretender, com as limitações de seu espírito, penetrar em todos os
estados de graça? Não está a argila inteiramente à mercê do ceramista, e não
pode ele fazer com ela tal ou tal coisa, conforme entender?
Eu passei cinco dias com este estaroste, e ele começou a sentir-se cada vez
melhor. Estes tempos me foram tão proveitosos que não me dei conta da rapidez
com que passaram. Pois neste pequeno quarto, em silenciosa reclusão, não
tínhamos outra preocupação do que invocar silenciosamente o nome de Jesus,
ou conversar sobre o mesmo assunto, a prece interior.
Um dia, veio nos ver um peregrino. Ele se queixava amargamente dos judeus e os
insultava. Ele havia passado por suas aldeias e sofrera com sua hostilidade e suas
artimanhas. Sua amargura era tão grande contra eles que ele os maldizia e
declarava que eles eram indignos de viver por causa de sua obstinação e de sua
incredulidade. Ele exclamou finalmente que sentia por eles tamanha aversão
que já não podia controlar-se.
- Você não tem o direito, meu amigo, disse o estaroste, de insultar e
maldizer desta maneira os judeus. Deus os criou assim como a nós. Você deveria
ter respeito por eles e rezar por eles, não maldizê-los. Creia-me, o desgosto que
você tem por eles vem do fato de que você não está enraizado no amor de Deus e
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não possui a prece interior. Vou ler-lhe uma passagem dos santos Padres a
respeito. Escute o que diz Marcos o Asceta: “A alma que está inteiramente unida
a Deus torna-se, de tanta felicidade, como uma criança simples e boa, que não
condena ninguém, grego, pagão, judeu ou pecador, mas a todos considera com o
mesmo olhar purificado, que encontra alegria no mundo inteiro, e deseja que
todos louvem a Deus – gregos, judeus e pagãos.” E Macário o Grande do Egito diz
que o contemplativo queima com tão grande amor que, se fosse possível, ele
faria de si a morada de todos, sem distinção entre bons e ruins.
Eis, querido irmão, o que pensam os Padres. Eu lhe recomendo então deixar de
lado a violência e considerar todas as coisas sob o signo da onisciente
providência de Deus, e quando você passar por situações vexatórias, antes acuse
a si mesmo de impaciência e falta de humildade.
Enfim, passada mais de uma semana, meu estaroste estava curado, e eu lhe
agradeci do fundo do coração todos os ensinamentos benditos que ele
ministrara a mim; depois disto, trocamos nossos endereços. Ele se pôs a
caminho de casa, e eu retomei o itinerário que havia projetado; e assim me
aproximei de Pochaev. Não havia percorrido cem verstas quando um soldado
juntou-se a mim. Ele retornava, disse-me, ao seu país natal em Kamenets
Podolsk. Cerca de dez verstas se passaram sem que trocássemos sequer uma
palavra; eu notei que ele suspirava profundamente, como se alguma coisa o
importunasse, e sua expressão era sombria. Perguntei-lhe o que o entristecia a
tal ponto.
- Meu amigo, você notou minha angústia; se você jurar por tudo o que há de
mais sagrado não revelá-lo a ninguém, eu lhe contarei minha história, pois
estou perto de morrer e não tenho ninguém com quem falar.
Eu lhe assegurei que, como cristão, eu não tinha nenhuma necessidade de
contar a ninguém, e que ficaria feliz em lhe dar os conselhos que pudesse.
- Pois bem, vamos lá, começou ele. Eu fui recrutado como soldado entre os
civis do estado. Depois de quase cinco anos, o serviço se me tornou
insuportável; de fato, eu me fiz chicotear várias vezes por negligência e
bebedeira. Diversas vezes pensei em fugir até que consegui, e vivi como desertor
nestes últimos quinze anos. Por seis anos eu me escondi aonde pude. Praticava
furtos nas empresas, nos depósitos, nos entrepostos. Roubava cavalos. Roubava
nas lojas, e prossegui nesta vida sempre por minha própria conta. Eu me
desembaraçava dos bens roubados de diversas maneiras. Eu bebia o dinheiro,
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levava uma vida depravada e cometia todos os pecados possíveis. Apenas minha
alma não pereceu. Eu me virava bem, mas no final jogaram-me na prisão por ser
vagabundo e não ter passaporte.
Mesmo assim, encontrei ocasião de me evadir. Depois, por mero acaso,
encontrei um soldado em licença de serviço, que voltava para casa em uma
província distante. Como ele estava doente e mal conseguia caminhar, pediu-me
que o conduzisse à cidade mais próxima, aonde ele pudesse se hospedar. Eu o
conduzi, portanto. A polícia nos autorizou a passar a noite numa granja, sobre o
feno, e lá nos estendemos. Ao me levantar no dia seguinte, lancei um olhar
sobre o soldado, e lá estava ele, completamente morto. Então, com pressa,
procurei seu passaporte – ou melhor, seu certificado de licença – e, tendo-o
encontrado junto com uma bela soma em dinheiro, enquanto todos ainda
dormiam eu deixei a granja o mais depressa que pude, meti-me floresta adentro
e fugi. Lendo o passaporte, vi que o soldado tinha mais ou menos a mesma idade
que eu e sinais semelhantes. Felicitei-me, e fui resolutamente para os confins da
província de Astrakan; lá, comecei a me relacionar e logo obtive trabalho.
Trabalhava com um velho homem que possuía uma casa e comerciava com gado.
Ele vivia só com sua filha viúva. Depois de um ano com ele, desposei sua filha.
Depois o velho morreu, e não pudemos prosseguir com o negócio. Eu voltei a
beber, e comigo minha esposa, e em um ano dilapidamos tudo o que o velho
deixara. Depois minha esposa caiu doente e morreu. Então eu vendi tudo o que
restava e mais a casa, e em pouco tempo cheguei ao fim dos meus recursos. Eu
não tinha mais do que viver, nada para comer, e assim voltei à minha velha
atividade de tráfico de objetos roubados, com maior audácia agora que tinha um
passaporte. Assim foi que retomei minha antiga existência por cerca de um ano.
Logo veio um grande período em que eu não conseguia quase nada. Roubei um
velho cavalo a um cidadão sem terra e o vendi ao esquartejador por um pedaço
de pão. Com o dinheiro fui ao café e me pus a beber. Tinha a intenção de
permanecer na cidade, aonde havia um armazém, com a esperança de, quando
todos tivessem dormido, roubar tudo o que pudesse.
Como o sol ainda não se havia posto, fui à floresta para esperar a noite; deitei-
me e dormi um sono profundo. Tive então um sonho no qual me via deitado em
uma grande e bela pradaria. Subitamente uma nuvem terrível ergueu-se no céu e
sobreveio um trovão tão aterrador que o solo tremia debaixo de mim, e senti
como se alguém me enterrasse de um só golpe até as espáduas na terra que me
pressionava de todos os lados. Apenas minha cabeça e minhas mãos emergiam.
Então vi que a nuvem temível pousava no chão e dela saiu meu avô que havia
morrido há vinte anos. Era um homem muito direito, e durante trinta anos foi o
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curador de nossa aldeia. Ele dirigiu-se a mim com um ar de cólera tão ameaçador
que me fez tremer. Ao meu redor, eu via em diversos montes os objetos que
roubara em diferentes épocas. Meu terror redobrou. Meu avô chegou até mim e,
apontando com o dedo o primeiro monte, disse:
“O que é isto? Vamos!”
Então a terra ao meu redor começou a apertar-me com tanta força que eu não
podia suportar a dor, mas também não desfalecia. Eu gemia e gritava: “Tenha
piedade de mim!”, mas o tormento continuava. Então meu avô apontou outro
monte e disse outra vez:
“E o que é isto? Aperte com mais força!”
Senti uma dor e uma angústia tão violentas que nenhuma angústia deste mundo
pode comparar. Por fim, meu avô conduziu até mim o cavalo que eu roubara à
tarde e gritou:
“E isto, o que é? Vamos, apertem tão forte quanto puderem!”
Tamanha foi a dor por todo o meu corpo que não sou capaz de descrevê-la: foi
cruel, aterradora e esgotante! Parecia-me que todos os músculos eram
amassados e a dor tremenda me sufocava. Senti que esta tortura duraria um
longo tempo e perdi a consciência. Mas o cavalo me deu um coice e rasgou-me o
rosto. Quando senti o golpe, acordei; eu estava no limite do horror e todo o meu
corpo tremia. Vi que já era dia e que o sol se levantava. Levando a mão ao rosto,
percebi que o sangue escorria; as partes do meu corpo que se achavam
enterradas no sonho, estavam com câimbras e cheias de formigamentos. Meu
terror era tão grande que eu custei a me levantar e dar por mim. O corte no meu
rosto doeu por muito tempo. Veja, você pode ver a cicatriz; ela não estava aí
antes.
Daí para frente, o medo e o horror tomam conta de mim à simples lembrança
daquilo que sofri neste sonho, e com tanta força que não sei o que fazer de mim.
E o que é pior, isto foi se tornando cada vez mais frequente e, no final, eu
comecei a ter medo das pessoas e a me sentir envergonhado, como se todos
conhecessem meu passado desonesto. Perdi o gosto em comer, beber ou dormir,
por causa deste tormento. Virei um farrapo. Pensei em retornar ao meu
regimento e aliviar meu coração de tudo: talvez Deus perdoasse meus pecados se
eu aceitasse meu castigo. Mas eu tinha medo, e a ideia de que me bateriam me
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desencorajava. Perdendo a paciência, cheguei a pensar em me enforcar. Mas
ocorreu-me que, de qualquer modo, eu não viveria por muito mais tempo; eu
morreria logo, pois sentia que já não tinha mais forças para nada. Por isso
resolvi voltar à minha terra natal e fazer minhas despedidas antes de morrer. Eu
tenho um sobrinho lá. Faz seis meses que estou a caminho, e durante todo este
tempo o sofrimento e a dor acabam comigo miseravelmente. Que pensa você,
meu amigo? O que devo fazer? Verdadeiramente, estou no limite.
Ouvindo tudo isso, fiquei espantado e louvei a sabedoria e a bondade de Deus,
pelos meios de que se utiliza para atingir um pecador. Eu lhe disse:
- Caro irmão, durante estas crises de medo e de angústia, é preciso rogar a
Deus. É o grande remédio para todos os males.
- Jamais em minha vida!, respondeu ele. Parece-me que, se eu me puser a
rezar, Deus me destruirá instantaneamente!
- Isto é um contrassenso, irmão; é o diabo que põe tais ideias na sua cabeça.
Não existem limites para a misericórdia de Deus, ele é compassivo para com os
pecadores e seu perdão está pronto para aqueles que se arrependem. Você não
conhece a oração: Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim, pecador? Eu a repito
sem cessar.
- Certamente, conheço esta oração. Eu a recitava às vezes para ganhar
coragem quando me preparava para cometer um roubo.
- Neste caso, escute. Deus não o destruiu quando você estava a caminho de
uma má ação e dizia a prece. Ele o fará se você se puser a rezar em plena via do
arrependimento? Veja bem como seus pensamentos vêm do diabo. Creia-me,
caro irmão, se você disser a oração sem jamais preocupar-se com os
pensamentos que lhe vêm à mente, quaisquer que sejam, logo você estará
curado. Todo o medo e toda inquietação irão embora e, no final, você estará
totalmente em paz. Você se tornará um homem piedoso e todas as paixões
pecaminosas o deixarão, eu lhe asseguro, porque já vi muitos exemplos disto em
minha vida.
Eu lhe contei a seguir muitos casos em que se revelou o maravilhoso poder da
prece de Jesus sobre os pecadores. No fim, persuadi-o a me acompanhar até a
Mãe de Deus de Pochaev, refúgio dos pecadores, para aí fazer sua confissão e sua
comunhão antes de voltar para casa.
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Meu soldado escutou tudo isso atentamente, com alegria, pelo que pude notar, e
aceitou tudo. Dirigimo-nos juntos a Pochaev, com a condição de que nenhum
dos dois falaria com o outro, e que diríamos a oração todo o tempo. Em silêncio,
caminhamos por toda uma jornada. No dia seguinte, ele me disse que se sentia
muito mais leve, e estava claro que seu espírito estava mais calmo do que antes.
Atingimos Pochaev no terceiro dia, e eu o exortei a não interromper a prece nem
de dia nem à noite enquanto ainda estivesse acordado, assegurando-lhe que o
santíssimo nome de Jesus, insuportável para os inimigos espirituais, teria o
poder de salvá-lo. Li para ele o trecho da Filocalia que afirma que, embora
devamos recitar a prece em todos os momentos, é especialmente necessário
dizê-la com o maior cuidado quando nos preparamos para a comunhão.
Foi o que ele fez, e depois ele confessou-se e comungou. Embora de tempos em
tempos seus velhos pensamentos voltassem a atormentá-lo, ele não tinha
dificuldade em dissipá-los pela oração de Jesus. No domingo, para mais
facilmente acordar para as matinais, ele deitou-se mais cedo continuando a
oração. Eu permaneci sentado em meu canto, lendo a Filocalia à luz de uma
lamparina. Uma hora se passou; ele dormia e eu iniciei minhas orações. De
repente, cerca de vinte minutos depois, ele sobressaltou-se e despertou, pulou
rapidamente de seu leito e acorreu em lágrimas para mim, transportado de
felicidade e dizendo:
- Ah, irmão, se você soubesse o que acabei de ver! Que paz, que alegria! Eu
creio que Deus é misericordioso para com os pecadores e não os atormenta.
Glória a vós, Senhor, glória a vós!
Surpreso e feliz, pedi-lhe que me contasse exatamente o que se passara.
- Pois bem, disse ele. Logo que dormi, achei-me de novo naquela pradaria
em que fui torturado. Primeiro fiquei terrificado, mas vi que em lugar da nuvem
o sol resplandecente levantava-se, e uma luz esplêndida brilhava sobre toda a
pradaria. Vi lindas flores e ervas do campo. Subitamente meu avô chegou até
mim, mais bonito do que nunca, e saudou-me amavelmente. Ele me disse: “Vá a
Jitomir, à igreja de São Jorge. A Igreja o tomará sob sua proteção. Passe lá o resto
de sua vida e reze sem cessar. Deus será para você cheio de favor.” Dizendo isto,
ele fez sobre mim o sinal da cruz e desapareceu. Não posso descrever a felicidade
que senti: é como se um fardo me fosse tirado das costas e eu pudesse voar até
os céus. Foi quando despertei, apaziguado em meu espírito e em meu coração,
tão cheio de alegria que já não sabia o que fazer. Que devo fazer agora? Quero
partir imediatamente para Jitomir, como me disse meu avô. Com a oração, será
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fácil.
- Um momento, caro irmão. Como partir no meio da noite? Espere a
manhã, diga suas orações e depois parta com Deus.
Depois deste diálogo não dormimos mais. Depois fomos à igreja; ele permaneceu
ali durante todas as matinas, rezando sinceramente com muitas lágrimas, e me
disse que se sentia em paz, e que continuaria a recitar a oração de Jesus para
sempre e com alegria. Na Liturgia, ele recebeu a comunhão e depois de ter
tomado algum alimento, eu o acompanhei até a estrada para Jitomir, aonde nos
separamos com lágrimas de alegria.
Então voltei a pensar nos meus próprios negócios. Aonde ir agora? Finalmente
decidi voltar a Kiev. Os sábios ensinamentos de meu sacerdote me atraíam para
lá e, ademais, se eu permanecesse com ele, talvez ele conhecesse algum amigo
de Cristo e dos homens que pudesse me colocar a caminho de Jerusalém, ou no
mínimo do monte Athos. Fiquei mais uma semana em Pochaev, passando meu
tempo a relembrar todos os ensinamentos recebidos nessa viagem e a tomar
nota de algumas coisas úteis. Depois me preparei para a viagem, tomei minha
sacola e fui à igreja para rogar à Mãe de Deus. Após a Liturgia, fiz minhas orações
e preparei-me para a partida. Eu estava em pé no fundo da igreja quando entrou
um homem, não ricamente vestido mas evidentemente alguém da nobreza, e
perguntou-me aonde se vendiam velas. Eu mostrei-lhe. Depois fiz ainda
algumas orações diante do altar da Concepção. Ao terminar as preces, tomei
meu caminho. A alguma distância de lá, ao longo da via, notei em uma casa uma
janela aberta pela qual se podia ver um homem que lia um livro. Meu caminho
passou diretamente em frente a esta janela e vi que o homem era o mesmo que
me perguntara das velas na igreja. Ergui meu chapéu à passagem e, quando ele
me viu, fez sinal para que me aproximasse e disse:
- Suponho que você seja um peregrino?
