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IRENE DIAS DE OLIVEIRA

CLÓVIS ECCO

(ORGANIZADORES)

Religião, violência e suas interfaces

São Paulo

Editora Paulinas – 2012

ISBN: 978.85.356.3268-2

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Sumário

Qual a fronteira entre religião e violência? Apresentação 3

Clóvis Ecco e Irene Dias de Oliveira

Religião, etnicidade e violência: relações e legitimações 7

Irene Dias de Oliveira

O medo do outro e o fundamentalismo religioso 17

Paulo Sérgio Soares

Fundamentalismo religioso e violência 31

Clóvis Ecco

A violência no discurso homilético 42

Antônio Lopes Ribeiro, José Alves Santos e Sandra Célia Coelho Gomes da Silva

A alteridade em confronto: medo e dominação 58

Azize Maria Yared de Medeiros

Exílio e violência: uma leitura a partir dos Quatro Cantos do Servo de YHWH 68

Rosemary Francisca Neves Silva

Além do corpo machucado: uma análise da Lei Maria da Penha 83

Danielle Ventura Bandeira de Lima

Idosos: preconceitos, violência e espiritualidade 94

Erika Pereira Machado

Intolerância religiosa e violência simbólica: uma análise do caso Mãe Gilda 103

Cilma Laurinda Freitas e Silva

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Qual a fronteira entre religião e violência?

Apresentação

Pode a religião ser a causa da violência? São as pessoas violentas por natureza? Pode

alguém utilizar o nome de Deus para matar? Essas e outras questões foram abordadas

durante um Colóquio oferecido pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em

Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás no primeiro semestre de

2011. O Colóquio foi conduzido pela professora Irene Dias de Oliveira, que, junto com

outros pesquisadores e pesquisadoras, debruçou-se sobre o tema buscando entender se

existe uma relação entre religião e violência.

Aqui o leitor e a leitora encontrarão o resultado das pesquisas realizadas por jovens

pesquisadores que refletiram sobre o tema. Cada um, a partir de suas diferentes áreas de

investigação, procurou debater, discutir e encontrar algumas respostas à pergunta que se

tornou o eixo central deste livro: existe uma fronteira entre religião e violência? Se sim,

como isso acontece?

Acreditamos que o tema é pertinente nos dias de hoje, uma vez que estamos inseridos

em um contexto em que a intolerância e a violência física e simbólica entre indivíduos e

grupos fazem-se cada vez mais perceptíveis. Teria a religião mecanismos para legitimar

essas atitudes? Estaria ela por trás do fundamentalismo, do fanatismo e das limpezas

étnicas?

A partir de uma análise superficial, é fácil afirmar que o aumento da violência estaria

relacionado com a religião e que esta fomentaria a ideia de que outras religiões, outros

deuses, o diferente, não teriam o mesmo direito de coexistir e por isso devem ser

segregados e/ou eliminados por meio de atitudes nem sempre pacíficas. De outro lado, não

podemos negar que a violência permeia a história da humanidade desde tempos longínquos,

apresenta-se multifacetada e com diferentes matizes e muitas vezes as religiões

promoveram a violência. Por isso é necessário entender como a violência pode ser

legitimada pela religião e, ao mesmo tempo, como o estudo do fenômeno religioso pode

contribuir para melhor entender as relações socioculturais e políticas nos dias atuais.

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Os artigos aqui apresentados têm como objetivo contribuir para uma maior

compreensão do lugar da religião na sociedade contemporânea e globalizada, tanto pela sua

importância no desenvolvimento de lógicas de ação socioculturais, éticas, políticas e

econômicas como pela diversidade de suas formas de expressão e configuração.

Nesse contexto colocam-se três questões fundamentais a serem debatidas ao longo da

obra: Como as crenças e as práticas religiosas de um determinado grupo étnico poderiam

construir e legitimar práticas violentas? Quais as relações entre a religião, a violência e a

globalização? E, sobretudo, há uma relação entre a religião e a violência ou a violência é

própria da natureza humana? Para responder a essas questões, cada pesquisador se ocupou

com uma das formas em que a relação entre religião e violência pode ser vislumbrada na

sociedade atual. Sendo assim, o presente livro compõe-se dos capítulos que apresentaremos

a seguir.

Irene Dias de Oliveira focaliza sua atenção na violência étnica e as diferentes formas

de legitimação. Entende a autora que a religião é uma referência de identidade, que ela

governa a ordem do indivíduo e mantém um conjunto de práticas e deveres que dão

significado e “nomia” à existência das pessoas em nossas sociedades. Ela busca responder à

questão: Como as crenças e as práticas religiosas de um determinado grupo étnico

poderiam construir e legitimar práticas violentas?

Paulo Sérgio Soares analisa questões a respeito da relação fundamentalismo

religioso-etnocentrismo-violência baseando-se em diversos autores que tratam desses

temas. O ponto de partida do autor é a noção de medo do outro, reinante na sociedade atual.

Ele analisa um caso ocorrido nos EUA em 2010, relacionado ao aniversário dos ataques

terroristas de 11 de setembro de 2001 naquele país. Trata-se da campanha empreendida

pelo pastor evangélico Terry Jones visando queimar em praça pública centenas de

exemplares do Alcorão por considerar que “o Islã é o Mal”.

Clóvis Ecco analisa a respeito da relação entre as diferentes formas de

fundamentalismo existentes. Para tal tarefa apresenta algumas funções sociais da religião e

suas relações com os diferentes fundamentalismos e em seguida destaca algumas situações

que evidenciam a presença do fundamentalismo nas relações sociais e políticas. Por fim, o

autor destaca a presença do fundamentalismo para além do universo religioso, que, tecendo

algumas ações preconceituosas, desencadeia a violência, tanto física quanto simbólica.

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Já os autores Antônio Lopes Ribeiro, Sandra Célia Coelho Gomes da Silva e José

Alves Santos falam sobre a violência no âmbito da religião, espaço em que pouco se fala a

respeito da violência simbólica praticada no cotidiano. A investigação se ocupa com a

prática da violência simbólica no discurso homilético, no âmbito do Cristianismo, com

enfoque maior no Catolicismo.

Azize Maria Yared de Medeiros busca discutir o medo e a dominação relacionados

com a alteridade. Para a autora, o multiculturalismo característico das sociedades

globalizadas e o permanente confronto com o novo em um mundo comandado pelo

chamado livre-comércio são apresentados como uma das possíveis causas da violência e do

surgimento de fundamentalismos. A religião e o diálogo inter-religioso surgem como

formas de assegurar o sentimento de pertencimento e segurança a grupos atemorizados

diante da possibilidade de perder suas identidades, resultado de um nomadismo forçado e

espalhado por zonas urbanas estranhas às suas origens.

Rosemary Francisca Neves Silva analisa alguns aspectos do cotidiano do povo que

estava exilado na Babilônia e que, na convivência e na lida diária, fez a experiência de

afirmar sua identidade e sua fé. Mesmo diante da idolatria babilônica e da violência, foram

capazes de, juntos, na solidariedade de um com o outro, confirmar sua cultura, suas

crenças, valores e, acima de tudo, acreditar em um Deus único.

Danielle Ventura Bandeira de Lima busca compreender como a Lei 11.340/2006,

mais conhecida como Lei Maria da Penha, ao permitir que as mulheres tenham respaldo

legal para denunciar a violência doméstica, tem contribuído com a vida de mulheres que

diariamente sofrem agressões de seus cônjuges, parentes, irmãos ou pais. A autora faz uma

abordagem dos estudos de gênero e a sua relação com a religião para compreender como

as(os) estudiosas(os) vêm construindo esses temas pautados numa análise das relações de

poder.

Érica Pereira Machado debate sobre os preconceitos de que são vítimas as pessoas

idosas e como a espiritualidade pode auxiliar no enfrentamento desses eventos estressantes,

propiciando conforto e espaço, que dão sentido a suas existências frágeis e vulneráveis.

Cilma Laurinda Freitas e Silva procura entender como acontecem as demonstrações

de intolerância no campo religioso e como tais intolerâncias levam à demonização das

práticas e dos rituais dos cultos afro-brasileiros realizadas em um templo religioso. A autora

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faz uma análise sobre como atitudes intolerantes podem causar a morte, como foi o caso de

uma representante do segmento religioso afro-brasileiro.

O convite para adentrarmos nessa discussão está feito. Boa leitura!

CLÓVIS ECCO

IRENE DIAS DE OLIVEIRA

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Religião, etnicidade e violência:

relações e legitimações

Irene Dias de Oliveira*

Introdução Assistimos em nossos dias a um aumento dos conflitos étnicos e religiosos que

assumem dimensões globais, colocando em risco a vida e o futuro das pessoas. O que esses

conflitos têm a ver com religião? Pode a religião estar na origem da violência? O que têm a

ver religião e etnicidade? Essas são as perguntas que muitas pessoas se fazem em nossos

dias. Embora não tenhamos respostas conclusivas, vamos tentar refletir sobre elas.

Uma primeira dificuldade é que religião, etnicidade e violência possuem uma

complexidade muito grande e pode parecer temeroso querer chegar, neste breve texto, a

conclusões definitivas. Outra dificuldade é que estamos diante de um campo de estudo que

apresenta contradições relacionadas aos métodos, às teorias aplicadas e às interpretações

desenvolvidas. Esses e outros fatores dificultam a produção de resultados difíceis de

organizar de maneira coerente e satisfatória. Embora sabendo dos limites e dificuldades

desta pesquisa, ainda incipiente, tentaremos organizar as complexidades das respostas

conscientes de suas consideráveis simplificações.

Inicialmente, faz-se necessário uma abordagem conceitual.

1. O que entendemos por religião, violência e

etnicidade? Não é fácil definir religião, mas uma resposta, mesmo se não definitiva, se faz

necessária, porque sem ela fica impossível qualquer tipo de análise e reflexão. Portanto,

consideramos a religião como um fenômeno cultural que constitui um modo de refletir,

organizar de maneira cognitiva, ética, política e estética o cosmo e a existência humana.

Desse modo, “a religião é depositária de significados culturais, pelos quais indivíduos e

*

Doutora em Teologia pela Pontifícia Facoltá Teologica dell’Italia Meridionale (Italia) e professora

do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade

Católica de Goiás. E-mail: [email protected].

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coletividade são capazes de interpretar a própria condição de vida, construir para si uma

identidade e dominar o próprio ambiente” (Martelli, 1995, p. 34). A análise dos símbolos

sagrados e de seus significados leva a perceber toda a dinâmica cultural de uma sociedade,

já que os símbolos sagrados sintetizam o ethos de um povo e sua visão de mundo (Geertz,

1989). Desse modo, pode-se afirmar que alguns rituais estão impregnados de ideologias, de

relação de poder, hierarquias, elementos do cotidiano. Rito e rituais promovem leituras da

realidade social e constituem-se um locus de alternativas ideológicas voltadas, ou não, para

a manutenção do statu quo e, ao mesmo para, a produção de solidariedade entre as pessoas.

Estas são transportadas para fora de si, distraídas de suas ocupações e preocupações

ordinárias, reelaborando simbolicamente o próprio ciclo de rotina. A religião governa a

ordem do indivíduo, mantém um conjunto de práticas e deveres que dão significado e

“nomia” à existência das pessoas, constitui a expressão dinâmica das camadas sociais e

representa uma maneira de afirmar-se em sua própria cultura (Berger, 2004), por isso

parece-nos que, em geral, a religião pode constituir-se uma referência de identidade,

portanto, de identidade étnica.

A identidade implica um processo constante de identificação do eu ao redor do outro

e do outro em relação ao eu. O olhar sobre o outro faz aparecer as diferenças e a

consciência de uma identidade (D’Adesky, 2001). Mas o que é a identidade étnica? É algo

natural que acomuna as pessoas que possuem a mesma origem, a mesma língua e a mesma

religião? Pode ser produto das circunstâncias contingenciais? A essas perguntas as

respostas também podem ser várias e complexas. Na Europa da década de 1960, o conceito

de identidade étnica é amplamente debatido a partir das pesquisas de Fredrik Barth, que

critica o essencialismo do conceito e afirma que identidade étnica é sempre e

inevitavelmente uma construção de outros grupos (exógena). Ela se constrói na relação

entre a categorização pelos não membros e a identificação com um grupo étnico particular,

isto é, com o sentimento de pertença a um grupo particular. Esse sentimento de

pertencimento é produto de um processo de identificação, onde a pessoa se reconhece como

membro de um grupo e se reconhece nesse grupo. É a identificação do “mesmo” nos outros

(Poutignat; Streiff-Fenart, 1998). Portanto, essa concepção de identidade étnica vai contra

uma imagem reificada de grupo étnico.

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A identidade étnica diz respeito também, mas não só, à raça, à religião, à língua e à

história como elementos de coesão e solidariedade do grupo. Na identidade étnica estão em

jogo todos os elementos do imaginário simbólico: raça, religião e língua, mas a religião tem

mais força que outros possíveis fatores de identidade, pois é um sistema gerador de

sociabilidade, de coesão e de comunidade (D’Adesky, 2001).

Mas o que tem a ver religião, identidade étnica e violência? Para responder a essa

questão precisamos definir o conceito de violência. Também aqui as abordagens são várias.

Vamos destacar apenas a violência numa perspectiva antropológica. Se abrirmos o

dicionário, encontraremos que violência é definida como uma “ação ou efeito de violentar,

de empregar força física ou intimidação moral contra alguém; ato violento ou crueldade,

força, cerceamento; exercício injusto [...] ilegal de força ou de poder; cerceamento da

justiça e do direito; coação, opressão, tirania” (Dicionário Houaiss, 2001).

A ação violenta, então, é vista aqui como a exteriorização de um ato, de uma ação que

pode ou não ser violento. Certamente, as ações se expressam e acontecem em uma

determinada cultura e são impregnadas de valores morais, simbólicos, por isso o que pode

ser violento em uma cultura pode não ser em outra. Outra explicação é dada a partir da

origem latina da palavra: violência, em latim, deriva de vis, que significa força, vigor, vida,

vitalidade (Almeida apud Noé, 2004). A partir dessa compreensão, passar de um estado de

vigor para o de violência é o mesmo que passar de um estado de agressividade sadia para

uma agressividade destrutiva (Almeida apud Noé, 2004). Mas ainda aqui surge outra

pergunta: É a violência uma dimensão intrínseca ao ser humano? De acordo com Noé

(2004), baseado em Freud, o ser humano é ambivalente e traz consigo tanto o polo da

agressividade, da destrutividade e da violência quanto o polo do Eros, da vida e do amor.

Ele afirma, ainda, que “a constante e permanente tensão entre ambos é uma espécie de mola

propulsora da existência humana: a permanente luta da vida contra a tendência de

destruição” (Noé, 2004, p. 144). Parece-nos entender, então, que nessa perspectiva o ser

humano está fadado ao fracasso e que talvez seja inútil a tentativa de eliminar a

predisposição à agressão e à violência (Noé, 2004). Não é, porém, o que afirma a

pesquisadora Elisabeth Young-Bruehl (2005) quando nos fala de violência a partir dos

estudos feitos por ela nos Estados Unidos após o 11 de setembro de 2001. Segundo essa

pesquisadora, é sempre muito cômodo estabelecer uma única razão, uma única causa para

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um determinado problema, pois desse modo fica mais fácil localizar a causa, identificá-la e

extirpá-la. Ao se buscar uma raiz “genética” da violência, ignora-se tudo o que se sabe

sobre a complexidade do comportamento humano. Segundo ela, muitas pesquisas sobre as

causas da violência estão repletas de simplificações (2005). Uma dessas simplificações

pode ser a tentativa de descrever, elaborar e encaixar as pessoas “violentas” dentro de um

determinado “perfil” para que possamos identificar e extirpá-los da sociedade. Mas, então,

o que seria a violência? Qual seria a sua causa? Segundo Young-Bruehl,

a violência expressa um preconceito no sentido mais literal da palavra, um pré-julgamento.

Mesmo a violência que parece ser descrita com palavras como “impulsiva”, “reativa” ou “não

premeditada”, o perpetrador sempre carrega consigo imagens pré-fabricadas dos inimigos

odiados – de pessoas perigosas, que magoam, destrutivas ou desapontadoras, ou pessoas que

são simplesmente diferentes – e aquele, ou aqueles, contra quem o perpetrador age ou

fantasia é um deles, parte desse grupo. [...] nossos preconceitos são formados principalmente

com base em experiências de frustração ou rejeição; são imagens negativas, composições,

generalizações que antecipam frustrações futuras que se assemelham a frustrações passadas

(p. 167).

Para a pesquisadora, a violência é um ato que expressa a maneira como a pessoa

aprendeu a classificar as pessoas, interpretar as relações entre elas, como os mecanismos de

defesa foram, ao longo do tempo, generalizados e estruturados em mecanismos de defesa

sociais ou preconceitos (p. 169). Quando as imagens são construídas culturalmente e

partilhadas pelo grupo, ocorre que aquilo que foge da experiência desse grupo, aquilo que é

diferente pode estar submetido a ações violentas, sejam elas físicas, sejam simbólicas, e tais

ações são legitimadas e validadas para o inteiro grupo, que não percebe tais atos como

violentos ou patológicos e sim como algo bastante normal. Portanto, para essa autora a

origem da violência está nos preconceitos, e os tipos característicos de violência são a

maneira de expressar os preconceitos. “O preconceito é a ideia para a qual a violência é um

modo de agir. Ele fala o que a violência faz” (p. 170). Então, se o preconceito é a causa da

violência, de que modo religião e etnicidade podem estar interligadas e constituir possíveis

locus de violência?

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2. Religião e etnicidade como lugares de

violência? Se a etnicidade consiste num sentimento de pertencimento que, por sua vez, é produto

de um processo de identificação, no qual a pessoa se reconhece como membro de um grupo

e se reconhece nesse grupo enquanto se identifica nos outros; e se, paralelamente, a religião

reforça a etnicidade enquanto um dos elementos de coesão e solidariedade do grupo e nela

(religião) estão em jogo os elementos do imaginário simbólico que são fatores de

identidade, devemos convir, então, que a religião pode contribuir para reforçar e legitimar

os preconceitos dos grupos.

Em todas as partes do mundo, as sociedades, incluindo as mais desenvolvidas, estão

fragmentadas por inimizades originadas exatamente pelas diferenças étnicas, raciais e

religiosas. Algumas dessas fragmentações e inimizades atingiram um grau mais alto de

barbaridade, outras menos. Tais violências são expressas sob a forma de exclusão,

discriminação, opressão, guerras que se utilizam de doutrinas, crenças e legislações para

justificar suas atitudes violentas, sectárias, sejam elas simbólicas ou não.

Nos últimos anos assistimos a fragmentações sociais, recrudescimentos de antipatias

grupais, repressivas, discriminações sociais e políticas fundamentadas, supostamente, em

identidades étnicas, e religiosas. Em todos esses casos, percebe-se que há como pano de

fundo uma desvalorização sistemática e a falta de respeito pela vida das vítimas alimentada

por um velado desprezo racista. Tais atitudes podem ser visíveis, como também

mascaradas. As inimizades frequentemente são disfarçadas e passadas como preocupação

ambiental, conflitos econômicos e/ou sociais, segurança nacional, e outros. O racismo, o

desprezo étnico e a intolerância religiosa são preconceitos.

O racismo é considerado violência e uma das práticas mais discriminatórias

institucionalizadas da nossa civilização, levando à desvalorização da identidade, opondo-se,

assim, ao direito de cada indivíduo viver segundo suas raízes e crenças comunitárias

(D’Adesky apud Ferreira, 2000). Quando, por algum motivo, não se reconhece e, na

prática, se agride (física ou psicologicamente) uma pessoa, entendemos, portanto, que nos

encontramos diante de um ato discriminatório. A discriminação leva à fragilização ou à

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negação da existência da alteridade, dos grupos comunitários, culturais e etnicamente

diferentes.

A discriminação é uma ação, uma manifestação, um comportamento que visa a

prejudicar o outro, constituindo, assim, um gesto violento. Já o preconceito é uma postura,

uma concepção, segundo a qual algumas pessoas consideram sua cultura, suas crenças, seus

símbolos, superiores e/ou melhores do que os de outros povos e outras culturas

(etnocentrismo), servindo-se, assim, de avaliações negativas sobre as pessoas, suas culturas,

seu imaginário simbólico, suas crenças e o seu ethos. Consequentemente, o racismo parte

da suposição de que um grupo étnico é superior a outro e de que um determinado grupo

possui defeitos de ordem moral e intelectual.

Racismo, portanto, “é a prática discriminatória institucionalizada; ou a prática de

desvalorização da identidade, opondo-se ao direito de cada indivíduo viver segundo um

enraizamento comunitário” (D’Adesky apud Ferreira, 2000, p. 51). O preconceito e o

racismo são alimentados por crenças, doutrinas, conceitos e concepções acerca do outro e

dos grupos sociais. Para Tamas Pataki (2005), o racismo contemporâneo está baseado na

concepção de que a “natureza é soberana e absoluta” e que, por sua vez, encontra

justificativa nas ideias de pureza de sangue que surgiram durante as inquisições medievais;

nos relatos fantásticos de viajantes sobre povos monstruosos; concepções de superioridade

congênita do gênio e da inteligência inatos; e substituições, por parte de historiadores e

filólogos dos séculos XVII e XIX, da história das civilizações e da política pela história das

raças. Mas, segundo Pataki, a contribuição decisiva surge a partir da ideia de que povos

inteiros foram considerados moral e intelectualmente inferiores. David Hume (apud Pataki,

2005, p. 18), em 1766, fez a seguinte afirmação:

Estou disposto a suspeitar que negros e outras espécies de homens em geral (pois há quatro

ou cinco tipos diferentes) sejam naturalmente inferiores aos brancos. Nunca houve uma nação

civilizada de outra tez além da branca, ou mesmo um indivíduo eminente, seja em ação ou

especulação. Não há manufatureiros engenhosos entre eles, não há arte nem ciência. Tal

diferença uniforme e constante não poderia ter ocorrido em tantas nações e eras se a natureza

não tivesse feito uma distinção original entre essas linhagens de homens (1985, p. 72-73 –

itálico adicionado).

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Pataki cita, ainda, outro exemplo, agora pronunciado por Thomas Jefferson a respeito

de seus escravos negros: “Não é sua condição, e sim a natureza, que produz a distinção”

(Banton, 1998, apud Pataki, 2005, p. 18).

Outras concepções do racismo moderno estão atreladas à história bíblica, como, por

exemplo, a transgressão de Caim no Gênesis; a visão teológica monogenista que presumiu

na origem da humanidade a criação de um casal perfeito (Adão e Eva) e pensa a origem da

humanidade a partir da “perfeição” da criatura divina e da origem única. Tal concepção

alimenta a ideia de que tudo aquilo que não se enquadra na ideia de “perfeição” e da origem

única simboliza “o pecado”. A partir da origem única, perfeita e igual, o pecado original

causou a expulsão do paraíso, a fragmentação e a diversificação da experiência humana.

Portanto, a diversificação, as diferenças são o resultado do “pecado”. A diversidade

linguística e cultural encontrada nas Américas pelos missionários foi comparada com a

confusão de Babel (Gn 11); a história da salvação, as alianças de Deus com seu povo têm

uma única preocupação: reverter a expulsão, a dispersão, a fragmentação e a confusão

(Suess, 1996). Para o teólogo Paulo Suess, “o monogenismo bíblico induziu a ler as

diferenças humanas em chave de degeneração (causada pelo pecado original) e rebeldia

contra a lei de Deus, inscrita na natureza e na ordem cosmológica imutável” (1996, p. 3).

Tais concepções religiosas e “científicas” foram as únicas formas de classificar, entender e

conceber a diversidade aos grupos humanos ao longo dos séculos. Elas se fundamentaram

nas características morais e intelectuais herdadas, essenciais, imutáveis e exclusivas.

Teorias essas que geraram e alimentaram os preconceitos, dando origem a atos violentos.

Felizmente, as discussões atuais começam a debater tais teorias e repudiá-las, apesar de

seus resquícios ainda permanecerem e preservarem parte de seus perigos.

3. Religião e legitimação da violência A partir do que foi dito acima, entendemos que, ao longo dos séculos, as diferenças

percebidas como algo negativo deram origem aos preconceitos que geraram e legitimaram

os mais variados tipos de violência, simbólica ou não. Sabemos que nem o fato de falarem

uma língua comum, nem a contiguidade territorial, nem a semelhança dos costumes

representam por si próprios atributos étnicos. Apenas se tornam isso quando utilizados

como marcadores de pertença por aqueles que reivindicam uma origem comum. Na maioria

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das vezes a religião desempenha papel central, como no caso dos judeus, com o mito de

eleição; no caso dos africanos, com a ancestralidade; e no caso dos muçulmanos, com o

código de regras que orienta a vida de seus adeptos. Esses são recursos simbólicos

utilizados para demarcar uma oposição significativa entre nós e eles e podem ser

distorcidos, reinterpretados e realçados pelos atores. Por isso a “crença” na origem comum

constitui um dos traços característicos da etnicidade. É a crença na origem comum que

justifica e corrobora as outras dimensões ou signos da identidade e, assim, o próprio sentido

da unicidade do grupo. É a crença na origem comum que substancializa e naturaliza os

atributos, tais como a cor, a língua, a religião, a ocupação territorial, e fazem-nos

percebidas como traços essenciais e imutáveis de um grupo (Barth apud Poutignat, 1995).

Tais mitos fundadores podem ser invocados e recriados para fundamentar a separação entre

os vizinhos. Se a etnicidade encontra seu pressuposto também na “crença” de uma origem

comum, logicamente o grupo vai se reconhecer enquanto membros de um determinado

grupo. Essa crença também pode favorecer a construção de ideias que reclamem para si

atitudes e posturas de superioridade em relação a outros grupos. Nesse sentido, na medida

em que as crenças religiosas se colocam como suporte que justificam tal superioridade em

relação a outros povos, etnias e grupos sociais, podemos aferir, então, que tais crenças

podem promover preconceitos e atitudes discriminatórias, gerando violência.

As religiões monoteístas, enquanto admitem um só Deus, podem colocar-se numa

posição excludente e geradora de violência, pois não toleram as diferenças decorrentes de

outras crenças. A crença de que as verdades em que se crê são reveladas por Deus é outro

exemplo que pode ser usado como estopim para a violência na medida em que se acredita

que a verdade revelada é a única e “deve” ser “imposta” e “aceita” por todos

indiscriminadamente. A verdade revelada, que deveria, no fundo, ser objeto de aceitação

livre e gratuita, é imposta não sob a supervisão da autoridade divina, mas de outras

autoridades. Segundo Bingemer, podemos observar tais atitudes especialmente nas três

religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), onde Deus e as verdades

reveladas nas histórias e culturas concretas e particulares de seus povos tornam-se

vinculantes para todos os crentes independentemente de sua história, de sua cultura e de

suas crenças (Bingemer, 2004). De acordo com essa teóloga, a violência ocorre quando às

verdades reveladas se lhes dá um caráter único, universal e vinculante para todos

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(Bingemer, 2004). Usamos exemplos das religiões monoteístas, pois são as mais próximas

a nós e convivemos com tais realidades. Isso não quer dizer que as religiões não

monoteístas não possuam crenças e doutrinas que levem à violência. Tal ocorre porque as

religiões, todas elas, são experiências de fé que possuem uma forte carga propositiva e

emotiva, sejam elas monoteístas ou não. Se a religião constitui um sistema simbólico e

constrói uma rede de símbolos a partir dos quais a pessoa se acha interligada, cria, avalia,

compreende e justifica sua realidade. É evidente que as pessoas que experienciam uma

determinada fé têm uma lógica própria e acreditam que essa lógica é a mais importante, é a

lógica que lhes fornece sentido e significado dentro daquele determinado contexto, portanto

a pessoa e /ou o grupo vão defender essa lógica como a mais importante, a mais verdadeira

e, talvez, como a única capaz de fornecer sentido.

