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  • Revista LiberdadesEdio Especial - Dezembro de 2011 ISSN 2175-5280

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    EXPEDIENTEInstituto Brasileiro de Cincias Criminais

    DIRETORIA DA GESTO 2011/2012

    Presidente: Marta Saad

    1 Vice-Presidente: Carlos Vico Maas

    2 Vice-Presidente: Ivan Martins Motta

    1 Secretria: Maringela Gama de Magalhes Gomes

    2 Secretrio: Helena Regina Lobo da Costa

    1 Tesoureiro: Cristiano Avila Maronna

    2 Tesoureiro: Paulo Srgio de Oliveira

    CONSELHO CONSULTIVO:

    Alberto Silva Franco, Marco Antonio Rodrigues Nahum, Maria Thereza Rocha de Assis Moura, Srgio Mazina Martins e Srgio Salomo Shecaira

    Publicao do Departamento de Internet do IBCCRIM

    DEPARTAMENTO DE INTERNETCoordenador-chefe:Joo Paulo Orsini Martinelli

    Coordenadores-adjuntos:Camila Garcia da SilvaLuiz Gustavo FernandesYasmin Oliveira Mercadante Pestana

    Conselho Editorial da Revista LiberdadesAlaor LeiteCleunice A. Valentim Bastos Pitombo Daniel Pacheco PontesGiovani SaavedraJoo Paulo Orsini MartinelliJos Danilo Tavares LobatoLuciano Anderson de Souza

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    EDITORIAL

    REVISTA LIBERDADES: UM ESPAO CADA VEZ MAIS PLURAL

    Com imensa satisfao, o Instituto Brasileiro de Cincias Criminais apresenta, neste ano de 2011, a primeira Edio Especial da Revista Liberdades, idealizada e organizada em virtude do 17 Seminrio Internacional promovido pelo Instituto.

    Sabe-se que o grande trunfo deste significativo evento, o maior e mais importante no mbito das Cincias Criminais, reunir importantes nomes no apenas do universo jurdico, mas tambm de reas diversas das cincias humanas, como a Sociologia, a Filosofia e at a Literatura, visto que o Seminrio destina-se ao debate e difuso de conhecimentos cientfico-criminais interdisciplinares.

    Deste modo, as reflexes decorrentes deste encontro permeiam no somente aspectos da dogmtica penal, mas, efetivamente, todas as possibilidades que podem advir de uma anlise pluralista das questes trazidas nas palestras e nas audincias pblicas. Atravs da realizao deste significativo evento, h quase duas dcadas o IBCCRIM coloca o Brasil no mapa dos grandes pases que pensam e reinventam o Direito Criminal.

    Partindo dessa vocao agregadora, que caracterstica do prprio Instituto, percebeu-se que o Seminrio no poderia ficar restrito somente semana na qual ele ocorre. Era necessrio expandir e alimentar os debates, dando a possibilidade de maior interao entre os juristas.

    A busca pelo ideal democrtico passa ampla e desburocrtica divulgao de produes acadmicas que visam a proteo dos valores constitucionais. Na Era da Tecnologia de Comunicao, torna-se cada vez mais rduo o trabalho de selecionar trabalhos com o mais alto nvel de qualidade, sobretudo, quando se tem em mente o grau de complexidade que nossa sociedade hoje atinge, levando a problemticas nunca antes trabalhadas.

    Nasce, portanto, esta Edio Especial da Revista Liberdades, que busca reunir estudiosos das mais diversas esferas do meio jurdico, desde o estudante da graduao, at o Ministro da Corte Suprema de seu respectivo pas. Nela so abordados temas igualmente distintos, como o Direito Romano Penal; a relao entre o Direito e a sade mental; questes sobre o processo de extradio

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    no Brasil; a discusso sobre a ilegalidade dos meios usados para combater o terrorismo; e a anlise da relao entre a sociedade e as armas.

    Essa pluralidade, sem qualquer resqucio de dvida, o norte desta Revista. Os pensamentos navegam pelo mar do conhecimento com a propriedade que garantem Revista Liberdades, hoje, a posio de uma das mais importantes publicaes jurdicas do pas.

    A troca de ideias promovida pelo Seminrio Internacional, assim, prolonga-se, contribuindo, desta maneira, para o amadurecimento dos estudos cientficos jurdicos em nosso Pas.

    So Paulo, 15 de dezembro de 2011.

    rica Akie Hashimoto

    Renato Watanabe de Morais

    (Organizadores da Edio Especial da Revista Liberdades)

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    SUMRIO

    EDITORIALRevista Liberdades: um espao cada vez mais plural_________________03

    ENTREVISTASrica Akie Hashimoto entrevista MARIA JOO ANTUNES______________07

    Renato Watanabe de Morais entrevista EUGENIO RAL ZAFFARONI____17

    ARTIGOSEnsaio sobre o significado dogmtico da acessoriedade administrativa nos delitos ambientais______________________________________________23rika Mendes de Carvalho

    Os direitos (fundamentais) dos estrangeiros na execuo penal, desde o paradigma neoconstitucionalista__________________________________47Eric Guilherme Ferreira de Carvalho

    Os mtodos ilegais de combate ao terrorismo praticados pela CIA e suas implicaes nos direitos humanos________________________________71Gabriel Sobrinho Tosi

    A priso no processo extradicional passivo brasileiro: uma abordagem garantista_____________________________________________________92Lus Fernando Bravo de Barros

    RESENHAS

    RESENHA DE LIVROO reconhecimento scio-criminal do valor do feminino pelo afastamento da vulnerabilidade da mulher_________________________118 Carla Pereira da Silva

    RESENHA DE FILMETiros em Columbine____________________________________________134Janaina Soares Gallo e Vanessa Faullame Andrade

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    HISTRIADelito pblico e delito privado: um breve estudo do homicdio culposo e da leso corporal no Direito Romano_________________________________150Ricardo Savignani Alvares Leite

    AGRADECIMENTOS_______________________________________168

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    ENTREVISTAS

    rica Akie Hashimoto entrevista MARIA JOO ANTUNES

    MARIA JOO DA SILVA BAILA MADEIRA ANTUNES, magistrada do Tribunal Constitucional de Portugal e professora em Direito Penal e Processual Penal da tradicional Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Temas relacionados sade mental esto presentes em suas teses de dissertao para mestrado e doutorado, assim como em diversos artigos escritos por ela. A entrevistada participou de trabalhos legislativos no mbito do direito penal, do direito processual penal e da sade mental em Portugal, em Macau e em Angola. Esta entrevista foi realizada na ocasio da 17 edio do Seminrio Internacional do IBCCRIM, em que a professora foi convidada para participar da palestra de encerramento.

    1. Professora Maria Joo, inicialmente, gostaria que nos contasse um pouco sobre sua carreira: o que a levou a estudar Direito e como foi a experincia na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra enquanto estudante? Quais foram/so seus professores mais importantes?

    Maria Joo Antunes: Penso que foi por acaso que estudei Direito. Tive algumas dvidas... Inicialmente, pensei em cursar filosofia porque queria em ser professora e achava que este curso estaria mais vocacionado para a rea do ensino do que o Direito. Talvez por influncia de amigos e da famlia, que acreditavam que o curso de Direito seria mais adequado, eu optei por ele, no muito convencida, admito, mas depois acabei por gostar do curso e no estou

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    arrependida da escolha que fiz. E ainda houve a coincidncia de eu me tornar professora, no de Filosofia como eu pensava, mas de Direito, da Universidade de Coimbra.

    Houve, de fato, professores que me marcaram. Tive excelentes professores, mas houve dois que me influenciaram bastante: logo no primeiro ano, em Direito Constitucional, encantei-me com as aulas de algum que muito conhecido no Brasil, o Professor Gomes Cantino. Assim, passei a gostar muito de Direito Constitucional. Depois, no meu terceiro ano, houve uma oura figura, tambm muito conhecida no Brasil, o professor Figueiredo Dias. E realmente minha paixo foi logo pelo Direito Penal! Era minha rea de preferncia durante o curso e, deste ponto de vista, tive sorte porque quando abriu uma vaga para professor, consegui entrar para a faculdade e a vaga era justamente no grupo de penal. Por isso destaco estes dois. curioso, pois minha palestra no encerramento do 17 Seminrio Internacional um misto de Direito Constitucional e Direito Penal, que foram realmente as duas matrias que me marcaram na faculdade.

    2. Ento a senhora concluiu o curso e logo iniciou suas atividades junto ao corpo docente da faculdade? Pelo que entendi, desde aquela poca a senhora leciona em disciplinas de Direito Penal e Processual Penal, poderia no ter sido assim?

    MJA: Terminei o curso, me licenciei em 1986 e, logo em janeiro de 1987, comecei com funes de docente (na Faculdade de Direito) e desde ento tenho sido professora. Posso dizer que tive sorte porque comecei a lecionar na rea de que gostava, o que nem sempre acontece por vezes, temos que dar matrias que no so propriamente as de nossa preferncia...

    Agora que estou no Tribunal Constitucional, meu contrato na Universidade est suspenso. Contudo, continuo a dar aulas porque gosto muito de faz-lo, acredito que a sala de aula um espao de liberdade. Sinto-me sempre reconfortada, recompensada, depois de dar aulas. Gosto muito destas minhas funes docentes e, portanto, uma coisa certa: retornarei faculdade em tempo integral.

    3. Desde 2004, a senhora atua no Tribunal Constitucional de Portugal. Conte-nos um pouco como tem sido essa experincia.

    MJA: Certamente foi um grande desafio, um desafio com que eu realmente

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    no contava! Em 2004 fui convidada para integrar este Tribunal...

    Alis, creio que seja interessante explicar melhor como formado o Tribunal Constitucional: so treze juzes, sendo que dez deles so eleitos pela Assembleia Constituinte, por meio de uma votao, e outros trs so cooptados, so escolhidos pelos outros dez juzes. No meu caso, fui cooptada em outubro de 2004, por isso disse que perteno ao grupo dos juzes convidados. Os mandatos so de nove anos, portanto o meu terminar em 2013. Foi uma grande surpresa quando me fizeram o convite, quando perguntaram se estava disponvel para ir para o Tribunal Constitucional.

    claro que no incio no foi simples. Ao nos formarmos em Direito, escolhemos uma rea e vamos nos especializando; no meu caso, em Direito Penal e Processual Penal. Quando estamos no Tribunal Constitucional, e este o grande desafio, temos que voltar a ser juristas em todos os ramos e em tempo integral. Assim, tive que deixar um pouco as reas de minha especialidade para decidir casos de todas as outras reas do Direito.

    Agora, h quase sete anos no Tribunal Constitucional, sinto-me muito enriquecida enquanto jurista. Minha formao enriqueceu-se muito porque tive de recordar, e a at mesmo estudar de novo, reas do direito das quais eu estava afastada. H tambm outro aspecto que me ensinou muito, esse outro lado seria o aprendizado com os muitos casos de vida que chegam ao Tribunal, o que tambm um desafio.

