RICARDO III
Dossier
Pedagógico
Para Shakespeare, a imagem do poder é a coroa. Ela é pesada. É possível agarrá-la com as próprias mãos, arrancá-la da cabeça do monarca moribundo e colocá-la sobre a própria cabeça. E fica-se a ser rei. Nesse momento, apenas. Mas é preciso aguardar que o rei expire, ou acelerar-lhe a morte. [...] Impõe-se-nos vagarosamente esta imagem da história, diversas vezes repetida por Shakespeare. A história é uma grande escadaria, pela qual sobe, ininterruptamente, um cortejo de reis. Cada degrau, cada passo para o alto é marcado de assassínio, de perjúrio, de traição. Cada degrau, cada passo para o cume torna mais próximo o trono ou consolida-o. [...] Entre o último degrau e o abismo não vai mais do que um passo. Mudam os soberanos. Mas a escadaria é sempre a mesma. E os bons, os perversos, os audaciosos, os cobardes, os vis e os nobres, os ingénuos e os cínicos – todos continuam a subi-la.
Jan Kott, Shakespeare Nosso Contemporâneo, 1964
Índice
1 Sinopse
2 Ficha artística
3 Nota biográfica de Tónan Quito
4 Ricardo, o grande encenador - Conversa com Tónan Quito
5 Fotografias de ensaio
6 Algumas notas sobre a peça, Rui Carvalho Homem
Contexto histórico
A figura de Ricardo
Solilóquios e vilões
As mulheres
A voz do povo
A tradução
7 Visões em torno de Ricardo III - Ricardo, o cruel, o pérfido, o astuto, o deformado, o talentoso, o manipulador
8 Alguns excertos essenciais de Ricardo III
Solilóquio de abertura: Ricardo diz quem é e ao que vem
Cumplicidade com o público: a vaidade de Ricardo
As pragas: o poder das palavras
Questões de consciência: a lei dos homens e a lei de Deus
Sabedoria popular: a ordem do mundo
Representar é dissimular
A vingança: um sem fim de mortes
Argumentos e juras: conversas com a ambição
A solidão e as mil línguas de Ricardo
9 Sobre teatro, tragédia e linguagem em Ricardo III
Tragédia: ação e destino
Solilóquio, metateatralidade
Linguagem, retórica e palavras
A figura do Vício
Vingança e culpa
10 Contexto histórico e árvores genealógicas das personagens de Ricardo III
A Guerra das Rosas
As personagens principais de Ricardo III: relações familiares e destino
11 Pistas de reflexão e trabalho
12 Informações e reservas - Escolas
13 Quem somos –Teatro Nacional D. Maria II
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Ricardo III De William Shakespeare
Encenação Tónan Quito
15 out – 1 nov qua, 19h, qui – sáb, 21h dom, 16h Sala Garret M/12
Ricardo ama Ricardo.
Dois anos passados sobre a descoberta dos ossos de Ricardo III, antigo rei de Inglaterra, sob o alcatrão de um parque de estacionamento da cidade de Leicester, é o momento perfeito para fazer desenterrar a peça homónima de William Shakespeare, datada de 1592, que relata a mais maquiavélica subida ao trono de que há memória.
Ocupado pelo débil Eduardo IV, que cedo perde a vida, o trono de Inglaterra estava longe de se destinar a Ricardo. Precediam-no, na linha de sucessão, o irmão mais velho, Duque de Clarence, e o jovem sobrinho Eduardo, Príncipe de Gales, cuja guarda lhe havia sido confiada. Porém, para chegar à coroa, Ricardo experimenta um caminho carregado de pérfidos esquemas, minando a corte inglesa de falsidades e conduzindo os seus opositores à morte.
Com direção artística de Tónan Quito, o espetáculo oscila, paradoxalmente, entre o desprezo e o
fascínio por este ardiloso ser. Ricardo III é o centro de si próprio, a explosão do eu: "Ricardo ama Ricardo, ou seja, eu sou eu”. E assim se vai seguindo, de morte em morte, de mentira em mentira.
Seremos todos Ricardo?
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Ficha artística
de William Shakespeare tradução Rui Carvalho Homem direção artística Tónan Quito versão cénica e interpretação António Fonseca, Márcia Breia, Miguel Loureiro, Miguel Moreira, Miguel Sobral
Curado, Paulo Pinto, Raquel Castro, Romeu Runa, Sofia Marques, Teresa Sobral, Tónan Quito
elenco juvenil Carolina Cabrita, Leonor Cabrita, Maria Abreu, Mariana Rala, Nuno Represas, Tiago Carvalho
interpretação musical ao vivo trompete - Gonçalo Marques, percussão - João Lopes Pereira (15-24 out), Joel Silva (28 out-1 nov)
cenografia F. Ribeiro figurinos José António Tenente desenho de luz Daniel Worm desenho de som Pedro Costa música original Gonçalo Marques, João Lopes Pereira assistência à criação Filipa Matta coordenação do elenco juvenil Luís Godinho direção de cena Isabel Inácio ponto João Coelho operação de luz Pedro Alves operação de som Pedro Costa maquinaria Rui Carvalheira auxiliar de camarim Paula Miranda reforço de guarda-roupa Manuela Pires, Maria José Baptista produção executiva TNDM II Manuela Sá Pereira direção de produção Stage One produção HomemBala coprodução TNDM II, Centro Cultural Vila Flor, Stage One residência artística Espaço Alkantara apoios Câmara Municipal de Lisboa, CETAPS, FCT, Servilusa, Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, Htechnic, Murganheira, Quinta da Murta. agradecimentos Patrícia Costa, Maria Ana Freitas, Nuno Cerqueira, Cláudia Galhós, Magda Bizarro,
Tiago Guedes, Isabel Abreu, Eduardo Cabrita, Verónica Filipe, Teresa da Costa, Margarida Pinto Correia, Luís Represas, João Rala, Maria Sequeira Mendes, Mário Miranda, Joaquim Silva, Joaquim Marques, Rui Horta, Rodrigo Abecasis, Ana Bragança, João Tavares, Carlos Quirin, Pedro Barros, Hugo Rodrigues, Ângela Rocha, José Grossinho, António Moura Pinheiro, Salomé Quito e Hugo Rodrigues.
nota aos figurinos O espetáculo integra trajes pertencentes ao espólio do TNDM II, gentilmente cedidos
por António Moura Pinheiro (Auto de Santo António, 1983) e por António Alfredo (O Judeu, 1981). M/12 duração 2h30
3
Tónan Quito Nota biográfica
Licenciado em Formação de atores/encenadores pela Escola Superior de Teatro e Cinema, começou o
seu percurso como ator no 4º Período – O do Prazer, dirigido por António Fonseca. Trabalhou com Luís
Miguel Cintra, António Pires, Luís Assis, Joaquim Horta, Christine Laurent, Lúcia Sigalho, Paula Diogo,
Nuno Cardoso, Carlos J. Pessoa, Nuno M Cardoso, António Catalano, João Mota, Tiago Rodrigues, Jorge
Andrade, Patrícia Portela, Fernando Gomes, Pedro Gil, João Garcia Miguel, Marina Nabais e Giacomo
Scalisi. Participou ainda em diversas criações coletivas. Foi cofundador da Truta. Dirigiu Ivanov de
Anton Tchekov, Histórias do Bosque de Viena de Ödön von Horváth, Anatol de Arthur Schnitzler e Um
Inimigo do Povo de Henrik Ibsen. Cocriou com Tiago Rodrigues Entrelinhas, do mesmo e com Pedro Gil
Fausta, de Patrícia Portela. No cinema teve pequenas participações em filmes de Miguel Angél Vivas,
Inês Oliveira, Jorge Silva Melo, Simão Cayatte e Jacinto Lucas Pires; assim como em televisão,
destacando o trabalho com Filipe Melo, João Leitão e Tiago Guedes. Como formador deu 12 ateliês de
Drama e Movimento, workshops de interpretação e criação em Bergen no âmbito do projeto Kunstikit
pelo Wrap Center. Participou em workshops de criação/ interpretação com Faustin Liniekula (no
âmbito do projeto Estúdios do Mundo Perfeito), João Canijo (no âmbito do mesmo projeto) e Jacinto
Lucas Pires (Sagrada família com encenação de Catarina Requeijo).
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Ricardo, o grande encenador
CONVERSA COM TÓNAN QUITO
Trabalho de grupo, Ricardo III e Ricardos, a cenografia e a cena, a ação e as palavras, o intervalo e o ritmo, a mentira e o teatro, a versão punk, o poder e a natureza
Hoje quando chegámos ao ensaio vocês
estavam a fazer o aquecimento: primeiro foi o
Romeu Runa a conduzir, depois o Miguel
Loureiro. Fazem isso de toda a gente propor
coisas, rodando?
Sim, cada dia um de nós dá o aquecimento.
No fundo é ensinar alguma coisa aos outros. É
uma boa maneira de começar o dia, entra toda
a gente num foco e numa concentração
conjunta. Esta semana não fizemos, mas
normalmente cada um propõe um jogo que
tenha a ver com a peça ou que sirva para
estarmos todos juntos a fazer qualquer coisa.
Muitas das marcações até vieram desses jogos,
desse estar junto. É giro trabalhar as cenas a
partir de coisas mais lúdicas, até porque toda a
gente fala das cenas uns dos outros... É um
ambiente que eu também promovo e que me
interessa. É essa a proposta, o espetáculo há de
ser aquilo que toda a gente quiser que seja.
Aqui como somos muitos e muito diferentes é
difícil chegarmos a um consenso. Às vezes a
democracia é complicada… Quando é preciso
afunilar tens que dirigir, senão passamos os
dias a discutir, e este grupo discute muito. É
um grupo muito empenhado, que quer
realmente fazer um bom espetáculo. Um grupo
muito generoso. As pessoas que tu juntas
fazem com que a maneira de trabalhar seja
diferente. Não sei bem o que é que aprendi,
como é óbvio, ainda estou no centro do
furacão, mas é muito estimulante ir para casa
com tudo o que acontece.
Como é que te veio a ideia de escolher um
bailarino, o Romeu, que tem uma presença
fortíssima?
Foi ele que quis. Eu convidei o Miguel
Moreira, e ele telefonou-me no dia seguinte a
dizer: olha, contei ao Romeu, e o Romeu
também quer entrar. Eu fiquei ali dois ou três
dias a pensar se o havia de chamar ou não… E
depois pensei: se ele quer experimentar, eu
também quero experimentar. E de repente
surgiu a ideia de o Romeu ser a unidade que
junta esta gente toda, que agarra o grupo.
Quando convidei as pessoas já lhes tinha
dito a ideia de sermos todos Ricardo. Eu
precisava de atores muito fortes, afirmativos,
solistas, que rasgassem, e todos com estéticas
diferentes. Uma coisa que eu disse foi que cada
um tem de trazer aquilo que é para o
espetáculo. Porque isto vive é da mistura. Está
ali a Márcia Breia com o Romeu Runa e vamos
todos ser iguais? Não. A peça é imperfeita
mesmo na escrita, há cenas enormes, cenas
muito curtas, personagens que não servem
para nada… É entroncada, é estranha.
Quisemos também explorar essa estranheza.
Portanto essa proposta de dividir a
personagem do Ricardo vinha desde o início?
Sim, foi a primeira ideia que eu tive.
Quando li pela primeira vez o texto foi quando
fiz o Arturo Ui com a Truta, na Culturgest. O
Arturo Ui é uma reescrita que o Brecht faz do
Ricardo III, então fui ler o original, e na altura
disse: isto é fantástico, ’bora lá fazer isto.
Depois li uma segunda vez aí há cinco anos e
pensei que o que era fixe era se fossem vários a
fazer de Ricardo, se calhar muito levado pelo
último discurso dele.
O Ricardo é o vilão perfeito – fala connosco,
seduz-nos, envolve-nos, faz, mata, acontece.
Morre no fim. Mas fazendo só centrado nele
ficava muito pouco sobre a sociedade, sobre o
que gravita à volta destas pessoas.
Mas a própria peça é muito centrada no
Ricardo.
É, mas o espalhar os Ricardos por todo o
elenco – as mulheres também fazem lá mais
para a frente, quando ele começa a passar-se
mais, quando percebe que está mesmo quase –
era para poderes trabalhar a tua própria
personagem com essa energia, com essa
potência de maldade e ambição do Ricardo.
O Ricardo III é um ser que se encontra. Ele
é muito virtuoso, por isso é que gostamos dele,
“eh, matou, eh conquistou”, é muito sacana
connosco, mas seduz-nos ao mesmo tempo. E
isso é porque ele é um virtuoso e sabe o talento
que tem, que é o poder da retórica, da
manipulação. É isso que nos fascina nestes
gajos que são ditadores e homens muito fortes,
grandes estrategas, manipuladores, é porque
efetivamente sabem o dom que têm. Esta
questão do homem que nasce e sabe qual é o
dom que tem, isso é fantástico, é encantador.
