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Page 1: Revista de Conjuntura n. 47

ISSN

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ANO XII • Nº 47 • outubro de 2011 / março de 2012

Revista deConjunturaPublicação do Conselho Regional de Economia do Distrito Federal

Antônio Rocha, presidente da Federação das Indústrias do Distrito Federal (Fibra), fala

sobre as principais ações que a entidade a qual representa tem realizado, como também

as perspectivas de crescimento da indústria no Distrito Federal.

artigos

ENtrEVista

O aperfeiçoamento da função reguladora do Estado

Rodrigo Augusto Rodrigues

Os desafios democráticos na governança da política monetária

brasileira e o ponto Nairu Ricardo Wahrendorff Caldas e

James Batista Vieira

Commodities: estruturalismo às avessas

Antônio Elias Silva e José Nelson Bessa Maia

Ainda sobre a DRU José Fernando Cosentino Tavares e

Márcia Rodrigues Moura

Endividamento:educação, treinamento,

comportamento ou terapia?José Eustáquio Moreira de Carvalho

A hora e a vez da retomada do planejamento estratégico governamental no Brasil

José Celso Cardoso Jr.

Análise histórica - Reflexos de uma crise anunciada: o Brasil e a América Latina

frente aos desafios dos anos 1930Günther Richter Mros

O Distrito Federal, mesmo com crise política e atraso de obras públicas,

manteve ritmo de crescimento elevado, com destaque

para o segmento industrial.

Page 2: Revista de Conjuntura n. 47

COMECE A FAZER PARTE DESDE JÁ DA SUA COMUNIDADE PROFISSIONAL!

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O estudante credenciado terá os mesmos benefícios oferecidos aos economistas registrados, em igualdade de condições, exceto aqueles diretamente relacionados ao exercício profissional que sejam privativos dos profissionais registrados por determinação da lei.

Ao apresentar a credencial em qualquer Conselho Regional de Economia, o portador poderá consultar a legislação regulamentadora da profissão do economista, extrair cópias de artigos sobre temas de economia e ter acesso às publicações do Sistema COFECON/CORECONs, videotecas e bibliotecas, além de conseguir descontos nos eventos do Sistema COFECON/CORECONs.

Documentos necessários:

• Declaração de matrícula e frequência da Faculdade, mencionando data prevista de conclusão do curso (original e cópia);• Documento de identidade (original e cópia);• CPF;• 2 fotos 3x4 coloridas;• comprovante de residência (original e cópia);• preenchimento do requerimento da credencial.

End.: SCS Qd. 04, Ed. Embaixador, Sala 202 CEP 70300-907 – Brasília/DFTel: (61) 3225-9242 / 3223-1429 / 3964-8366 / 3964-8368Horário de funcionamento: das 8h às 18h (sem intervalo)E-mail: [email protected]

Aluno e aluna de

de qualquer período ou sérieCiências Econômicas

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Tãmnia

A assinatura da Revista de Conjuntura pode ser efetuada contatando o Corecon-DF. O valor da assinatura é de

R$ 40,00 anuais, o que equivale a quatro edições da revista.

06 O aperfeiçoamento da função

reguladora do EstadoRodrigo Augusto Rodrigues

11Os desafios democráticos na

governança da política monetária brasileira e o ponto Nairu

Ricardo Wahrendorff Caldas e James Batista Vieira

15Commodities: estruturalismo

às avessasAntônio Elias Silva e

José Nelson Bessa Maia

22Ainda sobre a DRU

José Fernando Cosentino Tavares e Márcia Rodrigues Moura

31Endividamento:

educação, treinamento, comportamento ou terapia?

José Eustáquio Moreira de Carvalho

36A hora e a vez da retomada do

planejamento estratégico governamental no Brasil

José Celso Cardoso Jr.

42Análise histórica -Reflexos de uma crise

anunciada: o Brasil e a América Latina frente aos desafios dos anos 1930

Günther Richter Mros

ArtigoS

2 Editorial3 Entrevista

Antônio Rocha

ÍndicePublicação do Conselho Regional de

Economia do Distrito Federal

ANO XII • Nº 47 • outubro de 2011/março de 2012

ConjunturaRevista de

Nesta edição

28 Matéria Finanças pessoais:

há problemas à frente?

Page 4: Revista de Conjuntura n. 47

Editor responsávelJosé Luiz Pagnussat

Conselho editorialCarlos Eduardo de FreitasElder Linton Alves de AtaújoJosé Fernando Cosentino TavaresJosé Roberto Novaes de AlmeidaHumberto Vendelino RichterMaurício Barata de Paula PintoNewton Ferreira da Silva MarquesOscar Henrinque Belo SantosTito Belchior Silva MoreiraJúlio Miragaya

Jornalista responsávelCamila Fiorese (Reg. DRT/DF: 7851)

Redação e editoração eletrônicaCamila Fiorese

Revisão Letícia Sallorenzo

Tiragem: 4.000Periodicidade: trimestral

As matérias assinadas por colaboradores não refletem, necessariamente, a posição da entidade. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta edição, desde que citada a fonte.

CONSELHO REGIONAL DE ECONOMIA DA 11ª REGIÃO - DF

PresidenteJusçanio Umbelino de Souza

Vice-presidenteMaria Cristina de Araújo

Conselheiros efetivosCarlos Eduardo de FreitasOscar Henrique Belo Santos Tito Belchior Silva Moreira Gilson Duarte Ferreira dos SantosCarlito Roberto ZanettiPaulo Roberto Amorim LoureriroJusçanio Umbelino de SouzaMaria Cristina de Araújo Evilasio da Silva Salvador

Conselheiros suplentesPaulo Luiz Figueiredo de OliveiraMiguel RendyElder Linton Alves de Araujo Bento de Matos FélixJucemar José ImperatoriCésar Augusto Moreira BergoRoberto Bocaccio Piscitelli Mônica Beraldo Fabrício da Silva Humberto Vendelino Richter

Delegado eleitor efetivoMario Sergio Fernandez Sallorenzo

Delegado eleitor suplenteJusçanio Umbelino de Souza

Conselheiros federais efetivos pelo DFRoberto Bocaccio Piscitelli

Conselheiros federais suplentes pelo DFJúlio Miragaya Max Leno de Almeida

Equipe do Corecon-DF

Gerente executivoRonaldo Galloti Schroeder

Angeilton Francisco Lima Faleiro Camila FioreseHélio Matheus Silva de OliveiraIraci da Costa Lopes Jamildo Cezário Gomes Michele Cantuária Soares

End.: SCS Qd. 04, Ed. Embaixador, Sala 202CEP 70300-907 – Brasília/DFTel: (61) 3225-9242 / 3223-14293964-8366 / 3964-8368Fax: (61) 3964-8364E-mail: [email protected]: www.corecondf.org.brHorário de funcionamento:das 8h às 18h (sem intervalo)

Esta edição da Revista de Conjuntura traz a entrevista concedida pelo Presidente da

Federação das Indústrias do Distrito Federal (Fibra), com uma excelente análise da econo-

mia do DF. Aparentemente, a continuidade do bom desempenho econômico do Distrito

Federal, observado nos últimos anos, está garantida. A crise política e a paralisação de boa

parte das obras iniciadas no governo anterior já estão sendo superadas. O impacto na

economia foi pequeno, mas o transtorno e mal-estar para a população foram elevados.

Os dados de crescimento do PIB do DF para o ano de 2011 ainda não estão disponí-

veis, mas o bom desempenho da economia é confirmado pelos indicadores de emprego.

A taxa média de desemprego registrada no DF em 2011 é a menor dos últimos 20 anos.

Foi de 12,4%, de acordo com a Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) elaborada pela

Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) e a Secretaria de Trabalho do

DF em parceria com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconô-

micos (Dieese).

O dinamismo da economia do DF se deve a vários fatores, com destaque para o cres-

cimento do emprego público, dado o grande número de concursos realizados, e prin-

cipalmente pelo elevado crescimento dos salários dos servidores nos últimos anos. A

reestruturação das carreiras e a política de recuperação salarial, implementada desde

2005, proporcionaram substancial elevação do consumo das famílias dos servidores. O

crescimento da demanda garantiu a expansão da economia local e a elevação do empre-

go em outros setores, em especial no comércio e serviços relacionados ao lazer, além de

ter aquecido o emprego no setor de serviços domésticos.

O impacto da política salarial do setor público na economia do DF se deve à elevada

participação desse setor no PIB. Em 2009, o Setor Público representava 55% do PIB do DF,

enquanto os demais setores de serviços contribuíam com 37,6%, a indústria com 6,5% e

a agricultura com 0,5% do PIB.

O início das obras de infraestrutura e o estímulo aos investimentos nos setores de

serviços relacionados com os diversos megaeventos esportivos que ocorrerão em Bra-

sília nos próximos anos estão contribuindo também para o crescimento da economia

do Distrito Federal. Tais investimentos são altamente dinamizadores da economia, tanto

pelas verbas necessárias à realização dos eventos como pelo crescimento do turismo e

do comércio durante os jogos. O primeiro campeonato esportivo a ocorrer em Brasília

será a Copa das Confederações, em 2013, seguida da Copa do Mundo em 2014 e a Copa

América em 2015.

A expectativa é de que os eventos esportivos compensem o desaquecimento da eco-

nomia do DF causado pelo congelamento dos salários dos servidores e pela redução do

crescimento do emprego público, adotados pelo governo federal em 2012.

Entretanto, o risco maior para a manutenção do dinamismo da economia do DF é a

política cambial. A baixa taxa de câmbio, com a valorização do real frente ao dólar, está

tornando as compras no exterior uma opção altamente compensadora do ponto de vista

financeiro. A defasagem cambial representa um forte subsídio para os comerciantes do

exterior em relação ao comércio local.

Em 2011, as viagens internacionais dos moradores do DF cresceram mais de 90% - e já

estavam elevadas em 2010. O alto poder de compra das famílias do DF vem aquecendo

as compras no exterior – mas as vantagens econômicas dessas compras ficam lá fora, não

no DF.

EditorialEditorialPublicação do Conselho Regional de Economia do Distrito Federal

ConjunturaRevista de

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Presidente da Fibra fala sobre as perspectivas e os

desafios da economia no Distrito Federal

ENTREVISTA

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abril / junho / 2011

Antônio Rocha

Conjuntura - Como está o andamento das

obras públicas no DF no atual governo? Tem

algum segmento que o senhor acredita que não

esteja recebendo a atenção devida por parte do

governo?

Antônio Rocha - O ano de 2011 não foi dos melhores

para a construção civil. Muitas obras paradas e promessas

de retomada após a arrumação da casa por parte do

governo. No final do ano, enfim, houve o anúncio de

que o setor terá, a partir de 2012, um montante de R$

778 milhões para executar obras no Distrito Federal.

Em princípio, serão 149 obras. O governador Agnelo

Queiroz assinou também um decreto de criação de

um comitê emergencial para avaliação de mais de 500

projetos parados nas administrações do DF.

Conjuntura - Quais os principais projetos de

interesse do setor industrial que estão na Câmara

Legislativa do DF?

Antônio Rocha - Do total de 538 projetos de interesse da

indústria que tramitaram no ano legislativo de 2011, 268

apresentaram movimentação processual ou de mérito.

Vários destes foram motivo de análise e intervenção por

parte de representantes da indústria, valendo destacar,

entre eles, projeto que dispõe sobre o Plano da Gestão

Integrada de Resíduos da Construção Civil e Resíduos

Volumosos, que se tornou lei; proposta que trata sobre

a instalação e o funcionamento de feiras itinerantes no

DF, aprovado no final do ano e aguardando apreciação

Goiano da cidade de Luziânia, nascido em 1956,

Antônio Rocha da Silva, trabalhou toda a sua vida

como empresário. Filiado ao Sindicato da Indústria da

Construção Civil do DF, Rocha se elegeu, em 2002, presi-

dente da Fibra, cargo que ocupa até hoje. Está em seu ter-

ceiro mandato. À frente da entidade, ajudou a promover

a ampliação do parque industrial da cidade, elevando os

índices de geração de emprego e renda em Brasília.

Em entrevista à Revista de Conjuntura do Corecon-DF,

o presidente da Fibra falou sobre as principais ações que

a entidade a qual representa têm realizado, como tam-

bém as perspectivas de crescimento da indústria no

Distrito Federal.

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do governador; assim como a proposição que obriga

a reserva mínima de 5% das vagas de emprego para

mulheres na área de construção de obras públicas;

e iniciativa que determina a instalação de aparelhos

climatizadores e umidificadores evaporativos nos

estabelecimentos comerciais e industriais, ambos

vetados pelo governador, aguardando apreciação do

veto pela Câmara Legislativa.

Conjuntura - Diante do bom desempenho da

economia brasileira no cenário internacional,

quais as perspectivas da indústria no DF e quais

as principais dificuldades em relação aos estados

vizinhos?

Antônio Rocha - Estamos em fase de criatividade

em tempos de crise. O primeiro desafio é justamente

manter a competitividade do Distrito Federal. Para isso

são necessárias medidas em parceria com o Governo,

principalmente na questão tributária. O segundo é

a qualificação profissional. Eu creio que a mão-de-

obra qualificada faz grande diferença na produção

do Distrito Federal. Os marcos regulatórios são outro

desafio, para que os investidores tenham segurança

nos investimentos feitos, mediante regras muito

claras. Essas são as preocupações sobre as quais nós

trabalhamos, para estimular os investimentos. Porque

nós queremos que os americanos, os chineses, os

coreanos invistam aqui, inclusive comprando nossos

produtos.

Conjuntura - Que políticas ou medidas a Fibra tem

adotado e defendido para fortalecer a indústria no

DF?

Antônio Rocha - Estudo feito pela Fibra, o Programa

Estratégico de Desenvolvimento Industrial, buscou

identificar os desafios e objetivos para a retenção de

indústrias e atração de novas plantas para o Distrito

Federal para fortalecer a indústria e aumentar sua

competitividade. A projeção do estudo é de que a

participação industrial no PIB subiria para 15% até

2015. É um objetivo que nós estamos buscando,

principalmente por meio de parcerias com o governo.

É importante o setor privado e o Governo agirem de

forma conjunta para que possamos promover esse

crescimento.

Conjuntura - Quais os setores com maior potencial

de crescimento no DF? E qual a vocação industrial

do DF?

Antonio Rocha - O Distrito Federal possui indústria

da construção civil, de alimentação, da metalurgia, da

tecnologia da informação, do vestuário, de grãos. O

‘‘

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A projeção do estudo é de que a participação industrial no PIB subiria

para 15% até 2015. É um objetivo que nós estamos buscando, principalmente por

meio de parcerias com o governo. É importante o

setor privado e o Governo agirem de forma

conjunta para que possamos promover

esse crescimento.

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outubro de 2011 / março de 2012

setor da construção civil abriga algumas das maiores

empresas do Brasil, inclusive empresas que participam

de obras em outros países. E no setor da tecnologia da

informação, temos empresas com representação em

23 países. A tendência é de maior incremento, porque

em breve teremos o Parque Tecnológico Capital Digital,

o que demonstra nossa vocação para a chamada

indústria limpa, o que também inclui fármacos e

semicondutores.

Conjuntura - Como está a competitividade da

indústria do DF no comércio internacional e quais

as perspectivas de crescimento das exportações do

DF?

Antônio Rocha - Hoje nós temos uma limitação.

Basicamente nossas exportações são decorrentes da

área de alimentação, especialmente de carnes de frango

e miudezas de frango. Mas, com o fortalecimento de

outros segmentos, como a tecnologia da informação

e a biotecnologia, a expectativa é melhorar a nossa

participação no mercado internacional. Para isso,

temos um Centro Internacional de Negócios que presta

assessoria às empresas no sentido de colocar o produto

no mercado exterior.

Conjuntura - Como está o desempenho da indústria

do DF no contexto de crise internacional e qual o

impacto da crise internacional na Indústria do DF?

Antônio Rocha - A crise está aí e, em um mundo

globalizado, ela afeta todas as esferas internacionais.

Mas nós apostamos em grandes investimentos no

Distrito Federal em decorrência da Copa do Mundo, da

qual Brasília sediará sete jogos. Portanto, nós teremos

investimentos em construção de estádio, mobilidade

urbana, ampliação da rede hoteleira. Enfim, são grandes

oportunidades que se abrem para que o mundo

faça investimentos numa cidade com alta renda per

capita, uma formação profissional semelhante à de

países desenvolvidos, uma cidade cujo IDH é o melhor

do país e se compara ao de grandes metrópoles

superdesenvolvidas.

Conjuntura - O senhor considera que o entorno

poderia ser solução para a ampliação do parque

industrial do DF?

Antônio Rocha - Considerando-se a relação

econômica existente hoje entre o Distrito Federal

e seu entorno, eu diria que sim. O DF se consolidou

como uma das principais áreas metropolitanas do país.

E por sua condição única de “cidade-estado”, possui

uma peculiaridade que a diferencia das demais áreas

metropolitanas, visto que a sua periferia metropolitana

situa-se em outra unidade da federação, ou seja,

o chamado entorno metropolitano, localizado em

Goiás, e que constitui com o DF um único mercado de

trabalho e de consumo, segundo estudos prospectivos

elaborados pela Federação das Indústrias do DF.

Além desse vínculo entre o DF e seu entorno, cabe

destacar ainda outros dois pontos favoráveis a essa

questão: a limitação de recursos naturais da Capital

Federal e a possibilidade de redução do enorme

desequilíbrio econômico existente hoje entre o DF e seu

entorno metropolitano. Nesse sentido, as perspectivas

de desenvolvimento para o setor industrial no DF deve

necessariamente levar em conta essa região.

Enfim, são grandes oportunidades que se abrem para que o mundo faça investimentos numa cidade com alta renda per capita, uma

formação profissional semelhante à de países desenvolvidos, uma cidade cujo IDH é o

melhor do país e se compara ao de grandes metrópoles superdesenvolvidas.

Antônio Rocha‘‘

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ArtigoO aperfeiçoamento da função reguladora do Estado com o

Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão

em Regulação (Pro-Reg)Rodrigo Augusto Rodrigues

Dentre as funções básicas do Estado

contemporâneo - prover bens públicos, redistribuir

renda, induzir a atividade econômica e regular

mercados, - podemos considerar que, no Brasil, a função

reguladora é que tem experimentado desenvolvimento

mais recente.

Numa perspectiva da economia brasileira

contemporânea, considerando o período do início

da expansão industrial, com o modelo substituidor

de importações implementado a partir da era Vargas

(com forte indução da atividade econômica pelo

Estado e pesados investimentos estatais na montagem

da infraestrutura, em especial energia, petróleo e

derivados, transportes e telecomunicações), a função

reguladora foi ofuscada pela forte atuação direta do

Estado, de forma a induzir a atividade econômica

privada e prestar diretamente bens e serviços públicos.

Obviamente, em uma república com democracia

incipiente, na qual predominaram períodos de

autoritarismo, não cabia o Estado regular a si mesmo.

Com o esgotamento do modelo substituidor de

importações e da capacidade de expansão do Estado

e de manutenção dos investimentos necessários à

expansão e modernização da infraestrutura, foram as

denominadas “reformas neoliberais” em meados dos

anos 1990. Essas reformas promoveram a flexibilização

dos monopólios do Estado nos setores de energia,

gás, petróleo e derivados e telecomunicações, com

as emendas constitucionais submetidas pelo Poder

Executivo e aprovadas pelo Congresso em 1995

(Emendas Constitucionais nºs 6, 8 e 9). Também em

1995 foi sancionada a lei sobre o regime de concessão

e permissão da prestação de serviços públicos, que

regulamentou o art. 175 da Constituição Federal (Lei nº

8.987, de 1995).

Esses dispositivos constitucionais e legais,

acrescidos das legislações específicas que regulavam

a prestação de serviços e as concessões nos setores

de energia, petróleo e telecomunicações, permitiram

a desestatização da infraestrutura, a criação das

respectivas agências reguladoras, a instituição de

marcos regulatórios nesses setores e o desenvolvimento

da função reguladora do Estado brasileiro.

Desde então, dez agências reguladoras foram

criadas e instituídas no Poder Executivo Federal, para

regular as diversas imperfeições de mercado, como

os monopólios naturais (no caso de serviços de redes

de infraestrutura), assimetrias de informações (no

caso de vigilância sanitária e saúde suplementar), e

externalidades negativas e bens públicos (no caso do

uso da água e dos recursos hídricos).

As peculiaridades da regulação da concessão

e prestação dos serviços de infraestrutura (como

a necessidade de estabelecer marcos regulatórios

perenes e a autonomia dos reguladores, como forma

de atrair capital privado para o investimento em

setores que exigem grande volume de investimentos

e retorno a longo prazo), estabeleceram um paradigma

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Essas reformas pro-moveram a flexibiliza-

ção dos monopólios do Estado nos setores de

energia, gás, petróleo e derivados e telecomu-

nicações, com as emen-das constitucionais

submetidas pelo Poder Executivo e aprovadas

pelo Congresso em 1995 (Emendas Constitucio-

nais nºs 6, 8 e 9).

para o modelo regulador brasileiro, baseado na

pretensa autonomia ou independência das agências

reguladoras. Essa autonomia ficou expressa no

mandato de seus dirigentes e na existência de fontes de

recursos próprios, visando às autonomias orçamentária,

financeira e administrativa.

Quando criadas, as agências reguladoras não

contavam com quadro próprio de pessoal. A partir

do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do

Estado, implementado e vigente no governo do ex-

presidente Fernando Henrique Cardoso, elas não

foram consideradas como típicas de Estado. Seus

quadros iniciais foram constituídos por empregados

das empresas estatais que passaram a ser reguladas,

por funcionários terceirizados e por ocupantes de

cargos comissionados. O governo pretendia também

preenchê-las com ocupantes de empregos públicos,

regidos pela CLT – portanto passíveis de demissão e sem

estabilidade no emprego, característica reservada aos

servidores públicos. Considerando a função reguladora

como típica de Estado, partidos então de oposição

ingressaram com ação direta de inconstitucionalidade

e questionaram o regime do emprego público para os

quadros próprios de pessoal das agências reguladoras,

tese a princípio endossada pelo Supremo Tribunal

Federal, mas ainda pendente de decisão final.