    No obstante, posso dizer que no concordo com a distino entre teoria e prtica que muitas pessoas fazem. Acredito que a boa teoria tem que estar inserida na prtica, assim como a prtica deve estar suportada na teoria. No gosto muito desta dicotomia. Mas, de todo modo, temos casos de vida e casos muito diversificados em matria constitucional. Foi, e ainda , muito enriquecedora esta experincia.

    4. A senhora escreveu obras e artigos sobre questes ligadas sade mental e tambm participou de projetos legislativos nesta seara. Como surgiu o interesse por esse tema?

    MJA: s vezes eu me fao esta mesma pergunta, mas o que fato que j a minha tese de mestrado foi sobre os condenados que, durante o cumprimento da pena, desenvolvem uma anomalia psquica, ou seja, a doena mental lhes sobrevm durante o cumprimento da pena, assim procurei estudar quais so as influncias desse acontecimento no cumprimento da pena, pois

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    em Portugal, no limite, admite-se at a suspenso da execuo da pena de priso nestes casos. Posso afirmar que meu gosto pelo tema j vem desde o mestrado.

    E depois, a minha tese de doutorado foi sobre o fato do inimputvel por anomalia psquica, que uma questo jurdica difcil. Como sabe, as medidas de segurana supem a prtica de um fato tpico, assim, em minha dissertao, estudei que tipo de fato legitimaria a aplicao da medida de segurana.

    No sei se teve alguma influncia, mas minha me foi professora de crianas com deficincia mental, que chamamos de diminudos mentais, eram midos que nasciam com QI mais baixo... Assim, a doena mental foi algo que sempre esteve presente em minha casa.

    5. Poderia nos contar um pouco sobre os trabalhos legislativos de que participou, em especial, aqueles ligados sade mental?

    MJA: Minha participao ao nvel legislativo est ligada lei do internamento compulsrio, ou seja, a lei que permite internar aquelas pessoas que tem anomalia psquica, mas que ainda no cometeram crimes. Esta lei, que de 1998, uma lei de que Portugal estava a precisar e um dos trabalhos de que me orgulho; alm de participar de sua elaborao, presidi a comisso que fez o acompanhamento da execuo nos primeiros tempos.

    O internamento compulsrio pode ocorrer em situaes em que uma pessoa est em uma crise de descompensao psiquitrica e levada a uma urgncia psiquitrica, onde avaliada por mdicos. Se o diagnstico se der no sentido da internao e a pessoa no o quiser, o caso levado a um juiz, que decidir se pessoa deve ser imposto o internamento compulsrio. Nessas situaes a deciso de internar sempre mista, tanto mdica quanto judicial. Assim, no h internamento compulsrio sem interveno do juiz, que aparece como garante da liberdade das pessoas, afinal h inmeras histrias de abusos da psiquiatria.

    A deciso de internar pode ser substituda por tratamento ambulatorial a qualquer momento, desde que haja condies para tanto. Esta uma das ideias fundamentais da psiquiatria e, sempre que possvel, o tratamento psiquitrico realizado em ambulatrio e no entre quatro paredes.

    Quando fui presidente dessa comisso, o tempo mdio de internamento era baixo, algo em torno de 21 dias. Hoje, com os medicamentos e tratamento adequado, possvel compensar clinicamente algum que antigamente nunca era compensado e que, portanto, passava a vida inteira internado.

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    6. Como avalia a questo da inimputabilidade (por anomalia psquica) e o tratamento dado queles que cometeram crimes e sofrem de doenas mentais em seu pas?

    MJA: A questo da inimputabilidade pressupe a prtica de um fato ilcito tpico e, portanto, algum que, por fora de sua anomalia psquica, j se relacionou com o sistema jurdico-penal. Acredito que o direito penal e os cdigos esto defasados em relao noo de interveno psiquitrica, que bem diferente da interveno de antigamente. O problema : a psiquiatria e a Justia penal tinha um entendimento perfeito algum que tinha uma anomalia psquica e cometia um crime, era declarado irresponsvel, inimputvel, e era internado e, em face dos recursos da psiquiatria do passado, essa pessoa era internada para toda a vida. Havia ali uma boa articulao entre o Direito e a Psiquiatria, que penso que hoje no existe mais. Hoje, com os recursos da psiquiatria, possvel fazer cessar a periculosidade criminal, pouco tempo depois do internamento, alis, a ideia e periculosidade nos dias atuais discutvel. H estatsticas que dizem que um esquizofrnico passava pelo menos quinze anos da sua vida internado e, hoje, para compensar algum que tenha uma esquizofrenia, no preciso sequer um ms.

    E isto pe um problema nossa sociedade: como que as pessoas em geral vo entender que algum que cometeu um crime por fora de uma anomalia psquica, e que, portanto, era perigoso no momento da prtica do crime, vai poder ser libertado pouco tempo depois? Eu acho que o Direito Penal est descompassado em relao a esta realidade e penso at que pode haver uma averso dos juzes em declarar a inimputabilidade por entend-la como sinnimo de uma medida de segurana, de curta durao, ao contrrio daquilo que acontecia h anos atrs, em que normalmente a medida de segurana era para toda a vida.

    Os psiquiatras consideram que entre os anos 1960 e 1970, houve uma verdadeira revoluo psicofarmacolgica, psicoteraputica, psicossocial. Logo, a psiquiatria mudou bastante, mas acho que o Direito ainda no est muito consciente dessa nova realidade. Em Portugal, h poucos casos de declarao de inimputabilidade e talvez por causa do que eu acabei de dizer - porque uma declarao de inimputabilidade poderia equivaler aos olhos da comunidade como uma absolvio, por no haver propriamente uma privao de liberdade.

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    7. No Brasil, o tratamento dado aos enfermos mentais deixa muito a desejar: o nmero de leitos insuficiente e as instituies se tornaram

    verdadeiros depsitos de enfermos, pois (na maioria dos casos) no h tratamentos adequados. O que se pode dizer a respeito do sistema portugus nesta esfera quais os pontos positivos e quais os negativos?

    MJA: Em Portugal tem havido muita mudana, ainda recentemente, foi encerrado o primeiro hospital psiquitrico portugus, o Hospital Miguel Bombarda, antigo Hospital de Rilhafoles. O movimento tem se dado no sentido de encerrar os hospitais psiquitricos, at porque, os hospitais psiquitricos justificavam-se porque supunham internamentos muito longos. O que se percebeu em Portugal nas ltimas dcadas que a maioria das pessoas que continuavam no hospital psiquitrico no permanecia l por questes necessariamente psiquitricas, mas por razes sociais. fato que a doena mental separa as pessoas da famlia. Assim tnhamos muitas pessoas que continuavam institucionalizadas, no propriamente porque precisavam (do ponto de vista mdico), mas porque no tinham apoio familiar e social. Assim, surgiu o movimento de distinguir quem necessitava de cuidados psiquitricos e de encaminhar aqueles os que dependiam dos hospitais por no ter suporte familiar para instituies sociais, culminando no fechamento gradativo dos hospitais psiquitricos.

    Tambm h a ideia de que, na realidade, eles (os hospitais psiquitricos) no so mais to necessrios porque hoje os internamentos no so muitos nem to longos como anos atrs; e, por outro lado, existe tambm a defesa de que o tratamento psiquitrico deve ser feito nos Hospitais Gerais, para evitar a criao de um gueto de pessoas com problemas mentais, para no estigmatizar algum que j carrega a carga de sua anomalia psquica.

    Hoje, em Portugal, as internaes ocorrem preferencialmente em um hospital geral. Assim como eu vou trato de uma pneumonia, uma dor de estmago ou de outra doena qualquer, uma pessoa com problemas psiquitricos vai a uma rea especializada do hospital para tratar de seu problema. Este um avano muito positivo para diminuir o estigma da doena mental.

    Por outro lado, h ainda a tendncia da chamada psiquiatria comunitria, que atua em meios psicossociais especficos detectando, prevenindo e tratando perturbaes mentais. Em Portugal temos unidades criadas, ainda no temos a situao ideal, mas queremos caminhar no sentido de unidades residenciais: em vez de ter pessoas internadas em hospitais, estariam em residncias. Os pacientes se beneficiam e seu tratamento rende melhor porque tem um dia-a-dia mais parecido com o das pessoas ditas normais. Acho que evolumos bastante,

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    mas ainda no est tudo bem.

    8. De certa forma, o Brasil tambm segue a tendncia da psiquiatria moderna, que contrria internao prolongada e favorvel ao tratamento ambulatorial. Mas ainda persiste uma resistncia pois, em teoria, no possvel curar um doente mental, ou seja, h sempre a possibilidade de episdios de descompensao...

    MJA: O tratamento nos ambulatrios s ser eficaz e s far sentido apostarmos nele se o sistema de sade estiver organizado para assegurar que a tomada de medicamentos seja feita.

    Vou lhe contar um caso de um indivduo que foi internado ao abrigo da lei de sade mental, portanto internamento compulsrio preventivo, por uns 30 dias e teve o internamento substitudo por tratamento ambulatorial pelo juiz. Tudo correu bem no primeiro ms, mas ele deixou de tomar a medicao e um dia, em uma vila perto de Coimbra, ele assassinou a me regou-a com petrleo e ateou fogo, foi um crime hediondo. O que falhou aqui? O que falhou foi no haver um acompanhamento da parte dos servios mdicos deste ambulatrio. No tratamento ambulatorial, h, claro, o risco de a pessoa no tomar a medicao. Mesmo assim, neste enquadramento todo, apostamos no tratamento ambulatrio, pois ele ajuda no xito do tratamento, afinal a vida no exterior sempre uma vida mais normal do que no interior do estabelecimento. O ambulatrio tem grandes vantagens, mas pressupe-se tambm que se possa garantir que seja cumprido esse tratamento, do contrrio, h o fracasso.

    9. A senhora diria que falta uma maior conscientizao de que hoje o tratamento no precisa durar anos, de que pode ser muito mais fcil do que dcadas atrs?

    MJA: Precisamente. Ns, tendencialmente, somos muito preconceituosos e no aceitamos muito bem a diferena, e nessa rea ainda h um grande caminho a percorrer.

    Hoje, a compensao clnica muito mais gil porque a psiquiatria dispe de medicamentos que antes no existiam, os psicofrmacos so melhores, mais eficazes. Mas o maior problema enfrentado atualmente a recusa da doena, at porque uma doena muito estigmatizada. A pessoa diz que vai ginecologista, que vai ao oftalmologista, que vai ao cirurgio, mas muito difcil dizer que

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    vai ao psiquiatra porque a pessoa tem medo de ser rotulada, ficam ofendidas quando so indicadas a um psiquiatra. s vezes, aceitam ir ao psiclogo, mas ao psiquiatra muito complicado. E depois h outro problema: depois de a pessoa reconhecer que tem a doena, h dificuldades na tomada dos medicamentos.