Concluindo, podemos afirmar que a análise dos símbolos sagrados sintetiza o ethos

de um povo e que a religião é, sim, depositária de significados culturais a partir dos quais

os indivíduos interpretam a realidade e a legitimam. As crenças, portanto equivalem às

representações cognitivas que caracterizam a consciência coletiva. São sistemas de

classificação das coisas reais ou ideais em sagradas e profanas. Os conflitos muitas vezes

são sustentados pela convicção de estarmos com a razão e de sermos justos. A justiça pode

tornar-se um pretexto para a vingança. E quem se vinga geralmente o faz com a consciência

de que precisa assegurar sua sobrevivência ameaçada pelo outro que pensa e age de modo

diferente. Sempre que nos julgamos melhores do que os outros achamo-nos no direito de

fazer-lhes mal sob o influxo de que estamos agindo em nome de Deus, do Sagrado ou da

consciência. Em torno dessa certeza se aglomeram muitos preconceitos e mitos que se

tornam sagrados e diante dos quais os meios são justificados e santificados.

Estes ensaios, embora incipientes, mostram a relevância que as pesquisas sobre as

religiões exercem no momento em que nossas sociedades passam por experiências de

violência extrema. Tais estudos devem contribuir para desmistificar as religiões de seus

preconceitos e das representações e símbolos que os geram e os justificam dividindo as

pessoas em boas e ruins, santas e pecadoras, mostrando-nos como podemos desprender-nos

dos múltiplos preconceitos que nos tornam intolerantes, fundamentalistas e violentos.

Referências

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BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-

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Page 18: Religião, violência e suas interfaces São Paulo Editora Paulinas

O medo do outro e o

fundamentalismo religioso

Paulo Sérgio Soares*

1. O “eu” ameaçado Certa vez, o Cardeal Dom Serafim Fernandes de Araújo, arcebispo emérito de Belo

Horizonte, numa de suas preleções num retiro espiritual para o clero daquela arquidiocese,

contou o seguinte caso, referindo-se à atitude de fechamento de certos grupos eclesiais a

novos membros que se apresentam querendo participar. Contava, em tom meio anedótico,

de uma mulher muito prestativa que, tendo mudado de bairro, foi logo procurando a igreja

local para oferecer-se como voluntária para alguma atividade na comunidade. Chegando à

igreja, apresentou-se a uma senhora que limpava os bancos e falou-lhe de seus propósitos.

Aquela lhe deu as informações pedidas, mas, quando a mulher ia saindo da igreja, a de cá

resmungou baixinho: “Seja bem-vinda... desde que não tome o meu lugar!”.

O exemplo dado é simples, mas ilustra bem uma postura que cada vez mais vem

sendo reforçada na sociedade atual, onde os conflitos de interesses dão o tom das relações

entre indivíduos, instituições, classes e grupos sociais: considerar o outro não como um

cooperador com quem posso contar, mas como um concorrente que ameaça tomar o meu

lugar, com quem devo sempre “ficar com um pé atrás”, numa atitude defensiva,

desconfiada. Sobretudo quando é um desconhecido, o outro causa medo. No entanto,

quando a pessoa que chama ao interfone é conhecida, logo lhe abrimos o portão, sem

receios, mandamos entrar, sentar-se, e até lhe oferecemos um cafezinho. Conhecer o outro

é, pois, fundamental para não se ter medo dele.

2. Resgatar o convívio A sociedade atual é marcada pela desconfiança em relação ao outro, graças à

crescente sensação de insegurança causada pelo aumento da violência. Vivemos sob a égide

do medo que nos afasta uns dos outros, impõe medidas de segurança, evidenciadas nos

*

Doutorando em Ciências da Religião na PUC Goiás. E-mail: [email protected].

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muros cada vez mais altos, grades por todos os lados, pit bulls, cercas elétricas, câmeras de

monitoramento, blindagens e outras parafernálias tecnológicas. O clima de violência e

medo está aprisionando as pessoas em suas próprias casas e solapando um dos fundamentos

mais preciosos da humanidade: o convívio. Hoje se descobre que não basta viver, muito

menos apenas sobre-viver, é preciso con-viver, pois, quanto mais complexa se torna a

sociedade tanto mais se sabe que as pessoas dependem umas das outras e vai-se

descobrindo que aprender a conviver é a melhor forma de superar os conflitos.

Dizem os mineiros que “só se conhece alguém depois de comer uma saca de sal com

ele”. É gastando tempo juntos, andando juntos, falando e ouvindo, observando e sendo

observado, acolhendo e sendo acolhido, numa palavra, convivendo, que se pode tornar o

estranho conhecido, o diferente valorizado, o outro um companheiro, na acepção mais

enfática de “aquele que come o pão com a gente”: cum-panis.

3. A campanha de Terry Jones contra o Alcorão No segundo semestre de 2010, o pastor evangélico Terry Jones, da Igreja Dove World

Outreach Center, que tem cerca de trinta membros, sediada em Gainesville, Flórida, nos

Estados Unidos, empreendeu uma polêmica campanha. Ele pretendia marcar o aniversário

dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 em seu país com a queima em praça

pública de centenas de exemplares do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, e estava

determinado a fazê-lo, mesmo que outras pessoas não o acompanhassem. O caso chamou a

atenção da mídia internacional e mobilizou a opinião pública ao redor do mundo.1

Houve um sentimento geral de que tal gesto representaria uma provocação e um signo

de intolerância religiosa absolutamente descabidos, uma insanidade que só serviria para

acirrar os conflitos políticos e religiosos entre os mundos ocidental e islâmico, como

revelam os comentários feitos na ocasião:

O presidente afegão Hamid Karzai, em sua mensagem pelo Eid, advertiu que Jones “não

deveria nem pensar” em queimar o Alcorão em um momento tão delicado, enquanto o

presidente da Indonésia, país com a maior população muçulmana no mundo, disse que a paz

1 Segundo o jornal Estado de Minas, a ação pretendida pelo pastor Terry Jones “ganhou manchetes

em todo o mundo”. Remeto ao endereço

<http://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2010/09/11>.

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mundial estava em jogo. A preocupação tinha chegado a tal ponto em Washington que a Casa

Branca entrou em contato na quinta-feira com o pastor. O secretário de Defesa dos Estados

Unidos, Robert Gates, telefonou para Jones para que mudasse de postura, ao advertir que a

queima do Alcorão geraria reações em todo o mundo e colocaria em risco os soldados

americanos no Afeganistão. “Temos que nos assegurar de que não nos voltaremos uns contra

os outros”, disse Obama em coletiva de imprensa na Casa Branca (Estado de Minas, 10 set.

2010).

De fato, extremistas muçulmanos já sinalizavam possíveis retaliações com atos de

violência, caso seu livro sagrado fosse daquele modo vilipendiado. Os primeiros incidentes

ocorreram no Afeganistão, país muçulmano, na véspera do aniversário dos atentados, “onde

milhares de pessoas enfurecidas atiraram pedras contra uma base da Otan”; “líderes cristãos

de Washington se reuniram de manhã com o polêmico pastor Jones para pedir que

‘mantenha sua posição de não queimar Alcorões’” (Estado de Minas, 10 set. 2010). Já no

dia 11, “em vários países muçulmanos, pessoas foram às ruas para manifestar a sua ira em

relação ao projeto da igreja de Gainesville, e muitos queimaram bandeiras dos Estados

Unidos” (Estado de Minas, 11 set. 2010). Depois de tanta pressão dentro e fora do país,

Terry Jones desistiu do seu intento, apesar de não deixar claro se apenas o adiou

temporariamente.

O caso levanta instigantes questões a respeito da relação entre religião (nesse caso,

fundamentalismo religioso), etnicidade (nesse caso, etnocentrismo) e violência (nesse caso,

não só simbólica, mas potencialmente também física). São questões pertinentes, sobretudo

quando cresce hoje o desejo de um convívio pacífico e cooperativo entre as nações da

Terra, onde as religiões podem desempenhar inestimável papel de inspiração, coesão e

mobilização. Nesse sentido vêm trabalhando os Fóruns Sociais Mundiais, o movimento

ecumênico, a Carta da Terra.2

4. A superação do fundamentalismo

2 A Carta da Terra, elaborada em 2000 por representantes de quase todas as nações do mundo e

aprovada pela Unesco, foi pensada para ter o mesmo valor da Carta dos Direitos Humanos (Boff,

2002).

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Afinal, o que pretendia Jones com aquela campanha? Em paralelo à “guerra contra o

terrorismo” do governo americano, Jones queria deflagrar uma “guerra contra o

Islamismo”, ou seja, queria uma guerra religiosa, um combate do Deus cristão contra as

“forças demoníacas” identificadas por ele com a religião muçulmana. “Não é apenas uma

pequena igreja fazendo isto. Para a comunidade islâmica, esta é a cara do cristianismo

americano”, disse o Reverendo Rob Schenck, do Conselho Nacional de Clérigos (Estado de

Minas, 10 set. 2010). Mas a retirada da ameaça de queimar o Alcorão fora vinculada por

Jones à condição de que se obtivesse em troca um “acordo que pedia para mudar o local da

construção de uma mesquita em Nova York”, próximo ao Marco Zero, onde antes estavam

as Torres Gêmeas (Estado de Minas, 10 set. 2010).

O fundamentalismo da campanha de Jones se traduz nesta frase que ele faz questão

de não esconder: “O Islã é o Mal” (“Islam is Evil”). É interessante notar que, da mesma

forma, para os extremistas islâmicos e para terroristas como Osama Bin Laden, por

exemplo, o Ocidente não islâmico, capitaneado pelos Estados Unidos e sua política

imperialista, também é visto como “a encarnação de Satanás”. De um e de outro lado

confirma-se a tese de Pedro Ivo Oro (1996) de que, para os fundamentalistas, sempre “o

outro é o demônio”.

Como conviver com o outro se ele é demonizado? Oro demonstrou com competência

que a demonização do outro é a forma mais comum de autoafirmação daqueles movimentos

fundamentalistas religiosos que querem impor sua maneira de pensar, de agir e de crer

como a única possível ou a superior a todas as demais. Esse fundamentalismo voltou a

tomar força desde meados da década de 1970 para cá e tem se expressado não só na sua

vertente original protestante como também nas vertentes católica e islâmica (Oro, 1996). A

ideia de “estranheza” é essencial para compreender o fundamentalismo: quando o outro me

é estranho, assumo naturalmente uma atitude de julgamento, onde o padrão “aferidor” é a

minha verdade (aquilo que para mim faz sentido e orienta minha vida). O problema é

quando eu, em nome da minha verdade, julgo o outro como inferior, errado, demoníaco, e

nego-lhe o direito de ser o que ele é.

É relevante também olharmos esse caso sobre o prisma do objeto em foco: o Alcorão.

Ao estudar o fundamentalismo religioso, Aldo N. Terrin retoma o que G. Segalla considera

um ponto crucial a ser aprofundado nas ciências da religião: o “fundamentalismo do livro”,

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e o define como a “autorreferencialidade absoluta” da religião, já que esta coloca o livro

sagrado como seu centro e apela para a sua infalibilidade, que não pode ser criticada de fora

dessa mesma referência (Terrin, 1998). Nesse sentido, Terrin encontra na abordagem do

fundamentalismo um problema epistemológico de base, pelo qual “o critério de validade da

experiência religiosa, por sua própria natureza, não se submete à crítica, mas somente à

força interna da fé, do sentir e do viver religioso”. Ou seja, ao se olhar uma determinada

religião desde o interior dela mesma, fica difícil falar de “fundamentalismo”, “pois cada

religião torna-se hermenêutica para si mesma e até as intolerâncias religiosas parecem

justificáveis em nome de um critério mais profundo de fé religiosa” (Terrin).

Com isso, porém, Terrin não pretende que se deva “renunciar a captar os aspectos

negativos e funestos a que levaram e ainda levam certas ‘carnificinas de religião’” nem que

se deva “fechar os olhos a certas ‘pragas’ existentes no mundo das novas religiões e a

‘fanatismos’ evidentes [...]”. Ou seja: não se pode justificar a barbárie na guerra entre

religiões.

5. Superando o etnocentrismo No ensaio “Os caracteres da violência e do preconceito” (2005), Elisabeth Young-

Bruehl, psicanalista, considera que uma raiz tangível da violência (não a única), mas que

não tem sido suficientemente abordada nos estudos sobre a violência, é o preconceito, fruto

da educação recebida desde a infância e reforçado pelo meio social. “A violência expressa

um preconceito no sentido mais literal da palavra, um pré-julgamento” (Young-Bruehl).

Noutro ponto de seu ensaio diz: “A violência expressa a maneira como a pessoa aprendeu a

classificar as pessoas e interpretar as relações entre elas, como mecanismos de defesa da

pessoa foram, ao longo do tempo, generalizados e estruturados em mecanismos de defesa

sociais ou preconceitos”.

“O perpetrador [da violência] sempre carrega consigo imagens pré-fabricadas dos

inimigos odiados – de pessoas perigosas, que magoam, destrutivas ou desapontadoras, ou

pessoas que são simplesmente diferentes” (Young-Bruehl). Ele escolhe um objeto sobre o

qual descarregar sua violência e essa escolha parte de um pré-conceito, um pré-julgamento:

tem na cabeça uma imagem deformada do inimigo ou adversário. Este precisa ser

desumanizado para que, assim, o agressor possa justificar sua violência.

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Um exemplo disso nos fornece Ishmael Beah em seu livro autobiográfico Muito

longe de casa: memórias de um menino-soldado, no qual conta a forma como um cabo do

exército de Serra Leoa incutia a imagem do inimigo nos meninos recrutados à força – ele

inclusive – para combaterem os rebeldes: deveriam usar as baionetas para esfaquear uma

bananeira com ódio mortal, visualizando nela “o inimigo, os rebeldes que mataram seus

pais, sua família, e aqueles responsáveis por tudo que aconteceu a vocês”. Depois de

mostrar-lhes como se faz, furando repetidamente uma bananeira e a cada golpe

descrevendo sanguinariamente cada parte do corpo do rebelde imaginário que ele ia

estripando, o cabo arrematava: “Lembrem de uma coisa: ele provavelmente matou os pais

de vocês de um jeito muito pior” (Beah, 2007).

É significativo perceber que toda estratégia de combate a um alvo definido como

inimigo implica a construção da imagem desse inimigo como a pior possível. Essa também

parece ser a estratégia dos movimentos fundamentalistas religiosos, que sempre veem as

outras religiões ou certas instituições, governamentais ou não, como a encarnação do

demônio ou a serviço dele, contra as quais, então, envidam todos os esforços para de

alguma forma destruí-las e eliminá-las. Aqui já se pode vislumbrar uma interface da

violência com a religião.

As religiões tendem a ser preconceituosas em relação aos de fora quando cada uma se

arvora em “dona da verdade”, legítima e única representante de Deus, num sentimento de

superioridade em face das outras expressões religiosas. A concepção de um “Deus

guerreiro”, que aniquila os inimigos, isto é, aqueles que não o adoram, forneceu o substrato

ideológico para todas as “guerras santas”, tanto na Bíblia quanto nos tempos atuais,

justificando, assim, o massacre dos povos que não se submetem ao domínio desse “Deus”.

O preconceito geralmente é dirigido não contra um ou outro indivíduo específico,

mas a todo o grupo do qual esse indivíduo faz parte (como preconceitos do tipo “toda loira

é burra”, “todo torcedor do time rival é gay”), ou, num processo de generalização, a todo o

povo ou etnia a que ele pertence. É o caso do racismo, manifesto, por exemplo, em frases

do tipo “todo negro não presta”, “todo cigano é ladrão”, “todo índio é mau”, “todo judeu é

avarento”. As piadas brasileiras ridicularizando “o português” refletem um preconceito

étnico contra o povo que nos colonizou. Esse componente étnico do preconceito torna-se

etnocentrismo quando um povo, ao inferiorizar, ridicularizar ou demonizar outro povo,

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pretende afirmar-se como o superior, o único bom, o perfeito em relação aos demais.

Segundo J. D’Adesky, “raça, religião, língua e história” são “elementos de coesão e

solidariedade do grupo” (D’Adesky, 2001). Irene Dias de Oliveira ressalta que esses são os

“elementos mais fortes na construção da identidade étnica, na qual estão em jogo todos os

elementos do imaginário simbólico da humanidade”.3 A religião muçulmana é um elemento

tão marcante da identidade étnica, da cultura dos povos islâmicos que a ameaça à sua

religião facilmente é entendida como ameaça a esses povos. Daí se entende a pressão para

que o Pastor Jones não levasse a termo sua campanha.

Embora não se possa acusá-lo, sem mais, de racismo, sua “campanha pela queima do

Alcorão” comportava um componente etnocêntrico, pois revelava seu preconceito étnico-

religioso contra os muçulmanos. Sua atitude não era apenas antiterrorista, mas anti-islâmica

(note-se a generalização). O etnocentrismo, nesse caso, aproxima-se do racismo. Ele se

revela, de um lado, no desejo de, com a queima do livro sagrado dos muçulmanos, dizer a

todos eles: “Olhem, a religião de vocês é do demônio, assim como a sua sociedade, que se

apoia nela. Devem ser destruídas!”. É um “etnocentrismo simbólico”. De outro lado, na

suposição de que a religião e a sociedade estadunidenses, constituídas sobre o fundamento

da Bíblia, como almejam os fundamentalistas, seriam as únicas queridas por Deus e

deverão triunfar sobre as demais (ainda que por força militar!). Seria por causa desse

componente etnocêntrico da campanha do pastor, uma forma de violência simbólica, que

muitos temiam uma reação em cadeia de atos de protesto antiocidental, anticristão e

antiamericano por parte de extremistas, e o crescimento da desconfiança de muçulmanos já

descontentes com a visão ocidental a respeito do Islã, da cultura islâmica e dos países cujas

leis são baseadas no Alcorão.

De novo, é Elisabeth Young-Bruehl quem fornece uma chave de leitura bastante

plausível para perceber o etnocentrismo da campanha anti-Islã de Jones. Seu ensaio citado

neste artigo foi escrito quatro meses depois do horrível atentado às Torres Gêmeas, quando,

para a autora, toda a sociedade estadunidense, chocada por aquele “pesadelo obsessivo

tornado verdadeiro”, corria o perigo de entender que ele estava a “pedir e justificar todas as

reações obsessivas características clássicas”. Dos exemplos de “reações obsessivas” citados

3 Frase citada em um diapositivo exposto em sala de aula no dia 1

o de abril de 2011, no Colóquio

sobre Religião, Etnicidade e Violência, na PUC Goiás.

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logo em seguida pela autora destaco estes: “passar por cima de direitos constitucionais em

nome da segurança” e “incluir pessoas de muitas nações em uma visão de conspiração

(todos os que ‘abrigam’ terroristas)” (Young-Bruehl, 2005). Isso indica que o atentado

gerou também nos americanos um preconceito étnico: depois de 11 de setembro de 2001,

todo estrangeiro originário de países islâmicos ficou sob a sombra da suspeita de ter alguma

ligação com o terrorismo. Bastava ter um sobrenome árabe, paquistanês, iraniano, iraquiano

ou turco para que seus passos fossem vigiados.

Do outro lado desse “cabo de força”, os extremistas islâmicos e os terroristas também

nutrem um preconceito contra tudo o que é americano. Parece que, nove anos depois,

algumas pessoas como Terry Jones ainda alimentam esse tipo de obsessão, agora bem

claramente caracterizada pelo fundamentalismo religioso e pelo preconceito étnico. Neste,

os “inimigos” da nação americana a serem caçados e eliminados não são os “terroristas”,

mas os muçulmanos (todos eles, já que todo muçulmano está sob o regime do Alcorão que

o pastor pretendia queimar!).

6. Superando a violência simbólica Discute-se muito sobre a relação entre religião e violência. Para alguns, como

Christopher Hitchens e Richard Dawkins, grandes expoentes do ateísmo contemporâneo, se

não houvesse religião o mundo estaria em paz, pois, para eles, “a religião é o grande mal da

humanidade” e “Deus é um delírio” (Dawkins, 2006). Marion Aubrée (2004) constata que

há uma relação estreita entre ambas e estuda os novos grupos religiosos envolvidos com

algum tipo de violência física ou simbólica. Oliveira lembrava que, para outros, “a religião

gera violência porque ela reprime certos desejos dos indivíduos e essa repressão acaba

explodindo na forma de violência”.4

Do outro lado estão Freud (apud Noé, 2004) e R.

Girard (1998), que consideram a violência inata ao ser humano, bem como os que veem a

religião como a solução e não a causa da violência (limito-me a citar L. Boff, entre tantos

teólogos, filósofos e religiosos da atualidade). Há que se perguntar, entretanto, se a religião

não seria apenas instrumentalizada por um líder “carismático” fundamentalista, que

periodicamente surge na história das religiões, para justificar a violência do grupo liderado

4 Colocação feita em sala de aula no dia 1

o de abril de 2011, no Colóquio sobre Religião, Etnicidade e

Violência, na PUC Goiás.

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por ele sobre os outros, ou de uma etnia sobre outra. Aubrée (2004) conclui que “a

violência simbólica se difunde em todas as religiões, antigas ou novas, a partir do momento

em que um indivíduo ou grupo quer impor, eventualmente com violência, o que considera

como a Verdade e que não é outra coisa senão a sua verdade pessoal”.

Uma simples análise permite considerar que a campanha do pastor americano

propunha uma violência simbólica contra os muçulmanos. Primeiro, porque não se pode

acusar o Alcorão de fomentar o terrorismo; segundo, porque não se pode acusar todos os

muçulmanos, nem o Islamismo, de serem terroristas, uma generalização inconcebível (aliás,

não são tantos os muçulmanos que aprovam as ações terroristas e se enfileiram em suas

organizações); e terceiro, porque, sob todos os pontos de vista, principalmente o político,

não era o caso de provocar todos os muçulmanos, incentivando neles o antiamericanismo,

já bastante difuso entre os mais extremistas, deteriorando ainda mais as relações entre os

mundos ocidental e islâmico, já marcadas por tensões e conflitos armados nas últimas

décadas.

Mas era também uma campanha anacrônica, porque já se foi o tempo em que os

conflitos religiosos eram enfrentados com a destruição do símbolo mais sagrado da religião

do outro (como a destruição de templos e a iconoclastia) ou pela queima de livros cujas

ideias ameaçavam o pensar hegemônico, como na Inquisição medieval. Hoje, o diálogo e a

busca de pontos de convergência são mais almejados do que as provocações e

demonstrações de intolerância.

Infelizmente, a história das religiões está cheia de exemplos dessa forma de violência,

que é simbólica e física ao mesmo tempo. A própria Bíblia judaico-cristã não esconde

narrativas em que a destruição de templos, imagens, altares e objetos de culto e a execução

sumária de sacerdotes e de seguidores ou praticantes de um determinado culto, tanto por

parte de Israel em relação aos outros povos quanto vice-versa, simbolizava a supremacia e

o triunfo da própria visão religiosa.5

5 Cito alguns exemplos: as ordens de extirpar os cultos cananeus – Dt 12,2-3 – e de matar quem os

seguisse – Dt 17,2-7; a destruição dos “lugares altos” (= santuários pagãos): 2Rs 23,8.13-15; a

execução dos profetas de Baal: 1Rs 18,40; a destruição do Templo de Jerusalém e execução dos

seus sacerdotes pelos babilônios: 2Rs 25,13-15.18-21; a intolerância dos cristãos em face dos

pagãos: At 13,8-11; a queima de livros de magia: At 19,19.

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Atacar a religião do outro para destruí-la talvez seja a mais agressiva forma de

violência simbólica por ser a própria religião o principal baluarte da pessoa. Oliveira afirma

que “a religião é um dos fatores determinantes da identidade de uma pessoa e de um grupo

ou sociedade. Ela governa a ordem do indivíduo e lhe dá significado. É uma maneira de o

indivíduo se afirmar em sua cultura, uma expressão dinâmica que interfere na cultura, nos

comportamentos”.6 Nada é tão arraigado na alma humana como a fé, por sua centralidade

na construção de sentido. Mexer com ela é desnudar os fundamentos da própria pessoa, ir

ao seu mais recôndito limiar. Daí ser tão difícil renunciar às próprias convicções religiosas.

Por isso a violência contra a religião comporta um altíssimo potencial de revide, pois

ninguém fica impassível quando violentado naquilo que tem de mais sagrado: sua fé. A

violência simbólica gera uma reação ainda mais violenta!

Os símbolos religiosos sempre foram uma marca forte da etnicidade porque sua

adoção e seu uso definem o senso de pertença a um determinado povo. Assim é com a Torá

para os judeus (no passado já foi a Arca da Aliança, depois o Templo de Jerusalém), a cruz

ou uma imagem sacra para os católicos, a Bíblia para católicos e evangélicos e o Alcorão

para os muçulmanos, para citar só as religiões monoteístas. Destruí-los ou de alguma forma

diminuí-los em seu valor sagrado e em seu significado simbólico é não só uma afronta ao

povo que os respeita, mas também uma ofensa direta ao sagrado que eles simbolizam ou ao

qual se referem. Sabem-no bem os católicos brasileiros que se sentiram ofendidos quando

um pastor da Igreja Universal, num programa de televisão, chutou uma imagem de Nossa

Senhora Aparecida. A reação nacional, até de não católicos, desaprovando tal ato, foi uma

unanimidade.

Entretanto, mais contundente é a violência quando o símbolo em questão é o livro

sagrado que cada religião reconhece como “Palavra de Deus” ou “de Alá”, palavra

infalível, irrevogável e irrenunciável, porque é “a verdade” absoluta, na qual essas religiões

se apoiam e com a qual se legitimam. Nesse sentido, a queima do Alcorão em público teria

sido uma violência simbólica perpetrada não contra o terrorismo, cujos métodos são

repudiados exatamente com a celebração em memória das vítimas do atentado no dia em

6 Frase citada em um diapositivo exposto em sala de aula no dia 1

o de abril de 2011, no Colóquio

sobre Religião, Etnicidade e Violência, na PUC Goiás.

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que ocorreu, mas contra o próprio Alá e contra seus seguidores, a comunidade religiosa

muçulmana.

Essa violência simbólica com certeza resultaria não em outra violência também

apenas simbólica, como poderia ser, por exemplo, a queima da bandeira americana – o que

de fato já se vê em protestos antiamericanos e era previsível na reação ao Pastor Jones – ou

quem sabe com a queima da Bíblia, em represália ao símbolo religioso máximo do pastor

cristão. Se ficasse apenas nesse plano, seria menos catastrófico. Previa-se, porém, que ela

resultaria na violência física mesmo, através de atentados contra a vida de pessoas pelo

mundo afora (e não só estadunidenses!), por parte dos extremistas e dos terroristas

islâmicos, que adorariam tal provocação para arregimentar ainda mais simpatizantes para

seu movimento. O significado político dessa violência simbólica é claro, como revelam os

comentários da ocasião referidos anteriormente.

Ações do tipo da proposta pelo Pastor Jones dão fortes argumentos para autores como

Hitchens e Dawkins, que, como já demonstrado, defendem que a religião é causadora de

violência e a humanidade viverá em paz somente quando não houver mais religiões.

Portanto, essas ações não servem ao propósito da paz, que é exatamente a meta de todas as

religiões.

Conclusão: as religiões como caminhos para a

paz Qual a possibilidade de as religiões tornarem-se espaços de construção da paz na

sociedade contemporânea? Isso não será possível se continuarem os fundamentalismos, os

dogmatismos, a intolerância religiosa, pois essas atitudes negam o diálogo com os demais e

não veem no outro, no diferente, qualquer contribuição que possa ser acolhida como válida,

portadora de sentido para a própria visão que se tem. Tampouco se não houver união dentro

de uma própria religião, com cada grupo se isolando dos demais. Mas parece que todas as

religiões padecem desse mal.

No entanto, isso pode ser possível através do diálogo entre todas as religiões. Da

solidariedade que consolida valores universais que todas as religiões defendem (por que só

fazemos isso diante das catástrofes e não como compromisso permanente?). O Ensino

Religioso nas escolas é uma forma incontestável de educação para esses valores universais.

