Liliana Lopes Sanjurjo
SANGUE, IDENTIDADE E VERDADE: Memrias sobre o passado ditatorial na Argentina
Campinas 2013
2
3
Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
Liliana Lopes Sanjurjo
SANGUE, IDENTIDADE E VERDADE: Memrias sobre o passado ditatorial na Argentina
Orientadora: Profa. Dra. Bela Feldman
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, para obteno do ttulo de Doutora em Antropologia Social.
Este exemplar corresponde verso final da tese defendida pela aluna Liliana Lopes Sanjurjo, e orientada pela Profa. Dra. Bela Feldman
Campinas 2013
4
6
7
Aos meus pais, in memoriam
8
9
AGRADECIMENTOS
Embora o trabalho de escrita seja autoral e, por vezes, um exerccio bastante solitrio,
uma tese est longe de ser o resultado de uma atividade individual. De fato, dificilmente este
texto se concretizaria sem a ajuda, o apoio, a solidariedade e o companheirismo de inmeras
pessoas.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer imensamente a Bela Feldman-Bianco.
Orientadora de longa data, sem sombra de dvida, ela foi (e continuar sendo) uma das
principais responsveis pela minha formao como antroploga. Desde muito cedo me
introduziu nesse caminho instigante da investigao antropolgica que, conforme me disse
certa vez, seria como uma espcie de trabalho de detetive voltado para o desvendamento dos
enigmas sociais. Ensinou-me sobre a importncia do lugar da paixo na escolha de nossos
temas de pesquisa e sobre a relevncia da produo de uma antropologia politicamente
engajada. Sou grata pela confiana e pela liberdade conferida para a conduo desse trabalho,
que inevitavelmente levar a marca da antropologia que procura fomentar: um conhecimento
aberto pluralidade de temas, materiais e fontes documentais, caracterizado pela heterodoxia,
mas sem perder de vista os mtodos e a nfase na investigao das relaes entre Cultura e
Poltica. Sou grata pelo seu profundo humanismo, carinho, afeto, amizade, pacincia e
compreenso, sobretudo diante das situaes mais difceis que a vida irremediavelmente nos
coloca.
Tambm sou imensamente grata a todos os familiares de desaparecidos que me
acolheram durante a pesquisa de campo na Argentina ou que se dispuseram a contar, mais uma
vez, as suas dolorosas memrias e histrias de vida. Foram eles que tornaram possvel esse
trabalho: as madres Nora Cortias, Nadia de Ricny, Ada Sarti, Irma Morresi, Juanita
Pargament e Lita Boitano; as abuelas Rosa Roisinblit, Estela Carlotto, Angelita Barilli de Tasca
e Negrita Segarra; os padres de la plaza Julio Morresi e Abel Madariaga; as queridas Mara
Socorro Alonso e Adela Antokoletz; os hijos Agustn Cetrangolo, Leonardo Fossatti e Giselle.
Agradeo ainda a Marcelo Lopez, Pablo Varella, Celeste Perosino, bem como Guillermina
10
Zampieri e Silvina Segundo, estas ltimas, pela disposio e ajuda na conduo da pesquisa nos
arquivos de Memoria Abierta. Agradeo especialmente a Juan Ros pela amizade, cumplicidade e
parceria durante a minha estada em Buenos Aires e, principalmente, nos tribunais.
Agradeo a minha querida irm Alicia por compartilhar as alegrias e vicissitudes da vida,
a Fernando Poli por am-la e aos dois por trazerem o Antnio a este mundo. Agradeo a minha
av Cludia e a minha tia Mara Ester pelo carinho e afeto de famlia. E agradeo imensamente
a aqueles que, h muito tempo, me escolheram e me adotaram como sobrinha: tio Carlos e tia
Susana Rettori. Meus agradecimentos especiais a Mila Cosme por todo amor, cuidado e ajuda
prestada em momentos delicados.
Sou grata as minhas velhas amigas-irms, companheiras de todas as horas, Laura
Santonieri, Dorotea Grijalva, Patrcia Gimeno e Fabiana Guedes. Agradeo tambm o
companheirismo em Buenos Aires das minhas novas amigas Mariana Palomino, Betania
Gonzlez e, especialmente, Tatiana Beck. Agradeo os queridos amigos de hoje e de sempre
Bukke Reis, Taniele Rui, Clia Harumi, Jos Szwako, Paula Fontanezzi, Diego Marques, Pedro
Loli e Sullivan. Um agradecimento especial a Francisco Russo pelo amor e cumplicidade por
ser filho dessa mesma histria.