    Neste ponto h dois aspectos importantes. A primeira delas est ligada aos efeitos secundrios dos medicamentos, eles melhoraram muito; antigamente muitas pessoas se recusavam a tomar o remdio por conta desses efeitos, pois eles transpareciam no comportamento dos que os tomavam. Outras pessoas olhavam e percebiam, ou ao menos suspeitavam, que a pessoa tomava medicamentos psiquitricos... O fato de hoje ser possvel tomar um remdio e as pessoas ao redor no notarem faz com que aqueles que precisam do tratamento no o rejeitem tanto, que um aspecto importante. Outra novidade relevante a possibilidade de receber uma medicao com efeito prolongado, o que evita o esquecimento. o caso, por exemplo, de uma injeo mensal de determinado medicamento, tornando o tratamento mais fcil j que a pessoa no tem que lembrar de tomar um comprimido (ou mais) todos os dias...

    Alm disso, existem medicamentos em forma de comprimidos que no precisam sequer ser engolidos, basta o contato do medicamento com a saliva da pessoa para que ele se desfaa imediatamente na boca. Essa inovao se deu porque era relativamente comum o enfermeiro dar a medicao e o doente tir-lo da boca ou escond-lo. So evolues tcnicas que facilitam o tratamento. Creio que esta revoluo psicofarmacolgica talvez tenha sido a mais importante...

    10. Existe em So Paulo h um estabelecimento, denominado Unidade Experimental de Sade (UES), destinado ao abrigo de jovens que cometeram atos infracionais e foram diagnosticados com transtornos de personalidade antissocial. Neste local, os jovens deveriam receber um tratamento especializado enquanto cumprissem medida socioeducativa alm de atividades pedaggicas e laborais, teriam tambm acompanhamento teraputico. No entanto, a UES no oferece nenhuma atividade, tampouco tratamento. Tornou-se um lugar de conteno de adolescentes considerados perigosos. Debates e questionamentos foram feitos em relao legalidade desta unidade. H estabelecimentos destinados ao tratamento de menores com doenas metais em Portugal?

    MJA: A rea de menores no de minha especialidade, mas posso dizer

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    com segurana que no. Em Portugal temos o que chamamos medida tutelar educativa, que se aplica a menores de 12 a 16 anos que praticam atos que a lei considera crime. Essas medidas tutelares tem por objetivo a educao do menor para o direito. Nesse processo, pode ocorrer um tratamento mdico-psiquitrico, mas visto como algo ligado finalidade da medida tutelar educativa.

    Acho que em Portugal, muito dificilmente aconteceria uma situao de estarmos com receio de um menor ficar toda a vida internado. J houve tempo, no em relao a menores, mas maiores, que ficavam a vida toda internados, no porque eram perigosas, mas porque no havia famlia, no havia apoio social, acabavam em uma instituio psiquitrica porque um dia haviam cometido um crime. Mas penso que esta situao em Portugal no seria possvel, pois o tratamento psiquitrico na verdade faz parte da finalidade da medida, que educar o menor para o direito.

    Ns hoje temos que ter conscincia de que no h situaes psiquitricas para toda a vida, certo que as anomalias psquicas muitas vezes no se curam, h muitas doenas psquicas que no so curveis, mas so compensveis. E h recursos teraputicos para poder compensar essas situaes.

    11. Em relao ao caso relatado acima, foi sugerida a criao de uma medida de segurana para menores. A senhora concorda com essa proposta? Uma medida de segurana para jovens resolveria o problema?

    MJA: Em geral eu acho que as medidas de segurana, por questes psiquitricas, tm os dias contados. Como lhe disse, antigamente havia um entendimento entre o Direito e a Psiquiatria, o mdico dizia se a pessoa era ou no perigosa e, a partir esse juzo do psiquiatra, o juiz decidia pelo internamento.

    O conceito de periculosidade de Exner que aprendemos nos bancos da escola um conceito muito perigoso. Hoje a psiquiatria no faz esse mesmo juzo de periculosidade porque, para ela, um esquizofrnico, em uma mesma situao pode ou no ser perigoso. Por exemplo: um esquizofrnico que tem um delrio de perseguio pode julgar que perseguido e, em uma situao de legtima defesa, infundada, claro, pode matar seu pseudo-perseguidor; mas na mesma situao, esse mesmo esquizofrnico em vez de matar o perseguidor, pode fugir dele, no representando perigo algum. difcil prever.

    Alm disso, h estatsticas que provam que existe outros fatores que podem determinar a prtica de um crime, ou seja, o simples fato de ser doente mental no condiciona a pessoa ao cometimento de um crime mais do que, por

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    exemplo, o fato de consumir drogas ou lcool. H uma srie de outros aspectos crimingenos. Os psiquiatras, pelo menos em Portugal, fogem a um juzo de periculosidade porque no possvel dizer se a pessoa ou no perigosa por causa de um determinado fator ela vir a cometer crimes.

    Antigamente havia uma ligao inevitvel entre anomalia psquica e o crime. Essa ideia morreu e, portanto, o juzo de periculosidade cada vez mais um juzo perigoso. Pois, na prtica, a periculosidade pressupe dizer que por causa de uma anomalia psquica a pessoa vai praticar um crime.

    Eu digo que, em relao aos problemas psiquitricos, as medidas de segurana tm os dias contados porque seu pressuposto, ou seja, a periculosidade, torna-se cada vez mais difcil de aferir. Agora, em termos futuros, o que eu imagino que as medidas de segurana podem deixar de ter as caractersticas com que nasceram; aplicaramos essas medidas no em funo da periculosidade, mas da necessidade de tratamento. Esta a ideia que me agrada mais, a que acredito ser a mais adequada aos dias de hoje.

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    Renato Watanabe de Morais entrevista EUGENIO RAL ZAFFARONI

    O ano de 2011 foi, para a Repblica Argentina, um perodo intenso, marcado pelas eleies presidenciais, preocupao com a Economia e avanos na estrutura jurdica que possibilitou, entre outras novidades, que policiais transexuais pudessem escolher seu gnero, adotando o uniforme e os vestirios mais apropriados.

    Esta efervescncia, infelizmente, impediu que o renomado mundialmente jurista Eugenio Ral Zaffaroni pudesse comparecer ao 17 Seminrio Internacional, ao qual fora convidado e, aps confirmada a sua presena, fora obrigado a retornar a seu pas natal para resolver uma srie de compromissos. Um dos maiores pensadores do Direito Penal da Amrica Latina, Professor Titular da Universidade de Buenos Aires e Ministro da Suprema Corte Argentina e, em meio a sua atribulada agenda, conseguiu reservar um tempo para atender a esta Edio Especial da Revista Liberdades.

    Aqui, ele aborda com poucas, porm, valiosas palavras, diversos temas como o narcotrfico. Este, inclusive, o ponto que, para aqueles que ainda buscam uma resposta penal a esta problemtica, pode causar maior estranhamento. Neste ponto, vlido citar o jurista Cristiano vila Maronna: Sob a perspectiva dos Estados-nao, o proibicionismo garante certas vantagens e benefcios de ordem econmica e poltica. Proporciona o ambiente favorvel aprovao de medidas de controle social excepcionais por meio de uma legislao de emergncia que justifique a perseguio de grupos tnicos e de imigrantes. Reduz o controle em matria de direitos humanos. Incrementa os poderes dos

    juzes, promotores, procuradores, polcia e exrcito.1

    1 Proibicionismo ou morte? In Drogas: Aspectos penais e criminolgicos. So Paulo: Forense, 2005, p. 60.

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    1. Por que o Sr. optou por seguir a carreira jurdica? Por que o Direito?2

    ERZ: En mi tiempo, era la nica carrera cercana a las ciencias humanas que me permita una salida laboral. Soy una persona de clase media y no poda permitirme el lujo de encarar una carrera que no me ofreciese la posibilidad de un ingreso. Luego, en el curso de la carrera me fui entusiasmando en especial con el derecho penal- y por fin me dediqu a eso con todas mis fuerzas, pero siempre acompandolo con miradas hacia otros campos.

    2. Conte-nos sobre sua carreira como Ministro da Suprema Corte Argentina e como Professor da Universidade de Buenos Aires

    ERZ: Mi carrera docente fue accidentada. En realidad, comenz en Mxico por los aos sesenta, despus, sigui en universidades privadas. Llegu al posgrado de Buenos Aires en los aos setenta, pero eso se interrumpi con el golpe militar y volv luego en 1983, concentrando desde ese momento mi actividad all, tanto en la Facultad de Derecho como en la de Psicologa, hasta que hace tres aos fui honrado con el grado de Profesor Emrito. En cuanto a mi actividad como Ministro de la Corte Suprema, llevo ocho aos desempeando esa funcin, ya los creo demasiados aos, pero eso depende de otros factores. No puedo valorar lo hecho porque sera parte interesada. Creo que le hemos devuelto confiabilidad a la Corte Suprema, como tarea conjunta de todos sus Ministros. Lo dems es un juicio que corresponde a otros.

    3. Nos ltimos anos, o Brasil vem avanando na chamada Guerra contra as Drogas, com o Estado cada vez mais atuante nessa questo. O tratamento legal dado ao trfico de entorpecentes se tornou mais rgido,

    de maneira que, hoje, classificado como crime hediondo; comunidades

    inteiras so ocupadas pelas foras especiais da polcia militar; apreenses

    recordes de drogas nos aeroportos internacionais. Como o Sr. avalia o crescimento desta Guerra e ao que deve essa expanso da atuao estatal, que, aparentemente, ocorre em vrios pases, no apenas no Brasil?

    ERZ: Nunca he credo en ninguna guerra. Lo que se est haciendo en el mundo es suicida. En la prctica no se combate al narcotrfico, sino que se lo

    2 Buscando evitar qualquer desvio de interpretao, foram mantidas, em suas respectivas lnguas originais, as perguntas e as respostas. Reviso textual do texto em espanhol feita por Juliana Domingues Galvo.