Quando assumiu o seu primeiro mandato

como presidente da República, Luiz Inácio Lula da

Silva, em decorrência da polêmica ensejada pelo

papel e a autonomia das agências reguladoras e

o questionamento dessas entidades no modelo

de Estado desenvolvimentista então pretendido,

atribuiu a existências dessas agências ao anterior

modelo “neoliberal” e determinou a criação de um

grupo de trabalho que fizesse a análise da avaliação

do papel delas no arranjo institucional brasileiro. O

resultado final desse trabalho, contendo diagnóstico,

análise, conclusões e recomendações, foi aprovado

e divulgado no final de 2003. Em resumo, o grupo de

trabalho concluiu que o modelo das agências para o

exercício da função reguladora é o que permite os

melhores resultados em termos de promoção do bem-

estar social. Por outro lado identificou que o modelo

brasileiro carecia de aperfeiçoamentos, como os

mecanismos de controle social, prestação de contas e

transparência das agências, a dotação de seus quadros

próprios de pessoal e a delimitação e separação do

papel regulador e fiscalizador, atribuído às agências,

do papel de outorga de serviços públicos, reservado à

União como poder concedente.

Ao endossar o relatório desse grupo de trabalho,

o ex-presidente Lula determinou a implementação

das suas recomendações. Dentre elas, a criação das

carreiras e cargos efetivos das agências reguladoras,

regidos pela Lei 8.112, de 1990, por meio da edição de

medida provisória que, referendada pelo Congresso,

converteu-se na Lei nº 10.871, de 2004. A partir de então,

decorridos sete anos de criação das primeiras agências

reguladoras, foi possível realizar os concursos públicos

para a seleção e estabelecimento de seus quadros

próprios. Considero essa dotação dos quadros próprios

um marco na evolução e consolidação institucional das

agências reguladoras no país.

Também em 2004 o Poder Executivo encaminhou

ao Congresso Nacional o Projeto de Lei, que recebeu o

nº 3.337/2004 na Câmara dos Deputados, que dispõe

sobre as agências reguladoras, institui e uniformiza

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os mecanismos de controle social, transparência

e prestação de contas das agências reguladoras,

o papel das ouvidorias, as consultas e audiências

públicas, condições e mandato de seus dirigentes e

transferência do poder de outorga de serviços públicos

para os ministérios. A discussão sobre esse projeto de

lei foi distorcida pelo embate ideológico entre governo

e oposição, com esta utilizando o argumento da

interferência do governo para limitar a autonomia das

agências reguladoras. Até a presente data, o projeto

de lei está pendente de deliberação na comissão

especial instituída para a sua análise pela Câmara dos

Deputados.

Em 2007, a Organização para a Cooperação e o

Desenvolvimento Econômico (OCDE) realizou uma

revisão interpares (peer review), por solicitação

do governo brasileiro, sobre o modelo regulatório

e as agências reguladoras no Brasil. O estudo foi

concluído e publicado em maio de 2008. Envolveu a

análise dos setores e respectivas agências de energia,

telecomunicações, transportes terrestres e saúde

suplementar. O estudo comparou a regulação brasileira

com as melhores práticas regulatórias adotadas nos

países-membros da OCDE.

O estudo reconhece o mérito da instituição

das agências reguladoras no Brasil e seu histórico

ainda incipiente, e faz algumas recomendações.

Dentre elas, o aperfeiçoamento dos mecanismos de

prestação de contas, consulta pública e transparência

(accountability), a introdução sistemática da análise de

impacto regulatório e a criação de uma instância de

coordenação e supervisão da qualidade da regulação.

Ainda em 2007, em busca do aperfeiçoamento

da função regulatória do Poder Executivo, o governo

instituiu o Programa de Fortalecimento da Capacidade

Institucional para Gestão em Regulação - Pro-Reg. Sua

finalidade é contribuir para a melhoria do sistema

regulatório, da coordenação entre as instituições que

participam do processo regulatório exercido pelo

governo federal, dos mecanismos de prestação de

contas e de participação e monitoramento por parte

da sociedade civil da qualidade da regulação dos

mercados.

O Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação – PRO-REG

Instituído pelo Decreto nº 6.062, de 16 de

março de 2007, o Pro-Reg conta com o apoio do

Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

É coordenado por um comitê gestor composto

por representantes da Casa Civil da Presidência

da República e dos Ministérios da Fazenda e do

Planejamento, Orçamento e Gestão. Está estruturado

em quatro eixos de atuação, cujas funções são: (i)

fortalecer a capacidade de formulação e análise de

políticas públicas nos setores regulados; (ii) melhorar

a coordenação e o alinhamento estratégico entre

as políticas setoriais e o processo regulatório; (iii)

fortalecer a autonomia e melhorar o desempenho das

agências reguladoras; e (iv) desenvolver e aperfeiçoar

os mecanismos para o exercício do controle social e

transparência.

Para atingir esses propósitos, foram contratados

estudos de consultores para a análise e formulação

de subsídios para questões específicas, como: (i) uma

estratégia de implantação e institucionalização da

análise de impacto regulatório como instrumento

de apoio à melhoria da qualidade da regulação; (ii)

a estruturação de uma unidade de coordenação,

acompanhamento e avaliação da qualidade

‘‘

‘‘

Ainda em 2007, em busca do aperfeiçoa-

mento da função regulatória do Poder Executivo, o governo

instituiu o Programa de Fortalecimento da

Capacidade Institucional para Gestão em

Regulação - Pro-Reg.

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da regulação, com base nas melhores práticas

internacionais; (iii) o desenvolvimento e implementação

de um sistema de seleção de diretores das agências

reguladoras; (iv) a organização e aperfeiçoamento

das ouvidorias das agências; e (v) a conformação do

modelo de dados do Sistema Nacional de Informações

de Defesa do Consumidor (Sindec). Esses estudos, suas

conclusões e recomendações foram editados em dois

volumes em 2010.

Também constituem ações do Pro-Reg a

sensibilização e a capacitação de servidores públicos

federais para questões regulatórias específicas, cujo

objetivo principal é a capacitação dos quadros próprios

de pessoal das agências reguladoras, dos ministérios

e órgãos responsáveis pela formulação de políticas

públicas em setores regulados, dos órgãos e entidades

envolvidos com a defesa do consumidor, mas que

também tem permitido a capacitação de pessoal de

agências reguladoras estaduais e municipais.

O esforço de capacitação de pessoal das agências

reguladoras e ministérios promovido pelo Pro-Reg

já envolveu 1.544 servidores. A meta para 2012 é

capacitar outros 1.500, como informado na Mensagem

Presidencial ao Congresso Nacional de 2012. Entre

os cursos realizados, merecem destaque a realização

de sete edições do Curso Avançado em Regulação,

ministrado pelo Institute of Brazilian Business and Public

Management Issues vinculado à George Washington

University, que contou com 182 participantes; o

Programa de Fortalecimento de Competências

em Gestão e Regulação, em parceria com a Escola

Nacional de Administração Pública (Enap) e o Fórum

de Recursos Humanos das Agências Reguladoras,

com 560 participantes; o curso Regulação: Teoria e

Prática, ministrado por professores da London School

of Economics and Political Science e da Hertie Berlin

School of Governance; e o curso Regulação e Defesa do

Consumidor, em parceria com o Instituto Brasileiro de

Defesa do Consumidor e o Departamento de Proteção

e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça.

Entre as atividades desenvolvidas pelo Programa,

ressalta-se a implantação de projetos-piloto de Análise

do Impacto Regulatório (AIR) em agências reguladoras

federais. Em 2011, foram trabalhados 16 projetos-

pilotos em AIR em seis agências: Ancine, Aneel, ANP,

ANS, Antaq e Anvisa. O aproveitamento foi excelente e o

esforço foi reconhecido internacionalmente como um

grande avanço na melhoria da qualidade da regulação

no Brasil. Importante mencionar também a atuação e o

intercâmbio para troca de experiências entre o Pro-Reg

e organismos internacionais como o Better Regulation

Executive (BRE), do Reino Unido, o Office of Information

and Regulatory Affairs (Oira), dos EUA e a Comisión

Federal de Mejora Regulatória (Comfer), do México, para

o aperfeiçoamento da regulação no Brasil.

Conclusão

Transcorrida uma década e meia da criação

das agências reguladoras no Brasil, podemos

constatar significativos avanços institucionais e o

amadurecimento do debate em torno do papel, das

funções e do desempenho dessas agências.

O Estado brasileiro atuou deliberadamente no

aperfeiçoamento da função reguladora, instituiu

‘‘

‘‘

O esforço de capaci-tação de pessoal das

agências reguladoras e ministérios promovido pelo Pro-Reg já envol-veu 1.544 servidores. A meta para 2012 é

capacitar outros 1.500, como informado na

Mensagem Presiden-cial ao Congresso Nacional de 2012.

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a

as agências e seus quadros de pessoal, propôs ao

Congresso Nacional medidas para o controle social,

prestação de contas e transparência das ações das

agências reguladoras e criou um programa específico

para a capacitação de pessoal e o aperfeiçoamento

do exercício da regulação no Brasil. Os dirigentes das

agências reguladoras têm percebido a necessidade

de alinhamento com o governo e a sociedade para se

chegar ao aperfeiçoamento institucional das entidades

que dirigem. Para isso, têm introduzido instrumentos e

ferramentas internacionalmente reconhecidos como

válidos para a melhoria da regulação, como a análise

de impacto regulatório.

Tem sido possível aprender e assimilar as melhores

práticas internacionais e adaptá-las às peculiaridades

brasileiras. Juntamente com a estabilidade monetária

e a política fiscal equilibrada, o aperfeiçoamento da

regulação tem contribuído para os fundamentos

macroeconômicos necessários ao desenvolvimento

sustentável.

Referências bibliográficas

BRASIL. Presidente (2012: D. V. Rousseff ).

Mensagem ao Congresso Nacional 2012: 2ª Sessão

Legislativa Ordinária da 54ª legislatura. Brasília:

Presidência da República, 2012 (PP.384-386).

BRASIL. Presidência da República. Pro-Reg:

contribuições para a melhoria da qualidade da

regulação no Brasil. Jadir Dias Proença (org.).

Brasília: Semear Editora, 2010. Volumes 1 e 2.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Análise

e avaliação do papel das agências reguladoras no

atual arranjo institucional brasileiro: Relatório do

Grupo de Trabalho Interministerial. Brasília, 2003.

OECD. Reviews of Regulatory Reform. Brazil:

Strengthening Governance for Growth. Paris, 2008

(www.oecd.org/publishing).

www.regulacao.gov.br

Rodrigo Augusto Rodrigues [email protected] Economista (UFRGS), mestre em Economia da Regulação e Defesa

da Concorrência pela Universidade de Brasília, especialista em

Economia Quantitativa (UFRGS), professor do UDF e IDP, especialista

em Políticas Públicas e Gestão Governamental, subchefe adjunto

da Subchefia de Análise e Acompanhamento de Políticas

Governamentais da Casa Civil da Presidência da República.

10

Page 13: Revista de Conjuntura n. 47

11

outubro de 2011 / março de 2012

ArtigoOs desafios democráticos na governança da política

monetária brasileira e o ponto Nairu

Ricardo Wahrendorff Caldas e James Batista Vieira

A estrutura de governança da política monetária

envolve o conjunto de instituições necessárias à sua

operação, incluindo os agentes responsáveis por

sua elaboração e execução. Seus mecanismos são

responsáveis por definir:

a. os objetivos da política;

b. os responsáveis pela formulação dos objetivos;

c. o controle sobre os processos de elaboração e

implementação da política.

No Brasil, durante os anos 90, a política econômica

sofreu diversas transformações que culminaram na

instituição do regime de metas para a inflação. Desde

então, com as mudanças do regime cambial que

encerraram o sistema de bandas cambiais, a condução

da política monetária assumiu um papel de destaque

na economia brasileira e com ela, as suas duas principais

instituições: o Conselho Monetário Nacional (CMN)

e o Comitê de Política Monetária do Banco Central

(Copom).1

A atual estrutura de governança, legitimada por

manter uma taxa média de inflação efetiva em 6,78%

(IPCA% a.a) nos últimos 11 anos, tornou-se alvo de

constantes críticas, pois:

a. não distingue claramente as instituições

responsáveis pelo estabelecimento das metas

inflacionárias e o seu alcance – tendo em vista a

acentuada capacidade do Banco Central em influenciar

a fixação das metas;

b. o processo de fixação das metas para inflação

não representa as preferências sociais por inflação

e desemprego – nem as metas, nem a velocidade de

convergência a elas, refletem um consenso social;2

c. a autoridade monetária utiliza o índice cheio

do IPCA, havendo pouco espaço para acomodar

choques de oferta – ou seja, o BC não deveria ignorar a

estabilização do nível de produção e emprego;3

d. a expectativa de inflação que influencia a fixação

da taxa de juros reflete a opinião de analistas do

mercado financeiro – elevando o risco de captura da

agência pelos bancos.4

Estas características do modelo de governança

da política monetária impõem múltiplos riscos à

integridade da política econômica brasileira, pois:

a. a referida autonomia do BC em influenciar a

meta para inflação e não apenas a utilização de seus

instrumentos não é condizente com um regime

1 Ao primeiro, órgão deliberativo máximo do Sistema Financeiro Nacional, compete estabelecer as metas de inflação. Ao segundo, fixar o valor da taxa básica de juros – a Selic – num patamar compatível com a meta do CMN.2 Tinbergen, J. (1952). On the Theory of Economic Policy. North Holland: Amsterdam.3 Bernanke, B. et. al. (1999). Inflation Targeting: lessons from the international experience. Princeton University Press: Princeton.4 Belaisch, A. (2003). “Does Brazilian Banks Compete?” IMF Working Paper 03/113.

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democrático no qual cabe aos representantes do

povo assumirem as responsabilidades pelas decisões

políticas (há uma enorme fragilidade dos mecanismos

de governança democrática);

b. as metas não refletem o grau de aversão social

a inflação e ao desemprego – um trade-off que gera

constantes embates políticos entre o sistema financeiro

(que dá sustentabilidade política e ideológica às

taxas atuais) e os representantes dos trabalhadores

e empresários (que pedem políticas de metas mais

realistas e defendem a prioridade ao crescimento

econômico em oposição à luta contra inflação);

c. a taxa de juros real permanece num patamar

elevado, seja comparado a outros países ou baseado em

qualquer estimativa do valor de equilíbrio da referida

taxa, alentando especulações bastante plausíveis sobre

a influência do setor financeiro nas expectativas de

inflação.5

No que tange ao impacto fiscal, a dívida pública

interna mobiliária, de aproximadamente R$ 1,8 trilhão,

na qual 3/5 estão indexadas à taxa básica de juros,

obrigou o país a destinar, em 2011, aproximadamente

R$ 165 bilhões somente ao pagamento de juros da

dívida pública interna. Nesse contexto, agravado pelo

objetivo macroeconômico de redução da relação

dívida/PIB que força o aumento do superávit primário,

previsto em 3,1% do PIB para 2011, parte significativa

da execução das prioridades de investimento, previstas

no Orçamento Plurianual democraticamente aprovado

pelo Congresso, é sistematicamente negligenciada por

meio das medidas de contingenciamento.6

Assim, ao mesmo tempo em que uma série de

políticas governamentais deixam de ser executadas

por escassez de recursos, bilhões são transferidos

aos detentores dos títulos públicos – em sua grande

maioria instituições financeiras privadas - e o instituto

do orçamento, instrumento democrático essencial à

transparência e ao controle político e social dos recursos

públicos, perde relevância frente os imperativos da

meta para inflação.

A política monetária interfere nas decisões de

consumo e investimento, produzindo efeitos sobre

o crescimento econômico e o bem-estar social (com

repercussões no emprego, na renda e demais condições

sociais). Por esta razão, o impacto social dessas medidas

não deveria permitir que suas decisões fossem alijadas

do controle social e político exercido pelas instituições

democráticas.

As várias propostas de mudança sobre a política

monetária e seu controle, constantemente em

pauta, tendem a ser criticadas pelo pensamento

econômico ortodoxo com base no argumento de

que o estabelecimento da meta de inflação e da

correspondente taxa de juros são questões técnicas.7 No

entanto, são exatamente os países mais desenvolvidos,

dentre os quais os Estados Unidos e o Reino Unido,

onde os objetivos de crescimento econômico, redução

do desemprego e a supervisão política são marcas de

destaque, que promovem a estabilidade econômica

com o mínimo de desemprego. Dito de outra forma,

nos EUA e no Reino Unido o objetivo é atingir o mínimo

de desemprego possível (ou o ponto mais próximo

possível do pleno emprego) sem gerar inflação. Busca-

se, portanto, gerar um ambiente que estimule o pleno

emprego, sem pressões inflacionárias.8

Com efeito, nos Estados Unidos, as ações do Federal

Reserve System (FED) devem estar alinhadas com os

objetivos da política econômica do governo, pois sua

missão, definida em lei, compreende, dentre outros

aspectos, o dever de: “conduzir a política monetária do

5 Oreiro, J.; Passos, M. A Governança da política monetária brasileira: análise e proposta de mudança. Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p.

157-168, jun. 2005. * 6 Tinbergen, J. (1952). On the Theory of Economic Policy. North Holland: Amsterdam.6 A título de comparação, destacamos que, até outubro deste ano, o governo federal havia executado R$ 143 bilhões, 15% do montante previsto

para o período (2011-2014), do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2).7 Castanhar, J. Política Econômica, Democracia e Governança: A Composição do CMN e a Independência do Banco Central. Notas para discussão

no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República. s/d.8 Cabe lembrar que no contexto contemporâneo, pleno emprego não significa desemprego zero, mas o ponto onde o nível de emprego e utili-

zação dos demais fatores de produção não pressiona os preços. Vide a esse respeito, Lucia Maria Nunes Matos. Política Orçamental: A utilização

das variáveis orçamentais portuguesas com intuito de estabilização. Minho, Universidade do Minho, 2007 (Dissertação de Mestrado em Política

Econômica).

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outubro de 2011 / março de 2012

país, pela administração de oferta de moeda e crédito,

com o objetivo de alcançar o pleno emprego e preços

estáveis”. 9 Os objetivos da política econômica norte-

americana, previstos no Employment Act de 1946 e no

Full Employment and Balanced Act de 1978, preveem

explicitamente “o crescimento econômico consistente

com o potencial de expansão da economia; um alto

nível de emprego; preços estáveis (manter o poder

aquisitivo da moeda); e taxas de juros moderadas

no longo prazo”. Ou seja, a formulação da política

econômica está legitimada em regras estabelecidas

pelas instâncias políticas da sociedade e busca

assegurar o compromisso dos formuladores da política

com o crescimento do país.

No Reino Unido, a reforma do Banco da Inglaterra,

promoveu a independência operacional do banco

em 1998, criando um comitê de política monetária

autônomo para tomar as medidas de política monetária

necessárias para alcançar a meta para inflação definida

pelo governo – que poderá em “circunstâncias extremas

e quando o interesse nacional exigir” dar instruções ao

Banco da Inglaterra sobre as taxas de juros, por um

período limitado. O referido comitê presta contas ao

governo pelo cumprimento das metas estabelecidas

(accountable) e tem seu desempenho e procedimentos

acompanhados (reviewed) pelo corpo diretor do banco

(the court), composto por representantes de vários

segmentos da sociedade, incluindo um dirigente

sindical. Além disso, o banco é responsável por

prestar contas ao Parlamento, por meio de relatórios

e a prestação periódica de informações ao Comitê do

Tesouro, e a legislação prevê medidas de transparência

que tornam o banco responsável perante a sociedade

como um todo (publicação das atas, bem como dos

relatórios de inflação).

É nesse contexto que se desenvolveu a teoria de Ed-

mund Phelps que cunhou a inovadora expressão Nairu

(Non-Accelerating Inflation Rate of Unemployment). Para

Phelps, os presidentes dos Bancos Centrais tendem a

seguir a Nairu, que é o nível de ocupação dos fatores

produtivos que não estimula as pressões inflacioná-

rias.10

No Brasil, em consonância com as experiências

internacionais e considerando que as controvérsias

sobre a meta para a inflação apropriada e a taxa de

juros real compatível com essa meta são inevitáveis,

e o seu debate saudável é necessário, considera-

se indispensável uma reforma dos mecanismos de

governança da política monetária que promova

mudanças:

a. na composição do Conselho Monetário Nacional

– com o objetivo de elevar a sua representatividade e

legitimidade;

b. nos objetivos do CMN, perseguidos pelo Banco

Central, ampliando-os para além da meta de inflação

– abarcando objetivos de crescimento, geração de

emprego e outras metas sociais;

c. em favor da recuperação das condições de

supervisão do Congresso Nacional sobre a definição

dos objetivos da política econômica;

d. na forma de apuração das expectativas

inflacionárias – aproximando-as da percepção de

um conjunto mais amplo de agentes, especialmente

aqueles com poder de formação de preços;

9 Today, the Federal Reserve’s duties fall into four general areas: conducting the nation’s monetary policy by influencing the monetary and credit conditions in the economy in pursuit of maximum employment, stable prices, and moderate long-term interest rates; [..]10 Edmund Phelps, natural dos EUA, é Professor na Universidade de Columbia. Recebeu o Prêmio Nobel de 2006, por seu trabalho com política econômica defende justamente a teoria da taxa de desemprego que não acelera a inflação.

‘‘ ‘‘

...nos EUA e no Reino Unido o objetivo é

atingir o mínimo de desemprego possível

(ou o ponto mais próximo possível do pleno emprego) sem

gerar inflação.

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e. em favor da concessão de plena autonomia

operacional do Banco Central – o que não deve ser

confundido com a autonomia na formulação das metas

da política econômica.

Considerações finais

A questão da política e do lócus ideal da formulação

e proposição de políticas de combate à inflação está

longe de ter sido resolvida. Nota-se, no entanto, que ao

contrário do que ocorre em países desenvolvidos, no

Brasil, o objetivo maior do combate à inflação ainda

não é atingir o ponto Nairu, onde haveria o mínimo de

desemprego com o máximo de utilização dos fatores

produtivos.