Quantos de nós é que passamos pela vida e não
descobrimos o talento que a natureza nos deu?
E de certeza que todos temos um.
O Agostinho da Silva fala disso, da
necessidade que cada um tem de se cumprir.
Pois. E ele cumpre-se. Quando vai para a
batalha e diz “o meu reino por um cavalo…”
“Por favor, deixem-me estar aqui, em cima de
um cavalo eu posso continuar a matar.”
Naquela altura estar a pé e não a cavalo era
estar mais suscetível.
Já nos tinhas falado da descoberta das
ossadas do Ricardo III, então o gesto de cavar
na peça remeteu-nos para essa imagem. Ao
mesmo tempo, naquele cenário não há nada
para descobrir, está tudo à superfície. E
quando se arrastam os corpos, ficam marcas
do que está a acontecer, mas depois essas
marcas são apagadas.
A primeira imagem que eu tive para o
cenário foi um campo de terra, mesmo antes
da descoberta dos ossos. Sabia que não era
uma terra de deserto, era uma terra-terra. É
um campo de batalha, é um cemitério. Depois
apareceram as escavações, e a primeira
cenografia era para fazer uma reprodução
exata do local onde os ossos foram
descobertos, que é um parque de
estacionamento em Leicester, mas todo
esburacado. Aquela imagem de valas, era
recriar aquilo. Uma coisa o mais realista
possível em cima disso. Não foi possível, era
terra que nunca mais acabava, e depois
chegámos a esta versão, que está num misto.
Vão ser cinco ou seis toneladas daquilo, agora
ainda só está uma.
E há um coveiro que é o Miguel, que traça
caminhos, que faz montes, que anuncia sempre
alguma morte. Os trajetos é pena apagarem-se,
o que devia acontecer era começarmos a ver os
caminhos dos corpos a serem arrastados e o
chão ir começando a ser limpo, como se aquela
arena se começasse a abrir por intervenção dos
corpos que vão sendo mortos. Até que
acabamos com um círculo quase perfeito.
Neste cenário as personagens estão sempre
presentes, não há fora de cena.
Não há fora de cena, mesmo as mortes vão
ser todas em cena, vai haver esse gesto da
morte. O que existe são vários planos de
trabalho: um plano em que podes descansar,
comer, beber, mudar de roupa, ir buscar os
adereços, que são as laterais; uma zona de
preparação, de stand-by, em que a qualquer
momento vais intervir; e depois a zona mais in,
que é onde a ação toda se passa.
É como se houvesse uma arena, que o
Romeu desenha quando começa a correr no
início. Ele desenha a área de jogo: “é aqui.” E
nós estamos todos à volta, a criar imagens ou a
trabalhar, e estamos sempre a dar foco, dentro
de cena, “agora não sou eu, mas a qualquer
momento posso entrar…”, Até porque as
personagens todas que entram, entram para
alterar a situação. Tens sempre o poder de
mudar a cena. “Ah, estão muito calminhos?
Então esperem aí, pumba.”
Há uma cena fantástica em que estão as
mulheres a conversar – “ah estás crescido, erva
daninha, não sei quê” –, e entra o mensageiro a
dizer, “senhora, os vossos irmãos vão ser
executados em Pomfret.” Ahhh! Tenho esta
função só de ir transformar a cena. Está a Ana
com o caixão e entra logo o gajo: “Alto!”
Entrou para estragar o funeral. A falar com a
Maria Sequeira Mendes, ela dizia que é o
primeiro punk da história. O primeiro que vai
contra a ordem estabelecida. E depois é giro
começarmos a analisar a peça, ele entra
sempre a dar pontapés nas coisas, a estragar a
festa. O rei está a fazer as pazes, ele entra,
alguém diz que só falta o Clarence, e ele, “Mas
estão a gozar? O Clarence morreu!” E fica todo
contente. A peça também é divertida, tem
imenso humor negro, mas há uma tensão
muito grande do princípio ao fim.
Há também sempre uma tensão entre as
palavras e as ações. Diz-se logo no início que
“quem tem palavras não tem obras”, mas ao
mesmo tempo essa é a grande arma do
Ricardo, são as palavras dele que fazem com
que tudo aconteça.
Sim, mas não é um exercício de oratória. A
questão maior é: como é que dás corpo a essas
palavras todas? Ainda por cima, como as cenas
são muito intensas, sobre morte, conspiração,
maldições, como é que tu aguentas a energia?
Então o texto tem de ser sempre posto em
ação. Como se eu pudesse mesmo alterar
alguma coisa em ti – acreditar que as palavras
são ação, e precisam de uma fisicalidade, de se
tornarem concretas.
Isso é muito jogado também com o ritmo e a
cadência que a própria escrita tem. Se fizeres
tudo a jogar com a artificialidade e com o ritmo
que o texto tem, mais facilmente consegues
suportar as cenas, mais do que se tentares falar
como se fala coloquialmente. Se jogares só com
a cadência, se calhar vais entender muito
melhor o que é o texto, ou a energia do texto.
Tu dizeres dez versos de uma assentada, ta-ra-
ra-ta-ra-ra-ta-ta-ta-ta, com a energia certa da
situação, é incrível. O fluxo, o poder que o
texto tem em chegar a outro. O tradutor, o Rui
Carvalho Homem, fez um trabalho de dez
sílabas, às vezes doze sílabas, o que faz com
que tenha essa cadência. Às vezes é mais
complicado de se fazer, há momentos em que é
mais duro. Mas tem essa coisa fantástica de
podermos galopar por ali fora, e aguenta-se.
Não há momentos de vazio na peça, a única
cena mais calma talvez seja a do escrivão…
Sim, há esses momentos quando se vem ao
público falar, em que a coisa pode acalmar.
Claro que todas as cenas têm de ter dinâmicas
diferentes, pode haver respirações e silêncios.
Mas esta peça não para muito, não. O
Hastings, é o único que se deixa mesmo
enganar, na análise que faz do Ricardo. “Não,
não, ele está a franzir o sobrolho porque está
triste.” “Não, não, o duque gosta de mim” – e
na cena seguinte… “cortem-lhe a cabeça.” Se
descansas, se te pões a jeito, a tua cabeça rola,
vais à vida. Tens de estar sempre numa tensão,
a ver donde é que elas vêm e a fazeres os teus
jogos. A peça começa e vai por ali fora, só
acaba no cavalo.
Como o Ricardo diz ao Buckingham: “tanto
tempo comigo, e agora para para respirar?”
Pois, não dá. Tenho pensado pôr um
intervalo na peça mas é muito difícil parar esta
catadupa que vai por aí fora. O grande risco do
intervalo é que se quebra o fluxo da ascensão
daquele homem, e daquelas mortes todas, e do
encontro com ele próprio, na satisfação que ele
tem com a guerra. A última cena é isso, ele
quando acorda assustado com os fantasmas
diz: “Ricardo ama Ricardo.” É na batalha que
ele se volta a encontrar outra vez. Ele quer ser
o modelo de toda a gente, e só sendo o rei é que
consegue isso. Ele quer ser um ser totalitário,
não quer ser rei só para ser rei, para mandar.
Não tem interesse nisso, nem qualquer projeto
político nem de governação. Ele quer chegar lá
só para ser modelo, e para continuar a haver
guerra.
E depois há os momentos em que o Ricardo
fica sozinho, que são os únicos momentos em
que ele é verdadeiro, em que diz o que
pretende fazer.
Se é verdadeiro, não sei. O que é giro é que
nunca sabes mesmo. Apesar de acharmos que
ele está a ser verdadeiro… É o que lhe está a
passar pela cabeça naquele momento, ele tem
ali aquelas pessoas, então quer que gostem
dele, ou que tenham pena dele, quer seduzir. É
muito torcido, e muito teatral. É uma
personagem de si mesmo, constrói-se.
Mas o que é interessante é que, quando
fazes o Ricardo, tens sempre de ser o mais
verdadeiro possível. Quando ele ama a Ana,
ama mesmo a Ana, e é mesmo só amor.
Quando fazes, tens mesmo de só fazer aquilo,
não podes estar a fazer isso e o comentário.
Porque depois o Romeu faz o resto, está
sempre a comentar.
O Ricardo está sempre a representar para os
outros. E o público sabe que eu estou a mentir,
mas as outras personagens não sabem, a elas
eu não posso mentir. Isso é que é muito giro, a
peça é mesmo sobre teatro.
Eles falam disso a certa altura, o Ricardo
pergunta ao Buckingham, “primo, sabes
mudar de cor?”, e ele “sim, sei imitar o
trágico”...
E há outra coisa que o Buckingham diz, “se
chegásseis mais tarde, o Lorde Hastings tinha
ficado com o vosso papel”. Há dois ou três
rabiscos desses meta-teatrais, e eram
propositados. A peça toda é meta-teatral,
sempre a falar com o público. Vamos lá ver o
espaço, a peça passa-se onde? A primeira
didascália é “Duque de Gloucester, só”. Ele está
a falar com quem? Com o público. Está a fazer
um discurso aonde? É no teatro! É sobre o
“fazer de”. “E agora vamos contar aqui uma
história, querem ver?” “Agora matei este, e
ainda vou fazer isto.” É muito contemporâneo,
pós-dramático.
A figura do Romeu é uma espécie de
sombra, e ele vai passando a corcunda — e o
tal dom — a todos. Mas entre as personagens
não há ninguém propriamente bom, exceto as
crianças que ainda não tiveram tempo… Mas
mesmo assim também elas têm lábia.
O Ricardo no final, quando acorda do
sonho, diz: “usei mil línguas e cada língua diz
uma coisa diferente, mas todas dizem que eu
sou culpado.” Eu passo a corcunda de pessoa a
pessoa, e usei vários atores para fazerem
bocados das cenas. Toda a gente quis estar ali à
volta do poder. Toda a gente queria estar na
lista, fazendo um paralelismo agora com as
eleições. E todos querem sobreviver. Toda a
gente naquela corte tem sempre a cabeça em
risco, a Guerra das Rosas está a dar os últimos
passos, as duas famílias muito periclitantes.
Há muito medo, e aquela gente toda aparece
nessa zona do “eu quero sobreviver, o que é
que eu vou ter de fazer?, para que lado é que
vou pender?” E o Ricardo aproveita-se disso,
começa a pôr uns contra os outros, a matar,
desaparece, aparece…
O facto de haver esta espécie de sombra que
de certa forma encena o próprio espetáculo… É
como se ele dissesse: “agora deixa-me usar o
Tónan, se calhar vai fazer bem a cena da Ana.
Agora, ó Fonseca, anda cá, agora faz tu.”
O Romeu depois também faz o Ratcliffe, que
é o braço direito do Ricardo, a pessoa que mata
toda a gente. Nós fizemos esta linha
dramatúrgica em que ele é o Ricardo, mas
também é o seu próprio braço. Funciona como
a morte. Passa sempre por ele não só a
transformação das corcundas, como também
as mortes. Ele é esse ser omnipresente, o
grande encenador, que está lá sempre, a mexer
nos outros, a pôr terra, a matar, a meter
pessoas dentro de sacos, sempre a trabalhar.
Parece que os corpos são possuídos.
Sim, e depois começa-se a assistir a uma
coisa que é: eu morri, o Ricardo matou-me, e
agora tenho a possibilidade de surgir como
Ricardo e estar do outro lado. Há sempre essa
dualidade, essa ambiguidade, não é
propriamente entre o bem e o mal, mas de tu
próprio seres Ricardo também. E é como se
cada morte deixasse um lugar vago, como se
houvesse a possibilidade de um novo Ricardo
ascender, de alguém querer reivindicar o seu
papel.
Era giro todos nós decorarmos o papel do
Ricardo e isto ser um jogo de quem é que vai
fazer. Mesmo um jogo de atores. Mas a ideia
não foi bem acolhida, quer dizer, foi bem
acolhida mas com um grande “não”. Tenho
pena.
E porque é que as mulheres fazem de
Ricardo as três ao mesmo tempo?
Porque quando Ricardo diz ao Buckingham
que quer ser rei, o Buckingham responde-lhe
que ele é triplamente distinto. Então eu pensei
que era como um prenúncio da
desmultiplicação. Na cena anterior acabaram
as três mulheres juntas, afetadas pelo Ricardo.
Estão as três juntas, e é como se virassem e já
fossem o Ricardo.
E cada uma tem um dos símbolos: a
espada, a coroa, a corcunda.
Como os três Reis Magos, que vão oferecer
coisas ao menino. As três Parcas, ou as três
bruxas do Macbeth.