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    fortalece y basta con mirar lo hecho en las ltimas dcadas para confirmarlo. La prohibicin de cualquier porquera con demanda rgida la convierte en oro. Es la nueva alquimia: toda basura prohibida sube el precio por efecto de la prohibicin. Con el poder punitivo hacemos oro de esas basuras, mantenemos el precio y, lo que es peor: eliminamos las pymes del trfico y dejamos y fortalecemos (concentramos capital y tecnologa) las organizaciones ms grandes y con mayor poder de infiltracin en los estamentos estatales. Lo de Mxico es muy claro: hay una divisin internacional del trabajo, en la que el pas consumidor y demandante de mayor poder se reserva una aceitada red de distribucin que le deja la mayor rentabilidad, en tanto que la produccin y la competencia mortal por el acceso al mercado grande queda en Mxico con sus 50.000 muertos. Adems, a travs del GAFI el norte se asegura el monopolio del lavado. Es muy diferente de lo que pasaba con el alcohol en los aos veinte, en que la produccin, la competencia por el mercado y la distribucin tenan lugar en el propio territorio del consumidor, con las consecuencias mafiosas conocidas. Hoy, las consecuencias mafiosas y la violencia le quedan a la parte que se cumple en el sur y, como dije, el norte se reserva la mayor renta y el lavado.

    4. Membros da sociedade civil tm defendido a legalizao e / ou a descriminalizao dos entorpecentes, como, por exemplo, o Ex-Presidente da Repblica Fernando Henrique Cardoso. Este um caminho vivel?

    ERZ: No s si lo resiste la economa mundial. No soy economista. Algunos opinan que no. Tampoco puedo predecir todos los efectos econmicos, no s si la economa y las finanzas lcitas se hallan comprometidas o simbiotizadas demasiado con los trficos del dinero sucio. Es una pregunta que la deben responder los macroeconomistas, a los criminlogos nos excede.

    5. Como a questo tratada na Argentina? Como a Corte Suprema do pas lida com o tema?

    ERZ: Por suerte, la Argentina no ocupa un lugar destacado en la geopoltica del trfico. No somos pas productor, tampoco tenemos un gran mercado de consumo y por suerte estamos geogrficamente lejos del principal consumidor. Hacemos lo que podemos, perseguimos y condenamos en narcotrfico con bastante severidad y tratamos de no perder tiempo en la paradoja incomprensible de perseguir a los consumidores.

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    6. O trfico, pela organizao daqueles que exploram a prtica, est

    cada vez mais internacionalizado. Como solucionar a problemtica de, sobre um mesmo ato, recarem diferentes legislaes que possuem diferentes escopos? A legislao de um determinado pas no pode retirar a eficcia da legislao adotada por outro Estado?

    ERZ: Toda la eficacia se limita a la funcin de controlar el precio alto. Con el sistema penal nos convertimos en la junta reguladora del precio del txico, adems de protagonizar un intervencionismo proteccionista de los ms fuertes. Vivimos en una economa de mercado, quien no vea esto es porque no comprende la dimensin del problema: son casi un milln de millones de dlares anuales que se reciclan y entran al circulante mundial. Creo que vamos hacia una catstrofe financiera mundial, ojal me equivoque.

    7. Como o Sr. avalia iniciativas como a confeco do Documento de magistrados latinos sobre poltica pblica em matria de drogas e direitos humanos?

    ERZ: Es un documento interesante, pero insisto en que no s si la alternativa es viable: que hablen los economistas. No me gusta hablar acerca de lo que no s. Simplemente imagino que esa cifra enorme cumple una funcin econmica macro y no s qu pasar si de repente desaparece esa inyeccin de las finanzas mundiales, en particular en ciclo recesivo.

    8. Tratando sobre delitos internacionais, no possvel olvidar da questo daqueles que cumprem penas em pases os quais se encontram somente pela prpria prtica do trfico, como, por exemplo, as mulas,

    que geralmente se encontram em situao irregular naquele territrio. O Sr. acha possvel a concesso de benefcios ao longo da execuo (progresso de regime prisional, livramento condicional) para aqueles que no possuem residncia fixa no pas em que foram presos?

    ERZ: Por supuesto que los considero procedentes, pues lo contrario significa una discriminacin inaceptable. El extranjero ser tal, violar la ley migratoria, pero esa violacin de la ley migratoria tiene una sancin que no es la prohibicin de los beneficios del rgimen progresivo. El estado tiene una opcin: o lo pena y le reconoce los mismos beneficios que a los ciudadanos, o lo expulsa del pas.

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    Las dos sanciones no pueden mezclarse en forma que por la violacin migratoria se le agrave la pena penal.

    9. Com a influncia dos gestores atpicos da moral e do crescimento

    da aplicao, ainda que de maneira no to consciente por parte dos legisladores, da teoria do Direito Penal do Inimigo, o Direito Criminal vem sofrendo um recente recrudescimento: Penas mais longas e maiores dificuldades para conseguir benefcios ao longo da Execuo da Pena.

    A pena privativa de liberdade a resposta jurdica mais adequada ou podemos esperar que um dia ela deixe de existir?

    ERZ: Los polticos no saben qu hacer y los medios de comunicacin los amenazan y extorsionan. El resultado es que repiten por miedo o por oportunismo el discurso de los medios y terminan destrozando la legislacin penal. No s si la pena de prisin desaparecer, pero esas son meditaciones a largo plazo, en el corto plazo lo que debe cesar es el pensamiento mgico que lleva a poner en la ley penal todo lo que no se sabe cmo resolver, para dar la impresin de que as se resuelve algo cuando la verdad es que no se resuelve nada y terminamos destrozando los cdigos. Tenemos leyes que son mucho peores que las de los tiempos coloniales; por lo menos las Ordenaes estaban escritas en buen portugus.

    10. Mudando de assunto, mas ainda dentro da ideia de gestores atpicos da moral: Na Argentina, ano passado, houve uma mudana legislativa permitindo a unio homoafetiva. Neste ano, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal decidiu nesse sentido. Ainda assim, h fortes posies contrrias a unies desta natureza. Como forma de inibir manifestaes contrrias a esta tendncia, a criminalizao a soluo?

    ERZ: Las leyes antidiscriminatorias son tiles, pero en el fondo se trata de un cambio cultural. Con el tiempo se ver como normal y nadie se har problema. Hoy, en verdad, tampoco la mayora de las personas se hace problema por eso. Nuestras sociedades han evolucionado mucho. Siempre hay sectores regresivos, no se debe extraar. Siempre hay quienes piensan que es natural lo que les gusta y antinatural lo que no les gusta. Acaso no se ha considerado en algn momento natural la esclavitud o la tortura? Acaso no hay gente que pensaba que no se poda vivir sin la inquisicin?

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    11. Por fim, com o reconhecimento da possibilidade da unio civil

    homoafetiva, o Sr. entende possvel a aplicao de institutos jurdicos penais de gnero, como a diferenciada proteo mulher prevista na Lei Federal Brasileira 11.340/06 (Lei Maria da Penha)?

    ERZ: No conozco el tema en particular, pero siempre desconfo en que algo a lo que se quiere proteger se lo haga penalmente. Me parece que la sobreproteccin penal, por lo general, es una sobreactuacin que oculta, que en la prctica no se hace nada efectivo. La ley penal es un escenario muy apto para estafar al pblico: Miren cmo me preocupo, hago una ley penal. Mejor piensen en hacer cosas ms eficaces: controlen las diferencias salariales, las discriminaciones en el empleo, la proteccin de la maternidad, la asistencia diferenciada a la mujer, la proteccin fsica de la mujer golpeada, etc. Eso cuesta dinero, claro, en tanto que una ley penal es gratuita y sale en la TV.

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    ARTIGOS

    Ensaio sobre o significado dogmtico da

    acessoriedade administrativa nos delitos ambientais1

    rika Mendes de Carvalho2

    Sumrio:

    1. Consideraes iniciais 2. Os significados dogmticos da acessoriedade administrativa nos delitos ambientais: 2.1. A acessoriedade administrativa como adequao social; 2.2. A acessoriedade administrativa como risco permitido 3. Apreciao crtica 4. Referncias Bibliogrficas.

    Resumo:

    O presente artigo examina o significado do reenvio normativa administrativa ou ao ato administrativo individual na esfera dos delitos ambientais. Quando o legislador penal emprega a tcnica da acessoriedade administrativa no mbito dos tipos ambientais, permite que a determinao de parte do valor social da conduta seja feita por outro ramo do Direito. Se essa valorao indicar a adequao social da conduta, esta ser atpica. O sentido social da conduta positivamente valorado como socialmente til e, consequentemente, inexistir desvalor da ao, e, tampouco, desvalor do resultado. Todavia, ainda que o legislador no introduza a acessoriedade administrativa como elemento normativo do tipo, ser possvel que o ordenamento jurdico faculte a realizao de uma conduta socialmente necessria, desde que seu exerccio se ajuste aos fins perseguidos pela norma permissiva. O risco gerado pela ao tpica justificada no ser

    1 Esse estudo constitui parte da investigao ps-doutoral realizada junto Universidad de Zaragoza (Espanha), no ano acadmico 2009-2010, sob a orientao do Prof. Dr. Miguel ngel Boldova Pasamar, e conta com o apoio financeiro da Diputacin General de Aragn (DGA) e do CNPq/CAPES/MCT/MEC (Edital 2/2010).

    2 Ps-doutora e doutora em Direito Penal pela Universidad de Zaragoza (Espanha). Pesquisadora do CNPq. Professora adjunta de Direito Penal na Universidade Estadual de Maring (UEM).

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    juridicamente desaprovado, mas permitido ou irrelevante.

    Palavras-chave:

    Tutela penal do ambiente Acessoriedade administrativa Adequao social Risco permitido.

    1. Consideraes iniciais

    O Direito Penal Ambiental apresenta inequvoco carter subsidirio. Desse modo, a proteo penal do ambiente deve observar a normativa administrativa igualmente orientada tutela dos recursos naturais. Por vezes, o prprio legislador penal, na elaborao das normas incriminadoras ambientais, faz referncia explcita ou implcita normativa administrativa ou a determinados atos administrativos. Nessa perspectiva, condiciona, por exemplo, a plena realizao do injusto penal inobservncia da referida normativa ou infrao dos limites impostos por um determinado ato administrativo individual. A acessoriedade do Direito Administrativo e a acessoriedade de ato administrativo so tcnicas admissveis e, muitas vezes, necessrias quando da configurao dos ilcitos penais ambientais. E, ainda que o legislador, ao descrever a conduta tpica, no faa qualquer referncia normativa administrativa ou a um ato administrativo individual, ser cabvel invocar tais elementos sempre que a atuao se encontrar amparada por preceitos permissivos capazes de neutralizar o juzo de desvalor nsito ao tipo penal.

    Os diferentes significados dogmticos que a tcnica de reenvio ao ato administrativo individual ou normativa administrativa de carter ambiental assume em relao configurao das categorias delitivas podem, em um princpio, parecer irrelevantes, posto que, em todo caso, haver a excluso da responsabilidade penal. Entretanto, a opo por uma ou outra configurao tpica repercute indiscutivelmente na tutela do bem jurdico ambiente: no primeiro caso, a atipicidade da conduta importar em ausncia de leso ou de perigo de leso ao bem jurdico; no segundo, em uma tolerncia da leso ou do perigo de leso tpicos. Ou seja, faz toda a diferena a introduo da acessoriedade (de ato administrativo ou de Direito Administrativo) na estrutura do tipo ou sua

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    considerao no mbito das causas de justificao. O significado da relao de acessoriedade materialmente diferente, conforme se opte por situ-la entre os elementos tpicos ou entre os elementos justificantes.