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Por fim, será possível se o aspecto institucional não for o mais preponderante. Para

Oliveira, “a religião é agregadora por natureza”.7

Como, porém, superar o fundamentalismo não só religioso, mas de todo tipo? Terrin,

lembrando Montaigne, vê a necessidade de fazer constante autocrítica, buscando o

autoconhecimento, caminho para a supressão do preconceito. A solução seria, pois, que

cada religião deveria olhar para dentro de si mesma e descobrir os eventuais endurecimentos

diante de fatos culturais que poderiam levar à deriva a própria experiência religiosa, e

distinguir adequadamente entre aquilo que lhe pertence desde seu nascimento e aquilo que

lhe é sobreposto como incrustação histórica, comparando-se e confrontando-se com as

culturas. No entanto, deveria sobretudo confrontar-se com as outras religiões, partindo de

algum grande símbolo religioso que geralmente é partilhado também por outros mundos

religiosos, para compreender como podem existir excessos de intolerância ou de

conservadorismo não justificáveis (Terrin, 1998).

Já Pedro Oro vê esta função social dos movimentos fundamentalistas: devem desafiar

os sociólogos a aprofundarem suas análises e fazer pensar melhor aquelas pessoas que

querem dar respostas religiosas para as pessoas e as sociedades do nosso tempo. Seriam,

talvez, um ruidoso protesto contra a secularização e um exacerbado racionalismo técnico,

contra a burocracia, contra a falta de laços humanos e comunitários intensos, enfim, contra

o vazio existencial da Pós-Modernidade (Oro, 1996).

Leonardo Boff (2002), resumindo o pensamento de muitos teólogos e místicos das

grandes religiões, tem ultimamente assinalado a necessidade, a urgência e a viabilidade de

uma cultura de paz entendida como uma cultura do cuidado (como relação amorosa com a

realidade), de “preservar a paz perpétua entre os povos como meio para a solução de todos

os conflitos que sempre existirão”, pois “a única arma contra a violência é a paz e não outra

violência” [...]; “são elas [as religiões] que fornecem as motivações tanto para a busca da

paz quanto para a guerra”. Boff continua: “A consciência de que todos os seres do universo

são interdependentes entre si gera uma nova ótica sobre as coisas: há uma cooperação

universal para que todos existam e sejam como são agora”. E conclui: “Daí surge a nova

7 Colocação feita em sala de aula no dia 1

o de abril de 2011, no Colóquio sobre Religião, Etnicidade e

Violência, na PUC Goiás.

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ética de cooperação, respeito, convivência, solidariedade, enfim, uma ética do cuidado”.

“Onde há cuidado não há violência; as coisas e as vidas duram por mais tempo”.

O Alcorão, como a Torá e o Evangelho, tem textos que podem embasar tanto a

tolerância e a paz quanto a violência, dependendo da hermenêutica que se faz dele. Hans

Küng, teólogo suíço, acredita que a paz mundial só será uma realidade quando as religiões

estiverem pacificadas entre si (Küng apud Boff, 2002).

A relação entre religião e violência ainda é uma questão aberta, mas temos boas

razões para sustentar que, se de um lado a religião pode gerar violência, simbólica ou física,

quando assume a forma de radicalismo fundamentalista – neste, “o outro é o demônio”

(Oro, 1996) que deve ser rejeitado, combatido e eliminado, sem a mínima concessão, de

outro lado ela possui muito mais potencial para construir a cultura de paz de que fala Boff.

Contudo, diante do massacre sanguinolento de aldeias inteiras em Serra Leoa pelos

rebeldes ou de um ato terrorista que faz num só dia milhares de vítimas em Nova York,

como pregar o “amor aos inimigos” que Jesus de Nazaré (Mt 5,44) preconizava? O

pacifismo e a não violência inerentes à mensagem cristã (aliás, presentes também nas outras

religiões, até mesmo no Islamismo) são valores permanentes que todos devemos cultivar,

evitando o recurso às armas como forma de resolver os conflitos, que sempre existirão.

Para mim, particularmente, a paz só será possível quando o preço que ela exige não

recair tão somente sobre os outros, mas cada um se dispuser a dar a sua cota de sacrifício. E

quando todos os seres humanos, nossos governos e instituições, nos convencermos de que,

como canta Marcus Viana, “a vida é tão breve e há tanto por fazer; por que, então, matar e

morrer?!”, cujos versos reproduzo a seguir na íntegra, finalizando poética e utopicamente

essas reflexões:8

Se os corações e as mentes se unirem

Num grande anel em busca da paz,

A luz do amor que aquece as estrelas

Irá nos iluminar.

A vida é tão breve e há tanto por fazer;

8 Dedico esta canção à minha professora Irene Dias de Oliveira – que realizou o Colóquio sobre

Religião, Etnicidade e Violência, na PUC Goiás –, cujo nome, Irene, em grego, significa “Paz”, a

quem muito agradeço pela pertinente abordagem deste tão importante tema da atualidade.

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Por que, então, matar e morrer?!

Crianças da África,

Crianças da América,

Crianças da Ásia,

Da Europa e das Ilhas,

Crianças da Terra,

Herdarão a paz!

Herdarão a paz!

(Marcus Viana, Tema da vida)

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PATAKI, Tamas. Racismo em mente. São Paulo: Madras, 2005.

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Fundamentalismo religioso e violência

Clóvis Ecco*

Introdução É muito comum ouvirmos a expressão “fundamentalismo” ser utilizada nas mais

diferentes situações. Não raro ela aparece relacionada com a religião. Seria o

fundamentalismo equivalente à religião? Se não, em que consiste o fundamentalismo?

Nesta análise vamos nos ater à concepção de fundamentalismo apresentada por Boff

(2002). Segundo o referido autor, o fundamentalismo não é uma doutrina, mas uma forma

de interpretar e viver a doutrina. Além do mais, o fundamentalismo representa a atitude

daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista. Ou seja, todo absolutismo

(intolerância) gera o desprezo do outro, e o desprezo gera a agressividade, e a agressividade

gera a guerra contra o erro a ser combatido e exterminado, na perspectiva fundamentalista.

O fundamentalismo tem provocado uma reflexão de distintos pesquisadores nas

últimas décadas, entre eles Dreher (2006), Boff (2002) e Terrin (1998). Sua utilização tem

servido para justificar atitudes religiosas fanáticas, um retorno à sociedade Pré-Moderna ou

mesmo práticas violentas. Afirmam os referidos autores ser indispensável que esse termo,

fundamentalismo, seja usado no plural, porque existem diferentes fundamentalismos. Todas

as pessoas têm atitudes fundamentalistas quando não conseguem ver o outro com isenção e

neutralidade (Terrin, 1998). Quanto à origem do fundamentalismo, afirma-se que ela se

encontra no universo religioso, entretanto a sua abrangência na sociedade atual ultrapassa

esse universo e ocupa o espaço da política e da economia. Sobretudo, o termo

fundamentalismo carrega consigo traços claramente preconceituosos (Dreher, 2006; Oro,

1996).

É da abrangência e das interfaces entre o fundamentalismo e outras questões da

atualidade, tanto no universo religioso como para além dele, que nos ocuparemos neste

artigo. Para tal tarefa iniciaremos por apresentar algumas funções sociais da religião e suas

relações com o fundamentalismo, em seguida traremos presentes algumas situações que

*

Doutorando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás e bolsista da

CAPES do referido programa. Email: [email protected].

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33

evidenciam a presença do fundamentalismo nas relações sociais e políticas e, por fim,

destacaremos a relação e a presença do fundamentalismo para além do universo religioso,

tecendo algumas ações preconceituosas que desencadeiam em violência, tanto física quanto

simbólica.

1. Função social da religião e suas relações com o

fundamentalismo Quando se fala do fundamentalismo, uma das primeiras ideias que se considera é que

estamos tratando do universo religioso. Sendo assim, como se dá a relação entre tal

posicionamento sociopolítico e a religião? De fato, é no universo religioso que o

fundamentalismo se torna mais evidente? Entendemos que o conjunto de bens simbólicos

religiosos produzidos no movimento fundamentalista não está desvinculado do contexto

socioeconômico-político (Oro, 1996). Sendo assim, a relação entre fundamentalismo e o

contexto no qual este se dá pode estar mediado pelo religioso, uma vez que, como afirma

Bourdieu (1998), a religião fornece justificativas para a existência humana por produzir um

sentido para a vida. Mas esse sentido, necessariamente, precisa estar contextualizado e

significado. Isto porque toda a produção operada na religião só é considerada pela

sociedade porque desempenha um papel significativo e estruturante, que é aceito ou

admitido pelo menos por determinado grupo ou parte significativa da sociedade em

questão.

Destacamos a importância da relação entre fundamentalismo e universo religioso,

uma vez que a religião tem a capacidade de provocar uma transmutação, ou seja, uma

transfiguração das instituições e das relações sociais, tornando-as irreconhecíveis

(Bourdieu, 1998). Essas relações passam a ser consideradas pelas pessoas como

naturalizadas, como se sempre tivesse sido assim, ou como algo divino que foi revelado ou

exigido por um ser superior. A religião reveste o social de sagrado, faz a correspondência

entre a ordem social e a ordem simbólica, isso lhe outorga uma função eminentemente

estruturante (política). (Bourdieu, 1998, p. 33 e 46). Sendo assim, se o fundamentalismo

encontra espaço no universo religioso, pode aumentar significativamente seu potencial

destrutivo, uma vez que sua presença se faz de forma tão sutil, tão “natural”, que dificulta a

percepção do mesmo nas relações sociais cotidianas.

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Mas o que, na sociedade atual, estaria abrindo espaço para que o fundamentalismo se

faça tão presente? Na perspectiva de Oro (1996) e Meyer (2005), a situação sociopolítica

atual, devido à vulnerabilidade social criada pelos efeitos da globalização e da

Modernidade, seria uma das causas da exacerbação do fundamentalismo religioso, uma vez

que a função social e histórica

é recuperar a autoridade sobre uma tradição sagrada que deve ser reintegrada como antídoto

contra uma sociedade que se soltou de suas amarras institucionais [...].Buscar reorientar a

sociedade e a cultura para um futuro mais desejável. [...] Os fundamentalistas não rejeitam o

mundo, mas procuram viver na modernidade, influenciando na sua orientação, mas sem dela

fazer parte (Oro, 1996, p. 142).

A globalização diante da transformação do planeta em uma grande cadeia global em

constante comunicação entre as pessoas, marcada pela intensa presença dos meios de

comunicação e de transporte e pelo crescente intercâmbio sociocultural entre os povos

distantes, permitindo às pessoas deslocarem-se em poucas horas para qualquer parte do

planeta. Com isso, a história que uma cultura produz na sua terra (pátria) está diretamente

imbricada com um conjunto planetário de relações e de valores culturais. Esses valores

multifacetados e generalizados na grande “aldeia global” desestabilizam muitas vezes as

bases culturais e os signos identitários de grupos e povos. Com isso, a postura

fundamentalista torna-se como uma alternativa de sentido e, numa perspectiva mais

particularista, busca refazer as identidades e, consequentemente, edificar uma vida social

mais desejável (Oro, 1996).

Percebe-se a iminência de que aquilo que uma cultura produz numa parte da terra

poderá ser influenciado por outras formas de interpretação por causa da facilidade das

informações, agregadas ao progresso tecnológico e à evolução das ciências.

2. A origem do movimento fundamentalista nas

religiões Perante isso, a tese dos fundamentalistas protestantes dos Estados Unidos em meados

do século XIX, no âmbito religioso, afirma que a Bíblia constitui o fundamento básico da fé

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cristã e deve ser tomada ao pé da letra. Para os fundamentalistas protestantes, interpretar a

Palavra de Deus de uma forma “liberal e aberta” é ofensa a Deus (Oro, 1996, p. 41 e 50).

Nessa perspectiva rigorosa de interpretar a Bíblia é que surge o caráter militante e

missionário de práticas fundamentalistas. Esse rigorismo protestante ganhou relevância

social e reconhecimento nos Estados Unidos a partir da década de 1950, com as Electronic

Churchs. O objetivo dessa pregação de cunho conservador ganhou novo fôlego quando

favoreceu a política do então presidente Ronald Reagan (Boff, 2002, p. 15-16).

Contudo, é importante ressaltar que nem todos os protestantes conservadores são

fundamentalistas. “A maioria não é biblicista (interpretar as Escrituras ao pé letra), pois

incorporou avanços na interpretação das Escrituras para torná-las contemporâneas” (Boff,

2002, p. 16).

Já o fundamentalismo islâmico, de fato, nunca deixou de existir, ascendeu ao cenário

político do Oriente Médio a partir da revolução xiita no Irã em 1979 (Oro, 1996) O

movimento dos aiatolás foi visto como uma grande mobilização das energias islâmicas

adormecidas pela presença da Modernidade. Boff chama a atenção ao afirmar que o

fundamentalismo islâmico, na sua origem, “significa submissão total a Deus, não é

guerreiro nem fundamentalista [...]. É tolerante com todos os povos, especialmente com os

cristãos e os judeus” (2002, p. 29).

No caso do Catolicismo, a origem do fundamentalismo visava a encontrar um meio

de entrelaçar os poderes político e clerical. “Visa-se a uma integração de todos os

elementos da sociedade e da história sob a hegemonia do espiritual representado,

interpretado e proposto pela Igreja Católica” (Boff, 2002, p. 17). Há uma preocupação e um

cuidado de manter a legitimidade hierárquica, tendo como o inimigo a combater a

Modernidade e suas liberdades e seu processo de secularização. Há uma tese que sustenta

que a Igreja Católica é a única, ou seja, fora dela não há salvação. As outras Igrejas

exercem somente uma função eclesial (Boff, 2002).

Em síntese, o fundamentalismo não é uma doutrina, mas uma forma de interpretar e

viver a doutrina. Toda a atitude absoluta que confere caráter incondicional ao ponto de vista

gera uma ação fundamentalista e uma postura fundamentalista (Boff, 2002).

3. Todo caráter absoluto gera o fundamentalismo

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Pela abordagem apresentada no item anterior, percebemos que o fundamentalismo

representa a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista. Nesse

sentido, Terrin (1998), ao abordar o fundamentalismo, afirma que

ninguém pode olhar a realidade a partir de um unmarked place. Ou seja, ninguém pode

observar a realidade de um ponto de vista “neutro”, “objetivo”, capaz de captar os limites das

posições dos outros sem incorrer, por sua vez, num olhar “deformador” da realidade, que

corresponde à sua esfera de influência, ou à sua concepção de verdade (p. 46).

Para exemplificar melhor, Terrin descreve a cena dramática que ocorreu na época da

conquista da América pelos colonizadores espanhóis. Narra que há uma estreita

interconexão entre o cultural, o religioso, o político, o econômico e o social que quase não é

possível separar para aqueles que olham de fora uma cultura (conquistadores espanhóis).

Com isso, percebe-se que a prática fundamentalista, aos olhos dos conquistadores, passa a

ser defendida como um horizonte verdadeiro de compreensão da realidade, enriquecido

pelas respectivas convicções de que é preciso cultivar e possuir a outra cultura. Os

colonizadores adotaram tal postura e a justificaram com a teologia1 (Terrin, 1998, p. 43-

44). Ou seja, a postura teológica foi a prática cultural europeia praticada contra os incas

para subordiná-los aos colonizadores.

Percebe-se está prática de subordinação da cultura inca quando se refere ao primeiro

encontro havido entre Francisco Pizarro e Diego de Almagro com o imperador inca

Atahualpa, narrado no livro de Poma de Ayala. Conta no poema que o espanhol Frei

Vicente exorta o imperador inca, de forma intimidatória, a converter-se à religião cristã.

Diante do pedido de maiores esclarecimentos pelo imperador inca Atahualpa, Frei Vicente

declara que a verdade está escrita no livro do Evangelho. Então Frei Vicente coloca o livro

(Bíblia) nas mãos de Atahualpa, que o examina atentamente e responde: “Para mim não diz

1 “A Igreja (Católica) ao se deparar com povos tão diferentes, adoradores de vários deuses, que

cometiam sacrifícios humanos em oferenda aos deuses, consideraram-os [sic] como povos sem fé,

sem cultura e na perspectiva de uma colonização até mesmo em nome de Jesus Cristo, a Igreja

começou um processo de catequização dos índios, para os tornarem seres com almas, mas nunca o

bastante para se tornarem homens livres.” CARVALHO, Lucas Borges de. Direito e barbárie na

conquista da América indígena. Disponível em:

<http://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15222/13842>. Acesso em: 20 set.

2011.

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37

nada, não me fala”. Segundo os relatos, Atahualpa arremessa o livro longe. Isso foi motivo

para a prisão do imperador inca e o início do massacre (Terrin, 1998, p. 44-45).

A postura dos espanhóis contra o imperador inca revela a postura fundamentalista dos

conquistadores espanhóis e também arrogância e intolerância, tão grande que não se dão

por conta da grande diferença estrutural de outra religião/cultura (Terrin, 1998). Por isso

que falar de fundamentalismo nas religiões sem limitar adequadamente a área histórico-

religiosa de que os indivíduos se utilizam para descrever, interpretar e construir o mundo

social torna-se uma questão muito delicada, “pois o conceito implica numa tomada de

posição e, de algum modo, contém um julgamento negativo geral sobre uma outra visão”

(Terrin, 1998, p. 45). Nessa mesma linha de análise, afirma Terrin (1998), alguém que fala

de fundamentalismo “fala dele sempre se referindo aos outros e nunca em relação à própria

concepção” (p. 45). Esse fato leva ao reconhecimento de que há um preconceito, porque

esse preconceito parte de uma origem, que é você a partir de seu ponto de vista, sem

procurar entender adequadamente os outros pontos de vista.

Por isso se afirma que a primeira coisa a ser entendida quando se estuda a práxis das

religiões é que toda religião possui uma lógica interna. Nesse caso, nós nos colocaríamos

como outsiders, que não têm nada a partilhar como fenômeno religioso vivido e sofrido em

toda a sua carga experiencial e vital (Terrin, 1998, p. 47). Só se é capaz de falar de

“fundamentalismo religioso quando a religião for analisada por um observador de segunda

ordem, ou seja, o pesquisador ou o cientista que estuda e analisa a religião numa

perspectiva imparcial” (Terrin, 1998, p.54).

Ainda nessa perspectiva de análise fundamentalista, Singer, no livro Libertação

animal (2004), faz uma comparação análoga para ilustrar o conceito de etnicidade em

relação ao desinteresse humano no cuidado aos animais, simplesmente porque eles são

diferentes. Por afinidade, Singer afirma que entre os humanos há a mesma postura em

relação aos humanos diferentes de si e aqueles que não pertencem ao seu grupo. Afirma,

ainda, que os racistas violam o princípio da igualdade ao conferirem mais peso aos

interesses de membros de sua própria raça quando há conflito entre seus interesses e os

daqueles que pertencem a outras raças. Já os sexistas (humanos) violam o principio da

igualdade ao favorecerem os interesses de seu próprio sexo. Analogamente, os especistas

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permitem que os interesses de sua própria espécie se sobreponham às maiorias de membros

de outras espécies, sejam elas humanas, sejam animais.

A esmagadora maioria dos seres humanos normais concordam e permitem que seus impostos

paguem práticas que exigem o sacrifício dos interesses mais importantes de membros de

outras espécies, a fim de promoverem os interesses mais triviais de sua própria espécie

(Singer, 2004, p. 11).

Singer segue afirmando que o padrão é idêntico em todos os casos, sejam pessoas,

sejam animais, desde que sejam diferentes e não pertençam ao seu grupo. Nessa perspectiva

de análise é plausível afirmar que o tipo de globalização econômica e financeira como

propagadora da nova ordem implantada no mundo desdenhou a grande maioria dos povos e

nações que não pertenciam ao bloco capitalista. Além do mais, a lógica individualista e não

cooperativa da cultura do capital destruiu os laços de solidariedade (Boff, 2002).

Enfim, a crença num único Deus, a crença num único sistema econômico, político e

cultural, poderá levar pessoas e nações, cada vez mais, a interpretarem o outro, o

estrangeiro, o diferente, como o inimigo a ser combatido e amalgamado. As posturas e

práticas fundamentalistas vão além do universo religioso. Estão imbricadas em todas as

atitudes e posturas dogmáticas e sectárias que estimulam práticas de preconceitos, o que

levará, concomitantemente, à violência entre os diferentes, tanto física quanto simbólica.

4. As contradições da Modernidade e a violência Como entender o fundamentalismo no contexto atual? Que papel ele estaria

desempenhando? Que relação há entre as atitudes fundamentalistas e as mudanças

socioeconômicas que estão ocorrendo na atualidade, na perspectiva da Modernidade? Para

Giddens (1991), a Modernidade é composta por todas as mudanças históricas, políticas,

sociais e econômicas que ocorreram a partir do século XVIII, com início na Europa. Entre

as referidas mudanças, o autor destaca a substituição das formas de sociedades tradicionais,

que eram baseadas na agricultura, para novas formas de produção baseadas e centradas na

produção industrial. Por causa de toda essa mudança acelerada, “o estado nação tornou-se

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muito pequeno para os grandes problemas da vida, e muito grande para os pequenos

problemas da vida” (Giddens, 1991, p. 70).

Para Boff (1991), essa lógica individualista e não cooperativa da cultura do capital

industrial destruiu os laços de solidariedade. Quando as culturas sentem-se ameaçadas pela

globalização, agarram-se à religião para autoafirmarem-se. A própria explosão de ações

violentas ocorre como forma de autodefesa e de contraofensiva do abandono à sua própria

sorte. É aí que podemos ver a explosão do terrorismo como forma de autodefesa e de

contraofensiva “dos fracos contra os poderosos, utilizando meios altamente destruidores”

(Boff, 1991, p. 36).

O fundamentalismo não possui somente um rosto religioso. Todos os sistemas, sejam

eles culturais, científicos, políticos, econômicos e até artísticos, que se apresentam como

portadores exclusivos da verdade e de solução única para os problemas devem ser

considerados fundamentalistas. O primeiro e mais bem fundamentado sistema

fundamentalista é a própria ideologia capitalista neoliberal, que se apresenta como solução

única para todos os países, pois a lógica interna desse sistema é “ser acumulador de bens e

serviços, por isso criador de grandes desigualdades e injustiças, explorador ou dispensador

da força de trabalho e predador da natureza” (Boff, 2002, p. 39).

No entanto, a partir dessa opção única de mercado que impõe a visão ideológica

neoliberal capitalista, assistimos, estarrecidos, a dois tipos de fundamentalismo político: um

representando os Estados Unidos, o outro os grupos considerados inimigos da política

neoliberal, denominados extremistas (Boff, 2002).

Nessa perspectiva de análise, Young-Bruehl (2005) e Oliveira (2011) afirmam que o

preconceito ocorre quando alguém precisa ser culpado e eliminado para restaurar a lei e a

ordem. Em relação aos Estados Unidos, por exemplo, o racismo tem sido estimulado por

uma longa tradição de famílias com dois níveis sociais: nos contextos da escravidão e, em

seguida, na servidão doméstica. No âmbito do Brasil, é importante destacar que o ódio, a

violência e a intolerância contra o diferente não acabou nem diminuiu. Vejamos como ela é

evidenciada na matéria desta reportagem da Folha de S. Paulo online:2 jovens com idades

entre 16 e 28 anos, com ensino fundamental e médio, que pertencem, em sua maioria, às

2 25 gangues apavoram gays e negros nas ruas da cidade. Folha de S.Paulo online. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0304201101.htm>. Acesso em: 11 maio 2011.

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classes C e D, usam coturnos com biqueiras de aço ou tênis de cano alto, jeans e camisetas

e são brancos e pardos – negros, não. A propósito, odeiam gays e negros. A delegada

Margarette Correia Barreto, titular da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância

(Decradi) é quem lidera o esforço de identificação dessas gangues. Atualmente, na

delegacia, afirma a delegada, há 130 inquéritos envolvendo os “crimes de ódio” –

motivados por preconceito contra um grupo social (negros e gays).

Retomando a análise de Young-Bruehl (2005), a violência direcionada a

homossexuais, vistos como infiltradores ou sabotadores da vida familiar. A família

compreendida na estruturação patriarcal ao longo do tempo como uma coalizão cristã

contra aos homossexuais. No entanto, toda e qualquer ação de violência física ou simbólica

contra homossexuais, na perspectiva patriarcal de quem a pratica, é vista como uma postura

de preservação da integridade moral da família.

Contudo, se a violência potencializa o preconceito, há também vários outros fatores

históricos e sociais para que se construa um agressor ou uma vítima. Precisa-se entender a

raiz do processo de construção de agressores e vítimas. Tal entendimento é mais importante

do que só se preocupar em detectar os perfis dos agressores. Por exemplo: todas3 as

orientações passadas para os pais e professores após o dia 8 de abril de 2011, dia após o

massacre na escola de Realengo, bairro da cidade do Rio de Janeiro, são para que pais e

professores identifiquem as características de agressores, mas pouco se falou, pela

imprensa, que o aluno Wellington, quando estudante no sétimo ano, na mesma escola do

massacre, por várias vezes fora levado ao banheiro pelos “colegas” e teve sua cabeça

colocada dentro do vazo sanitário. Há evidência de uma ação desencadeada pelo agressor

tendo como causa o sofrimento e a humilhação sofrida precocemente naquela escola.

No entanto, podemos constatar que as várias mudanças históricas e sociais, por mais

bem fundamentado que seja o sistema político e econômico, a partir da ideologia capitalista

neoliberal, apresentando-se como solução única para todos os problemas e em todos os

países, acabam criando, no seu próprio berço, uma lógica de acúmulo de bens e serviços e,

por consequência, criador de grandes desigualdades. No entanto, é possível perceber sem

3 ERTHAL, João Marcelo; LEMOS, Rafael. Polícia divulga novas gravações de Wellington falando

de bullying e detalhando planos do massacre. Disponível em:

<http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/policia-divulga-novas-gravacoes-de-wellington-falando-de-

bullying-e-detalhando-planos-do-massacre#>. Acesso em: 26 maio 2011.

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muito esforço que essa desigualdade social e cultural tem causado várias formas de ações

violentas:4 de natureza social, política e econômica; moral; sexual; de violência no ensino,

na família; de violência estética; de violência na mídia; e de violência à apologia e à falsa

liberdade (Costa, 1995).

Considerações finais O fundamentalismo não possui somente um rosto religioso. Todos os sistemas, sejam

eles culturais, científicos, políticos, econômicos e até artísticos, que se apresentam como

portadores exclusivos da verdade e de solução única para os problemas devem ser

considerados fundamentalistas. O primeiro e mais bem fundamentado sistema

fundamentalista é a própria ideologia capitalista neoliberal, que se apresenta como solução

única para todos os problemas. Por isso o fundamentalismo não é uma doutrina, mas uma

forma de interpretar e viver a doutrina. Toda a atitude absoluta que confere caráter

incondicional ao próprio ponto de vista gera uma ação fundamentalista.

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4 A palavra violência vem do latim vis, que significa “força”, também dá origem aos vocábulos

“vigor”, “vida” de vis, “vita”, e “vitalidade” (Costa, 1994).

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PATAKI, Tamas (org.). Racismo em mente. São Paulo: Madras, 2005.

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A violência no discurso homilético

Antônio Lopes Ribeiro*

José Alves Santos**

Sandra Célia Coelho Gomes da Silva***

Introdução No âmbito das Ciências da Religião, quando se analisa o fenômeno religioso, destaca-

se o papel da religião como elemento agregador da pessoa humana, entendendo-a como

instrumento mediador entre o homem e o transcendente, ao tempo em que é dispensadora

de sentido, de esperança, de harmonia e de paz. Observa-se que a busca pelo sagrado faz

parte da essência do ser humano que ao reconhecer sua incompletude, busca ansiosamente

por aquilo que possa dar sentido à sua vida. Em todas as religiões, de uma forma ou de

outra, está presente o ensinamento sobre os textos e/ou escritos sagrados numa relação que

envolve de um lado o pregador e de outro os fiéis. Esta relação pode dar-se de forma

dialógica, harmoniosa ou até mesmo conflituosa.