- Sim, respondi-lhe.
Ele pediu-me para entrar, e quis saber quem eu era e aonde ia. Eu lhe respondi
tudo, sem nada ocultar. Ele me ofereceu chá e se pôs a falar.
- Escute, meu pequeno peregrino. Eu o aconselharei a ir ao mosteiro
Solovetsky, em uma das ilhas Solovets, no mar Branco. Existe lá um local
aprazível e muito retirado, chamado Anzersky. É uma espécie de segundo Athos,
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e todos ali são bem-vindos. O noviciado ali consiste apenas no seguinte: ler
rapidamente o saltério na igreja por quatro horas a cada vinte e quatro. Eu
mesmo vou para lá. E fiz voto de ir a pé. Poderíamos ir juntos. Seria mais seguro
ir com você; parece que o caminho é muito solitário. Por outro lado, eu tenho
dinheiro e poderei assegurar a sua subsistência durante a viagem. Eu lhe
proponho estas condições: marcharemos a uns vinte passos um do outro; assim
não nos incomodaremos, e poderemos ler ou meditar ao longo do caminho.
Reflita, meu irmão, e aceite, peço-lhe; vai valer a pena.
Tomei este convite inesperado como um sinal enviado pela Mãe de Deus a quem
pedira que me mostrasse o caminho da beatitude. E, sem mais reflexões, aceitei.
Partimos no dia seguinte. Por três dias seguimos caminho como combinado, um
seguindo a certa distância do outro. Ele lia um livro todo o tempo, e não o
abandonava nem de dia nem de noite; e por momentos ele meditava. Enfim,
chegamos a um lugar onde paramos para almoçar. Ele comeu com o livro aberto
diante de si e sem tirar os olhos dele. Vi que se tratava de um exemplar dos
Evangelhos, e lhe disse:
- Posso perguntar-lhe, senhor, porque guarda sempre consigo à mão os
Evangelhos, porque os carrega e mantém sempre ao seu lado?
- Porque, respondeu ele, deles e deles somente eu aprendo sem cessar.
- E o que você aprende?, continuei.
- A vida cristã, que se resume na oração. Eu considero que a oração é o meio
de salvação mais importante e mais necessário, e o primeiro dever de todo
cristão. A prece é o primeiro passo para a vida espiritual, é o seu coroamento, e é
por isso que o Evangelho nos recomenda a prece perpétua. Para os demais atos
da piedade, requer-se um tempo próprio, mas para a prece não existe tempo que
não seja oportuno. Sem a oração, é impossível fazer qualquer bem que seja, e
sem os Evangelhos não temos como aprender convenientemente a rezar. Desde
o começo, todos os que atingiram a salvação pelo caminho da vida interior,
tanto os santos predicadores do Verbo de Deus, como também os eremitas e os
reclusos, e verdadeiramente todos os cristãos tementes a Deus receberam seu
ensinamento de sua constante e incansável ocupação nas profundezas da
palavra de Deus e da leitura do Evangelho. Muitos dentre eles tinham todo o
tempo o Evangelho à mão, e em seu ensinamento sobre a salvação davam este
conselho: “Sente-se no silêncio de sua cela, leia o Evangelho e realize-o.” Eis a
razão pela qual eu leio o Evangelho exclusivamente.
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Seu raciocínio impressionou-me, assim como seu ardor para com a oração.
Perguntei-lhe a seguir em qual Evangelho específico ele encontrara os
ensinamentos sobre a prece.
- Nos quatro indiferentemente, respondeu ele, no Novo Testamento
inteiro, lendo-o pela ordem. Eu o leio há muito tempo buscando penetrar seu
sentido, e isto me mostrou que existe uma gradação e uma cadeia regular de
ensinamentos sobre a prece nos santos Evangelhos, a partir do primeiro e
seguindo regularmente até o fim, segundo um método. Por exemplo: logo no
começo encontra-se a preparação ou introdução ao estudo da prece, a seguir sua
forma ou sua expressão exterior em palavras. Mais adiante, encontramos as
condições necessárias para oferecer a oração e os meios de aprendê-la, com
exemplos; e finalmente o ensinamento da oração interior e espiritual constante
do nome de Jesus, que é representado como mais elevado e mais salutar do que a
prece exterior. Depois vem sua necessidade, seu fruto bendito, e assim por
diante. Em uma palavra, encontra-se nos Evangelhos um conhecimento
completo e detalhado sobre a prática da oração em uma ordem ou sequência
metódica do começo ao fim.
Esta resposta estimulou-me a pedir-lhe que me mostrasse isto em detalhe. Eu
lhe disse então:
- Como eu aprecio acima de qualquer coisa ouvir falar sobre a oração, ficarei
verdadeiramente feliz de conhecer esta corrente secreta de ensinamentos sobre
a prece com todos os detalhes. Pelo amor de Deus, mostre-me tudo isto no
Evangelho.
Ele aceitou de bom grado e disse:
- Abra seu Evangelho; observe-o e note o que eu lhe digo.
Ele deu-me um lápis.
- É bom para sublinhar as notas que tomei. Agora, disse, veja antes de mais
nada o Evangelho de São Mateus, no sexto capítulo, e leia do quinto ao oitavo
versículo. Você verá que temos aqui a preparação ou introdução, ensinando que
não é com vaidade e espalhafato, mas em um lugar solitário e em toda a calma
que se deve recitar a oração; que é preciso rezar apenas pelo perdão dos pecados
e pela comunhão com Deus, sem acrescentar qualquer demanda inútil a respeito
de coisas temporais, como o fazem os pagãos[7]. Depois siga a leitura do mesmo
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capítulo, do nono ao décimo-quarto versículo: encontraremos aí a forma da
oração – ou seja, em que termos ela deve ser expressa[8]. Você vê aí, reunidos
com enorme sabedoria, todos os elementos necessários e desejáveis para nossa
vida. Depois disto, os versículos décimo-quarto e décimo-quinto do mesmo
capítulo, e verá aí as condições necessárias para a eficácia da prece. Pois se não
perdoarmos aqueles que nos fizeram mal, Deus não perdoará os nossos
pecados[9]. Passe então para o sétimo capítulo, e você encontrará no sétimo e
no nono versículos como obter o fruto da prece, esperando audaciosamente –
“peça”, “busque”, “bata”[10]. Estas expressões fortes descrevem a frequência da
oração e a urgência em praticá-la, de tal modo que a oração não apenas
acompanha as ações, mas as precede. Está aí a qualidade essencial da oração.
Você verá uma ilustração disto no décimo-quarto capítulo de São Marcos, do
trigésimo-segundo ao trigésimo-nono versículo, onde o próprio Cristo repete
frequentemente as mesmas fórmulas de prece[11]. Em São Lucas, capítulo onze,
versículos cinco a quatorze, temos um exemplo semelhante da prece repetida na
parábola do amigo da meia-noite[12], e em outro ponto a história do pedido
repetido da viúva insistente[13], ilustrando o mandamento de Jesus Cristo de
que devemos orar sempre, em todo o tempo e lugar, e não nos abandonarmos ao
desencorajamento, ou seja à preguiça.
Depois deste ensinamento detalhado, é no Evangelho de São João que nos é
oferecido o ensinamento essencial sobre a prece secreta e interior do coração.
Em primeiro lugar, ele nos é trazido no relato profundo do encontro de Jesus
com a Samaritana, em que nos é revelada a adoração interior em espírito e em
verdade, que Deus quer e que é a verdadeira prece perpétua, como uma água viva
que jorra na vida eterna[14]. Mais adiante, no décimo-quinto capítulo, versículo
de quatro a oito, nos são descritos com mais precisão o poder, as possibilidades
e a necessidade da oração interior – vale dizer, da atenção do espírito em Cristo,
à lembrança incessante de Deus[15]. Por fim, leia os versículos de vinte e três a
vinte e quatro no décimo-sexto capítulo do mesmo Evangelho[16]. Veja que
mistério nos é revelado aí. Você sabe que a oração do nome de Jesus Cristo,
conhecida com o nome de prece de Jesus – ou seja Senhor Jesus Cristo, tem
piedade de mim – frequentemente repetida, tem um poder imenso e abre com
facilidade as portas do coração, santificando-o. Podemos ver claramente no caso
dos Apóstolos que foram discípulos de Jesus por um ano inteiro, e já haviam
recebido dele a oração dominical – ou seja, o Pai Nosso; e é através deles que a
conhecemos. Porém, foi no final de sua vida terrestre, que Jesus Cristo lhes
revelou o mistério que ainda permanecia sobre a sua oração. Para que esta
pudesse dar um passo decisivo adiante, ele lhes disse: “Até hoje vocês nada
pediram em meu nome. Em verdade vos digo, tudo o que vocês pedirem ao Pai,
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em meu nome, ele lhes dará.” E é o que aconteceu com eles. E quando os
Apóstolos aprenderam a rezar em nome de Jesus, quantas maravilhas eles não
cumpriram, e quão abundante foi a luz que lhes foi prodigalizada! Agora, vê você
o encadeamento, a plenitude do ensinamento sobre a oração disposta com tanta
sabedoria nos santos Evangelhos? E se você prosseguir pela leitura das
Epístolas, nelas encontrará o mesmo ensinamento progressivo.
Para complementar as notas que eu já lhe dei, vou indicar ainda muitas
passagens que ilustram as qualidades da oração. Assim, a prática é descrita nos
Atos – ou seja, o diligente e constante exercício da oração pelos primeiros
cristãos, que foram iluminados por sua fé em Jesus Cristo[17]. Aí nos são
indicados os frutos da prece e os resultados da oração constante, ou seja a efusão
do Espírito Santo e de seus dons sobre aqueles que oram. Você verá alguma coisa
de semelhante no capítulo sexto, versículos vinte e cinco e vinte e seis. Depois,
siga a ordem das Epístolas e você verá: em primeiro lugar, como a oração é
necessária em todas as circunstâncias[18]; em segundo, como o Espírito Santo
nos ajuda a rezar[19]; em terceiro, como devemos todos rezar em espírito[20];
em quarto, como a calma e a paz interior são necessárias para a oração[21]; em
quinto, como é preciso orar sem cessar[22]; e enfim, vemos que não devemos
rezar apenas por nós mesmos, mas também por todos os homens[23].
Assim, consagrando grande tempo, com muito cuidado, em descobrir seu
significado, podemos encontrar muitas outras revelações da ciência secreta
escondida na Palavra de Deus, e que nos escapam se só a lemos de quando em
quando e distraidamente.
Veja de acordo com o que lhe mostrei, com quanta sabedoria e método o Novo
Testamento revela o ensinamento de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre as
questões que examinamos. Percebe em que maravilhosa sequência ele nos é
exposto pelos quatro evangelistas? Assim é: em São Mateus, vemos a
preparação, a introdução à prece, a verdadeira força da oração, suas condições, e
assim por diante. Depois, em São Marcos encontramos exemplos, em São Lucas
as parábolas, e por fim em São João a prática secreta da oração interior, embora
esta também se encontre nos demais evangelistas com mais ou menos detalhe.
Os Atos nos descrevem a prática da oração e seus resultados. Nas Epístolas
apostólicas e no próprio Apocalipse, encontramos diversos aspectos do ato de
rezar. Eis a razão pela qual só tenho os Evangelhos como único mestre para
todos os caminhos da salvação.
Enquanto ele me mostrava todas essas coisas e me ensinava, eu ia anotando nos
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Evangelhos, em minha Bíblia, os pontos que ele indicava. Isto me pareceu muito
digno de nota e instrutivo, e eu o agradeci muito. Depois continuamos nossa
rota em silêncio por mais cinco dias. Meu companheiro começou a sofrer
violentamente dos pés, sem dúvida porque não estava acostumado a caminhar
constantemente. Assim, ele alugou uma carroça e um par de cavalos e convidou-
me a ir com ele. Foi desta forma que chegamos até estas vizinhanças onde
estivemos por três dias, para podermos, uma vez recuperados, partirmos para
Anzersky para onde ele deseja ardentemente ir.
O estaroste: Seu amigo é esplêndido. A julgar por sua piedade, deve ser muito
instruído. Eu gostaria de vê-lo.
O peregrino: Estamos juntos. Eu o trarei amanhã. Agora já se faz tarde. Adeus.
SEXTO RELATO
O peregrino: Como lhe prometi ontem, pedi ao meu venerável companheiro de
viagem, que me concedeu o favor de seus conhecimentos espirituais, e a quem
você desejava ver, que me acompanhasse até aqui.
O estaroste: Será muito agradável para mim, e também, espero, para meus
veneráveis visitantes, estarmos juntos de vocês para ouvirmos o relato de suas
experiências. E aonde estiverem dois ou três reunidos em nome de Jesus Cristo,
ele próprio estará também. Ora, aqui estamos os cinco em seu nome, e assim ele
não deixará de nos abençoar com mais abundância ainda. A história que o seu
companheiro de viagem contou-me ontem, caro irmão, a respeito de sua
ardente adesão ao santo Evangelho, é deveras digna de nota e muito instrutiva.
Seria interessante sabermos de que maneira este segredo bendito lhe foi
revelado.
O professor: Deus cheio de amor, que deseja que todos os homens sejam salvos
e cheguem ao conhecimento da verdade, revelou-me, em sua bondade, de modo
maravilhoso e sem nenhuma intervenção humana. Durante cinco anos eu fora
professor e levava uma vida melancólica e dispersa, cativado pela vã filosofia do
mundo, e não seguia a Cristo. Talvez eu tivesse perecido, se eu não fosse
parcialmente sustentado pelo fato de viver com minha piedosa mãe e minha
irmã, uma jovem de espírito maduro. Um dia em que flanava pelo passeio
público, conheci um ótimo rapaz que me disse ser francês e estudante, chegado
a pouco de Paris, e que estava à procura de uma colocação como preceptor. Sua
alta cultura me encantou e, como ele era estrangeiro neste país, eu o convidei e
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vir morar comigo e nos tornamos amigos. Durante dois meses vimo-nos com
frequência passeávamos juntos, divertíamo-nos e íamos juntos a companhias
cuja moralidade não preciso destacar.
Um dia, meu amigo chegou com um convite deste tipo; e, para persuadir-me
mais depressa, pôs-se a louvar a alegria e o frescor da companhia para a qual me
convidava. Depois de ter falado um pouco, pediu-me para que saíssemos de seu
gabinete de trabalho em nos achávamos e fôssemos nos sentar no salão. Isto me
pareceu estranho; disse-lhe que nunca antes notara de sua parte nenhuma
reticência em permanecer em meu escritório, e perguntei-lhe o porquê disto
agora. Acrescentei que o salão era pegado aos aposentos ocupados por minha
mãe e minha irmã, e que seria inconveniente que tivéssemos lá esse tipo de
conversação. Ele insistiu sob diversos pretextos, e enfim confessou abertamente
o seguinte: “Dentre os livros de sua prateleira, ali, existe um exemplar dos
Evangelhos; eu tenho tamanho respeito por este livro que tenho vergonha de
falar de nossos negócios escusos em sua presença. Tire-o daqui, para que
possamos conversar livremente.” Frivolamente, sorri com suas palavras. Tirando
o Evangelho da prateleira disse: “Você devia ter-me falado disto há mais
tempo.” Eu o estendi a ele, dizendo: “Pois bem, coloque você mesmo em
qualquer lugar na outra sala.” Mal toquei-o com o Evangelho, e ele começou a
tremer e, num instante, desapareceu.
Isto me deixou a tal ponto estupefato que, aterrorizado, tombei inconsciente.