E porque é que transformaste o par de
matadores num casal tipo Natural Born
Killers?
Porque sempre achei que aquela discussão
não devia ser entre dois homens, é maior, é
sobre a humanidade, e se queres falar sobre a
humanidade tens de pôr um homem e uma
mulher em confronto. Agora podes-me
perguntar: então porque é que puseste a
mulher a ser a que tem que dúvidas, e não o
homem?
O diálogo entre os dois matadores é
também um diálogo entre Ricardo e Ricardo, a
cena da morte do Clarence é sobre ele próprio,
a culpa, o bem, o mal, o não ter consciência.
“Onde é que está a tua consciência agora?” O
Ricardo não é a dúvida.
É a insatisfação, também.
Claro que é, é um ser muito insatisfeito.
Tentámos que nunca houvesse justificações
psicológicas, ah é porque a mãe quando ele era
pequenino não-sei-quê, porque tem a
deformação física… Obviamente que sim, a
gente sabe que a deformação física é uma coisa
que imprime uma alteração da personalidade,
no crescimento… Não é a mesma coisa
nasceres com a consciência de uma limitação
física ou não.
Mas ele usa isso a seu favor.
Ele diz logo, ai coitadinho de mim, eu não
posso porque sou feio, sou corcunda. Há várias
encenações, o Ostermeier põe o gajo logo a
chorar imenso com raiva; há quem o ponha a
gozar, há quem faça muito clean como o
Laurence Olivier, aquela coisa seca que
permite tudo…
E a tua versão, é punk?
Ainda não está encontrada, acho que tem de
haver mais sedução com o público. Mas tem
um lado punk, sim. Com ele a dizer “a minha
alma” a gritar... E os instrumentos da peça,
bateria e trompete, também rasgam muito, são
muito impositivos. E os figurinos, também.
Não sei se é bem punk…
Mas o que eu queria era um espetáculo em
que não houvesse preparação, em que as
pessoas estivessem todas ali, e agora é a minha
vez e eu vou e entro… Porque é essa a energia
da peça, a energia que o Ricardo tem. O que
interessa é contar esta história, não interessam
tanto as personagens individualmente. O que
interessa são os conflitos que vão existindo
entre as personagens todas, e que nos vão
fazendo avançar até à luta final, à tal
transformação do Ricardo em cavalo, que hoje
estávamos a trabalhar.
Há um momento, quando o povo fala, em
que um popular diz que vai correr tudo bem, e
outro diz “bom, mas quando o sol se põe,
esperamos a noite”. Há uma espécie de ordem
natural das coisas, é assim.
O Fonseca dizia uma coisa muito gira sobre
a peça, que era sobre biologia, a vida e a morte.
Pode-se dizer que isto é sobre o poder, mas não
é nada. É sobre pessoas a sobreviver numa
situação muito extrema, se a minha cabeça vai
rolar ou não, e o conforto que eu tenho na
minha vida. É como na natureza. Vem o
outono, as folhas caem e morrem, vem a
primavera começa tudo outra vez a nascer.
CONVERSA COM ANA ELISEU E JOANA FRAZÃO A 25
DE SETEMBRO DE 2015
(DURANTE O PERÍODO DE ENSAIOS, A TRÊS
SEMANAS DA ESTREIA)
5 Fotografias de ensaio © Filipe Ferreira
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Algumas notas sobre a peça
RUI CARVALHO HOMEM
Shakespeare inscreve num padrão trágico o segmento da história inglesa que
contém a ascensão e queda de Ricardo III, sendo que se trata do segmento final
e decisivo do conflito que ficou conhecido por “Guerras das Rosas”, uma
prolongada querela dinástica pelo trono de Inglaterra que, na segunda metade
do séc. XV, opôs as casas de York e Lancaster, heraldicamente identificadas
(respectivamente) por uma rosa branca e uma vermelha. Contudo, o tempo
dramático da ação desta peça comprime significativamente o tempo histórico:
os dois primeiros actos de Ricardo III correspondem a acontecimentos que se
distribuíram ao longo de uma dúzia de anos (1471-83); as “Guerras das Rosas”
terminariam em 1485 com a morte de Ricardo III na batalha de Bosworth Field
(dramatizada no desfecho desta peça) e a consequente acessão ao trono do
conde de Richmond como Henrique VII, primeiro rei da dinastia Tudor. […]
As descontinuidades entre o que hoje se entende ter sido o processo histórico
e a respectiva elaboração dramática na mais famosa das peças históricas de
Shakespeare justificam algumas observações sobre o uso que o dramaturgo fez
das suas fontes. Como é bem sabido, o drama de Shakespeare e dos seus
contemporâneos evidencia processos de concepção e escrita que assentam, em
importante medida, na apropriação e reformulação, com vista às necessidades
concretas da cena e às expectativas do público, de relatos e textos pré-
-existentes. Tais processos confirmam-se, por maioria de razões, em peças que -
ostensivamente se apresentam como a dramatização de uma factualidade
histórica – e, contudo, um texto como Ricardo III evidencia a intensa reescrita
transformativa das suas fontes por parte de Shakespeare. O resultado é um
enriquecimento da trajetória das personagens (actos, intenções, motivações),
como também uma gestão do tempo dramático que comprime e intensifica a
ação e, nalguns casos, diverge vincadamente da cronologia conhecida. […] Note-
-se que em tais fontes Shakespeare encontrou já um tratamento da figura de
Ricardo e do processo histórico anterior a 1485 (ano da morte de Ricardo na
batalha de Bosworth Field) que pouco tem a ver com a ostensiva neutralidade
descritiva que hoje associamos a um relato historiográfico. Pelo contrário, a
narrativa histórica assume nas crónicas um cariz judicativo, moralizante, por
vezes vituperativo. Tais feições revelam a proximidade entre a produção de tais
CONTEXTO HISTÓRICO
fontes e o propósito de memorialização do segmento da história inglesa anterior
à dinastia Tudor (inaugurada justamente com a coroação do conde de
Richmond como Henrique VII após a morte em batalha de Ricardo III) como
um momento sinistro – e dos Tudor como uma dinastia salvífica e redentora. O
propósito dramatúrgico de criação de uma peça centrada numa figura tornada
memorável pela sua vitalidade perversa converge, desta maneira, com o
propósito propagandístico de produção do que na historiografia posterior se
convencionou designar como “o mito Tudor”.
[…] Ao considerarem, através de uma peça como Ricardo III, um momento
da história inglesa […] pouco mais de um século anterior àquele que viviam,
Shakespeare e os seus contemporâneos não poderiam senão experimentar
alguma ambivalência. Por um lado, Ricardo III contribuía para um olhar sobre
esse período que lhe acentuava a malignidade e vincava o contraste com o que
se lhe tinha seguido, um contraste decisivo para a propaganda Tudor (veja-se a
fala com que Richmond encerra a peça). Por outro lado, a consciência de mais
de um século de continuidade dinástica sob os Tudor não podia elidir a também
grande turbulência, ainda que com alguns fundamentos distintos, que tinha
marcado os reinados Tudor com abundante violência institucional: os perigos
que rodeavam o trono, as perseguições religiosas, as ameaças externas, as
execuções por traição de figuras na esfera do poder sugeririam similitudes entre
a cena e a experiência vivida. […] Todo um lastro de experiência histórica,
portanto, que embora não inibindo a percepção retrospectiva da singularidade e
alteridade tirânica de um Ricardo III, não deixaria de permitir a alguns dos
primeiros espectadores da peça uma certa familiaridade com a súbita queda em
desgraça de figuras gradas da corte e com o temor paralisante inspirado pelas
arbitrariedades de quem manda.
Ricardo, duque de Gloucester no início e Rei Ricardo a partir do meio da ação, é
enfaticamente destacado dos outros agentes do processo histórico que compõem a
galeria de personagens desta peça pela determinação que o define e pelo enorme
ascendente verbal que o dramaturgo lhe confere – aferível pelos seus triunfos
retóricos sobre outras personagens, bem como (quantitativamente) pela percepção
de que um terço do texto da peça está na sua voz. Esta riqueza de caracterização (ou
seja, de construção de uma personagem dramática) faz com que o protagonista de
Ricardo III tenha detido as condições – pela memória cénica que gerou, pela
consequência imaginativa que obteve noutros escritos e noutras artes, pela atenção
que obteve de estudiosos – para integrar a galeria mais restrita das personagens
dramáticas prontamente reconhecíveis mesmo por públicos com uma relação
episódica com o teatro. Para tal contribuíram o contraste entre a agilidade retórica e
a deformidade física que Shakespeare insistente e perturbadoramente lhe atribui,
bem como a memorabilidade de alguns dos versos que lhe cabem: os do seu
solilóquio de abertura, os da prontidão quase jocosa com que manda cortar cabeças,
A FIGURA DE RICARDO
ou o grito com que se propõe trocar o seu “reino por um cavalo” na batalha em que
vem a morrer. O raro impacto da personagem, afinal, parece ter-se verificado ao
tempo das suas primeiras representações como também quando mais de quatro
séculos se cumpriram desde a sua criação. Do fascínio exercido sobre os primeiros
espectadores falam-nos episódios como o da burguesa de Londres que, de tão
sugestionada pelo rei vilão, prontamente terá marcado um encontro amoroso com o
ator Richard Burbage na condição de ele se lhe apresentar na pele de Ricardo III; da
consequência imaginativa que retém no nosso próprio tempo diz-nos a frequência
com que a peça é encenada (com uma série impressionante de atores de renome a
deixarem-se tentar pelo papel de Ricardo: entre outros, grandes figuras do palco e
do cinema como Derek Jacobi, Ian McKellen, Denzel Washington, Simon Russell
Beale e Kevin Spacey), bem como a inevitável convocação da figura shakespeariana
aos debates que se seguiram à descoberta em 2012, em Leicester, dos restos mortais
da figura histórica que lhe dá nome. Note-se, a este respeito, que o interesse público
pelo Ricardo III histórico muito deve à memorabilidade da construção dramática
shakespeariana – ainda que, paradoxalmente, a “verdade” da caracterização por
Shakespeare de um rei perverso e monstruoso seja veementemente negada por
muita da historiografia mais recente.
[…] A saliência dramática e a determinação individualizada de uma personagem
como Ricardo III, apesar de ostensivamente propostas como reflexos do carácter
desviante e tirânico de um rei tardo-medieval, encontrariam ao tempo de
Shakespeare condições para a sua percepção à luz do exercício mais enfático do
poder por um monarca moderno. O fascínio dos espectadores por tal figura não
deixaria de assentar em profundas incertezas éticas, afinal idênticas às que ao longo
de todo o séc. XVI se verificaram em debates sobre o comportamento dos príncipes.
Considerem-se, desde já, os solilóquios, dispositivo dramático fundamental para a
caracterização do protagonista, que ocorre, em importante medida, na sua própria
voz. O solilóquio de abertura – instância única do uso por Shakespeare deste
recurso para dar início a uma ação dramática – é crucial para a revelação do que
Ricardo é e ao que vem; contudo, esta intervenção inicial do duque de Gloucester
assume condições retóricas distintas das que, noutros pontos da obra de
Shakespeare, caracterizam momentos de auto-revelação a solo. Os solilóquios de
Iago em Otelo, peça bem mais tardia na dramaturgia shakespeariana, oferecem a
este respeito um contraste útil. Em momentos cruciais da ação, o vilão Iago
apresenta-se a solo perante o público revelando a sua trama e fá-lo com um
discurso configurado para criar a ilusão (a) de que ele pensa em voz alta e (b) de que
há simultaneidade entre a formação de um pensamento e a sua verbalização – num
discurso que, portanto, está ainda em formação, entrecortado, feito de incertezas:
“deixai-me ver: / Tomar-lhe o lugar e afagar minha vaidade / Em dupla vilania.
Como? Como? – vejamos” (tradução minha). De modo bem diferente, em Ricardo
III o protagonista apresenta-se-nos, na abertura da peça, com um solilóquio em que
SOLILÓQUIOS E VILÕES
a sua circunstância e propósitos são apresentados num discurso de grande
polimento retórico, com uma sintaxe absolutamente regular e realizada, apoiado
num conjunto de figurações (paralelismos, antíteses) que em momento algum
traem uma hesitação verbal. O famoso solilóquio configura-se, portanto, não como
a verbalização de um discurso íntimo no tempo mesmo em que ele se forma – mas
antes como uma peça de oratória que manifesta o que há muito foi pensado: “E
assim, já que não posso ser amante / Para desfrutar dias tão belos e melífluos, /
Estou decidido a revelar-me um vilão / E detestar o ócio ameno destes dias”. Em
momentos posteriores de Ricardo a solo (em aparte ou solilóquio), o anúncio e
verificação do curso da trama é marcado por um prazer na demonstração da
inépcia, dislate ou sandice das suas vítimas que lhe confirma a descendência do
Vício das Moralidades. Contudo, o prazer de Ricardo não é autotélico, não é um fim
em si mesmo: a sustentação da sua trama pela consideração lúcida e inabalável do
que é necessário para chegar ao trono firma-o nas ambições e materialidade do
mundo, combinando o vínculo (medieval) ao Vício com um sentido “maquiavélico”
(e moderno) do interesse e das conveniências impostas por uma vontade de poder
que em momento algum cede a sua prioridade.