    No cabe afirmar que essa localizao sistemtica em uma ou outra categoria do delito indiferente, pois, se assim fosse, seria possvel equiparar tipicidade e ilicitude. Com efeito, como adiante se discutir, to somente quando se assume como premissa uma total equiparao/identificao entre tais categorias, conclui-se que a introduo de uma referncia acessoriedade administrativa como elemento do tipo ou o seu exame como causa de justificao ocorre de modo aleatrio. E essa fuso indevida de ambas as categorias vir, consequentemente, acompanhada do entendimento de que a referncia acessoriedade administrativa atuar como um elemento negativo do tipo.

    Embora se compartilhe aqui do entendimento segundo o qual entre ilcitos ou injustos penais e administrativos no existam diferenas qualitativas mas apenas quantitativas3 mediante o tipo de injusto, o legislador penal seleciona aquelas condutas mais graves e, por isso, merecedoras de sanes mais severas. Configura, assim, tipos de injusto especficos do Direito Penal. A ilicitude a mesma para todos os ramos do Direito; os tipos de injusto, porm, so especficos.4 E a categoria da tipicidade penal que confere ao injusto (ou ilcito) o carter especfico de injusto penal. Cabe ao tipo penal diferenciar o injusto penal especfico dos ilcitos administrativos, por exemplo. De conseguinte, conquanto entre um ilcito penal e um ilcito administrativo no existam diferenas qualitativas, o tipo penal um instrumento formal atravs do qual o legislador delimita as condutas que devem constituir injustos especificamente penais. O tipo de injusto rene, portanto, os elementos ou circunstncias que fundamentam o injusto especfico de uma conduta delitiva.5 E, j na esfera do Direito Penal, os diversos tipos de injusto revestem-se de distinta gravidade.

    Isso significa que, quando o legislador tipifica uma conduta e introduz na esfera do tipo, por exemplo, referncia acessoriedade de ato administrativo, fornece um fundamento ao juzo posterior, que diz respeito ilicitude da conduta tpica. Confere referncia ao ato administrativo um significado especfico, a 3 Nesse sentido, vide, por exemplo, Prado, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 3. ed. So Paulo: RT, 2011, p. 92; reale Jr., Miguel. Ilcito administrativo e o ius puniendi geral. In: Prado, Luiz Regis (coord.). Direito Penal contemporneo: Estudos em homenagem ao Professor Jos Cerezo Mir. So Paulo: RT, 2007, p. 93; Cerezo Mir, Jos. Curso de Derecho Penal espaol. Parte General. t. I. 5. ed. Madrid: Tecnos, 2000, p. 42 e ss.; GraCia Martn, Luis. Fundamentos de Dogmtica Penal. Una introduccin a la concepcin finalista de la responsabilidad penal. Barcelona: Atelier, 2006, p. 60.

    4 Cf. Welzel, Hans. O novo sistema jurdico-penal. Uma introduo doutrina da ao finalista. Trad. Luiz Regis Prado. So Paulo: RT, 2011, p. 65.

    5 Cf., por todos, Cerezo Mir, Jos. Curso de Derecho Penal espaol. Parte General. t. II. 6. ed. Madrid: Tecnos, 2000, p. 94, com exaustivas referncias.

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    saber, a possibilidade de excluir a tipicidade. Quando o legislador no insere essa referncia na esfera do tipo, confere acessoriedade administrativa outro significado, substancialmente distinto do anterior. Assim, se a conduta se encontrar amparada por um ato administrativo lcito, no deixar de ser tpica. Poder, contudo, ser expresso do exerccio regular de um direito e, consequentemente, autorizada ou lcita.

    Cabe advertir que o juzo posterior tipicidade que avalia a contradio da conduta com relao ao ordenamento jurdico como um todo de carter negativo, no se encontra entre os fundamentos do injusto especfico. As causas de justificao no so, portanto, elementos negativos do tipo. Pertencem a outra categoria, distinta da tipicidade. Rejeita-se, aqui, a teoria dos elementos negativos do tipo. De conseguinte, no o mesmo conceber a referncia acessoriedade administrativa (de ato ou de Direito Administrativo) entre os elementos do tipo e apreciar essa referncia na esfera das causas de justificao.

    O certo que o tipo penal adverte aquele que sabe que o realiza acerca da reprovao social do fato em geral, e s sobre sua possvel antijuridicidade. J o entendimento sobre a antijuridicidade, por sua vez, baseia-se no conhecimento de outros fatos distintos dos que fundamentam o injusto especfico (tipo positivo), e estes outros fatos no podem ser outros seno as circunstncias que fundamentam as causas de justificao. Isso significa que as circunstncias do tipo que fundamentam o injusto especfico e as circunstncias que fundamentam as causas de justificao e, mais concretamente, a ausncia destas so fatos que devem ter forosamente um significado objetivo bem distinto: as primeiras, o significado de realizao de um fato geralmente reprovado e s provisoriamente antijurdico; a ausncia das circunstncias que fundamentam as causas de justificao, o significado de realizao de um fato j reprovado em concreto e definitivamente antijurdico.6

    Agora, quando o legislador penal se deve inclinar por uma ou por outra opo, trata-se de questo estritamente poltico-criminal. Mas claro que a opo feita pelo legislador penal alterar substancialmente o significado da acessoriedade administrativa. Se o legislador inclui a referncia ao ato administrativo entre os elementos normativos do tipo objetivo, pretende que essa referncia cofundamente o injusto especfico de uma determinada figura delitiva.7 Se o ato administrativo

    6 GraCia Martn, Luis. Fundamentos de dogmtica penal. Una introduccin a la concepcin finalista de la responsabilidad penal. Barcelona: Atelier, 2006, p. 325. Da que, diferentemente da opo feita pelo Cdigo Penal brasileiro, o erro sobre uma e outra espcie de elementos deva ser forosamente de distinta natureza, devendo ter tambm um significado objetivo distinto, e ser submetido a tratamentos diferentes e a distintas consequncias jurdicas (op. cit., p. 325).

    7 Cumpre esclarecer que os elementos que fundamentam o injusto especfico advertem sobre a possvel antijuridicidade do fato, e o conhecimento dos mesmos (dolo) tem que desempenhar uma funo, entre outras, de

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    lcito no condicionar a tipicidade da conduta, a conduta por ele amparada ter realizado todos os elementos tpicos, isto , ter satisfeito plenamente todos os elementos que fundamentam o ilcito penal ambiental. Nesse caso, a referncia ao ato administrativo no cofundamentar o injusto penal ambiental. Porm, o ato administrativo lcito, ao conter uma norma permissiva, poder funcionar como uma causa de justificao, excluindo a ilicitude da referida conduta tpica. Para tanto, dever neutralizar o injusto penal especfico.

    2. Os significados dogmticos da acessoriedade administrativa nos

    delitos ambientais

    Os comandos normativos orientados tutela do ambiente como bem jurdico portador de substantividade prpria encerram mandados e proibies de condutas que se realizam em uma ordem social dinmica, na qual o desenvolvimento de determinadas atividades socialmente teis e necessrias pode ensejar situaes de risco. Ou seja, por um lado, o legislador deve considerar que o exerccio dessas atividades implica sempre em uso dos recursos naturais e que, precisamente por isso, ser indispensvel descrever com preciso, quando da configurao dos tipos penais ambientais, quais atuaes perturbam de modo inadmissvel o regular funcionamento da ordem social. Por outro lado, os indivduos que realizam tais atividades como pessoas fsicas ou no mbito de uma pessoa jurdica podero fazer uso dos recursos ambientais com observncia dessas limitaes normativas previamente estipuladas, que visam, precisamente, a circunscrever as situaes de risco ou de leso ao bem jurdico ao estritamente necessrio. Ao lado das normas de determinao que probem ou ordenam a realizao de determinadas aes com o objetivo de tutelar determinados bens jurdicos, existem tambm preceitos permissivos que autorizam a realizao de atividades perigosas que lesam ou expem a perigo de leso aqueles bens. As condutas inicialmente autorizadas que ultrapassam o mbito do permitido tornam-se, porm, ilcitas. De conseguinte, embora uma conduta amparada por uma autorizao, permisso ou licena conquiste o status de um direito, preciso advertir que, no exerccio desse direito, as leses ou os perigos que excedam o que regularmente se espera daquela atuao no estaro abarcados pelo comando permissivo.

    No caso de condutas potencialmente lesivas ao ambiente, nas quais no se

    motivar o sujeito a certificar-se acerca da concorrncia da situao objetiva em que o ordenamento jurdico permite ou autoriza a realizao do tipo (GraCia Martn, Luis. Op. cit., p. 327).

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    constata um reenvio normativo no tipo penal, tem-se que o exerccio de algumas atividades pode, excepcionalmente, acarretar perigos ou leses que se ajustam, geralmente, aos comandos de normas de determinao. Tais consequncias podem, todavia, ser permitidas, com carter igualmente excepcional e dentro da mais estrita necessidade. Aqui ser necessrio que, em cada caso, quem realize a ao pondere as circunstncias presentes em um dado momento e avalie a procedncia de cada atuao, abstendo-se de agir caso o resultado da ponderao a desaconselhe. E isso porque a conduta pode acarretar um perigo ou uma leso a bens jurdicos que geralmente sero contrrios ordem jurdica ou seja, contrrios a uma norma de determinao e que, apenas de modo excepcional, encontram-se justificados.8 As condutas contrrias s normas de determinao so aquelas adequadas a uma hiptese ftica tpica, isto , so aquelas que se ajustam a um tipo penal. So, portanto, tpicas.

    Entretanto, quando se analisa o reenvio tpico normativa administrativa ou a um ato administrativo individual, possvel constatar, no mbito do tipo penal, uma referncia expressa a um elemento normativo que implica necessariamente em uma valorao. Essa valorao realizada na esfera do prprio tipo penal diz respeito, porm, a determinadas circunstncias que, quando presentes, demonstram ser a conduta realizada socialmente adequada.

    A seguir, essas duas situaes sero perfunctoriamente analisadas. A exposio se inicia tratando do reenvio normativo tpico como hiptese de adequao social da conduta.

    2.1. A acessoriedade administrativa como adequao social

    O mais importante componente normativo do sistema finalista est representado pela adequao social.9 As condutas humanas s ingressaro no mbito do tipo penal quando socialmente inadequadas, isto , se valoradas socialmente como contrrias s concepes tico-sociais que inspiram uma determinada sociedade em um dado momento histrico.10

    Quando o legislador penal opta pela acessoriedade administrativa de ato ou de Direito nos tipos penais, valora, com carter geral, uma srie de

    8 Cf. GraCia Martn, Luis. Op. cit., p. 267.

    9 Prado, Luiz Regis; Carvalho, rika Mendes de. Adequao social e risco permitido: aspectos conceituais e delimitativos. Revista dos Tribunais, So Paulo, 2006, v. 844, p. 435 e ss.