Ouvindo o ruído, a governanta acorreu e, por mais de meia hora, tentou sem
sucesso reanimar-me. Quando finalmente voltei a mim, estava apavorado e
tremendo, e sentia-me completamente aturdido, com as mãos e os pés
insensíveis a ponto de não poder movê-los. O médico diagnosticou uma
paralisia consequência de choque ou terror violento. Fiquei imobilizado por
todo um ano depois deste incidente, e, apesar dos cuidados mais diligentes de
muitos médicos, não obtinha nenhum progresso, de tal modo que, à força de
minha doença, fui obrigado a renunciar à minha ocupação. Minha mãe, já
velhinha, morreu por esta época e minha irmã preparava-se para tomar o
hábito, e tudo isto agravou muito minha situação. Eu não tinha outro consolo
durante este período do que ler os Evangelhos, que minhas mãos não deixavam
desde o começo de minha doença. Era uma espécie de prova do evento fantástico
que me acontecera. Um dia, um anacoreta que eu não conhecia veio me ver. Ele
fazia uma coleta para seu mosteiro. Falou-me de modo muito persuasivo,
dizendo-me que eu não deveria contar apenas com os remédios, que estes não
trariam alívio sem a intervenção de Deus, que eu deveria orar a Deus e pedir
diligentemente por minha causa específica, pois a oração era o modo mais
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poderoso de cura de todos os males, tanto corporais como espirituais.
“Como você espera que eu reze nesta situação, quando não tenho força sequer
para o menor gesto de veneração, nem mesma para erguer a mão para persignar-
me?” - respondi-lhe perplexo.
Ele me respondeu:
“Reze, custe o que custar; reze de um modo ou de outro.”
Mas ele não foi mais longe do que isto, nem me explicou realmente como rezar.
Quando meu visitante deixou-me, comecei quase que involuntariamente a
pensar na oração, no seu poder e nos seus efeitos, lembrando em meu espírito a
instrução religiosa que recebera há muito tempo, quando ainda era estudante.
Isto ocupou-me com doçura, renovou meus conhecimentos sobre assuntos
religiosos e aqueceu meu coração. Ao mesmo tempo, comecei a sentir uma certa
melhora no meu estado. Como o livro dos Evangelhos estava sempre comigo,
tamanha era minha fé nele depois o milagre, e como lembrava-me que todas as
exposições que já ouvira sobre a prece nos cursos eram fundamentadas nos
textos dos Evangelhos, pensei que a melhor coisa a fazer seria um estudo da
oração e da espiritualidade cristã apenas a partir dos ensinamentos do
Evangelho. Trabalhando para resgatar este sentido, mergulhei numa fonte
abundante e nela encontrei um método completo da vida espiritual e da
verdadeira oração interior. Marquei com fervor as passagens relativas a este
respeito e, desde este dia, procurei zelosamente aprender este ensinamento
divino e, com toda minha força mas não sem sofrimento, colocá-lo em prática.
Enquanto estava ocupado desta maneira, minha saúde melhorou pouco a pouco
e acabei por me restabelecer completamente, como vocês podem constatar.
Ainda vivia só e decidi agradecer a Deus por sua paternal bondade, à qual devia o
restabelecimento de minha saúde e a iluminação de meu espírito, seguindo o
exemplo de minha irmã e o desejo de meu coração de me consagrar à vida
solitária, para poder, sem restrições, receber e tornar minhas essas palavras da
vida eterna que recebia pelo Verbo de Deus. Eis-me aqui, portanto, a caminho
de Anzersky, perto do mosteiro de Solovetsky no mar Branco. Ouvi de fonte
fidedigna que se trata de um local muito indicado para a vida contemplativa.
Devo dizer-lhes ainda o seguinte: o santo Evangelho tem me trazido numerosas
consolações durante esta viagem, espalhando uma luz abundante em meu
espírito ignorante e aquecendo meu coração enregelado. Mas o fato é que, apesar
de tudo, eu reconheço francamente minha fraqueza e admito de bom grado que
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as condições requeridas para o trabalho espiritual e para atingir a salvação, a
necessidade de renúncia total de si mesmo, o despojamento e a humildade que
o Evangelho exige, assustam-me pela sua grandeza e por causa da fraqueza de
meu coração, de tal maneira que me encontro hoje entre a esperança e a
desesperança. Não sei o que será de mim no porvir.
O monge: Com uma prova tão evidente da misericórdia de Deus, e em razão de
sua educação, seria imperdoável, não apenas tornar-se presa do
desencorajamento, mas mesmo admitir em sua alma a menor sombra de dúvida
quanto à proteção e a ajuda de Deus. Sabe o que Crisóstomo, iluminado por
Deus, disse a respeito? “Ninguém deve desencorajar-se, ele ensina, e dar a falsa
impressão de que os preceitos do Evangelho são impossíveis e impraticáveis.
Deus, que predestinou o homem para a salvação, evidentemente não dispôs
mandamentos que o homem fosse forçado a transgredir devido ao seu caráter
impraticável – não, mas sim para que, por sua santidade e sua necessidade para
uma vida verdadeira, eles pudessem ser uma bênção para nós, tanto nesta vida
como na eternidade.” Bem entendido, o cumprimento regular e inflexível dos
mandamentos de Deus é coisa extraordinariamente difícil para nossa natureza
decaída, e é por isso que não é fácil alcançar a salvação, mas este mesmo Verbo
de Deus que impõe os mandamentos oferece também os meios, não apenas de
cumpri-los com facilidade, mas ainda de encontrar nisto a satisfação. Se isto
está oculto à primeira vista atrás de um véu de mistério, é naturalmente para
que tenhamos mais humildade e para sermos mais facilmente conduzidos à
união com Deus, indicando-nos o recurso direto a ele na prece e o apelo ao seu
auxílio paternal. É aí que se acha o segredo da salvação, e não no recurso aos
nossos próprios esforços.
O peregrino: Como eu gostaria, fraco e incapaz como sou, de obter o segredo
que me permitisse, nem que fosse só numa certa medida, consertar minha vida
indolente, para glória de Deus e minha própria salvação!
O monge: Você conhece o segredo, caro irmão, por meio deste livro, a Filocalia.
Ele está nesta prece incessante, que você estudou de forma tão resoluta e na
qual pôs tanto zelo e encontrou tanta satisfação.
O peregrino: Eu me ponho aos seus pés, meu Pai. Pelo amor de Deus, faça-me
ouvir de seus lábios algo para meu bem, sobre este mistério salvador da santa
prece que eu busco ouvir acima de tudo, e sobre o qual aprecio tanto ler os
comentários, para dar alguma força e consolo à minha alma pecadora.
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O monge: Não posso satisfazer ao seu desejo com minhas próprias reflexões
sobre este assunto tão grave, pois eu mesmo tenho disto pouca experiência. Mas
eu possuo algumas notas redigidas com clareza por um autor espiritual e que
dizem respeito precisamente a esta questão. Se seus amigos o consentirem, vou
procurá-lo e, com sua permissão, lerei para que todos ouçam.
Todos: Tenha esta bondade, Pai; não nos esconda uma ciência tão salutar.
***
O SEGREDO DA SALVAÇÃO
REVELADO PELA PRECE PERPÉTUA
Como ser salvo? Esta piedosa pergunta coloca-se naturalmente diante do espírito de
todo cristão que se dá conta ao mesmo tempo das feridas e da decadência de sua
natureza humana, e daquilo que ainda lhe resta de sua tendência original para a
verdade e a virtude. Qualquer um que tenha a menor fé na imortalidade e nos
acontecimentos da vida futura é involuntariamente chamado a pensar: “Como posso
ser salvo?” Quando ele procura uma resposta a esta questão, ele se dirige aos sábios
e aos eruditos. Depois, sob sua direção, ele lê as obras escritas a respeito por autores
espirituais e se põe a seguir inflexivelmente as regras que aprendeu. Em todas estas
instruções, ele encontra constantemente, como condições necessárias para a
salvação, a vida na fé e as lutas heróicas contra si mesmo que devem culminar com
uma virada decisiva. Tudo isso deve conduzi-lo a empenhar-se nas obras da fé,
cumprindo com constância os mandamentos de Cristo, e assim dando testemunho de
uma fé firme e inquebrantável. Ademais, ele aprende que todas essas condições de
salvação devem necessariamente ser cumpridas com a mais profunda humildade e
devem também estar associadas umas às outras. Pois todas as virtudes dependem
umas das outras e devem assim fortificar-se mutuamente, devem completar-se, uma
encorajando a outra, do mesmo modo como os raios do sol não revelam sua força e
não acendem uma vela se não os reunirmos num mesmo ponto com o auxílio de uma
lupa. De outro modo, aquele que for infiel nas pequenas coisas também o será nas
grandes.
Por outro lado, para implantar em si a maior exigência desta virtude complexa e
unificada, ele escuta os maiores elogios sobre a beleza da virtude, e ouve denunciar a
desagregação e as misérias do vício. Tudo isto fica gravado em seu espírito pelas
promessas verossímeis de recompensas grandiosas ou de punições atrozes na vida
futura. Este é o caráter da predicação nos tempos modernos.
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Guiado desta maneira, o homem que deseja ardentemente a salvação apressa-se
com alegria em executar aquilo que ele aprendeu e a experimentar as coisas que leu e
ouviu. Mas, o que se vê? Desde o primeiro passo, ele percebe que será impossível
cumprir com suas intenções. Ele vê desde logo, e constata no primeiro ensaio, que
sua natureza doentia e enfraquecida supera as convicções de seu espírito, que sua
liberdade se torna escravidão, sua propensões são pervertidas e sua força espiritual
se revela pura fraqueza. Vem-lhe então um pensamento natural: não existirá um
meio que lhe permita cumprir aquilo que a lei de Deus requer de si, como pede a
caridade cristã, e do qual se utilizaram todos aqueles que alcançaram a salvação e a
santidade? Então, e para conciliar em si as exigências de sua consciência com a
falta de força para cumpri-las, ele chama outra vez os pregadores da salvação e lhes
pergunta: “Como fazer minha salvação? Como justificar minha incapacidade em
preencher suas condições? Aqueles que me ordenaram tudo aquilo que aprendi, são
eles fortes para colocar tudo em prática?”
- Pergunte a Deus. Ore a Deus. Reze para obter seu auxílio.
“Neste caso não seria mais proveitoso, conclui nosso homem, tanto desde o início
como todo o tempo, estudar a oração, a única que provê toda a força que pode exigir
uma vida espiritual?” Ele então se dedica a estudar a oração; ele lê, medita, e estuda
os ensinamentos daqueles que escreveram a respeito. Na verdade, ele encontra ali
muitos pensamentos luminosos, profundos conhecimentos e palavras cheias de
poder. Um trata magnificamente da necessidade da prece, outro escreve sobre seu
poder, seu efeito benéfico, outro ainda sobre a prece enquanto dever, outro sobre o
zelo que ela exige, ou ainda sobre a atenção, o calor no coração, a pureza de
espírito, a reconciliação com os inimigos, a humildade, a contrição e outras
condições necessárias. Mas o que é a prece em si? Como se faz para realmente orar?
É muito raro encontrar para estas questões primordiais e urgentíssimas uma
resposta precisa que qualquer um possa entender, de tal maneira que quem se
questiona ardentemente sobre a oração ainda é deixado diante de um véu de
mistério. Tudo o que ele leu, em geral, só lhe permite conhecer um lado da oração
que, embora piedoso, permanece exterior, e ele acaba por concluir que a prece
consiste em ir à igreja, persignar-se, inclinar-se, prosternar-se, ler os salmos, os
cânones e os hinos acatistas[24]. Esta é a ideia que fazem da oração todos os que
não conhecem os textos dos santos Padres sobre a oração interior e a ação
contemplativa.
Ao cabo de tudo isso, nosso pesquisador um dia encontra um livro que se chama
Filocalia, no qual vinte e cinco Padres expõem, numa forma acessível, o
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conhecimento científico da verdade e a essência da prece do coração. Então começa
a erguer-se o véu que encobria o segredo da salvação e da prece. Ele vê que na
realidade orar significa dirigir sem trégua seu pensamento e sua atenção à
lembrança de Deus, caminhar em sua presença, despertar em si seu amor pensando
nele, associando o nome de Deus à sua respiração e às batidas de seu coração. Ele é
guiado em tudo isso pela invocação com os lábios do santíssimo nome de Jesus
Cristo, ou pela recitação da prece de Jesus todo o tempo e em todo o lugar, durante
todas as suas ocupações e sem nunca parar. Estas verdades luminosas, aclarando o
espírito do nosso pesquisador e abrindo-lhe o caminho do estudo e do cumprimento
da oração, ajudam-no a começar a praticar em seguida estes sábios ensinamentos.
Entretanto, em suas primeiras tentativas, ele ainda fica às voltas com muitas
dificuldades até que um mestre experiente lhe mostre (neste mesmo livro) toda a
verdade -ou seja, que somente a prece ininterrupta é eficaz, tanto para perfazer a
oração interior como para a salvação da alma. É a frequência da oração que
fundamenta todo o método da atividade salvadora. Como diz Simeão o Novo
Teólogo: “Aquele que ora sem cessar faz a síntese de todo o bem numa única coisa.”
E para expor esta verdade em toda a sua plenitude, o mestre a desenvolveu do
seguinte modo:
Para a salvação da alma, a verdadeira fé é antes de tudo necessária. A sagrada
Escritura diz: “Sem a fé, é impossível agradar a Deus.”[25] Quem não tem fé será
julgado. Mas, nas mesmas Escrituras, vemos também que o homem não pode sozinho
fazer nascer a fé em si, mesmo pequena, ainda menor do que um grão de mostarda;
que a fé não vem de nós, mas que ela é um dom de Deus; e que a fé é um dom
espiritual. Ela é dada pelo Espírito Santo. Se é assim, o que é preciso fazer? Como
conciliar a necessidade de fé do homem com a impossibilidade de provocá-la
humanamente? O modo de fazê-lo é revelado ainda nas mesmas Escrituras: “Pedi, e
se vos dará.” Os Apóstolos não podiam por si sós suscitar neles a perfeição da fé,
mas eles rezaram a Jesus Cristo, dizendo: “Senhor, aumente a nossa fé”. Eis como se
obtém a fé; este exemplo mostra como se alcança a fé pela oração.
Para a salvação da alma, ao lado da verdadeira fé, também são necessárias as boas
obras, pois “a fé sem as obras é morta”. O homem será julgado por suas obras e não
apenas por sua fé. “Se você quiser entrar na vida, observe os mandamentos; não
mate; não cometa adultério; não roube; não preste falso testemunho; honre pai e
mãe; ame seu próximo como a si mesmo”. E observe todos os mandamentos, pois
“aquele que observar a Lei mas transgredir um só mandamento é culpado de
todos.”[26] É o que ensina o apóstolo Tiago. E o apóstolo Paulo, descrevendo a
fraqueza humana, diz: “Nenhuma carne será justificada pelas obras da Lei.” [27]
“Pois sabemos que a Lei é espiritual; mas eu sou carnal, sujeito ao pecado... Pois a
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vontade está em mim, mas eu não encontro como fazer o que é bom... E o mal que eu
não queria fazer, eu faço... Pelo pensamento, eu me submeto à Lei de Deus; mas,
pela carne, à lei do pecado.” [28]
Como cumprir as obras prescritas pela Lei de Deus, quando não se tem forças nem
nenhum poder de observar os mandamentos? É impossível fazê-lo, até que se peça,
até que se reze para obtê-los. “Vocês não têm porque não pedem”[29] ; esta é a
razão que nos apresenta o Apóstolo. E o próprio Cristo diz: “Sem mim vocês não
podem nada.” E, quanto a agir com ele, eis o que ele nos diz a respeito:
“Permaneçam comigo como eu permaneço com vocês; aquele que permanecer em mim
e eu nele, este obterá os frutos da abundância.” Mas permanecer com ele implica
sentir continuamente sua presença, invocar continuamente seu nome. “Tudo aquilo
que pedirem em meu nome eu lhes darei.” Assim a própria possibilidade de fazer o
bem é dada pela oração. Encontramos um exemplo disto no Apóstolo Paulo: três
vezes ele orou para vencer a tentação, dobrando o joelho diante de Deus Pai para
que fortalecesse nele o homem interior, e foi-lhe ordenado acima de tudo orar, e orar
de modo contínuo, a propósito de tudo.