Observa-se que o combate à inflação está

fortemente concentrado na elevação da taxa de juros.

Nesse sentido, a fixação da taxa básica (a Selic) pelo

Banco Central é aguardada pelos principais agentes

econômicos. Dessa forma, o Brasil utiliza pouco, ou de

forma inadequada, outros poderosos instrumentos de

combate à inflação tais como:

i. os ajustes fiscais (aumento/redução dos impostos,

redução dos gastos governamentais, e elevação/

redução dos depósitos compulsórios no Banco Central);

ii. os redescontos bancários (empréstimos do Banco

Central aos Bancos privados);

iii. os depósitos compulsórios (conhecidos como

‘encaixe’ ou recolhimentos obrigatórios);

iv. as operações de open-market para enxugar a

oferta excessiva de moeda.

Naturalmente, muito embora todos esses

instrumentos sejam utilizados no Brasil, eles não

visam a auxiliar prioritariamente à política monetária,

mas antes se incluem na geração de um quadro

macroeconômico de estabilidade.

O ponto principal deste argumento é que, no Brasil,

isoladamente, a política da fixação da taxa de juros é o

principal instrumento e variável de combate à inflação

ao qual todos os demais instrumentos se inserem.

Dessa forma, o ajuste fiscal é adiado pela

incapacidade (ou falta de interesse) em estabelecer

um novo equilíbrio onde as classes de renda média

e alta são mais sobretaxadas diretamente. Ao invés

disso, estabelece-se uma maior taxação direta sobre os

assalariados, pela facilidade de imposição do desconto

do Imposto de Renda Pessoa Física na fonte e indireta

sobre os grupos de baixa renda, via IPI e demais

impostos indiretos. Como, no Brasil, não se distingue

entre salário e renda, a atual política de combate

à inflação se transformou em um instrumento de

transferência líquida de renda para o setor financeiro e

de concentração de renda da sociedade como um todo.

Muito embora o sistema de metas tenha tido êxito

desde que foi adotado em 1999, portanto, há cerca

de 12 anos, ele não permite o controle social sobre

a política econômica, defendido neste artigo, nem

considera a reforma dos mecanismos de governança

da política monetária aqui mencionados.

Além disso, a atual política de combate à inflação

também não leva em consideração as recentes de

contribuições de Edmund Phelps em torno do Nairu

(Non-Accelerating Inflation Rate of Unemployment).

Os atuais discursos de economistas oficiais de que já

teríamos atingido o ponto ‘Nairu’ apenas encobrem a

necessidade de reforma no nosso modelo de combate

à inflação, sem demonstrarem cientificamente que já

teríamos atingido esse ponto.

Ricardo Wahrendorff Caldas [email protected] Economista (UnB), mestre em Ciência Política (UnB), doutor em

Relações Internacionais (Kent University). Diretor do Centro de

Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília.

James Batista [email protected]

Cientista Político (UnB), mestre em Ciência Política (UFRGS),

doutorando em Ciência Política (UERJ).

14

Page 17: Revista de Conjuntura n. 47

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outubro de 2011 / março de 2012

ArtigoCommodities: estruturalismo às avessas

Antônio Elias Silva e José Nelson Bessa Maia

O recente surto de consumo das principais

commodities no início do século XXI revelou-nos que o

mundo é finito. A incorporação de centenas de milhões

de pessoas à classe média nos países emergentes e em

desenvolvimento elevou vertiginosamente a demanda

por produtos básicos: alimentos, minerais e fontes

de energia. A Organização das Nações Unidas (ONU)

estima que o planeta esteja sobreutilizado em mais de

30%. A situação já é insustentável em muitos setores.

Gráfico 1: Classe média na Ásia, 2010-2030

Determinates estruturais

Fonte: “The Rise of Asia’s Middle Class”, in Key Indicators for Asia and the Pacific 2010, Asian Development Bank, Aug. 2010.

No século XX, a população multiplicou-se por

quatro; o consumo de carvão, por seis; o de cobre, por

25. Em geral, o consumo de metais chegou, em 2008,

a 1,4 bilhão de toneladas – o dobro dos anos 1970,

sete vezes mais que em 1950; o consumo de alumínio

aumentou, entre 1950 e 2008, de 2 para 40 milhões de

toneladas; o de plásticos multiplicou-se por 18 em 34

anos. A disponibilidade de muitos dos metais usados

nas mais diversas tecnologias (telefones, computadores

etc.) está gravemente ameaçada. Por tudo isso, lembra

o professor Waldman, da Unicamp, a frase do filósofo

Paulo Valéry: “Começa a era do mundo finito”.1

Mesmo assim, a demanda da nova classe média

mundial irá aumentar cada vez mais, haja vista que a

Índia, cuja população deverá superar a da China nas

próximas décadas, está apenas iniciando seu processo

de industrialização. Assim, conforme observou Peter

Drucker, a maior mudança no início do século XXI está

na demografia, e as maiores oportunidades a serem

aproveitadas estão nas mudanças.

Pecuária, Itapaci-GO

Com efeito, em face dessa revolução no consumo

mundial, em que mais pessoas estão podendo consumir

1 Cf. Novaes, Washington. Começou a era do mundo finito. O Estado de S. Paulo, 18 nov. 2011. 2 Cf. Heller, Robert. Entenda e Ponha em Prática as Ideias de Peter Drucker. Tradução Publifolha, DK, 2001, p.90.

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bens superiores, como carne, leite, moradia, automóvel

etc, os países exportadores de commodities têm

melhorado seus termos de troca a olhos vistos. O Chile,

por exemplo, obteve melhora de mais de 100% em seus

termos de troca na última década; o Brasil, em mais de

40%. Destarte, dado o aspecto finito das commodities,

a sua insubstituibilidade na maioria dos casos, países

que mais exportam tais matérias-primas têm logrado

êxito, na última década, na arena internacional, mesmo

apresentando gargalos, como infraestrutura precária,

baixa qualificação de sua mão-de-obra, legislação

trabalhista rígida, ambiente de negócio inóspito, alta

corrupção, dentre outros.

Gráfico 2: Evolução dos termos de troca do

Brasil, 1991-2011 Evolução dos termos de troca do Brasil

Fonte: Funcex/ Elaboração: O autor

A grande questão com que o mundo se depara é

se será este um superciclo de alta dos preços, um ciclo

de médio ou de curto prazo. As commodities minerais

recentemente atingiram os preços reais mais altos

da história; o petróleo o fez em 2008, e os alimentos

só não superaram, em 2011, os picos das décadas de

1910 e 1970. Dessas categorias, aquela que tem maior

elasticidade-preço da oferta é a de alimentos, pois

dado um intervalo de seis meses, a reposta à demanda

pode ser imensa. No entanto, vários fatores limitantes

contribuem para que essa reação não assuma a

intensidade que normalmente deveria. Destacam-se

dois: i) a baixa rentabilidade da atividade ao produtor

(conforme mostrado em estudo pela Unidade para

Sustentabilidade Internacional (ISU, sigla em inglês,

entidade ligada à Instituição de Caridade do Príncipe

de Gales³), e ii) a crescente escassez de mão-de-obra

no campo, principalmente nos países que poderiam

responder mais rapidamente.

Nos EUA, por exemplo, mesmo em período de forte

desemprego, os fazendeiros estão recorrendo à mão-

de-obra de presidiários. No Brasil, cafeicultores no

Espírito Santo estão destruindo suas plantações por

não encontrarem mão-de-obra para efetivar a colheita.

Na Austrália, o setor agropecuário necessita contratar

100 mil trabalhadores. Aliado a esses limitadores, há

ainda exigências ambientais cada vez mais restritivas;

subsídios nos países ricos, que deprimem os preços aos

produtores nos demais países; existência de oligopólios

e/ou oligopsônios mundiais na cadeia produtiva

do agronegócio mundial que tomam para si lucros

crescentes às custas de imensa perda de renda pelos

fazendeiros; limitação de áreas para expansão nos países

desenvolvidos e nos emergentes asiáticos; escassez

de água para irrigação; estagnação da produtividade

nos países avançados nos últimos 15 anos; produção

mais dependente da América do Sul e região do Mar

Negro, cuja volatilidade climática é superior à de áreas

agrícolas tradicionais dos EUA e Europa, e infraestrutura

e ambiente de negócio deficientes em países

emergentes e em desenvolvimento, que poderiam

aumentar sua produção substancialmente. Em face

desses fatores, a produção não tem aumentado como

deveria e os estoques estão em níveis alarmantemente

baixos.

Gráfico 3: Relação entre estoque e

consumo mundial agrícola (%) Relação entre estoque e consumo mundial agrícola (%)

Nota: Os estoques estão no fim do período. Totais para o consumo mundial refletem a utilização total, incluindo alimentos, sementes, industrializados e resíduos. Arroz refere-se a arroz branqueado.

Fonte: USDA, Tesouro Australiano

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outubro de 2011 / março de 2012

Gráfico 4: Preços reais das commodities no

longo prazo Preço reais das commodities no longo prazo.

Média de 2005=100

Total

Principais grupos de commodities

Em US$: deflacionado pelos preços das exportações mundiais,

média 2005=100.

Fonte: IMF, International Financial Statistics

Gráfico 5: Evolução dos preços nominais dos principais grupos de commodities

Evolução dos preços nominais dos principais grupos de commodities

Gráfico 6: Preços reais por setor

Escala Logarítmica, 1900=100, Deflator do PIB dos EUA

Fonte: Bloomberg; Cashin & Mcdermott (2002); Datastream; Global Financial Data; Grilli and Yang (1988); IMF; RDA¨

Os subsídios dos países ricos são os grandes “vilões”,

principalmente em relação a aproximadamente um

bilhão de pessoas subnutridas no planeta. Mais que

problema de oferta de alimentos, a fome na África,

por exemplo, está mais ligada à questão de acesso

e distribuição. Para ter acesso, é fundamental que se

tenha renda. Como a agricultura é a principal atividade

econômica nesses países, onde absorve a maior parte da

população economicamente ativa, a sua inviabilidade

econômica por conta dos preços deprimidos no

mercado internacional em razão dos subsídios em

países avançados resulta em baixa renda da população

e arrecadação insuficiente de impostos. Isso torna o

acesso à alimentação inatingível para grande parte da

população, uma vez que os governos não conseguem

melhorar a distribuição (por não poderem prover

infraestrutura de transporte e eletrificação rural) nem

subsidiar os preços à população de baixa renda. Isso

é ainda mais grave, pois é na África onde a produção

de alimentos poderia dar grandes saltos, em função

da baixa produtividade (em torno de uma tonelada

de grãos/ha), que poderia ser triplicada, e pela alta

disponibilidade de terras produtivas não utilizadas (550

milhões de ha), boa oferta de água doce, sol, clima, solo

e relevo adequados. Assim, os subsídios nas nações

ricas promovem dependência alimentar em vez de

segurança alimentar, e previnem o desenvolvimento

da produção em áreas mais adequadas para sua

expansão. Além disso, possuem altos custos (US$ 360

bilhões por ano, equivalente ao PIB da Arábia Saudita),

baixa eficiência e fracassam até mesmo em apoiar as

populações rurais mais vulneráveis dos países ricos,

Fonte: IMF, International Financial Statistics

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uma vez que a maior parte das transferências vai para

os grandes produtores.

Gráfico 7: Países com maiores disponibili-dades de terras para a agricultura

Percentual do total mundial

Fonte: IFPRI, FAO, Standard Bank Research

Dentro desse contexto, enquanto os subsídios

nesses países não forem reduzidos, o único caminho

para garantir segurança alimentar nos países pobres

com grande potencial produtivo seria a partir da

melhoria na infraestrutura rural e incorporação de

tecnologias agrícolas mais avançadas, por meio de

recursos de bancos multilaterais de desenvolvimento e

Ajuda Oficial para o Desenvolvimento (ODA, na sigla em

inglês), investimento estrangeiro direto (como já vem

ocorrendo), ao mesmo tempo em que se devem impor

tarifas de importação compensatórias para alimentos

produzidos com subsídios nos países avançados.

É também crucial a promoção do cooperativismo

nessas nações, pois assim é possível ao mesmo tempo

aumentar a renda dos produtores e garantir preços baixos

aos consumidores, ao erodir a renda dos intermediários.

Países emergentes com grande potencial de aumento

de produção, como os do Mercosul, com situação fiscal

mais confortável, devem subsidiar sua agricultura

enquanto os subsídios dos países ricos não sejam

eliminados ou reduzidos. Dessa forma, a produção

avançará onde naturalmente deveria e os riscos reais

de desabastecimento do planeta desaparecerão.

Essa estratégia seria ainda eficaz para forçar a

eliminação dos subsídios agrícolas naqueles países.

Gráfico 8: Evolução do preço real dos

alimentos desde 1900 3 (base logarítmica)

Tendências dos prelos dos alimentos em ascensão, mas ainda abaixo dos níveis da grande depressão. (Logarítmo natural de um índice em US$ de 1977,

1970=100)

Fonte: Grilli e Yang (1988), Pfaffenzeller (2007); e FMI, Commodity

Price System Database.

No que concerne à oferta das commodities metálicas

e energéticas, a crescente escassez delas torna o

atendimento da demanda em ascensão um enorme

desafio. A energia pode ser substituída por fontes

renováveis, ainda que nem todos os países tenham

potencial para fazê-lo na escala necessária. Uma

alternativa para o petróleo são os biocombustíveis, que,

ao contrário do que se pensa, podem ter sua produção

compatibilizada com o aumento da produção de

alimentos, dada a disponibilidade de vastas extensões

de terras produtivas não utilizadas em alguns países,

mormente tropicais, onde seria possível expandir a

produção de forma sustentável. O maior gargalo a ser

superado, conforme já mencionado, são os subsídios

que distorcem os mercados agrícolas e a estrutura

oligopolizada do agronegócio mundial, em que as

indústrias impõem seus preços aos produtores.

Resolvida a questão da renda no campo, por meio

da supressão das distorções causadas pelos subsídios

agrícolas unilaterais dos países avançados e o

fortalecimento do cooperativismo, os países da América

do Sul (com 268 milhões de ha) e da África (com 550

milhões de ha) possuem, em conjunto, 818 milhões de

ha de área passível de expansão pela agricultura, o que

equivale a mais da metade da área agrícola mundial

atualmente em uso. Além disso, a produtividade atual

pode ser multiplicada em várias partes do mundo em

3 Este gráfico está em base logarítmica, o que implica que os preços reais em 1900 eram superiores em 25 vezes os de 2000 e oito vezes os de 2010. Observa-se, portanto, que, em termos históricos, os preços de alimentos estão extremamente baixos.

18

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outubro de 2011 / março de 2012

desenvolvimento, e até mesmo no Brasil, onde há a

maior disponibilidade de água doce do mundo (13%

do total) e baixa uso de irrigação em comparação aos

demais países.

Gráfico 9: População mundial em bilhões de

habitantes

Fonte: Nações Unidas, “World urbanization prospects: The 2006

revision, 2007. Valores em bilhões de habitantes.

No que diz respeito aos metais, a substituição

é mais difícil, e seus preços reais devem continuar

ascendentes, haja vista o possível esgotamento de

muitos e a concentração da produção de alguns

em poucos países (99% das reservas de terras raras

estão na China, por exemplo), que garante poder de

monopólio a esses países. Novas tecnologias podem

surgir, mas demandarão outros produtos, que podem

ser esgotáveis também (petróleo para fabricação de

plásticos, por exemplo), ou produtos agrícolas, tais como

floresta plantada, que depende de disponibilidade

de terra. Em resumo, o mundo é finito, e já estamos

nos aproximando do quase esgotamento de muitas

commodities, atualmente pouco substituíveis.

Dessa forma, presencia-se agora uma espécie

de estruturalismo às avessas, e provavelmente

continuaremos a conviver com essa realidade por um

longo período. Diferentemente da dinâmica defendida

por um dos luminares do estruturalismo latino-

americano, Raúl Prebisch (1959), em sua ultrapassada

teoria da deterioração secular dos termos de troca

(baseada em dados de comércio internacional dos anos

1930 e 1940)4, os termos de troca de países exportadores

de commodities, como boa parte daqueles da América

Latina, têm se apreciado sobremaneira desde 2000,

com destaque para o Chile, Equador e Peru. Ao mesmo

tempo, grandes exportadores de bens intensivos em

tecnologia, tais como a Alemanha e Japão, têm visto

seus termos de troca se deteriorar. De fato, os termos

de troca em quase todos os países da OCDE têm se

deteriorado quando as commodities importadas são

levadas em conta. Com isso, acontece então uma perda

real de renda em relação aos países exportadores

líquidos de commodities5. Os termos de troca da Coreia

do Sul, por exemplo, estão em forte queda. O problema

é que os preços de exportação continuaram caindo

mesmo com o aumento dos preços de importação,

chegando ao ponto de a Coreia do Sul ter de exportar

agora três vezes mais do que há 20 anos para importar

a mesma quantidade. Como o Japão, a Coreia não é

abundante em recursos naturais.6 Em contrapartida,

a Austrália, quinta maior exportadora líquida de

commodities do mundo, tem apreciado seus termos de

troca, conforme gráfico abaixo.

Gráfico 10 - Termos de troca da Austrália e

alguns países asiáticos

Fonte: Fujitsu Research Institute from IMF data

Assim, a recente condenação por alguns da

chamada “primarização” (ou reprimarização) da pauta

de exportações do Brasil, em que quase 65% do

4 Cf. PREBISCH, Raúl. Commercial policy in the underdeveloped countries. The American economic review, vol. 49, no. 2, papers and proceedings of the seventy-first annual meeting of the American economic association. May, 1959, pp. 251-273.5 Cf. Flash economics, Economic research, Terms of trade. Report nº 876, December, 2, 2011.6 Cf. NEZU, Risaburo. Disturbing deterioration in terms of trade in Asia, Economic research center, Fujitsu research institute, August, 31, 2011.

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total exportado são compostos por itens ligados a

commodities, ainda que não necessariamente em forma

bruta, não encontra eco diante dos fatos: melhora dos

termos de troca e acúmulo pelo Brasil de US$ 488,2

bilhões em reservas cambiais nos últimos 12 anos,

somente com exportações do agronegócio, que inclui

também muitos produtos de alto valor agregado e cuja

produção é intensiva em biotecnologia.

Como resultado, enquanto países avançados

exportadores de bens industriais de alta tecnologia,

estão entrando em colapso, os exportadores de

commodities estão em boa situação fiscal e com

baixa vulnerabilidade externa, ainda que tenham

partido de um quadro recente de alta inflação e forte

endividamento.

Estamos, pois, vivenciando um momento especial

da economia mundial, que muito nos favorece. As

fortes industrialização e urbanização na China têm

gerado alta demanda por commodities em geral,

e agrícolas em particular. Na pior das hipóteses,

conviveremos com um ciclo de alta de médio prazo,

conforme projeção da Organização para Cooperação

e Desenvolvimento (OCDE), Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BID) e outros, pois a Índia, outro

gigante asiático que está apenas começando seu

processo de industrialização, deve gerar uma demanda

por commodities semelhante à que a China tem

provocado ultimamente.

A América Latina, como nenhuma outra região,

tem suas perspectivas de crescimento de longo

prazo intimamente ligadas à manutenção dos altos

preços das commodities, por sua alta dependência

na exportação desses produtos. A conjuntura atual

permite-nos prever que poderá haver um superciclo

das commodities, fomentado pela emergência de

economias asiáticas gigantes, cuja superescassez de

recursos naturais não tem nenhum paralelo com as

economias que já lideraram o crescimento mundial.

Diante desse quadro, os países da América Latina

– Brasil em particular –, devem diversificar e agregar

sofisticação às suas exportações e gerar empregos, em

um contexto de inevitável especialização em recursos

naturais. Isso não quer dizer necessariamente que

tenhamos de exportar recursos naturais em forma

bruta. Esta parece ser então a década da América

Latina. Se não soubermos aproveitar esse momento,

poderemos pagar muito caro no futuro, pois nunca

uma conjunção de fatores foi-nos tão favorável.

Gráfico 11: Relação entre CRB e PIB brasileiro

(preços constantes em US$ bilhões)

Fonte: Reuters e FMI / Elaboração: Os autores

O processo de industrialização dos gigantes

asiáticos alimentará uma tendência de preços

crescentes para as commodities no longo prazo,

especialmente em relação ao preço das manufaturas,

cenário que desafia a crença de longa data dos países

da América Latina de que é a indústria que os farão

desenvolvidos e ricos (escola estruturalista). Essa

realidade demanda prioridades diferentes em termos

de custo-benefício, já que alocar pesados subsídios

e proteção para a indústria tradicional poderá não

trazer o retorno esperado ao desenvolvimento. Ao

invés, a região deve focalizar em maximizar os ganhos

sobre seus recursos naturais, melhorando o marco

regulatório e a infraestrutura; e alocar esses ganhos

para criar condições ao avanço tecnológico dentro do

cone de diversificação dos recursos naturais, investindo

em educação e ciência e tecnologia, garantindo,

assim, desenvolvimento sustentado. Empresas líderes

mundiais em biotecnologia, como a Monsanto,

fabricantes de aviões agrícolas entre outras, surgirão

naturalmente no Brasil se o país trabalhar a cadeia

produtiva das commodities com inteligência.

20

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Gráfico 12: Relação entre o PIB brasileiro (em US$ constantes) e CRB alimentos

Fonte: Reuters e FMI / Elaboração: Os autores

Conclusões

Em função do exposto, pode-se concluir que

o Brasil deve buscar tirar mais proveito dessa

mudança estrutural em curso na economia mundial,

e beneficiar-se plenamente da crescente demanda

por commodities, especialmente as agropecuárias, em

que já é o maior exportador líquido do mundo, e cujos

preços apresentam alta correlação com o PIB (94,9%);

nível esse que estatisticamente indica que os preços

internacionais desses produtos, apurados pela agência

Reuters (Índice CRB – Commodities Reference Bureau),

explicam 90% da variação PIB Brasileiro.