Cabe ao pregador religioso (padre ou pastor) a função de comunicar o conteúdo da

mensagem bíblica, que deve ser recebida de forma inteligível por seus fiéis. Contudo,

aquele que se faz portador dessa palavra, em suas homilias, muitas vezes de forma

imperceptível, acaba distorcendo-a, fazendo interpretações que, em vez de restaurar,

transformar e edificar a pessoa, acaba trazendo-lhe constrangimentos. Verifica-se que, em

algumas situações, o discurso homilético é imbuído de tonalidade emotiva e agressiva e os

textos bíblicos são explorados para legitimar posições morais ou de outra ordem com fins

de suscitar o temor e a subserviência nas pessoas e, em nome de Deus, acabam provocando,

*

Doutorando e mestre em Ciências da Religião (PUC Goiás). Especialização em Diálogo Ecumênico

e Inter-Religioso (ITESC/FAJE). Graduado em Teologia (CST) e Pedagogia (UCB/DF). E-mail:

[email protected]. **

Doutorando e mestre em Ciências da Religião (PUC Goiás); Filosofia (FSFCL/SP); Teologia (PUC

Rio). Especialização em Filosofia e Existência (UCB/DF). E-mail: [email protected]. ***

Doutoranda e mestre em Ciências da Religião (PUC Goiás). Graduada em Ciências Sociais pela

Univale. Pós-graduada em Sociologia (UFMG). Professora auxiliar da Universidade do Estado da

Bahia (UNEB)/Campus XII – Guanambi-BA. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação,

Religião, Cultura e Saúde (GEPERCS). E-mail: [email protected].

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nos fiéis, uma consciência alienada e distorcida, com fortes impactos psicológicos,

trazendo-lhes insegurança, medo e perda da autoestima.

O presente artigo pretende tratar da violência simbólica praticada no discurso

homilético por muitos pregadores atuais, no âmbito do Cristianismo, considerando a

multiplicidade de expressões religiosas que povoam o campo religioso atual. Embora no

meio católico utilize-se os termos pregação e sermão, adotaremos aqui o termo “discurso

homilético”, que é mais amplo do que a homilia ou o sermão, correspondendo à atuação

verbal do sacerdote ou pastor durante toda a celebração. Igualmente, optaremos pelo termo

violência simbólica para referirmo-nos às pressões exercidas pelos pregadores sobre os

fiéis, de forma variada, provocando-lhes alteração em seu estado emocional. Nossa

pretensão no presente trabalho não é apontar ou julgar este ou aquele pregador, mas sim

refletir sobre o seu papel durante todo o culto litúrgico, sem pretensão de darmos respostas

prontas e sim levar o leitor a refletir sobre a proposição em estudo instigando-o a novas

análises e questionamentos sobre o tema.

1. O discurso homilético: seu significado e

origem De acordo com o Dicionário de liturgia (São Paulo: Paulus, 1992. p. 569), a palavra

“homilia” origina-se do grego homiléin, referindo-se ao “ato de tomar a palavra

presidencial no decorrer de uma celebração e ordinariamente depois das leituras bíblicas”.

Tal é o sentido aqui entendido, do qual recorreremos como a “práxis” sacerdotal discursiva

durante toda a realização do culto, não se restringindo somente ao comentário das leituras.

Jerônimo Gasques (1994, p. 661) descreve a homilética como “um fenômeno de

comunicação de massa, diferenciando-se das demais formas de comunicação (social,

interpessoal, etc.)”. Em sua opinião, a homilia “se torna uma pregação dirigida a uma ampla

faixa de público que, em geral, é anônimo, disperso e heterogêneo”.

Como parte integrante da “ação litúrgica”, conforme a Sacrosanctum Concilium (SC),

n. 35, a homilia é um serviço “que o ministro presta aos outros fiéis para que compreendam

a Palavra anunciada como ‘Palavra-para-nós-hoje’” (Celam, 2005, p. 181). Na Igreja, o

Povo de Deus se reúne em torno da Palavra e espera ouvir da boca do celebrante palavras

do próprio Cristo que lhes fala ao coração, e nesse sentido a homilia é uma espécie de

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comunicação daquilo que ele tem a dizer aos seus fiéis. Na celebração, é “Deus [que] fala

ao povo. Cristo continua a anunciar o Evangelho” (cf. SC, n. 33), durante a homilia.

A homilia refere-se ao comentário da Palavra de Deus proclamada. A mesma tem por

objetivo explicá-la e contextualizá-la de acordo com a realidade vivida pela assembleia

celebrante. No caso do sacerdote, ministro ordenado, cuja função é presidir a celebração

eclesial, o mesmo tem por dever, por um princípio doutrinário, “ser fiel ao conteúdo da

Revelação transmitida pelas Sagradas Escrituras e à luz da Tradição e da reflexão teológica,

garantida pelo Magistério da Igreja”, não deve esquecer que “a Palavra de Deus é sempre

maior do que o conteúdo de sua pregação” (Osdol, 2008, p. 32). Ele, o homileta, é apenas

um mediador da palavra, um auxiliar para que a mensagem seja acolhida pelo fiel de forma

inteligível e sem distorções.

No Judaísmo dos tempos de Jesus, a sinagoga era o lugar ideal para o povo reunir-se

e ouvir a leitura dos livros sagrados, seguida de comentário homilético. Encontramos o

maior exemplo de um discurso homilético em dois momentos da atividade pública de Jesus,

no Evangelho de Lucas: a descrição da pregação de Jesus nas sinagogas, quando ao pegar o

livro do profeta Isaías, encontrou a seguinte passagem que se referia a ele:

O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a

Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a

recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano da graça do Senhor

(cf. Lc 4,18-19).

Logo em seguida, explicou a todos o sentido do que havia terminado de ler: “Hoje se

cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” (Lc 4,21). Mais tarde Lucas

mostra Jesus, ressuscitado, explicando o sentido das Escrituras aos dois discípulos a

caminho de Emaús e também aos onze discípulos: “[...] era necessário que se cumprisse

tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24,44).

Depois, veremos no Livro dos Atos dos Apóstolos os discípulos de Jesus adotando esse

modelo eclesial para anunciar a Boa-Nova (At 13,15s). Portanto, naquele tempo, a homilia

era um recurso pedagógico utilizado para explicar os textos bíblicos e a tendência era a de

repetir a forma como Jesus o fizera, com grande capacidade de convencimento.

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Na época da patrística, do século IV ao século VI, os discursos homiléticos de

grandes bispos eram ricos em conteúdo doutrinal, em forma de oratória, e foram utilizados

como modelos até os dias de hoje. Orígenes foi o primeiro a fazer uso do gênero homilia

para explicar as Escrituras, captando o seu sentido espiritual, daí tirando orientações

práticas (Sartore; Triacc, 1992, p. 559). No Oriente, sobressaiu-se também João

Crisóstomo, com seus inúmeros discursos baseados em textos bíblicos durante suas

celebrações, cuja preocupação era contextualizar a Palavra de Deus e aplicá-la às situações

cotidianas das comunidades de sua época.

No Ocidente, Agostinho é muito lembrado, em função não só de seus sermões, como

também de seu primeiro tratado exegético-homilético, compondo os quatro livros da

doctrina christiana, que tinha o seguinte critério exegético: “Quem perscruta as palavras

divinas deve esforçar-se por compreender a intenção do autor que foi intermediário do

Espírito, verdadeiro autor da escritura (1,3,23,38)”. Para ele, “o intérprete-pregador” não

deveria ater-se “somente ao sentido literal, porque toda a Bíblia está cheia de vasto

mistério, em toda parte presente e oculto, e é por isso que de um texto bíblico se podem

tirar vários significados” (Sartore; Triacc, 1992, p. 559). Para Agostinho, o pregador é

coouvinte com o fiel da Palavra de Deus: “O que vos transmito não é meu. Eu como o que

comeis, vivo do que vós viveis. Temos uma despensa comum no céu; com efeito; é de lá

que vem a palavra de Deus” (Sermo 95,1). Agostinho ensinava algumas regras “sobre a

eloquência eclesiástica, sobre como ‘fazer-se escutar com inteligência, com prazer e com

docilidade’ (1,4,26,56), cujos objetivos eram: instruir, agradar e persuadir (1.4,12,27);

pregação minuciosa, preocupação com santificar os ouvintes, vida exemplar, oração”

(Sartore; Triacc, 1992, p. 560).

Gregório Magno (papa e doutor da Igreja), no século VI, segue o mesmo método

interpretativo de Orígenes e Agostinho, e suas inúmeras homilias são compiladas nos

séculos seguintes, em homiliários, dispostas de acordo com o ano litúrgico, juntamente com

as de Agostinho e outros padres, “tanto para uso dos pregadores, quanto para serem lidas

diretamente aos fiéis” (Sartore; Triacc, 1992, p. 561).

2. O discurso homilético na atualidade

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Há um consenso entre autores que se ocupam em explicar a Modernidade de que a

mesma é caracterizada tanto pela racionalidade instrumental1 quanto pela centralidade no

indivíduo. Com isso passa a prevalecer na era atual uma visão iluminista antropocêntrica,

em detrimento da visão teocêntrica da Pré-Modernidade, fazendo com que a religião volte

seu olhar mais para o homem do que para Deus. Com esse deslocamento de uma visão

teocêntrica para uma antropocêntrica, inverte-se também a escala de valores. Aqueles

valores característicos de uma racionalidade substantiva,2 fundamentados na religião, dão

lugar, na Modernidade, aos valores de uma racionalidade instrumental, fundamentados na

ciência e na técnica. Se antes, na Pré-Modernidade, a religião, como parte integrante da

cultura, detinha grande poder na organização social, enunciava postulados de valor, a partir

dos quais o indivíduo se orientava, agora, na Modernidade, são os valores impostos pela

racionalidade que passam a exercer controle sobre sua vida.

Isso tudo afeta a religião. Se anteriormente, numa época em que a centralidade das

atenções humanas estava voltada para Deus, a religião se colocava a serviço dele, agora,

numa época em que as atenções se voltam para o indivíduo, que, como visto acima, ocupa

lugar de centralidade na Modernidade, a religião, nos dias atuais, de forma cada vez mais

diversificada, em função de uma concorrência mercadológica, acaba voltando sua atenção

mais para o indivíduo do que para Deus. Por isso ela se coloca, em primeiro lugar, a serviço

1 A racionalidade instrumental, específica da ciência e que domina o mundo atual, pressupõe “a

consecução metódica de determinado objetivo prático através de um cálculo preciso de meios

eficazes”, sem qualquer referencial ético, no nível da esfera econômica, traduzindo-se, segundo Leff

(2006, p. 244), numa “elaboração e uso de técnicas eficientes de produção e em formas eficazes de

controle da natureza, assim como na racionalidade do comportamento social para alcançar certos

objetivos (econômicos, políticos)”, plasmando-se na esfera do direito, “nos ordenamentos legais que

normatizam a conduta dos agentes sociais”. 2 A racionalidade substantiva, num sentido weberiano, “ordena a ação social em padrões baseados em

postulados de valor”. Por sua vez, esses postulados de valor “variam em conteúdo, compreensão e

coerência interna em sua relação com as bases materiais que dão suporte a toda ação que conduz à

sua consecução”. Ao contrário da racionalidade instrumental, protótipo da racionalidade moderna,

com a qual mantém um estado de constante tensão, a racionalidade substantiva “acolhe a

diversidade cultural, a relatividade axiológica e o conflito social que emergem entre valores e

interesses diferentes” (Leff, 2006, p. 244-245). Como nas sociedades tradicionais a organização

social e cultura se imbricam, segundo Maria das Dores Campos Machado (1996, p. 18-19), esse tipo

de racionalidade expressa-se na adoção, por parte dos agentes sociais, “de valores essencialmente

religiosos”, nos quais se orientam. Essa autora afirma que, por referir-se à religião, a racionalidade

substantiva estará sempre em tensão radical e insolúvel com relação à racionalidade instrumental da

ciência, característica da Modernidade.

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da pessoa, oferecendo-lhe bens simbólicos de salvação num mercado religioso cada vez

mais diversificado e plural, e onde terá mais sucesso quem tiver maior poder de sedução.

Na ânsia de atrair para si o maior número possível de fiéis, pregadores utilizam

diversos artifícios de convencimento, recorrendo a modelos de pregação pouco ortodoxos,

os quais envolvem diversas formas de pressão psicológica, alienante e adestradora. Para

atingir seu intento, o discurso homilético exacerba-se e acaba distorcendo a Palavra de

Deus, fazendo com que o pregador se esqueça de que “a homilia evoca os benefícios de

Deus em favor do ser humano, manifestados, sobretudo, em Jesus Cristo” (Beckhäuser,

2003, p. 46).

A realidade na qual vivemos hoje, com o advento do Neopentecostalismo e a

consequente neopentecostalização católica, o discurso homilético mudou, deslocando até

mesmo o espaço sagrado para teatros, cinemas, praças, estádios de futebol, feiras

agropecuárias etc. Luiz Carlos Ramos (2006, p. 120) defende a tese de que “o fenômeno

comunicacional moderno está provocando desafiadoras mudanças na práxis homilética

contemporânea: na medida em que as práticas religiosas se mostram cada vez mais

espetaculares”, ao estilo do “show business e da indústria do entretenimento”. Com isso, os

meios de comunicação de massa, que antes se ocupavam mais das coisas profanas, agora

“se convertem, inversamente, em típicas agências religiosas, entidades espirituais (virtuais),

templos eletrônicos de práticas cúlticas e missionárias, onde imagens são adoradas e [...]

proclamadas”. Se os meios de comunicação modernos ganham de um lado, tendo como um

filão inesgotável a programação religiosa em horários que antes nada lhes rendiam, por

outro lado “as expressões religiosas contemporâneas, em geral, e sua prática homilética, em

particular, buscam nos meios de comunicação os parâmetros para o seu modus operandi

(método), seu modus faciendi (técnica), e seu modus vivendi (estilo de vida)” (Ramos,

2006, p. 120).

Se antes, em Agostinho, aprendia-se que “fazer-se escutar com inteligência, com

prazer e com docilidade” correspondia a “instruir, agradar, persuadir” (Sartore; Triacc,

1992, p. 560), agora se constata que “a comunicação televisiva se dá principalmente pela

via emocional não consciente, para a qual o que importa não é a persuasão, mas a sedução”

(Ramos, 2006, p. 121). Portanto, se um dos objetivos a serem alcançados por Agostinho era

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o ato de persuadir, na realidade atual esse objetivo parece dar lugar ao ato de seduzir, que

se dá não pela via da razão consciente, mas pela via emocional inconsciente.

De acordo com Beckhäuser (1999, p. 34), entende-se que a homilia deverá ser uma

narração do plano de Deus, bem como de suas maravilhas. Ao comentar sobre essas

maravilhas, o homileta rememora a ação de Deus e de Cristo, contextualizando-as, de modo

especial na liturgia sacramental, levando-se em conta que, numa perspectiva escatológica,

o que se presentifica já é prefiguração do que há de vir. Tudo isso tem por finalidade ajudar

“os ouvintes da Palavra a viverem de acordo com o que celebraram”. No entanto, o que

vemos é que a prática homilética, como se dá atualmente, “não favorece uma homilética da

memória, da presença e da esperança” (Ramos, 2006, p. 123). Hoje, opta-se por uma prática

homilética da sedução, de grande impacto emocional, em que os fiéis entram até mesmo em

estado alterado de consciência, e nesta condição podem ser facilmente manipuláveis.

Alguns pregadores da atualidade não conseguem resistir ao poder sedutor do

espetáculo. De modo igual, também a religião, posta num mercado em franca concorrência

religiosa, não escapa à identificação com esse modelo de homilética espetacular defendido

por Ramos. Quem imaginaria há alguns anos missas envolvendo cura e libertação sendo

transmitidas pela televisão? Igualmente, os cultos neopentecostais, da Igreja Universal do

Reino de Deus, da Casa da Bênção, da Renascer e outras, mostrando pela TV pessoas sendo

curadas de todos os males, com direito até mesmo à exorcização demoníaca, tudo ao vivo e

em cores!

Os pregadores que celebram seus cultos de forma espetacularizada parecem

verdadeiros showmens, verdadeiros animadores de auditório, gesticulando, sacudindo de

um lado para o outro, aos gritos, acompanhados por músicos e instrumentos igualmente

ensurdecedores, tanto que se torna difícil definir onde termina o profano e onde começa o

sagrado. Os métodos espetaculares de sedução, utilizados pelos “animadores da fé”,

envolvem “a exploração da experiência narcisista; o emprego dos mecanismos de

transferência, facilitado pelo fascínio exercido pelas estrelas; pela recorrência aos

estereótipos simplificadores; mediante o emprego da redundância fática e enfática”

(Ramos, 2006, p. 123).

3. A violência simbólica no discurso homilético

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Como vimos, o discurso homilético, na atualidade, tornou-se uma importante

ferramenta nas mãos dos pregadores, principalmente no meio carismático e neopentecostal,

com o objetivo de convencer seus fiéis de que é a sua instituição religiosa, e não outra, a ser

seguida. Neste sentido é possível incorrer no uso da violência por meio dos discursos,

normalmente carregados de proselitismo. Antes, porém, de mostrarmos como a mesma se

dá na prática discursiva dos homiletas, veremos a seguir o que vem a ser tal tipo de

violência.

3.1. Significado de violência física e violência

simbólica Em sentido geral, a palavra violência provém do latim violentia, cuja raiz semântica –

vis – equivale a força, podendo ser entendida como capacidade de destruir, ofender ou

coagir. Para Maurício Murad (2006, p. 131), a violência é um “elemento constitutivo do ser

humano e, em consequência, de todas as suas construções culturais e redes de

relacionamento”. Uma vez apresentada “como dado da ‘natureza humana’, a violência é

vista como um dos estruturantes da história e das sociedades, das instituições e dos grupos,

manifestando-se em todos os tempos e em todos os espaços”.

Os estudos sobre a violência, conforme Marion Aubrée (2004, p. 173-174), sempre se

deram em dois níveis: violência física e violência simbólica. Norberto Bobbio (1993)

descreve a violência física como uma intervenção “de um indivíduo ou grupo contra outro

indivíduo ou grupo (ou também contra si mesmo)”. Para que se caracterize a violência

física, segundo esse autor, é necessário que haja uma intervenção física voluntária,

ressaltando-se, ainda, que exerce violência o indivíduo que tortura, fere ou mata alguém.

No preâmbulo de sua obra A dominação masculina, o sociólogo francês Pierre Bourdieu

(2010, p. 7-9), dá seu conceito de violência simbólica: é uma violência “suave, insensível,

invisível a suas próprias vítimas, que se exerce [...] pelas vias puramente simbólicas da

comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do

reconhecimento, ou, em última instância, do sentimento”. Bourdieu (2010, p. 49), associa a

violência simbólica ao poder da dominação, exercido como uma forma de coerção

mecânica e de “submissão voluntária, livre, deliberada, ou até mesmo calculada”. A

violência simbólica é descrita por Bourdieu como um tipo de violência “que extorque

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submissões que sequer são percebidas como tais, apoiando-se em ‘expectativas coletivas’,

em crenças socialmente inculcadas” (Bourdieu, 2008, p. 171) e só se processa por meio de

um ato de conhecimento e de desconhecimento prático, efetivado “aquém da consciência e

da vontade e que confere seu ‘poder hipnótico’ a todas as suas manifestações, injunções,

sugestões, seduções, ameaças, censuras, ordens ou chamadas à ordem” (Bourdieu, 2010, p.

54-55).

Independente de qualquer situação, seja no trabalho, seja na política, quer na mídia,

quer na religião, a violência simbólica é “a arma atômica psíquica da humilhação [que] é

usada sem nenhuma consideração” (Wiegand, 2007, p. 153), tornando-se, portanto, um

símbolo de poder. Entendida como tal, a violência simbólica encerra grande poder

destrutivo, pois, além de humilhar, menospreza. Perry (apud Assis, 2005, p. 192), ilustra

bem isso ao afirmar que “a violência mais destrutiva não quebra ossos, ‘quebra’ mentes. A

violência emocional não resulta em morte do corpo, resulta em ‘morte da alma’”.

Segundo Aubrée (2004, p. 174), a violência física, “que repercute sobre corpos vivos

e fica visível a todos os que a assistem está presente em numerosos rituais de iniciação

descritos por antropólogos”. Por seu lado, a violência simbólica, embora invisível, “está no

cerne das doutrinas religiosas mais elaboradas e alimenta seus discursos proselitistas”,

significando na maioria das vezes “repressão implícita e imposição de atitudes e

comportamentos que não sofrem exceções”. Nos sistemas religiosos (particularmente os de

tradição bíblica), esses dois tipos de violência alternam-se “na medida em que eles

desenvolvem conjuntamente [...] uma violência interna capaz de controlar a ortodoxia da

prática religiosa e uma violência externa, ‘imprecatória’, contra os competidores políticos e

os que desprezam a palavra divina” (Aubrée, 2004, p. 174). Neste artigo, pela relação de

poder que se dá entre os pregadores e fiéis, a violência à qual aludiremos é a do tipo

simbólica.

3.2. A violência no discurso homilético Sabemos que as pregações religiosas normalmente envolvem a intimidade das

pessoas. Ao longo da história do Cristianismo, tem-se observado que seu discurso enfatiza

a sexualidade, o pecado, o mal, o diabo, entre outros. Não se trata apenas de um construto

racional, pois geralmente se apela para o emocional, fazendo uso de voz alta, cantos com

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ritmos fortes, coreografia e gestos específicos. Dessa forma, cria-se um ambiente propicio

para que as emoções possam vir à tona. Em todos os casos, parece que o discurso

homilético tende a ir ao encontro das necessidades de seus ouvintes, pois do contrário ele

não se sustentaria.

Os discursos realizados por muitos pregadores na atualidade conseguem atrair

inúmeras pessoas, porque o ser humano é sedento de significado e a religião é dispensadora

de sentido. Vivemos em um mundo construído sobre bases frágeis e precisamos

constantemente significá-lo, transformando-o num lugar seguro, pleno de sentido. Sabemos

que somos seres frágeis e o cume dessa fragilidade se encontra na nossa intimidade. Por

meio dela deixamos transparecer nossos medos mais profundos, nossas incertezas, nossos

anseios, sonhos e esperanças.

Os pregadores religiosos têm ao seu dispor diversos instrumentos simbólicos capazes

de dar sentido, de nutrir a esperança dos fiéis. Entretanto, aqueles que acreditam ter em

mãos o domínio da palavra como instrumento eficaz de poder, talvez sem o perceberem, a

ela recorrem para manipular e alienar as pessoas. Ou seja, muitos líderes religiosos, diante

das necessidades de seus fiéis, em sua busca de sentido para suas vidas, usa a homilia como

pretexto para exercer sobre elas o controle, que pode transformar-se em violência

simbólica.

Ramos (2006, p. 126) afirma que, “no campo da sexualidade, o que se dá, atualmente,

ainda que não de maneira muito consciente, é a redescoberta do corpo como unidade

indivisível do ser humano, inclusive daquele que professa uma fé religiosa”. Os pregadores

religiosos ou homiletas, ao tomarem conhecimento disso, procuram centralizar seus

discursos sobre a dimensão sexual ou erótica, visto que a mesma envolve “toda a

sensibilidade humana: suas sensações e emoções, suas razões e crenças, seus medos e

esperanças, suas dores e prazeres” (Ramos, 2006, p. 126). Por isso “os espectros imóveis e

inexpressivos dos fiéis e sacerdotes de outrora dão lugar a corpos cheios de vitalidade que

se expressam por meio de gestos e trejeitos, danças e coreografias, requebros e gingas,

gemidos e suspiros”, o que equivale a dizer que o corpo penetrou no templo, de forma

definitiva. Ao contrário da religião tradicional, em que, numa concepção ascética, “o crente

deveria se desencarnar, isto é, deixar o seu corpo de lado, para, com toda compleição de

alma, poder prestar o seu culto ‘espiritual’ a Deus” (Ramos, 2006, p. 126), agora, numa

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época em que a religião se dá em forma de espetáculo, o corpo e alma são indissociáveis e

deduz-se que, uma vez “seduzido o corpo, a alma e o espírito o seguem” (Ramos, 2006, p.

126).

No meio da Renovação Carismática Católica (RCC) é ensinado que “o corpo é

templo onde habita o Espírito Santo” (Rahm, 1991, p. 205). Numa homilia proferida por

um pregador da Renovação Carismática Católica, na Canção Nova, em 2007, foi sugerido

que o uso do piercing era marca da besta do apocalipse, a marca de satanás, que “o jovem

não pode marcar o seu corpo com aquilo que não vem de Deus” e que muitos que trazem

piercing em seus corpos “adquirem possessões satânicas, adquirem doenças graves como

câncer” (Lettieri, 2007). O mesmo pregador dizia que a tatuagem produz o mesmo efeito.

Transcrevemos, a seguir, parte de sua homilia em que a pressão psicológica exercida sobre

os jovens foi muito intensa:

É só você observar o que os satanistas usam no corpo. Eu como um batizado, como um

consagrado ao Senhor, não posso trazer no meu corpo nada que não seja sinal de Deus. O

meu corpo é templo do Espírito Santo. Jovem quando você permite uma tatuagem ou um

piercing no seu corpo, o demônio pode te levar a morte nos acidentes, nas orgias, na bebida,

nas drogas, etc. O demônio pode entrar por esses objetos, e ele pode tirar a vida de um jovem

(Lettieri, 2007).

Esse tipo de discurso, de forte apelo emocional, pode traduzir-se num exemplo de

violência simbólica, resultando em sérios desdobramentos, quando as pessoas se encontram

em estado emocional alterado, devido à grande pressão psicológica exercida sobre elas,

podendo levá-las a reagir de forma impulsiva e violenta contra o próprio corpo a fim de

livrarem-se de piercings ou de tatuagens. Dessa forma, a violência simbólica pode acabar

se transformando em violência física devido ao grande poder coercitivo que esse tipo de

homilia pode provocar.

3.3. A violência simbólica no discurso homilético para

as grandes massas De acordo com Guy Debord (1997, p. 13), estamos vivendo na atualidade numa

sociedade do espetáculo. Para ele, o espetáculo é indissociável da atividade social efetiva.

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Dessa forma, “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de

produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”, entre os quais se

encaixa a espetacularização da fé.3 Esta, segundo Magali do Nascimento Cunha (2007, p.

152), é um somatório de elementos, estratégia e princípios que envolvem um “mercado de

bens religiosos e midiatização [tecnologia e mídia]”. Essa autora entende por

espetacularização da fé “tratar a fé e a religiosidade como algo a ser exposto, apresentado,

demonstrado da forma mais atraente possível, com a finalidade de se alcançar público”. Ela

salienta que em qualquer religião se faz presente “um componente de espetáculo, de

teatralidade, de performance [...] relacionados ao encanto e ao mistério”, que, juntamente

com os ritos e rituais, dão-lhe “esse tom e esse dom” (Cunha, 2007, p. 152).

Entendida assim, no âmbito religioso, portanto, a espetacularização da fé constitui-se

ato de transformar uma missa, um culto, que cotidianamente seguem um ritual normal,

dando-lhes um toque especial, com um enfoque extraordinário, sensacionalista, de elevadas

proporções, de tal magnitude que se tornem capazes de chamar a atenção, atraindo um

maior número possível de pessoas, elevando um evento comum à condição de um grande

espetáculo.

Nesse contexto a situação da violência no discurso homilético tende a agravar-se cada

vez mais, pois, com a adoção dos recursos midiáticos para alcançar as grandes massas,

lotando antigos cinemas, teatros, estádios de futebol, praças, alguns pregadores, encantados

com todo o aparato tecnológico que lhes é oferecido, num mercado religioso em que

concorrem entre si, católicos, protestantes, pentecostais e neopentecostais fazem de tudo

para impressionar os fiéis, chegando até mesmo a valer-se, em muitos casos, de forma

consciente ou inconsciente, da violência simbólica a fim de seduzi-los, induzindo-os à

conversão ou ao reavivamento da fé, numa verdadeira guerra santa, em que se demoniza a

crença do outro.

Na espetacularização da fé, a força do discurso homilético, somada ao poder da mídia

televisiva, é de tal alcance que supera em muito a eficácia de convencimento no que se

3 Encontramos a definição de espetacularização no Dicionário Unesp do Português contemporâneo

(Borba, 2005, p. 542): é um substantivo feminino que se refere à “atribuição de caráter de

espetáculo; ostentação”. No mesmo dicionário, espetáculo remete a representação teatral, a uma

peça, exibição pública, show etc., referindo-se, ainda, a algo que chama a atenção, que se faz com a

finalidade de “impressionar ou iludir”.