Do que dissemos, segue-se que toda a salvação do homem depende da prece, e é por
isso que ela é primordial e necessária, pois é através dela que a fé é vivificada e que
as boas obras aparecem. Numa palavra, com a oração tudo caminha com sucesso;
sem a oração, não se pode fazer nenhum ato de caridade cristã. Assim a exigência
de que nossa vida seja sem cessar, sempre e em toda parte, oferecida, provém
exclusivamente da oração. Para as demais virtudes, cada qual tem seu próprio
tempo; mas no caso da prece, nos é pedida uma ação ininterrupta: “Orai sem
cessar”. É justo e oportuno rezar sempre, e em qualquer lugar.
A verdadeira oração tem suas condições. Ela deve ser oferecida com um espírito e um
coração puros, com um zelo ardente, uma atenção estrita, com temor e respeito, e
com a mais profunda humildade. Mas quem, em consciência, não admitirá que está
longe de preencher estas condições, e que oferece suas orações mais por
necessidade, mais por obrigação para consigo mesmo, do que por inclinação, deleite
e amor à oração? A este respeito, a sagrada Escritura diz que não está no poder do
homem manter seu espírito inquebrantável e purificar-se dos maus pensamentos,
pois “os pensamentos do homem são maus desde a juventude”, e porque só Deus
pode nos dar outro coração e um espírito novo, pois “o poder de fazê-lo está apenas
em Deus.” O apóstolo Paulo diz: “Meu espírito (ou seja, minha voz) está em oração,
mas minha inteligência permanece estéril.” [30] “Nós não sabemos o que pedir em
nossas orações.”[31], afirma ainda. Resulta daí que somos incapazes, por nós
mesmos, de oferecer a verdadeira prece: em nossas orações, não conseguimos
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manifestar as propriedades essenciais da verdadeira prece.
Se tamanha é a impotência do ser humano, que possibilidades restam ainda à
vontade e à força do homem para a salvação da alma? O homem não pode adquirir
a fé sem a oração; isto também se aplica às boas obras. Mas a verdadeira oração em
si não está ao seu alcance. Que lhe resta fazer? Quanto lhe sobra ainda ao exercício
da liberdade e da força, para que ele possa não perecer, mas ser salvo?
Cada ação possui sua qualidade, e esta qualidade só quem é livre para atribuir é
Deus. Para que a dependência do homem diante de Deus, da vontade de Deus, se
manifeste mais claramente, e para poder mergulhá-lo mais profundamente na
humildade, Deus só atribuiu à vontade e à força do homem a quantidade da oração.
Ele ordenou orar sem cessar, sempre, em todos os momentos e em todos os lugares. É
aí que se acha revelado o método secreto da verdadeira oração, ao mesmo tempo da
fé e do cumprimento dos mandamentos de Deus. É portanto a quantidade das
orações que está assinalada ao homem; a frequência da prece lhe pertence e se acha
sob o domínio da sua vontade. Este é o ensinamento dos Padres da Igreja. São
Macário o Grande diz que em verdade orar é o dom da graça. Santo Eznik diz que a
prece frequente torna-se um hábito, depois uma segunda natureza, e que, sem
invocar frequentemente o nome de Jesus Cristo é impossível purificar o coração.
Calixto e Inácio aconselham a invocação frequente, contínua, do nome de Jesus,
acima de todas as asceses e obras, pois a frequência conduz a prece imperfeita à
perfeição. O bem-aventurado Diádoco afirma que se um homem invoca o nome de
Deus tantas vezes quanto possível, ele não cairá no pecado.
Quanta experiência e sabedoria existem aí, e como essas instruções dos Padres estão
próximas do coração! Com sua experiência e simplicidade, eles lançam uma luz sobre
os meios de conduzir a alma à perfeição. E que contraste com as instruções morais
da razão teórica! Assim fala a razão: faça tais e tais boas ações, arme-se de
coragem, empregue sua força de vontade, convença a si próprio pensando nos felizes
frutos da virtude – por exemplo, purifique seu espírito e seu coração das ilusões do
mundo, substitua-as por meditações instrutivas, faça o bem, assim vocês serão
respeitados e encontrarão a paz; vivam segundo a razão e a consciência. Mas,
vejam! Apesar de toda a sua força, este raciocínio não alcançará seu objetivo sem a
oração frequente, sem invocar a ajuda de Deus.
Vamos agora a outros ensinamentos dos Padres, e veremos o que eles dizem, por
exemplo, sobre a purificação da alma. São João da Escada escreve: “Quando o
espírito está ensombrecido por pensamentos impuros, afugente o inimigo repetindo
inúmeras e ininterruptas vezes o nome de Jesus. Você não encontrará nos céus nem
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na terra arma mais poderosa e eficaz do que esta.” São Gregório o Sinaíta nos
ensina: “Saibam que ninguém pode por si só dominar seu espírito, e assim, quando
surgirem os maus pensamentos, invoquem o nome de Jesus muitas e ininterruptas
vezes, e os pensamentos se apaziguarão.” Que método simples e fácil! E no entanto
ele é verificável pela experiência. Que contraste com os conselhos da razão teórica
que se esforça com presunção em atingir a pureza por seus próprios esforços!
Uma vez anotadas essas instruções fundamentadas sobre a experiência dos Padres,
chegamos a uma conclusão sólida: que o principal, o único e o mais simples método
para atingir a salvação e a perfeição espiritual é a frequência e o caráter
ininterrupto da oração, por fraca que seja. Alma cristã, se você não encontra em si
mesma o poder de adorar a Deus em espírito e em verdade, se seu coração não sente
o calor e a doce satisfação da oração interior, então aplique-se ao sacrifício da prece
o quanto você puder, porque isto só depende da sua vontade, e está dentro dos
limites do seu poder. Familiarize, antes de mais nada, o humilde instrumento dos
seus lábios com a invocação frequente e persistente da oração. Que eles invoquem o
nome de Jesus sempre e sem interrupção; não é um grande trabalho e está dentro dos
limites do poder de cada um. E é também o que vai ao encontro do preceito do santo
Apóstolo: “Por ele, ofereçamos sem cessar um sacrifício de louvor a Deus, ou seja o
fruto dos meus lábios que celebram seu nome.”[32]
É certo que a frequência da prece forma um hábito e se torna uma segunda natureza.
Ela traz, de tempos em tempos, o espírito e o coração a um estado apaziguado.
Suponhamos que um homem cumpra sem parar e continuamente o único
mandamento de Deus sobre a prece perpétua. Por isso mesmo, ele terá cumprido com
todos os outros mandamentos; de fato, se, sem interrupção, em todo o tempo e em
todas as circunstâncias, ele oferecer a oração, invocando em segredo o santíssimo
nome de Jesus (mesmo que de início ele o faça sem ardor espiritual, nem zelo, e
mesmo forçadamente), ele não terá tempo para pensamentos vãos, para julgar a seu
próximo, para desperdiçar seu tempo nos prazeres do sentidos. Todo mau
pensamento encontrará nele um obstáculo ao seu desenvolvimento. Todo o ato
culpável que o possa tentar não se realizará, como se ele houvesse abandonado o
espírito. O excesso de palavras e as palavras inúteis serão rejeitadas e todas as
faltas imediatamente varridas da alma pelo poder misericordioso de uma invocação
tão continuada do nome divino. A prática frequente da oração o impedirá de
praticar qualquer ação culpável e o lembrará de sua vocação original: a união com
Deus.
Veem agora a importância e a necessidade da quantidade da oração? A frequência
da oração é o único método para se chegar à prece pura e verdadeira. É a melhor e
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mais eficaz preparação para a prece, e o meio mais seguro de atingir o objetivo da
oração e a própria salvação.
Para convencê-los definitivamente da necessidade e da fecundidade da oração
frequente, notem que todo o desejo e todo o pensamento de oração é obra do Espírito
Santo, e a voz do anjo guardião; e que o nome de Jesus invocado na oração contém
em si mesmo um poder salvador que existe e age por si mesmo. Assim, não fiquem
perturbados com a imperfeição ou a secura nas suas preces, e esperem com
paciência o fruto da invocação frequente do nome divino. Não escutem as
insinuações daqueles que são inexperientes ou insensatos, segundo os quais a
invocação morna é uma repetição inútil, para não dizer enjoativa. Não: o poder do
nome divino e sua invocação frequente trarão o fruto a seu tempo.
Um autor espiritual falou magnificamente sobre isto: “Eu sei, disse ele, que para
muitos pretensos espirituais e sábios filósofos, que procuram em toda parte a falsa
grandeza e as práticas sedutoras através da razão e do orgulho, o simples exercício
vocal mas frequente de uma oração parece ter pouco significado, parece não passar
de uma ocupação inferior, quase uma criancice. Mas estes infelizes enganam-se e
esquecem o ensinamento de Jesus Cristo: “Se vocês não se converterem e não se
tornarem como criancinhas, vocês não entrarão no Reino dos Céus.”[33] Eles
elaboram por si mesmos uma ciência da oração sobre as fundações instáveis da
razão natural. Será que precisamos de tanta erudição, ciência e reflexão para
dizermos com um coração fervente: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem
piedade de mim? Não foi nosso divino Mestre em pessoa quem mais louvou esta
oração frequente? Não foram recebidas respostas magníficas e cumpridas
magníficas obras apenas por meio desta curta mas frequente oração? Alma cristã,
afirme sua coragem, e não abandone a incessante invocação de sua prece, mesmo
que seu grito venha de um coração ainda em guerra consigo mesmo e ainda meio
preenchido pelo mundo. Pouco importa! Persevere, não se deixe reduzir ao silêncio e
não se perturbe. Sua prece irá purificar-se sozinha pela simples repetição. Que sua
memória não esqueça o seguinte: “Aquele que está em vós é maior do que aquele que
está no mundo.”[34] “Deus é maior que o nosso coração, e conhece todas as coisas”,
diz o Apóstolo.
Depois dessas afirmações convincentes de que a oração, tão poderosa para a
fraqueza humana, é certamente acessível ao homem e depende de sua própria
vontade, decida-se, experimente, nem que seja por um único dia, de início. Vigie-se e
torne a frequência da prece tal que mais tempo você passe, das vinte e quatro horas
do dia, ocupado com a invocação do nome de Jesus do que com todas as demais
ocupações. E este triunfo da prece sobre as ocupações mundanas mostrará, a seu
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tempo, que a jornada não foi perdida, mas ganha para a salvação; que a oração
frequente, na balança do julgamento divino, fará contrapeso à sua fraqueza e às
suas más ações, e apagará os pecados desta jornada do memorial de sua
consciência. Que ela coloque seu pé sobre o degrau da virtude e lhe dê a esperança
da santificação.
***
O peregrino: Eu o agradeço de todo coração, santo Padre. Ao ler este texto, você
levou alegria à minha alma de pecador. Peço-lhe, pelo amor de Deus, que me
deixe copiar o que você nos leu; posso fazê-lo em duas horas. Tudo o que você
leu foi tão bom e reconfortante, pareceu-me tão compreensível, tão claro ao
meu espírito estúpido, como a própria Filocalia, onde os Padres tratam do
mesmo assunto. Veja, por exemplo, o que escreve João de Cárpatos, na quarta
parte da Filocalia: “Se você não tem a força necessária para o domínio de si e as
obras da ascese, saiba que Deus deseja salvá-lo pela oração.” Mas como tudo isto
está magnífica e claramente exposto no seu texto! Eu o agradeço, diante de
Deus, por nos tê-lo trazido e nos dado a conhecer.
O professor: Eu escutei com toda atenção e com muito prazer a sua leitura, meu
Pai. Todos os argumentos que repousam sobre uma estrita lógica são uma delícia
para mim. Mas, ao mesmo tempo, parece-me que eles colocam a possibilidade
da prece perpétua na dependência de condições que lhe sejam favoráveis e de
uma solidão aprazível. Eu admito que a oração frequente e incessante seja um
meio poderoso e único para obter o socorro da graça divina em todos os atos de
santificação, e que ela está dentro dos limites das possibilidades humanas. Mas
trata-se de um método que só é praticável por quem pode dispor de solidão e
calma. Afastando-se dos negócios, das necessidades e das distrações, é possível
orar frequentemente e mesmo continuamente. Só é preciso dar conta da própria
indolência ou do obstáculo formado por seus próprios pensamentos. Mas,
quando se está ligado aos deveres e constantes afazeres, quando se está em
companhia barulhenta, não se pode realizar o desejo de orar incessantemente
devido às inevitáveis distrações. Por conseguinte, este método da oração
frequente, por depender de circunstâncias favoráveis, não pode ser utilizado por
todos, nem adaptar-se a todo mundo.
O monge: Não é preciso chegar a semelhante conclusão. O coração que foi
instruído pela oração interior pode sempre invocar o nome de Deus sem ser
impedido por nenhuma ocupação corporal ou mental, a apesar de não importa
quanto barulho; aqueles que sabem disto o sabem por inexperiência, e os que
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não sabem devem aprender por um treinamento progressivo. Podemos dizer
simplesmente e com toda confiança que nenhuma solicitação exterior pode
interromper a prece do homem que quer orar, pois o pensamento secreto do
homem não depende das condições exteriores e permanece inteiramente livre
em si mesmo. Podemos a qualquer momento despertá-lo e dirigi-lo para a
oração. A própria língua pode secretamente, e sem emitir nenhum som, efetuar
a prece na presença de inúmeras pessoas e durante todo o tipo de ocupação. De
resto, nosso negócios não são tão importantes e nossas conversas tão
interessantes que seja impossível encontrar um meio, por instantes, de invocar
o nome de Jesus, mesmo se o espírito ainda não estiver treinado para a prece
perpétua. Embora a solidão e a fuga para longe de um vida dispersiva constituam
condições favoráveis para a oração atenta e perpétua, deveríamos ter vergonha
da raridade de nossas orações, porque a quantidade e a frequência estão à
disposição de todo mundo, por fraco e ocupado que seja. Encontramos exemplos
cabais da prece entre homens que, carregados de obrigações, de deveres
urgentes, de responsabilidades e de trabalho, não apenas invocaram
constantemente o nome de Jesus Cristo, mas inclusive conseguiram por este
meio alcançar a prece interior e incessante do coração. Assim foi com o patriarca
Photius que, promovido do cargo de senador à dignidade patriarcal, ao mesmo
tempo em que governou o vasto patriarcado de Constantinopla, perseverava
continuamente na invocação do nome de Deus, e obteve assim a prece
ininterrupta do coração. Ou Calixto que, no monte Athos, praticou a prece
perpétua ao mesmo tempo em que mantinha suas atividades como cozinheiro.
Ou Lázaro, de coração simples, que, encarregado pela congregação de exercer um
trabalho contínuo, repetia sem interrupção, em meio às suas ruidosas
ocupações, a oração de Jesus e permanecia em paz. E muitos outros que também
praticaram a invocação contínua do nome de Deus.
Se fosse realmente impossível orar no meio de tarefas absorventes ou no
convívio com os outros homens, não teríamos, evidentemente, recebido este
mandamento. São João Crisóstomo, em seus ensinamentos sobre a oração, fala
assim: ninguém deve responder que é impossível ao homem ocupado com as
responsabilidades do mundo e que não pode ir sempre à igreja, rezar. Em toda
parte, aonde você estiver, sempre você poderá erguer um altar a Deus em seu
pensamento. Assim, é oportuno orar durante os afazeres, em viagens, sentado à
escrivaninha ou numa tarefa manual. É possível rezar em toda parte e em todos
os lugares, e se um homem coloca diligentemente sua atenção sobre si mesmo,
ele encontrará sempre circunstâncias favoráveis à oração, se no mínimo ele
estiver convencido de que a oração deva constituir sua ocupação essencial e vir
antes de qualquer outro dever. E neste caso, bem entendido, ele organizará seus
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negócios com mais decisão; nas conversas com os outros, ele manterá a
brevidade, uma tendência ao silêncio e uma falta de gosto pelas palavras inúteis.
Ele não se inquietará tolamente com as coisas tolas. E, por todos os seus meios,
ele encontrará o caminho da oração e da paz. Em uma vida organizada desta
forma, todas as suas ações, pelo poder da invocação do nome de Deus, serão
logo marcadas pelo sucesso, e ele chegará finalmente à invocação ininterrupta
do nome de Jesus. Ele saberá por experiência que a frequência da oração, este
meio único de salvação, está à disposição da vontade do homem, que é possível
orar em todos os momentos, em todas as circunstâncias e em todos os lugares, e
ele conseguirá então facilmente elevar-se da prece vocal frequente à prece
mental e daí à prece do coração que abre em nós o Reino de Deus.