A Argentina, segundo maior exportador líquido

de alimentos, logrou aumentar sua produção em 42%

desde 2003, enquanto a produção brasileira avançou

apenas 32% no período, ainda que tenhamos sido

ajudados pelas excelentes condições climáticas na

safra de 2010/2011. Não se pode permitir que outros

países produtores avancem mais, de forma a ocupar

nosso espaço. O Brasil, ao contrário, tem de acelerar

a produção para ocupar o mercado de outros países

concorrentes. Por isso, é crucial a adoção de um mix

de políticas públicas que envolvam o fortalecimento

do cooperativismo, a democratização do acesso ao

crédito agrícola, maior incorporação de tecnologias

na produção, melhorias na infraestrutura portuária e

logística de transporte para exportação e capacitação

da mão-de-obra em áreas em que a demanda por

profissionais seja crescente.

Antônio Elias Silva [email protected]

Tecnólogo em Processamento de Dados pela Universidade de

Brasília (UnB); bacharel em Economia pela East Stroudsburg

University of Pennsylvania; bacharel em Relações Internacionais pela

UnB; especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela

Escola Nacional de Administração Pública (Enap); pós-graduado

em Desenvolvimento Econômico pela The George Washington

University.

José Nelson Bessa Maia [email protected]

Bacharel em Economia pela Universidade Federal do Ceará

(UFC); mestre em Economia pela UnB e doutorando em Relações

Internacionais na UnB; ex-secretário de assuntos internacionais

do governo do estado do Ceará; analista de finanças e controle;

economista do Corecon-DF e especialista em diagnóstico

macroeconômico pelo FMI.

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ArtigoAinda sobre a DRU

José Fernando Cosentino Tavares e Márcia Rodrigues Moura

Por que prorrogar a DRU?

Com a aprovação da Emenda Constitucional 68,

de 21 de dezembro do ano passado, foi mantida a

Desvinculação de Receitas da União (DRU), de que trata

o art. 76 do ADCT da Constituição. Esse mecanismo foi

originalmente criado para o período 2000-2003, e vem

sendo prorrogado a cada 4 anos, coincidindo com o fim

do primeiro ano do mandato presidencial. Vigoraria até

31 de dezembro de 2011.

Seremos poupados por 4 anos de ouvir da PEC que

“permite ao governo gastar como quiser até 20% das

receitas arrecadadas no ano”... . O governo não se dispôs

a reparar esse equívoco, e até reforçou noções erradas,

como as de que contaria com a prorrogação da DRU

para enfrentar a crise econômica internacional e con-

tinuar com o desenvolvimento econômico do país, ou

ainda, fora de contexto, que a manutenção da DRU per-

mitiria novas reduções na taxa básica de juros (Selic)¹.

O governo apostou alto na iniciativa, mas nem por

isso teve que ceder em qualquer ponto importante de

seu programa em seu primeiro ano – até a PEC da Saúde,

que tramitava paralelamente, foi aprovada sem que se

aumentasse o comprometimento de recursos do orça-

mento federal. Resta saber por que travar durante um

semestre inteiro embate político desgastante como

esse, se a DRU, como pretendemos demonstrar, é pre-

sentemente desnecessária.

Três razões possíveis para o governo lutar pela

nova prorrogação da DRU seriam pretender (a) no

curto prazo, criar um novo tributo ou contribuição de

intervenção no domínio econômico com boas pers-

pectivas de arrecadação, do qual extrair 20% para uso

distinto do de sua criação; (b) no médio prazo, redu-

zir drasticamente suas despesas com previdência ou

assistência social. Elas por ora estão em crescimento,

como os programas “bolsa família” e “Brasil sem misé-

ria”, introduzido, este último, no atual governo; e (c) no

longo prazo, pelo sim, pelo não, manter intactas todas

as prerrogativas existentes, pois uma vez interrompido,

é difícil restabelecer qualquer mecanismo temporário

– vide o exemplo da CPMF. Aceitar esta última razão

implica a postergação do penoso debate acerca da

excessiva vinculação das receitas públicas e de uma

ampla reforma constitucional para resolver o assunto².

Efeitos da prorrogação da DRU

Como nas outras vezes em que a prorrogação esteve

em pauta, fala-se da necessidade de ser mantido o

mecanismo, em vigor há 18 anos, dos pontos de vista da

estabilização fiscal³ e da racionalização da gestão orça-

mentária, e da oportunidade de se continuar permitindo

a apropriação de recursos vinculados da seguridade

social e de outras contribuições. Os que são contrários

à desvinculação diminuem em número, pois amplos

segmentos se satisfizeram com as exceções já positiva-

das. Já de há muito tempo perdeu o sentido falar de

desvinculação de impostos, pois eles e a DRU calculada

sobre eles constituem a mesma fonte de recursos, livre.

O prosseguimento do ajuste fiscal depende em

parte da contenção da despesa pública. Em teoria,

a despesa cresce com as receitas que lhe são vin-

culadas, o que pode não ser necessário ou dese-

jado: com a DRU, algumas receitas podem deixar

de ser gastas, contribuindo para viabilizar o supe-

rávit estabelecido como meta para o exercício.

1 Ver em http://www.planejamento.gov.br/noticia.asp?p=not&cod=7690&cat=47&sec=8. 2 Uma reforma tributária poderia eliminar distinções entre impostos e contribuições, junto com as vinculações existentes. 3 De 1996 a 1999, o mecanismo foi denominado “Fundo de Estabilização Fiscal”.

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outubro de 2011 / março de 2012

As vinculações constitucionais não podem ser anu-

ladas por lei.

Ocorre que, depois de quase 2 décadas de sucessi-

vas alterações de cunho constitucional, das contribui-

ções para a seguridade praticamente só estão sujeitas

à DRU as receitas do PIS/Pasep (art. 239 da CF)4 vincu-

ladas a despesas do Fundo de Amparo ao Trabalhador

(60% da receita) e ao financiamento de programas de

desenvolvimento econômico, pelo Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) (40%). A

entrega de recursos ao BNDES sob a forma de inversão

financeira do FAT não afeta as despesas primárias nem

o resultado do setor público, e essa transferência abre

espaço fiscal equivalente para a realização de despesas.

Em 2012, a DRU poderia, segundo a proposta orça-

mentária, significar redução nas despesas primárias

de R$ 5,5 bilhões, o equivalente a 0,12% do PIB, mas

se verifica que essa economia não ocorrerá, pois na

programação do FAT esses recursos tiveram que ser

substituídos no mesmo montante, por fontes livres

e rendimentos de aplicações financeiras, para pagar

despesas obrigatórias referentes ao abono salarial e

seguro-desemprego.

Ainda, caso a DRU não fosse prorrogada, a União

perderia para estados e municípios o equivalente a 5,8

pontos percentuais da Cide-combustíveis, correspon-

dentes a, na proposta orçamentária, R$ 570 milhões em

2012. No caso desta contribuição, seriam desvinculados

R$ 2 bilhões, mas só o Departamento Nacional de

Infraestrutura de Transportes (DNIT), do Ministério dos

Transportes, contava em sua programação com R$ 6,9

bilhões de recursos livres do Tesouro financiando des-

pesas de investimento.

As receitas vinculadas por lei ordinária vêm colabo-

rando para o resultado primário positivo, com ou sem

DRU. Para que façam essa contribuição, basta serem

esterilizadas, no todo ou em parte, não se as prevendo

no orçamento e/ou não se executando as despesas

correspondentes. Desde 2009 (Lei 11.943, de 28 de

maio), contornando a Lei de Responsabilidade Fiscal5

tem sido possível destinar o excesso de arrecadação e

o superávit financeiro das fontes de recursos existentes

no Tesouro Nacional à amortização da dívida pública

federal6. Por meio de medida provisória, em sucessivas

oportunidades, transformou-se a posteriori o superávit

financeiro vinculado em fonte para o pagamento de

despesas primárias7.

Outro fato importante é que o resultado do

orçamento da seguridade social, mesmo depois de

computados como seus (“devolvidos”) os recursos

desvinculados via DRU, foi deficitário em 2009 e 20108.

Esse desempenho recente afastaria o risco de termos

o orçamento da seguridade social financiando o défi-

cit do orçamento fiscal. Em 2007 e 2008, entretanto,

feito esse ajuste, o orçamento da seguridade social foi

superavitário9.

4 “Art. 239. A arrecadação decorrente das contribuições para o Programa de Integração Social, criado pela Lei Complementar nº 7, de 7 de setem-bro de 1970, e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público, criado pela Lei Complementar nº 8, de 3 de dezembro de 1970, passa, a partir da promulgação desta Constituição, a financiar, nos termos que a lei dispuser, o programa do seguro-desemprego e o abono de que trata o § 3º deste artigo”.5 “Art. 8º Até trinta dias após a publicação dos orçamentos, nos termos em que dispuser a Lei de Diretrizes Orçamentárias, e observado o disposto na alínea c do inciso I do art. 4º, o Poder Executivo estabelecerá a programação financeira e o cronograma de execução mensal de desembolso. Parágrafo único. Os recursos legalmente vinculados a finalidade específica serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vincu-lação, ainda que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso” 6 “Art. 13. O excesso de arrecadação e o superávit financeiro das fontes de recursos existentes no Tesouro Nacional poderão ser destinados à amortização da dívida pública federal. Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo não se aplica às fontes de recursos decorrentes de vinculação constitucional e de repartição de receitas a Estados, Distrito Federal e Municípios.” 7 A definição de novo uso para os recursos vinculados legalmente se insere, na primeira oportunidade, em atos com propósitos meritórios, mas é claro que enfrenta resistências dos interessados na execução das despesas correspondentes. Por exemplo, mais recentemente, a MP 484/2010 (de 30/03, depois Lei 12.306), que “dispõe sobre a prestação de apoio financeiro pela União aos Estados e ao Distrito Federal, institui o Programa Especial de Fortalecimento do Ensino Médio, para o exercício de 2010, e dá outras providências” determinou o seguinte: “Art. 9º O superávit financeiro das fontes de recursos existentes no Tesouro Nacional em 31 de dezembro de 2009 poderá ser destinado à cobertura de despesas primárias obrigatórias. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica às fontes de recursos decorrentes de vinculação constitucional e de repartição de receitas a Estados e Municípios.”8 Entre as despesas da seguridade, estão incluídas as despesas com os inativos da União. 9 Ver em http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/PrestacaoContasPresidente/index.asp os pareceres prévios do Tribunal de Contas da União, obser-vando a metodologia adotada pelo TCU.

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Somando desvinculações de contribuições sociais

e de contribuições econômicas na proposta orçamen-

tária de 2012, a DRU alcança R$ 62,4 bilhões em recur-

sos que, sem o instrumento, deveriam estar vinculados

a órgão, fundo ou despesas específicas, se não fossem

destinados a reserva de contingência.

Dados da proposta orçamentária de 2012 – os cál-

culos não foram feitos para o orçamento sancionado

após intervenção do Congresso – indicam que a des-

vinculação de contribuições sociais que se destinariam

à seguridade social é de R$ 53,9 bilhões. Desses, a parte

originada de receitas constitucionalmente vinculadas à

seguridade é de R$ 53,4 bilhões.

De outro lado, a proposta previa que o orçamento

fiscal, incluindo nos recursos do orçamento fiscal os

valores desvinculados de contribuições da seguridade

social, transferisse R$ 66 bilhões para o orçamento da

seguridade social, dos quais R$ 61,6 bilhões de recursos

livres para o custeio de despesas primárias, sendo R$

55,8 bilhões, obrigatórias. As despesas da seguridade

social são muito elevadas, razão pela qual recursos des-

vinculados retornam à área de origem.

Antecedentes

Desde o Plano Real (1994), quando o Fundo Social

de Emergência (FSE) foi criado, vêm mudando as con-

dições (aumento de alíquotas e da arrecadação das

contribuições cujas receitas não são partilhadas com

Estados, DF e Municípios10, transformação de superá-

vits financeiros de fontes vinculadas em recursos de

uso livre ou destinados à amortização da dívida ...) e

a abrangência da desvinculação das receitas (as trans-

ferências a estados e municípios por meio dos fundos

de participação foram ressalvas desde o início; gradu-

almente mais e mais contribuições e despesas escapa-

ram dos efeitos da desvinculação ...11).

O instrumento foi concebido para ampliar a flexibi-

lidade da política fiscal, diante do grau de vinculação

dessas receitas, que continua elevado. Na proposta

orçamentária de 2012, corresponde a 6,5% dos ingres-

sos primários dos orçamentos fiscal e da seguridade,

líquidos de transferências a estados e municípios.

18. Pari passu houve o crescimento significativo das

despesas obrigatórias ou semiobrigatórias no âmbito

da seguridade (previdência, saúde e assistência), a que

as receitas das contribuições sociais estão vinculadas.

Exclusões

Estados e municípios não perdem recursos em fun-

ção da desvinculação. Com a substituição do Fundo de

Estabilização Fiscal pela DRU, a União passou a entregar

aos fundos de participação de estados e municípios e

aos fundos regionais de desenvolvimento (FNO, FNE e

FCO) a totalidade das transferências constitucionais e

legais de impostos e contribuições. O salário-educação,

embora denominado contribuição social, é na verdade

uma receita do orçamento fiscal, e foi expressamente

poupado da desvinculação desde 2000 (EC 27). A

emenda recém-promulgada renova o comando.

10 Das receitas da Receita Federal do Brasil (sem contar a contribuição dos servidores para o Plano de Seguridade Social do Servidor (PSSS), e a receita previdenciária), a arrecadação das principais contribuições sociais vinculadas ao orçamento da seguridade social (Cofins, CSLL, PIS/Pasep, e CPMF em 2000 e 2005) representou 34,5% em 1995, 45,4% em 2000, 47,7% em 2005 e 41,5% em 2010, do total da receita administrada.11 A última modificação nesse campo ocorreu em 2009, quando se passou a excluir a educação desse mecanismo. De acordo com a Emenda Constitucional 59, apenas 5% dos recursos destinados à manutenção e desenvolvimento do ensino seriam desvinculados em 2010, e em 2011 não haveria qualquer desvinculação.12 Art. 80, § 1º do ADCT. Embora houvesse dúvidas de interpretação, se deveria ou não sujeitar-se à DRU, o resto da CPMF foi atingida.13 A EC 59 previu redução anual, a partir de 2009, do percentual da DRU incidente sobre os recursos destinados à manutenção e desenvolvimento do ensino de que trata o art. 212 da Constituição Federal. O percentual de desvinculação das receitas de impostos ante do cálculo desses recur-sos foi de 12,5%, em vez de 20%, em 2009; 5% em 2010 e nulo em 2011.

‘‘ ‘‘Em 2012, a DRU pode-ria, segundo a proposta orçamentária, significar redução nas despesas

primárias de R$ 5,5 bilhões, o equivalente

a 0,12% do PIB,...

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outubro de 2011 / março de 2012

Também escapam da DRU, desde 1998 (EC 20), as

contribuições de empregadores e trabalhadores para o

regime geral da Previdência Social (INSS), por força de

vedação no art. 167 (inciso XI) da Constituição. Por ana-

logia, também não se aplica a desvinculação às receitas

da Contribuição para o plano de seguridade social do

servidor.

Sucessivamente, outras receitas foram excluídas do

mecanismo, como forma de proteger determinados

setores. Foi o caso do Fundo de combate à pobreza,

enquanto existiu a CPMF. 12 Foi mais tarde o caso da

Educação. 13

De outro lado, as contribuições de intervenção no

domínio econômico se somaram à base da desvincu-

lação, para além das sociais. Com a criação da Cide-

combustíveis (2003), já no ano seguinte 14 o percentual

de repasse da arrecadação a estados e DF foi aumen-

tado de 25% para 29% para compensar em grande

parte a perda com a desvinculação.

No demonstrativo do Anexo II, inciso X, das informa-

ções complementares ao PL nº 28, de 2011-CN, consta

a memória de cálculo das receitas desvinculadas por

força do dispositivo constitucional. 15

Principais conclusões

A DRU não implica perda de receitas de estados

e municípios, exceção feita aos recursos da Cide-

combustíveis, cujo percentual de repartição teria sido

menor não existisse a desvinculação quando a partilha

passou a constar do texto constitucional.

Saúde e educação nada perdem com a DRU, e a

seguridade social como um todo, por ser deficitária

nos últimos anos, reabsorve inteiramente os recursos

oriundos da desvinculação de suas receitas. Há um

certo grau de remanejamento de recursos, i.e., valores

da DRU extraídos da seguridade social podem não ser

devolvidos aos mesmos órgãos, fundos ou despesas da

própria seguridade dos quais foram desvinculados, mas

esse resultado seria alcançado por outros dos meios já

citados neste texto .

A obtenção do superávit primário não tem depen-

dido, nem dependerá em 2012, da liberação de recursos

vinculados constitucionalmente pelo mecanismo em

pauta. Isso é verdade para o orçamento da seguridade

social e para o Fundo de Amparo ao Trabalhador, uma

vez que ambos são deficitários.

A razão para tornar livres os recursos cuja vincula-

ção a órgão, fundo ou despesa é legal seria desobrigar

a União de executar despesa indesejada ou de baixa

prioridade. Ocorre que 20% podem ser menos do que a

percentagem dos recursos que se deva desvincular de

um dado órgão, fundo ou despesa, e a DRU seria insufi-

ciente para sanar inteiramente o problema.

Essa economia pode ser feita subestimando-se

receitas vinculadas na lei orçamentária ou limitando-se

a execução das despesas correspondentes. Por exem-

plo, no projeto de lei orçamentária de 2012 foram des-

tinados à reserva de contingência praticamente 60%

dos recursos dos royalties do petróleo (fonte 142) que

pertencem à União. Passado o exercício, recursos sem

uso se desvinculam para amortizar a dívida.

Com exceção de R$ 570,5 milhões de transferên-

cias constitucionais de receitas da Cide-combustíveis

a governos subnacionais, não haveria outra perda de

recursos federais líquidos a se registrar na proposta de

orçamento de 2012 caso a prorrogação da DRU não

tivesse sido aprovada.

Dados

As tabelas seguintes mostram, nesta ordem:

• a composição do superávit primário, de acordo

com a proposta orçamentária de 2012, destacando a

contribuição das reservas de contingências para alcan-

çar o resultado;

• as reservas de contingência formadas com recei-

tas primárias, por unidade orçamentária a que estão

vinculadas, que contribuem para a formação do supe-

rávit primário na proposta orçamentária de 2012, des-

tacando as duas principais fontes de recursos usadas; e

• agregadamente, por principais naturezas, o mon-

tante que representam 20% das receitas de contribui-

ções sociais e econômicas desvinculados pela DRU e os

orçamentos afetados em potencial pela desvinculação,

de 2010 a 2012.

14 EC 44, de 2004.15 Ver em https://www.portalsof.planejamento.gov.br/sof/orc_2012/ploa2012/ic_Volume_I_do_1_ao_10.pdf.

Page 28: Revista de Conjuntura n. 47

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Proposta de orçamentos fiscal e da seguridade social

Composição do superávit primário, 2012

Fonte: Projeto de Lei nº 28, de 2011-CN. Elaboração dos autores.

Fonte: Base de dados do Projeto de Lei nº 28, de 2011-CN. Elaboração dos autores.

Proposta de orçamentos fiscal e da seguridade social Reservas de contingência com fontes primárias na proposta orçamentária de 2012

(R$ 1,00)

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Page 29: Revista de Conjuntura n. 47

27

outubro de 2011 / março de 2012

José Fernando Cosentino [email protected]

Economista e consultor de orçamento da Câmara dos Deputados.

Proposta de orçamentos fiscal e da seguridade social Desvinculação de Receitas da União (DRU). Contribuições sociais e econômicas por Orçamento, 2010-2012

(R$ 1,00)

Fonte: Siafi, Orçamento de 2011 e base de dados da Proposta Orçamentária de 2012. Elaboração dos autores

Márcia Rodrigues [email protected]

Economista, consultora de orçamento da Câmara dos Deputados e

ex-analista de finanças e controle da Secretaria do Tesouro Nacional

Page 30: Revista de Conjuntura n. 47

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a

O Conselho Regional de Economia do Distrito Fe-

deral realizou três encontros nos quais discutiu-se

o tema Finanças pessoais: há problemas à frente?. Os

economistas e expositores Newton Marques, Ronalde

Lins, José Eustáquio Moreira de Carvalho e Victor José

Hohl, destacaram diversos aspectos, tanto sob a pers-

pectiva macro, quanto sob o ângulo dos problemas

individuais e suas repercussões sociais.

Um dos aspectos marcantes do desenvolvimento

brasileiro nos últimos anos foi o crescimento do cré-

dito às pessoas físicas. A estabilidade monetária, a at-

mosfera de prosperidade e a mobilidade social deram

condições ao aumento desse crédito às pessoas físi-

cas – além do quê, a própria expansão do crédito im-

pulsionava o crescimento da economia e a ascensão

social, num círculo virtuoso de progresso e afluência.

Entretanto, surgiram receios de que uma bolha de cré-

dito estivesse em formação, e também se multiplica-

ram as crises de sobreendividamento pessoal.

O economista Newton Marques elegeu alguns cui-

dados que os consumidores devem ter para que a situ-

ação financeira das famílias não se complique: elaborar

um orçamento familiar com o registro das receitas e

despesas para reduzir desperdícios, por exemplo, com

luz, água e telefone, e priorizar o consumo de modo

consciente com base no Metódo dos Três Sim: 1) tem ne-

cessidade de comprar?; 2) tem dinheiro para comprar?

e 3) tem que ser naquele momento a compra?

Tudo isso para ele é necessário, pois a tentação

das compras é muito grande, a indústria e o comércio

procuram de toda forma atrair os consumidores,

em especial, vender os seus estoques antigos com

superpromoções, que quase sempre seduzem um

grande número de clientes. Assim, as pesquisas

de preços e produtos substitutos são altamente

recomendáveis para que os consumidores tenham

condição de fazer comparações e realizar compras

gastando menos.