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refere à homilética no modo tradicional, que, para muitos, é coisa do passado. Assim, “pelo

mecanismo de associação e transferência de valores, comum nos processos

comunicacionais de massa, ocorre o ‘vampirismo espetacular’”, fenômeno pelo qual

“aquele que é seduzido pela mídia, reconfigura sua própria personalidade segundo os

moldes das celebridades, que passam a ditar-lhe o modus vivendi” (Ramos, 2006, p. 125).

Com isso, o discurso homilético, como prática de violência simbólica, ganha legitimação

ainda maior, pois, além do impacto religioso costumeiramente provocado, tem ainda o

impacto imagético, que naturalmente exerce grande poder sobre o telespectador.

O apelo ao violento e ao trágico, que antes dominava somente o mundo profano,

expressado em filmes que lotavam cinemas ou elevavam índices de audiência na televisão,

agora se tornou uma arma poderosa nas mãos dos pregadores religiosos para arrebanhar um

maior número possível de fiéis, que viram nessa combinação do “trágico-violento” um filão

inesgotável de munições nas grandes disputas de domínio no mercado religioso

contemporâneo. Ramos (2006, p. 126) observa que, a partir do momento em que se viu

comprovado que “a ‘crueldade vende’, as desgraças humanas se convertem numa das

principais moedas de troca no mercado televisivo, cinematográfico, radiofônico e,

inclusive, eclesiástico”, tornando-se notória a preferência por imagens midiáticas que

“oferecem solução para os problemas individuais e coletivos por meio do emprego da força,

da agressividade”, tendo como consequência a transformação do discurso homilético

tradicional num discurso homilético de forma espetacular, que “consiste na comercialização

da dor” (Ramos, 2006, p. 126). É a violência simbólica que se pratica e se transmite pela

televisão, ao vivo e em cores, cujos apelos emotivos tocam o mais íntimo das pessoas,

levando-as muitas vezes a práticas extremadas de autocorreção a fim de merecerem o

perdão de Deus.

Assim, vemos constantemente, pela televisão, verdadeiros espetáculos da fé, em que

pessoas “possuídas pelo demônio” são exorcizadas; pessoas que relatam curas,

caracterizando serem prediletas de Deus, enquanto outras não são curadas, recaindo sobre

as mesmas a responsabilidade disso pela falta de fé ou não conversão. Enquanto umas são

agraciadas com vários tipos de bênçãos, por terem sido fiéis a Deus (no dízimo e nas

ofertas), outras são excluídas, muitas vezes por não terem dado de forma digna as ofertas

e/ou os dízimos devidos a Deus. De forma resumida, como enfaticamente afirma Lévinas:

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56

“A bondade, para a qual a religião convida, não realiza o Bem, e a purificação que ela

propõe não limpa absolutamente” (Lévinas, 2004, p. 41).

Considerações finais Procuramos, de forma simples, no decorrer deste artigo, conceituar e fundamentar a

prática da violência simbólica presente no discurso homilético. Observamos que,

independentemente de linhas ou correntes teológicas, o pregador que engendra o discurso

homilético incorpora na sua subjetividade elementos experienciados e vividos por ele

próprio. Embora possa ter assimilado alguns conhecimentos teóricos em sua formação, ou

vivência religiosa, é recorrente o uso de elementos de persuasão, de ordem empírica.

Certos pregadores absorvem gradativamente os discursos de outros pregadores, e os

reproduzem de acordo com suas próprias conveniências, às vezes ipsis litteris, mesmo

sabendo que o conteúdo do discurso possa provocar transtornos psíquicos e emocionais nos

fiéis, tais como: ameaças ou medo do inferno, do diabo e de satanás. Essa postura pode ser

entendida como forma de violência simbólica que se pratica nos discursos homiléticos

durante as celebrações. Observa-se que a violência praticada por um determinado pregador

pode não se ocorrer de forma gratuita. Muitas vezes tem como fim teleológico o

econômico.

Percebe-se que, ideologicamente, todo o rito celebrativo e persuasivo encaminha-se

para tal propósito: se você “paga o que deve a Deus”, logo “será perdoado” e receberá em

“dobro todos os bens”. Tais comportamentos, fundamentados na teologia da prosperidade,

têm seu lugar-comum especial, encaixando-se perfeitamente nos cultos pentecostais e

neopentecostais nas Igrejas Evangélicas, em cultos das Igrejas do Protestantismo histórico

renovado (neopentecostalizadas), fazendo-se presente também nos cultos da Igreja

Católica, cujos sacerdotes, geralmente da RCC, aderiram ao modelo “discurso homilético

espetacular”.

Infere-se de tudo o que até aqui dissemos que a violência se faz presente, muitas

vezes imperceptível, no discurso homilético, qualquer que seja seu conteúdo, o que nos leva

a concluir que, numa situação de forte concorrência no mercado religioso atual, com a

adoção dos recursos midiáticos, principalmente da televisão, em que grandes massas são

atingidas pela prática discursiva homilética, é que a religião, de uma forma ou de outra,

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57

exerce grande impacto psicológico sobre as pessoas, traduzindo-se em várias formas de

violência simbólica.

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A alteridade em confronto:

medo e dominação

Azize Maria Yared de Medeiros*

Introdução As sociedades contemporâneas apresentam algumas características específicas,

resultantes de fatores conhecidos, como a própria expansão do sistema capitalista, o rápido

desenvolvimento técnico-científico e de informação. O que passou a ser chamado de

progresso reduziu tempo e espaço, ultrapassando fronteiras, ampliando mercados

consumistas e alterando muitos hábitos e costumes locais, ou seja, de certo modo,

homogeneizando, em nome de uma política de mercado, desejos e vontades de povos

diversos. Essas sociedades apresentam, como manifestação bastante específica de um

modelo de desenvolvimento baseado no chamado “livre-comércio”, um reiterado

compromisso com o novo. A necessidade de novas descobertas, ofertas e aquisições

traduzem uma constante mobilidade, dinamicidade e progressiva alternância de hábitos e

costumes.

O multiculturalismo, também decorrente das condições impostas pelo modelo de

desenvolvimento capitalista, tem se manifestado como uma das mais significativas

categorias de análise das sociedades globalizadas. A própria história do Ocidente apresenta

épocas de intensa pluralidade cultural, como no mundo helênico, no Império Romano ou na

Índia. As grandes navegações inglesas, espanholas e portuguesas, em seus contatos com os

povos das Américas ou africanos, bem como as rotas comerciais chinesas e árabes,

representaram encontros e desencontros de culturas variadas e nem sempre pacíficos.

No entanto, todos os povos e etnias que, devido basicamente ao comércio, circulavam

por estados, países ou impérios historicamente conhecidos, permaneciam firmes e leais às

suas tradições e apresentavam uma escala axiológica peculiar, herdada de seus ancestrais e,

*

Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião (2010) e Mestre em Ciências

da Religião (2007) pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Licenciada em Filosofia e

Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (1973). É especialista em Psicologia Transpessoal

Aplicada pela Universidade Católica de Goiás (2004).

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provavelmente, sustentada pela tradição oral que mantinha suas identidades e sentimento de

pertença, permitindo mútuo reconhecimento, bem como uma capacidade de resistência e

reação conjunta diante de ameaças.

As sociedades contemporâneas, no entanto, resultam de um progresso técnico-

científico alicerçado no racionalismo e alavancado pela disseminação de um sistema

econômico que alterou as feições de povos, etnias e nações.

As mudanças provocadas por esse tsunami denominado capitalismo arrastou em sua

corrida desenfreada o ser e o querer de povos, grupos comunitários e etnias que perderam

suas formas de expressão e não tiveram outra alternativa senão mesclarem-se na onda

gigante que calou suas vozes, rompeu suas fronteiras, fragmentou suas identidades e

forçou-os a dispersarem-se pelo globo, recebendo, em algumas regiões, o título de

refugiados. Essa é uma realidade incontestável e irreversível. As próprias mudanças

climáticas provocaram algo completamente novo no cenário mundial, os chamados

refugiados ambientais: povos que precisaram deixar suas terras e foram acolhidos por

outras nações. Um fenômeno específico dos tempos atuais e que, ao que tudo indica, tornar-

se-á uma ocorrência constante a curto prazo. Preocupação social e política permanente que

exigirá a formulação de inéditos acordos internacionais.

Grupos de árabes ou de diferentes etnias africanas, muçulmanos ou não, espalhados

pelas cidades europeias, não são, em essência, diferentes das dezenas de bolivianos,

coreanos, palestinos ou angolanos lutando pela sobrevivência no Brasil, em particular na

cidade de São Paulo.

Nesse processo de mudança a religião apresenta-se como elemento significativo, pois

mostra-se componente essencial na vida dos indivíduos e que mantém o sentimento de

pertencimento dos grupos resultantes de um nomadismo forçado e espalhados por zonas

urbanas estranhas às suas origens. O sentimento religioso certamente fortalece identidades

em vias de desestruturação ou já bastante fragmentadas.

1. Alteridade em confronto e a religiosidade Língua e religião continuam sendo os fatores que agregam antigos e novos migrantes,

provocando encontros e desencontros variados e mesclados pelo sentimento de temerosa

aversão diante do novo e do desconhecido. Demonstram, de forma consciente ou não, um

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sentimento de repulsa e, ao mesmo tempo, de atração em face das realidades

desconhecidas.

Surge a questão sobre esse outro e sua identidade, tão diferente de si, mas que, de

algum modo, exerce sobre si extremo poder. A realidade social suscita desafios estranhos e

inesperados. Mas o outro, esse desconhecido, pode também desempenhar um papel

agregador. Nada melhor do que uma ameaça comum para fortalecer a união de um grupo.

O medo pode enfatizar valores comunitários relacionados com “um tempo” em que as

coisas não eram assim tão assustadoras. A solidariedade manifesta-se no reconhecimento da

ameaça mútua. Fortalece laços comuns e a busca de soluções conjuntas que possam reduzir

a constante sensação de desconforto e insegurança proporcionada pela alteridade

ameaçadora.

Algumas dessas soluções são construídas por meio das religiões. O componente

religioso vem despertando um progressivo interesse no mundo contemporâneo, não só da

comunidade acadêmica, mas das autoridades públicas, da mídia e das pessoas em geral,

principalmente pelo aspecto relacionado à violência perpetrada por grupos religiosos

denominados comumente fundamentalistas.

Após anos de inúmeras discussões que alardeavam o fim das religiões e a definitiva

secularização da sociedade, concluiu-se que a religião estaria condenada à esfera do

privado. Diante do acentuado racionalismo das sociedades capitalistas estimulando grande

progresso técnico-científico, a visão da religião como fator de coesão, com poder para

alterar estruturas sociais, parecia fadada ao desaparecimento. No entanto, a realidade atual

não confirmou tais previsões. Ao contrário, permanece uma incessante busca religiosa no

mundo contemporâneo, seja no número inesperadamente crescente de novas Igrejas,

principalmente entre as classes populares, seja na permanente busca de uma experiência

subjetiva do sagrado fora das instituições religiosas manifestada, mais especificamente,

pelas classes urbanas altamente escolarizadas. Há um acentuado retorno da religião à esfera

pública, exigindo muitas vezes intervenções do Estado em função de atos discriminatórios e

violentos praticados contra os que divergem ou ameaçam determinados grupos.

Uma reflexão sobre o confronto com a alteridade, contudo, salienta a semelhança das

reações de encontro com aquilo que é misterioso, seja ele concreto, manifestado por

pessoas e circunstâncias reais; seja ele simbólico. Ambos se apresentam para quem

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vivencia a experiência como algo ameaçador. O duplo e aparentemente contraditório

caráter da experiência de alteridade é vivido por grupos e comunidades inseridas em

realidades novas e desconhecidas. O novo atrai e amedronta.

O medo do outro é capaz de converter-se em ameaça geradora de conflitos, o que,

inúmeras vezes, expressa-se por meio de atitudes hostis e violentas. A reação concreta do

grupo vai depender de suas lideranças. Se tais ameaças forem transformadas em ideologia

que busca sobrepor-se às demais comunidades instalando poderes paralelos, estará criado

um estado de exceção, quando, então, a violência poderá transformar-se em instrumento de

convencimento e coerção. O outro será visto com repugnância e temor e serão estimuladas

e alimentadas as diferenças culturais e religiosas – jamais as semelhanças humanas.

O novo sempre representa uma possibilidade de perda de sentido. Identidade e

sentido são categorias relacionadas com o ser, e a sensação de estranheza derivada da perda

da identidade mergulha o ser humano no caos: é preciso retomar o equilíbrio. A existência

humana é povoada por inúmeras experiências de morte e renascimento, e a busca do

equilíbrio é uma constante necessária à sobrevivência humana. Como nos diz Eliade

(2001), o ser humano é constituído de atividades conscientes e conteúdos irracionais. E

esses conteúdos irracionais do inconsciente revelam imagens e figuras mitológicas que

demonstram uma busca de sentido ontológica. As crises existenciais humanas apresentam,

frequentemente, perda de sentido – um súbito desconhecimento do ser. Algo que o torna

frágil, vulnerável e atemorizado.

As perguntas básicas existenciais sobre a própria origem e destino são determinantes

para a formulação de sentido, e as respostas necessariamente perpassam o transcendente,

aquele outro que se relaciona com a alma. Estará instalado o desequilíbrio se as

circunstâncias que envolvem um grupo colocam em dúvida a veracidade de seus valores e

confrontam o sentido primário de sua existência.

A nomia precisa ser recuperada pelo grupo – o que é reforçado pelas lideranças que

agregam os indivíduos em torno de algo comum, fortalecido pela língua e pela

religiosidade. Formam-se, assim, no mesmo espaço social, diferentes grupos, com

interesses diversos confrontados, muitas vezes, com um modo de existência já estabelecido

e bastante anterior à sua chegada. Questões subjetivas de ordem existencial são canalizadas

para busca de soluções no âmbito social. É uma necessidade vital para o ser humano livrar-

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se o mais rapidamente possível daquilo que o atemoriza. Eliminar, portanto, de forma

definitiva os fatores que provocam instabilidade emocional e, consequentemente, a

desestruturação coletiva.

Não há, portanto, como desvincular de uma análise da alteridade a discussão sobre

estruturas sociais e o poder, relacionados aos aspectos de dominação e submissão. Poder

compreendido, aqui, como a relação que se estabelece entre dominadores e dominados,

seguindo a linha de análise defendida pela filósofa Hannah Arendt (2009).

2. Poder, violência e o fundamentalismo Embora seja bastante comum o estabelecimento de uma relação de reciprocidade

entre poder e violência, Arendt discorda da afirmação de que o poder necessariamente

decorre de atos violentos. Em seus longos trabalhos sobre estados totalitários e sua análise

das sociedades modernas, Arendt afirma que a violência surge exatamente quando a

autoridade começa a perder espaço, ou seja, quando não há mais consenso a respeito de

quem detém o poder.

Só há poder, diz-nos a filósofa, quando se preserva a pluralidade humana e há

consenso sobre a autoridade instituída. Quando há multiplicidade de grupos e não há

consenso, o poder não é instituído, o conflito se instala e ocorre a violência. De acordo com

Arendt, a violência é sempre um elemento instrumental. Segundo ela, o domínio pela pura

violência advém exatamente de onde o poder está sendo perdido. Autoridade, poder e

violência não são a mesma coisa. Embora poder e violência usualmente apareçam juntos,

são fenômenos distintos. Para Arendt, a essência de todo governo é o poder, não a

violência. Segundo a filósofa, a violência precisa de justificação, e tudo aquilo que precisa

ser justificado não é essência de nada. O poder jamais pode emergir da violência, a

obediência sim. Do cano de uma arma, diz-nos Arendt, “emerge o comando mais efetivo,

resultando na mais perfeita e instantânea obediência” (2009, p. 70). O terror, segundo ela,

não é o mesmo que a violência. É uma forma de governo que surge da violência, quando

esta destruiu todo o poder e, em vez de abdicar, permanece com o controle total.

A análise de Arendt esclarece o que ocorre nas sociedades contemporâneas, quando o

pluralismo cultural impede que haja consenso e o poder torna-se incômodo, é questionado e

deixa de ser reconhecido. É preciso estabelecer, portanto, uma distinção entre a violência de

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Estado, que pode vir a instaurar o terror, e a violência utilizada por grupos minoritários que

buscam ser ouvidos. As manifestações de violência são necessariamente resultado de

sociedades em crise, onde nunca houve, ou há muito deixou de existir, uniformidade de

opiniões. De qualquer maneira, a violência é sempre um instrumento.

Desse modo, o ressurgimento aguçado do fundamentalismo manifesta exatamente a

ausência de consenso relacionado com o poder instituído. A violência, nesse caso, surge

como um grito de reafirmação de existência daqueles que se julgam excluídos das

estruturas de decisão e profundamente hesitantes com a própria possibilidade de escolhas

pessoais e decisões que são obrigados a tomar diante das ofertas que uma sociedade

globalizada, regida pelo livre-comércio, apresenta.

Zygmunt Bauman, sociólogo que mostra a vontade de liberdade como a principal

característica da Pós-Modernidade, afirma que “o fascínio do fundamentalismo provém de

sua promessa de emancipar os convertidos das agonias da escolha” (1998, p. 228). Segundo

o autor, o fundamentalismo tornou-se um remédio radical contra o veneno da sociedade de

consumo.

É possível afirmar que os indivíduos encontram na autoridade do movimento as

respostas do que pensar, dizer ou fazer, quase um resgate da escala de valores das tradições

ancestrais; algo capaz de fornecer sentido à vida e propiciar uma sensação de controle sobre

a incessante chegada do novo.

As relações sociais transformam-se da mesma maneira que são alterados os usos,

costumes e juízos de valor. Para que o sistema expanda em sua geração de lucro, é preciso

homogeneizar anseios e atitudes. A economia globalizada, por meio do livre-comércio,

transformou todos os humanos em potenciais consumidores. No entanto, a desigualdade

continua se aprofundando entre nações e entre grupos no interior das mesmas nações.

A recém-adquirida liberdade individual, resultante de todo progresso técnico-

científico, torna-se uma carga excessiva e insuportável e, de acordo com Bauman, o

fundamentalismo religioso “pertence a uma família mais ampla de soluções totalitárias ou

protototalitárias” (1998, p. 229), que podem incluir o fundamentalismo étnico, orientação

tribal ou racial. Para esse autor, o fundamentalismo representa a oferta de uma

racionalidade alternativa e, como todas as racionalidades, ele seleciona e divide. Desse

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modo, coloca a segurança e a certeza em primeiro lugar e condena tudo o que solapa essa

certeza, principalmente os exageros e as extravagâncias da liberdade individual.

Certamente, a maneira como o mundo se apresenta hoje favorece o surgimento de

todos os tipos de radicalismos, pois a insegurança faz parte intrínseca do vida das pessoas

nas sociedades contemporâneas.

3. Desenvolvimento econômico e os excluídos Segundo os economistas Faux e Mishel, no ano de 1999, o diretor do Banco Mundial,

ao se referir sobre o mercado financeiro global, afirmou que, no nível das pessoas, o

sistema não estava funcionando. Os autores citados se perguntam “que outro nível existe”,

enfatizando que “todos sabem que o sistema não está funcionando para a maioria das

pessoas” (Faux e Mishel apud Giddens; Hutton, 2004, p. 137). E isso se torna cruel quando

há uma tentativa de gerar competitividade entre nações desiguais.

O Nobel de Economia Amartya Sen afirma que

vivemos em um mundo de opulência sem precedentes, de um tipo que teria sido difícil até

mesmo imaginar um ou dois séculos atrás [...] Entretanto, vivemos igualmente em um mundo

de privação, destituição e opressão extraordinárias. Existem problemas novos convivendo

com antigos – a persistência da pobreza e de necessidades essenciais não satisfeitas, fomes

coletivas e fome crônica muito disseminadas, violação de liberdades políticas elementares e

de liberdades formais básicas e da condição de agente das mulheres e ameaças cada vez mais

graves ao nosso meio ambiente e à sustentabilidade de nossa vida econômica e social (2010,

p. 9).

O fundamentalismo religioso, com suas manifestações de violência, seja material,

seja simbólica, torna explícita a crise das sociedades. Aos riscos naturais foram

acrescentados “os riscos fabricados” pela ciência e pela técnica, conforme afirma o

sociólogo Ulrick Beck (in Giddens; Hutton, 2004, p. 242). E, acrescenta ele, as análises

históricas e teóricas de Simmel, Durkheim e Weber referiam-se a uma realidade

completamente diferente. As pessoas, diz Beck, eram lançadas das certezas religiosas e

cosmológicas para o mundo da sociedade industrial e hoje elas são “transplantadas das

sociedades industriais nacionais da primeira modernidade para o torvelinho multinacional

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da sociedade de risco mundial”. As pessoas, segundo o sociólogo, são forçadas a viver em

contradição: “[...] uma vida vivida em conflito entre diferentes culturas, a invenção de

tradições híbridas”. Individualização, desse modo, significa destradicionalização, ou seja,

“não há modelos históricos para a condução da vida”. Tal cenário fortalece o surgimento de

movimentos nacionais interessados na restauração da autonomia e da própria capacidade de

determinar seus destinos, fazendo escolhas definidas por antigas tradições religiosas.

Tão diversa quanto complexa é a realidade das religiões nesse mundo globalizado.

São inúmeras as ofertas de salvação, tendo sido o campo religioso transformado em um

grande mercado submetido às mesmas leis que regulam oferta e procura de bens e serviços.

A progressiva busca por novos “consumidores” utiliza técnicas de marketing sedutoras e

irresistíveis. Essa postura, acentuadamente representativa da interferência da Modernidade

nas religiões, também contribui para fomentar os fundamentalismos, cuja essência é

exatamente opor-se à intromissão de qualquer indício de Modernidade nas suas crenças

religiosas.

Conclusão Em meio à crise de feições diversas, acrescida de novidades frequentes e de difícil

assimilação, o medo instaura um estado de insegurança e perplexidade. As sociedades

tornam-se campo fértil para o surgimento de conflitos variados. Líderes, religiosos ou não,

utilizam-se da fragilidade de indivíduos assustados, inseguros e desestruturados para servir

a seus próprios interesses e impor verdades pessoais, assegurando-os de que essas são as

certezas e verdades absolutas, instaurando processos de total dominação.

A característica mais evidente das sociedades contemporâneas globalizadas é

exatamente a constante manifestação da novidade e de situações inesperadas. Algo que

certamente acentua medos e inseguranças. O processo de dominação decorre da

necessidade de manter o controle sobre situações e pessoas. Acreditar que Deus está do seu

lado torna o outro um desassistido, equivocado, cujos caminhos precisam ser corrigidos. As

atitudes arbitrárias perpetradas em nome de Deus representam uma tentativa de retorno à

ordem e uma desesperada fuga do caos. Mesmo que esse caos esteja ocorrendo apenas, num

primeiro momento, no interior da psique humana. O controle sobre o outro, seja por meio

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da violência simbólica, seja física, representa a eliminação de uma constante ameaça de

retorno à desordem.

Teixeira afirma que ao sentimento de insegurança responde-se com uma redução

cognitiva defensiva ou ofensiva e, continua o autor, diante do risco dissolvedor da dúvida,

reage-se com a afirmação ortodoxa (2008, p. 195). Portanto, conclui Teixeira, ou os grupos

comunitários fecham-se em guetos, ou empenham-se em uma perigosa cruzada de

reconquista e imposição de suas tradições. De qualquer modo, essas duas respostas

apresentadas por aqueles que se julgam ameaçados pelo modelo de desenvolvimento

implantado na Modernidade não significam uma solução para o problema da exclusão e das

violências.

A sociedade humana, que hoje vive praticamente refém da tecnociência e de

estratégias voltadas para o lucro e imersa em um mundo sobrecarregado pela capacidade de

destruição da própria vida, precisa, necessariamente, para manter a harmonia social, criar

soluções de consenso por meio do diálogo. Tanto mais plurais e complexas as relações,

mais urgente torna-se o diálogo.

É possível apresentar como conclusão os resultados das pesquisas do biólogo

Maturana (1977, p. 185), que afirma que “a origem antropológica do Homo sapiens não se

deu através da competição, mas sim através da cooperação, e a cooperação só se pode dar

como uma atividade espontânea através da aceitação mútua, isto é, através do amor”.

Do mesmo modo, o filósofo francês Henry Bergson (1978) concluía, em seus estudos

sobre a moral e a religião, que cabe à humanidade decidir se quer sobreviver, e apontava

como solução o misticismo, afirmando ser este o responsável pelas grandes transformações

morais da humanidade. O verdadeiro misticismo, para Bergson, apresenta “o sentimento

que têm certas almas de ser os instrumentos de um Deus que ama a todos os homens com

igual amor, e que lhes pede que se amem uns aos outros” (1978, p. 257).

Nos descaminhos apresentados pelas sociedades em crise, o diálogo inter-religioso

pode certamente ser apontado como a única resposta capaz de evitar a disseminação de

atitudes radicais de opressão, desrespeito e cerceamento das diferenças e semear tempos de

não violência, de paz e cooperação permanente entre os povos.

Referências

Page 68: Religião, violência e suas interfaces São Paulo Editora Paulinas

68

ARENDT, H. Sobre a violência. Trad. de André de Macedo Duarte. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2009.

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama.

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BERGSON, H. As duas fontes da moral e da religião. Trad. de Nathanael C. Caixeiro. Rio de

Janeiro: Zahar Editores, 1978.

ELIADE, M. O sagrado e o profano. Trad. de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

GIDDENS, A.; HUTTON, W. (orgs.). No limite da racionalidade; convivendo com o capitalismo

global. Trad. de Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro: Record, 2004.

MATURANA, H. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1997.

OTTO, R. O sagrado; os aspectos irracionais na noção de divino e sua relação com o racional.

Trad. de Walter O. Schlupp. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/EST/Vozes, 2007.

SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. Trad. de Laura Teixeira Mota. São Paulo: Companhia

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TEIXEIRA, F.; MOTA DIAS, Z. Ecumenismo e diálogo inter-religioso. A arte do possível.

Aparecida: Editora Santuário, 2008.

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Exílio e violência: uma leitura a partir dos

Quatro Cantos do Servo de YHWH

Rosemary Francisca Neves Silva*

Introdução Apresentaremos as consequências do exílio, isto é, o que levou os israelitas exilados a

passarem por tal violência, enfatizando que foi por meio do cotidiano vivenciado junto que

os exilados conseguiram vencer a dor, a humilhação e o sofrimento causados pelo exílio.

Por meio do cotidiano e da prática religiosa conseguiram libertar-se da violência

experienciada em terras babilônicas.

O trabalho será desenvolvido conforme os seguintes passos: 1) Na trilha da história:

conceituando alguns termos; 2) Um cotidiano marcado pela violência; 3) Violência

cultural; 4) Os exilados e sua experiência religiosa no exílio da Babilônia; e Conclusão.

1. Na trilha da história: conceituando alguns

termos Para entender os quatro cantos e toda a história do exílio da Babilônia, vamos deter-

nos, por alguns instantes, na compreensão de alguns termos que constituem a base de nossa

reflexão como: Dêutero-Isaías, Quatro Cantos do Servo de YHWH, Servo e Exílio.

1.1. O que vem a ser Dêutero-Isaías O Livro de Isaías é, em extensão, o maior dos livros bíblicos, composto por 66

capítulos, com situações históricas de épocas e lugares bem diferentes. No final do século

XIX, o alemão Bernard Duhm, em seu comentário ao Livro de Isaías, propôs a divisão do

livro em três partes distintas, sendo: Proto-Isaías, século VIII a.C.: Is 1-39; Dêutero-Isaías,

século VI a.C.: Is 40-55; e Trito-Isaías, século V a.C.: Is 56-66 (Alonso Schökel; Sicre

Diaz, 1988).

*

Doutoranda do Programa em Ciências da Religião da PUC Goiás e bolsista da CAPES. E-mail:

[email protected].

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Deter-nos-emos no Dêutero-Isaías 40-55, o qual é considerado por vários estudiosos

como um profeta anônimo e o maior do período do exílio. Sua atuação aconteceu em

meados do século VI a.C. A mensagem do Dêutero-Isaías está enraizada na fé em Deus,

fonte de toda harmonia (Auneau, 1992). Foi o Dêutero-Isaías que consolou os israelitas

exilados e anunciou a todos eles o fim do sofrimento e a esperança na libertação. No

Dêutero-Isaías há os Quatro Cantos do Servo de YHWH, que também foram teorizados por

Duhm, cuja compreensão buscaremos neste artigo.