O professor: Eu admito que durante as ocupações mecânicas é possível, e
mesmo fácil, orar com frequência, e até continuamente; pois o trabalho
maquinal do corpo não exige uma aplicação mental profunda nem muita
reflexão, e é por isso que, enquanto o cumpre, o espírito pode mergulhar na
oração e os lábios o seguem. Mas se eu devo ocupar-me de alguma coisa
puramente intelectual, numa leitura atenta por exemplo, ou na consideração de
um grave problema, ou numa composição literária, como poderei rezar com o
espírito e os lábios? E, uma vez que a prece é antes de tudo uma ação mental,
como é possível, num mesmo instante, atribuir ao mesmo espírito duas tarefas
diferentes?
O monge: A solução do seu problema não é difícil se considerarmos que as
pessoas que oram constantemente podem ser divididas em três categorias:
primeiro os iniciantes; depois, aqueles que já fizeram algum progresso; e em
terceiro lugar, os que estão bem exercitados. Os iniciantes muitas vezes são
capazes de experimentar, de tempos em tempos, um impulso do pensamento e
do coração para Deus, e de repetir orações curtas com os lábios, mesmo durante
um trabalho mental. Aqueles que fizeram progressos e atingiram uma certa
estabilidade mental podem exercitar-se em meditar ou escrever na presença
ininterrupta de Deus. Eis uma imagem para esclarecer: suponha que um monarca
severo e exigente ordene a você que componha um tratado sobre algum assunto
complicado, mas ao pé do trono e na sua real presença. Embora você possa estar
totalmente ocupado com seu trabalho, a presença do rei que tem poder sobre
você e que tem sua vida em suas mãos não poderia ser esquecida um instante
sequer, mesmo estando você pensando, refletindo e escrevendo não na solidão,
mas num lugar que lhe exige uma atenção e um respeito especiais. Esta
consciência da proximidade do rei exprime com muita clareza a possibilidade de
se dedicar à prece perpétua interior mesmo durante um trabalho intelectual.
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Quanto aos que possuem um longo hábito ou que a graça de Deus fez progredir
da prece mental à do coração, eles não abandonam a sua prece perpétua durante
os exercícios intelectuais mais exigentes, e nem mesmo durante o sono. Como
nos disse o sábio: “Eu durmo, mas meu coração vela” (Ct., 5,2). Aqueles que
obtiveram esta espontaneidade do coração obtêm uma tal aptidão em invocar o
nome divino que a oração vigia por si mesma e todo o espírito é transportado
em uma corrente de prece incessante, qualquer que seja a condição e por mais
abstratas e intelectuais que sejam as ocupações do sujeito que ora naquele
mesmo momento.
O sacerdote: Permita-me, Pai, dizer o que eu penso. Dê-me a palavra para que
eu possa dizer uma ou duas coisas. Ficou admiravelmente colocado, no texto que
você nos leu, que o único meio de se alcançar a salvação e a perfeição é a
frequência da prece, qualquer que seja. Mas eu não compreendo isto muito bem,
e eis o que me parece: que utilidade pode ter para mim invocar o nome de Deus
continuamente apenas com a língua, mas sem atenção e sem compreender o que
eu digo? Isto não passaria de uma vã repetição. O único resultado é que a língua
prosseguirá tagarelando e a atividade do espírito, sofrendo com isto em sua
reflexão, ficará desequilibrado. Deus não pede palavras, mas um espírito atento
e um coração puro. Não seria melhor oferecer uma oração, que seja curta, ou
mesmo rara, ou somente em momentos reservados, mas feita com atenção, com
zelo e calor, e com a devida compreensão? De outro modo, mesmo que digamos
a oração dia e noite, sem pureza mental isto não será um ato de piedade e não
estaremos fazendo nada por nossa salvação. Não estamos apoiados em nada
senão numa tagarelice exterior, da qual extraímos fadiga e cansaço, de tal
maneira que no final das contas a confiança na oração esfria e acabamos por
rejeitar este procedimento estéril. De resto, a inutilidade da prece com os lábios
apenas resulta daquilo que nos foi revelado pelas santas Escrituras, como por
exemplo: “Estas pessoas aproximam-se de mim com a boca e me honram com
seus lábios, mas seu coração está longe de mim.”[35] “Todos aqueles que me
dizem: Senhor, Senhor, não entrarão no Reino dos Céus.”[36] “Eu prefiro dizer
cinco palavras com a minha inteligência do que dizer mil palavras numa língua
desconhecida.”[37] Tudo isto mostra a esterilidade da oração exterior e
desatenta da boca.
O monge: Haveria uma certa verdade no seu ponto de vista se eu não tivesse
acrescentado à recomendação de orar coma boca a necessidade de fazê-lo
continuamente, e se a invocação do nome de Jesus Cristo não tivesse um poder
próprio e não obtivesse, por si só, o zelo e a atenção como frutos de sua prática
constante. Mas como a questão em pauta agora é a frequência, a duração e o
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caráter ininterrupto da oração (embora no início ela possa ser cumprida com
desatenção ou secura), as conclusões que você tirou indevidamente caem por si
sós. Examinemos a questão mais de perto. Um autor espiritual, após haver
demonstrado o grande valor e o proveito que resulta da oração frequente
expressa em uma forma invariável, diz finalmente: “Muitas pessoas
supostamente esclarecidas consideram esta oferenda frequente de uma só e
mesma oração como inútil ou mesmo fútil, como uma ocupação mecânica e
insensata de ignorantes. Mas eles ignoram o segredo que é revelado por esta
prática aparentemente maquinal, eles não sabem que o movimento frequente
dos lábios torna-se imperceptivelmente um apelo sincero do coração, que ele se
infiltra na vida interior, torna-se uma felicidade, torna-se, por assim dizer,
natural à alma, levando-lhe e luz e o alimento e conduzindo-a à união com
Deus. Esses censores me fazem pensar em crianças a quem estamos ensinando o
alfabeto e a leitura. Quando elas ficam cansadas elas reclamam: “Não seria cem
vezes melhor irmos às colheitas, como papai, do que passar todo o dia a repetir
incessantemente be-a-bá, ou rabiscar todo o tempo com a caneta numa folha de
papel?”. A utilidade de saber ler e as luzes que daí resultam e que só podem ser
fruto deste penoso aprendizado das letras pelo coração, são para elas um
segredo velado. Da mesma forma, a invocação simples e frequente do nome
divino é um segredo velado para essas pessoas que não estão persuadidas dos
seus resultados e de seu enorme valor. Avaliando o ato de fé a partir da
capacidade de sua própria razão míope e inexperiente, eles esquecem que o
homem é feito de um corpo e uma alma.”
Por exemplo, porque, quando deseja purificar sua alma, você começa por se
ocupar do corpo, fazendo-o jejuar, privando-o de alimento e de comidas
estimulantes. É, certamente, para que ele não possa ser um obstáculo ou, para
dizer melhor, para que ele possa tornar-se o meio de favorecer a pureza da alma
e o discernimento do espírito, para que a sensação constante da fome corporal o
lembre de sua resolução de buscar a perfeição interior e as coisas que agradam a
Deus, e de que nos esquecemos tão facilmente. E aprendemos por experiência
que por meio do ato exterior do jejum corporal realizamos o refinamento
interior do espírito, a paz do coração, e encontramos um instrumento para
domar as paixões e um aguilhão do esforço espiritual. Assim, por meio das
coisas exteriores e materiais, recebemos ajuda e proveito interior e espiritual.
Você deve entender que o mesmo acontece com a prece frequente dos lábios,
que com o tempo atrai a oração interior do coração e favorece a união do espírito
com Deus. É vão imaginar que a língua, cansada desta repetição e desta árida
falta de compreensão, será levada a abandonar inteiramente, como coisa inútil,
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este esforço exterior da oração. Não, a experiência nos prova exatamente o
contrário. Aqueles que praticaram a prece perpétua nos asseguram que o que
acontece é o seguinte: a pessoa que está resolvida a invocar sem cessar o nome
de Jesus, ou, o que vem a dar no mesmo, a dizer a oração de Jesus,
continuamente, experimenta no início uma série de dificuldades e tem que lutar
contra a preguiça; mas quanto mais ela trabalha com firmeza ao longo do
tempo, mais ela se familiariza com esta tarefa, imperceptivelmente, de modo
que no final os lábios e a língua adquirem uma tal capacidade de murmurar que,
mesmo sem nenhum esforço de sua parte, eles movem-se irresistivelmente e
dizem a prece sem ruído. Ao mesmo tempo, o mecanismo dos músculos da
garganta fica tão treinado que ao orar ele começa a sentir que o enunciado da
oração é uma de suas propriedades perpétuas e essenciais, e chega mesmo a
sentir como se algo lhe estivesse faltando cada vez que interrompe a prece.
Resulta assim que por sua vez o espírito começa a ceder, a dar ouvidos a esta
ação involuntária dos lábios e, por meio dela, desperta para a atenção, que
conduz a uma fonte de delícias para o coração, e daí à prece verdadeira.
Vocês veem assim o verdadeiro o benfazejo efeito da prece vocal frequente ou
contínua, exatamente o oposto do que imaginam as pessoas que nunca a
praticaram nem compreenderam. Quanto às passagens da Escritura que você
invocou como apoio à sua objeção, elas ficarão explicadas se fizermos um exame
mais verdadeiro.
Jesus Cristo denunciou a adoração hipócrita de Deus com a boca, a ostentação ou
ausência de sinceridade daqueles que clamam “Senhor, Senhor”, pois a fé dos
orgulhosos Fariseus não era senão da boca para fora, e sua consciência não a
justificava em nenhuma medida, nem eles a confessavam m seus corações. É a
eles que foram ditas estas coisas, e isto não se aplica ao fato de dizermos uma
oração a respeito da qual Cristo deu instruções diretas, explícitas e precisas. “Os
homens devem orar constantemente e nunca fraquejar.” Da mesma forma,
quando o apóstolo Paulo diz que ele prefere cinco palavras ditas com a
inteligência do que uma multidão de palavras sem pensamentos ou em uma
língua desconhecida, ele fala do ensinamento em geral, e não da prece em
particular, a respeito da qual ele diz com toda firmeza: “Assim eu desejo que os
homens rezem por toda parte”[38], e o preceito fundamental vem dele: “Orai
sem cessar.”[39] Veem agora como a prece frequente é fecunda apesar de toda
sua simplicidade, e como a exata compreensão da Escritura exige uma refletida
consideração?
O peregrino: Quão verdadeiro é isto, meu Pai! Eu vi muitas pessoas que, de
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forma simples, sem as luzes de qualquer educação que seja, e sem mesmo saber
o que é a atenção, oferecem a prece de Jesus com a boca e sem detenção. Eu os vi
atingir o ponto em que seus lábios e sua língua não podiam mais parar de dizer a
oração. Elas lhes trazia alegria e iluminação, e pessoas negligentes e fracas
assemelhavam-se a ascetas formados e modelos de virtude.
O monge: A oração conduz o homem a um novo nascimento, por assim dizer.
Seu poder é tão grande que nada, nenhum grau de sofrimento lhe pode resistir.
Se vocês quiserem, irmãos, eu lerei como despedida uma nota breve porém
interessante que eu trago aqui comigo.
Todos: Nós o escutaremos com o maior prazer.
O PODER DA ORAÇÃO
A oração tem tanto poder e força que poderíamos dizer: “Ore, e faça o que quiser”,
pois a prece o guiará para o ato direito e justo. Para agradar a Deus, não é preciso
mais do que amor. “Ame, e faça o que quiser, diz santo Agostinho, pois aquele que
ama verdadeiramente não pode desejar nem fazer nada que não agrade ao amado.”
Como a prece é a efusão e a atividade do amor, dela podemos dizer por analogia:
“Ore, e faça o que quiser”, e você alcançará o objetivo da oração. Ela o iluminará.
Para melhor explicar em detalhe esta questão, tomaremos alguns exemplos:
Ore, e pense o que quiser: seus pensamentos serão purificados pela prece. Ela lhe
dará o discernimento; ela suprimirá e afastará todos os maus pensamentos. É isto
que afirma são Gregório o Sinaíta. Se você deseja exterminar os pensamentos e
purificar o espírito, este é seu conselho: “Expulse-os pela oração.” Pois nada é capaz
de dominar os pensamentos como a oração. São João da Escada diz também a
respeito: “Vença com o nome de Jesus os inimigos que se apoderaram do seu espírito.
Você não encontrará arma melhor do que esta.”
Ore, e faça o que quiser. Seus atos agradarão a Deus e serão úteis e salutares. A
oração frequente, não importa a respeito do quê, jamais permanece sem fruto, pois
ela carrega em si o poder da graça, e porque “quem quer que invoque o nome do
Senhor será salvo.”[40] Por exemplo: um homem que havia rezado sem sucesso e sem
fervor obtém com esta prece o discernimento e um desejo de arrepender-se. Uma
mulher que amava o prazer orava quando estava a sós e esta oração lhe mostrou o
caminho da vida virginal e da obediência aos ensinamentos de Cristo.
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Ore, e não tente vencer suas paixões com suas próprias forças. A oração as
destruirá em você, pois “aquele que está em vós é maior do que aquele que está no
mundo”[41], diz a santa Escritura. E são João de Cárpatos ensina que se você não
tem o dom do domínio sobre si, você não deve afligir-se mas saber que Deus lhe pede
apenas ser diligente na oração, e ela o salvará. Um caso que o demonstra é o do
estaroste de quem é dito na Vida dos Padres que, quando caía no pecado, não se
deixava desencorajar mas recorria à oração, e por meio dela reencontrava seu
equilíbrio.
Ore, e não tema nada. Não tenha receio dos infortúnios, nem dos desastres. A
oração os afastará e o protegerá. Lembre-se de são Pedro, que tinha pouca fé e
afundou[42]; de são Paulo, que orava na prisão; do monge a quem a prece livrou
dos assaltos da tentação; da jovem que foi salva dos maus desejos de um soldado
pela oração; e de outros casos semelhantes que mostram a força, o poder e a
universalidade da prece em nome de Jesus.
Ore de um modo ou de outro, mas ore sempre e não se deixe distrair por
nada. A oração arrumará tudo e o instruirá. Lembre-se das palavras dos santos
João Crisóstomo e Marcos o Asceta sobre o poder da oração. O primeiro declara que
a prece, mesmo oferecida por nós que somos cheios de pecados, nos purifica
imediatamente. O segundo diz: “Rezar de qualquer maneira está em nosso poder,
mas rezar com pureza é um dom da graça.” Ofereça portanto a Deus aquilo que
estiver ao seu alcance oferecer. Dedique-lhe primeiro a simples quantidade, que está
dentro das suas possibilidades, e Deus derramará a força divina em sua fraqueza. A
oração, ainda que seca e distraída, desde que contínua, criará um hábito, tornar-
se-á uma segunda natureza e se transformará na prece pura e luminosa, na
admirável oração de fogo.
Para concluir, note que, se o tempo de sua vigilância e de sua oração se prolonga,
simplesmente não lhe restará mais tempo para realizar más ações, nem sequer para
pensar nelas.
Veem vocês agora, quão profundos pensamentos estão concentrados nesta sábia
afirmação: “Ame, e faça o que quiser”? Quanto conforto e consolo para o pecador
esgotado por suas fraquezas e que geme sob o fardo de suas paixões desgovernadas.
A oração. Eis o que nos foi dado como meio de salvação universal, para fazer a alma
crescer em perfeição. Isto é tudo. Mas quando falamos de oração, deve ficar
estabelecida uma condição. Ore sem cessar, é o mandamento do Verbo de Deus.
Por conseguinte, a oração revelará sua maior eficácia e todos os seus frutos na
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medida em que for oferecida muitíssimas vezes, continuamente; pois a frequência da
prece depende indubitavelmente de nossa vontade, enquanto que a pureza, o zelo e a
perfeição da oração são dons da graça.