A auto-determinação da figura isolada que, desde o início da peça, oferece uma
análise desassombrada das limitações de que enferma com vista à identificação do
que lhe resta para a gratificação de uma ambição, da qual não desiste, pareceria
corresponder a um modelo de individualidade caracteristicamente moderno. Ou
seja: a obstinação singular de Ricardo afigurar-se-ia própria de um quadro
(crescentemente verificado na Inglaterra do tempo de Shakespeare) em que os
desígnios mutualizantes da ordem feudal se desagregam, alimentando a percepção
de que o nexo interindividual será necessariamente competitivo (e, se necessário,
conflituoso) e renovando o poder convincente do velho provérbio latino, “Homo
homini lupus” (o homem é um lobo para [outro] homem), que seria famosamente
ecoado pelo filósofo Thomas Hobbes já em meados do séc. XVII. Mas, uma vez
mais, esta aparente desassombrada “modernidade”, enquanto perfil humano,
encontra mitigações que importa sublinhar: diversamente de Iago (o vilão de Otelo
servirá de novo para uma comparação útil), Ricardo não questiona o quadro ético
tradicional à luz do qual o julgam – não o ouvimos a negar a valia (como Iago o
fará) a noções e instâncias como “virtude” e “consciência”, antes se inscrevendo do
lado do mal como auto-proclamado vilão. Crucialmente, os solilóquios, ao longo da
maior parte da peça, não lhe definem aquela humanidade perturbada que tantas
vezes assoma nas explorações introspectivas servidas pelo solilóquio nalgumas das
suas realizações mais famosas no drama da Idade Moderna: se Ricardo não é Iago,
muito menos é Hamlet. A exceção ao quadro descrito nestes parágrafos, momento
único em que a personagem parece sofrer uma inflexão e um adensamento com a
sua interioridade a abrir-se à interrogação e à dúvida, surge para o final, quando
Ricardo acorda após ter sido visitado pelos espectros. Pela primeira vez o
protagonista dá voz, em solilóquio, a uma intensa perturbação moral com referência
a si próprio, confessando um desespero que equivale a medo da danação e
admitindo também (com uma vulnerabilidade incaracterística) a dor de se saber
universalmente odiado: “Não há criatura que me tenha amor”. Reveladoramente, a
esta identidade inflectida corresponde um discurso entrecortado, aquela
correspondência prosódica da incerteza que antes lhe não assomara na voz: “Há
aqui um assassino? Não. Sim, sou eu”.
Sobreviventes de uma carnificina que atinge quase exclusivamente os homens
(enquanto governantes e guerreiros), as mulheres em Ricardo III surgem como
depositárias e verbalizadoras de uma memória que reavivam ritualisticamente em
ladainhas como a citada; e as suas denúncias e maldições vincam uma das
dimensões em que Ricardo III exibe influências da tragédia de Séneca (uma fonte
dramática Clássica para com a qual a tragédia e as peças históricas de Shakespeare
têm dívidas de algum relevo). Cerca de um quarto do texto de Ricardo III está em
vozes femininas, o que é invulgar numa peça histórica e garante força histriónica e
presença cénica notáveis por dentro de uma ação que se centra nos processos do
poder e da guerra numa ordem eminentemente patriarcal.
[…] A capacitação das figuras femininas é limitada, como se vinca com a
vulnerabilidade de Ana e Isabel ao discurso de sedução de Ricardo em 1.2. e 4.4., ou
com a frustração de Margarida ao ver o momento culminante da sua maldição
facilmente truncado pela manha de Ricardo. Porém, a capacidade das figuras
femininas de transitarem da rivalidade para alguma solidariedade na desgraça
torna-as um contraponto positivo à inelutabilidade predatória do universo
masculino. E, mesmo sendo derrotadas naqueles momentos em que, com
desassombro, tentam opor-se a Ricardo – Ana em 1.2., a Rainha Isabel no longo
diálogo de 4.4. – a valia da oposição de tais mulheres afigura-se formalmente
reconhecida na linguagem dramática através do procedimento conhecido como
esticomitia, uma partição dos versos entre as duas vozes em confronto que sugere
equivalência, realçando a capacidade das mulheres de (pelo menos verbalmente)
darem luta ao tirano: “RICARDO Digamos que eu não os matei – / ANA Ora! então
não os mataram; / Mas mortos estão, e por ti, escravo do diabo. / RICARDO Não
matei vosso marido. / ANA Ora, então estará vivo”; “RICARDO Fala da paz que esta
união dá à Inglaterra. / RAINHA ISABEL Que a Inglaterra vai comprar com guerra
eterna. / RICARDO Diz-lhe que o Rei pode mandar – mas que lhe pede. / RAINHA
ISABEL Pede-lhe aquilo que o Rei dos Reis nos proíbe”.
A capacidade de as personagens femininas obterem, por tais elementos da sua
caracterização individual ou colectiva, a simpatia de públicos do nosso tempo tem
uma correspondência menos expressiva na representação do desamparo dos
verdadeiros subalternos – criados, pajens, mesmo os burgueses da cidade de
Londres – que testemunham as fraudes e perfídias requeridas pelo curso imparável
de Ricardo para o trono sem a possibilidade de lhes oporem mais do que o
AS MULHERES
A VOZ DO POVO
comentário perceptivo ou a negação de um entusiasmo aclamatório. Como em
muitos outros momentos da sua obra, Shakespeare cria oportunidades – pontuais, é
certo – para que a vox populi tenha afloramentos em Ricardo III, sendo o mais
expressivo (por constituir toda uma cena de diálogo) o que ocorre em 2.3 com a
presença em cena dos “Populares” que receiam ter de “[agoirar] o pior” perante
sinais de um “mundo em desvario”, “o mundo em pantanas”. O mais incisivo dos
pronunciamentos de um subalterno, porque analítico e quase judicialmente
configurado, é, porém, o do escrivão incumbido de lavrar o termo de acusação do
“bom Lorde Hastings”, encomendado e pronto (como se todo o processo tivesse já
transcorrido) quando o acusado não tinha qualquer noção do que lhe iria suceder. A
trama suscita ao escrivão o comentário do subalterno que faz o que lhe mandam
mas, no seu íntimo, se não deixa enganar – “Quem será tão lerdo / Que não veja
esta trama evidente?” – e ele comenta a encerrar a breve cena, com todo o peso
sentencioso do dístico rimado: “Mau é o mundo, e pior sempre vai estar / Se tais
maldades se não podem nomear”. A terceira e decisiva posição de subalternos
confrontados com a adversidade de um poder pérfido assume a forma nem de um
diálogo (como o dos populares em 2.3), nem de um solilóquio (como o do escrivão
em 3.6) – mas antes de um silêncio que Buckingham reporta, exasperado.
Incumbido de perorar perante os “cidadãos” (artesãos e comerciantes de Londres)
para deles obter uma aclamação de Ricardo que criasse a percepção pública da
necessidade de o colocar no trono, Buckingham obtém o silêncio espavorido de
quem não tem a coragem de se opor – mas tão-somente de se calar, negando ao
pérfido pretendente (que sabem imparável) o triunfo desejado: “RICARDO Então,
então, que dizem os cidadãos? / BUCKINGHAM Ora, pela Santa Mãe de Cristo, os
cidadãos / Estão calados, não dizem nem uma palavra./ [...] / BUCKINGHAM [...]
não disseram palavra: / Como estátuas mudas ou pedras viventes, / Olharam uns
para os outros, pálidos de morte”.
A versão portuguesa em que se apoia a presente produção de Ricardo III reporta-se
ao texto desta peça dominantemente como ele surge no chamado First Folio de
1623 – a grande edição póstuma da obra de Shakespeare que foi também o primeiro
grande gesto visando a extensão da sua fama para a posteridade. Adicionalmente,
as opções de tradução aqui adoptadas refletem os saberes acumulados sobre o texto
de Shakespeare desde os esforços pioneiros de eruditos dos sécs. XVII e XVIII até
ao trabalho electronicamente assistido dos especialistas do nosso tempo em crítica
textual, como também aos debates e controvérsias que reorganizaram os estudos
shakespearianos desde o último quartel do séc. XX. Muitos desses saberes
plasmam-se em edições críticas de referência, como é o caso das de E.A.J.
Honigmann e James R. Siemon.
As especificidades prosódicas do texto shakespeariano foram preocupação
determinante desta tradução, que se guia por uma atenção particular aos ritmos do
verso branco – decisivos para a sua regularidade, como para as quebras de
A TRADUÇÃO
regularidade que o marcam e animam retoricamente. Ricardo III coloca, a esse
respeito, alguns desafios invulgares, como sejam as “ladainhas” de invectiva e
lamento que marcam o discurso das personagens femininas. Dada a especificidade
de que se revestem, a sua estrutura, extensão e ritmo foram objecto, sempre que
possível, de versões decalcadas. Note-se, porém, que, neste Ricardo III, como no
projeto de tradução integral da obra de Shakespeare em que ele se enquadra (com
sede na Faculdade de Letras do Porto), o texto de chegada se não constrói sobre
uma modalidade métrica e rítmica definida, praticada de forma homogénea. Em vez
disso, opta-se por regularizar o verso através de aproximações aos ritmos do texto
de partida, tentadas caso a caso, que não através da adopção de medidas exactas.
[…] Este é um texto agudamente consciente de que interpela e se contrapõe a um
período – o do tempo histórico da ação, situada na segunda metade do séc. XV –
mais de um século anterior ao tempo do dramaturgo, dos seus actores, do seu
público primeiro; e a essa consciência (já complexa) da sua historicidade, que o
texto traz consigo, sobrepõe-se a nossa própria percepção de que mais de
quatrocentos anos passaram desde o tempo de escrita e primeira representação. Ao
tradutor coloca-se, portanto, o desafio de proporcionar uma representação de
circunstâncias históricas da Inglaterra de finais do séc. XV tal como elas foram
produzidas para públicos ingleses de finais do séc. XVI – e em condições que
gratifiquem as expectativas de um público português de inícios do séc. XXI. A
estratégia adoptada para esta versão não foi a de tentar emular o português coevo
do inglês de Shakespeare: essa é uma ambição de cuja viabilidade e produtividade
este tradutor descrê, com base quer na experiência, quer na denúncia (sustentada
pela inquirição de estudiosos como George Steiner e Jean-Michel Déprats) da
“miragem do sincronismo”. Descrer de tal miragem implica aceitar a inevitabilidade
de que só é possível renovar a vida de um texto através da tradução para uma língua
viva – a língua materna do tradutor no estádio de desenvolvimento em que ela se
encontra no tempo de vida do tradutor. Não implica, porém, a rejeição da
possibilidade de alertar leitores e públicos para a origem remota do texto através de
alguns marcadores de um tempo outro, arcaísmos pontuais que constituem uma
estratégia de compensação face à inevitabilidade do anacronismo – ou seja, a
inevitabilidade de, em tradução, Ricardo e os seus contemporâneos falarem o
português do nosso tempo. É assim que, com este texto, se tenta renovar a estranha
e sempre fascinante capacidade que o drama de Shakespeare revela, desde há
quatrocentos anos, para, através de conflitos representados nas vozes e nos corpos
de outros, iluminar imaginativamente a nossa circunstância.
Excertos retirados de “Fundamentos de uma singularidade”,
introdução à edição (no prelo) de Ricardo III, Relógio d’água
[Este texto não foi escrito segundo o novo Acordo Ortográfico.]
7
Visões em torno de Ricardo III (EXCERTOS DE VÁRIOS AUTORES)
Ricardo, o cruel, o pérfido, o astuto, o deformado, o talentoso, o manipulador MAQUIAVEL, O PRÍNCIPE, “DAQUELES QUE CHEGAM AO PRINCIPADO PELA PERFÍDIA”, 1532
1. Pode-se chamar boa à crueldade (se é possível haver bem no mal) que se exerce somente uma vez, por necessidade de segurança, e depois se abandona e se converte o mais possível em benefício dos súbditos. A crueldade má é aquela que, embora ao princípio seja pequena, aumenta com o tempo, em vez de diminuir. Os que recorrem à primeira espécie de crueldade podem, com a ajuda de Deus e dos homens, encontrar qualquer remédio favorável [...]. Quanto aos outros, é impossível manterem-se. Logo, convém notar que, ao apoderar-se de um país, o ocupante deve pensar em todas as crueldades que precisa de fazer e praticá-las imediatamente, de uma vez, para não ter de voltar a recorrer ao mesmo processo e, não as renovando, tranquilizar os homens e conquistá-los pelos seus benefícios. Quem governar de outro modo, por medo ou mau cálculo, ver-se-á obrigado a ter sempre a faca na mão e nunca poderá contar com os seus súbditos, pois eles, devido às suas constantes ofensas, não poderão confiar nele. Convém fazer o mal todo de uma vez para que, por ser suportado durante menos tempo, pareça menos amargo, e o bem pouco a pouco, para melhor se saborear.