1.2. Os Quatro Cantos A denominação Quatro Cantos do Servo de YHWH parte do alemão Duhm, que, na

tentativa de elucidar a situação que estava sendo gerada acerca do Dêutero-Isaías, afirmou

que em Is 40-55 há quatro Cânticos do Servo de YHWH (42,1-4; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-

53,12), que originalmente nada têm a ver com seu contexto atual, nem foram escritos pelo

Dêutero-Isaías (Alonso Schökel; Sicre Diaz, 1988).

Os Quatro Cantos do Servo de YHWH, chamados também de poemas – os quais são

considerados como: primeiro: vocação (42,1-4), segundo: missão (49,1-6), terceiro:

resistência (50,4-9) e quarto: martírio (52,13-53,12) – apresentam, assim, a caminhada e

missão do Servo no meio do povo sofrido (Schwantes, 1987).

No que tange à denominação dos quatro textos, não há uma unanimidade com relação

a um termo comum, mas há várias controvérsias. Existem estudiosos que defendem a

denominação cantos, como é o caso de Bernard Duhm e outros seguidores, enquanto

Croatto e outros estudiosos chamam de poemas, e já houve quem os chamasse de carmes.

Também se chamam de Servo de YHWH, Servo do Senhor ou Servo Sofredor. Os Quatro

Cantos são considerados uma espécie de roteiro, cartilha que direciona os quatro passos que

o povo deve dar na caminhada como Servo de Deus (Mesters, 1985).

Portanto, tanto a delimitação do número de Quatro Cantos quanto a delimitação de

cada texto, e a própria denominação Cantos ou Cânticos, partem da teoria de Duhm, a qual

desencadeou várias controvérsias e estudos. Apesar das controvérsias, a teoria mais aceita

ainda continua sendo a de Duhm, que apresenta um personagem anônimo, conhecido como

Servo.

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71

Nos Quatro Cantos há a presença do Servo, aquele que faz a experiência de dor e

alegria no meio povo, e o mesmo é responsável para proporcionar ao seu povo a esperança

no Deus que liberta.

1.3. O termo profeta-Servo no período do exílio No período do exílio (séc. VI a.C.), a pregação do profeta do Dêutero-Isaías se

concretizava com a esperança do povo de Israel, a esperança na mão poderosa de Deus que

prometia um novo céu e uma nova terra. O profeta anunciava a esperança e convidava o

povo de Israel a participar da Aliança de Deus através da conversão.

Nesse contexto de sofrimento o profeta precisava possuir algumas características,

entre elas a vocação. O profeta foi alguém escolhido, chamado, um vocacionado de Deus.

A ação do profeta na Bíblia sempre foi marcada pela iniciativa de Deus. Nenhum profeta

verdadeiro se autoproclamava. Ele ouvia o chamado de Deus e respondia livremente,

deixando-se ser guiado. Muitas vezes esse chamado causou certa insegurança e resistência,

como aconteceu com Jeremias, que teve medo de responder ao chamado de Deus, mas,

depois que fez a experiência de Deus, não teve coragem de ficar calado e respondeu ao

chamado colocando-se inteiramente à disposição desse Deus (Araújo apud Bingemer;

Yunes, 2002).

Tendo em vista que o profeta foi um vocacionado e chamado por Deus para realizar

determinada missão, podemos afirmar que o Servo foi um profeta (cf. Jr 1,5; Is 49,1-5),

pois possuía as mesmas características do profeta-servo que apareceu no exílio. Ele foi um

vocacionado de Deus, anunciava a justiça, denunciava as injustiças, isto é, ele possuía todas

as características de um profeta, que são a justiça, a solidariedade e a mística. A figura do

profeta-servo, o chamado por Deus para realizar uma missão específica nasceu no exílio da

Babilônia.

É interessante perceber que Deus usou o profeta-servo do exílio narrado por Isaías

para revelar seu amor libertador. Deus, por meio do profeta-servo, conduziu e libertou seu

povo das mãos dos opressores. Foi no meio do povo sofrido que o profeta fez a experiência

de um Deus presente nos acontecimentos diários deste povo e a ele se rendeu (Is 52,6; 58,9;

65,1). Afirmamos também que o profeta-servo viveu no meio do povo sofrido,

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72

experienciou Deus por meio da dor e do sofrimento e teve a coragem de anunciar a

esperança de libertação.

1.4. O que vem a ser exílio e as consequências que

levaram a existir o exílio babilônico Ao longo da história do Povo de Deus, existiram vários exílios que marcaram este

povo, mas o maior deles e o mais lembrado foi o exílio da Babilônia, que aconteceu de 586

a 538 a.C. Exílio não é apenas opressão, deportação ou fuga, mas é falta de dignidade

vivida muitas vezes em seu país de origem.

No ano de 597 a.C., Joaquim, o rei de Judá, por seguir os passos de seu pai na

política, deixou de pagar tributo à Babilônia. Em consequência de sua atitude, o imperador

Nabucodonosor atacou a cidade de Jerusalém (2Rs 24,10-11). Nessa época, levaram cativos

para a Babilônia o rei em exercício, sua mãe, as mulheres, os altos funcionários da corte, os

militares, os grandes e ricos proprietários de terra e os notáveis ferreiros e artesões. Ao

atacar Jerusalém, Nabucodonosor invadiu o templo, levando todos os tesouros para a

Babilônia, até mesmo sacerdotes e profetas oficiais, entre eles Ezequiel (2Rs 24,13-17).

Após a primeira deportação, Nabucodonosor nomeou como rei de Judá Sedecias, tio

do rei Joaquim para governar (2Rs 24,17). Mesmo com todo o sofrimento vivido em Judá,

Sedecias, no décimo ano de governo, recusou-se a pagar tributo ao imperador da Babilônia.

A omissão de Sedecias levou Nabucodonosor a invadir Jerusalém com todo o seu exército,

impedindo a entrada e a saída de pessoas da cidade. Depois de cercar Jerusalém por um

ano, apoiado pelos edomitas, Nabucodonosor entrou na cidade e “pôs fogo no Templo de

YHWH, no palácio real e em todas as casas, incendiou todas as mansões [...] e destruiu as

muralhas” (cf. 2Rs 25,8-10; Jr 52,12-14). A cidade e o templo ficaram totalmente

destruídos. Uma outra parcela da população de Jerusalém foi levada para a Babilônia, até

mesmo o rei Sedecias, depois de presenciar a morte de seus filhos a mando de

Nabucodonosor (Jr 52,28-32). Sedecias, além de presenciar a morte de seus filhos,

presenciou também “membros de sua corte serem trucidados. Nabucodonosor mandou

cegá-los e transportá-los, acorrentados, para a Babilônia” (Rossi, 2008, p. 60).

Nessa época (séc. VI a.C.) o Dêutero-Isaías anunciava um tempo de esperança e

libertação. Depois de cinquenta anos de exílio, o grupo da segunda deportação anuncia o

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fim do sofrimento, acreditando na profecia do Dêutero-Isaías que tinha a finalidade de

fortalecer a fé e reanimar aquele povo sofrido, enfraquecido (Is 40,29; 42,3), humilhado e

desprezado (Is 53,3). Foi uma tarefa nada fácil, pois, com tanto sofrimento, miséria e

opressão, o povo provavelmente já nem conhecia YHWH, o Deus libertador de Israel.

É nesse contexto histórico que estão inseridos os Quatro Cantos do Servo de YHWH,

os quais narram a história de um povo sofrido, violentado, humilhado. Um povo que sofreu

com a conjuntura da Babilônia.

2. Um cotidiano marcado pela violência Os grupos de deportados representavam a elite da nação de Judá que foi levada para a

cidade da Babilônia, próximo à metrópole do Império, em regime de semiliberdade, isto é,

tendo liberdade de ir e vir (Jr 29). Esse grupo tinha a permissão de manter os costumes e

fazer reuniões (Ez 8,1; 14,1; 20,1) (Nakanose; Pedro, 2004, p. 11). A vida dos exilados da

primeira deportação não parecia ter sido tão dura como é narrado, pois “em terra

estrangeira puderam construir casas, cultivar a terra, fundar famílias e viver em colônias

próprias (Ez 3,15; 8,1; 14,1; 33,30)” (Ballarini, 1977, p. 164). Dentre esses mesmos

exilados, depois de um tempo, alguns ocuparam cargos administrativos na corte (Nakanose;

Pedro, 2004).

Também tinham permissão de exercer profissões civis – como artesãos e comerciantes, e na

administração –, o que se pode documentar suficientemente através de tábuas de argila das

“casas bancárias” de Murašu e Egibi, bem como através de Ez 16,29 e 17,4 (Coogan apud

Dobberahn, 1989, p. 298).

Ainda nessa perspectiva, Oberhuber afirma que

a maioria dos exilados conseguiram chegar a uma posição de prestígio e bem-estar ainda na

primeira geração (Jr 29,5ss; Ez 8,1). Além disto, os habitantes de Judá deportados em

597/586 a.C. não haviam ido sozinhos para o desterro, mas levaram consigo seus servidores e

escravos domésticos. Na prática de deportação babilônica, costumava-se exilar todo o “bet

’ab” (Oberhuber apud Dobberahn, 1989, p. 298).

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Com tais afirmações compreende-se, então, que o sofrimento vivido pelos exilados da

primeira deportação não era referente às condições de vida, as quais eles vivenciavam, mas

era um sofrimento interior por estarem longe de sua nação (Donner, 1997). O mesmo não

aconteceu com os exilados da segunda deportação, uma vez que,

além do rei da nobreza, foi levada para Babilônia parte das pessoas mais simples:

funcionários da corte, de segunda e terceira categorias, sacerdotes levitas que trabalhavam

como cantores do Templo, ajudantes e serventes (2Reis 25,9-12; Jeremias 52,15), pequenos

artesãos e comerciantes da cidade, alguns agricultores e vinhateiros (2Reis 25,11-12)

(Nakanose; Pedro, 2004, p. 12-13).

Esses exilados “foram assentados pelos babilônios em diversas colônias que

possivelmente pertenciam à propriedade dos reis (terras da coroa). Aí eles viviam na

condição de súditos reassentados à força, mas de modo algum como escravos” (Donner,

1997, p. 435-436). Escravos aqui não no sentido moderno compreendido por nós, como

mercadoria, mas porque foram levados à força para uma terra estrangeira, viviam em

condições precárias como se fossem presos, trabalhavam muito nas plantações e nunca

ficavam com a colheita, por isso eram, de fato, escravos e escravas (Nakanose; Pedro,

2004).

O sofrimento era tanto – pois estavam em terras estrangeiras, não tinham seu templo

para prestarem seus cultos – que já não acreditavam em Deus, acreditavam, sim, que Deus

os havia abandonado: “YHWH desconhece o meu caminho e o meu Deus ignora a minha

causa” (cf. Is 40,27b). “YHWH me abandonou, o Senhor me esqueceu!” (cf. Is 49,14).

“Para vacuidade me fatiguei, para nada e vento, minha força gastei” (cf. Is 49,4). Mas,

mesmo com toda dor, ainda havia um fio de esperança que era cultivado pelo Servo.

2.1. Uma experiência de violência Por meio da realidade histórica vivenciada pelo povo exilado é possível afirmar que a

violência física experienciada por eles foi o que levou os exilados a um estreitamento que

aconteceu pela memória do corpo, a qual deixou uma marca indelével no grupo (Bastide,

1960). Além da violência física houve também a violência simbólica, que estava inserida

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nas doutrinas religiosas praticadas pelo grupo dos exilados. As duas violências estiveram

presentes no cotidiano dos exilados (Aubrée, 2004).

Foi a violência simbólica e física imposta pela opressão da Babilônia que deixou o

grupo dos exilados desfigurado, fazendo-os sentir-se como se estivessem no fundo do poço.

Mas, mesmo com tanto sofrimento e perda de seu referencial, o povo foi capaz de caminhar

junto, um amparando o outro (Nakanose; Pedro, 2004). O que propiciou aos exilados

estarem juntos, serem solidários uns com os outros, foi o fato de terem ficado vivendo em

um mesmo grupo. Isto é, estavam juntos. Não foram dispersos. Isso certamente foi decisivo

para a sobrevivência dos exilados (Schwantes, 1987). Eles podiam fazer reuniões e

continuar a manter uma espécie de vida comunitária. Com isso, entendemos que, embora

exilados, não foram forçados a deixar sua cultura, seus valores e costumes para aderir à

cultura babilônica, mesmo porque esse não era o interesse da Babilônia.

Na narração do Dêutero-Isaías, especificamente no que tange aos Cantos do Servo de

YHWH, o Servo ou o profeta não se preocupava em anunciar somente a justiça, mas, muito

mais do que a justiça, sua preocupação maior diante da realidade de sofrimento daquele

povo era anunciar a esperança.

Combatido e perseguido por uma parte de seus ouvintes, cansado de exortá-los inutilmente à

conversão, o profeta se volta esperançosamente para o grupo de fiéis que se mostram

receptivos à palavra de Deus e confiante em suas promessas; este grupo, não mais chamado

de Israel-Jacó, continua sendo sempre Israel (49,3), mas um Israel reduzido à sua elite, um

resto fiel, que desempenhará um papel no confronto com o resto do povo. Para Bonnard, com

toda probabilidade este é o mesmo Servo dos caps. 52,13-53,12 (Valério, 2003, p. 179).

Toda a realidade descrita acima é a mesma do Servo, do povo exilado, pois é nesse

contexto histórico, social e cultural que eles estão inseridos. Foi esse o cotidiano do Servo,

dos exilados. O Servo, como um dos exilados que esteve todo tempo junto aos seus,

acreditou que havia esperança e lutou para retornar à sua pátria, reunindo, assim, todo o

povo de Israel e Judá.

Mas agora disse YHWH, que modelou do seio para servo para ele, para fazer voltar Jacó a

ele, e Israel para ele se reúna; e serei glorificado aos olhos de YHWH, e meu Deus será meu

vigor! Mas disse: “É pouco que sejas para mim servo para levantar as tribos de Jacó e os

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sobreviventes de Israel para fazer voltar. E te dou para luz de nações, para ser minha salvação

até a extremidade da terra” (cf. Is 49,5-6).

As estruturas e relações sociais, religiosas, políticas e econômicas se dão-se a partir

do cotidiano do Servo e de todo o povo exilado. É também por meio desse cotidiano que o

povo começou a se organizar. No exílio, o povo, por estar vivendo em outras terras,

precisou organizar-se para que juntos pudessem vencer as dificuldades e a saudade que

tinham do templo, como bem é narrado no salmo: “Às margens dos rios da Babilônia, nós

nos assentávamos e chorávamos, lembrando-nos de Sião” (cf. Sl 137,1).

Entendemos que o motivo que levou o povo a organizar-se aconteceu a partir da

memória que faziam de seus costumes religiosos, uma vez que a religião aparece como

força que sustenta e mostra-se em profundidade na história humana, na urgência que tem o

homem de buscar um significado para sua vida e para a realidade que ele vive na sociedade

(Berger, 1985).

Contudo, conclui-se que, no cotidiano do Servo e de todo o povo exilado, o que deu

significado e força para vencer a realidade vivida por eles em terras estrangeiras foram a

religião, os costumes e valores que havia dentro deles.

3. Violência cultural É através do cotidiano do povo exilado e de suas experiências em grupo que podemos

afirmar que parte dos exilados pôde continuar vivendo sua identidade própria, como afirma

Oliveira (1976) que a identidade de um grupo étnico deve ser pensada, sobretudo, em

termos contrastivos. Isso quer dizer que, quando uma pessoa ou um grupo se firma como

tal, o faz como meio de diferenciação em relação a alguma pessoa ou grupo com que se

defronta (Oliveira, 1976). A diferença é uma realidade concreta, um processo humano e

social inserido no processo histórico (Semprini apud Oliveira, 2008).

Essa diferenciação, por ser também pelo espaço, o qual não se define pela

materialidade territorial, mas, sobretudo, pelas representações coletivas que possibilitam

aos membros dar ao seu espaço as características próprias. Por isso o espaço é reconhecido

pelos indivíduos como o lugar de suas representações e de identificação. Nesse espaço

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coletivo há, por parte dos indivíduos, o sentimento de pertença e de referência (D’Adesky,

2001).

D’Adesky (2001) confirma a afirmação de Schwantes (1987) quando diz que os

exilados, por estarem agrupados em um determinado espaço, puderam continuar a preservar

sua língua, seus ritos, seus costumes, sua religião. Mantiveram, pois, sua identidade de

deportados de origem comum, que como grupo não foi violada, mas sim vivenciada e

preservada (Schwantes, 1987).

A identidade étnica dos exilados manifesta e surge por ocasião, ela não se afirma

isoladamente e sim “negando” a outra identidade, “etnocentricamente” por ela visualizada

(Oliveira, 1976).

Etnicidade é uma propriedade de uma formação social e um aspecto de interação; ambos

níveis sistêmicos podem ser simultaneamente compreendidos. Secundariamente, diferenças

étnicas envolvem diferenças culturais que possuem impacto comparativamente [cross-

culturally] variável [...] sobre a natureza das relações sociais (Eriksen apud Oliveira, 2006, p.

89).

Os exilados, mesmo vivendo fora de sua pátria, puderam formar famílias entre si e,

acima de tudo, mantiveram sua própria identidade. Em nenhum momento nem os

babilônios nem os exilados foram obrigados a anular suas culturas e valores para viverem a

cultura e os valores da outra nação. Cada nação teve a oportunidade de preservar sua

própria identidade, seus valores, rituais, culturas e crenças.

É possível que o povo exilado, pelo longo período que viveu fora de sua nação, tenha

sido influenciado pela cultura babilônica e vice-versa. Fato que não podemos deixar de

pensar, embora seja afirmado por Schwantes (1987) que tal não tenha acontecido.

Kessler (2009), ao abordar a questão de identidade, deixa claro que

[...] as uniões familiares, desenvolvido durante o exílio babilônico, constitui a base social

para a união [Zusammenhalt] dos exilados e a preservação de sua identidade. Isso certamente

não teria vingado se a deportação não tivesse desenvolvido seus símbolos identitários

centrais, a saber, a circuncisão, a observação do sábado e das leis de alimentação [...] (p.

165).

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Os exilados, mesmo em contato com outra cultura, diferente da sua, não sofreram o

processo de aculturação, que é “o processo de transformação verificada no contato de dois

ou mais grupos culturais distintos” (Miranda, 2001, p. 37).

No que tange à aculturação dos deportados, Reimer1 afirma que os

textos do chamado Segundo-Isaías (40-55) indicam aculturação relativamente bem-sucedida.

Mas é bem provável que em várias comunidades tenha havido uma tendência de preservação

de identidade cultural e religiosa conjugada com relações intraétnicas. De qualquer modo, no

exílio a golah ou “diáspora” deveria passar por desafios enormes, sobretudo no que tange à

concepção de Yahveh enquanto deidade em sentido universal.

Diante das afirmações de Miranda (2001) e de Reimer (2006), parece plausível

afirmar que o Servo e todo o povo exilado não perderam sua identidade por estarem

vivendo em terras estrangeiras, ao contrário, conseguiram, juntos, afirmar, como grupo, o

seu ethos.

Conclui-se, então, que a vivência em colônias e o próprio cotidiano foi o que levou os

deportados a não perderem sua cultura, sua identidade enquanto grupo proveniente de outra

nacionalidade, bem como de sua fé em um Deus único.

Além da autoafirmação de sua identidade, os exilados puderam reunir-se em

comunidades, em que faziam memória de Sião e choravam às margens dos rios da

Babilônia (Sl 137,1), cantavam e, juntos, experienciavam sua fé.

Discordamos das afirmações de Reimer (2006), Schwantes (1987) e outros autores

quando afirmam que os exilados permaneceram com sua identidade de origem, uma vez

que é afirmado pelo próprio Reimer (2006) que os textos do Dêutero-Isaías indicam que

houve aculturação. Será mesmo possível um grupo passar cinquenta anos em outra nação,

vivenciando outra cultura e outros valores religiosos, e não ser influenciado? Acreditamos

que tanto os babilônicos como os exilados israelitas sofreram influências religiosas e

culturais.

1 Texto trabalhado na disciplina Hermenêutica em 2006, no Programa de Pós-Graduação em Ciências

da Religião da PUC Goiás.

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4. Os exilados e sua experiência religiosa no

exílio da Babilônia Parece que os deportados, enquanto estavam em Jerusalém, tinham apenas uma

concepção de como adorar a YHWH. Isto é, para eles a única forma de adoração e de

prestar culto a YHWH era no Templo de Jerusalém. Contudo, com a destruição de

Jerusalém e do templo, esses exilados ficaram sem um referencial para praticarem seu

legítimo culto. Isso porque, para eles, a Babilônia era um lugar impuro.

Na análise de Mircea Eliade, tal visão de impureza dá-se pelo fato de o espaço ser

avaliado como qualitativamente diferente, um espaço sagrado com significados. O espaço

sagrado tem o valor existencial para o homem religioso, pois implica a aquisição de um

ponto fixo (Eliade, 2001, p. 25-26). O espaço sagrado permite que se tenha um espaço

físico, permitindo viver o real, enquanto a experiência profana, ao contrário, mantém a

homogeneidade, a relatividade do espaço (Eliade, 2001).

Os exilados tinham como referência de espaço sagrado o monte Sião, local que dava

sentido e significado ao culto prestado a YHWH. O sagrado, para eles, possuía valor

existencial. Se os cultos não acontecessem naquele espaço, considerado sagrado, não era

possível celebrar o sentido religioso e sim o impuro, o profano. O povo deportado para o

exílio da Babilônia não foi obrigado a viver uma outra cultura, muito menos praticar uma

outra religião que não fosse a sua. Estudos feitos por Ballarini confirmam que os exilados

não foram obrigados a aceitar a religião babilônica, se bem que a vitória inimiga e o

esplendor do culto idólatra exercessem poderosa influência sobre eles. Privados do templo e

do serviço sacerdotal, os deportados reuniram-se para rezar e para ouvir a palavra dos

profetas. Dessas assembleias se desenvolveu provavelmente o culto da sinagoga. O exílio

representou uma prova excepcional para os crentes hebreus (Ballarini, 1977, p. 164).

No cotidiano, os exilados puderam afirmar sua identidade através da partilha, da

solidariedade e dos momentos de encontros que tinham para cantar e fazer memória de

Sião. É dentro desse contexto que eles vão afirmando sua religiosidade e sua fé no Deus

que caminha com o povo. O mesmo Deus que caminhou com seus antepassados na saída do

Egito é o que agora está presente e que vai libertá-los das mãos dos exploradores. No meio

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dos escolhidos de YHWH estão presentes os profetas, os quais preparavam o caminho para

a formação de uma nova comunidade (Bright, 1978). A nova comunidade não está

preocupada com os cultos nacionais. Sua preocupação está voltada para a lei entre os

exilados. Dentre essas leis estão as leis do sábado e da circuncisão, isso porque a lei do

sábado, entre os exilados, era o sinal, a marca dos judeus em terras estrangeiras. A

circuncisão tornou-se um sinal de aliança e uma marca distintiva do judeu (Bright, 1978).

Um elemento forte e praticado pelos judeus, principalmente por aqueles que eram

discípulos de Ezequiel, é a simbologia da limpeza ritual (Ez 4,12-15). A questão da limpeza

era um símbolo visível da expressão da fé e da religião de um povo que não havia perecido,

embora estivessem vivendo fora de sua pátria (Bright, 1978, p. 472).

Fohrer (2008) também afirma que “a circuncisão constituiu-se num importante rito

que distinguia os israelitas dos babilônios, os quais tinham conhecimento da prática; ela

simbolizava a relação do povo com Iahweh” (Fohrer, 2008, p. 405).

Com relação aos símbolos, Geertz afirma que estes expressam a realidade cultural de

um povo, o seu ethos. Cada grupo tem o seu símbolo, aquilo que exprime a sua realidade.

Os símbolos sagrados expressam tanto os valores positivos quanto os negativos (Geertz,

1978, p. 145). Contudo, a simbologia usada pelos exilados e as palavras dos profetas eram

os meios que davam vida e esperança à comunidade.

No que tange às palavras dos profetas, foi no período do exílio que elas foram

preservadas tanto oralmente quanto por escrito, chegando até a serem atualizadas. Além da

atualização das palavras dos profetas, as leis do culto, chamadas de Código Sacerdotal,

foram também compiladas, porque o culto havia sido controlado e, com isso, desaparecido

(Bright, 1978). Ainda nesse período do exílio (séc. VI a.C.) foi composta a narrativa

sacerdotal do Pentateuco (P), a qual apresentava a história teológica do mundo, que iniciava

com a criação e culminava com os mandamentos do Sinai (Bright, 1978).

No que se refere à narrativa sacerdotal do Pentateuco,

também costuma-se sediar entre os deportados partes do Pentateuco (i.e., de Gênesis, Êxodo,

Levítico, Números e Deuteronômio) [...] seriam o resultado da composição de quatro

documentos (javista, eloísta, escrito sacerdotal e Deuteronômio) – afirmam que o “escrito

sacerdotal” teria sido composto pelos desterrados (Schwantes, 1987, p. 73).

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81

Assim, ao mesmo tempo em que a comunidade se apegava a seu passado, preparava-

se para o futuro. Diante da dura realidade de estarem distantes de sua terra de origem, os

exilados

continuaram a crer em Javé. A preservação de sua fé foi a mais forte aglutinadora para estes

exilados. Contudo, a maneira de assinalar a adesão a Javé já não era mais o sacrifício. Em

terra estranha não era viável sacrificar. O culto da palavra – a profecia e os cânticos – passou

a desempenhar papel central. Novos ritos – sábado e circuncisão – tornaram-se caracteres de

identificação. Portanto, os exilados não só se mantiveram fiéis a seu Deus, também alteraram

e recriaram suas expressões de fé (Schwantes, 1987, p. 29).

Os deportados, embora em sua maioria fossem monoteístas, por muitas vezes

chegaram a acreditar que o deus Marduk tinha mais poder do que o Deus Javé, o Deus que

eles adoravam em Jerusalém.

Com isto, encaremos a verdade, a própria veracidade do Deus de Israel foi posta em dúvida.

A religião de Israel, apesar de seus deslizes, sempre foi de natureza monoteísta. Embora não

formulasse abstratamente o monoteísmo, desde o começo ela só concebia a existência de um

único Deus, declarando que os deuses pagãos eram entidades negativas, “não deuses”

(Bright, 1978, p. 470).

Os exilados chegaram a acreditar que o exílio era castigo de Deus pelos pecados que

eles haviam cometido, isso devido à dor que experienciaram. Acreditaram também que o

Deus de Israel havia sido vencido por Marduk, deus da Babilônia (Nakanose; Pedro, 2004,

p. 17).

O exílio poderia ser visto como castigo merecido e como um expurgo que preparava Israel

para um novo futuro. Com estas palavras, e afirmando ao povo que Iahweh não estava longe

dele, mesmo na terra do exílio, os profetas preparavam o caminho para a formação de uma

nova comunidade. [...] Não era mais uma comunidade de culto nacional, mas uma

comunidade marcada pela adesão a uma tradição e a uma lei (Bright, 1978, p. 471-2).

O pano de fundo do Dêutero-Isaías é a profecia comunitária e a proposta de uma nova

comunidade, na qual acontecem reuniões comunitárias e cantorias. O Dêutero-Isaías

apresenta também, como característica, a ideia de universalidade, a qual está presente nos

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Quatro Cantos, que, por serem parte do Dêutero-Isaías, possuem a marca universalista, que

tem a finalidade de anunciar a manifestação da glória divina (Schwantes, 1987).

Conclusão Concluímos que o cotidiano dos exilados na Babilônia não foi nada fácil.