Assim, oremos tanto quanto possível. Consagremos toda a nossa vida à oração,
mesmo se de início ela esteja sujeita a distrações. A prática frequente nos ensinará a
atenção. A quantidade conduzirá certamente à qualidade. “Se você quiser aprender
a fazer direito seja lá o que for, é preciso repeti-lo tanto quanto possível”, diz um
velho mestre espiritual.
O professor: A oração é realmente uma grande demanda, e sua repetição
apaixonada é a chave que abre o tesouro da graça. Mas quantas vezes eu estive
em conflito comigo mesmo, entre o ardor e a preguiça! Como eu ficaria feliz em
encontrar o caminho da vitória, de poder determinar-me e despertar para a
prática contínua da prece!
O monge: Muitos autores espirituais oferecem diversos meios baseados num
sólido raciocínio para estimular a diligência na oração. Por exemplo:
- eles o aconselharão a impregnar seu espírito com as ideias da necessidade,
da excelência e da eficácia da oração para a salvação da alma;
- adquira a firme convicção de que Deus exige a oração de nós, de forma
absoluta, e ordena que a realizamos em toda parte;
- lembre-se sempre que, se você é preguiçoso e negligente para a oração,
você não poderá realizar nenhum progresso nos atos de caridade nem na
obtenção da paz e da salvação, e que por conseguinte você sofrerá
inevitavelmente tanto os tormentos da terra quanto os da vida por vir;
- encoraje sua resolução pelo exemplo dos santos que alcançaram, todos
eles, a santidade e a salvação pelo caminho da prece perpétua.
Embora todos estes métodos tenham seu valor e resultem de um juízo são, a
alma que ama o prazer e que se abandona à irresponsabilidade, mesmo quando
os admite ou utiliza, raramente compreende seu alcance, pela seguinte razão:
estes remédios são amargos para seu paladar mimado e demasiado fracos para
sua natureza profundamente alterada. Pois poderá haver um cristão que ignore
que ele deve orar constante e diligentemente, que este é um dever estabelecido
por Deus, que nós somos prejudicados por nossa preguiça na oração, que todos
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os santos rezaram com ardor e perseverança? Entretanto, é bem raro que saber
disto traga frutos. Todo homem que se observa vê bem que ele raramente dá
ouvidos a estes conselhos, e que, fora algumas raras reminiscências, ele leva
todo o tempo uma vida má e preguiçosa. Assim, em sua experiência e divina
sabedoria, os santos Padres, conhecendo a fraqueza da vontade e o excessivo
amor pelo prazer do coração humano, adotaram algumas disposições específicas,
e com isto suavizaram a prova e adoçaram a borda do cálice. Eles mostraram que
o modo mais eficaz e mais fácil de se desfazer da preguiça e da indiferença a
respeito da prece reside na descoberta, com a ajuda de Deus, da doçura e da
imensidão do amor divino, ao qual a oração permitirá responder.
Eles aconselham a você meditar sempre que possível sobre o estado de sua alma,
e ler atentamente os escritos dos Padres a respeito. Eles fornecem a garantia
encorajadora de que estes deliciosos sentimentos interiores podem ser pronta e
facilmente atingidos pela prece, e dizem como eles são desejáveis. A alegria do
coração, o entusiasmo inefável, a leveza do coração, a paz profunda e a própria
essência da beatitude resultam todos da prece do coração. Mergulhando em
reflexões como esta, a alma fria e fraca inflama-se e fortifica-se, o ardor pela
oração a encoraja e ela é assim, de certa forma, tentada a por em prática a
oração. Como diz são Isaac o Sírio: “A felicidade é uma atração para a alma, esta
felicidade que nasce do florescimento da esperança no coração, e a meditação
sobre esta esperança é o bem estar do coração.” O mesmo autor diz também:
“esta atividade, desde sua origem até o fim, pressupõe de certa forma um
método e a esperança em seu cumprimento, e isto solicita à alma edificar uma
fundação para a tarefa a cumprir, ao mesmo tempo em que ela retira seu consolo
da visão do objetivo que ela se esforça em atingir.” Do mesmo modo, santo
Eznik, após haver descrito como a preguiça é um obstáculo à oração e recusado
certos erros sobre a maneira de fazer renascer o ardor pela prece, conclui
claramente: “Se não estamos prontos a desejar o silêncio do coração por
nenhuma outra razão, que seja no mínimo pela delícia que a alma experimenta
e pela felicidade que ela traz.”
Vemos assim que este sábio apresenta o sentimento de felicidade como um
encorajamento à oração assídua; e Macário o Grande, do mesmo modo, ensina
que nossos esforços espirituais (na oração) devem ser cumpridos com o desígnio
de obter seus frutos – ou seja, a felicidade do coração. Podemos encontrar
exemplos claros deste método em numerosas passagens da Filocalia que
descrevem em detalhe as delícias da oração. Quem está às voltas com a preguiça
ou a secura devem lê-las tantas vezes quanto possível, ao mesmo tempo em que
se considera indigno desta alegria e se repreende por ser tão negligente na
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prece.
O sacerdote: Será que tal meditação não levará uma pessoa inexperiente à
volúpia espiritual, como os teólogos denominam esta tendência da alma ávida
por consolações excessivas e agrados, e a não aceitar cumprir seus trabalhos
como uma obrigação despojada, sem sonhar com recompensas?
O professor: Parece-me que os teólogos, neste caso, alertam contra o excesso
ou a avidez da fruição espiritual, mas não rejeitam de modo algum a alegria e a
consolação da virtude. Pois se o desejo de recompensa não é a perfeição,
tampouco Deus proíbe ao homem de pensar na felicidade e na consolação, e ele
próprio utiliza a ideia de recompensa para incitar os homens a cumprir os
mandamentos e alcançar a perfeição. Honre a seu pai e à sua mãe – este é o
mandamento, e você verá que a recompensa chega, como o chicote da
obediência: e você estará bem. Se você quiser ser perfeito, vá, venda tudo o que você
possui, venha e siga-me. É isto que a perfeição exige, e logo após virá a
recompensa, como motivação para alcançar a perfeição: e você terá um tesouro
nos céus. Bem-aventurado você será quando os homens o odiarem, o perseguirem,
ultrajarem e rejeitarem seu nome como infame por causa do Filho do homem.[43]”
Isto é o que exige o cumprimento do trabalho espiritual: ele pressupõe uma força
de alma pouco comum e uma paciência inquebrantável. E é por isso que a
recompensa e a consolação são grandes, próprias para suscitar e manter esta
força da alma; pois sua recompensa será grande nos céus. Creio assim que um
certo desejo de plenitude na prece do coração é necessário e constitui
provavelmente o meio de alcançar tanto a diligência quanto o resultado. De
sorte que isto confirma indubitavelmente os ensinamentos práticos que
ouvimos a respeito.
O monge: Um verdadeiro teólogo – estou falando de são Macário do Egito –
escreve da maneira mais clara sobre esta questão. Ele diz: “Quando você planta
uma vinha, você consagra a ela seus pensamentos e suas penas com o objetivo
de colher a produção, ou, caso não o faça, todo o seu trabalho terá sido inútil. O
mesmo acontece com a oração: se você não buscar o fruto intelectual – ou seja, o
amor, a paz, a felicidade e o resto - suas penas terão sido inúteis. É por isso que
devemos sempre cumprir com nossos deveres espirituais (a oração) com o
objetivo e a esperança de colhermos seus frutos, que são o reconforto e a alegria
do coração.” Vejam como o santo Padre responde claramente à nossa questão
sobre a necessidade da alegria na oração! E, de fato, vem-me ao espírito um
ponto de vista que li em um autor espiritual, não faz muito tempo. Ele dizia algo
assim: “O fato de que a prece é natural ao homem é a primeira causa de sua
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inclinação para ela.” O exame desta característica natural, no meu
entendimento, pode servir como um poderoso meio de estimular o esforço na
oração, meio que o professor busca tão ardentemente.
Permita-me resumir brevemente os pontos que ressaltei em minha leitura. Por
exemplo, o autor diz que a razão e a natureza conduzem o homem ao
conhecimento de Deus. A primeira verifica o axioma segundo o qual não pode
haver ação sem causa, e, subindo pela escada das coisas sensíveis da mais baixa
à mais elevada, chega à Causa primeira, Deus. A segunda manifesta a cada passo
as maravilhas de uma sabedoria, de uma harmonia, de uma ordem, e torna-se
assim o ponto de apoio da escada que conduz das coisas finitas ao infinito. De
sorte que o homem natural chega naturalmente ao conhecimento de Deus. É por
isso que não existe nem jamais existiu povo ou tribo bárbara que fosse
totalmente desprovido do conhecimento de Deus. Através deste conhecimento,
o homem mais selvagem, sem nenhum impulso exterior, volta por assim dizer
sua atenção involuntariamente para o céu, cai de joelhos, solta um grande
suspiro que ele não compreende, e tem o sentimento evidente de que existe algo
que o atrai para o alto, algo que o empurra para o desconhecido. Este é o
fundamento de todas as religiões naturais.
É característico, a propósito, que universalmente a essência ou a alma de todas
as religiões consista na prece secreta, que se manifesta por uma certa forma de
atividade do espírito e como uma evidente oblação, ainda que mais ou menos
deformada pelo obscurantismo em que se encontra a inteligência dos povos
pagãos. Quanto mais este fato é surpreendente aos olhos da razão, mais é
importante para nós descobrirmos a causa oculta desta coisa maravilhosa que se
expressa por uma tendência natural à oração. A resposta psicológica para isto
não é difícil de encontrar. A raiz e a força de todas as paixões e ações humanas
são o amor inato do ser. O instinto de conservação profundamente enraizado e
universal confirma-o. Todo desejo humano, toda empresa humana, toda ação
tem como objetivo a satisfação do amor de ser, a busca do homem por sua
plenitude. A satisfação desta necessidade acompanha o homem natural por toda
a sua vida. Mas o espírito humano não se contenta apenas com o que satisfaz
seus sentidos, e o amor inato de ser não se detém jamais. E o desejo se
desenvolve sempre primeiro, o esforço para atingir a plenitude aumenta, enche
a imaginação e empurra o sentimento para um outro fim. O impulso deste
sentimento e deste desejo interior, na medida em que se desenvolve, é o
estimulante natural da oração. É a própria exigência do amor de ser quando se
amplifica até o infinito. Quanto menos o homem natural consegue alcançar a
felicidade, mais a persegue, mais aumenta seu desejo, e mais ele encontra na
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prece a saída para este desejo. Ele recorre a ela para pedir aquilo que ele deseja à
Causa desconhecida de tudo o que existe. Assim, este amor inato de ser,
elemento principal da vida, é, mesmo no homem natural, o estimulante da
oração. O infinitamente sábio Criador de todas as coisas dotou a natureza do
homem de uma aptidão para o amor de ser, precisamente como uma
“solicitação”, para usarmos uma expressão dos Padres, que elevará o ser
humano decaído até o contato com as coisas celestes. Ah! Se o homem não
tivesse degradado esta aptidão, se ele ao menos a tivesse guardado em sua
excelência, segundo sua vocação com sua natureza espiritual! Ele poderia dispor
de um meio eficaz para conduzi-lo sobre o caminho da perfeição espiritual. Mas,
enfim!, muitas vezes ele transforma esta nobre aptidão em paixão egoísta
quando a torna apenas o instrumento de sua natureza animal.
O estaroste: Eu os agradeço do fundo do meu coração, caros visitantes. Sua
conversa salutar foi para mim um grande consolo e ensinou-me, em minha
inexperiência, muitas coisas proveitosas. Que Deus lhes traga a graça em
pagamento pelo seu amor.
SÉTIMO RELATO
O peregrino: Meu piedoso amigo professor e eu não podemos resistir ao desejo
de começarmos nossa viagem e, antes de mais nada, viermos fazer-lhe uma
curta visita para nos despedirmos e pedir-lhe que ore por nós.
O professor: Sim, nosso encontro foi um grande bem para todos nós, assim
como os entretenimentos espirituais dos quais nos beneficiamos em companhia
de todos os amigos. Guardaremos em nossos corações a lembrança de tudo isto
como uma garantia de amizade e amor cristão, no distante país para onde
vamos.
O estaroste: Eu os agradeço por terem pensado em mim. E, justamente, vocês
chegaram em boa hora. Estou aqui com dois viajantes, um monge moldavo e um
eremita que viveu no silêncio da floresta por vinte e cinco anos. Eles querem vê-
los. Vou chamá-los.
O peregrino: Ah! Como é uma bênção a vida solitária! E como ela convém para
levar a alma à união constante com Deus! A floresta silenciosa é como um
jardim do Éden aonde a árvore da vida cresce no coração do recluso. Se eu
pudesse, nada, creio eu, me impediria de praticar a vida eremítica.
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O professor: Vistas de longe, todas as coisas nos parecem desejáveis. Mas nós
aprendemos pela experiência que toda situação, malgrado suas vantagens,
possui também seus inconvenientes. Certamente, para quem é melancólico por
temperamento e inclinado ao silêncio, a vida solitária é um alívio. Mas quantos
perigos existem nesta via! A história da vida ascética fornece muitos exemplos
que mostram que numerosos reclusos e eremitas, que se separaram
completamente da sociedade humana, foram vítimas de ilusões e de graves
seduções.
O eremita: Estou surpreso de ouvir dizer com tanta frequência, tanto na Rússia
como nos mosteiros e mesmo entre leigos tementes de Deus, que muitos
daqueles que desejaram a vida eremítica ou a prática da oração interior foram
desviados desta inclinação por causa do temor das seduções. Insistindo nisto,
renunciamos um pouco apressadamente à vida interior e afastamos os outros.
No meu entendimento, isto provém de duas causas: seja pela falta de
compreensão da tarefa a cumprir e de uma certa luz espiritual, seja por nossa
própria indiferença quanto ao cumprimento contemplativo e o temor ciumento
de que outros, que julgamos em um nível inferior, nos ultrapassem neste
conhecimento superior. É lamentável que aqueles que têm esta convicção não
estudem o ensinamento dos santos Padres nesta matéria. Os Padres, com efeito,
ensinam com ênfase que nada devemos temer nem duvidar quando invocamos a
Deus. Se alguns foram realmente vítimas de ilusão, a causa foi o orgulho ou o
fato de não terem um pai espiritual ou ainda por tomarem as aparências e a
imaginação como realidade. Os Padres sublinham que, quando surge um período
de provas como estas, ele deve conduzir a uma experiência mais consciente e à
coroa da glória, pois Deus vem prontamente em auxílio quando ele permite tais
coisas. Seja corajoso. Eu estou com vocês, nada temam, diz Jesus Cristo.
É por isso que é inútil temer e alarmar-se pela prece interior sob o pretexto de
correr o risco da ilusão. Pois uma humilde consciência dos pecados, a
sinceridade da alma para com o pai espiritual e a ausência de imagens durante a
oração constituem uma forte e segura defesa contra estas ilusões, das quais
alguns têm tamanho pavor que não ousam se aventurar na atividade espiritual.
De resto, estas pessoas encontram-se elas mesmas expostas à tentação, como
no-lo dizem as sábias palavras de Filoteu o Sinaíta: “Existem muitos monges,
diz ele, que não compreendem sua própria ilusão mental e afirmam que estão
nas mãos dos demônios – vale dizer, que eles só se consagram a um tipo de
atividade: as boas obras exteriores. Quanto à atividade espiritual, ou seja a
contemplação interior, eles quase não se preocupam com isto, por serem
ignorantes e não esclarecidos sobre este ponto.” “Se por um acaso eles ouvem
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outros dizerem que a graça os transformou interiormente, por inveja eles só
conseguem ver aí a ilusão”, diz também Gregório o Sinaíta.
O professor: Permitam-me colocar uma questão. Certamente, a consciência do
pecado advém a qualquer um que esteja atento a si mesmo. Mas como proceder
quando não dispomos de um pai espiritual capaz de nos guiar a partir de sua
própria experiência sobre o caminho da vida interior e, quando lhe abrimos o
coração, nos comunicar um conhecimento exato e digno de fé sobre a vida
espiritual? Neste caso, sem dúvida seria melhor não se engajar na
contemplação, ao invés de tentar a experiência por seus próprios meios, sem um
guia? Ademais, de minha parte, é difícil compreender como é possível, se
estamos em presença de Deus, observar uma completa ausência de imagens. Não
é natural, pois nossa alma ou nosso mental não conseguem se representar algo
sem forma, um vazio absoluto. E porque verdadeiramente, quando a alma está
imersa em Deus, não deveríamos nós nos representarmos Jesus Cristo ou a
Santíssima Trindade, e assim por diante?