LUCA RONCONI SOBRE A SUA ENCENAÇÃO DE RICARDO III EM 1968, CITADO POR FRANCO QUADRI IN RONCONI OU LE RITE PERDU, 1974
2. Shakespeare começa por dar uma imagem grosseira dos adversários de Ricardo de Gloucester através de expressões enfáticas. Mostrou-os no momento em que se prepararam para encarnar “um bonito papel” sobretudo perante si próprios. A seguir confia a Ricardo o trabalho de levar a cabo uma operação redutiva que começa pela demolição sistemática das afirmações ocas dos seus interlocutores. Estes são portanto obrigados a mostrar a sua pequenez, fraqueza e falta de carácter. Na minha opinião, a verdadeira perfídia de Ricardo é a de querer enfraquecer moralmente os outros, de querer a sua destruição psíquica. Uma vez alcançados os seus fins, a eliminação física das suas vítimas não passa de um pleonasmo. Pensemos, por exemplo, no seu comportamento em relação a lady Ana na cena inicial. Em vez de se conduzir como um homem galante, ocupa-se antes a colocar a jovem mulher em estado de inferioridade, fazendo sobressair as suas fraquezas, ferindo-a naquilo que ela tem de mais querido. Desde que ele consiga destruir as suas defesas, possuí-la não será mais que uma brincadeira de criança.
MAQUIAVEL, O PRÍNCIPE, “COMO OS PRÍNCIPES DEVEM HONRAR A SUA PALAVRA”, 1532
3. Todos concordam que é muito louvável um príncipe respeitar a sua palavra e viver com integridade, sem astúcias nem embustes. Contudo, a experiência do nosso tempo mostra-nos que se tornaram grandes príncipes que ligaram muita importância à fé dada e que souberam cativar, pela manha, o espírito dos homens e, no fim, ultrapassar aqueles que se basearam na lealdade. Convém saber que existem duas maneiras de combater: pelas leis e pela força. A primeira é própria dos animais. Mas como, muitas vezes, aquela não chega, há que recorrer a esta, e, por isso, o príncipe precisa de saber ser animal e homem. [...] Já que um príncipe deve saber utilizar bem a natureza animal, convém que escolha a raposa e o leão: como o leão não se sabe defender das armadilhas e a raposa não se sabe defender dos lobos, é necessário ser raposa para conhecer as armadilhas e leão para meter medo aos lobos. Os que querem fazer apenas de leão não percebem nada do assunto. Por conseguinte, o senhor sensato não pode respeitar a fé dada se essa observância o prejudica e se as causas que o levaram a fazer promessas deixaram de existir. Se os homens fossem todos gente de bem, o meu preceito seria nulo, mas, como são maus e não respeitariam a palavra que te dessem, se não lhes conviesse, também não és obrigado a respeitar a que lhes deres. Nunca faltaram a um príncipe pretextos legítimos para justificar a sua falta de palavra, e seriam infinitos os exemplos, do tempo presente, demonstrativos de quantas pazes, quantas promessas, foram feitas em vão e reduzidas a nada pela infidelidade dos príncipes, e demonstrativos também de que as coisas correram melhor aos que melhor souberam representar o papel de raposa.
CHARLES DARWIN, A ORIGEM DAS ESPÉCIES, 1859
4. A fim de bem fazer compreender de que modo atua, segundo me parece, a seleção natural, peço permissão para dar um ou dois exemplos imaginários. Suponhamos um lobo que se nutrisse de diferentes animais, apoderando-se de uns pela astúcia, de outros pela força, de outros, enfim, pela agilidade. Suponhamos ainda que a sua presa mais rápida, o gamo, por exemplo, tinha aumentado em número após algumas alterações sobrevindas no país, ou que os outros animais, de que se nutre diariamente, tinham diminuído durante a estação do ano em que o lobo está mais apertado pela fome. Nestas circunstâncias, os lobos mais ágeis e velozes têm mais probabilidades de sobreviver do que os outros; persistem então, contanto que conservem, todavia, bastante força para vencer a sua presa e tornarem-se senhores dela, nesta época do ano ou em qualquer outra, quando são forçados a apoderar-se de outros animais para se nutrir.
FRANCIS BACON, “DA DEFORMIDADE”, 1597
5. As pessoas deformadas geralmente vingam-se na Natureza: pois como a Natureza as maltratou, assim eles maltratam a natureza: sendo na sua maior parte (como rezam as Escrituras) destituídos de naturais afeições [...], todas as pessoas deformadas são audazes em extremo [...], nelas se aguça o engenho [...] e adormece nos seus competidores e émulos, que não acreditam que elas possam levar por diante os seus intentos até vê-las conseguirem-no [...]. Em homens de grande inteligência a deformidade é uma vantagem para a sua ascensão [...] hão de procurar, se lhes assistir a coragem, libertar-se do escárnio; o que sempre conseguem, seja pelo caminho da virtude seja pelo da maldade.
ANTONY HAMMOND, PREFACIO A KING RICHARD III, ARDEN SHAKESPEARE, 1981
6. É mais fácil gostar-se de Ricardo do que das outras personagens da peça, é mais cativante do que a grasnada dos patetas que procuram dominá-lo ou destrui-lo (e não conseguem). Shakespeare abre-lhe cuidadosamente o caminho: faz Ricardo anunciar as suas malévolas intenções imediatamente, e de tal forma que nós quase ficamos persuadidos de que elas são uma resposta razoável aos seus problemas pessoais – deformado, feio, sem trabalho – e mostra-o depois a dar-lhes forma com uma graça e habilidade invulgares. […] Os seus opositores criticam impiedosamente a sua aparência física, mas sente--se que reagem mais ao mal que dentro dele existe do que ao seu aspeto exterior: a deformidade é um sinal exterior e visível da maldade interior. A sua atração reside principalmente na sua habilidade de conquistar a nossa admiração, mesmo quando, melhor do que ele, sabemos perfeitamente que o que ele faz é monstruoso. [...] Admiramos nele o discernimento dos caracteres, o seu trato, a fertilidade dos seus recursos, o domínio do seu mau génio, a sua versatilidade, a “alacridade” cuja perda lamenta nas vésperas de Bosworth, a sua indiscutível coragem e as suas proezas militares. Vale a pena notar estas qualidades, pois de outro modo é difícil perceber porque há no final da peça uma sensação de perda trágica com a morte de Ricardo. Ele não é por certo um herói aristotélico convencional, “igual a cada um de nós”; nem é de forma alguma um Macbeth. […] Nada fica melhor a Ricardo, na peça, do que a sua morte, quando ousa enfrentar todos os perigos e procura Richmond (um Richmond disfarçado, por prudência, sem dúvida, mas mostrando a sua falta de heroísmo) nas fauces da morte. É a única ação da peça que nos recorda os anteriores feitos de Ricardo como guerreiro – e é por isso uma maneira inesperada de completar o círculo e fazer-nos sentir, no final, a grandeza da ousadia de Ricardo, enquanto nos sentimos simultaneamente aliviados por tal ousadia ter felizmente acabado.
HAROLD BLOOM, INTRODUÇÃO A RICHARD III, BLOOM’S SHAKESPEARE THROUGH THE AGES, 2010
7. No início, Ricardo não tem deleites, “A menos que contemple, ao sol, a minha sombra / E faça trovas à minha desfigura”. O deleite selvagem que sente com o sucesso da sua própria retórica manipuladora transforma depois o tropo do início em ordem exultante: “Brilha, ó sol (que o espelho, ainda o vou comprar), /Para eu mirar a minha sombra ao passear”. […] O herói-vilão manipulador, altamente auto consciente e obcecado […] deixa de ser sofredor passivo da sua própria deformidade moral e/ ou física para se tornar agente num melodrama. Em vez de se colocar à luz da natureza para observar a sua própria sombra e ter de tomar a própria deformidade como assunto, passa a ordenar à natureza que lance a luz sobre o espelho de representação que é o dele, de modo que a sua sombra seja visível só por um instante, em que avança para o triunfo da sua vontade sobre os outros
8
Alguns excertos essenciais de Ricardo III
Solilóquio de abertura: Ricardo diz quem é e ao que vem ATO 1, CENA 1
RICARDO É agora o inverno do nosso descontento Que este filho de York torna verão radioso – Um sol que as nuvens ensombrando a nossa casa Vem dispersar, enterrando-as no oceano. Cingem-nos a fronte agora os louros da vitória E as armas feridas pendurámos. O alerta guerreiro faz-se encontro deleitoso, A marcha temível, bailado prazenteiro. A guerra, façanhuda, desfranziu o cenho: E em vez de montar corcéis albardados, Espantando as almas de inimigos timoratos, Saltita, leve, pela câmara das damas Ao som lascivo e aprazível do alaúde. Mas eu não sou apessoado para o gozo, Nem talhado para adular o espelho amante. É rude o meu molde e não tenho a majestade Do amor, para me exibir a uma ninfa atrevida. Desfalcado que sou da bela proporção, Roubado nas feições pela enganosa Natura, Disforme, imperfeito, dado antes do tempo Ao alento do mundo, nem meio-acabado, E tão mancamente e sem forma nem jeito Que os cães me ladram quando passo a coxear, Ora, eu (nesta paz fraca e flauteante) Não tenho deleites com que passar o tempo – A menos que contemple, ao sol, a minha sombra E faça trovas à minha desfigura. E assim, já que não posso ser amante Para desfrutar dias tão belos e melífluos, Estou decidido a revelar-me um vilão E detestar o ócio ameno destes dias. Já maquinei, preparei tramas nefastas, Predições ébrias, sonhos e calúnias Para pôr meu irmão Clarence e o rei Um contra o outro, num ódio de morte; E se o rei Eduardo for tão justo e honesto Quanto eu sou falso, ardiloso e traiçoeiro, Será Clarence hoje mesmo aferrolhado: Profetizaram a Eduardo que um tal G Dos seus herdeiros o assassino se prevê. Recolhei, pensamentos, à minh'alma – aí vem Clarence.
Cumplicidade com o público: a vaidade de Ricardo ATO 1, CENA 2
RICARDO Algum dia se cortejou mulher em tal humor?
Algum dia se conquistou mulher em tal humor? Hei de tê-la, mas não mantê-la muito tempo. Ora então? Eu, que lhe matei marido e sogro, Tomo-a no ódio mais extremo do coração, Com maldições na boca, lágrimas nos olhos, E a testemunha do meu ódio, ali, sangrando – Contra mim, Deus, a consciência, estes entraves, E eu sem amigo algum para me apoiar o pleito Além do diabo e do meu ar fingidor – E mesmo assim conquistá-la! O mundo contra nada! Bah! E vai ela rebaixar o olhar em mim, Em mim, que não chego à metade de Eduardo? Em mim, assim coxo e todo disforme? Devo andar enganado na minha pessoa! Pela vida, ela deve achar-me, embora eu não ache, Homem de encantos e bem apessoado. Vou dar-me ao dispêndio de comprar um espelho E ocupar uns vinte ou trinta alfaiates Que estudem modas para me embelezar o corpo; Brilha, ó sol (que o espelho, ainda o vou comprar), Para eu mirar a minha sombra ao passear.
As pragas: o poder das palavras ATO 1, CENA 3
RICARDO A praga que o meu nobre pai te rogou
Ao coroares de papel a sua fronte guerreira E, troçando, pores rios a correr dos seus olhos – Para os secar, deste-lhe um trapo ensopado No sangue inocente do lindo Rutland – As pragas que, da amargura da sua alma Te rogou, todas se abateram sobre ti; E Deus, que não nós, puniu teu ato sangrento.
RAINHA ISABEL Deus é justo, ao vingar os inocentes. HASTINGS Ah, matar esse menino foi o ato
Mais repugnante e cruel de que há memória! RIVERS Até os tiranos choraram com o relato. DORSET Não houve quem não profetizasse vingança. BUCKINGHAM Northumberland, que estava lá, chorou ao vê-lo.