Submeteram-se a grandes humilhações e dores. Dor de estar longe de sua pátria, mas, com

a experiência de dor, humilhação e sofrimento, parece que o povo chegou a duvidar se

YHWH era mesmo um Deus poderoso. Foi a vida em colônias e o próprio cotidiano que

ajudou os judeus a não perderem sua cultura, sua identidade enquanto grupo proveniente de

outra nacionalidade, bem como de sua fé em um Deus único. Nesse mesmo cotidiano eles

puderam não só afirmar sua identidade como reunir-se em comunidades, onde eles faziam

memória de Sião e, juntos, experienciavam sua fé. No convívio descobriram que podiam

prestar cultos para o seu Deus fora dos templos. Mesmo com toda a idolatria praticada

pelos babilônicos e muitas vezes pensando que o deus Marduk era mais forte, pois a

Babilônia os havia vencido e levado cativos, os exilados mantiveram sua cultura, identidade

e fé no Deus YHWH. Embora ainda pensemos que é muito difícil um grupo permanecer

tanto tempo experienciando outras culturas e religiões e não ser influenciado em suas

crenças e valores culturais.

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Além do corpo machucado:

uma análise da Lei Maria da Penha

Danielle Ventura Bandeira de Lima*

Introdução São nítidas as agressões que muitas mulheres sofrem diariamente e que aparecem

narradas na mídia em nível mundial. Entre os tipos de agressões destacam-se: a violência

doméstica, a violência sexual e também a violência religiosa (simbólica ou não). Por muito

tempo o modelo de educação tem-se baseado em crenças religiosas e em teologias que têm

concebido a mulher como algo angélico, de um lado, ou demoníaco, de outro. As teologias

cristãs mais antigas veem em Maria de Nazaré uma mulher submissa, assexuada, angélica e

maternal. A mariologia tradicional tem tido uma visão androcêntrica e patriarcal dessa

personagem bíblica. Contudo, tal situação ainda é muito presente na atualidade, pois nós

ainda fazemos parte de gerações cuja identidade cultural é construída sobre estas bases da

tradição cristã que exige não a libertação, mas submissão e subordinação por parte de quem

sofre violência e a violação de sua dignidade, também dentro de casa (Richter Reimer; Matos,

2009, p. 64).

Por isso buscaremos entender como a violência tem-se perpetrado nos corpos das

mulheres ao longo dos tempos e como os estudos feministas têm colaborado para eliminar

os vários tipos de violência contra a mulher.

1. Religião e relações de gênero As(Os) estudiosas(os) da hermenêutica feminista, de maneira geral, primam, em suas

análises, pela compreensão das relações sociais entre homens e mulheres, observando como

essas relações, que muitas vezes são conflitantes, geram debates e discussões em prol dos

direitos das mulheres. A hermenêutica feminista é importante porque tenta evidenciar,

*

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questionar e romper com os parâmetros androcêntricos e patriarcais que se fazem presentes

nas ciências sociais e nas teologias, pois

neles a mulher, além de ser desqualificada na sua humanidade e capacidade, também é

desapropriada de sua dignidade e silenciada em sua experiência e resistência. O sistema

patriarcal – e, portanto, as ciências que trabalham com paradigmas patriarcais – é dualista,

sexista e hierárquico, no qual o homem poderoso/branco é o principio organizativo e

normativo de todas as coisas (Richter Reimer, 2000, p. 20).

Tais estudos são fundamentais para que as mulheres possam adquirir paulatinamente

seus espaços na sociedade. No que diz respeito aos estudos atuais, percebe-se uma sensível

mudança, pois a preocupação maior está nas relações de poder entre homens e mulheres e

suas variantes. E é nesse âmbito que a categoria de gênero assume uma dimensão muito

enriquecedora entre tais estudiosos. Os estudos de gênero tratam da construção social que

rejeita as explicações biológicas. Em sua perspectiva, os papéis próprios dos homens e das

mulheres são vistos como criação social imposta aos corpos sexuados (Scott, 1990).

Segundo Beauvoir (1980, p. 9), “não se nasce mulher, torna-se mulher”, pois a conduta da

mulher é imposta pela sociedade, ela não é biológica, mas construída socialmente.

Por longos anos foram impostos às mulheres o silêncio e a submissão como condutas

que fariam delas moças bem comportadas, negando-lhes o direito de manifestar-se, de ser e

de agir. O silêncio feminino esteve na sociedade por muitos séculos e foi reiterado por

religiões, manuais de comportamento e sistemas políticos. Da mulher esperava-se a

seguinte postura:

[...] sua postura moral é a escuta, a espera, o guardar das palavras no fundo de si mesmas.

Aceitar e conformar-se, obedecer, submeter-se e calar-se. Pois este silêncio, imposto pela

ordem simbólica, não é somente o silêncio da fala, mas também o da expressão, gestual ou

escriturária. O corpo das mulheres, sua cabeça, seu rosto, devem às vezes ser cobertos e até

mesmo velados (Perrot, 2005, p. 10).

O silêncio exigido pela sociedade patriarcal era moldado pelo arquétipo de Maria,

pois ela representa o temor ao pecado e a luta contra o demônio. Através da Bíblia e dos

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dogmas da Igreja esse arquétipo tem moldado os costumes de uma sociedade patriarcal e

misógina (Rosble, 2006).

Os estudos de gênero primam por analisar as relações sociais entre mulheres e

homens, mulheres e mulheres, homossexuais, heterossexuais e homossexuais, transexuais e

a relação entre todas essas nuances. Como os homens ricos e brancos ocupam uma posição

notoriamente privilegiada nesta sociedade,

a mulher, o não branco e o homossexual, nesse caso, representariam a contraordem, sendo

passiveis de punição. Em outras palavras, as várias formas de violência encontram

legitimidades no sistema de preconceitos gerado pela sociedade em que se localizam. A

violência de gênero é uma dessas formas de violência, apesar de não se apresentar de forma

autônoma (Souza, 2009, p. 31).

Os(As) estudiosos(as) que adotam o gênero enquanto categoria de análise voltam-se

para as minorias e suas discussões estão voltadas para as mulheres, os negros, as negras e

os homossexuais, de forma que o que se deseja é analisar as estruturas e as relações de

poder da sociedade. Mesmo assim, e apesar de muitos avanços, percebe-se que ainda em

nossos dias a violência de gênero é uma constante. Não faltam exemplos de mulheres que

em nossos dias são vítimas de violência doméstica,1 mas se recusam a falar sobre o assunto

por medo das ameaças e também por motivos religiosos, uma vez que acreditam que é sua

obrigação “aceitar” e resignar-se por amor à família, a Deus, e/ou para manutenção dos

laços familiares. Por isso os estudos que trazem o gênero como categoria analítica devem

ser acompanhados pela elaboração de leis que possam atuar em defesa daqueles(as) que são

discriminados(as) e agredidos(as) pelo simples fato de ser mulher, homossexual, travesti,

negro ou negra. Vejamos quais foram os avanços legais em favor das mulheres.

2. Os avanços na legislação sobre os direitos da

mulher

1 Muitas mulheres da Igreja Assembleia de Deus, em João Pessoa-PB, silenciam sobre as agressões

sofridas no lar pelos seus maridos. Esses dados foram levantados pela delegada assembleiana

Conceição Casado Silva (2009), que, como religiosa e profissional, conseguiu coletar essas

preciosas informações.

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Aos poucos as mulheres estão adquirindo espaço no que diz respeito a seus direitos.

Vejamos a seguir como a legislação, influenciada pelos estudos de gênero, vai abrindo

novos espaços para que as mulheres possam assumir sua posição e relacionar-se de igual

para igual em relação aos homens. Dentre os espaços conquistados por elas, apoiadas nos

estudos de gênero, destaca-se a Conferência de Viena sobre Direitos Humanos de 1993,

cujo objetivo foi a discriminação sofrida pelas mulheres a partir dos depoimentos

impactantes de mulheres presentes na conferência (Oliveira, 2002). No âmbito

internacional, destaca-se, ainda, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação contra a Mulher, que ficou conhecida como Convenção de Belém do Pará

(Oliveira, 2002). A IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing

[Pequim], capital da China, em 1995, “buscou clarear as zonas de sombra onde se esconde

a discriminação contra as mulheres e afirmar na prática, intervindo na vida cotidiana, o

principio de que os direitos das mulheres são direitos humanos” (Oliveira, 2002, p. 98).

No Brasil, no ano de 1996, foi entregue ao presidente da República, pelo Conselho

Nacional dos Direitos da Mulher, por intermédio do Ministério da Justiça, o Programa

Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e Sexual. O presidente enviou ao

Congresso uma proposta de reformulação do Código Penal, atendendo às reivindicações do

Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Tal atitude revelou um avanço para as mulheres

brasileiras.

Todos esses fatos são marcos históricos relevantes que vão contribuir para a

compreensão da aprovação da Lei 11.340, que não pode ser observada como fato isolado,

apesar de sua especificidade e da conquista das mulheres brasileiras. Assim, buscar-se-á

compreender o significado dessa lei e de que forma ela contribuiu para a vida das mulheres,

reconhecendo que a Lei 11.340 garante às mulheres o respaldo legal para denunciar a

violência doméstica.

3. Violência contra a mulher: por que a Lei Maria

da Penha? A Lei 11.340, criada no dia 7 de agosto de 2006, passou a vigorar a partir do dia 22

de setembro de 2006. Denominada Maria da Penha, essa lei tem tal nome em homenagem à

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biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, agredida pelo ex-marido de tal forma que

ficou paraplégica. Seu caso teve repercussão mundial.2

A maneira como a Lei Maria da Penha pune os agressores e dirige-se especificamente

às mulheres que sofreram qualquer tipo de violência de seus companheiros pode ser

considerada como uma grande conquista por parte das instituições e organizações que

militam na tutela dos direitos das mulheres e de enfrentamento da violência doméstica,

principalmente por parte das mulheres que têm sido vítimas das mais variadas formas.

Contudo, o silêncio ainda tem feito parte da conduta de alguma delas.

A violência doméstica pode ser considerada como

[...] a mais brutal e eloquente metáfora da exclusão das mulheres dos direitos humanos, da

extraterritorialidade do espaço doméstico e impunidade dos agressores, impunidade que

traduz o decreto não escrito de propriedade, de fundo escravagista, que ainda liga homens e

mulheres (Oliveira, 2002, p. 992).

Mesmo diante do silêncio de tantas mulheres vítimas de violência fisica e simbólica,

é preciso reconhecer que a Lei Maria da Penha encoraja as mulheres a denunciarem seus

cônjuges, irmãos ou pais e faz com que elas se sintam protegidas e respaldadas diante das

atrocidades feitas pelos seus parceiros. Daí a relevância do estudo da Lei Maria da Penha,

por ela ter sido uma conquista das mulheres, personagens que foram menosprezados no

decorrer da história. A relação de submissão entre homens e mulheres perpassou longos

anos e é por isso que há um significado crucial nas conquistas por elas obtidas. Isso permite

2 No ano de 1983, após ela ter voltado do hospital, o então marido de Maria da Penha atirou contra

ela duas vezes alegando que havia ocorrido um assalto em sua residência. Duas semanas depois ele

eletrocutou a vítima enquanto ela tomava banho. Entre essa dupla tentativa de homicídio e a prisão

de seu marido, passaram-se 19 anos e 6 meses, o que demonstra a morosidade da justiça brasileira

nesse período. Diante disso, o Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê

Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), juntamente com a vítima,

formalizaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos

Estados Americanos (OEA) – órgão internacional responsável pelo arquivamento de comunicações

decorrentes de violação desses acordos internacionais – levando à construção do Relatório 54 da

OEA, em 2001, responsabilizando o Brasil pela negligência em relação à violência doméstica contra

a mulher, apesar de reconhecer algumas mudanças estabelecidas pelo país de cunho insuficiente.

ALVES, Fabricio da Mota. Lei Maria da Penha; das discussões à aprovação de uma proposta

concreta de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em:

<http://jus.uol.com.br/revista/texto/8764/lei-maria-da-penha> Acesso em: 23 abr. 2011.

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89

uma reflexão apurada das dificuldades encontradas por essas mulheres no decorrer dos

séculos.

A Cartilha Maria da Penha (2007) tem sua relevância por criar mecanismos para

coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, dispondo sobre a criação

de juizados de violência doméstica e familiar, bem como estabelecendo mecanismos de

assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Pode-se

considerar a Lei Maria da Penha como inovadora, uma vez que nela o legislador não incluiu

medidas protetivas de urgência. Assim, teoricamente, os homens punidos por essa lei não

podem simplesmente conceder alimentos provisórios para cumprir sua pena, ou, ainda,

conseguir reduzir a pena do seu crime quando se trata de lesão corporal.

Além disso, é válido ressaltar que há uma elasticidade no conceito da violência na Lei

Maria da Penha por ser possível a inclusão de vários tipos de violência, ou seja, a física, a

psicológica, a moral e a sexual, conforme está disposto no art. 7o. É valido destacar, ainda,

que ela se elevou ao patamar de direitos humanos. A conquista da Lei Maria da Penha é

evidenciada por nela se considerar que a violência doméstica dá-se simbolicamente e de

forma concreta. Por isso,

discutir esse tema implica extrapolarmos os limites do visível, isto é, do corpo machucado.

Aquilo que vemos é a materialização do que aqui estamos denominando “violência simbólica

[...]”. A prática de violência é um exercício de poder sobre o outro e, nesse caso, do poder do

homem sobre a mulher (Souza, 2009, p. 29).

Essa reflexão faz-nos repensar os motivos para que sejam incluídas na Lei Maria da

Penha as violências de caráter simbólico, principalmente no momento em que a autora

destaca a relevância de romper com o corpo machucado. Além disso, o exercício de poder

do homem sobre a mulher é algo implícito que, através dos atos violentos, faz com que se

reflita sobre questões pertinentes no interior da sociedade.

A psicanalista americana Elizabeth Young-Bruehl (1946-2011) afirma que,

geralmente, alguns homens, cujas personalidades são narcisísticas, tendem a considerar a

mulher “tanto santa como prostituta, pura e impura, espiritualmente apta e descerebrada,

bela e perigosa, desejável e aterrorizante” (2004, p. 173). Segundo Young-Bruhel, a

violência está “localizada em lugares considerados como arenas de demonstração de poder

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sexual” (2004, p. 176) e tem por base “as marcas de diferença, seja para eliminá-las ou para

se apropriar dela” (p. 176). Por isso não é difícil perceber que esse tipo de comportamento é

muito comum entre os agressores de mulheres. E não é raro que o lar, que deveria ser

espaço de conforto, aconchego e segurança, torna-se o lugar onde a violência é recorrente e,

em alguns casos, tal violência encontra reconhecimento e aceitação por parte de uma

sociedade machista e misógina, que enfatiza o poder do homem sobre a mulher.

Diante da violência institucionalizada contra as mulheres, pode-se compreender com

profundidade a real importância da Lei 11.340, uma vez que ela (a Lei Maria da Penha) se

contrapõe aos abusos que foram legitimados no decorrer dos anos contra as mulheres dos

mais variados níveis sociais. Sobre a importância desta lei, a Subsecretaria de Pesquisa e

Opinião Pública, em análise anterior à Lei Maria da Penha, apontava:

Dentre todos os tipos de violência contra a mulher, existentes no mundo, aquela praticada no

ambiente familiar é uma das mais cruéis e perversas. O lar, identificado como local acolhedor

e de conforto passa a ser, nestes casos, um ambiente de perigo contínuo que resulta num

estado de medo e ansiedade permanentes. Envolta no emaranhado de emoções e relações

afetivas, a violência doméstica contra a mulher se mantém, até hoje, como uma sombra em

nossa sociedade (Senado Federal, 2005, p. 4).

Portanto, a Subsecretaria de Pesquisa e Opinião Pública não se limita à análise do

gesto violento apenas, mas volta-se às relações afetivas no interior dos lares, permitindo

novamente que se tenha um estudo das implicações implícitas da Lei 11.340. A

preocupação dessa lei abrange também as lésbicas e enfatiza que a violência doméstica

independe da orientação sexual da mulher, demonstrando, assim, um grande avanço na

sociedade. Em seu artigo segundo, afirma:

Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura,

nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa

humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência,

preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

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Considerando a inclusão de lésbicas e de mulheres dos mais variados níveis

educacionais e culturais e sem fazer distinção de mulheres nem pela idade nem pela

religião, percebe-se que esse artigo da Lei Maria da Penha é de fundamental importância.

Outro avanço da Lei Maria da Penha está no fato de ela vedar as penas pecuniárias, o

que evita que o agressor pague multas ou cestas básicas como forma de cumprir a pena. A

notificação da vítima sobre o ingresso e a saída da prisão do agressor faz com que ela seja

precavida de qualquer violência, amenizando seus riscos mediante tão valiosa informação.

Além disso, essa lei proíbe os juizados especiais criminais de julgar os crimes de violência

doméstica contra a mulher, dificultando a possibilidade de não punição do agressor. A

vítima precisará de um advogado para realizar a denúncia.

Há também, na Lei 11.340, a possibilidade de o agressor ser autuado em flagrante. É

valido mencionar que, em caso de lesão corporal, a pena terá maior punição caso seja

realizada por ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, com quem conviva

ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas de

coabitação ou hospitalidade.

Ainda, é importante ressaltar que, de acordo com a Lei Maria da Penha, o juiz poderá

conceder, no prazo de 48 horas, medidas protetivas de urgência, ou seja, a suspensão do

porte de armas do agressor, o afastamento do agressor do lar e o distanciamento dele da

vítima. Tais ações dependerão da situação, a requerimento do Ministério Público ou da

ofendida.

Há uma assistência especial por parte desta lei às mulheres com deficiência física,

pois a pena cometida contra elas será aumentada em um terço. Após a realização da

ocorrência na delegacia de polícia, o Ministério Público ficará incumbido de apresentar a

denúncia ao juiz e poderá propor penas de três meses a três anos de detenção. Essa

penalidade, portanto, privilegia as deficientes físicas, que, enquanto discriminadas pela

sociedade, merecem todo o respaldo proposto pela lei. No entanto, a divulgação da Lei

11.340 ainda precisa ser de conhecimento de grande parte da população a fim de evitar

possíveis equívocos.

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Sobre tais questões tem grande relevância a delegada da Polícia Civil da Paraíba

Iumara Bezerra da Silva,3 uma vez que suas orientações para o atendimento em casos de

violência doméstica e familiar para com as mulheres são divulgadas em grande número de

sites. Dentre as orientações por ela fornecidas estão: o afastamento do agressor do lar e a

suspensão do porte de armas, com comunicação ao órgão competente nos termos da Lei

10.826, de 22 de dezembro de 2003, conforme está disposto no item I do artigo 22 da Lei

11.340.

No que diz respeito às modificações da lei, pode-se destacar que, em dezembro de

2010, foi divulgado pela mídia nacional que a Câmara dos Deputados aprovou algumas

mudanças na Lei Maria da Penha, abrangendo a punição para namorados e ex-namorados.

O ajuste foi endossado pelo Senado. O fato é de grande relevância porque pune aquele que

agride sua ex-companheira por não se conformar com que ela termine o relacionamento,

cometendo atrocidades, tal como no caso Eloá.4

Enfim, a Lei Maria da Penha tem melhorado a vida de várias mulheres, que se sentem

seguras para recorrer a seus direitos. As medidas protetivas são um avanço para a sociedade

brasileira e uma conquista pelos movimentos de mulheres e estudiosas(os) de temáticas que

envolvem o gênero enquanto categoria de análise na compreensão de causas para relações

assimétricas e/ou violentas de poder.

3 A delegada, embasada na Lei Maria da Penha, orienta que sejam restritas ou suspensas as visitas do

agressor aos dependentes menores, ao ser ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou

serviço similar. Além disso, alerta que se deverá encarregar de determinar a separação de corpos.

Ela informa que devem ser restituídos os bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida e

proibidos temporariamente a celebração de atos e contratos de compra e venda e locação da

propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial, e que serão suspensas as procurações

conferidas pela ofendida ao agressor. A delegada orienta, ainda, que deva ser fornecida caução

provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de

violência doméstica e familiar contra a ofendida, fixando o limite de contato entre ofendida, família

e agressor. As orientações da delegada divulgadas em um grande número de sites fazem com que

sejam de conhecimento da população sobre as ações que se devem tomar para se fazer cumprir a Lei

11.340, contribuindo com esclarecimentos acessíveis pelo menos às populações de classe média, o

que já facilita a sua aplicabilidade. Contudo, a lei recém-criada ainda precisa ser divulgada, a fim de

tornar-se conhecida pelo maior número possível de cidadãs. 4 Eloá Cristina Pimentel, paulista de quinze anos, foi mantida em cárcere privado, junto à amiga

Naiara Silva, por cerca de cem horas pelo seu ex-namorado Lindemberg Fernandes Alves. O Grupo

de Ações Táticas Especiais (GATE) tentou negociar com o ex-namorado, mas invadiu o

apartamento após alegarem ter escutado tiros. Os tiros haviam sido disparados contra a adolescente

no rosto e na virilha. A jovem saiu do apartamento em uma maca e não resistiu, sendo levada a

óbito no Centro Hospitalar de Santo André. O crime repercutiu internacionalmente (Lessa, 2008).

Page 93: Religião, violência e suas interfaces São Paulo Editora Paulinas

93

Considerações finais A análise da Lei Maria da Penha, abrangendo o estudo do gênero, da violência contra

a mulher e dos direitos humanos, é crucial para uma reflexão de como vêm sendo tratadas

as mulheres brasileiras.

Ao se chamar a atenção para situações de violência física, psicológica e simbólica

sofridas por mulheres, remetendo a períodos em que as mulheres precisavam ser submissas

e silenciosas para ser consideradas mulheres bem comportadas, deseja-se valorizar o papel

desta lei e o seu sentido para milhares de brasileiras.

Infelizmente, é preciso ressaltar que, ainda hoje, algumas mulheres, motivadas pela

religião, resignam-se e resolvem não declarar que são agredidas em seus lares. Isso nos faz

perceber como a religião, mesmo diante dos avanços da sociedade, consegue fazer com que

mulheres submetam-se a situações de violência física e simbólica por acreditarem que

devem ser submissas a e silenciosas diante de seus maridos, pais e irmãos.

Ao se frisar quais são os estudiosos e militantes que lutam para que os direitos da

mulher sejam reconhecidos, mostra-se para a sociedade que tal conquista é fruto do

trabalho e dos estudos de muitas pessoas que ainda estão lutando pela causa da mulher e

que merecem ser lembradas durante estas reflexões.

Também é valido ressaltar que, em vez de adotar uma postura que reflita apenas no

estudo das mulheres, preferiu-se observar as relações de poder na sociedade para que

conseguíssemos compreendê-la em sua amplitude, valorizando a relação entre os sexos e a

visão androcêntrica e misógina por parte da sociedade.

Enfim, a atualidade e a relevância da Lei Maria da Penha estão no fato de ela

conseguir fazer justiça aos vários tipos de agressão sofrida por mulheres de vários níveis

sociais, as quais, outrora, desamparadas pela lei, muitas vezes justificavam sua união pela

cultura e pela religião, que valorizavam o homem como centro das atenções para que as

mulheres se mantivessem submissas, obedientes e silenciosas.

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Page 96: Religião, violência e suas interfaces São Paulo Editora Paulinas

Idosos: preconceitos,

violência e espiritualidade

Erika Pereira Machado*

Introdução A globalização tem generalizado as diferenças quando, na verdade, deveria acolhê-las

no processo de sua evolução econômica, política, social e cultural. Atualmente, as pessoas

encontram-se em meio a uma enorme ausência de valores e, ao mesmo tempo, em meio a

uma desconcertante abundância de possibilidades, de mudanças e fragilidades sociais, que

se faz necessário uma busca mais acirrada pela sua individualidade e um aprofundamento

de suas experiências subjetivas, tomando consciência de suas existências de modo a

tornarem-se sujeitos de seu agir.

No entanto, a exclusão tem permeado o cotidiano de alguns grupos, como o das

pessoas idosas, quando, na verdade, deveriam ser acolhidas em condições adequadas para

que cada pessoa encontre um ambiente propício para a sua existência, realização e

contribuição positiva à sociedade. Nesse contexto, o reconhecimento das potencialidades na

pessoa idosa representa, hoje, um grande desafio no sentido de propiciar um bem-estar

físico, emocional, social e psicológico.

1. Envelhecimento e preconceitos Saúde e doença são condições que comportam forte variabilidade. Em qualquer idade,

a heterogeneidade nas condições de saúde de um grupo de indivíduos reflete tanto a

variabilidade dos perfis de fragilidade quanto a variabilidade de outros fatores que

predispõem os idosos a condições indesejáveis de saúde (Resende, 2006, p. 33).

O envelhecimento pode ser compreendido como um processo natural, de diminuição

progressiva da reserva funcional dos indivíduos – senescência –, o que, em condições

normais, não costuma provocar qualquer problema; ou pode ser compreendido em casos de

*

Fisioterapeuta, mestre em Ciências da Saúde pela UnB-DF, doutoranda em Ciências da Religião

pela PUC Goiás. Bolsista da CAPES e professora na Universidade de Rio Verde (FESURV). E-

mail: [email protected].

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97

sobrecarga biológica ou emocional e ocasionar uma condição patológica que exija

assistência – senilidade. Para tanto, o maior desafio na assistência à pessoa idosa é

contribuir para que elas possam viver sua vida de forma saudável e com maior qualidade

possível (Brasil, 2006, p. 8-9).

Para Neri (apud Resende, 2006, p. 46), o significado do envelhecimento é construído

a partir da percepção pessoal, por intermédio de valores e experiências, crenças e atitudes

que cada um internaliza, e também a partir da história interacional do indivíduo com

eventos contextuais de natureza reforçadora, avaliativa e diretiva.

O conceito de “doença única”, onde um único problema pode explicar todos os sinais

e sintomas, não se aplica às pessoas idosas, pois costumam apresentar um somatório de

sinais e sintomas, onde a insuficiência de um sistema pode ocasionar a insuficiência de

outro. Para tanto, as alterações decorrentes no processo fisiológico do envelhecimento na

vida da pessoa idosa terá uma grande repercussão nos seus mecanismos homeostáticos e em

sua resposta orgânica, diminuindo sua capacidade de reserva, de defesa e de adaptação,

tornando-a mais vulnerável e, consequentemente, predispondo a doenças (Brasil, 2006, p.

30-31).

Os idosos são, antes de tudo, pessoas e devem ser tratados com respeito e dignidade e

sem preconceitos. Para Guccione (2002, p. 19), o conceito de respeito implica preservar a

escolha por parte do idoso, permitindo sua liberdade de participação ativa nas tomadas de

decisão e capacidade para escolher o que vai e o que não vai ser feito a si mesmo. As

crenças sociais e culturais podem diluir significativamente a autonomia à qual o idoso tem

direito, sendo de vital importância explorar como essas influências podem afetar os

resultados terapêuticos.

Portanto, quando, por qualquer motivo, não se reconhece ou, então, se agride (física

ou psicologicamente) uma pessoa, seja ela idosa ou não, pode-se entender que estamos

diante de um ato discriminatório, como enfatiza Oliveira (2011, p. 20). Para ela, a

discriminação leva à fragilização ou à negação da existência da alteridade, dos grupos

diferentes. Assim, em resumidas palavras, a discriminação é uma ação, um comportamento

que visa única e exclusivamente a prejudicar o outro, sendo constituído por um gesto

violento.

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98

Já o preconceito, para Oliveira (2011, p. 20), “é uma postura, uma concepção,

segundo a qual algumas pessoas consideram sua cultura, suas crenças, seus símbolos

superiores aos outros, servindo de avaliações negativas sobre as pessoas, suas culturas, seu

imaginário simbólico, suas crenças e o seu ethos”.

No tocante aos nossos dias, é perceptível como a pessoa idosa ainda continua sendo

estigmatizada. Infelizmente, continuamos vivendo em uma sociedade que tem preconceito

contra a pessoa idosa, ao ponto de gerar atitudes discriminatórias e até mesmo rejeitando-a

(Barbato; Purtilo apud Guccione, 2002, p. 19).

Para Guccione (2002, p. 19), esse tratamento estimula o desenvolvimento de

afirmações equivocadas sobre as capacidades, inteligência e habilidades físicas dos idosos,

baseadas em crenças arraigadas sobre o envelhecimento, sustentando julgamentos com base

na idade cronológica, o que leva a negar-lhe uma assistência digna, o reconhecimento e o

estímulo dos potenciais que o idoso possa ter.