O eremita: Os conselhos de um pai espiritual ou de um estaroste experiente nas
coisas espirituais, a quem podemos abrir o coração diariamente sem reservas,
com confiança e proveito, e dizermos nossos pensamentos e tudo o que
encontramos no terreno da educação interior, são ao condição primeira para
praticar a prece do coração quando estamos engajados na via do silêncio.
Entretanto, nos casos em que não é possível encontrar um guia, os santos que o
prescrevem abrem uma exceção. Nicéforo o Monge dá a respeito indicações
precisas: assim, “durante a prática da atividade interior do coração, é preciso um
pai espiritual autêntico e experiente. Se você não conhece um, é preciso
procurá-lo diligentemente. Mas se ainda assim você não o encontrar, então,
implorando com contrição a assistência de Deus, busque instruções e conselhos
nos ensinamentos dos santos Padres e verifique-os pela Palavra de Deus exposta
nas Escrituras.” É preciso lembrar também que aquele que procura com boa
vontade e cheio de zelo pode obter lições úteis da parte de pessoas comuns. Pois
os santos Padres nos asseguram que, se perguntarmos até a um Sarraceno, com
fé e intenção reta, ele pode nos dizer palavras aproveitáveis. Se ao contrário
pedimos conselho a um Profeta, mas sem fé e sem intenção reta, nem mesmo
ele poderá nos satisfazer. Vemos um exemplo disto na história de Macário o
Grande do Egito, a quem um dia um simples camponês deu uma explicação que
pôs fim à sua angústia.
No que concerne a ausência de formas – ou seja, o fato de não utilizarmos a
imaginação e não aceitarmos visões durante a contemplação, seja de uma luz,
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um anjo, do Cristo ou de não importa qual santo, e de nos desviarmos destas
fantasmagorias – isto, bem entendido, é prescrito por Padres experientes, pela
seguinte razão: o poder da imaginação pode facilmente encarnar as
representações mentais, ou por assim dizer dar-lhes vida, de modo que pessoas
inexperientes poderiam ser facilmente atraídas por estas ficções, tomá-las como
visões da graça, e assim cair na ilusão, apesar das advertências da Escritura santa
que diz que o próprio Satã pode tomar a forma de um anjo de luz.
Que o espírito possa com naturalidade e facilmente chegar a um estado de
ausência de imagens e nele manter-se, enquanto recorda a presença de Deus,
vemo-lo bem porque o poder da imaginação pode apresentar uma coisa de modo
perceptível neste vazio e dar consistência a esta representação. Assim, por
exemplo, a representação da alma, do ar, do calor ou do frio. Quando você sente
frio, você pode compor mentalmente uma ideia viva do calor, embora o calor
não tenha contornos, não possa ser objeto de visão e não possa ser medido pela
sensação física daquele que está exposto ao frio. Também da mesma forma a
presença espiritual e incompreensível de Deus pode ser conhecida pelo espírito
e identificada no coração em um absoluto vazio de formas.
O peregrino: Nas minhas viagens, eu encontrei muitas pessoas piedosas que
buscavam a salvação, e que me disseram temer a vida interior, que elas
denunciavam como pura ilusão. Para muitos deles eu li, com algum proveito, os
ensinamentos de são Gregório o Sinaíta na Filocalia. Ele diz que a “ação do
coração não pode ser uma ilusão (contrariamente à do espírito), pois se o
inimigo quisesse transformar o calor do coração em seu próprio fogo
descontrolado, ou substituir a felicidade do coração pelos mornos prazeres dos
sentidos, o tempo, a experiência e o próprio sentimento desmascarariam o
truque e a mentira, mesmo para aqueles ainda não muito instruídos.” Ocorreu-
me encontrar outros que, para grande infelicidade, após haver conhecido a via
do silêncio e da prece do coração, foram atropelados por qualquer obstáculo ou
pela preguiça pecaminosa, cederam ao desencorajamento e renunciaram à
atividade interior do coração que haviam conhecido.
O professor: Sim, e é muito natural. Eu mesmo experimentei isto em certas
ocasiões, quando perdi meu equilíbrio interior ou cometi alguma falta. Pois, a
partir do momento em que a prece interior é algo sagrado, uma união com Deus,
não seria sacrílego, e uma audácia a evitar, levar uma coisa santa a um coração
envilecido pelo pecado, sem tê-lo antes purificado com uma penitência e uma
contrição silenciosas, sem uma preparação conveniente para retornar a Deus? É
melhor estar mudo diante de Deus do que oferecer-lhe palavras negligentes de
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um coração que está mergulhado nas trevas e na confusão.
O monge: É um grande erro pensar assim. Trata-se do desencorajamento, ou
seja do pior de todos os pecados e a principal arma do mundo das trevas contra
nós. O ensinamento dos Padres experientes é, a respeito, totalmente diferente.
Nicetas Stétatos diz que, mesmo se tiver sucumbido e enterrado nas
profundezas diabólicas do mal, ainda assim você não deve desesperar, mas
voltar-se depressa para Deus e ele lhe deterá prontamente a queda de seu
coração e lhe dará mais força do que antes. Depois de cada queda e de cada ferida
do coração pelo pecado, é preciso colocar imediatamente o coração na presença
de Deus para que ele o cure e purifique, exatamente como as coisas que foram
infectadas perdem sua virulência quando expostas por algum tempo ao poder
dos raios solares.
Muitos autores espirituais exprimem-se de modo formal sobre este conflito
interior com os inimigos da salvação, nossas paixões. Você será mil vezes
abençoado se de modo algum abandonar a atividade que dá a vida e que é a
invocação de Jesus Cristo presente no coração. Nossos pecados, não só não
deveriam nos desviar de caminhar na presença de Deus e de cumprir a prece
interior, pois do contrário só nos restaria a inquietude, o desencorajamento e a
tristeza, como deveriam ao contrário nos voltar ainda mais para Deus. A criança
que começa a caminhar guiada por sua mãe volta-se para ela e se agarra
fortemente a ela quando dá um passo em falso.
O eremita: De minha parte, considero que o estado de desencorajamento, os
pensamentos que inquietam, as dúvidas, são todos despertados facilmente pela
distração mental e pela incapacidade de preservar o silêncio de nosso ser
interior. Em sua divina sabedoria, os Padres de antanho reportaram a vitória
sobre o desencorajamento e receberam a iluminação e a força pela esperança
inquebrantável em Deus, pelo silêncio e a solidão, e nos deram este sábio e
precioso conselho: “Sente-se em silêncio em sua cela e ela lhe ensinará tudo.”
O professor: Eu tenho tanta confiança em vocês que ficarei feliz em escutar sua
crítica sobre meus pensamentos a respeito do silêncio, que vocês louvam com
eloquência, e sobre as benesses da vida solitária que os eremitas tanto apreciam.
Eis o que eu penso. Uma vez que todos os homens, pela lei da natureza dada
pelo Criador, estão colocados em necessária dependência uns dos outros e
devem desde cedo cooperar pela vida afora, trabalhar uns para os outros e
darem-se serviços mutuamente, esta sociabilidade contribui ao bem estar da
raça humana e manifesta o amor pelo próximo. Mas o eremita silencioso que se
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retirou da sociedade humana, de que maneira pode ele, em sua inatividade,
servir ao próximo, e que contribuição pode ele trazer para o bem estar da
sociedade humana? Ele destrói por completo em si mesmo esta lei do Criador
que exige a união da humanidade no amor e a ação benfeitora tendo em vista
uma fraternidade universal.
O eremita: Você possui uma falsa concepção do silêncio, e as conclusões a que
você chega não são justas. Vejamos isto em detalhe. Em primeiro lugar: o
homem que vive no silêncio e na solidão não somente não vive na inação e no
ócio, mas ele é ativo no mais alto grau, mais ainda do que quem toma parte na
vida em sociedade. Ele age incansavelmente conforme os mais altos graus de sua
inteligência; ele vela, ele medita; ele concentra sua atenção sobre o estado do
progresso de sua alma. Este é o verdadeiro objetivo do seu silêncio. E na medida
em que esta atitude favorece seu próprio aperfeiçoamento, ela é proveitosa
também para aqueles que não podem praticar a concentração interior para
desenvolver a vida de sua alma. Pois aquele que vela em silêncio e que comunica
suas experiências interiores, seja em palavras, seja consignando-as por escrito,
ajuda ao bem espiritual e à salvação dos seus irmãos. Ele faz mais, e sobre um
plano mais elevado, do que o simples benfeitor, pois a simples caridade
sentimental, no mundo, é sempre limitada pelo pequeno número de
benfeitorias feitas, enquanto que quem traz as benfeitorias por ter
experimentado interiormente meios convincentes de cumprimento espiritual
torna-se o benfeitor de nações inteiras. Sua experiência e seu ensinamento se
transmitem de geração em geração, como podemos ver, e nos dias de hoje ainda
tiramos proveito dos tempos antigos. E isto em nada difere do amor cristão e
inclusive o ultrapassa nas suas consequências.
Em segundo lugar: a preciosa e benéfica influência sobre seu próximo exercida
pelo homem que observa o silêncio não se manifesta apenas pela comunicação
de suas observações sobre a vida interior, mas também pelo exemplo e pela
irradiação de sua vida que pode despertar o profano para o conhecimento de si
mesmo e provocar nele um sentimento de veneração. O homem que vive no
mundo e que ouve falar de um recluso piedoso, ou que passa diante da porta de
seu eremitério, sente um apelo à vida espiritual, lembra-se daquilo que o
homem pode vir a ser sobre a Terra, e que lhe é possível retornar a este estado
contemplativo original do qual ele saiu pelas mãos do Criador. O silencioso
ensina com seu silêncio, e por sua própria vida ele faz o bem, edifica e convence
a buscar a Deus.
Santo Isaac o Sírio exalta assim a importância do silêncio: “Se colocarmos de um
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lado as ações desta vida e de outro o silêncio, veremos que este último
desequilibra a balança para o seu lado; não tome como iguais aqueles que
desempenham prodígios e milagres no mundo e aqueles que guardam o silêncio
com todo o saber. Amem o silêncio mais do que saciar as pessoas ávidas por este
mundo. Mais vale vocês se livrarem dos laços do pecado do que libertar os
escravos de sua servidão.” Mesmo os sábios estrangeiros reconheceram o valor
do silêncio. A escola filosófica dos neoplatônicos, que agregou diversos
aderentes sob a direção do filósofo Plotino, colocou em alto grau o
desenvolvimento da vida contemplativa, acessível especialmente pelo silêncio.
Um autor espiritual disse que ainda que um Estado atingisse o mais alto grau de
aperfeiçoamento dos costumes e da educação, ainda assim seria preciso
encontrar homens para a contemplação, independentemente das atividades
habituais dos cidadãos, para que seja preservado o Espírito de verdade e para
que este, recebido dos séculos anteriores, possa ser transmitido às gerações do
futuro. Estes homens, na Igreja, são os eremitas, os reclusos e os anacoretas.
O peregrino: Creio que ninguém celebrou a virtude do silêncio com mais justiça
do que são João da Escada: “O silêncio, diz ele, é mãe da prece, o retorno do
cativeiro do pecado, o avanço invisível para a virtude, uma ascensão contínua
para o céu.” Sim, e o próprio Jesus, para nos mostrar a vantagem e a necessidade
da reclusão e do silêncio, deixava frequentemente a pregação pública e se dirigia
a locais solitários para aí orar e repousar. Aqueles que contemplam
silenciosamente são como os pilares que sustentam a Igreja com sua prece
secreta e contínua. Desde o mais longínquo passado, vemos que muitos leigos
fervorosos, e mesmo reis e cortesãos, visitaram os eremitas e os homens que
observavam o silêncio para lhes pedir suas orações a fim de serem fortificados e
salvos. Assim, o recluso silencioso pode servir a seu próximo e agir para o bem e
a felicidade da sociedade orando à parte.
O professor: Eis de novo uma ideia que eu tenho dificuldade em compreender.
É um costume disseminado entre todos os cristãos pedir orações uns aos outros,
querer que outro reze por mim, e ter uma confiança particular em um
determinado membro da Igreja. Isto não é um pedido feito por amor a si
mesmo? Não será simplesmente que adquirimos o hábito de repetir o que
ouvimos os outros dizerem, uma espécie de fantasia sem nenhum fundamento
sério? Será que Deus precisa da intercessão de homens, ele que prevê tudo e que
age segundo sua santíssima providência e não segundo nosso desejo,
conhecendo e decidindo tudo antes que peçamos, como diz o santo Evangelho?
Será possível que a oração de muitos seja mais poderosa para trazer-nos suas
decisões do que a de uma só pessoa? Neste caso, Deus faria acepção de pessoas.
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Será possível que as orações de outro possam me salvar, quando cada um de nós
deve ser louvado ou culpado a partir de seus próprios atos? Eis porque pedir
orações a outra pessoa consiste simplesmente, no meu entendimento, numa
piedosa manifestação de cortesia espiritual que traz as marcas da humildade e o
desejo de agradar por uma solicitação mútua, mas isto é tudo.
O monge: Se só levarmos em conta as considerações exteriores, com uma
filosofia rudimentar, podemos ver as coisas assim. Mas o julgamento espiritual,
santificado pela luz da revelação e aprofundado pelas experiências da vida
interior, vai muito além, discerne do modo mais profundo e revela
misteriosamente algo de muito distinto daquilo que você expôs. Para que
possamos compreender isto mais depressa e mais claramente, tomemos um
exemplo, e verificaremos a seguir sua exatidão conforme a Palavra de Deus.
Digamos que um aluno venha a um professor para se instruir. Suas poucas
capacidades, e mais ainda sua preguiça e sua falta de concentração o impediram
de ter sucesso nos estudos, e ele foi colocado na categoria dos preguiçosos,
daqueles que não obtêm nenhum resultado. Afetado pelos fracassos, ele não
sabe o que fazer, nem como lutar contra seus defeitos. Ele encontra então um
outro aluno, colega de classe, mais dotado, diligente e bem sucedido, e lhe
expõe suas preocupações. O outro se interessa por ele e propõe trabalharem
juntos. “Trabalhemos juntos, diz ele, e seremos mais zelosos, mais felizes e
obteremos mais sucesso.” E eles se põem a estudar juntos, cada qual ensinando
ao outro aquilo que melhor compreendia. Eles tinham o mesmo trabalho. O que
acontecerá depois de algum tempo? O indiferente torna-se diligente; ele começa
a gostar do seu trabalho, sua negligência transmuda-se em ardor, sua
inteligência se abre, o que exerce a melhor influência possível sobre sua vontade
e sua conduta. Quanto àquele que era o mais inteligente, ele se torna ainda mais
capaz e mais aplicado. Por esta influência recíproca, eles obtiveram vantagens
mútuas. E é natural, porque o homem nasce em sociedade; é por intermédio dos
outros que ele desenvolve sua inteligência, melhora sua conduta, sua educação,
sua vontade; em uma palavra, ele recebe tudo da comunhão com seus
semelhantes.
Assim, como a vida dos homens consiste em relações estreitas e em fortes
influências de uns sobre outros, quem vive com uma certa classe de pessoas
participa de seus hábitos, sua conduta e seus costumes. Os homens frios
tornam-se entusiastas, os estúpidos refinam-se, os preguiçosos são arrastados à
atividade pelo vivo interesse que eles recebem do grupo. O espírito pode se
aplicar ao espírito, agir favoravelmente sobre um outro, atrair para a prece e a
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atenção. Ele pode confortar no desencorajamento, afastar do vício, despertar a
santidade. É assim que, ajudando-se mutuamente, os homens se tornam mais
fervorosos, mais ativos espiritualmente e mais humildes. Eis o segredo da oração
pelos outros, que explica o piedoso costume de rezar pelo próximo e de pedir
orações aos irmãos.
