A mMão1 (sobre Suplício de uma alma)
Jacques Rivette
O primeiro ponto que impressiona o espectador desprevenido, após alguns minutos de
projeção, é o aspecto de diagrama, ou quase de exposição, instantaneamente assumido
pelo desenrolar das imagens: como se o que assistíssemos fosse menos a mise en scène
de um roteiro e mais a simples leitura desse deste roteiro, apresentada a nós como tal,
sem ornamento. Sem, tampouco, qualquer comentário pessoal por parte do narrador.
Assim, ficaríamos tentados a falar de uma mise en scène puramente objetiva, se uma tal
mise en scène fosse possível: mais prudente, entretanto, é acreditar que se trata de algum
estratagema, e aguardar o que se segue.
O segundo ponto, em princípio, parece confirmar a primeira impressão: é a
proliferação de recusas que sustentam a própria concepção do filme, e que
possivelmente a constituem. A recusa, flagrante, da verossimilhança, tanto na trama
quanto nesta outra verossimilhança, mais artificial, da construção das situações, da
preparação, da atmosfera, que usualmente permite aos roteiristas do mundo inteiro
incluir, sem dificuldade alguma, peripécias dez vezes mais gratuitas do que as daqui.
Nenhuma concessão é feita aqui ao cotidiano, nem ao detalhe: nenhum comentário
sobre o clima, sobre o corte de um vestido, sobre a graciosidade de um gesto; se
tomamos consciência de uma marca de maquiagem, é pelo propósito da trama. Estamos
mergulhados num universo da necessidade, ainda mais sensível porque ela coexiste
harmoniosamente com a arbitrariedade da premissa. Lang, como se sabe, sempre busca
a verdade além do verossímil, e aqui ele a busca desde o início no inverossímil.2 Outra
recusa, a par com a primeira: a do pitoresco; os amadores não encontrarão aqui
nenhuma destsas silhuetas prazerosamente desenhadas, desses destes diálogos
penetrantes ou desses destes traços nos quais a surpresa toma o lugar da invenção, que
atualmente fazem a reputação de diretores como Lumet ou Kubrick. Todas essas estas
recusas, aliás, são acompanhadas por um certo desdém que alguns sentem tentados a ver
como o desprezo do diretor por sua tarefa; mas por que não um desprezo por esse este
tipo de espectador?
1 Publicado originalmente como sob o título “La main” em Cahiers du Cinéma nº 76, novembro de 1957. Traduzido por Bernardo Versiani. Revisado porão: Calac Nogueira. (N.E.)2 Em francês, o filme foi intitulado “L’'Iinvraisemblable Véritévérité”, o que explica o recorrente uso da expressão verossimilhança (e suas derivações) pelo autor. (N.T.)
Posteriormente, à medida que o filme prossegue, estsas primeiras impressões
encontram sua justificativa. O tom expositório expositivo prova ser o correto, já que se
trata de um problema, que nos é apresentado com todos seus elementos, e mesmo um
duplo problema: o primeiro deriva do roteiro, e, estando bem claro, não precisa ser
tratado no momento; o outro, mais secreto, pode ser formulado assim: sob dadas
condições de temperatura e pressão (aqui, de uma ordem transcendental da experiência),
o que pode subsistir de humano nesta atmosfera? Ou, mais modestamente, qual parte da
vida, mesmo desumana, pode subsistir num universo quase i-abstrato que está, todavia,
dentro de uma extensão de universos possíveis? Em outras palavras, um problema de
ficção científica. (A qualquer um que duvide dessa desta suposição, sugiro uma
comparação deste filme com A mulher na lua [Frau im Mond, 1929], onde no qual a
trama era para Lang, sobretudo, o pretexto para sua primeira tentativa de um universo
totalmente fechado.)).
É então que o coup de théeâatre3 intervém: cinco minutos antes do desenlace, os
dados do problema são bruscamente invertidos, para o escândalo dos espíritos
cartesianos, que dificilmente admitem a técnica da inversão dialética. Ora, se as
soluções parecem igualmente modificadas, é apenas na aparência: as proporções
permanecem as mesmas e, todas as condições sendo atendidas, a poesia faz sua
aparição. Como queríamos demonstrar.
O termo poesia surpreende aqui; certamente não é aquele que se esperaria. Eu o
deixo provisoriamente, entretanto, já que não conheço outro que exprima melhor esta
brusca fusão numa única vibração de todos os elementos até então mantidos separados
pela vontade abstrata e discursiva; passemos então às consequências mais imediatas.
A uma delas eu já fiz alusão: as reações do público. Um filme como este é
evidentemente a antítese absoluta da ideia de uma “noite agradável”; e, por comparação,
Um condenado à morte escapou (Un Ccondamné à mort s’'est echappé, 1956) e O
homem errado (The Wrong Man, 1956) são divertimentos de sábado à noite. Aqui se
respira, se eu ouso dizer, o ar rarefeito dos cumes, mas correndo o risco da asfixia; não
se poderia esperar menos da superação última de um dos espíritos mais intransigentes
de hoje, cujos filmes recentes já nos tinham nos preparado para este “golpe de estado”
do saber absoluto.