Em muitas culturas e religiões, os idosos têm posições de respeito e autoridade. Ainda

assim, o uso de termos pejorativos, como “velhote”, “ultrapassado”, dentre outros, continua

vivo em nossa cultura, muitas vezes reforçado pelos meios de comunicação de massa. No

entanto, Guccione (2002, p. 19) esclarece que o uso e as eventuais aceitações da linguagem

preconceituosa podem colaborar para manter os muitos estereótipos que são disseminados

contra os idosos.

Rodin e Langer (apud Guccione, 2002, p. 19) destacam que os próprios idosos podem

ser culpados de preconceitos contra si, condicionados por meio da experiência ou

observação de tendências ou comportamentos sociais para esperar e aceitar as palavras

atribuídas a eles à medida que envelhecem. Consequentemente, essa rotulação contínua

diminui os sentimentos de autoestima e leva a mudanças negativas no comportamento e no

controle assumido. Assim, uma medida eficaz para combater os efeitos do envelhecimento

é estimular o controle do idoso sobre a tomada de decisões, melhorando sua qualidade de

vida.

Para tanto, a influência cultural é um fator poderoso que pode invalidar um resultado

positivo quando negligenciada. Para Guccione (2002, p. 21), a etnia e a cultura podem

afetar os pontos de vista dos idosos sobre a morte, o final da vida, o papel da família na

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99

enfermidade e a importância dada às crenças e aos medicamentos populares, em oposição

aos avanços na medicina e nas tecnologias.

2. A pessoa idosa em situação de violência A violência é um problema social de grande dimensão que afeta toda a sociedade,

atingindo mulheres, crianças, adolescentes, pessoas idosas e portadores de deficiência.

Ao nos reportarmos às situações de violência, não nos referimos apenas à violência

física, mas também à violência simbólica, evidência esta muito vivenciada na pessoa idosa.

Conforme a Rede Internacional para Prevenção dos Maus-Tratos contra a Pessoa

Idosa, define-se a violência contra esse grupo etário como “o ato (único ou repetido) ou

omissão que lhe cause dano físico ou aflição e que se produz em qualquer relação na qual

exista expectativa de confiança” (Brasil, 2006, p. 43-44).

Minayo (2003, p. 785) esclarece que violência é um conceito referente aos processos,

às relações sociais interpessoais, de grupos, de classes, de gênero, ou objetivadas em

instituições, causando danos físicos, mentais e morais.

Violência é esclarecida por Oliveira (2011, p. 17) como “toda ação que restringe,

limita ou impede o exercício e realização da liberdade essencial e efetiva de uma pessoa”.

Oliveira ainda enfatiza que a violência destrói não só o corpo, mas também o espírito. E

enquanto forma de opressão social é um fenômeno que está embutido nos modelos sociais e

nos pressupostos epistemológicos, morais e religiosos.

Assim, a violência contra a pessoa idosa manifesta-se nas seguintes formas (Brasil,

2006, p. 44): estrutural, decorrente de desigualdade social; interpessoal, refere-se nas

relações cotidianas; e institucional, que se reflete na aplicação ou omissão da gestão das

políticas sociais e pelas instituições de assistência.

Para Minayo (2003, p. 784), a violência contra pessoas idosas pode ser vista a partir

de três parâmetros:

• Demográfico: vincula-se ao acelerado crescimento nas proporções de idosos em

quase todos os países do mundo, repercutindo nas formas de visibilidade social e na

expressão de suas necessidades.

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100

• Socioantropológico: a idade cronológica é ressignificada como um princípio

norteador de novos direitos e deveres, consequentemente as fases da vida (infância,

adolescência, vida adulta e velhice) não constituem propriedades substanciais. Pelo

contrário, “o processo biológico, que é real e reconhecido por sinais externos do

corpo, é elaborado simbolicamente pela sociedade, em rituais que definem, nas

fronteiras etárias, um sentido político e organizador do sistema social” (Minayo;

Coimbra Jr., 2002, p. 14). A maioria das culturas tende a separar as pessoas idosas,

isolá-las, de forma real ou simbólica, a desejar sua morte. Esse desejo social de morte

dos idosos geralmente se expressa nos conflitos intergeracionais, maus-tratos e

negligências, cuja elaboração cultural e simbólica diferencia-se no tempo, por classes,

por etnias e por gênero (Minayo, 2003, p. 784).

• Epidemiológico: evidencia os indicadores com os quais o sistema de saúde mede a

magnitude das violências no cotidiano da vida, das instituições e do próprio Estado

(Minayo, 2003, p. 784).

As pesquisas de Minayo (2003, p. 788) esclarecem que a pessoa idosa sofre, ao

mesmo tempo, vários tipos de maus-tratos, e isso repercute em diferentes status

socioeconômicos, etnias e religiões, podendo ser de forma física, sexual, emocional e

financeira. Embora a violência no âmbito familiar seja representada como principal, há três

outras questões que disputam com ela um espaço de relevância.

Em primeiro lugar, um tipo de negligência social difusa que se manifesta como uma

cultura de relação com os idosos, juntamente com o Estado que se omite quanto aos

programas de proteção; instituições que abrigam e cuidam de idosos como se eles

estivessem em um corredor da morte; e famílias que abandonam seus idosos em clínicas e

asilos. Em segundo lugar, a violência institucional, expressada em asilos, onde são comuns

processos de maus-tratos, de despersonalização, de destituição de poder e vontade, de falta

ou inadequação de alimentos, medicações e cuidados médicos. Em terceiro lugar, a questão

dos transportes públicos e do trânsito, onde a violência começa no design dos ônibus, com

escadas altas e roletas apertadas, insensibilidade de motoristas e cobradores, usuários que

não respeitam os lugares prioritários (Minayo, 2003, p. 788).

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Em decorrência de tais evidências, pode-se destacar que “uma atitude violenta pode

implicar a negação da corporeidade, da classe social, da cultura, da etnicidade, da história

pessoal, da crença e dos espaços geopolíticos” (Oliveira, 2011, p. 17).

A partir desse contexto, vale também ressaltar que a caracterização do agressor é de

vital importância diante de situações de risco que a pessoa idosa vivencia nos lares, como:

agressor e vítima viverem na mesma casa; filhos serem dependentes de pais idosos; idosos

dependerem de seus filhos para sua manutenção e sobrevivência; abuso de álcool ou drogas

pelo filho ou pelo próprio idoso; ambiente com pouco vínculo afetivo; isolamento social

dos familiares e da pessoa idosa; histórico de violência na família; cuidadores vítimas de

violência doméstica; padecimento de depressão ou qualquer sofrimento mental ou

psiquiátrico (Minayo, 2003, p. 789).

No que concerne à especificidade de gênero, dentro de casa as mulheres são mais

abusadas que os homens; nas ruas, os homens são as vítimas preferenciais. De ambos os

sexos, os idosos mais vulneráveis são os dependentes físicos ou mentais, sobretudo quando

ficam evidenciados déficits cognitivos, alterações do sono, incontinência, déficits motores,

ou quando necessitam de cuidados intensivos em suas atividades básicas e instrumentais de

vida diária (Minayo, 2003, p. 789-790).

Wolf (1995 apud Minayo, 2003, p. 790) enfatiza que as consequências desses maus-

tratos provocam na vida da pessoa idosa experiências de depressão, desesperança,

alienação, desordem pós-traumática, sentimentos de culpa e negação das ocorrências e

situações de maus-tratos. Além do “não reconhecimento da alteridade, das diferenças e da

desvalorização dos direitos individuais, sociais, civis, culturais e econômicos de uma etnia”

(Oliveira, 2011, p. 18).

Pode-se concluir, a partir dessas reflexões, que a comunicação eficiente com o idoso

torna-se necessária para uma adaptação às mudanças comuns, fisiológicas, psicológicas e

sociais, associadas ao processo de envelhecimento. Os déficits de aprendizado, visão,

audição e fala, relacionados à idade, requerem adaptações na abordagem da comunicação

pelo profissional de assistência à saúde.

Uma questão importante é respeitar a individualidade de cada idoso. O preconceito

contra os idosos permanece na sociedade e continua estimulando afirmações equivocadas

sobre as capacidades, a inteligência e as habilidades físicas das pessoas idosas.

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102

Uma variável importante da qualidade de vida do idoso é o impacto da cultura e das

etnias, sendo fundamental o modelo de defesa do idoso abrangendo princípios de

assistência compassiva à saúde que realmente fortaleça os idosos. Em qualquer política de

prevenção e atenção à violência contra a pessoa idosa é necessário considerar as diferentes

formas de configuração do problema, devendo ser objeto de atenção políticas que

redefinam o lugar do idoso no espaço social, valorizando o cuidado, a proteção e sua

subjetividade.

O aumento da expectativa de vida entre idosos e estudos sobre o bem-estar na velhice

vêm crescendo e apontam para a importância da religiosidade e da espiritualidade como

recurso de enfrentamento diante de eventos estressantes (Sommerhalder; Goldstein apud

Duarte; Wanderley, 2011, p. 49).

3. A espiritualidade como apoio no enfrentamento

da violência na vida do idoso Religião e espiritualidade ocupam lugar de destaque na vida de pessoas idosas, visto

que o envelhecimento traz consigo questões existenciais que a religião tenta responder

(Duarte; Wanderley, 2011, p. 49). Para Santana (2006, p. 27), a religião ainda é identificada

como fonte de significação na vida, assim a tradição e a experiência religiosa conduzem a

pessoa idosa a crer. Em poucas palavras, a religião é algo que consegue garantir as

motivações mais profundas do ser humano e dar sentido à vida (Oliveira, 2011, p. 21).

A espiritualidade tem a ver com uma reflexão, uma busca pessoal sobre o significado

da vida e a relação com o sagrado ou o transcendente, portanto a espiritualidade pode ou

não estar ligada a uma religião. Ou seja, as pessoas podem ter crenças individuais sem

voltar-se a algo específico de uma religião (Duarte; Wanderley, 2011, p. 50).

Para tanto, pelo fato de a pessoa idosa estar mais vulnerável a sofrer perdas, e isto é

evidenciado pelo número de anos vividos, é-lhe permitido experienciar diferentes

condições e estados de saúde, podendo acarretar consequências negativas em sua saúde,

como, por exemplo: a perda da beleza; a perda do corpo saudável, dando lugar às doenças

crônicas; a perda financeira, decorrente da aposentadoria; a perda da independência e

autonomia; dentre outras. Assim, por esses e tantos outros fatores é que a religião e a

espiritualidade podem auxiliar no enfrentamento dos eventos estressores.

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103

A religião permitirá à pessoa idosa o entrelaçamento de relações igualitárias, o direito

de igualdade de oportunidades e prestígio social, garantindo às pessoas excluídas a

manifestação do seu ser pessoa, por meio da riqueza cultural que cada um traz em sua

corporeidade, em seu ser o outro e a outra na condição de pobre, marginalizado e

esquecido. No entanto, somente a partir desse contexto de extrema fragilidade e pobreza é

que se pode manifestar que a plenitude da vida tem prioridade sobre as diferenças (Oliveira,

2011, p. 21).

Para Santana (2006, p. 29), a ligação entre religião e saúde pode auxiliar a adoção de

comportamentos saudáveis, além de que a participação religiosa fornece apoio social. A

veneração e a oração religiosa podem produzir experiências emocionais positivas.

Consequentemente, crenças religiosas podem relacionar-se com crenças positivas de saúde

e fornecer uma atitude positiva e otimista à pessoa idosa, pois a fé é, “antes de tudo, calor,

vida, entusiasmo, exaltação de toda atividade mental, transporte do indivíduo acima de si

mesmo” (Durkheim, 1989, p. 502). Em outras palavras, Durkheim enfatiza que a fé

aumenta a energia que existe dentre de cada indivíduo, e isto é algo almejado pelos idosos

para cura e alívio de seus males, dificuldades familiares e suas próprias necessidades.

Em suma, envelhecer é um processo que exige competência adaptativa, capacidade

para responder com resiliência aos eventos que surgem na vida e para ajustar-se aos

desafios acarretados pela doença. Implica ter discernimento de prioridades, manter relações

sociais positivas, lutar por direitos e encontrar equilíbrio para lidar com as adversidades

físicas.

Para tanto, a religião e a espiritualidade são de grande relevância como recursos de

enfrentamento na vida da pessoa idosa, proporcionando bem-estar e um satisfatório

equilíbrio de suas funções vitais, além de apresentar maior capacidade de lidar com as

circunstâncias adversas da vida, garantindo o direito à alteridade e à diferença sem destruir

o diálogo e a comunhão.

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Intolerância religiosa e violência simbólica:

uma análise do caso Mãe Gilda

Cilma Laurinda Freitas e Silva*

Introdução As demonstrações de intolerância religiosa no contexto brasileiro advêm do período

colonial, uma vez que o contato entre portugueses e índios foi de estranhamento em relação

às práticas religiosas de ambas as partes.

Com frequência, os discursos religiosos na Igreja Católica e nas denominações

protestantes demonizam as práticas afro-brasileiras e fazem referência aos seus cultos de

maneira desrespeitosa e pejorativa.

As tentativas de ecumenismo por parte de alguns grupos religiosos restringem-se a

momentos em que se expõem as diversas formas de pensamento, mas não passam disso,

pois na maioria das vezes, no final das cerimônias, os ataques ofensivos permanecem.

O caso Mãe Gilda é reflexo de todos esses sinais de intolerância, culminando em sua

morte um ano depois da demonstração de total desrespeito por parte da Igreja Universal do

Reino de Deus (doravante: IURD). O presente artigo pretende mostrar, utilizando o relato

da Mãe Gilda, mais uma forma de intolerância aos cultos afro-brasileiros.

1. O caso Mãe Gilda De acordo com Araújo (2007), a IURD é conhecida pela campanha contra

manifestações religiosas de matriz africana, que é refletida em publicações pejorativas e

ataques constantes a terreiros e membros do Candomblé.

O caso Mãe Gilda teve grande repercussão nas mídias nacional e internacional. Tal

fato ocorreu no ano de 1999, quando a IURD publicou uma foto da iyalorixá Gildásia dos

Santos e Santos, moradora do bairro de Itapuã, Salvador-BA, no jornal Folha Universal,

*

Mestranda em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, bolsista da

CAPES. E-mail: [email protected].

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cuja tiragem era de 1.372.000 unidades, ampla e gratuitamente distribuída, com o seguinte

título: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.

A fotografia foi retirada pela IURD de uma reportagem da revista Veja do ano de

1992, na qual a religiosa aparecia com oferenda em demonstração de apoio ao impeachment

do presidente Fernando Collor. A reportagem da IURD chocou adeptos da Umbanda e do

Candomblé e deu inicio a uma luta da família e de adeptos do Candomblé contra esse tipo

de atitude intolerante da Igreja. Algumas pessoas, ao verem a foto da iyalorixá sem ler a

reportagem, pensaram até mesmo que ela havia se convertido à IURD, desacreditando do

seu próprio trabalho.

Outro fato constrangedor foi a maneira como adeptos de outras religiões atacaram

diretamente a casa da Mãe Gilda, direcionando as agressões a ela e seu marido de maneira

verbal e física, chegando ao ponto de quebrarem objetos sagrados lá expostos, numa

demonstração de grande violência e total falta de respeito. Com a saúde fragilizada e

tomada de angústia e decepção, piorou o estado físico, mental e espiritual de Mãe Gilda, e

ela veio a óbito no dia 21 de janeiro de 2000.

Após a morte de Mãe Gilda, sua filha, Jaciara Ribeiro, assumiu a função de mãe de

santo, demonstrando com isso a presença de um carisma hereditário, comum entre as

lideranças religiosas afro-brasileiras. Vale destacar que Jaciara foi uma das maiores

batalhadoras pela causa da sua mãe.

Jaciara constituiu os advogados de Koinonia (convênio com a Associação de

Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia [AATR]) para representarem a

família em ação judicial promovida contra a IURD, através da assessoria do Programa Egbé

Territórios Negros.

De acordo com Silva (2009), o falecimento de Mãe Gilda ocorreu no dia seguinte

àquele em que ela assinou a procuração constituindo poderes a seus advogados para

defender o caso. Dessa forma, iniciaram-se, em território nacional, os debates em torno da

intolerância religiosa, que culminaram na instituição do dia 21 de janeiro como o Dia

Nacional de Combate à Intolerância Religiosa (MCIR), oficializado pela Lei 11.635, em

2007. Nessa data comemorativa é celebrada a liberdade de expressão religiosa individual e

coletiva, garantida por lei. De acordo com Araújo (2007), foram realizados vários debates

sobre essa temática após a morte de Mãe Gilda.

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Em 2004, a IURD foi condenada, em primeira instância, a publicar a sentença na capa

e encarte do jornal Folha Universal por duas tiragens consecutivas, indenizando a família

com o valor de R$ 1.372.000,00 (um milhão, trezentos e setenta e dois mil reais),

correspondentes a R$ 1,00 (um real) para cada exemplar da Folha Universal distribuída,

valor reajustável pelo INPC desde 1999.

Conforme Araújo (2007), em apelação na segunda instância – Tribunal de Justiça da

Bahia – pela IURD e sua gráfica, o processo ficou sem resposta até maio de 2005, quando

muitos candomblecistas realizaram um ato público diante do Tribunal de Justiça da Bahia a

fim de reivindicar uma decisão do tribunal. Nesse mesmo ano, no dia 6 de julho, saiu a

decisão sobre o caso: o Tribunal de Justiça da Bahia julgou e condenou a IURD, por

unanimidade, por danos morais e uso indevido da imagem da iyalorixá. Ratificando, com

isso, o resultado dado na decisão da primeira instância. A única alteração foi a redução do

valor da indenização para R$ 960.000,00 (novecentos e sessenta mil reais). Assistiram à

sessão do julgamento familiares e amigos de Mãe Gilda, candomblecistas e simpatizantes,

militantes de movimentos sociais e jornalistas. Tal vitória conquistada representa não

apenas o ganho de uma causa pessoal, mas também de um luta coletiva realizada por

aqueles que combatem a intolerância religiosa.

Contudo, a IURD recorreu da decisão e apelou tanto para o Superior Tribunal de

Justiça (STJ), em Brasília, como para o Supremo Tribunal Federal (STF). Vale destacar que

o STF não admitiu o pedido, por julgá-lo improcedente.

Depois de longos nove anos de luta e diversas mobilizações públicas reivindicatórias,

no dia 16 de setembro do ano de 2008, finalmente, saiu a decisão da terceira instância, na

qual o Superior Tribunal de Justiça confirmou, por unanimidade, a condenação da IURD,

ficando esta obrigada a publicar retratação no jornal Folha Universal, e também a pagar

indenização, que foi reduzida de R$ 1,4 milhão (um milhão e quatrocentos mil reais), de

acordo com a decisão da primeira instância, para R$ 145.250,00 (cento e quarenta e cinco

mil e duzentos e cinquenta reais). O dano financeiro imputado à IURD não é significativo,

levando-se em conta o seu patrimônio milionário, o que deixa em alerta a atenção dos

religiosos, considerando que fatos semelhantes possam ocorrer.

A vitória dos adeptos contrários à intolerância religiosa faz jus ao que está disposto

no Código Penal e na Constituição Federal, que, em seu artigo 5o, diz:

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[...]

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício

dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas

liturgias;

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção

filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e

recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; [...]

Diante disso, a Constituição Federal assegura às pessoas a liberdade de crença. É

importante ressaltar o que nos mostra o Código Penal no Título V – Dos crimes contra o

sentimento religioso e contra o respeito aos mortos, Capítulo I – Dos crimes contra o

sentimento religioso (ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo):

Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa;

impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou

objeto de culto religioso: [...]

Contudo, o fato de estarmos garantidos legalmente para que possamos professar

nossa fé não é o suficiente, pois assistimos, no caso da Mãe Gilda, ao cumprimento das leis,

que, no entanto, não se deu de forma pacífica em razão da morosidade da justiça brasileira,

senão com muita luta dos movimentos afro-brasileiros.

2. Intolerância religiosa e a violência simbólica Para melhor analisarmos o caso de violência sofrida por Mãe Gilda, buscaremos

explicitar o que entendemos por violência e sua relação com a religião.

Aubrée (2004), ao analisar a religião e a violência, identifica essas temáticas a partir

de duas áreas do conhecimento, ou seja, a antropologia e a história. Na perspectiva

histórica, ela entende que a relação entre a violência e a religião existe desde a Antiguidade.

No que diz respeito ao aspecto antropológico, tal relação diz respeito à diversidade de

culturas.

Sobre os tipos de violência presentes nas religiões, Aubrée destaca a física, que

ocorre principalmente entre os iniciados/novatos. Já a violência simbólica é a mais

frequente e pauta-se na imposição de comportamentos, preceitos e dogmas que os fiéis

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seguem. Para ilustrar sua abordagem, a autora destaca os movimentos proféticos, os de

cunho milenarista e os messiânicos, cujos líderes carismáticos estão insatisfeitos com a

realidade e acreditam em dias melhores. É comum entre eles, ainda, a fé em um reino,

tendo em vista que em um mundo pacífico a violência não se fará presente entre seus

adeptos.

A autora destaca também algumas organizações religiosas atuais, como a Igreja do

Reverendo Moon, o Hare Krishna e a Igreja Universal do Reino de Deus. Nelas a autora

percebe diversas formas de violência simbólica mediante a imposição de comportamentos

tanto aos que dela fazem parte como àqueles que não comungam ideias (Aubrée, 2004). Ela

se refere também a alguns movimentos que incentivam a realização dos suicídios em

massa. Para Aubrée, há em todos uma busca de salvação pessoal após a morte. Alguns

grupos do neoevangelismo, do esoterismo e também dos terroristas incentivam o suicídio

com promessa de recompensa no paraíso celestial. No caso dos grupos terroristas, a autora

enfatiza que há um objetivo político por trás de tal prática, mas afirma que esta é sustentada

fortemente pelo discurso religioso.

Numa análise weberiana, Aubrée identifica a presença de uma dominação burocrática

e carismática nesses movimentos e, concomitantemente, a prática de vários tipos de

violência, ou seja, a física, a simbólica, a interna e a externa.

No que se refere especificamente ao fundamentalismo, Terrin (1998) destaca que a

discriminação sempre se dá em relação ao outro e nunca ao seu próprio grupo. Para ele,

cada religião possui uma lógica interna que não é compreensível externamente. Contudo, a

postura fundamentalista não admite esse estranhamento por parte da sua própria religião e

se declara totalmente contrária à pluralidade religiosa, já que se fecha em suas ideias. Entre

os grupos fundamentalistas, o autor destaca as Testemunhas de Jeová, a Igreja do

Reverendo Moon e os mórmons. A semelhança entre esses grupos está na maneira como é

enfatizada a figura do líder carismático, pois se pautam principalmente na autoridade da

tradição. Terrin entende por fundamentalismo a forma de uma religião impor-se sobre as

demais e não querer reconhecer o outro. Para Terrin e Oro (1996), porém, nem sempre o

fundamentalismo está ligado ao fanatismo e ao sectarismo religioso. Oro destaca também

como o fundamentalismo pode estar presente no Protestantismo, no Catolicismo e no

mundo islâmico, sem, contudo, acusar as religiões e seus adeptos de terroristas.

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Para Terrin, todas as religiões são fundamentalistas na medida em que elas buscam

ater-se às suas tradições, normas e doutrinas. O perigo está, porém, em os adeptos, a partir

de tais “fundamentos”, julgarem-se superiores aos outros e interpretarem a sua religião

como sendo a única e verdadeira.

Um caso interessante analisado por Terrin é o fato de que, mesmo adormecida, a

crença racista permanece no repertório cognitivo da pessoa, demonstrando que “as

circunstâncias adequadas podem causar sua ativação e utilização em processos cognitivos

que influenciam a emoção e o comportamento” (p.185).

Isso se dá com tamanha força que as crenças racistas permanecem mesmo quando há

repúdio e desejo em expulsá-las. Há, para tanto, a contribuição da memória para a

cognição. Após longa explanação sobre a maneira como o racismo está entronizado nas

pessoas, Terrin afirma: “O racismo pode ser efetivamente derrotado em muitos corações

individuais que o abrigam, mas somente evitando-se um ideal sentimental e excessivamente

ambicioso em favor de uma abordagem mais adulta, sóbria, pragmática e realista” (p. 193).

Além disso, Terrin destaca a possibilidade de se exercitarem pensamentos que lançam

mão do desejo pela prática racista. Tal situação permite que se “afrouxe a pressão do desejo

por algum tempo” (p. 195).

Assim, a minimização das crenças racistas é vista por Terrin como uma forma mais

coerente de combater o racismo. Ele defende o princípio de que tais crenças geralmente são

fundamentadas na ideia de superioridade de um grupo em relação a outros.

3. Caso Mãe Gilda à luz dos teóricos Após uma análise minuciosa do que teria sido o caso Mãe Gilda e a análise dos

teóricos que abordam a violência, pode-se considerar que a violência simbólica1

conceituada por esses teóricos faz-nos refletir como ela pode ser aplicável a esse lastimável

caso que marcou a história dos grupos afro-brasileiros, os quais vêm adquirindo cada vez

mais espaço no cenário nacional.

Como vimos no item anterior, de acordo com Aubreé (2004), houve não só por parte

dos adeptos da IURD, mas também por seus próprios dirigentes, uma imposição de sua fé e

1 A violência simbólica é o exercício de poder sobre o outro. Ela pode ser vista muitas vezes na

relação entre homens e mulheres (Souza, 2009, p. 29).

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comportamento fundamentalista em relação às religiões afro-brasileiras. Essa imposição,

denominada pela autora violência simbólica, gerou um transtorno para todos os

umbandistas e candomblecistas, que se sentiram feridos em sua fé mediante a agressão

dirigida à Mãe Gilda, causando um dano irreparável, já que ela veio a óbito. De acordo com

Terrin (1998), a discriminação sempre se dá em relação ao outro e nunca ao seu próprio

grupo. O outro, o diferente, é discriminado, pois não é reconhecido em sua alteridade. A

discriminação é sofrida, desde os tempos de Brasil Colônia, pelos povos afrodescendentes.

Assim, quando a IURD buscou eliminar ou apropriar-se das diferenças, demonstrou em sua

atitude uma ação fundamentalista no sentido de querer eliminar o outro, modificá-lo e

convertê-lo à sua religião. Essa atitude é nitidamente fundamentalista (Oro, 1996).

Nos momentos em que os adeptos da religião afro-brasileira, jornalistas e

representantes de movimentos sociais voltam-se contra as posturas intolerantes, como a da

IURD, percebe-se também um processo de conscientização da sociedade e uma busca por

fazer com que haja uma mudança de mentalidade em relação a esse tipo de conduta, que é

incompatível com a Constituição Federal e o Código Penal.

Considerações finais O caso Mãe Gilda, certamente, é apenas um de muitos que poderiam ser

demonstrados como manifestação de intolerância religiosa no território brasileiro. A sua

análise permitiu-nos aprofundar o estudo da violência e do fanatismo religioso e sua relação

com a religião.

Refletir sobre o caso mãe Gilda à luz dos teóricos fez-nos perceber como a aplicação

de conceitos proporciona uma noção ampla do sentido da violência simbólica e física

presente nos discursos das religiões.

A agressividade, a demonização e a intolerância, que foram temas estudados com

base na análise do período colonial, ainda permanecem nos discursos religiosos, instigando

a prática de violência no seio das escolas e da sociedade.

Enfim, o caso Mãe Gilda não é apenas a análise de uma agressão pessoal, ele reflete a

situação de um país cuja pluralidade religiosa exige que haja um debate profícuo em

relação à intolerância, a fim de que consigamos amenizar as nossas diferenças.

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Referências ARAÚJO, Mauricio Azevedo de. Do combate ao racismo à alteridade negra: as religiões de matriz

africana e a luta por reconhecimento jurídico – Repensando a tolerância e a liberdade religiosa em

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AUBRÉE, Marion. Religião e violência numa perspectiva transcultural e transnacional (as

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______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:

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SILVA, Jorge da. Guia de luta contra a intolerância e o racismo. Rio de Janeiro: CEAP, 2009.

TERRIN, Aldo Natale. O sagrado off limits; a experiência religiosa e suas expressões. São Paulo:

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