Isto permite ver, não que elas agradem a Deus como as demandas e intercessões
numerosas agradam aos grandes deste mundo, mas que a prece, por sua própria
essência e seu poder, purifica e eleva a alma daquele por quem ela é oferecida, e
a prepara à união com Deus. Se a oração mútua daqueles que vivem sobre a terra
é tão benéfica, podemos deduzir do mesmo modo que a prece para os
desaparecidos é também mutuamente benéfica em virtude dos laços estreitos
que unem o mundo celeste e o nosso. É assim que as almas da Igreja terrestre
podem unir-se às da Igreja celeste ou, o que é o mesmo, os vivos unirem-se aos
mortos na unidade da Igreja.
Tudo o que eu disse é uma argumentação psicológica, mas basta abrir a santa
Escritura para verificar sua exatidão.
Assim, Jesus Cristo diz ao apóstolo Pedro: Eu rezei por você, para que sua fé não
falhasse. Vejam que a oração do Cristo, por seu poder, fortificou o espírito de são
Pedro e o encorajou quando sua fé foi posta à prova. Do mesmo modo, quando o
apóstolo Pedro estava na prisão, “a Igreja orava a Deus sem cessar por ele.” Isto
nos revela o auxílio que a prece fraterna traz em circunstâncias difíceis da vida.
Mas o preceito mais claro sobre a prece pelos outros é dado pelo apóstolo Tiago:
Confessem seus pecados uns aos outros, e rezem uns pelos outros. A oração
fervorosa e eficaz de um homem virtuoso é uma grande benesse[44].
Eis a clara confirmação dos argumentos psicológicos já expostos. E que dizer do
exemplo do apóstolo Paulo? Um autor observa que seu exemplo deveria nos
ensinar o quanto a prece mútua é necessária, pois até um asceta tão santo e
forte reconhecia ter necessidade desta ajuda espiritual.
Eis como ele formula seu pedido na Epístola aos Hebreus: Orai por nós. Estamos
persuadidos de ter a consciência em paz, pois estamos decididos a procurar o bem
em tudo [45]. Quando consideramos, parece pouco razoável permanecermos
apenas com nossas próprias orações, enquanto um homem tão santo, tão
favorecido pela graça, pede, em sua humildade, que as orações do próximo – no
caso, os Hebreus – se juntem às suas. É por isso que, pela humildade e a
comunhão do amor, não devemos rejeitar ou desdenhar o socorro das orações,
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mesmo do mais débil dos fiéis, quando o espírito iluminado do apóstolo Paulo
não manifestou a respeito nenhuma hesitação. Ele pede as orações de todos em
geral, sabendo que o poder de Deus se torna perfeito tanto na fraqueza quanto
no amor. Ele pode às vezes chegar à perfeição nos que parecem capazes de orar
apenas fracamente. Penetrados pela força deste exemplo, lembraremos ainda
que a oração mútua fortalece esta unidade do amor cristão ordenado por Deus,
que ela testemunha a favor da humildade espiritual daquele que faz a demanda,
e que ela move, por assim dizer, o espírito do que ora. É isto que encoraja a
intercessão mútua.
O professor: Sua análise e suas provas são admiráveis e justas, mas seria
interessante que você nos desse a conhecer o método e a forma real da oração
pelos outros. Se a fecundidade desta prece resulta de um interesse vivo pelo
próximo e da influência constante daquele que ora sobre o espírito do que
solicitou a oração, este estado de alma não arrisca distrair da presença
ininterrupta de Deus e do derramamento da alma diante dele? Se pensamos em
nosso próximo uma ou duas vezes durante o dia, com compaixão e pedindo a
ajuda de Deus por ele, isto não basta para influenciar e fortificar sua alma? Eu
gostaria de saber exatamente como orar pelos demais.
O monge: A oração oferecida a Deus por quem quer que seja não deve nem pode
nos afastar da presença de Deus, pois, se ela é oferecida a Deus, e isto deve
evidentemente acontecer em sua presença. Quanto ao método, é preciso
observar que o poder deste tipo de oração reside na verdadeira compaixão cristã
pelo próximo, e que ela age sobre sua alma na mesma medida desta compaixão.
Da mesma forma, quando nos acontece de nos lembrarmos do próximo, ou num
momento fixado para faze-lo, é bom introduzir sua presença na presença de
Deus, e oferecer a oração nos seguintes termos: “Deus misericordioso, seja feita
sua vontade que quer que todos os homens sejam salvos e alcancem o
conhecimento da verdade: salve e socorra a alma do seu servidor N... Aceite este
desejo que eu exprimo como um grito de amor, como foi ordenado.”
Normalmente, você repetirá esta frase cada vez que sua alma experimente o
desejo, ou você pode dize-la antes do terço. A experiência ensinou-me como ela
é proveitosa para aqueles por quem ela é oferecida.
O professor: Suas concepções e seus argumentos, a conversa edificante e os
pensamentos que ela provoca são tais que eu quero guardar tudo na memória
como uma preciosidade, e expressar toda a veneração e a gratidão de meu
coração agradecido.
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O peregrino: Chegou a hora de partirmos. Do fundo do coração pedimos suas
orações pela nossa viagem e pela nossa amizade.
O estaroste: Então que o Deus da paz, que no sangue da eterna aliança
ressuscitou dos mortos o grande Pastor das ovelhas, Nosso Senhor Jesus, queira
dispô-los ao bem e lhes conceder que cumpram a sua vontade, realizando ele
próprio em vocês o que é agradável aos seus olhos, por Jesus Cristo, a quem seja
dada a glória por toda a eternidade[46]. Amém.
[1] É notório que os Relatos ultrapassam todos os nacionalismos
religiosos para reencontrar os caminhos da espiritualidade ortodoxa do século
XIX, ou seja o contato com Athos através das terras romenas.
[2] Daí o exorcismo do anti-semitismo que contaminou a cristandade
russa no século XIX.
[3] Antiga medida de distância russa, correspondente a 1067 metros.
[4] Startsi [plural de estaroste]: ancião, mestre espiritual que adquiriu o
discernimento dos espíritos e o dom da paternidade espiritual.
[5] São João Cássio
[6] O Alojamento das Grutas, aonde os santos monges eram enterrados.
[7] “Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar
de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens.
Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa. Quando orares, entra no
teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num
lugar oculto, recompensar-te-á. Nas vossas orações, não multipliqueis as
palavras, como fazem os pagãos que julgam que serão ouvidos à força de
palavras. Não os imiteis, porque vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes que
vós lho peçais.” (Mateus, VI, 5-8).
[8] “Eis como deveis rezar: PAI NOSSO, que estais no céu, santificado
seja o vosso nome; venha a nós o vosso Reino; seja feita a vossa vontade, assim
na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje; perdoai-nos as
nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos ofenderam; e não nos
deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal.” (Mateus, VI, 9-13).
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[9] “Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, vosso Pai celeste
também vos perdoará. Mas se não perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai
vos perdoará.” (Mateus, VI, 14-15).
[10] “Pedi, e se vos dará; buscai, e achareis; batei, e vos será aberto.
Porque todo aquele que pede, recebe; quem busca, acha; e a quem bate, abrir-
se-á.” (Mateus, VII, 7-8)
[11] “Foram em seguida para o lugar chamado Getsêmani, e Jesus disse a
seus discípulos: Sentai-vos aqui, enquanto vou orar. Levou consigo Pedro, Tiago
e João; e começou a ter pavor e a angustiar-se. Disse-lhes: A minha alma está
numa tristeza mortal; ficai aqui e vigiai. Adiantando-se alguns passos, prostrou-
se com a face por terra e orava que, se fosse possível, passasse dele aquela hora.
Aba! (Pai!), suplicava ele. Tudo te é possível; afasta de mim este cálice! Contudo,
não se faça o que eu quero, senão o que tu queres. Em seguida, foi ter com seus
discípulos e achou-os dormindo. Disse a Pedro: Simão, dormes? Não pudeste
vigiar uma hora! Vigiai e orai, para que não entreis em tentação. Pois o espírito
está pronto, mas a carne é fraca. Afastou-se outra vez e orou, dizendo as
mesmas palavras. Voltando, achou-os de novo dormindo, porque seus olhos
estavam pesados; e não sabiam o que lhe responder.” (Marcos, XIV, 32-39).
[12] “Em seguida, ele continuou: Se alguém de vós tiver um amigo e for
procurá-lo à meia-noite, e lhe disser: Amigo, empresta-me três pães, pois um
amigo meu acaba de chegar à minha casa, de uma viagem, e não tenho nada
para lhe oferecer; e se ele responder lá de dentro: Não me incomodes; a porta já
está fechada, meus filhos e eu estamos deitados; não posso levantar-me para te
dar os pães; eu vos digo: no caso de não se levantar para lhe dar os pães por ser
seu amigo, certamente por causa da sua importunação se levantará e lhe dará
quantos pães necessitar. E eu vos digo: pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis;
batei, e abrir-se-vos-á. Pois todo aquele que pede, recebe; aquele que procura,
acha; e ao que bater, se lhe abrirá. Se um filho pedir um pão, qual o pai entre vós
que lhe dará uma pedra? Se ele pedir um peixe, acaso lhe dará uma serpente? Ou
se lhe pedir um ovo, dar-lhe-á porventura um escorpião? Se vós, pois, sendo
maus, sabeis dar boas coisas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai celestial
dará o Espírito Santo aos que lho pedirem. (Lucas, XI, 5-13).
[13] “Propôs-lhes Jesus uma parábola para mostrar que é necessário orar
sempre sem jamais deixar de fazê-lo. Havia em certa cidade um juiz que não
temia a Deus, nem respeitava pessoa alguma. Na mesma cidade vivia também
uma viúva que vinha com frequência à sua presença para dizer-lhe: Faze-me
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justiça contra o meu adversário. Ele, porém, por muito tempo não o quis. Por
fim, refletiu consigo: Eu não temo a Deus nem respeito os homens; todavia,
porque esta viúva me importuna, far-lhe-ei justiça, senão ela não cessará de me
molestar. Prosseguiu o Senhor: Ouvis o que diz este juiz injusto? Por acaso não
fará Deus justiça aos seus escolhidos, que estão clamando por ele dia e noite?
Porventura tardará em socorrê-los?” (Lucas, XVIII, 1-7).
[14] “Chegou, pois, a uma localidade da Samaria, chamada Sicar, junto
das terras que Jacó dera a seu filho José. Ali havia o poço de Jacó. E Jesus,
fatigado da viagem, sentou-se à beira do poço. Era por volta do meio-dia. Veio
uma mulher da Samaria tirar água. Pediu-lhe Jesus: Dá-me de beber. (Pois os
discípulos tinham ido à cidade comprar mantimentos.) Aquela samaritana lhe
disse: Sendo tu judeu, como pedes de beber a mim, que sou samaritana!... (Pois
os judeus não se comunicavam com os samaritanos.) Respondeu-lhe Jesus: Se
conhecesses o dom de Deus, e quem é que te diz: Dá-me de beber, certamente
lhe pedirias tu mesma e ele te daria uma água viva. A mulher lhe replicou:
Senhor, não tens com que tirá-la, e o poço é fundo... donde tens, pois, essa água
viva? És, porventura, maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu este poço, do
qual ele mesmo bebeu e também os seus filhos e os seus rebanhos? Respondeu-
lhe Jesus: Todo aquele que beber desta água tornará a ter sede, mas o que beber
da água que eu lhe der jamais terá sede. Mas a água que eu lhe der virá a ser nele
fonte de água, que jorrará até a vida eterna. A mulher suplicou: Senhor, dá-me
desta água, para eu já não ter sede nem vir aqui tirá-la! Disse-lhe Jesus: Vai,
chama teu marido e volta cá. A mulher respondeu: Não tenho marido. Disse
Jesus: Tens razão em dizer que não tens marido. Tiveste cinco maridos, e o que
agora tens não é teu. Nisto disseste a verdade. Senhor, disse-lhe a mulher, vejo
que és profeta!... Nossos pais adoraram neste monte, mas vós dizeis que é em
Jerusalém que se deve adorar. Jesus respondeu: Mulher, acredita-me, vem a hora
em que não adorareis o Pai, nem neste monte nem em Jerusalém. Vós adorais o
que não conheceis, nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos
judeus. Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de
adorar o Pai em espírito e verdade, e são esses adoradores que o Pai deseja. Deus
é espírito, e os seus adoradores devem adorá-lo em espírito e verdade.” (João,
IV, 5-25).
[15] “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós. O ramo não pode
dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Assim também vós: não
podeis tampouco dar fruto, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira; vós,
os ramos. Quem permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem
mim nada podeis fazer. Se alguém não permanecer em mim será lançado fora,
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como o ramo. Ele secará e hão de ajuntá-lo e lançá-lo ao fogo, e queimar-se-á.
Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós,
pedireis tudo o que quiserdes e vos será feito. Nisto é glorificado meu Pai, para
que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos.” (João, XV, 4-8)
[16] “Naquele dia não me perguntareis mais coisa alguma. Em verdade,
em verdade vos digo: o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo dará. Até
agora não pedistes nada em meu nome. Pedi e recebereis, para que a vossa
alegria seja perfeita.” (João, XVI, 23-24).
[17] “Mal acabavam de rezar, tremeu o lugar onde estavam reunidos. E
todos ficaram cheios do Espírito Santo e anunciaram com intrepidez a palavra
de Deus.” (Atos, IV, 31)
[18] “Alguém entre vós está triste? Reze! Está alegre? Cante. Está alguém
enfermo? Chame os sacerdotes da Igreja, e estes façam oração sobre ele,
ungindo-o com óleo em nome do Senhor. A oração da fé salvará o enfermo e o
Senhor o restabelecerá. Se ele cometeu pecados, ser-lhe-ão perdoados.
Confessai os vossos pecados uns aos outros, e orai uns pelos outros para serdes
curados. A oração do justo tem grande eficácia.” (Tiago, V, 13-16.)
[19] “Mas vós, caríssimos, edificai-vos mutuamente sobre o fundamento
da vossa santíssima fé. Orai no Espírito Santo. Conservai-vos no amor de Deus,
aguardando a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, para a vida eterna.”
(Judas, 20-21); e “Outrossim, o Espírito vem em auxílio à nossa fraqueza; porque
não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém, mas o Espírito
mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis.” (Romanos, VIII, 26)
[20] “Intensificai as vossas invocações e súplicas. Orai em toda
circunstância, pelo Espírito, no qual perseverai em intensa vigília de súplica por
todos os cristãos.” (Efésios, VI, 18)
[21] “Não vos inquieteis com nada! Em todas as circunstâncias apresentai
a Deus as vossas preocupações, mediante a oração, as súplicas e a ação de
graças. E a paz de Deus, que excede toda a inteligência, haverá de guardar
vossos corações e vossos pensamentos, em Cristo Jesus.” (Filipenses, IV, 6-7)
[22] “Orai sem cessar.” (I Tessalonicenses, V, 17)
[23] “Acima de tudo, recomendo que se façam preces, orações, súplicas,
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ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão
constituídos em autoridade, para que possamos viver uma vida calma e
tranquila, com toda a piedade e honestidade. Isto é bom e agradável diante de
Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens se salvem e cheguem
ao conhecimento da verdade. Porque há um só Deus e há um só mediador entre
Deus e os homens: Jesus Cristo, homem que se entregou como resgate por todos.
Tal é o fato, atestado em seu tempo.” (I Timóteo, II, 1-5)
[24] Cânticos da Igreja Ortodoxa em louvor a Maria.
[25] Hebreus, XI, 6.
[26] Tiago, II, 10.
[27] Romanos, III, 20.
[28] Romanos, VII.
[29] Tiago, IV, 20.
[30] I Coríntios, XIV, 14.
[31] Romanos, VIII, 26.
[32] Hebreus, XIII, 15.
[33] Mateus, XVIII, 3.
[34] João, IV, 4.
[35] Mateus, XV, 8.
[36] Mateus, VII, 21.
[37] I Coríntios, XIV, 19.
[38] I Timóteo, II, 8.
[39] I Tessalonicenses, V, 17.
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[40] Atos, II, 21.
[41] I João, IV, 4.
[42] Mateus, XIV, 14-31.
[43] Lucas, VI, 22.
[44] Tiago, V, 16.
[45] Hebreus, XIII, 18.
[46] Hebreus, XIII, 20-21.