    10 Vide Prado, Luiz Regis; Carvalho, rika Mendes de. Teorias da imputao objetiva do resultado. Uma aproximao crtica a seus fundamentos. 2. ed. So Paulo: RT, 2006, p. 193 e ss.

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    circunstncias que indicam a utilidade da conduta realizada em consonncia com a normativa administrativa ou amparada por uma autorizao, permisso ou licena. Tais condutas potencialmente lesivas aos recursos naturais so, portanto, toleradas, porque socialmente teis. Nesse primeiro momento, cabe ao legislador efetuar uma ponderao dos diversos interesses em jogo e, se for o caso, reconhecer, com carter geral, a utilidade social da conduta. Assumindo como premissa que o Direito Penal no pode proibir a realizao de todas as condutas que importem em um perigo de leso dos bens jurdicos, sob pena de completa paralisao da vida social,11 reconhece-se que o sistema de proteo dos bens jurdicos dinmico e funcional.12 Os bens jurdicos encontram-se continuamente expostos a situaes de risco, as quais so suportadas quando inerentes ao regular funcionamento da vida em sociedade.

    Desse modo, a dinmica das relaes vitais pode ensejar uma exposio a perigo do bem jurdico ambiente ou, inclusive, sua efetiva leso que se revela necessria para o desenvolvimento social. Quando assim for, tais condutas sero consideradas adequadas socialmente. A figura da adequao social tem como principal caracterstica a necessidade da afetao de um bem jurdico, no sentido de que o legislador no considera, com carter geral, como tipicamente relevante uma ao que pretende alcanar uma utilidade social e para a qual absolutamente necessria a afetao de um bem jurdico conforme o ordenado funcionamento da vida social.13 Em tais hipteses, no existe desvalor da ao e, portanto, apenas uma aparente leso ao bem jurdico.

    Assim, quando o legislador descreve na hiptese ftica a conduta de cortar rvores em floresta considerada de preservao permanente, sem permisso da autoridade competente (art. 39, Lei 9.605/98), admite, com a introduo no tipo do elemento que indica expressamente a relao de acessoriedade de ato administrativo individual, que a afetao do objeto material pode, excepcionalmente, ser valorada como adequada ao normal funcionamento da vida social. E o ser quando amparada pela permisso outorgada pela autoridade competente. Nas situaes de adequao social, o risco ou afetao do objeto material no configuram um resultado tpico. Logo, ainda que abarcado pela vontade do sujeito, no h dolo, se entendido este como conscincia e vontade de realizao dos elementos objetivos do tipo.

    Quando h o expresso reconhecimento da acessoriedade administrativa 11 Cf. rueda Martn, Mara ngeles. La teora de la imputacin objetiva del resultado en el delito doloso de accin (Una investigacin, a la vez, sobre los lmites ontolgicos de las valoraciones jurdico-penales en el mbito de lo injusto). Barcelona: Bosch, 2001, p. 245.

    12 Cf. rueda Martn, Mara ngeles. Op. cit., p. 248.

    13 Idem, p. 250-251.

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    no mbito do tipo, o legislador traslada para esse momento a ponderao dos interesses em conflito. Permite, assim, que a atipicidade da conduta seja condicionada pela adequao social ante a presena de um ato administrativo autorizante, por exemplo. Esse elemento normativo no faz referncia presena de uma possvel causa de justificao, mas sim remisso presena de uma ponderao de interesses prpria da adequao social no mbito do tipo. O substrato material que permite aferir o valor e determinar a utilidade social da conduta trasladado para a instncia administrativa. Essa valorao positiva, extrada da adequao da conduta normativa administrativa geral ou individual, acarretar sua atipicidade.

    No exemplo dado, no h uma proteo penal absoluta dos ecossistemas florestais enquanto elementos do bem jurdico ambiente, dado que se permite que os rgos ambientais competentes relativizem essa tutela. Nesse sentido, a permisso outorgada pelo rgo ambiental competente e responsvel pela valorao concreta dos bens jurdicos em conflito afasta a tipicidade da conduta e indica que esta, quando amparada pelo referido ato administrativo, no enseja qualquer leso ao bem jurdico. A afetao ao ambiente no ser penalmente desvalorada, porque estimada como socialmente adequada pela instncia administrativa.

    A proteo jurdico-penal conferida ao bem jurdico ambiente no , portanto, absoluta. Condutas que podem ensejar uma situao de risco incolumidade ambiental, quando realizadas de determinado modo, so consideradas socialmente valiosas. Porm, uma conduta orientada leso ou exposio a perigo do ambiente no pode ser socialmente adequada. O importante a determinao do sentido social da ao. E uma ao socialmente adequada carece de sentido social tpico. Na esfera dos delitos ambientais que recorrem acessoriedade de ato administrativo, por exemplo, o fato de que a conduta se encontra amparada por este indica que seu sentido no vai dirigido realizao de uma leso ou exposio a perigo do ambiente como bem jurdico. Posto que a execuo de algumas condutas sobretudo aquelas vinculadas explorao econmica, industrial ou energtica acarreta, necessariamente, alguma forma de afetao dos recursos naturais, preciso realizar uma ponderao dos interesses em confronto. Por um lado, o interesse no desenvolvimento de atividades socialmente teis do ponto de vista econmico, tecnolgico ou cientfico, por exemplo e, de outro, o interesse na conservao dos recursos naturais. O legislador, impulsionado pela ideia de desenvolvimento sustentvel, opta por condicionar a realizao plena do injusto penal especfico falta do correspondente ato administrativo. A outorga deste pela autoridade competente

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    demonstra que o risco que a atividade enseja integridade dos recursos naturais deve ser suportado, em razo da prioridade conferida realizao de um fim socialmente valioso. O recurso acessoriedade de ato administrativo faz-se necessrio porque to somente os rgos administrativos encarregados da proteo ambiental podem sopesar corretamente os riscos e os benefcios da atividade em questo e, se for o caso, inclinar-se pela adequao social da possvel afetao ao bem jurdico tutelado. Essa ponderao expressamente includa pelo legislador no prprio tipo penal, ao introduzir, como elemento normativo, o reenvio ao ato administrativo individual. A ausncia deste ou sua ilicitude, porm, indicaro que a conduta no foi orientada por um fim socialmente valioso. Logo, persistir o desvalor da ao.

    Assim, por exemplo, tem-se que o art. 44 da Lei 9.605/98 tipifica a extrao de pedra, areia, cal ou qualquer outra espcie de mineral de florestas de domnio pblico ou consideradas de preservao permanente, sem prvia autorizao. No mesmo sentido, o art. 55 tipifica a execuo de pesquisa, lavra ou extrao de recursos minerais sem a competente autorizao, permisso, concesso ou licena, ou em desacordo com a obtida. So delitos de perigo abstrato, nos quais o tipo penal incorpora, como elemento normativo, o reenvio ao ato administrativo. Essa relao de acessoriedade administrativa indica que o legislador, ao elaborar a hiptese de fato, entendeu como oportuna e necessria uma valorao do sentido social da conduta feita pelos rgos ambientais competentes. Quando estes considerarem a extrao mineral (no caso do art. 44) ou a execuo de pesquisa, lavra ou extrao de recursos minerais (art. 55) como socialmente adequadas e teis, a realizao das respectivas condutas no ser penalmente desvalorada, pois o contedo da vontade do sujeito o seu sentido social no se dirigir exposio do bem jurdico a perigo. Falta o desvalor da ao, porque a finalidade do sujeito no se dirige realizao dos elementos objetivos do tipo. Ademais, a observncia do cuidado objetivo devido na realizao da conduta denota ser esta socialmente adequada por sua utilidade social.

    Em sntese: quando o legislador penal introduz no tipo objetivo a relao de acessoriedade de ato administrativo ou de Direito Administrativo, respectivamente, nos delitos de perigo abstrato e de leso ou perigo concreto, permite-se que o elemento normativo em questo expresse a valorao (concreta ou abstrata) feita pela Administrao Ambiental. E essa valorao indica a adequao social da conduta, o que enseja a excluso da tipicidade. A afetao do ambiente inerente ao exerccio da conduta que constitui o ncleo do tipo. Como o sentido social da referida conduta positivamente valorado j que socialmente til e, alm disso, observa as pautas concretamente traadas pelos rgos

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    ambientais responsveis por sua valorao nos casos de acessoriedade de ato administrativo ou pela normativa ambiental extrapenal nas hipteses de acessoriedade de Direito Administrativo no h que se falar em desvalor da ao. E sem desvalor da ao, no h desvalor do resultado.

    Pois bem, o legislador penal pode, porm, configurar o delito ambiental como um delito de leso ou de perigo concreto. E, ainda assim, recorrer acessoriedade administrativa no mbito do tipo. Quando assim for, aconselhvel conforme j destacado que adote o modelo da acessoriedade de Direito Administrativo. O reenvio normativa administrativa de carter ambiental como elemento normativo do tipo indicaria a necessidade de valorar o sentido social da conduta empreendida pelo sujeito. Se esta foi orientada por um fim socialmente valorado, tem-se que no se orienta produo da leso ou do perigo concreto ao ambiente. A conscincia e a vontade do sujeito pautam-se pela observncia da normativa administrativa protetora do meio ambiente. Noutro dizer, essa finalidade era precisamente aquela valorada positivamente pelo legislador no momento de elaborar o tipo penal de leso ou de perigo concreto, a saber, seguir os ditames da normativa ambiental e pautar-se pelas limitaes impostas por esta. Logo, o resultado de leso efetivamente produzido no um resultado tpico de leso. O comprometimento da integridade ambiental, nesses casos, inerente ou consubstancial atividade positivamente valorada como socialmente adequada. A realizao de um resultado prejudicial no juridicamente desvalorada, pois se ajusta ao disposto na normativa ambiental. Permite-se, assim, que a ponderao abstrata feita pela legislao administrativa exclua o sentido social tpico da conduta do agente (desvalor da ao) e, consequentemente, tambm o desvalor do resultado.

    o que se constata, por exemplo, no art. 38 da Lei 9.605/98, quando o legislador tipifica a destruio ou o dano de floresta considerada de preservao permanente, mesmo que em formao, ou com infringncia das normas de proteo. Outrossim, quando tipifica a destruio ou o dano de vegetao primria ou secundria, em estgio avanado ou mdio de regenerao, do Bioma Mata Atlntica, com infringncia das normas de proteo. A acessoriedade de Direito Administrativo incorporada nos tipos penais de leso em apreo indica que, em razo da relao dialtica14 que deve existir entre desvalor da ao e desvalor do resultado, a ausncia de dolo ou culpa (desvalor da ao) conduz ausncia de desvalor do resultado. Na realidade, ainda que se possa constatar uma previsvel afetao do bem jurdico ambiente, esta consubstancial realizao da atividade. Assim, quando essa atividade admitida em virtude

    14 Expresso empregada por rueda Martn, Mara ngeles. Op. cit., p. 258, 275, 277, 278 e passim.

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    de uma ponderao de interesses fundamentada em sua utilidade social que tolera a afetao dos recursos ambientais como indissociveis da referida atuao, no cabe falar em um desvalor da ao.15 E sem desvalor da ao, no h desvalor do resultado.