3 Coup de théâatre: reviravolta dramática. (N.E.)
Uma outraLevo outra objeção eu levo mais a sério: este filme seria puramente
negativo e tão eficaz em seus aspectos destrutivos que acabaria no fim das contas
destruindo a si mesmo. Issto não é inverossímil: eu falava agora há pouco de recusa; fui
muito tímido. É de destruição que é preciso falar. Destruição da cena: não sendo
nenhuma qualquer cena tratada em si mesma, subsiste apenas um encadeamento de
momentos puros, dos quais se retém-se somente seu aspecto mediador; tudo o que
poderia determiná-los ou atualizá-los mais concretamente não é nem abstraído, nem
suprimido – — Lang não é Bresson –, —, mas desvalorizado e reduzido à condição de
pura marcação espaço-temporal, desprovida de encarnação. Destruição até mesmo dos
personagens: aqui, cada um deles aqui não é nada além do que dizem ou do que fazem:
quem são Dana Andrews, Joan Fontaine, seu pai? Estsas questões não têm mais nenhum
sentido algum, pois os personagens perderam todas as suas qualidades individuais, não
são mais do que conceitos humanos. Mas, consequentemente, eles são ainda mais
humanos porque menos individuais. Aqui encontramos uma primeira resposta: o que
resta do humano? Há apenas o puramente humano, ao passo que os exibicionistas
fellinianos estão prontos a reduzi-lo, comprometendo-o como suas mentiras e
palhaçadas (mentiras obrigatórias já que se quer reconstituir alguma situação
extraordinária, palhaçadas ainda mais chocantes na medida em que se pretendem
“realistas” e não simplesmente caretas). Quem não sai mais abalado deste filme do que
por tais apelos à cumplicidade ignora tudo, não apenas do cinema, mas do homem.
Estranho destruidor, este que nos conduz a uma tal conclusão enquanto nos
obriga a retomar a objeção pelo avesso: se este filme é negativo, ele só pode sê-lo no
modelo de “negativo puro”, que é também a definição Hegeliana hegeliana de
inteligência. 4
4 Eu sSei qual objeção indubitavelmente será levantada: que o dito “coup de théâatre” é apenas de um mero recurso clássico de histórias de detetive, particularmente de segunda categoria, caracterizado por uma súbita inversão ou alteração dos dados. Mas o fato de que encontrarmos estsa noção de “‘coup de théâtrethéatre”’ recorrentemente nos roteiros de todos os filmes recentes importantes pode significar que o que a princípio parece ser da ordem da arbitrariedade dramática é, em fato, uma necessidade, e que todos esses estes filmes, apesar de sua diversidade nos temas, sem dúvida assumem precisamente o mesmo processo interno que Lang torna sua matéria imediata. Assim como o pacto que liga Von Stratten a Arkadin ([em Grilhões do passado [/Mr. Arkadin, 1955]) atinge sua completa realidade somente quando sua primeira forma é negada, ou o medo da chantagem de Irene ([em O Medomedo [/Non credo più all’'amore, 1954]), quando sabemos sê-la tramada por seu marido, então a necessidade do movimento dialético, sozinha, torna crível a ressurreição em A palavra (Ordet, 1955), a rendição em A carroça de ouro (Le carrosse d’'or, 1952), a conversão em Stromboli (1950), Rossellini, Renoir, Dreyer tendo abertamente desdenhado qualquer justificativa exterior para essa esta última reversão. Por outro lado, é a clara ausência deste movimento que é a deficiência mais séria no roteiro de filmes como Olho por olho (Oeil pour oeil, 1957) ou Os espiões (Les Espions, 1957); e o sentimento de insatisfação deixado por filmes em outros aspectos tão bem- sucedidos, como Um condenado à morte escapou ou O homem
É difícil encontrar uma fóormula precisa para definir a personalidade de Fritz
Lang (não falemos da ideia que um Clouzot poderia ter): um cineasta expressionista,
meticuloso com os cenários e com a iluminação? Muito sintético. Arquiteto supremo?
Isso parece cada vez menos verdade. Brilhante diretor de atores? Claro, mas o que
mais? O que eu proponho é isto: Lang é o cineasta do conceito, o que sugere que, para
não cair em equívoco, deve-se falar a seu respeito não de abstração ou de estilização,
mas de necessidade (necessidade que deve poder contradizer a si mesma sem perder sua
realidade): além do mais, não é uma necessidade exterior — – a do diretor, por exemplo
—, –, mas aquela que nasce do próprio movimento do conceito. Cabe ao espectador
assumir responsabilidade não só pelos pensamentos dos personagens, suas
“motivações”, mas por este movimento do Interior, unicamente a partir das aparências
do fenômeno; cabe a ele saber como transformar estses momentos contraditórios num
conceito. O que é, afinal, este filme? Fábula, parábola, equação, esquema? Nenhuma
dessas destas coisas, mas a simples descrição de uma experiência.