Para Newton Marques, a questão fundamental não

é propagar o pessimismo, mas alertar os consumidores

para esse grave momento de se fazer compras sem os

devidos cuidados com o processo. “Curioso é que os

governantes e os representantes do setor empresarial

procuram estimular o otimismo no sentido de evitar

os graves efeitos nefastos da crise, mas esquecem de

alertar os consumidores para que eles estão sendo

pressionados para se endividar e quase sempre não

terão condição de cumprir as suas obrigações de

devedores, pois nem sempre compram à vista, mas

sim a prazo, com taxas de juros embutidas”, comenta o

economista.

Mas nem sempre os consumidores são devedores.

Há os que são credores. Nesses casos, quais seriam as

orientações para esses privilegiados que têm recursos

aplicados ou querem aplicar no mercado financeiro?

Newton Marques ensina: “Como existe tendência

para redução das taxas de juros, a garimpagem das

aplicações financeiras requer muita paciência e busca

de orientação dos gerentes e consultores financeiros.

por Camila Fiorese

Finanças pessoais: há problemas à frente?

28

Page 31: Revista de Conjuntura n. 47

29

outubro de 2011 / março de 2012

A velha regrinha de bolso tem que ser considerada,

ou seja, deve-se procurar a maior segurança possível,

o baixo risco e a possibilidade de poder transformar

o mais rápido possível a sua aplicação financeira em

dinheiro”.

Datas comemorativas

Para o economista Ronalde Lins, as pessoas se

deixam conduzir para o consumo não planejado,

seguem fiéis à tradição de presentear em datas

comemorativas, e por isso pagam um preço alto. Se

a cada data o comércio volta suas forças para um

segmento da sociedade, suas intenções são sempre

vender cada vez mais produtos não-essenciais.

São diversos os aspectos, segundo Ronalde, que

levam a pessoa a contrair uma dívida. A trajetória

dos endividados geralmente começa pelo cheque

especial, depois o cartão de crédito, o empréstimo

em folha, financiamento de veículos, segue no pegar

dinheiro com parentes, amigos e agiotas. Isso acaba se

transformando numa bola de neve. Existem também

outros aspectos que levam ao endividamento.

O casamento, o desemprego, além de doenças

inesperadas podem levar ao endividamento transitório

pessoal ou familiar.

Ronalde Lins, autor do livro Superendividamento e

Finanças Pessoais, lembra também que os devedores

podem ser percebidos em duas categorias distintas: os

conscientes (os que planejam e conseguem pagar) e

os inconscientes (compram sabendo que não podem

pagar, mas compram assim mesmo).

O economista classifica como superendividadas

as pessoas que compram a prazo e não conseguem

pagar. As dívidas contraídas fora da capacidade de

pagamento levam ao desequilíbrio permanente do

orçamento familiar. Já as pessoas classificadas como

endividadas compram a prazo dentro da capacidade

da renda pessoal ou familiar.

Outro aspecto que se deve levar em consideração

são os juros cobrados no Brasil, principalmente nas

operações com cartões de crédito e cheque especial.

Mesmo nos empréstimos em bancos e financeiras, com

descontos em folha, consignados, nos quais as taxas são

menores, é importante ter cuidado. São os perigos do

crédito fácil. As contas familiares podem ser arruinadas

sem que as pessoas percebam a tempo.

Para Ronalde, assim como as empresas planejam

suas compras no ano, os indivíduos também devem

se planejar. Para ele, é muito importante a participação

de toda a família no processo de planejamento, como

também não se deve esquecer o comprometimento na

execução desse planejamento.

Finanças pessoais: há problemas à frente?

‘‘‘‘

Como existe tendência para

redução das taxas de juros, a garimpagem

das aplicações financeiras requer muita paciência e

busca de orientação dos gerentes e

consultores financeiros.

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a

Indicadores econômicos

Já o economista Victor José Hohl considera

importante que, para que as pessoas tenham uma vida

financeira saudável, é preciso conhecer e acompanhar

a conjuntura do mundo e do país. Indicadores

econômicos, como taxa de juros, taxa de câmbio, taxa

de crescimento do PIB e inflação, influenciam, e muito,

a vida financeira das famílias. E justamente esses

indicadores sofrem mudanças constantes. Por esta

razão é tão importante acompanhar a macroeconomia.

No Brasil, não existe o ensino da educação financeira

para a população. O longo período inflacionário até

a implantação do Plano Real em 1994 deseducou

a população em termos financeiros. Os mercados

financeiro e de capitais não podiam se desenvolver

no período inflacionário. As pessoas não poupavam

e eram induzidas ao endividamento, pois fazer dívida

era um bom negócio, já que bens e serviços viviam

em constante desvalorização. A regra era: se ganhar

algum dinheiro, gaste-o logo, caso contrário vai perder

o poder aquisitivo.

Victor Hohl alerta que hoje estamos na era pós-

industrial ou da informação, cuja característica é

um intensivo processo de evolução tecnológico no

qual os robôs passam a trabalhar no lugar dos seres

humanos. A remuneração do capital (lucro, juros,

aluguéis e a valorização do capital) supera a renda do

trabalho (salários). E com o aumento da idade média

e da expectativa de vida da população, os sistemas de

previdência estão deficitários. A renda dos aposentados

é muito baixa, ou seja, é cada vez mais importante

educar financeiramente as famílias, em especial a

população jovem.

Para Victor, sem esse tipo de educação, é quase

impossível conseguir independência financeira –

aquele estado ideal no qual o indivíduo possui um

montante em dinheiro que, uma vez investido (com

conhecimento), gera renda capaz de lhe garantir

o sustento para o resto da vida. É na verdade uma

aposentadoria. “Nunca foi tão importante poupar e

aprender a investir o dinheiro para que, com o passar

do tempo, seja possível substituir a renda do trabalho

pela renda de capital”, comenta o economista.

Robert T. Kiyosaki, autor dos livros de educação

financeira da série “Pai Rico Pai Pobre”, diz que

existem quatro maneiras de ganhar dinheiro. Como

empregado, autônomo, empreendedor proprietário

e investidor. Das quatro, a pior é como empregado,

porque as pessoas gastam seu precioso tempo a troco

de um mísero salário. No sistema capitalista, o objetivo

da empresa é gerar lucro para o proprietário (acionista,

cotista) ou para o empregado?

Para o economista Victor Hohl, as escolas formam

pessoas para o emprego em um mundo que não

gera postos de trabalho suficientes para todos. Esta

é a verdadeira causa da “crise”. Na verdade, não há

crise – mas mudanças. O economista cita duas frases

importantes para ilustrar a situação. Heráclito de Éfeso

(540 – 480 a.C.) afirmava “Nada existe de permanente,

a não ser a mudança”. Se o mundo mudou, temos que

mudar também, quem não muda entra em crise. “Maior

insanidade é querer resultados diferentes fazendo tudo

exatamente igual” (Albert Einstein). Victor conclui que, na

era pós-industrial, frequentar uma faculdade e “formar-

se doutor” não é suficiente. É necessário ter “Educação

Financeira” e estudar sempre como o dinheiro funciona,

para que, ao longo da vida, as pessoas tenham atingido

a tão almejada independência financeira.

30

Page 33: Revista de Conjuntura n. 47

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outubro de 2011 / março de 2012

ArtigoEndividamento:

educação, treinamento, comportamento ou terapia?

José Eustáquio Moreira de Carvalho

É comum a discussão sobre o erro de se tratar o

endividamento como um mal em todos os sentidos,

já que existe aquele destinado à aquisição de bens

duráveis que movimenta a economia. Nesse tipo

de endividamento se enquadram a compra da casa

própria, de veículos, eletrodomésticos e outros. Nada

contra, desde que isto não venha a comprometer toda

a renda do comprador. Entretanto, o que se vê hoje é

exatamente o contrário: o endividamento tem sido

utilizado para garantir a subsistência (ou sobrevivência)

por meio do financiamento da alimentação das famílias.

Nos anos recentes não faltaram motivadores para

que as pessoas se endividassem cada vez mais: a

expansão da economia, que gerou mais recursos à

disposição do consumo, maior oferta e modalidades

de crédito, aumento salarial, “facilidades” de acesso ao

crédito, apelos “inteligentes” ao consumo, agressividade

dos agentes financeiros e muitos outros.

Medidas prudenciais do Governo para contenção

ou afrouxamento do crédito, como aumento e redução

da taxa básica de juros, estabelecimento de programa

de estado de caráter permanente para tratar da

educação financeira nas escolas de educação básica,

redundaram ineficientes e ineficazes na aplicação no

mundo “real” do consumo.

O que se tem assistido – e provavelmente assim

continuará – é o constante aparecimento de fatores

que, se não anulam as medidas ou intenções das

autoridades, torna muito mais complexa a formulação

de estratégias para a utilização mais consciente do

crédito pelas famílias. Alguns deles são amplamente

divulgados: ampliação da oferta e redução da taxa

de juros para créditos consignados; novos “estilos” de

cartões de crédito para as classes A e B; expansão das

bandeiras de cartões de crédito rumo às classes sociais

emergentes, especialmente C e D, com “excelentes”

possibilidades de acesso ao produto; aumento do

número de parcelas para financiamento com cartões

de crédito; frequentes declarações da autoridade

monetária de que está “tudo bem”, pois o nível de

endividamento e inadimplência é inexpressivo em

relação ao Produto Interno Bruto (PIB) e outros de

menor importância.

Neste contexto, fala-se muito sobre a elevação do

nível de endividamento das famílias e do percentual

daquelas que não conseguirão honrar o pagamento

de suas dívidas; sobre o principal motivo – ausência

de planejamento das finanças pessoais – que leva as

pessoas a se tornarem inadimplentes; sobre o cartão de

crédito como o maior financiador das compras a prazo;

e especialmente sobre o “absurdo” que representam as

taxas de juros praticadas nas diversas modalidades de

crédito.

No entanto, de prático ou concreto, pouco se faz

em direção à busca das causas e mesmo em relação à

adoção e implementação de ações verdadeiramente

efetivas a respeito.

Educação

Em 2010, a partir do entendimento, tanto das

organizações do sistema financeiro quanto das

autoridades nacionais ligadas a ele, criou-se um grupo

de trabalho, capitaneado pelo Banco Central do Brasil

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a

(BC), para formular proposta de educação financeira

em todo o país. Como resultado, o grupo propôs

um programa denominado Estratégia Nacional de

Educação Financeira (Enef ), que, além de aceito, foi

adotado pelo Governo Federal como um programa

de Estado de caráter permanente. Seu alvo principal

é a educação básica. O Enef já foi implementado,

experimentalmente, em algumas escolas públicas e

particulares nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e

no Distrito Federal, com resultados animadores quanto

ao aprendizado, mas ainda não foram avaliados - ou

divulgados - os efeitos multiplicadores sobre os pais

dos alunos. Vale acrescentar que estas ações contam

com o apoio do Banco Mundial.

Paralelamente e em função do mercado existente

e da expansão oriunda do Enef, muitas outras

ações, serviços e produtos têm surgido das diversas

origens. As ofertas vêm de profissionais educadores,

consultores e também de entidades e associações de

classe e outras organizações do terceiro setor, com

forte uso dos recursos da informática, especialmente

para venda de materiais técnico-didáticos e ensino a

distância. Destaque especial para a Federação Brasileira

de Bancos (Febraban) com a sua “Caravana Meu Bolso

em Dia”, que percorre capitais brasileiras para difundir

os conceitos de educação financeira e material didático

de apoio.

Treinamento

Também tem se verificado uma crescente oferta

de treinamentos em Finanças Pessoais e Empresariais

oferecidos por profissionais do mercado financeiro,

consultores financeiros, escolas de nível superior,

entidades e associações de classe e também de

outras organizações do terceiro setor. Os eventos

são oferecidos a pessoas físicas e jurídicas, e estão

mais voltados para os aspectos da poupança e do

investimento, segundo o interesse dos participantes e

o que está disponível no mercado.

Em que pese os aspectos meritório e louvável

desse esforço e ainda os resultados positivos que ele

tem alcançado, ainda permanece aberta a lacuna da

educação financeira que crie o hábito do planejamento

e do controle dos gastos, que deveria preceder o

aprendizado do como investir as “sobras”. Não tem

sentido prático (dependendo do público, é claro) o

ensino de como se tornar um investidor quando o

problema real é como sair do endividamento.

Comportamento

A Economia Comportamental, de proposta

recente e consagrada com a concessão do prêmio

Nobel de Economia, em 2002, ao psicólogo israelense

Daniel Kahneman, apesar de um assunto de altíssima

relevância merece pouco destaque. Suspeita-se que, no

Brasil, muito pouco tenha sido realizado sob a sua ótica.

Ela não despreza as forças do mercado

explicadas pela Economia Clássica, mas se apoia

em conhecimentos tradicionalmente estudados na

Psicologia. A partir de experimentos psicológicos, os

comportamentalistas chegaram à conclusão de que

a Economia não é apenas uma forma de gerenciar

recursos escassos, mas o estudo da dinâmica de

interesses, motivações e decisões de indivíduos e

grupos. Eles concluíram que, na verdade, o ser humano

não age como o modelo super-racional do Homo

economicus, pois a partir dessa ótica seria impossível

explicar o porquê de alguns comportamentos:

pacientes que não tomam seus medicamentos e

‘‘

‘‘

O que se tem assisti-do – e provavelmente assim continuará – é o constante aparecimen-

to de fatores que, se não anulam as medidas

ou intenções das au-toridades, torna muito mais complexa a for-

mulação de estratégias para a utilização mais consciente do crédito

pelas famílias.

32

Page 35: Revista de Conjuntura n. 47

33

outubro de 2011 / março de 2012

‘‘

‘‘

A partir de experi-mentos psicológicos,

os comportamentalis-tas chegaram à conclu-são de que a Economia não é apenas uma for-

ma de gerenciar re-cursos escassos, mas o estudo da dinâmica de interesses, motivações e decisões de indivídu-

os e grupos.

adultos que mantêm relações sexuais sem proteção

são manifestações das imperfeições dos homens que

explicitam a irracionalidade do Homo sapiens.

Temos irracionalidades muito específicas, tais

como uma supervalorização dos bens que possuímos,

excessos de alimentos em grandes despensas,

superestimação da probabilidade de eventos

improváveis. Mas, em geral, somos ignorantes, míopes

e temos tendência a manter o status quo. Nós deixamos

que o nosso impulsivo “ser básico” esmague a lógica de

nosso “ser superior”. Somos especialmente irracionais

em relação ao dinheiro: pagamos mais pela mesma

coisa se pudermos usar um cartão de crédito, se estiver

em promoção, ou se a parcela a ser paga couber no

nosso bolso. Portanto, não devemos estranhar quando

solicitamos financiamentos que não podemos pagar,

bem como quando nossos banqueiros aprovam tais

financiamentos.

Ao se analisar o ano de 2011, é possível perceber

um bom exemplo de uma dessas irracionalidades. A

expansão do crédito, o aumento da inflação e o aumento

do consumo compulsivo atingiram a classe de renda

alta no país, no ponto mais crítico da qualidade de

vida de muita gente: o endividamento. Os “abastados”

das classes A e B, por conta do alto poder aquisitivo, ao

alavancarem negócios e realizarem compras graças a

uma ampla abertura de crédito via cheque especial e

cartões de crédito, tornaram-se bastante vulneráveis

frente a contratempos comuns no dia-a-dia.

Segundo levantamento da Pesquisa Nacional de

Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC),

realizada pela Confederação Nacional do Comércio de

Bens, Serviços e Turismo (CNC), em janeiro deste ano, o

endividamento das famílias apresenta os seguintes dados:

Faixas de Renda jan 2011 jan 2012

Menor que 10 salários mínimos 61,3% 59,5%

Maior que 10 salários mínimos 48,9% 53,4%

As classes C, D e E são responsáveis por 60% do

consumo nacional e serão capazes de injetar na

economia 7,5%, como renda real oriunda do aumento

de cerca de 14% no salário mínimo em vigor desde

janeiro. E elas têm usado esse poder para passar ao

largo da crise mundial e das medidas de contenção de

crédito quanto ao ato de consumo. A classe C, em 2010,

já respondia por 41% das vendas de eletrodomésticos

da linha branca e 37% das vendas de celulares.

Outro aspecto bastante interessante a ser

observado é a forma como essas classes, antes na base

da pirâmide social, agem ou reagem nas relações de

consumo, especialmente quanto ao uso de cartões de

crédito e débito. Enquanto as classes A e B os utilizam

como comodidade e segurança, as classes C, D e E

o fazem como instrumento de crédito e símbolo de

status.

Terapia

A Economia Comportamental ganhou um novo

ramo de atividades: a Neuroeconomia. Vale-se de

termos comuns a neurocientistas, como mesencéfalo,

oxitocina, testosterona e córtex frontal orbital, ela

busca novas alternativas para explicar as flutuações

de mercado e o comportamento de consumidores

e investidores, e cria uma nova “profissão”: os

neuroeconomistas. Tem como o seu maior defensor

Robert Shiller, da Universidade de Yale, autor de vários

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trabalhos em economia comportamental e informação

assimétrica, a partir da leitura do livro “Fundamentos

da Análise Neuroeconômica”, de Paul Glimcher,

neurocientista e economista pela Universidade de Nova

Iorque.

A partir de pesquisas sobre o funcionamento do

cérebro humano, chegou-se a muitas “verdades” que

podem ser resumidas na seguinte: “O cérebro trata o

dinheiro da mesma forma que os alimentos, o sexo e a

sede. No plano emocional, obtê-lo é como saciar a fome”.

Dessa forma, foi possível a identificação de diversos

tipos de comportamentos quanto às motivações,

interesses e decisões dos consumidores e investidores.

Um deles, a compulsão por compras, é definida pela

Psicologia Econômica como Oneomania. Distúrbio

comum, mas não muito conhecido e que precisa ser

tratado por profissional, já que os indivíduos portadores

não conseguem se livrar sozinhos e, na maioria das

vezes, fazem novas compras para se sentirem aliviados.

O que apenas tem efeito momentâneo, como o que

ocorre quando se ingere álcool ou outras drogas.

A Oneomania e a ausência do planejamento e

controle financeiro pessoal representam dois poderosos

agentes do endividamento sem controle. Tanto um

quanto o outro precisam de tratamentos específicos:

para o primeiro, a Psicologia Econômica; para o segundo,

a Clínica Financeira; e para ambos, os grupos Devedores

Anônimos (DAs).

Vale acrescentar que já é conhecida a existência de

grupos que recebem os três tipos de tratamento em

São Paulo e região metropolitana. Entre os pacientes, há

engenheiros, arquitetos, juízes, bancários, promotores,

executivos, procuradores e outros profissionais.

Legítimos representantes das classes A e B.

Conclusão

Nesse ambiente, as conclusões, sugestões e até

ações concretas se tornam bastante visíveis e, de certo

modo, um pouco óbvias.

Na área da educação, está clara a necessidade

do engajamento de mais organizações públicas e

privadas no programa Enef. Principalmente aquelas

representativas de segmentos sociais, profissionais,

políticos e empresariais.

Na questão do treinamento, além da inclusão

nos treinamentos de poupadores e investidores da

“disciplina” Planejamento e Controle de Finanças

Pessoais, serão necessárias a criação e a difusão ampla

de programas de treinamento especifico. Mais uma

vez, a participação dos representantes da sociedade

organizada será de suma importância.

Quanto ao comportamento, se existiu e ainda

persiste, é preciso esquecer o “desconforto” de termos

visto a concessão de um prêmio Nobel de Economia a

um profissional “ estranho” ao nosso meio e entrarmos ou

aprofundarmos urgentemente o nosso engajamento na

Economia Comportamental. E já o faremos tardiamente,

pois o que está na ordem do dia é a Neuroeconomia.

Aqui cabe um comentário adicional. Em grande

medida, fomos adeptos e seguidores de modelos norte-

americanos para a economia. Nesses novos campos,

ficamos ao largo ou pouco nos interessamos. Falta de

exemplo não foi o motivo, pois desde a campanha e,

em muitos aspectos, no momento atual, a economia no

governo de Barack Obama foi concebida e ainda conta

com expressivo contingente de comportamentalistas.

Eis alguns dos componentes do dream team em que eles

se transformaram: Dan Ariely, do Massachusetts Institute

of Technology (MIT); Richard Thaler e Cass Sunstein,

da Universidade de Chicago; Daniel Kahneman, da

Universidade de Princeton; e o psicólogo Robert

Cialdini, autor de Influence, considerado bestseller nos

Estados Unidos.

‘‘ ‘‘“O cérebro trata o dinheiro da

mesma forma que os alimentos, o sexo e a sede. No plano

emocional, obtê-lo é como saciar a fome”.

34

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outubro de 2011 / março de 2012

José Eustáquio Moreira de [email protected] pela Universidade de Brasília (UnB), financista pela

Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São

Paulo (FEA/USP), assessor econômico da Federação do Comércio de

Bens, Serviços e Turismo do Distrito Federal (Fecomércio-DF).

No que se refere à terapia, devemos também estar

alertas e buscar maior aproximação com a Psicologia

Econômica, que está presente entre nós e realizando

boas intervenções na terapia, na educação e no

treinamento.

Finalmente, será preciso uma mudança no que se

entende por níveis aceitáveis de endividamento e de

inadimplência. Os “macroeconomistas”, especialmente

aqueles que estão comandando os destinos da

economia nacional, embora corretos nos seus trabalhos

de acompanhamento e “controle” de indicadores,

precisam saber que tanto um quanto o outro, mesmo

quando bons para o país, na ponta existe o nível

microeconômico, onde indivíduos lutam com relações

desfavoráveis entre o ganho e o gasto e entre o que

devem e que têm disponível para pagar. Muitos com

a saúde física e mental abaladas, patrocinando quedas

expressivas na produtividade das organizações.

Referências bibliográficas

Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços

e Turismo (CNC): - Pesquisa Nacional de Endividamento

e Inadimplência do Consumidor (PEIC), janeiro de 2012.