Agradeo a interlocuo intelectual e afetiva de Valentina Salvi, Marcella Beraldo,
Carolina Branco, Ral Ortiz, Hctor Guerra, Marta Jardim, Guilherme Dias, Douglas Mansur,
Paulo Dalgalarrondo, Mauro Brigeiro e, principalmente, de Desire Azevedo pela parceira de
vida e de trabalho. Agradeo tambm a Gbor Basch por ter sido meu companheiro numa parte
significativa da trajetria desse trabalho. Sou grata ainda aos parceiros de pesquisa em Buenos
Aires Eva Van Roekel e Ram Natarajan. E agradeo Jussara Miller e Ana Luiza por me
ensinarem os caminhos do corpo e da alma.
Sou grata aos professores Omar Ribeiro Thomaz, Adriana Piscitelli, Bibia Gregori e
Helosa Pontes pela generosidade em suas crticas e sugestes, bem como pelo interesse que
demonstraram, desde o princpio, pelo projeto de pesquisa. Tambm no poderia deixar de
agradecer o apoio fundamental prestado desde a secretaria por Maria Jos Rizola.
11
Gostaria de agradecer as novas amizades estabelecidas com os moradores e seus
agregados daquela que foi praticamente a minha segunda morada durante a escritura da tese:
Philippe Dias, Felipe Punk, Felipe Nascimento, Olavo Marchetti, Guilherme Mitroto, Marcela
Medina, Virgnia Borges, Cssio de Abreu e Fernanda Bruni.
Agradeo ao CNPq e a FAPESP pelo imprescindvel apoio financeiro para a realizao
do projeto.
Finalmente, deixo meu agradecimento especial a Felipe Vigas por todo o seu amor, pela
compreenso, admirao, generosidade, motivao, respeito e, sobretudo, por ser meu
companheiro na vida.
12
13
RESUMO
Esta tese trata do campo de ativismo poltico das organizaes de direitos
humanos argentinas integradas por familiares de desaparecidos da ltima
ditadura militar (1976-1983). O objetivo compreender os processos sociais que
levam essas organizaes a assumirem o lugar de protagonistas na construo das
memrias sobre o passado ditatorial, bem como analisar as disputas que envolvem
a consolidao de uma memria pblica sobre a ditadura nesse espao nacional.
Partindo de uma perspectiva histrica e processual da cultura, o intuito analisar
como os familiares de desaparecidos, ancorados nas relaes de parentesco com as
vtimas da represso, atribuem sentido s suas prprias experincias e
identidades, ao passo que encontram legitimidade social para suas demandas e
aes polticas. Exploro assim como noes sobre poltica, parentesco, sangue,
identidade e verdade atravessam os embates pelas memrias da ditadura na
Argentina.
14
15
ABSTRACT
The thesis deals with the political activism of the Argentinean human rights
organizations composed of the families of the disappeared people in the last
military dictatorship (1976-1983). The goal is to understand the social processes
that lead these organizations to play a major role in the construction of the
memories concerning the dictatorial past, as well as analyzing the disputes over
the definition of a public memory about the dictatorship in this national space.
From a historical and procedural perspective of the culture, the intention is to
analyze how the family members of the disappeared people, anchored in the
kinship relations with the victims of the repression, give meaning to their own
identities and experiences, whilst finding social legitimacy for their political
actions and demands. Therefore, I explore how the notions concerning politics,
kinship, blood, identity and truth integrate the disputes over the memories from
the dictatorship in Argentina.