RAINHA MARGARIDA Quê? Estáveis todos a rosnar antes de eu vir,
Prestes a abocanhar-vos pela garganta, E virais agora todo o ódio contra mim? Teve a maldição de York tal eco nos céus Que as mortes de Henrique e meu querido Eduardo, A perda do reino, o meu terrível degredo, Respondem todos pelo fedelho petulante? Chega-se ao céu, para lá das nuvens, maldizendo? Então, nuvens, deixai passar as minhas pragas! Se não da guerra, da fartura morra o vosso rei – Que ao nosso mataram, para o fazer a ele rei! Tu, que és rainha, por mim que fui rainha: Sobrevive à glória, como eu desgraçada! Vida longa, para carpires pelos teus filhos E veres outra, como eu te vejo agora, Ostentando os teus direitos, como tu os meus! Muito antes da morte te morra a felicidade, E após muitas, longas horas de desgosto, Morre sem seres mãe, esposa, ou rainha de Inglaterra. Rivers e Dorset, estáveis lá, a olhar – E tu também, Lorde Hastings – quando o meu filho Foi golpeado por punhais sangrentos. Ó Deus, Que nenhum viva o seu tempo natural, Mas sucumba a um acidente inesperado!
RICARDO Finda aqui o teu feitiço, bruxa asquerosa! RAINHA MARGARIDA Cão – fica e escuta-me.
Se o céu tiver guardada alguma peste Que exceda as que te posso desejar, Que a guarde até maturarem teus pecados E só então desabe a sua indignação Sobre ti, flagelo da paz do pobre mundo! Que o verme da consciência te roa a alma! Suspeita os amigos de traição toda a vida E faz de traidores os teus amigos mais queridos! Que o sono não cerre o teu olhar funesto A não ser para um sonho tormentoso Te espavorir com um inferno de demónios! Cerdo foçante, ó trasgo, ó aborto! Tu que vieste marcado à nascença, Qual escravo da natura e filho do inferno! Injúria do ventre prenhe de tua mãe! Semente odiada dos rins de teu pai! Ó trapo da honra! Detestável...
RICARDO ... Margarida. RAINHA MARGARIDA Ricardo! RICARDO Hã? RAINHA MARGARIDA Não te chamei. RICARDO Peço perdão; cheguei mesmo a pensar
Que me chamaste aqueles nomes azedos.
RAINHA MARGARIDA E chamei, mas não pedi qualquer resposta.
Ah, vou pôr ponto final na maldição! RICARDO Já o pus – e termina em "Margarida!" RAINHA ISABEL Assim sopraste pragas contra ti própria. Questões de consciência: a lei dos homens e a lei de Deus ATO 1, CENA 4
SEGUNDO MATADOR E então, dou-lhe já uma facada enquanto dorme? PRIMEIRO MATADOR Não. Ao acordar ele vai dizer que foi cobardia. SEGUNDO MATADOR Ora, não vai acordar até ao Dia do Juízo. PRIMEIRO MATADOR Bom, dirá então que o apunhalámos enquanto dormia. SEGUNDO MATADOR Dizer essa palavra, "Juízo", deu-me uma espécie de remorso. PRIMEIRO MATADOR O quê? Estás com medo? SEGUNDO MATADOR Não de o matar, tendo um mandato, mas de me danar por matá-lo – e disso não há
mandato que me defenda. PRIMEIRO MATADOR Pensei que estavas decidido. SEGUNDO MATADOR E estou – a deixá-lo viver. PRIMEIRO MATADOR Vou de volta ao duque de Gloucester para lhe contar. SEGUNDO MATADOR Ná, espera um pouco. Espero que este meu humor de comoção possa mudar. Costuma
durar enquanto se conta até vinte. PRIMEIRO MATADOR Como te sentes agora? SEGUNDO MATADOR Pela fé, ainda tenho por cá umas borras de consciência. PRIMEIRO MATADOR Lembra-te da paga que vamos ter quando estiver feito. SEGUNDO MATADOR Pelas chagas – ele morre já! Tinha-me esquecido da paga. PRIMEIRO MATADOR Onde está agora a tua consciência? SEGUNDO MATADOR Ora, na bolsa do duque de Gloucester. PRIMEIRO MATADOR Quando ele abrir a bolsa para nos pagar, lá foge a tua consciência. SEGUNDO MATADOR Não faz mal – deixá-la ir. Pouca gente, ou nenhuma, há de querer recebê-la. PRIMEIRO MATADOR E se ela volta para ti? SEGUNDO MATADOR Não quero nada com ela; faz da gente cobardes. Não pode um homem roubar, que ela
acusa-o; nem praguejar, que ela cala-o. Não pode um homem dormir com a mulher do próximo que vem a consciência e apanha-o. É um espírito dado a corar e à vergonha, que se amotina no peito de um homem. Enche-nos de obstáculos. Uma vez fez-me devolver uma bolsa cheia de ouro que por sorte tinha encontrado. Qualquer homem que a tenha fica um pedinte. Bem, vamos ao trabalho?
PRIMEIRO MATADOR Dá-lhe na tola com o punho da espada – e depois deita-o no tonel de malvasia na sala ali ao lado.
SEGUNDO MATADOR Óptima ideia! Pomo-lo de molho. PRIMEIRO MATADOR Chiu – ele está a acordar. […] CLARENCE Quem vos mandou? Para que viestes aqui? SEGUNDO MATADOR Para... para... CLARENCE Me matar? PRIMEIRO e SEGUNDO MATADOR Sim, sim. CLARENCE Mal tendes coragem para mo dizer,
Não tereis, portanto, coragem para o fazer. Meus amigos, em que é que vos ofendi?
PRIMEIRO MATADOR A nós não ofendestes – mas ao Rei. CLARENCE Hei de reconciliar-me com ele. SEGUNDO MATADOR Nunca, meu senhor – preparai-vos para morrer. CLARENCE Qual é o meu crime?
Onde estão as provas com que me acusam? Que júri legal entregou o seu veredicto Ao austero juiz? Ou quem pronunciou A amarga sentença de morte de Clarence Antes de eu ser condenado à luz da lei? É contra a lei ameaçarem-me de morte. O ato a que vindes conduz à danação.
PRIMEIRO MATADOR O que faremos é no cumprimento de ordens. SEGUNDO MATADOR E quem nos deu as ordens é o nosso rei. CLARENCE Vassalos iludidos! O Rei dos reis
Ordenou na tábua da Sua lei Que não matarás. Ireis vós então Rejeitar Seu édito e seguir o de um homem? Cuidai-vos; que a Sua mão lançará a vingança Sobre a cabeça de quem quebra a Sua lei.
Sabedoria popular: a ordem do mundo ATO 2 CENA 3
TERCEIRO POPULAR É verdade que morreu o bom Rei Eduardo? SEGUNDO POPULAR Sim senhor, bem verdade. Deus nos ajude! TERCEIRO POPULAR Ides ver então, mestres, o mundo em pantanas. PRIMEIRO POPULAR Não! Pela graça de Deus, reinará o seu filho. TERCEIRO POPULAR Infeliz a terra em que manda um menino! SEGUNDO POPULAR Há nele uma esperança de bom governo:
Na sua menoridade, do Conselho, E nos seus anos maduros, dele próprio – Que por certo há de assim governar bem.
PRIMEIRO POPULAR Assim esteve o estado quando Henrique VI Foi coroado em Paris aos nove meses.
TERCEIRO POPULAR Esteve assim? Não, bons amigos, Deus bem sabe: Este país tinha então fama de riqueza Em sério conselho político; e o Rei
Tinha tios virtuosos que o protegiam. PRIMEIRO POPULAR E assim tem este, pelo pai como pela mãe. TERCEIRO POPULAR Melhor seria virem todos de seu pai,
Ou de seu pai não vir nem um para a conta; Que a compita por quem há de estar mais próximo Há de sobrar para todos nós – Deus o impeça.
É cheio de perigos o duque de Gloucester, E os irmãos e filhos da Rainha arrogantes; E se alguém mandasse neles, e eles não mandassem, Esta terra enferma voltava a ter descanso.
PRIMEIRO POPULAR Ora, agoiramos o pior. Tudo há de correr bem. TERCEIRO POPULAR Quando há nuvens, quem tem juízo põe a capa;
Quando caem as folhas, está perto o Inverno; Quando o sol se põe, não contamos com a noite?
Representar é dissimular ATO 3, CENA 5
RICARDO Então, primo, sabes tremer, mudar de cor,
Matar o fôlego a meio da palavra, E começar de novo, e de novo parar, Como se transtornado, louco de pavor?
BUCKINGHAM Ora, sei imitar o trágico profundo, Falar a olhar sobre o ombro, de soslaio, Tremer num sobressalto à mais pequena brisa; Para fingir desconfiança, tenho ao dispor Olhares terríveis, como sorrisos forçados; Uns e outros estão sempre de prontidão A qualquer hora, para servir as minhas tramas.
A vingança: um sem fim de mortes ATO 4, CENA 4
RAINHA MARGARIDA Recontai os vossos males à luz dos meus.
Eu tinha um Eduardo, até um Ricardo o matar; Eu tinha um Henrique, até um Ricardo o matar; Tu tinhas um Eduardo, até um Ricardo o matar; Tu tinhas um Ricardo, até um Ricardo o matar;
DUQUESA DE YORK Eu tinha um Ricardo também, e tu mataste-o Eu tinha um Rutland, e ajudaste a matá-lo.
RAINHA MARGARIDA Tu tinhas um Clarence, e Ricardo matou-o. Do canil do teu ventre se esgueirou Um cão do inferno que nos caça até à morte. Teu ventre o largou para acossar-nos até à tumba. Ó Deus, que és recto e justo e impões a verdade: Agradeço-Te por este perro carnívoro Fazer presa na prole da sua mãe, Forçando-a a fazer coro com os gemidos de outras!
DUQUESA DE YORK Não te ufanes dos meus males.
Deus é testemunha – eu chorei pelos teus. RAINHA MARGARIDA Eu tenho sede de vingança
Está morto o teu Eduardo, que matou o meu Eduardo; Morto está o teu outro Eduardo, para quitação do meu; Está morto o teu Clarence, que apunhalou o meu Eduardo, Vive Ricardo, Mas em breve, em breve Virá o seu triste fim que ninguém entristece. Abre a terra, arde o inferno, rugem diabos, rezam os santos Para o ver levado de súbito daqui. Rasga-lhe o título da vida, ó Deus; peço-te, Que eu viva para poder dizer: “Morreu o cão!”
Argumentos e juras: conversas com a ambição ATO 4, CENA 4
RICARDO Como eu pretendo prosperar, arrependido,
Assim eu vença em meus propósitos perigosos De armas hostis. Que eu me confunda a mim próprio! Céu e fortuna me neguem horas de ventura! Dia, não me dês luz – nem, noite, o teu sossego. Todo o astro da boa sorte seja adverso Aos meus propósitos se, com o amor mais terno, Eu não votar à tua bela e régia filha Devoção sem mácula e santos pensamentos! Nela consiste a tua ventura e a minha; Sem ela, advirão para mim e para ti, Para ela própria, o país e muitos cristãos, Morte, desolação, ruína e declínio. Não podem evitar-se senão assim; Não serão evitados senão assim. Portanto, querida mãe – assim devo chamar-vos – Sede a advogada de meu amor junto dela:
RAINHA ISABEL Hei de ser assim tentada pelo diabo? RICARDO Sim, se o diabo vos tenta a fazer o bem. RAINHA ISABEL Hei de esquecer-me de mim para ser eu própria? RICARDO Sim, se a lembrança de vós mesma vos faz mal. RAINHA ISABEL Porém tu mataste-me os meus filhos. RICARDO Mas enterro-os no ventre de vossa filha,
E desse ninho de delícias crescerão Outros seres deles próprios, para vosso conforto. RAINHA ISABEL Hei de conquistar a minha filha para o teu querer? RICARDO E por tal ato sereis uma mãe feliz. RAINHA ISABEL Vou então.
A solidão e as mil línguas de Ricardo ATO 5, CENA 3 RICARDO Dai-me outro cavalo! Estancai-me as feridas!
Tem piedade, Jesus! – calma, é só um sonho. Ah, consciência cobarde, como me afliges! A chama é azul: meia-noite, a hora morta. Gotas de medo enregelam-me a carne trémula. Medo de quê? De mim próprio? – não está cá outro. Ricardo ama Ricardo: ou seja, eu sou eu. Foge, então. Quê – de mim próprio? Grande razão – Não vá eu vingar-me. Eu, de mim próprio? Ora, Amo-me a mim próprio. Porquê? Por algum bem Que eu próprio tenha feito a mim próprio? Ah, não! Na verdade, antes me odeio a mim mesmo Por atos odiosos que eu mesmo cometi. Sou um vilão. Minto, porém – que não o sou. A minha consciência tem mil línguas E cada língua conta uma história diferente, E cada história me condena por ser vilão. Perjúrio, perjúrio no mais alto grau. Assassínio, brutal e no grau mais atroz – Todos os pecados, variamente cometidos, Vão em chusma ao juízo, gritando: "Culpado!" Vou desesperar. Não há criatura que me tenha amor; Se eu morrer, não há alma que de mim se apiede. Ora, e por que haveriam de o fazer, se eu próprio Não acho em mim compaixão para comigo?