Sato, K.: “Dívida de luxo”, encarte Valor Investe nº 58,

Valor Econômico, de 04 de fevereiro de 2012.

Viana, D.: “Mercado é coisa da sua cabeça”,

Valor Econômico, de 11 de dezembro de 2011.

Gusso, H. L.: “Cientistas Comportamentais por trás de

Barack Obama”, in www.sasico.com.br/psico/?p=287

Levitt, S.; Dubner, S.: “Freakonomics”, Campus, 2007.

Ferreira, V. R.: “Decisões Econômicas – Você

já parou para pensar?”, Saraiva Editora, 2007.

Bussinger, E.: “A Dieta do Bolso”, Elsevier/Campus, 2008.

Page 38: Revista de Conjuntura n. 47

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ArtigoA hora e a vez da retomada

do planejamento estratégico governamental no Brasil

José Celso Cardoso Jr.

Depois de mais de duas décadas de relativa

estagnação econômica, e a despeito dos efeitos e

desdobramentos ainda incertos da crise econômica

internacional que se arrasta desde pelo menos 2008,

o Brasil retomou certa capacidade de crescimento

de sua economia a partir de 2004. Tal retomada

mostrou-se fundamental para a melhoria de uma

série de indicadores sociais e do mercado de trabalho

no período recente. Ao mesmo tempo, explicitou a

necessidade da sustentação do crescimento no longo

prazo para fazer frente aos desafios colocados para a

construção de um país menos desigual, que consiga

prover de justiça e bem-estar social seus cidadãos.

Neste ambiente de retomada do crescimento e

explicitação de dificuldades para a sua sustentação,

vários documentos foram produzidos pelo governo

brasileiro, em seus diversos órgãos, tratando da questão

do desenvolvimento e do planejamento econômico.

Após analisar cerca de 30 documentos produzidos

por ministérios e órgãos de alto escalão do governo

federal, entre 2003 e 2010, Cardoso Jr. e Maracci (2011)

concluíram que a retomada do crescimento, ao abrir

espaços políticos e econômicos, propiciou maior

envergadura aos esforços de planejamento durante a

primeira década do século XXI.1

Quadro 1: Documentos pesquisados, em

ordem cronológica

1. Plano Plurianual 2004-2007 (Plano Brasil de

Todos – participação e inclusão). Brasília: Ministério

do Planejamento, Orçamento e Gestão, 2003.

2. Projeto Brasil 3 Tempos: 2007, 2015 e 2022.

Brasília: Presidência da República, Núcleo de Estudos

Estratégicos da Presidência da República (NAE) e

Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão

Estratégica (Secom), 2004/2005.

3. Orientação estratégica de governo:

crescimento sustentável, emprego e inclusão social.

Brasília: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e

Comércio Exterior (MDIC), 2003.

4. Política Industrial, Tecnológica e de Comércio

Exterior. Brasília: Ministério do Desenvolvimento,

Indústria e Comércio Exterior (MDIC), 2003.

5. Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

(PNDU). Brasília: Ministério das Cidades, 2003.

6. Política Econômica e Reformas Estruturais.

Brasília: Ministério da Fazenda - SPE, 2003.

7. Reformas Microeconômicas e Crescimento de

Longo Prazo. Brasília: Ministério da Fazenda (MF/

SPE), 2004.

1 Ver trabalho completo em CARDOSO JR., J. C. & GIMENEZ, D. M. Crescimento econômico e planejamento no Brasil (2003-2010): evidências e possibilidades do ciclo recente. In: CARDOSO JR., J. C. (org.). A Reinvenção do Planejamento Governamental no Brasil. Brasília-DF: Série Diálogos para o Desenvolvimento, volume 4, Ipea, 2011.

36

Page 39: Revista de Conjuntura n. 47

37

outubro de 2011 / março de 2012

8. Política Nacional de Habitação. Brasília:

Ministério das Cidades, 2004.

9. Política de Defesa Nacional (PDN). Brasília:

Ministério da Defesa, 2005.

10. Plano Plurianual 2008-2011 (Desenvolvimento

com Inclusão Social e Educação de Qualidade).

Brasília: Brasil. Ministério do Planejamento,

Orçamento e Gestão (MPOG), 2007.

11. Plano de Desenvolvimento da Educação

(PDE). Brasília: Ministério da Educação, 2007.

12. Programa de Aceleração do Crescimento

(PAC). Brasília: Presidência da República, 2007.

13. Política Nacional de Desenvolvimento

Regional (PNDR). Brasília: Ministério da Integração

(MI), 2007.

14. Plano Nacional de Energia – PNE 2030. Rio

de Janeiro: Ministério de Minas e Energia (MME) e

Empresa de Pesquisa Energética (EPE), 2007.

15. Estudo da Dimensão Territorial para o

Planejamento. Brasília: Ministério do Planejamento,

Orçamento e Gestão (MPOG) e Centro de Gestão e

Estudos Estratégicos (CGEE/MC&T), 2008.

16. Política de Desenvolvimento Produtivo:

inovar e investir para sustentar o crescimento.

Brasília: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e

Comércio Exterior (MDIC), 2008.

17. Agenda Social. Brasília: Casa Civil, 2008

(compreende ações e documentos de governo

ligados aos seguintes programas principais:

Programa Bolsa Família – PBF, Territórios da

Cidadania, Programa Mais Saúde, Plano de

Desenvolvimento da Educação – PDE, Programa

Cultura Viva – Pontos de Cultura, Política Nacional

de Juventude – ProJovem, Programa Nacional

de Segurança Pública com Cidadania – Pronasci,

Direitos de Cidadania – Mulheres, quilombolas,

povos indígenas, criança e adolescente, pessoas

com deficiência, documentação civil básica, povos e

comunidades tradicionais).

18. Estratégia Nacional de Defesa – Paz e

segurança para o Brasil. Brasília: Ministério da Defesa,

2008.

19. Plano Amazônia Sustentável: diretrizes

para o desenvolvimento sustentável da Amazônia

brasileira. Brasília: Ministério do Meio Ambiente

(MMA), 2008.

20. Plano Decenal de Expansão de Energia 2008-

2017. Rio de Janeiro: Ministério de Minas e Energia e

Empresa de Pesquisa Energética (EPE), 2009.

21. Programa Minha Casa, Minha Vida. Brasília:

Ministério das Cidades, 2009.

22. Brasil em Desenvolvimento: Estado,

planejamento e políticas públicas. Brasília: Ipea, 2009.

23. Programa de Aceleração do Crescimento (PAC

2). Brasília: Presidência da República, 2010.

24. A Inflexão do Governo Lula: política econômica,

crescimento e distribuição de renda. Nelson Barbosa

e José A. Pereira de Souza, publicado em Emir Sader

e Marco Aurélio Garcia (Orgs.). Brasil: entre o Passado

e o Futuro. São Paulo: Boitempo, 2010.

25. Objetivos de Desenvolvimento do Milênio –

Relatório Nacional de Acompanhamento. Brasília:

Ipea, 2010.

26. Brasil em Desenvolvimento: Estado,

planejamento e políticas públicas. Brasília: Ipea, 2010.

27. III Programa Nacional de Direitos Humanos

– PNDH-3. Brasília: Secretaria Especial de Direitos

Humanos, Presidência da República, 2010.

28. Plano Nacional de Mineração – PNM 2030.

Brasília: Ministério de Minas e Energia (MME), 2010.

29. Projeto Perspectivas do Investimento no Brasil

(PIB). Rio de Janeiro: BNDES; IE/UFRJ; IE/Unicamp,

2010.

30. Brasil em 2022. Brasília: Presidência da

República, Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE),

2010.

Fonte: Elaboração própria.

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a

Mas diferente de outros momentos e contextos, não

foi o planejamento que criou condições para a retomada

do crescimento, mas o crescimento que impulsionou o

planejamento dos setores e das decisões de investimento

no período recente. Fundamentalmente, pode-se

afirmar que este movimento aconteceu em mão dupla.

Primeiramente, em quase todos os casos analisados,

percebe-se uma tentativa das iniciativas setoriais de

planejamento de romper com o incrementalismo

inerente à lógica de organização e implementação

dos programas e ações tais quais contidos no PPA. Em

segundo lugar, também na maioria dos casos, percebe-

se uma tentativa do planejamento setorial em romper

com a precedência e a primazia do orçamento (vale

dizer, com o conceito de poupança prévia) sobre o

investimento e sobre a própria noção de planejamento

em sentido mais amplo e mais forte.

Como consequência, pode-se dizer que a

importância recente de tais iniciativas, vindo

concretamente dos setores e buscando destravar

constrangimentos econômico-financeiros de grande

porte, impõe a necessidade de o governo avançar em

sua capacidade global de planejamento, articulação e

coordenação setorial. Cabe dizer que, se o investimento

acabou conformando uma estratégia de planejamento,

torna-se absolutamente necessária a coordenação

dos núcleos fundamentais do investimento, como a

Petrobras, os grandes bancos públicos (BNDES, Banco

do Brasil e Caixa Econômica Federal), além dos fundos

de pensão, tendo em vista a enorme concentração das

decisões de investimento e da oferta de crédito em

circuitos internos sob influência do próprio Estado.

Talvez isto seja expressão do que parece premente

em termos mais gerais no país para dar fôlego à trajetória

recente de crescimento: avançar no desenvolvimento

das estruturas centrais de planejamento por meio de

um profundo – leia-se contínuo, coletivo e cumulativo –

reaparelhamento do Estado.

Estado, planejamento e gestão pública no

desenvolvimento nacional

A questão toda é que, em perspectiva histórica,

ao longo do período republicano brasileiro, o Estado

que se foi constituindo, sobretudo a partir da década

de 1930, esteve fortemente orientado pela missão

de transformar as estruturas econômicas e sociais da

Nação no sentido do desenvolvimento.

A industrialização foi a maneira historicamente

preponderante de se fazer isto. Ocorre que, em

contexto de desenvolvimento tardio, vale dizer,

quando as bases políticas e materiais do capitalismo

já se encontram constituídas e dominadas pelos países

ditos centrais – ou de capitalismo originário –, a tarefa

do desenvolvimento com industrialização apenas se

torna factível a países que enfrentam adequadamente

as restrições financeiras e tecnológicas que então

dominam o cenário mundial. Isto, por sua vez, apenas

se fez possível em contextos nos quais os Estados

nacionais conseguiram dar materialidade e sentido

político à ideologia do industrialismo, como forma

de organização social para a superação do atraso. Era

inescapável, portanto, a montagem de estruturas ou

‘‘

‘‘

Mas diferente de ou-tros momentos e contex-tos, não foi o planejamen-

to que criou condições para a retomada do cres-

cimento, mas o cresci-mento que impulsionou o planejamento dos setores e das decisões de investi-

mento no período recen-te. Fundamentalmente,

pode-se afirmar que este movimento aconteceu

em mão dupla.

38

Page 41: Revista de Conjuntura n. 47

39

outubro de 2011 / março de 2012

sistemas de planejamento governamental por meio

dos quais a missão desenvolvimentista pudesse se

realizar em determinado espaço-tempo nacional.

O sentido de urgência que esteve associado à

referida tarefa fez com que o aparato de planejamento,

ainda que precário e insuficiente, se organizasse

e avançasse de modo mais rápido que a própria

estruturação dos demais aparelhos estratégicos

do Estado. Aqueles destinados à gestão pública

propriamente dita – com destaque óbvio aos sistemas

devotados à estruturação e ao gerenciamento da

burocracia, bem como às funções de orçamentação,

implementação, monitoramento, avaliação e controle

das ações de governo – vieram apenas a reboque,

tardiamente frente ao planejamento.

Em outras palavras, a primazia do planejamento

frente à gestão, ao longo praticamente de quase todo

o século XX, decorria, em síntese, do contexto histórico

que obrigava o Estado brasileiro a correr contra o

tempo, superando etapas no longo e difícil processo de

montagem das bases materiais e políticas necessárias à

missão de transformação das estruturas locais, visando

ao desenvolvimento nacional. Basicamente, tratava-

se, neste contexto, da montagem dos esquemas de

financiamento e de apropriação tecnológica – isto é,

de suas bases materiais – e da difusão da ideologia

do industrialismo e da obtenção de apoio ou adesão

social ampla ao projeto desenvolvimentista – ou seja,

suas bases políticas.

A estruturação das instituições – isto é, estruturação

das instâncias, das organizações, dos instrumentos e dos

procedimentos – necessárias à administração e à gestão

pública cotidiana do Estado, atividades tão cruciais

quanto as de planejamento para o desenvolvimento

das nações, padeceu, no Brasil, de grande atavismo, a

despeito das iniciativas deflagradas tanto por Getúlio

Vargas, com o Departamento Administrativo do Serviço

Público (Dasp), como pelos militares, por meio do Plano

de Ação Econômica do Governo (Paeg), ou, ainda, pelas

inovações contidas na CF/1988.

É apenas durante a década de 1990 que a primazia

se inverte, em contexto, de um lado, de esgotamento

e desmonte da função e das instituições de

planejamento governamental, da forma como haviam

sido constituídas ao longo das décadas de 1930 a 1980,

e, de outro, de dominância liberal, tanto ideológica

como econômica e política. Neste período, alinhada ao

pacote mais geral de recomendações emanadas pelo

Consenso de Washington, surge e ganha força uma

agenda de reforma do Estado que tem na primazia

da gestão pública sobre o planejamento um de seus

traços mais evidentes.

No contexto de liberalismo econômico da época,

de fato, o planejamento, no sentido forte do termo,

passa a ser algo não só desnecessário à ideia de Estado

mínimo, mas também prejudicial à nova compreensão

de desenvolvimento que se instaura. A nova concepção

centrava-se na ideia de que desenvolvimento é algo

que acontece a um país quando este é movido por

suas forças sociais e de mercado, ambas reguladas

privadamente.

Portanto, em lugar de sofisticar e aperfeiçoar

as instituições de planejamento – isto é, instâncias,

‘‘

‘‘

No contexto de libe-ralismo econômico da época, de fato, o pla-

nejamento, no sentido forte do termo, passa a ser algo não só des-necessário à ideia de Estado mínimo, mas

também prejudicial à nova compreensão

de desenvolvimento que se instaura.

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a

organizações, instrumentos e procedimentos –, fez-

se justamente o contrário, em um movimento que

buscava reduzir tal função – como se isto fosse possível

– a algo meramente técnico-operacional, destituído de

sentido estratégico. A função planejamento passou a

ser uma entre tantas outras funções da administração

e da gestão estatal, algo como cuidar da folha de

pagamento dos funcionários ou informatizar as

repartições públicas.

Agendas de gestão pública – voltadas basicamente

à racionalização de procedimentos relativos ao

gerenciamento da burocracia e das funções de

orçamentação, implementação, monitoramento,

avaliação e controle das ações de governo –,

consideradas relevantes, passam a dominar o debate,

a teoria e a prática da reforma do Estado no Brasil.

Supõe-se, assim, que a eficiência – fazer mais com

menos – seja suficiente para se chegar à eficácia e

à efetividade das políticas públicas. Por meio deste

expediente, planejar passava a ser compreendido,

frequentemente, apenas como processo por meio do

qual são compatibilizadas as ações a serem realizadas

com os limites orçamentários previstos.

A hora e vez da mudança

É nesse contexto que se insere agora a oportunidade

política rumo ao movimento de atualização e

ressignificação do planejamento governamental no

Brasil, tanto por se acreditar que isto seja necessário e

meritório em si mesmo, como porque se defende aqui

a ideia de que o momento histórico nacional esteja

particularmente propício a tal empreitada.

Para tanto, longe de querer conferir ao

planejamento um status mágico ou superior, assume-

se abertamente tratar-se de função indelegável do

Estado, como o são também algumas funções clássicas

(por exemplo: monopólios estatais do uso da força,

representação internacional soberana, formulação e

implementação das leis, implementação e gestão da

moeda, arrecadação tributária) e funções consideradas

contemporâneas (estruturação e gerenciamento da

burocracia pública, orçamentação, implementação,

monitoramento, avaliação e controle das ações e das

políticas públicas etc.).

Ora, se planejamento governamental é uma

instância lógica de mediação prática entre Estado

e desenvolvimento, então, não é assunto menor

ressignificar e requalificar os termos pelos quais,

atualmente, deve ser conceituado e praticado o

planejamento público governamental no país. A hora

é agora, basta que a cúpula presidencial demonstre

sensibilidade política ao tema e dê o primeiro passo.

Para ajudar nesta empreitada, listamos abaixo, para

concluir, os 5 atributos desejáveis a este movimento

de recuperação da função planejamento, todos

considerados humana e institucionalmente possíveis

de serem construídos hoje no Brasil, dadas as

capacidades estatais e instrumentos governamentais

já à disposição do poder público federal:

Em primeiro lugar, dotar a função planejamento

de forte conteúdo estratégico: trata-se de fazer da

função planejamento governamental o campo

aglutinador de propostas, diretrizes, projetos, enfim,

‘‘

‘‘

Ora, se planejameto governamental é uma instância lógica de me-diação prática entre Es-tado e desenvolvimen-to, então, não é assunto

menor ressignificar e requalificar os termos pelos quais, atualmen-te, deve ser conceitua-do e praticado o plane-jamento público gover-

namental no país.

40

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outubro de 2011 / março de 2012

José Celso Cardoso Jr. [email protected]

Economista, e Técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea

desde 1996.

de estratégias de ação, que anunciem, em seus

conteúdos, as potencialidades implícitas e explícitas,

vale dizer, as trajetórias possíveis e/ou desejáveis para

a ação ordenada e planejada do Estado, em busca do

desenvolvimento nacional.

Em segundo lugar, dotar a função planejamento

de forte capacidade de articulação e coordenação

institucional: grande parte das novas funções que

qualquer atividade ou iniciativa de planejamento

governamental deve assumir está ligada, de um lado,

a um esforço grande e muito complexo de articulação

institucional e, de outro lado, a outro esforço igualmente

grande – mas possível – de coordenação geral das ações

de planejamento. O trabalho de articulação institucional

a que se refere é necessariamente complexo porque, em

qualquer caso, deve envolver muitos atores, cada qual

com seu pacote de interesses diversos e com recursos

diferenciados de poder, de modo que grande parte das

chances de sucesso do planejamento governamental

hoje depende, na verdade, da capacidade que políticos

e gestores públicos tenham de realizar a contento

este esforço de articulação institucional em diversos

níveis. Por sua vez, exige-se em paralelo um trabalho

igualmente grande e complexo de coordenação geral

das ações e iniciativas de planejamento, mas que, neste

caso, porquanto não desprezível em termos de esforço

e dedicação institucional, é algo que soa factível ao

Estado realizar.

Em terceiro lugar, dotar a função planejamento de

fortes conteúdos prospectivos e propositivos: cada vez

mais, ambas as dimensões aludidas (a prospecção e

a proposição) devem compor o norte das atividades

e iniciativas de planejamento público. Trata-se,

fundamentalmente, de dotar o planejamento de

instrumentos e técnicas de apreensão e interpretação

de cenários e de tendências, e também de teor

propositivo, para reorientar e redirecionar (quando for

pertinente) as políticas, os programas e as ações de

governo.

Em quarto lugar, dotar a função planejamento de

forte componente participativo: hoje, qualquer iniciativa

ou atividade de planejamento governamental que

se pretenda eficaz precisa aceitar – e mesmo contar

com – certo nível de engajamento público dos atores

diretamente envolvidos com a questão, sejam eles da

burocracia estatal, políticos e acadêmicos, sejam os

próprios beneficiários da ação que se pretende realizar.

Em outras palavras, a atividade de planejamento deve

prever uma dose não desprezível de horizontalismo

em sua concepção, vale dizer, de participação direta e

envolvimento prático de – sempre que possível – todos

os atores pertencentes à arena em questão.

Em quinto lugar, dotar a função planejamento de

fortes conteúdos éticos: trata-se aqui, cada vez mais,

de introduzir princípios da república e da democracia

como referências fundamentais à organização

institucional do Estado e à própria ação estatal.

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ArtigoAnálise histórica - Reflexos de uma crise anunciada: O Brasil e a América Latina

frente aos desafios dos anos 1930Günther Richter Mros

No dia 24 de outubro de 1929, quinta-feira, em Nova

Iorque, um sujeito solicitou na recepção de hotel situ-

ado em Manhattan um quarto nos andares superiores

com janela voltada para a avenida que passa em frente

ao prédio. Pouco tempo depois, esse mesmo sujeito,

em ato de desespero, jogou-se para a morte e somou-

-se aos outros dez conhecidos homens de negócios

que se suicidaram naquela que ficou conhecida como a

“quinta-feira negra”. Esta data ficou simbolicamente re-

lacionada ao crash na bolsa de valores de Nova Iorque 1.

Exatamente um ano após a bancarrota em Nova

Iorque, em 24 de outubro de 1930, no Rio de Janeiro,

o presidente Washington Luís era deposto de seu car-

go pelo movimento armado da Aliança Liberal – que

tinha em Getúlio Vargas sua principal liderança – e se-

ria conduzido ao exílio. O movimento iniciado em 3 de

outubro com a invasão armada de alguns quartéis em

Porto Alegre teve como ápice a mudança de governo

no Brasil (GARCIA, 2000, p. 106). Iniciava-se na ocasião

uma lenta e gradual mudança de paradigma do Estado

brasileiro.

Neste artigo pretendemos trabalhar as relações da

crise de 1929 com as soluções endógenas aplicadas

pelos países latino-americanos no limiar da década de

1930. A questão que se formula é a seguinte: até que

ponto os efeitos econômicos negativos na América La-

tina seriam decorrência direta da crise iniciada em 1929

nos Estados Unidos? Ao buscarmos elementos estrutu-

rais da crise que se espraiou pela América Latina, pode-

ríamos questionar se as mesmas causas da retração no

comércio internacional não seriam também as causas

de novas teorias econômicas, como a de Keynes2, ou as

causas de um novo paradigma nas relações internacio-

nais do Brasil, ou seja, as transformações ocorridas ao

longo do século XIX e no início do século XX.