    Cabe destacar, por oportuno, que, ao contrrio do que defende um setor minoritrio da doutrina, uma conduta amparada por um ato administrativo ilcito no pode ser havida como socialmente adequada. As aes socialmente adequadas encontram-se fora das normas de determinao, isto , no esto includas nos tipos de injusto. Tais aes jamais lesam ou expem a perigo de leso a ordem social, de modo que o indivduo que realiza uma ao socialmente adequada no precisa sopesar os riscos de sua atuao.16 Quem realiza uma conduta socialmente adequada no produz resultados passveis de valorao ou desvalorao jurdico-penal. Ao contrrio, uma conduta socialmente adequada contribui para um melhor funcionamento da ordem social e, caso seja necessria uma resposta jurdica, esta ser dada por alguma norma de valorao, que estabelea uma consequncia jurdica de compensao pelo menoscabo do bem jurdico.17

    Outro aspecto importante a ser analisado diz respeito leso de bens jurdicos individuais no consubstancial conduta que usa o ambiente de forma socialmente adequada. Para grande parte da doutrina, a conduta amparada por um ato administrativo lcito que enseja leso ou perigo concreto a bens jurdicos individuais seria penalmente relevante, posto que a Administrao Ambiental no pode efetuar uma ponderao que inclua tais bens jurdicos. Escapam, portanto, do mbito do que se convencionou denominar risco permitido, fixado pelo ato administrativo. Demais disso, os prprios rgos ambientais no teriam competncia para avaliar e ponderar eventuais leses ou perigos a bens individuais decorrentes de condutas potencialmente lesivas ao ambiente. Logo, tais leses ou perigos a bens individuais podero ser imputados ao sujeito

    15 Ao tecer comentrios sobre a explorao de indstrias perigosas que produzem uma afetao na sade dos trabalhadores, Mara ngeles Rueda Martn assevera que nesses casos nos encontramos tambm com determinadas afetaes de bens jurdicos que so consubstanciais realizao dessa atividade e que so admitidas em virtude de uma ponderao de interesses, fundamentada na utilidade social da programao dessa atividade, de modo que podemos afirmar que concorrem as notas caractersticas da adequao social. E continua: A adequao social se projeta sobre comportamentos que realiza um sujeito com conscincia e vontade de afetar determinados bens jurdicos, mas em virtude de uma ponderao de interesses na que so previstas tais afetaes como consubstanciais atividade e iniludveis, estas no podem ser constitutivas do resultado tpico, no podem fundamentar um desvalor penal do resultado, de forma que a utilidade do conceito de adequao social ser a de excluir do mbito do tipo hipteses formalmente includas na tipicidade (op. cit., p. 260).

    16 Cf. GraCia Martn, Luis. Op. cit., p. 265. Mesmo porque, como aduz o autor, as aes socialmente adequadas pertencem constelao do modelo de aes dirigidas ab initio a um fim jurdico-penalmente irrelevante e para cuja consecuo no preciso em absoluto a realizao de nenhum fato penalmente relevante, isto , penalmente tpico (op. cit., p. 279).

    17 Idem, p. 266.

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    que os tenha produzido dolosa ou culposamente. Outro setor argumenta que, sendo lcito o ato administrativo, tais resultados, sempre que realizados dentro do mbito do risco permitido, seriam, a princpio, penalmente irrelevantes.

    Pois bem, sobre essa questo preciso fazer algumas pontuaes. Conforme acima exposto, quando o legislador introduz a acessoriedade administrativa de ato ou de Direito no mbito do tipo penal, traslada para esse momento a ponderao dos interesses em conflito. Permite, assim, que a atipicidade da conduta seja condicionada por sua adequao social ante a presena de um ato administrativo autorizante, por exemplo. Esse elemento normativo no faz referncia presena de uma possvel causa de justificao, mas sim presena de uma ponderao de interesses prpria da adequao social no mbito do tipo. O substrato material que permite aferir o valor e determinar a utilidade social da conduta trasladado para a instncia administrativa. Essa valorao positiva, extrada da adequao da conduta normativa administrativa geral ou individual, acarretar sua atipicidade.

    Acima foram analisados casos em que a acessoriedade de ato e a acessoriedade de Direito Administrativo em configuraes tpicas de perigo abstrato e de leso/perigo concreto, respectivamente indicam uma valorao positiva que recai sobre o sentido social da conduta. O uso dos recursos naturais de forma socialmente adequada pode, porm, atingir outros bens jurdicos alheios ponderao de interesses realizada na esfera administrativa. E esses bens jurdicos individuais (vida, integridade fsica) ou coletivos (sade pblica) so protegidos por normas penais especficas. A leso ou o perigo acarretado pela ao socialmente adequada a esses outros bens jurdicos distintos do ambiente so, porm, imprevisveis ex ante.

    Quando o exerccio da ao socialmente adequada provoca eventualmente resultados que no so inerentes ao regular funcionamento da vida social, esses resultados imprevisveis ex ante escapam ao mbito do dolo ou da culpa, e, consequentemente, tambm no se pode falar da existncia de um desvalor penal do resultado, visto que a leso ao bem jurdico no tem a relevncia penal necessria para configurar o resultado tpico.18 Em resumo: no a imprevisibilidade do resultado o que de fato fundamenta a excluso da responsabilidade penal nesses casos. O sujeito, nessas hipteses, no realizou uma conduta dolosa ou culposa. Logo, em virtude da relao de dependncia que existe entre desvalor da ao e desvalor do resultado, sem dolo ou culpa no existe desvalor do resultado. Ainda que o sujeito ativo pudesse representar mentalmente a possibilidade de produo do resultado em razo, por 18 Cf. Prado, Luiz Regis; Carvalho, rika Mendes de. Adequao social e risco permitido: aspectos conceituais e delimitativos cit., p. 437.

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    exemplo, de dados estatsticos essa representao no basta para definir o dolo. Demais disso, a presena de um ato administrativo ou a observncia da normativa administrativa orientada proteo do ambiente demonstra que no houve infrao do dever objetivo de cuidado. De conseguinte, a afetao de bens individuais ser considerada uma hiptese de risco permitido.

    Em sntese, aqui no se verifica uma conduta socialmente adequada. Enquanto nas hipteses anteriores a afetao do ambiente era prpria da conduta socialmente til, o mesmo no se pode dizer da afetao de bens individuais. Esta ltima no inerente conduta que usa os recursos ambientais de modo socialmente adequado. Quando no h comprometimento de bens individuais hiptese de adequao social o legislador valora positivamente a ao que pretende alcanar uma utilidade social e o uso dos recursos ambientais segundo as diretrizes de um desenvolvimento sustentvel. No contexto do risco permitido, porm, j no se pode falar em conduta socialmente adequada, porque a leso ao bem jurdico individual no uma consequncia regular, normal, do uso dos recursos ambientais. Tais hipteses so resolvidas pelo instituto do risco permitido: quando h comprometimento de bens individuais, este ser imprevisvel ex ante. No h desvalor do resultado e, antes de tudo, no h dolo ou culpa.19 Todavia, cumpre destacar, apenas a leso de bens individuais imprevisvel ex ante no constituir um desvalor penal do resultado.

    2.2. A acessoriedade administrativa como risco permitido

    De incio, faz-se necessrio esclarecer que o legislador ambiental pode introduzir, no mbito do tipo, um elemento normativo que permita a realizao de uma ponderao de interesses na esfera tpica. Quando assim for, a realizao de uma conduta amparada por um ato administrativo ou ajustada normativa ambiental ser excluda do mbito do tipo, j que a afetao do ambiente valorada como til do ponto de vista dos interesses sociais preponderantes. Sua finalidade positivamente valorada pelo Direito, em razo de uma ponderao de interesses concernentes sua utilidade social. O sentido social da conduta que observa as exigncias extrapenais que pautam sua exteriorizao impede a configurao do desvalor da ao (dolo/culpa) e, consequentemente, do desvalor do resultado. Aplica-se, assim, o critrio hermenutico da adequao social.

    No entanto, mesmo aps a conduta ultrapassar esse primeiro nvel de valorao

    19 Cf. rueda Martn, Mara ngeles. Op. cit., p. 274 e ss.

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    na ponderao de interesses, isto , quando afirmada sua tipicidade, pode ser que o ordenamento jurdico permita, excepcionalmente, sua realizao. Permite-se a realizao de condutas tpicas que ensejam um risco ao bem jurdico, que ser tolerado sempre que se circunscrever aos limites traados pelas normas de cuidado. Estas ltimas tm por finalidade afastar situaes de perigo ou de leso desnecessrias para o bem jurdico.

    Nos delitos dolosos, o risco permitido, consubstanciado na observncia do dever objetivo de cuidado, um princpio estrutural das causas de justificao. Permite a realizao de um comportamento tpico necessrio, ou seja, autoriza a realizao de condutas valoradas positivamente do ponto de vista social, ainda que orientadas leso ou ao perigo de leso de bens jurdicos, desde que obedecidos os limites postos pela causa de justificao. Se o sujeito infringe a norma de cuidado, poder responder pela criao de um risco juridicamente desaprovado, a ttulo de dolo ou de culpa.

    Embora o sujeito que realize a ao proibida ou que omita a ao ordenada contrarie o comando da norma de determinao e, por conseguinte, realize uma conduta tpica, adequada hiptese ftica pode ser que no exista, para o destinatrio concreto da norma de determinao, o dever de agir ou de abster-se. As causas de justificao, derivadas de normas permissivas, impedem a concretizao da norma de determinao em um dever concreto de agir ou de abster-se. Mas, preciso ressaltar, as causas de justificao sempre pressupem uma conduta tpica, ou seja, ajustada a uma hiptese ftica preexistente.20 Logo, no sentido da teoria das normas de Kaufmann aqui adotada uma conduta proibida in abstracto (tpica) pode tambm s-lo in concreto (antijurdica), quando no satisfizer os requisitos do comando permissivo; poder, porm, apesar de proibida in abstracto (tpica), ser permitida in concreto (lcita), desde que ajustada a um preceito permissivo.21 As normas permissivas, que se concretizam nas causas de justificao, so, portanto, independentes das normas de determinao, das quais so extrados os tipos de injusto.