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Sobre teatro, tragédia e linguagem em Ricardo III
(EXCERTOS DE VÁRIOS AUTORES)
Tragédia: ação e destino A.C. BRADLEY, SHAKESPEAREAN TRAGEDY, 1904
A “história” ou “ação” das tragédias shakespearianas não poderá consistir em atos humanos apenas, mas os atos são o fator predominante nelas. E estes atos são, em sua maior parte, atos na plena aceção da palavra: não são praticados “entre o sono e a vigília”, mas são atos ou omissões que inteiramente expressam o agente, são atos característicos. Poderemos dizer com igual verdade que o centro da tragédia é a ação resultante da personagem ou a personagem criando-se em ação.
Era este o principal interesse de Shakespeare. Dizer que o seu interesse se centra apenas na personagem ou que se tratava de um interesse psicológico seria um erro tremendo, porque Shakespeare era um dramaturgo até à ponta dos dedos. Podemos encontrar trechos em que se comprazeu no seu amor pela poesia, e mesmo na sua inclinação pelas verdades gerais, mas será muito difícil – e talvez impossível, nas suas últimas tragédias – detetar passagens onde Shakespeare tenha dado livre curso ao interesse pelas personagens independentemente da ação. Mas torna-se evidente que Shakespeare se interessava ainda menos pelo extremo oposto, pela abstração da “intriga” por si mesma (que é muito diferente da “ação” trágica). Não pretendo dizer que um interesse desse tipo esteja ausente dos seus dramas; mas subordina-se a outros, e tanto se entrelaça neles que raramente temos consciência dele em separado, e raramente ficamos presos de uma excitação, quase intelectual e quase nervosa, por seguir um engenhoso enredo. O que se nos impõe, à medida que a tragédia se aproxima do seu fim, é a impressão de que as calamidades e a catástrofe são a consequência inevitável dos atos dos homens, e que a fonte principal desses atos é a personagem. A frase-feita segundo a qual em Shakespeare “o destino é a personagem” é sem dúvida um exagero e pode levar a conclusões erradas (porque muitas das figuras trágicas em Shakespeare, se não se tivessem defrontado com circunstâncias peculiares, teriam sem dúvida escapado a um destino trágico e poderiam ter vivido em relativo sossego); mas é o exagero de uma verdade vital.
SIR WALTER RALEIGH, SHAKESPEARE,1907
Salvo algumas exceções, não há uma lição moral nas tragédias de Shakespeare. As suas tragédias tratam de coisas mais vastas que o homem; tratam de poderes e paixões, das forças elementares, e de negros abismos de sofrimento; tratam do fogo central que rompe a fina crosta de civilização e brilha em esplendor nos céus, por sobre o negro dos lares destruídos. Porque é um poeta, porque tem uma verdadeira imaginação, Shakespeare sabe como é precário o direito que o homem tem sobre a terra, como são enganosos os seus hábitos sossegados e as suas palavras prosaicas. A qualquer momento o acaso ou o destino podem destruir posses, hábitos e palavras e restituir o mundo às forças que entre si lutaram no caos. Não se pode afirmar que nestas tragédias o destino é a personagem.
LUCA RONCONI SOBRE A SUA ENCENAÇÃO DE RICARDO III EM 1968, CITADO POR FRANCO QUADRI IN RONCONI OU LE RITE PERDU, 1974
O drama, na parte final, torna-se tragédia, não tanto pelo número medonho de atrozes acontecimentos, mas sim pela sensação de que os crimes são feitos cada vez mais automaticamente, mecanicamente e despersonalizados, à medida que a peça decorre, e que o desaparecimento progressivo dos interlocutores de Ricardo – ou antes, das vítimas que ele próprio designa – deixa um vazio cada vez mais vasto e glacial.
Solilóquio, metateatralidade ANTONY HAMMOND, PREFACIO A KING RICHARD III, ARDEN SHAKESPEARE, 1981
Toda a peça onde uma personagem se dirige diretamente ao público terá algo de distanciação ao imprimir uma qualidade mais dialética do que realista à peça, mas em Ricardo III este aspeto é acentuado. [...] O papel de Ricardo é o de “vilão”; a ideia de que a primordial atividade de uma personagem consiste no desempenho de um papel através do qual ganha identidade parece de facto ser o que diz Ricardo no seu solilóquio de abertura. Para provar que é um vilão é necessário cumprir todas as atividades tradicionalmente associadas com o papel do vilão em teatro, tais como: oprimir os fracos e desamparados, obstar aos esforços do herói (i.e. Eduardo IV) e constantemente arquitetar e executar crimes cada vez mais monstruosos. Ricardo encena uma variedade de pequenas peças nos primeiros três atos, aparentemente para atingir o trono; mas na realidade o seu fito é não o que o espetáculo pode realizar mas o espetáculo em si; como Iago, a sua resolução ganha força com as suas desonestidades, demonstrando toda a sua versatilidade enquanto os seus opositores, fastidiosamente, se aferram aos seus papéis únicos. Talvez a divisa de Ricardo deva ter sido também ars gratia artis.
NICHOLAS BROOKE, SHAKESPEARE EARLY TRAGEDYS, 1968
Como a maior parte dos ironistas, Ricardo atrai o público para “o seu lado” envolvendo-nos simultaneamente mais quando (e volta a ser ironista) trai a nossa confiança e se revela distante de nós, deixando-nos embaraçados como o fez Baudelaire: “Vous! hypocrite lecteur! mon semblable! mon frère!” A nossa condenação do mal mistura-se com o nosso reconhecimento de que somos irmãos com ele.
D.J.PALMER, THE SELF-AWARENESS OF THE TRAGIC HERO, IN SHAKESPEARIAN TRAGEDY, 1984
Ricardo não só tem o papel principal, mas pelo facto de apresentar a peça assume um estatuto de quase-autoria, dando a intriga que está para se desenrolar. Na medida em que controla a ação pelo seu virtuosismo na dissimulação, Ricardo é a sua própria criação artística, refazendo aquilo que a “natureza enganadora” (II, l) tão horrivelmente criou. Pelo menos é essa a sua visão de si próprio. Ironicamente, claro, um dos seus primeiros triunfos é a conquista de Lady Ana, dessa forma desmentindo a sua afirmação de que “Não posso ser amante”. Na sua autocongratulação trocista no final da cena em que faz a corte ele confessa: “Tenho todo este tempo medido mal minha pessoa” (I,2) e promete comprar um espelho com a piada final em que se autoparodia: “Brilha, Sol luminoso, até eu comprar um espelho/ Para que minha sombra possa eu ver enquanto passo.” ( I , 2 ) A maior ironia é que Ricardo mede mesmo mal a sua pessoa e acaba por ser vitimado pela sua própria consciência. O padrão esquemático de retribuição de que Ricardo não é o autor mas simplesmente o agente, confere à ação uma circularidade que liga o passado ao presente. Para Ricardo, o círculo é fechado com a crise do seu ser interior precipitada pelo seu sonho na véspera de Bosworth.
Linguagem, retórica e palavras ANTONY HAMMOND, PREFACIO A KING RICHARD III, ARDEN SHAKESPEARE, 1981
Brooke tem razão ao observar que a peça é “um trabalho de um virtuosismo técnico notável”, e investiga os modos como as formas linguísticas formam um paralelo com as estruturas temáticas e dramáticas: por exemplo os contrastes entre a formalidade da rainha lamentosa e a coloquialidade ríspida de Ricardo: “Fora com a sua cabeça”. A ironia é omnipresente na peça, tanto a ironia verbal como a ironia dramática; “o seu efeito cumulativo é apresentar as personagens como existindo num estado de total e terrível incerteza” (Rossiter).
A retórica pode ser um instrumento da caracterização: reparem em Buckingham, cujas banalidades pomposas escondem a superficialidade da sua visão. A ironia pode multiplicar-se à medida que as palavras cedem sob a tensão de um permanente abuso: “deus”, “graça”, “senhor” são mais frequentemente usadas no Ricardo III do que noutra qualquer peça de Shakespeare, o mesmo acontecendo também com “assassínio”, “inferno”, “ódio”, “matar” e “sangue”. As habituais duplicidades de Ricardo, o constante mau uso das palavras por parte de Margarida, tiram valor ao nome de Deus, transformam o céu em inferno, minam os alicerces linguísticos da moral. Isabel aponta com desdém que as ações de Ricardo
traem as suas nobres palavras (IV.4), e no entanto o drama constrói-se sobre a linguagem: no mundo de Ricardo a própria natureza da realidade é instável. Num mundo como o dele a ficção pode parecer tão sólida como o facto: o sol não nascerá sobre Bosworth, agouros e profecias são tão reais como a história que todos perverteram para atingirem os seus fins egoístas. Um partidário chamado Hastings surge do nada para confrontar Lord Hastings na sua involuntária marcha para a execução. Margarida regressa subitamente do exílio, facto que nem sequer parece estranho. As palavras que parecem gelar no seu desenho retórico formal acabam por ser, paradoxalmente, as mais indefinidas.
A figura do Vício ANTONY HAMMOND, PREFACIO A KING RICHARD III, ARDEN SHAKESPEARE, 1981
Shakespeare rejeitou a escolha óbvia de o representar apenas como um tirano bombástico, e seguindo as leves indicações encontradas em More escreveu para Ricardo um papel que se desenvolve a partir da moralidade Vício. Pode ser útil referir alguma coisa sobre isso: nas primeiras moralidades os vários vícios que afligem a humanidade eram personificados individualmente; em meados do séc. XVI uma figura única representativa do mal veio a ser chamada “O Vício” que “adquiriu personalidade e estatuto teatral próprio mais vasto que as características alegóricas” Happé identifica a Avareza em Respublica como o primeiro Vício a preencher todas as unções características do tipo. Ele é “artista pregador, extraordinário criador de enredos, e mestre de cerimónias dramáticas”; o seu método é sempre fraude e traição; a sua finalidade “a tradução em clara imagem dramática da constante autodesilusão ou cegueira da humanidade perante a verdadeira natureza das tentações às quais ela sucumbe. Ele apresenta o truque das lágrimas e do riso. O seu choro finge a sua afeição e interesse pela sua vítima; o seu riso, no interesse da audiência, declara o triunfo da sua fraude subtil e o seu desprezo pela fraca virtude da humanidade. Contudo, ele atrai a atenção do público e até a simpatia, quer corporizando os seus próprios impulsos destrutivos e antiautoritários, quer comprometendo o público numa relação de comparação com ele próprio, uma relação que aumentava à medida que as peças exploravam temas cada vez mais seculares e eram apresentadas numa forma cada vez mais estética do que homílica. [...] Das cerca de sessenta características da figura do Vício catalogadas por Happé reconhecem-se no Ricardo shakespeariano as seguintes: o uso de um nome suposto, a aparência estranha, o uso de à partes, a discussão dos planos com a assistência, o disfarce, o castigo primeiro longamente evitado mas finalmente sofrido, o comentário moral, a importância do nome e a relutância dele, a explicação de si próprio em solilóquio, funções satíricas que incluem um ataque às mulheres e vários sinais de depravação tais como a jactância e a presunção, o gozo do poder e a sexualidade imoral. Entre os modos de expressão utilizados pelo Vício encontramos a impertinência, uma lógica inconstante, o uso de provérbios e pragas, e os lapsos reveladores.
Vingança e culpa ANTONY HAMMOND, PREFACIO A KING RICHARD III, ARDEN SHAKESPEARE, 1981
É uma peça anormalmente pura, no que diz respeito à ação sensacionalista: embora adapte muitos elementos do drama de vingança e da “tragédia de sangue” há muito pouca ação no palco que seja fisicamente chocante. [...] A vingança não é apenas objeto de ameaça; ela cai sobre aqueles que sinistramente reconhecem a sua culpa na altura da sua execução. Novamente, Hastings é o mais importante destes, mas o tema está fortemente presente no sonho terrível de Clarence e no seu fim angustiante, e em toda a parte. “Culpa” é a palavra que ocorre mais vezes em Ricardo III do que em qualquer outra peça de Shakespeare. Tanto os Lancastre como os York são culpados: a abdicação moral de Henrique VI conduz ao domínio de Margarida no último período da Guerra das Rosas; a violência e brutalidade dela são referidas por outros na cena 3 do Ato I, embora ela mostre que não tem consciência do seu papel no assassínio coletivo. Por seu turno os York provocaram a guerra civil; Eduardo quebrou os seus juramentos, como o fez Clarence: são uma geração que se alimenta da violência, cujos arrependimentos individuais não bastam para curar o cancro da usurpação, desordem civil e violência.