As causas estruturais de grandes mudanças de

rumo na história são desenvolvidas não ao longo de

um período curto, repleto de pequenas transformações

efêmeras ou de grandiosos personagens decisivos. A

história é escrita por períodos de longa duração — ou

long durée, como diria importante historiador da Escola

dos Annales.3

A divisão que se procurará seguir, portanto, parte de

explanação abrangente dos aspectos que caracteriza-

ram a crise de 1929, buscando-se, em seguida, fazer a

exposição de como se deram os primeiros anos após

a crise de 1929 em países da América Latina, a partir

da visão de especialistas que estudaram o período na

Argentina, México, Peru, Equador, Venezuela e Brasil.

A grande crise de 1929

A crise iniciada em 1929 em Nova Iorque foi, antes

de tudo, uma grande queda generalizada da produção

nos países ocidentais, que causou uma retração nas im-

portações da ordem de 69% no período entre 1929 e

1933 (GAZIER, 2009, p. 9-10; 18).

Os países ocidentais que eram o carro-chefe da pro-

dução industrial no pós-Primeira Guerra Mundial – EUA,

1 Embora alguns autores, como Bernard Gazier (2009, p. 30), tratem a questão dos suicídios como mito, outros autores, como Paul Johnson (1984, p.231), relatam ao menos a morte de onze conhecidos homens de negócio naquela data. 2 Keynes defendia uma política econômica de Estado intervencionista, por meio da qual os governos usariam medidas fiscais e monetárias para mitigar os efeitos adversos dos ciclos econômicos.3 Fernand Braudel cunhou o termo long durée ao se referir às transformações estruturais que ocorrem em períodos mais extensos, quando escreveu sua tese de doutoramento sobre o mundo mediterrâneo de Filipe II da França. (BRAUDEL, 1983, p. 25-26).

42

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outubro de 2011 / março de 2012

Grã-Bretanha e, sob certos aspectos, ainda a Alemanha

– passaram a definir suas políticas de forma mais pro-

tecionista.

Ainda na Conferência de Gênova, em 1922, procu-

rou-se sancionar o que na prática já vinha ocorrendo,

o declínio do padrão-ouro, ao menos na sua forma

pura, que remetia ao século XIX, no auge do império

britânico. Passa-se então ao padrão câmbio-ouro, que

permitia às economias não mais terem suas reservas

atreladas ao metal ouro, cada vez mais raro, mas sim às

moedas-padrão dólar e libra-esterlina, graças à harmo-

nia que essas duas moedas traziam ao sistema financei-

ro, devida ao lastro em ouro de suas reservas.

A crise dos anos após 1918 é vista por Hobsbawm

(1995) como um “colapso verdadeiramente mundial”,

diferente de tudo o que já se tinha visto, seja a Guerra

Mundial ou as revoluções do século XIX. “A globalização

da economia dava sinais de que parara de avançar nos

anos entreguerras. Por qualquer critério de medição, a

integração da economia mundial estagnou ou regre-

diu” (Hobsbawm, 1995, p. 91).

Um dos primeiros críticos da manutenção de meca-

nismos econômicos baseados em aspectos do mundo

do século XIX e de políticas revanchistas europeias foi

John Maynard Keynes (2002). Em sua obra As conse-

quências econômicas da paz, de 1919, ele referiu-se aos

resultados da Conferência de Paz de Versalhes, onde se

negociou o tratado que poria fim à I Guerra Mundial.

Para Keynes, os acordos eram desastrosos. É bastante

conhecida a parte do livro que fala do tratado e do peri-

go existente em atrelar a economia alemã ao mercado

especulativo. Antes disso, no entanto, Keynes chama a

atenção para aspectos estruturais da Europa pré-guer-

ra. Para o autor:

[...] mesmo antes da guerra, o equilíbrio assim estabelecido

entre as antigas civilizações e os novos recursos já estava

ameaçado. A prosperidade da Europa tinha como base

o fato de que, devido ao amplo excedente exportável

de alimentos na América, era possível adquirir esses

alimentos a um preço modesto, em termos do trabalho

exigido em troca da sua exportação; e também a

circunstância de que, devido aos investimentos passados,

os europeus recebiam cada ano uma importância

substancial, sem a necessidade de qualquer retorno

(KEYNES, 2002, p. 15).

Outra análise de grande importância acerca do perí-

odo entreguerras, que gerou um clássico no campo das

Relações Internacionais, é a obra de Edward Hallet Carr

(2001) intitulada Vinte anos de crise, escrita em 1939. As

críticas de Carr ao liberalismo são bastante mais con-

tundentes do que as apresentadas por Keynes, uma

vez que, para aquele autor, o problema-chave da leitu-

ra liberal estava em diagnósticos utópicos. Para Carr, “o

colapso da década de 30 foi contundente demais para

ser explicado meramente em termos de ações ou omis-

sões individuais” (CARR, 2001, p. 53-59). Estava constru-

ída, assim, forte crítica à doutrina de harmonização de

interesses do laissez-faire.

Os problemas do século XIX eram muito diversos

daqueles que caracterizam o século XX. A harmonia de

interesses era aplicável naqueles anos por se tratar de

situação econômica bastante diversa: contexto de ex-

pansão territorial, migrações e colonialismo. A teoria re-

alista que estava sendo desenhada pelos argumentos

de Carr carregaria em seu substrato três importantes

conceitos de Nicolau Maquiavel (CARR, 2001, p. 85-86).

O primeiro conceito da teoria de Maquiavel é o da

história como sequência de causa e efeito, coadunan-

do-se esse aspecto já levantado no século XVI com a

noção dos historiadores modernos de que há ciclos

multicausais e que, portanto, a história deve ser vista

como “filha de seu tempo” (BRAUDEL, 2009, p. 17). A ex-

periência de quem escreve a história e até os métodos

utilizados são ditados pelo ritmo e pelo peso das vivên-

cias do historiador com o meio em que vive.

O segundo ponto refere-se ao fato de que a teoria

não cria a prática, mas sim a prática é que cria a teo-

ria, o que vai de encontro ao pensamento utópico que

baseia as teorias em aspectos imaginativos. Este ponto

confirma os estudos indutivos e métodos empíricos

utilizados por historiadores.

Seguindo esta linha, o terceiro ponto trata da noção

de não ser a política função da ética, mas, ao contrário, a

ética a é da política. Ou, em outras palavras, a ética apre-

goada ao indivíduo não pode ser a mesma direcionada

às ações do Estado4. Este último fundamento é de suma

importância para compreensão do comportamento

dos Estados latino-americanos frente à crise de 1929.

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A ingenuidade que se via no comportamento dos

regimes sob modelos conservadores muito se deveu

ao status quo econômico da potência hegemônica do

século XIX, a Grã-Bretanha. Não havia competição re-

levante dos produtos manufaturados provenientes do

império britânico com nenhuma nação até a unificação

da Alemanha e a ascensão dos Estados Unidos no pós-

Primeira Guerra Mundial. Quando os Estados da Amé-

rica Latina buscaram uma mudança efetiva de perfil, a

ética da competitividade era a da própria sobrevivên-

cia do Estado frente a uma crise avassaladora.

Assim, Edward Carr escreveu sobre a história como

produto de diversos fatores materiais, e a política ex-

terna de um país como reflexo de todos os fatores ma-

teriais que compõem o interesse nacional (CARR, 2001,

p. 89).

Os diversos fatores materiais que compõem o estu-

do da história de uma crise como a de 1929, podem e

devem ser estudados não somente nos aspectos orga-

nizados e normatizados das atitudes de chefes de Esta-

do ou da história diplomática, caracterizada pela versão

dos acontecimentos construída nos grandes salões das

chancelarias. Nesse sentido, Pierre Renouvin inovou ao

escrever sobre as forças profundas que regem os pro-

cessos históricos. Para Renouvin, as forças profundas

são formadas sob um sistema de multicausalidades

que atua sobre as relações internacionais. São ocultas

e de difícil percepção daqueles que vivem o momento

histórico em que elas ocorrem. Emanam das coletivida-

des humanas e dependem de um processo de tomada

de consciência.

Para Jean-Baptiste Duroselle, coautor de Introdução

à história das relações internacionais com Renouvin e

autor da obra Todo império perecerá, a crise de 1929 não

poderia ser vista como um acontecimento isolado da

economia norte-americana, que ocasionalmente havia

se expandido por todo o mundo ocidentalizado.

Quando, pelo contrário, sobrevém uma grave crise econô-

mica como a que estourou – simbolicamente – na “quin-

ta-feira negra” de 24 de outubro de 1929, em Wall Street,

essa crise produziu em todo o país reações de descon-

tentamento, de angústia, próprias para suscitar grandes

movimentos de massas, motins, “greves de fome”, trans-

torno eleitoral etc. Trata-se aí, ainda, de uma “força econô-

mica”. Mas ela não tem nenhuma relação com as pressões

conscientes e organizadas. É, a princípio, maciça, difusa,

obscura, profunda. Certamente, diversos organismos ten-

tarão apoderar-se dela, esforçar-se-ão para “recuperá-la”,

como se diz hoje em dia. Resta nada mais que seu caráter

maciço, espontâneo, impensado, impedindo de ordená-

la entre as pressões. Pode-se, antes de tudo, falar de uma

pulsão. Digamos que aí se trata verdadeiramente de uma

“força profunda”. (DUROSELLE, 2000, p. 186).

Ainda para Duroselle, “o que é surpreendente, na

‘força profunda’ propriamente dita, é a espontaneida-

de, seja nas origens, seja nas manifestações” (DUROSEL-

LE, 2000, p. 187). Por esse motivo, a crise de 1929, bem

como as reações da América Latina, são efeitos decor-

rentes de múltiplas causas que devem ser examinadas

por meio das forças profundas que caracterizam o pro-

cesso histórico na longa duração – sejam elas forças

econômicas, geográficas ou demográficas.

Os resultados da crise de 1929 para os Estados Uni-

dos, ainda no princípio dos anos 1930, foram determi-

nantes para a política de intervencionismo do Presiden-

te Franklin Delano Roosevelt, que chegara ao poder em

4 Ou do príncipe, como diria Maquiavel (2000).

‘‘ ‘‘

A ingenuidade que se via no comporta-

mento dos regimes sob modelos conservadores

muito se deveu ao status quo econômico

da potência hegemôni-ca do século XIX, a Grã-Bretanha.

44

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outubro de 2011 / março de 2012

1932 com a promessa de renovação que caracterizava

a vontade dos norte-americanos em época de crise e

desemprego em alta. Herdeiro da corrente progressista

que defendia o intervencionismo federal, criou o New

Deal (novo acordo) com vistas a tirar a economia dos

Estados Unidos da situação difícil que se encontrava.

O New Deal proposto por Roosevelt no plano inter-

no dos norte-americanos teria de ser complementado

com uma política externa menos agressiva do que a

doutrina Monroe ou a diplomacia do big stick, pois

ambas haviam sido ineficazes até aquele momento.5

Franklin Roosevelt propunha, assim, a Good Neighbor

Policy (política da boa vizinhança) para os demais paí-

ses do hemisfério. Era o desejo de o Estado norte-ame-

ricano poder influenciar nos aspectos econômicos,

mais até que nos políticos, de todos os países do Rio

Grande até o sul da Patagônia (BANDEIRA, 2000, p. 48).

O período que abrange os anos 1931 a 1936, fase

em que o presidente Roosevelt tentou implementar a

política de boa vizinhança, portanto, foi para Gazier a

fase-gênese do subdesenvolvimentismo, ou do tercei-

ro-mundismo (GAZIER, 2009, P. 89). Se essa leitura de

Gazier é verdadeira, também é verdade que há uma

diversidade muito grande de reflexos da crise de 1929

ainda por estudar. São situações tão diversas em regi-

ões díspares como Europa, África e América Latina, que

a possibilidade de interpretações opostas também é

uma tendência.

As mudanças ocorridas no decorrer dos anos 1930

não foram, em lugar algum, tão rápidas e expressivas

quanto o foram nos países da América Latina. Doze pa-

íses haviam mudado de governo ou regime, muitos por

golpe (HOBSBAWM, 1995, p. 108), nos primeiros anos

após a crise. Entre esses países estavam Brasil, México

e Argentina.

A mudança que estava ocorrendo nas Américas não

era uma simples troca de dirigentes. Havia a mudança

de percepção do lugar dos Estados latino-americanos

no jogo da economia mundial. Não era somente a per-

cepção de que algo estava errado por causa da crise.

Era, sim, a constatação de que a crise que desvalorizara

os produtos primários – base das economias latino-

americanas – que encarecera produtos manufaturados

e dificultara a entrada dos bens de capital provenientes

de países industrializados – necessários para as inci-

pientes indústrias americanas – era a crise de todo um

modelo.

A Grande Depressão confirmou a crença de intelectuais,

ativistas e cidadãos comuns, de que havia alguma coisa

fundamentalmente errada no mundo em que viviam.

Quem sabia o que se podia fazer a respeito? Certamente

poucos dos que ocupavam cargos de autoridade em seus

países e com certeza não aqueles que tentavam traçar um

curso com os instrumentos de navegação tradicionais do

liberalismo secular ou da fé tradicional, e com cartas dos

mares do século XIX, nas quais era claro que não se devia

mais confiar (HOBSBAWM, 1995, p. 106).

A crise do liberalismo e a situação na América Latina: os reflexos de 1929

De qualquer ponto de vista do qual se pretenda

partir para um estudo dos períodos históricos relacio-

nados à história da América Latina, o corte no ano de

1929 se fará quase como uma obrigação de método.

Foi o início do desenvolvimento autóctone de alguns

‘‘ ‘‘

As mudanças ocorridas no decorrer

dos anos 1930 não foram, em lugar

algum, tão rápidas e expressivas quanto o foram nos países da

América Latina.

5 O objetivo da Doutrina Monroe, corolário implementado pelo presidente James Monroe no primeiro quartel do século XIX para os paí-ses da América Latina (em especial para aqueles que, na América Central, estavam sob influência direta dos EUA devido à pouca dis-tância de seu território), em seu primeiro momento, era impedir reinvestidas europeias nos assuntos internos das Américas, ou seja, “a América para os americanos”. O Big Stick foi uma reinterpretação desse conceito por parte do presidente Theodore Roosevelt, em 1901, quando defendeu a política do “fale suave e tenha um porrete à mão” no trato com os vizinhos dos Estados Unidos.

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a

países latino-americanos, concomitante a uma crise

estrutural como a de 1929. Cardoso e Brignoli (2002)

ressaltam a importância de entender os conceitos

atinentes ao estudo da história econômica, dentre os

quais destacam-se os de conjuntura e estrutura: con-

juntura como movimento cíclico das relações econô-

micas – tais como flutuações, oscilações de preços e

de produção etc – e estrutura como a repetição estável

de padrões. Esta última, seja ela econômica ou social,

não pode ter a estabilidade dos ciclos confundida com

estática. Os movimentos estruturais têm estabilidade

relativa, nunca a imobilidade.

Nesse sentido, o que diferencia as conjunturas e as

estruturas no estudo da história econômica são os rit-

mos com que as mudanças ocorrem nessa área (CAR-

DOSO; BRIGNOLI, 2002, p. 260-262). Conjunturas como

as provenientes de crises, são efêmeras,. A crise de 1929

foi conjuntural, mas revelou contradições estruturais

do capitalismo porque, nos anos 1930, ainda existiam

muitas das características do século XIX, sob fase de

transição da hegemonia britânica para as rivalidades

comercias que precederam a II Guerra Mundial.

A Argentina, assim como o Brasil, tinha sua econo-

mia bastante dependente de um produto primário, o

trigo. Diferentemente do café brasileiro, porém, não se

poderia, em lugar algum, abrir mão do trigo, uma vez

que este produto era de maior necessidade relativa

para importadores.

A crise de 1929 causou forte queda no PIB argenti-

no, que obteve, ademais, recuperação mais lenta, nos

últimos cinco anos da década de 1930, em comparação

ao Brasil, em muito devido à dependência que aquele

país tinha das exportações de trigo e carne. No mesmo

período, no Brasil, já havia maior diversificação da pau-

ta exportadora (FAUSTO; DEVOTO, 2004, p.253).

O papel do governo argentino no início dos anos

1930 foi diverso daquele empreendido pelo governo

provisório de Vargas. Enquanto no Brasil aos poucos

se desenhava uma estratégia industrialista, a ênfase

dada por Buenos Aires para superar a crise apontaria

para a ação no sistema financeiro. Os conservadores

argentinos decretaram a inconversibilidade da moeda

em 1931, estabeleceram o câmbio duplo em 1933 – um

câmbio relacionado às divisas geradas pelas exporta-

ções, controlado pelo Estado, e outro como câmbio

livre – e criaram o Banco Central argentino em 1935

(FAUSTO; DEVOTO, 2004, p.255).

A política ortodoxa empreendida pela Argentina

no seu sistema financeiro em muito se deveu às difi-

culdades enfrentadas pelo país no âmbito do comércio

internacional. Os anos de crise e as preferências britâ-

nicas a partir de 1932 em importar carnes de países da

Commonwealth fizeram com que se buscassem medi-

das que seriam criticadas até mesmo por liberais mais

exaltados, como no episódio da assinatura do pacto

Roca-Runciman.6

A Argentina passou a viver, após os primeiros anos

da década de 1930, um revés da imagem que constru-

íra nos anos anteriores. Eram claros os sinais de que a

crise de 1929 fizera que sua “imagem de país de pros-

peridade garantida, sempre crescente, começasse a se

desvanecer” (PARADISO, 2007, p.13).

Diferentemente do golpe ocorrido no Brasil em

outubro de 1930, o golpe aplicado na Argentina, em

setembro do mesmo ano, para derrubar Hipólito Yri-

goyen trouxera de volta ao poder a oligarquia conser-

vadora que representava o liberalismo atrelado à hege-

monia britânica.

Para Rapoport, no entanto, a Argentina já ensaiava

algum tipo de industrialização nos primeiros anos da

década de 1930.

Los efectos de la crisis desatada en 1929 afectaron las

bases sobre las que se apoyaba la economía agroexpor-

tadora. Los países que tradicionalmente compraban la

producción argentina comenzaron a proteger y impulsar

su propia producción de bienes primarios (Inglaterra, por

ejemplo, firmó el Tratado de Ottawa, de preferencias im-

periales, en 1932). En este contexto, la Argentina vio redu-

cidas sus exportaciones en volumen y en precio, situación

que ocasionó una falta de divisas en el país y redujo su

6 O acordo feito pelo vice-presidente argentino Julio Roca e o encarregado britânico para o negócio Sir Walter Runciman, em 1933, foi sem dúvida mais vantajoso à Grã-Bretanha. Em troca de manter as importações da carne argentina nos níveis alcançados em 1932, Roca assinou um documento que obrigou Buenos Aires a importar carvão exclusivamente do Reino Unido, flexibilizar leis trabalhistas e dar privilégios às empresas britânicas.

46

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capacidad de compra en el mercado internacional. Esta

escasez de divisas originó la necesidad de fabricar inter-

namente muchos productos que antes se importaban,

estimulando lo que se dio en llamar ‘industrialización ba-

sada en la sustitución de importaciones’(ISI). También se

reforzó la presencia del Estado en la economía con la cre-

ación de diversas juntas reguladoras (Granos, Carnes, etc.),

la implementación del control de cambios y la creación

del Banco Central (RAPOPORT, 2009, p. 55).

Embora a Argentina ensaiasse alguma mudança, os

novos ventos deveriam continuar soprando na direção

das elites. Poderia até haver o crescimento de novas

ideologias como aquelas representadas pelo keyne-

sianismo, mas a estratégia implementada nos primei-

ros anos após 1929 era pouco diferente daquelas que

caracterizaram os anos anteriores. A Argentina seguia

bastante dependente da Grã-Bretanha, opondo-se, por

exemplo, a qualquer política pan-americanista na Liga

das Nações (SDN).

Não deixa de ser paradoxal, portanto, que, mesmo

com turbulências internas e alguns deslizes externos, a

chancelaria da Argentina tenha tido naqueles anos “os

maiores sucessos de toda a sua história, de certo modo

sinalizados pela concessão do Prêmio Nobel da Paz a

quem atuara como chanceler entre 1932 e 1938” (PA-

RADISO, 2007, p.13).7

O fim do sistema primário-exportador na Argentina

marcou o início de um período que Aldo Ferrer primei-

ramente chamou de “industrialização não-concluída”,

ou “não-integrada” (FERRER, 2006, p. 119). Posteriormen-

te Ferrer corrigiu-se, denominando o período como

uma economia semi-industrial dependente. Em ambas

as situações, o autor identificou no setor manufatureiro

uma crescente importância, com o adendo de ter ano-

tado entre duas edições de sua obra, num período de

dez anos, a presença muito forte das filiais estrangeiras

na indústria argentina (FERRER, 2006).

Na Argentina, os reflexos da crise de 1929, seja no

âmbito da dívida externa ou no balanço de pagamen-

tos, serviram, como em boa parte da América Latina, de

mola propulsora para mudanças no paradigma de po-

lítica exterior. O trigo e a carne eram os principais pro-

dutos de exportação e estavam atrelados ao sistema

político que dominava o poder.

O golpe ocorrido em setembro de 1930 foi uma ten-

tativa de manter os responsáveis pelo antigo sistema à

frente de mudanças que não eram puramente econô-

micas ou comerciais, mas ideológicas e estratégicas. As-

sim, o ritmo com que se estabelecia a política industrial

na Argentina era mais lento, crescia e se fortalecia ainda

sob pequenos regressos de sua chancelaria, como fora

exemplo o acordo Roca-Runciman.

No México, os fatos ocorreram de forma um pouco

diversa, tanto no campo econômico quanto no político.

Sob o aspecto econômico, a principal diferença reside

no fato de os principais produtos da balança comercial

mexicana não serem alimentícios, mas minerais. Com

essa afirmação, não se quer dizer que não tenha havi-

do crise com o milho ou o feijão, produtos largamente

cultivados em terras mexicanas – no âmbito da agricul-

tura, soma-se ainda a crise do algodão, com diminuição

de produção para exportação e para o mercado inter-

no. Os minérios, no entanto, marcaram de forma muito

contundente a crise mexicana. Os preços da prata, do

ouro, do cobre e do zinco e a produção de petróleo fo-

ram bastante reduzidos.