Percebo que ainda não mencionei o objeto da experiência; e isso não é também
sem é interesseinteressante. Inicialmente, trata-se apenas de uma nova variação,
bastante sutil, aliás, do requisitório habitual contra a pena de morte: uma série de
circunstâncias incriminadoras arriscam levar um homem inocente à cadeira elétrica;
melhor: embora este seja de fato provado como culpado, ele o será apenas por sua
própria confissão justo no momento em que sua inocência havia sido reconhecida: daí, a
futilidade da justiça humana, “não julgue”, e por aí vai... Mas logo isso começa a
errado, provavelmente não tem outro motivo. Não que um movimento como esse, cujo processo abrange o elemento de contradição, seja estranho a Hitchcock ou a Bresson (basta lembrar, por exemplo, de Suspeita [Suspicion, 1941] ou de As damas do Bois de Boulogne [Les Dames du Bois de Boulogne, 1945]), nem que esteja totalmente ausente de seus filmes mais recentes, mas está lá sobretudo em estado implícito e sem jamais se desprender do rigor do conceito: há um elemento de aposta na fuga de Fontaine, mas sobretudo a consequência lógica de sua obstinação; seu sucesso não parece nada mais do que a igualdade atingida pela prova de um teorema (um erro nunca cometido pelo maior cineasta do esforço humano: cf. os finais de Scarface [1932], Uma aventura na Martinica [To Have and Have Not, 1944], Rio Vermelho [Red River, 1948], etc.). Ou entãoo , basta comparar o milagre de O homem errado com aquele de Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954) para ver o embate entre duas ideias diametralmente antitéticas, não só da Graça (no primeiro filme, uma recompensa pelo zelo na oração; no último, pura luz liberadora, inserida no próprio momento de desespero, sob uma fé bruta que não percebe a si própria), mas também da liberdade; e que uma tal preocupação com a necessidade —– ou com a lógica, para usar um dos termos preferidos de Rossellini — – seja levada a pontos tão extremos por esses estes cineastas, é somente para afirmar a liberdade dos personagens, simplesmente tornando-a possível; uma liberdade, por outro lado, quase impossível no universo arbitrário de um Cayette ou de um Clouzot, onde somente marionetes podem existir. — – O que digo sobre os cineastas recentes é também verdade, me parece, para o cinema como um todo, começando pela obra de F. W. Murnau; e Aurora (Sunrise, 1927) se mantém o perfeito exemplo de uma construção rigorosamente dialética. Por fim, não reivindico estar sendo inovador aqui (cf., entre outros, o artigo de Alexandre Astruc, “ ‘Cinema et dialectique”’).
parecer muito fácil; o desfecho resiste a essa esta simples redução e imediatamente leva
a um segundo movimento: não pode haver um “falso culpado”; todos os homens são
culpados a priori; e aquele que acaba de ser libertado erroneamente não pode evitar de
incriminar a si mesmo. O mesmo movimento nos leva a um mundo impiedoso, onde
tudo recusa a graça, onde pecado e penalidade estão irremediavelmente ligados, e onde
a única atitude possível do criador é aquela do desprezo absoluto. Mas uma atitude
como essa é difícil de sustentar; enquanto a generosidade se expõe à inevitável perda de
suas ilusões, ao rancor e à amargura, o desprezo por sua vez pode encontrar apenas
surpresas agradáveis e perceber, eventualmente, não que o homem não seja desprezível
(ele continua sendo), mas que ele talvez não seja tanto quanto se supôs.
Tudo isso nos obriga a ultrapassar também este segundo estágio, e a tentar
alcançar enfim, para além, aquele da verdade. Mas de qual ordem ela pode ser?
Entrevejo uma solução: que talvez seja inútil querer opor este último filme de
Fritz Lang a seus primeiros trabalhos, como Fúria (Fury, 1936) e Vive-se uma só vez
(You Only Live Once, 1937); o que de fato enxergamos em cada um dos casos? Nos
primeiros filmes, inocência com a aparência de culpa; aqui, culpa com a aparência de
inocência. Pode alguém não enxergar que eles são sobre a mesma coisa, ou pelo menos
sobre a mesma questão? Para além das aparências, o que são a culpa e a inocência?
Alguém é, de fato, culpado ou inocente? Se há, em absoluto, uma resposta, ela só pode
ser negativa; cabe a cada um, então, criar para si mesmo sua própria verdade, por mais
inverossímil que seja. No úultimo plano, o herói finalmente se concebe como inocente
ou culpado. Certo ou errado, o que importa para ele?
Conhecemos as últimas falas de Les Voix du Silencesilence: “"Humanismo não
significa dizer: o que foi que eu fiz, etc...” Saudemos, então, no penúltimo plano, esta
mão levemente enrugada, inelutavelmente em repouso perto da graça, e que não causa
nem mesmo um tremor nesta forma mais secreta da força e da honra de ser um homem.