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Contexto histórico e árvores genealógicas das personagens de
Ricardo III A Guerra das Rosas Se é verdade ter a guerra dos 100 anos arruinado a França, esgotou também a Inglaterra. Com efeito, o esforço que exigiu dela estava muito além das possibilidades dos seus recursos. Politicamente a guerra teve consequência que adiante discutiremos. Mas sobre este ponto de vista deveremos mencionar dois outros resultados. Em primeiro lugar, a derrota da dinastia inglesa salvou a Inglaterra de se tornar, pelo menos, temporariamente, um anexo da França, onde o rei certamente residiria e de onde tentaria governar despoticamente ambos os países. Em segundo lugar, acelerou-se também, em ambos os países, o nascimento da consciência nacional. Não há dúvida que durante esta longa luta, a consciência nacional se difundiu e penetrou em todas as camadas da população. A tendência para acusar o inimigo, como causa dos infortúnios próprios, favoreceu o aparecimento de um mais vivo apego ao solo e à dinastia que governava o seu próprio país. Na França devastada, o patriotismo foi durante muito tempo caracterizado pelo ódio ao inglês. Na Inglaterra, o lamentável fim da guerra e o descontentamento geral provocaram uma aguda reação contra a casa de Lancastre. Ricardo, duque de Iorque, filho do quinto filho de Eduardo III, apresentou a sua pretensão ao trono. Rebentou a “Guerra das Duas Rosas”: a rosa branca, símbolo de York contra a rosa vermelha, símbolo de Lancastre. Toda a nobreza participou nela; Ricardo morreu, mas os seus partidários comandados pelo conde de Warwick venceram em 1461 e Eduardo IV, filho de Ricardo, subiu ao trono. Conservou-se no trono até que Warwick, o “fabricante de reis”, sentindo os seus interesses pessoais em perigo, o derrubou em 1470, com a ajuda de Luís XI, rei de França, e restituiu o trono a Henrique VI. Esta reconciliação entre a Inglaterra e a França constituía uma ameaça para o duque de Borgonha, Carlos o Temerário que foi o mais perigoso inimigo de Luís XI. Em 1471, Eduardo IV, com a ajuda burguesa, reconquistou o poder e Warwick foi morto. A desordem continuava a dominar na Inglaterra e quando o rei morreu, em 1483, os seus dois filhos foram mortos pelo tio que subiu ao trono com o nome de Ricardo III; contudo, este foi, por sua vez, atacado por Henrique Tudor, um descendente, por linha feminina, da casa de Lancastre e que, tendo ganho a batalha de Bosworth em 1485, se tornou o rei Henrique VII; o seu casamento com a filha de Eduardo IV contribuiu para a reconciliação entre os dois partidos. F.L.GANSHOF, “A IDADE MÉDIA”, HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO EUROPEIA, 1956.
As personagens principais de Ricardo III: relações familiares e destinos CASA DE LANCASTRE – ROSA VERMELHA
HENRIQUE VI Morto na Torre por Eduardo IV e Ricardo; é o cadáver que vemos na cena 2 do Ato I.
MARGARIDA ANJOU É a rainha deposta. Ordena o assassinato de Rutland. EDUARDO, PRÍNCIPE DE GALES Morto na batalha de Tewksbury por Ricardo. ANA NEVIL Viúva de Eduardo, Príncipe de Gales (e irmã de Isabel Nevil). Casa
com Ricardo III, depois de ter sido cortejada durante o cortejo fúnebre do sogro. Depois de coroada rainha, é presa e morta na Torre por ordem de Ricardo.
CASA DE YORK – ROSA BRANCA
RICARDO PLANTAGENETA Morto durante as guerras contra Lancastre para destronar Henrique VI, que o deveriam levar ao trono.
CECÍLIA NEVIL Duquesa de York. EDUARDO IV Rei no trono no início da peça, foi coroado usurpando a coroa a
Henrique VI.
RAINHA ISABEL Viúva do senhor de Grey, antigo partidário da casa de Lancastre, de que são filhos Grey e Dorset. Irmã de Rivers.
EDUARDO V E RICARDO, DUQUE DE YORK Presos na Torre e assassinados por Ricardo III, seu tio. ISABEL Ricardo III tenta casar com ela, depois da morte de Ana Nevil. Mas
Isabel acaba por casar com Richmond, da Casa de Lancastre: é ele quem mata Ricardo na batalha de Bosworth, tornando-se Henrique VII e dando assim início à dinastia dos Tudor (no poder na época de Shakespeare).
EDMUND RUTLAND Assassinado durante as guerras pelo poder a mando da Rainha
Margarida. GEORGE, DUQUE DE CLARENCE Casado com Isabel Nevil e, por via do sogro, em tempos partidário
da casa de Lancastre. Preso na Torre por intriga de Ricardo III e aí assassinado por ordem sua.
EDUARDO Encarcerado na Torre por Ricardo III. MARGARIDA Casada em criança com “um qualquer pobre e mísero fidalgo” por
ordem de Ricardo III. RICARDO III Duque de Gloucester, casado com Ana Nevil.
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Pistas de reflexão e trabalho - No teatro isabelino, como eram representadas as peças de Shakespeare? Ver em particular distribuição dos papéis, a questão da duração das peças e dos cortes do texto.
- Pesquisar notícias da descoberta, em 2013, das ossadas do Ricardo III histórico. Que consequências terá isso para o modo como a personagem de Shakespeare é representada, nomeadamente em relação à sua deformidade?
- No cenário da encenação de Tónan Quito, que propósitos serve a terra que cobre o chão, que significado terá?
- Comparar adaptações cinematográficas de Ricardo III, nomeadamente: a de Richard Loncraine (1995) com Ian McKellen, que transporta a peça para uma versão fascista da Grã-Bretanha nos anos 30; a de Laurence Olivier (1955), que desempenha também o papel principal; e o documentário Looking for Richard (1996), de Al Pacino, que explora o impacto cultural da peça.
- Procurar a presença da figura de Ricardo III na cultura popular, por exemplo nas séries recentes House of Cards ou Game of Thrones. Que elementos são aproveitados? (Discurso para a câmara, lutas pelo poder.)
- Em que medida Ricardo III constitui uma crítica ao poder, e de que modo faz o seu elogio? Falar sobre a figura de Ricardo enquanto centro desse paradoxo.
- Fazer o exercício de traduzir um excerto de Shakespeare (por exemplo o monólogo inicial de Ricardo). Refletir sobre as escolhas de tradução desta versão, comparar com outras traduções portuguesas de outras épocas. Existem quatro
traduções integrais da peça, da autoria de D. Luís (1880), de Henrique Braga (1955), de Dídia Marques Reckert (1968) e Luís Miguel Cintra com Adélia Silva Melo e Eduarda Dionísio (1986).
- Em Ricardo III a grande arma são as palavras, embora se diga a dado momento que “Quem tem palavras não tem obras” (Ato 1, cena 3). As palavras servem para argumentar, para seduzir, para enganar, para mentir, para sugerir, para agoirar, para jurar, para acusar, etc. Fazer uma listagem e procurar exemplos na peça desses usos e poderes, bem como das suas consequências.
- No texto escrito de Shakespeare, cada cena começa e acaba com entradas e saídas de cena; todas as mortes, à exceção da de Clarence, acontecem fora de cena. Confrontar isto com a encenação do Tónan Quito, em que não existe fora de cena. Quais as consequências disto para a leitura da peça? (A ideia da corte como lugar de conspiração e de como todos são culpados; ideia das peças dentro da peça e a metateatralidade; ideia de todos poderem alterar o rumo da peça, de todos serem Ricardo; ideia do não desaparecimento dos mortos: são possuídos e tornam-se Ricardo, voltam como fantasmas.)
- Qual a importância da música neste espetáculo? Analisar o diálogo da música com as cenas: quem dita o ritmo? (Variação entre a música estabelecer o ritmo da cena e as personagens ditarem o ritmo da música.)
- Porque é que se pode dizer que esta versão de Ricardo III é punk? Quais são os elementos desta encenação que contribuem para isso? (Figurinos, música/ritmo, movimento, estilo da representação.) Quais são elementos da peça que podem contribuir para isso? (Aspetos da linguagem, construção das cenas, personagem de Ricardo.)
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Informações e reservas Escolas
Informações e reservas para Escolas Deolinda Mendes + 351 213 250 828 [email protected] www.teatro-dmaria.pt/pt/escolas
Também no D. Maria II Ricardo III Sessão com interpretação em Língua Gestual Portuguesa 25 out dom, 16h
Ricardo III Conversa com artistas 25 out após o espetáculo
Debate Poder, atrocidade, imaginário – a propósito de Ricardo III 24 out sáb, 16h Salão Nobre
Em plena carreira do espetáculo Ricardo III, o Salão Nobre do D. Maria II será o palco de um vivo debate em torno da obra de William Shakespeare. A discussão será enriquecida com a presença de um painel de especialistas nacionais e internacionais, composto por Rui Carvalho Homem (Universidade do Porto), Diana Henderson (MIT), Robert Sawyer (East Tennessee State University) e Francesca Rayner (Universidade do Minho).
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Quem somos Teatro Nacional D. Maria II, E.P.E.
Direção Artística Tiago Rodrigues Conselho de Administração Miguel Honrado, Cláudia Belchior, Sofia Campos Fiscal Único Vítor Almeida & Associados, SROC * Assessoria Artística Magda Bizarro Consultor Jurídico Rui Costa Ferreira * Advogada Joana Moedas Morgado * Secretariado Conceição Lucas Motorista David Fernandes Atores João Grosso, José Neves, Lúcia Maria, Manuel Coelho, Maria Amélia Matta, Paula Mora e Ana Água, Ana Tang, Ana Valente, Marco Mendonça, Sandra Pereira, Victor Yovani (estagiários ESTC 2015-16) Direção de Produção Carla Ruiz, Manuela Sá Pereira, Pedro Pires*, Rita Forjaz Direção de Cena André Pato, Carlos Freitas, Catarina Mendes, Isabel Inácio, Manuel Guicho, Paula Martins, Pedro Leite Auxiliar de Camarim Paula Miranda Pontos Cristina Vidal, João Coelho Guarda-roupa Aldina Jesus, Graça Cunha, Lurdes Antunes Direção Técnica José Carlos Nascimento, Eric da Costa, Vera Azevedo Maquinaria e Mecânica de Cena Vítor Gameiro, Jorge Aguiar, Marco Ribeiro, Paulo Brito, Nuno Costa, Rui Carvalheira Iluminação João de Almeida, Daniel Varela, Feliciano Branco, Luís Lopes, Pedro Alves Som/Audiovisual Rui Dâmaso, Pedro Costa, Sérgio Henriques Manutenção Técnica Manuel Beito, Miguel Carreto Motorista Carlos Luís Direção de Comunicação e Imagem Raquel Guimarães, João Pedro Amaral, Rita Conduto*, Tiago Mansilha Fotografia Filipe Ferreira Vídeo Pedro Macedo/Framed Design Gráfico R2 *
Direção Administrativa e Financeira Margarida Guerreiro, Eulália Ribeiro, Rute Presado, Susana Cerqueira Tesouraria Ivone Paiva e Pona Recursos Humanos António Monteiro, Madalena Domingues Técnico Oficial de Contas Fluxactivo * Direção de Manutenção Susana Dias, Albertina Patrício Assessoria em Arquitetura Pedro Fidalgo * Manutenção Geral Carlos Henriques, Raul Rebelo Assessoria em Sistemas Elétricos Manuel Alexandre * Informática Nuno Viana Técnicas de Limpeza Ana Paula Costa, Carla Torres, Luzia Mesquita, Socorro Silva e Astrolimpa Vigilância Grupo 8 * Direção de Relações Externas e Frente de Casa Ana Ascensão, Carlos Martins, Deolinda Mendes, Fernanda Lima, Carolina Villaverde Rosado (estagiária) Bilheteira Rui Jorge, Carla Cerejo, Sandra Madeira Receção Delfina Pinto, Isabel Campos, Lurdes Fonseca, Paula Leal Assistência de Sala Complet’arte * Direção de Documentação e Património Cristina Faria, Rita Carpinha Livraria Maria Sousa Biblioteca|Arquivo Ana Catarina Pereira, Ricardo Cabaça * prestação de serviços
Teatro Nacional D. Maria II Praça D. Pedro IV 1100-201 Lisboa T.: +351 213 250 800 [email protected] www.teatro-dmaria.pt