    Alm de independentes dos tipos de injusto, as causas de justificao tm por objetivo no apenas justificar uma conduta proibida ou ordenada, mas atingir fins mais amplos,22 como, por exemplo, fomentar o desenvolvimento regular da prpria ordem social. Nesse sentido, quando se reconhece a atuao no exerccio

    20 Nesse sentido, KaufMann, Armin. Teora de las normas penales. Fundamentos de la dogmtica penal moderna. Trad. Enrique Bacigalupo e Ernesto Garzn Valds. Buenos Aires: Depalma, 1977, p. 341-342; Welzel. Op. cit., p. 76 e ss. e 107; Cerezo Mir. Op. cit., Parte General, t. II, p. 189-190; GraCia Martn, Luis. Op. cit., p. 268.

    21 Cf. KaufMann. Op. cit., p. 332 e ss.

    22 Cf. JesCheCK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal. Parte General. 4. ed. Trad. Jos Luis Manzanares Samaniego. Granada: Comares, 1993, p. 291.

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    regular de direito ou no estrito cumprimento de dever legal, permite-se a realizao de uma conduta tpica com o fim de impulsionar ou fomentar, por exemplo, o regular funcionamento da ordem social, o desenvolvimento econmico, cientfico e/ou tecnolgico, etc., em sntese, com o objetivo de alcanar metas socialmente valiosas. E precisamente em funo dos fins especficos perseguidos pelas causas de justificao, que existiro determinados requisitos (objetivos e subjetivos) que devem ser satisfeitos para o reconhecimento da situao de justificao. Desse modo, embora exista uma ao concreta perigosa e/ou que pode ensejar a produo de um resultado de leso ou de perigo de leso ao bem jurdico, descrito por um tipo penal, ser possvel que a conduta concretamente realizada seja valorada como necessria para a consecuo de um fim socialmente valioso. Se, aps detida ponderao, for conferida prioridade realizao da referida conduta, em detrimento da possvel produo de um resultado de leso ou de perigo ou mesmo do perigo a ela inerente, tal conduta, embora tpica, ser considerada lcita. As condutas tpicas realizadas em um contexto de justificao devem, porm, obedecer a determinados limites contidos em normas de determinao especficas a fim de evitar a produo de resultados de leso ou de perigo alheios aos fins perseguidos pela causa de justificao. Esses limites traam o dever de cuidado objetivo a ser observado para afastar a ocorrncia de resultados indesejados no exerccio de uma conduta inicialmente justificada.23 Noutro dizer, essas normas de determinao especficas circunscrevem o mbito do risco permitido no exerccio de uma conduta tpica e lcita. Uma conduta permitida ou lcita aquela que se realiza nos estritos limites impostos pelas normas de determinao especficas que fixam o cuidado objetivo devido ou, em outras palavras, aquela conduta que no ultrapassa o risco permitido.

    Entretanto, se o sujeito que realiza a conduta tpica em um contexto de justificao no ajusta sua atuao aos exatos limites do risco permitido ou da norma de determinao especfica que prescreve o cuidado objetivo devido criando um perigo ou acarretando uma leso ao bem jurdico protegido (ou a outro bem jurdico) totalmente desnecessrios para atingir o fim perseguido pela causa de justificao que, por sua vez, j expressa uma ponderao de interesses anterior ento esse resultado de leso ou de perigo de leso adicional ser objeto de um juzo de desvalor e ser passvel de imputao ao sujeito da ao ou omisso tpica. Tais resultados devero, porm, configurar tipos de injusto diferentes daqueles com os quais o legislador j contava quando da ponderao de interesses prvia situao de justificao analisada. E justamente por serem

    23 Segundo GraCia Martn, os limites impostos realizao das aes justificadas constituem o contedo de normas de determinao especficas, representado pelo cuidado objetivo que deve ser observado ao realizar uma ao justificada, e cujo objetivo evitar riscos e leses desnecessrios com relao ao fim da causa de justificao (op. cit., p. 275).

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    desnecessrios e excessivos, sero desvalorados juridicamente e permitiro a atribuio de um sentido social conduta tpica e antijurdica.

    Assim, por exemplo, no art. 33 da Lei 9.605/98, embora inexista referncia tpica acessoriedade administrativa, ser possvel que a emisso de efluentes ou carreamento de materiais que provoca o perecimento de espcimes da fauna aqutica existentes em rios, lagos, audes, lagoas, baas ou guas jurisdicionais brasileiras esteja amparada por um ato administrativo ou observe a normativa administrativa que a disciplina. Se a conduta dolosa que produz o resultado tpico de leso ao bem jurdico obedecer norma de cuidado que condiciona o reconhecimento de efeitos justificantes ao ato administrativo em questo, tem-se a excluso de sua ilicitude. Igualmente, se a conduta tpica do art. 54 do mesmo diploma, que consiste em causar poluio de qualquer natureza em nveis tais que resultem ou possam resultar em danos sade humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruio significativa da flora, estiver abarcada por uma causa de justificao como, por exemplo, o exerccio regular de direito a observncia dos estritos limites fixados pela norma de cuidado poder conduzir excluso da ilicitude da conduta. Contudo, na prtica, dificilmente a conduta que se ajusta ao disposto na norma de cuidado acarretar leso ou perigo de leso ao bem jurdico, uma vez que essas normas visam precisamente a afastar a supervenincia de tais resultados. Ultrapassados os limites impostos pela norma permissiva, responder o sujeito pelo excesso, a ttulo de dolo ou culpa.

    Em sntese, se uma causa de justificao visa realizao de um fim especfico socialmente valioso, uma conduta realizada no contexto objetivo de justificao s ser valorada como lcita caso se desenvolva no mbito do risco permitido. Se a referida conduta ultrapassa a esfera do risco permitido, criando riscos adicionais e desnecessrios, tais resultados no estaro englobados pela causa de justificao. Para saber se uma conduta se ajusta ao fim especfico perseguido pela causa de justificao, faz-se indispensvel aferir a capacidade concreta de ao do sujeito.24 Inicialmente, ser preciso que o sujeito oriente sua vontade no sentido de realizao do fim especfico da causa de justificao, ou seja, que busque a produo do resultado valioso positivamente valorado pela norma permissiva. Se falta esse elemento subjetivo isto , se o sujeito no conhece os elementos objetivos da causa de justificao e no dirige sua vontade no sentido de realizar o resultado valioso no ser possvel afirmar que o sujeito realiza uma conduta justificada. Ainda que o fim da causa de justificao se verifique, este no poder ser valorado positivamente pelo ordenamento

    24 Cf. GraCia Martn, Luis. Op. cit., p. 286.

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    jurdico.25 Logo, oportuno destacar a pertinncia da tese que prope a limitao dos efeitos justificantes dos atos administrativos anulveis em razo da ausncia do elemento subjetivo que deve informar as causas de excluso da ilicitude.

    Resta ainda analisar se realmente ser possvel reconhecer efeitos justificantes a um ato administrativo anulvel como regra geral. Assim, certas situaes apontadas pela doutrina como hipteses de abuso de direito como, por exemplo, os casos de fraude, de ameaa ou de coao na obteno da autorizao, licena ou permisso, ou de conhecimento da ilicitude do ato administrativo por parte de seu destinatrio so, na verdade, situaes nas quais no se constata o elemento subjetivo que deve informar a causa de justificao do exerccio regular de um direito. De conseguinte, no haver propriamente abuso de direito ou excesso no mbito de uma causa de justificao: simplesmente, no haver qualquer justificao possvel. Quando o ato administrativo atua na esfera da ilicitude isto , quando o legislador no o introduz entre os elementos normativos do tipo exige-se por parte do destinatrio conscincia e vontade de atuar no sentido da causa de justificao, ciente dos limites do risco permitido, a fim de se resguardar a incolumidade dos recursos naturais. Inexistiro conscincia e vontade de obedecer esfera do risco permitido quando a autorizao ambiental, por exemplo, for obtida fraudulentamente, ou mediante coao, ameaa ou suborno, ou, ainda, quando o prprio sujeito conhecer a ilicitude do ato administrativo, mesmo que no a tenha provocado. Em tais hipteses, a vontade do sujeito no se coaduna com os fins da norma permissiva, visto que aquele se aproveita da autorizao ilcita para realizar conduta que reconhecidamente expe a uma situao de risco adicional o bem jurdico protegido.

    Outro aspecto importante a ser destacado consiste precisamente na situao inversa: o destinatrio do ato administrativo atua com conscincia e vontade de respeitar os exatos limites do risco permitido com vistas a obter o resultado valioso da causa de justificao, porm, no so constatados concretamente os pressupostos fticos (a situao de fato) da causa de justificao. No caso do exerccio regular de um direito, faltaria precisamente a situao tpica da causa de justificao. As hipteses de inexistncia do ato administrativo ou de nulidade absoluta poderiam figurar como exemplos da falta de pressuposto ftico da causa de justificao em apreo. Nesses casos, a produo de um resultado de leso ou de perigo de leso ao ambiente ser juridicamente desvalorada de modo geral e no ser possvel neutralizar ou compensar esse desvalor do resultado. Segundo a teoria limitada da culpabilidade, adotada pelo ordenamento 25 Como aduz Cerezo Mir, o Direito probe a realizao de aes perigosas dirigidas pela vontade do sujeito produo da leso de um bem jurdico ou que no correspondam ao cuidado objetivamente devido e no pode valorar positivamente a produo de resultados que estejam amparados apenas de um modo objetivo e casual por uma causa de justificao (op. cit., Parte General, t. II, p. 203).

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    jurdico-penal brasileiro, em tais situaes, haver erro de tipo permissivo, que, se inevitvel, conduzir excluso do dolo e da culpa e, se evitvel, permitir to somente a punio a ttulo de culpa, se legalmente prevista. Ainda que equivocada a opo do legislador brasileiro,26 quando o sujeito erroneamente acreditar presentes os pressupostos objetivos de uma causa de justificao, haver a excluso do desvalor geral da ao do delito doloso.

    3. Apreciao crtica

    Do exposto, cabe deduzir que, em um primeiro nvel, a acessoriedade administrativa atua como expresso da adequao social da conduta realizada. O reenvio tpico ao ato administrativo ou ao Direito Administrativo permite que os rgos ambientais ou a normativa administrativa geral realizem a valorao externa do comportamento a fim de que a configurao da tipicidade expresse precisamente uma ponderao de interesses.

    Nesse primeiro nvel, o critrio hermenutico da adequao social apresenta natureza extrassistemtica e indica a realizao de uma ponderao de interesses na esfera dos prprios tipos de injusto. Assim, esse critrio hermenutico tem uma natureza extrassistemtica, porque efetivamente perm