O segundo aspecto diferenciador da crise no Méxi-

co diz respeito ao campo político-ideológico. A respos-

7 O chanceler em questão era Carlos Saavedra Lamas.

‘‘ ‘‘

A política ortodoxa empreendida pela Argentina no seu sistema financeiro

em muito se deveu às dificuldades enfren-tadas pelo país no

âmbito do comércio internacional.

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a

ta mexicana à crise, com o governo de Lázaro Cárdenas,

a partir de 1934, foi por meio do populismo e da centra-

lização do poder do Estado.

Para Maria Lígia Prado (1981), “o populismo ocorre

numa situação de ‘transição’, isto é, na passagem da as-

sim chamada sociedade tradicional – agrária, pré-capi-

talista, atrasada – para a sociedade moderna – capitalis-

ta, urbana e industrial” (PRADO, 1981, p.10).

O México é um exemplo claro de que as mudanças

ocorridas no início da década de 1930 não eram so-

mente um reflexo da crise de 1929. Desde o fim do go-

verno de Porfírio Diaz, que iniciou-se a partir da revo-

lução mexicana em 1911, já se buscava no México um

rearranjo social que ameaçava a divisão internacional

do trabalho então estabelecida.

A constituição mexicana de 1917, elaborada por uma

Assembleia Constituinte, está marcada pelo calor dos

debates políticos e ideológicos, e pelo eco não distante

das lutas armadas. Para muitos autores a sombra de Zapa-

ta – já batido politicamente, mas ainda mantendo focos

armados rebeldes – pairava sobre a Assembleia Consti-

tuinte; na Constituição, a mais avançada e progressista da

América Latina para a época, estavam garantidas muitas

das reivindicações camponesas, como, por exemplo, a re-

forma agrária. (PRADO, 1981, p.15)

O que assemelhará a situação do México às de Bra-

sil e Argentina será o que se convencionou chamar de

processo de substituição de importações (PSI). Este fe-

nômeno, nos anos 1930, ocorre com especial força no

governo de Lázaro Cárdenas, do Partido Nacional Revo-

lucionário (PNR). Tal governo reunia em seu seio duas

correntes antagônicas da política mexicana da época:

os caudilhos de Álvaro Obregón e os institucionalistas

de Plutarco Elias Calles.

A plataforma econômica proposta pelo PNR em seu

plano de governo era, em resumo, a de maior partici-

pação do Estado na economia (tendência keynesiana);

condução da política econômica visando à redução da

dependência externa; e defesa dos interesses das mas-

sas operárias e camponesas mexicanas.

As principais iniciativas tomadas por Cárdenas

para efetivar seu plano de governo foram a “criação

de bancos e financiadoras como o Fondo de Fomento

Industrial (1936), Banco Nacional de Comércio Exterior

(1937), Aseguradora Mexicana (1937) e a vitalização de

outras já existentes, como o Banco do México (1925) e

a Nacional Financeira (1933) [...]” (PRADO, 1981, p.26).

Ademais, Cárdenas nacionalizou as empresas petrolífe-

ras estrangeiras e criou a Petróleos de México (Pemex)

em 1938.

Cárdenas imprimira em seu governo uma alterna-

tiva nem capitalista, nem socialista. Seu governo per-

seguiu para o México uma cartilha desenvolvimentista

que tem características próprias da América Latina por

se assemelhar aos demais países da região no que tan-

ge à busca pelo reforço da industrialização como solu-

ção para os reflexos da crise. Mesmo que as caracterís-

ticas se assemelhem ao restante da região no sentido

lato, buscou, entretanto, as características próprias da

sociedade mexicana no sentido strictu.

Nem sempre a situação política dos países latino-

americanos permitiu a tomada de decisão mais favo-

rável à centralização do poder por parte do Estado e

a imediata aplicação de medidas desenvolvimentistas.

No Peru, a tentativa de chegar ao poder por parte

do aprismo8 foi derrotada nas urnas, mas as ideias e

as discussões acerca da crise estiveram em pauta. No

Equador, a crise de seu principal produto, o cacau, já

8 Corruptela de Alianza Popular Revolucionaria Americana (APRA), movimento social peruano que deu origem ao Partido Aprista Peruano (PAP).

‘‘ ‘‘

O México é um exemplo claro de que as mudanças

ocorridas no início da década de 1930 não eram somente um

reflexo da crise de 1929.

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era sentida desde o início da I Guerra Mundial, quando

o porto de Hamburgo, na Alemanha, havia cessado os

pedidos de importação do fruto (ACOSTA, 2005, p. 79).

A Venezuela já alterava, desde o final da década de

1920, sua pauta de exportação, baseada na agricultu-

ra de produtos como cacau e café, para o petróleo. Em

1928, havia 150 indústrias petrolíferas explorando o

produto e transformando o país no maior exportador

de petróleo no mundo. Em 1930, a Venezuela havia qui-

tado sua dívida externa por meio das divisas geradas

pelo petróleo, situação que seguiu estável até o final

dos anos 1970 (MANCEBO, 2009, p. 32-33).

As ideias que circulavam pela América Latina, ou

Indoamérica, como se referia a ela o fundador do apris-

mo, eram de transformações antioligárquicas no plano

político e nacionalistas no econômico.

Victor Raúl Haya de la Torre, peruano, foi o fundador

da Alianza Popular Revolucionaria Americana (APRA)

em 1924, no México, quando vivia no exílio. Haya de

la Torre concorreu nas eleições do Peru em 1931 pelo

Partido Aprista Peruano (PAP), criado em setembro de

1930. Em agosto desse mesmo ano, já havia ocorrido

um levante militar chefiado por Luis Miguel Sánchez

Cerro — eleito posteriormente em 1931 —, patrocina-

do pelos latifundiários e apoiado pela população em

reação à crise internacional iniciada em 1929.

A fragmentação da elite latifundiária e a introdução

das camadas populares mais baixas na vida política

peruana geraram uma situação pré-revolucionária que

em muito favorecia Haya de la Torre (COTLER, 2006, p.

188). Essa situação, no entanto, não se confirmou. As li-

deranças oligárquicas reuniram-se, em 1933, com apoio

dos militares chefiados pelo general Benavides, e der-

rotaram o movimento popular que tinha o anseio de

acabar com a hegemonia oligárquica do Estado peru-

ano.

As ideias apristas, embora não tenham atingido o

poder, foram bastante difundidas e trouxeram o desen-

volvimentismo para o centro da discussão. Conquista-

ram aparelhos privados de hegemonia9 e buscavam

implantar seu programa de desenvolvimento do Peru.

Esse programa visava a uma redefinição do papel do

Estado e à nacionalização da produção, bem como ao

controle dos investimentos estrangeiros.

Para Julio Cotler, o programa de Haya de la Torre

propunha:

[...] fixar medidas de proteção aduaneira para defender

e promover a indústria nacional. Seria criado o Banco da

Nação, incumbido de arrecadação tributária, desalojando

desta função o sistema bancário privado; por intermédio

das suas filiais, ele procuraria financiar a produção indus-

trial, a mineira e a agrícola regional [...]. Por outro lado, o

Estado se encarregaria de criar e desenvolver as indús-

trias básicas, para que houvesse a substituição das im-

portações e para que fosse agregado valor aos produtos

destinados à exportação (COTLER, 2006, p. 195).

Assim como ocorreu no Brasil, com o governo Var-

gas, Haya de la Torre acreditava que o Estado precisa-

ria se organizar “em termos ‘científicos’, com assessoria

técnica profissional” (COTLER, 2006, p. 195). Ou seja, o

desenvolvimentismo que estava na cabeça dos políti-

cos latino-americanos da década de 1930 exigia admi-

nistração tecnocrata, burocrata, weberiana.

Embora o PAP de Haya de la Torre tenha sido derro-

tado por Sánchez Cerro nas eleições de 1931, o período

que recobria a última década no Peru (1919-1930) já

estava rompido com a aristocracia até então vigente,

a ponto de ficar conhecido como o período da “Patria

Nueva” (BURGA, 2009, p. 139).

No Equador, em 1925, com a crise do cacau e o en-

fraquecimento do poder econômico e político da Igre-

ja, maior latifundiária do país, o exército ensaiava um

movimento de revolta promovido por jovens oficiais

da instituição, algo muito semelhante ao tenentismo

de 1922, no Brasil. Essa revolta tinha um incipiente pro-

jeto industrializante que acabou não dando certo, mas

gerou uma Lei de Tarifas e Taxas Aduaneiras para pro-

teger a importante indústria têxtil da região serrana do

país (ACOSTA, 2005, p. 84).

Não seria uma política de substituição de importa-

ções ainda, mas é a prova de que iniciativas desenvol-

9 Conceito gramsciano. Para Antonio Gramsci, importante pensador político que viveu na Itália contemporânea dos fatos analisados neste artigo, os aparelhos privados são organizações sindicais, culturais, estudantis e sociais que representam as diferentes esferas da sociedade civil. Gramsci acreditava numa revolução das ideias, que permitisse a conquista da hegemonia em um bloco histórico por meio da cultura.

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a

vimentistas latino-americanas não eram puro reflexo

somente da crise de 1929. Já estavam presentes no

campo das ideias de lideranças e aspirantes a dirigen-

tes de toda a Ibero-américa. Eram produto da insatisfa-

ção com a divisão internacional do trabalho e do papel

que a América Latina exercia no mundo.

Auditoria da dívida externa: o Brasil olha para dentro de si para traçar a estratégia de política externa

Ao assumir o Ministério da Fazenda, em novembro

de 1931, Oswaldo Aranha deparava-se com um dese-

quilíbrio tal no balanço de pagamentos que aumenta-

va gradualmente a porcentagem exigida do PIB para

manter o serviço da dívida, exigindo do governo a

tomada de empréstimos no exterior, os funding loans,

para suprir a perda de reservas. “Entre setembro de

1929 e agosto de 1930, as reservas brasileiras caíram

para menos da metade (de 31 milhões para 14 milhões

de libras) e, em 1931, haviam se esgotado” (BARRETO,

2001, p. 91).

A dívida externa encontrada pelo governo provisó-

rio em 1930 estava em torno de 237 milhões de Libras

(US$ 1,25 bilhão), de cujos títulos os britânicos deti-

nham dois terços, e os americanos perto de um terço

(HILTON, 1994, p. 120). O serviço da dívida exigia quase

o dobro do saldo da balança comercial ao ano, o que le-

vara o então ministro da Fazenda José Maria Whitaker a

negociar novo funding para manter o serviço da dívida.

A análise dos fatos relativos à divida externa e à

crise econômica brasileira como um todo merece aten-

ção do estudioso das relações internacionais. É fácil

perceber que tanto há “a impossibilidade de estudar-se

a economia brasileira no período sem referência à in-

serção do Brasil na economia mundial” (ABREU, 1990, p.

73), quanto o inverso também é verdadeiro; não é pos-

sível estudar as relações internacionais do Brasil sem

levar em conta as forças profundas da economia.

Logo após a troca de José Maria Whitaker por

Oswaldo Aranha, o terceiro funding loan foi acertado,

sob conselhos de Sir Otto Niemeyer, personagem que

se tornaria peça-chave não somente no empréstimo

de mais um funding, mas também no lançamento, por

parte do governo, do Esquema Aranha. Concomitante-

mente à negociação do terceiro funding, e no âmbito

do Ministério da Fazenda, o governo instituíra a Comis-

são de Estudos Financeiros e Econômicos dos Estados

e Municípios por meio do Decreto n.º 20.631, de 9 de

novembro de 1931.

Os trabalhados da comissão são tão importantes e

inovadores que poderiam ser apontados como um dos

legados da Era Vargas na área econômica. Pela primeira

vez houve a percepção de que “é preciso se fazer uma

auditoria profunda e completa da dívida externa quan-

do se parte para o processo de renegociação” (GON-

ÇALVES, 2003, p. 119).

Os resultados dos estudos feitos pela comissão

foram publicados em dois volumes. Estava feita a pri-

meira auditoria da dívida externa do Brasil, completa e

meticulosa. Virou ferramenta para a ação do governo, e

logo começou Oswaldo Aranha a esboçar um esquema

que fosse positivo para o país.

O Decreto n.º 23.829, de 5 de fevereiro de 1934,

tratou dos termos em que consistia o Esquema Ara-

nha. Era necessária a reconstrução das diretrizes que

tratavam do serviço da dívida, agora baseados nos tra-

balhos da comissão técnica encarregada da auditoria.

Dois dias antes da publicação do Decreto, Aranha enca-

minhara a Vargas a exposição de motivos do esquema,

documento que demonstra bem as ideias do ministro

quanto aos rumos do país. O documento de nº 56, ex-

posto na obra de Valentim Bouças (1950, p. 351-356),

é um chamamento à realidade pragmática da situação

financeira do Brasil, bem como uma proposta de de-

senvolvimento.

‘‘ ‘‘

As ideias apristas, embora não tenham

atingido o poder, foram bastante difundidas

e trouxeram o desenvolvimentismo

para o centro da discussão.

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outubro de 2011 / março de 2012

Quando saiu do Ministério da Fazenda, Oswaldo

Aranha levou consigo um amplo quadro da questão

financeira do país e tinha algumas convicções para

a solução dos problemas relativos ao tema. Talvez a

principal dessas convicções fosse a necessidade de

diversificar e qualificar a pauta exportadora brasileira.

O comércio, para ele, era o caminho para equilibrar as

contas e beneficiar o desenvolvimento do Brasil.

É crível a hipótese de que Aranha partira para

sua estada como embaixador do Brasil nos EUA,

em Washington, ciente de que aquele país teria

fundamental importância na recuperação financeira

do Brasil. Explica-se: com o abandono do padrão-ouro

pela Grã-Bretanha, as duas moedas que teriam força

no sistema financeiro que se desenhava na década de

1930 eram ainda a libra esterlina e o dólar americano.

Os argentinos viram no tratado Roca-Runciman a

opção viável para continuar a ter nos britânicos sua

principal parceria, uma vez que o trigo americano era

rival dos argentinos e a carne estava tendo dificulda-

des de entrar no Reino Unido, dificuldade agravada

pela decisão da Commonwealth de dar preferência aos

produtos que vinham dos países que faziam parte do

acordo.

Com o Brasil era diferente: não seriam sufocados os

planos de industrialização e urbanização – uma vez que

as classes urbanas eram a plataforma que legitimara

Vargas no poder – e o café, produto de menor urgência

no consumo de um mundo entreguerras do que carne

e pão, precisaria de estratégia de Estado para poder au-

xiliar o governo nos planos de revitalização financeira.

Aranha acreditava que o dólar era a solução, em es-

pecial porque os títulos da dívida externa que estavam

em mãos de credores norte-americanos eram muito

mais onerosos que os que estavam com britânicos ou

outros credores (ABREU, 1990, p 75). Os marcos com-

pensados que vinham de trocas com alemães não re-

solviam a dívida brasileira. Por esse motivo, um acordo

de comércio com os EUA era mais que necessário, e o

novo embaixador sabia disso.

Desde julho de 1934, alguns meses antes de ser

acreditado junto ao governo dos EUA, havia notícias de

que o novo embaixador tinha esperanças de concluir

acordo comercial entre os dois países. Para ele era im-

portante ajustar o intercâmbio comercial, e, para tan-

to, frisava que sua ida a Washington não fazia parte de

uma missão temporária. Dizia Aranha:

My object is to work concretely for a direct understanding

between our Governments for the stablishment of practi-

cal accords in the common interest of the two peoples.

One of the first steps [...] would be the completion of

the commercial accord now being negotiated. [...] Brazil

wants to make not merely a bilateral accord on exchange

of favors, but a statute or code, opening new horizonts of

industry and commerce.10

Mediante estudo das reações dos países latino-

americanos, o que se entende neste artigo é que, em-

bora os fatores exógenos desse período não sejam de-

terminantes nas mudanças internas da estrutura pro-

dutiva, a política externa será pautada por aspectos de

difícil delimitação entre influências internas e externas.

Exemplo dessa afirmativa foi a auditoria brasileira reali-

zada nos primeiros anos pós-1930. A dívida externa foi

um determinante exógeno da política externa para a

segunda metade da década de 1930; as soluções apre-

sentadas pela auditoria realizada de maneira inédita

pelo governo brasileiro, no entanto, determinadas de

maneira endógena, impulsionaram uma estratégia co-

mercial do governo nos anos seguintes.

Referências bibliográficas

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Günther Richter [email protected]

Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. O

presente artigo é extensivamente baseado em parte de minha dis-

sertação de mestrado, Origens do paradigma desenvolvimentista: as

contribuições de Oswaldo Aranha e dos militares (1931-1935). 2011.

115 f. Dissertação (Mestrado) - Instituto de relações internacionais,

Universidade de Brasília, Brasília.

52

Page 55: Revista de Conjuntura n. 47

O impacto da crise nos EUA e, principalmente, nas

economias europeias, tem gerado forte repercussão nos

noticiários de todo o mundo, e é agenda de muitos eco-

nomistas tanto nos países centrais quanto no resto do

mundo. Quando as crises assolam as economias mundiais

e se tornam a agenda dos jornalistas, o papel do econo-

mista ganha mais notoriedade. Naturalmente, deve des-

pertar mais interesse não só dos jovens vestibulandos,

como também de profissionais nas mais diferentes áreas.

No contexto citado, e visando atender principalmente

profissionais do mercado de trabalho, que têm interesse

em conhecer os fundamentos da ciência econômica, a

Universidade Católica de Brasília (UCB) oferece um curso

de graduação a distância em Ciências Econômicas. O

curso visa atender principalmente os profissionais que

não possuem tempo para deslocar-se diariamente até

uma instituição de ensino superior, durante quatro anos,

para cursar uma graduação presencial. Desta forma, o

curso a distância permite a flexibilidade de tempo neces-

sária para o aluno estudar de maneira a determinar seus

próprios horários e se agende de acordo com a própria

conveniência.

A Universidade Católica de Brasília (UCB) já traba-

lha com disciplinas virtuais desde 1996, e acumula

experiência e conhecimento em práticas pedagógicas

para melhorar e aperfeiçoar o aprendizado dos alunos.

Oferece uma grande variedade de recursos tecnológi-

cos e as melhores práticas de ensino à distância já uti-

lizadas nas principais universidades do mundo. Todos

os cursos da UCB Virtual são credenciados pelo MEC, o

que atesta a excelência da UCB nessa área. Além disso,

três cursos da UCB Virtual foram avaliados pelo MEC:

Filosofia (nota cinco na primeira avaliação), Administração

(nota final quatro) e Ciências Contábeis (nota qua-

tro na primeira avaliação). Todos foram aprovados.

A UCB oferece uma rede de polos para suporte dos

cursos à distância no Brasil e em vários países. No Brasil

possui 18 polos: Brasília (DF), Anápolis (GO), Belém (PA),

Belo Horizonte (MG), Coronel Fabriciano (MG), Palmas

(TO), Recife (PE), Salvador (BA), São José dos Campos,

Santo André e São Paulo (SP), Uberlândia (MG), Manaus

(AM), Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro e Campos dos

Goytacazes (RJ), Vitória (ES) e Fortaleza (CE). No exterior

possui 5 polos: Dondo e Luanda (Angola), Boston (EUA) e

Nagoya e Tóquio (Japão).

As inscrições para o próximo vestibular estão previs-

tas para junho. O valor da mensalidade no Brasil, para o

curso de Economia, é de R$ 474,39 (sem considerar bol-

sas e/ou descontos, a depender do polo). No Japão, o

valor está estipulado em R$ 641,02; em Angola R$ 487,20

e nos Estados Unidos R$ 562,92. A Universidade possui

uma política de descontos com base nos critérios: pon-

tualidade; ex-alunos; parentes; em alguns polos como em

Coronel Fabriciano, ou Regiões Norte e Nordeste. Há tam-

bém convênio com algumas empresas. A UCB também

aceita candidatos oriundos do ProUNI.

Destaque-se que candidatos portadores de curso

superior não precisam fazer vestibular para ingressar no

curso de economia a distância. Nesse caso, basta subme-

ter-se ao Aproveitamento de Disciplinas, desde que se

cumpram as exigências previstas em Edital e nas Normas e

Procedimentos Acadêmicos. Informações mais detalhadas

estão em www.ucb.br.

Tito Belchior Silva Moreira Doutor em Economia pela UnB e professor do departamento de eco-

nomia da UCB. Ministra aulas na graduação e na pós-graduação (mestrado e

doutorado). Também é o coordenador do curso de economia à distância.

Curso de Ciências Econômicas à distância na UCB

A partir desta edição a Revista de Conjuntura abrirá este espaço para que os coordenadores, professores e alunos dos cursos de economia do Distrito Federal possam divulgar informações dos cursos sobre assuntos pertinentes aos de interesse dos economistas. As notas e informes, com a identificação dos autores, devem ser encaminhadas para o e-mail: [email protected].

INFORMES DOS CURSOS DE ECONOMIA DO DF

Page 56: Revista de Conjuntura n. 47

Conselho Regional de Economia da 11ª Região-DFSCS Qd. 04, Ed. Embaixador, Sala 202

CEP 70300-907 - Brasília -DF Tels: (61) 3225-9242 / 3223-1429

3964-8366 / 3964-8368Fax: (61) 3964-8364

E-mail: [email protected]: www.corecondf.org.br

O Corecon-DF defende os interesses da categoria e trabalha pela valorização dos economistas.

Mas, para que esta luta seja bem-sucedida, é importante a participação de todos. Visite o seu Conselho. Critique. Dê sugestões.

Participe! a conquista é de todos.

Não quebre a corrente!

acesse o novo site: o Corecon-DF acaba de inaugurar seu novo

site. acesse: www.corecondf.org.br, conheça e fique por dentro das ações do Conselho. No espaço “Leia e opine”, o economista poderá enviar pequena nota expondo sua opinião

sobre algum fato marcante do dia ou da semana que considere importante.