16
17
SUMRIO
ndice de Figuras ....................................................................................................................................... 19 Lista de Acrnimos ................................................................................................................................... 21 Introduo
Parentesco, Poltica e Memria Nacional ............................................................................................... 23 Objetivos e Questes do Trabalho ............................................................................................................ 39 Percursos da Investigao, Pesquisa de Campo e Fontes ....................................................................... 42
Captulo I Entre a Ausncia e a Presena: o desaparecimento poltico e a luta pela memria
O caso argentino diante das experincias ditatoriais do Cone Sul ....................................................... 55 Desaparecer matar a morte .................................................................................................................... 66 A vida poltica dos mortos ........................................................................................................................ 81
Captulo II A Nao como Famlia: uma comunidade poltica de sangue
Parentesco, famlia e a imaginao da nao argentina ..................................................................... 103 O lugar da famlia no Processo de Reorganizao Nacional (1976-1983) ..................................... 108 Politizando a famlia, familiarizando a poltica: o movimento de direitos humanos ...................... 113 A memria e os direitos humanos: uma questo familiar .................................................................... 126
Captulo III Legado Familiar, Legado Poltico: tecendo genealogias militantes
O dever de memria ................................................................................................................................ 143 Trajetrias e sentidos da categoria detenido-desaparecido ................................................................. 145 Heranas familiares e linhagens polticas ............................................................................................. 159 Genealogias de famlias militantes ........................................................................................................ 175
18
Captulo IV Sangue, Identidade e Verdade
A Lei de ADN ......................................................................................................................................... 191 A Apropriao .......................................................................................................................................... 203 A Restituio ............................................................................................................................................ 210 A verdade est no sangue ........................................................................................................................ 221
Captulo V Memrias em conflito nos tribunais argentinos
O espao da justia como lugar de memria .......................................................................................... 243 A demanda por justia e responsabilizao ........................................................................................... 252 Entre a verdade jurdica e a verdade histrica .................................................................................... 264 Encenando memrias, disputando o passado, afirmando a Verdade .................................................. 281
Consideraes Finais .............................................................................................................................. 311 Referncias Bibliogrficas ................................................................................................................... 317 Fontes ............................................................................................................. ............................................. 331 Filmografia ................................................................................................................................................ 335
19
NDICE DE FIGURAS
Figura 1 - Madres de Plaza de Mayo em sua marcha semanal na Plaza de Mayo ......................................... 28
Figura 2 - Banner na entrada do ex-centro clandestino de deteno El Olimpo ......................................... 65
Figura 3 - Monumento s Vtimas do Terrorismo de Estado no Parque de la Memoria ................................... 68
Figura 4 - Familiares no Parque de la Memoria em Buenos Aires .................................................................. 68
Figura 5 - Placas recordatrias aos desaparecidos na Plaza Almagro em Buenos Aires .......................... 79
Figura 6 - Convite para colocao de placa recordatria a um desaparecido .............................................. 80
Figura 7 - Manifestantes com as imagens de Pron e Evita e de Nstor e Cristina Kirchner ................ 84
Figura 8 - Mural na parede do ex-centro clandestino de deteno El Olimpo ............................................ 89
Figura 9 - Marcha da Asociacin Madres de Plaza de Mayo .............................................................................. 90
Figura 10 - Marcha da Asociacin Madres de Plaza de Mayo ............................................................................ 91
Figura 11 - Recordatrio em homenagem a um desaparecido, publicado no jornal Pagina 12 .............. 95
Figura 12 - Recordatrio em homenagem a um desaparecido, publicado no jornal Pagina 12 .............. 96
Figura 13 - Fachada do ex-centro clandestino de deteno Fuerza Aerea em Buenos Aires .................. 99
Figura 14 - Abuelas e Madres em suas primeiras marchas na Plaza de Mayo ............................................ 115
Figura 15 - Integrantes de Familiares nas manifestaes pelo aniversrio do golpe militar ................ 120
Figura 16 - Manifestantes indgenas na Avenida 9 de Julio em Buenos Aires .......................................... 132
Figura 17 - Recordatrio em homenagem a desaparecidos, publicado no jornal Pagina 12 ................ 144
Figura 18 - Madre mostra o leno utilizado pelas Madres de Plaza de Mayo ............................................ 154
Figura 19 - Leno utilizado por HIJOS ............................................................................................................. 154
Figura 20 - Galera de los Rostros Revolucionarios, exposio de fotos na ex-ESMA ................................. 157
Figura 21 - Membros de HIJOS em manifestao na Plaza de Mayo em 2011 ........................................ 162
Figura 22 - Pai e filho se abraam pela primeira vez na sede de Abuelas de Plaza de Mayo ................. 164
Figura 23 - Madre carrega fotografia de seus desaparecidos em marcha na Plaza de Mayo ................. 169
Figura 24 - Manifestao de familiares no aniversrio do golpe militar, em maro de 2011................ 170
Figura 25 - Madre em sua marcha semanal na Plaza de Mayo, em maro de 2011 .................................. 170
Figura 26 - Nora Cortias na sede de Madres de Plaza de Mayo-Lnea Fundadora ................................. 172
Figura 27 - Silhuetas em representao dos desaparecidos na Catedral Metropolitana ........................ 172
Figura 28 - Silhuetas no porto da ex-ESMA .................................................................................................. 173
Figura 29 - Silhueta na entrada do ex-centro clandestino de deteno El Olimpo .................................. 173
Figura 30 - Netos restitudos no encerramento do ciclo teatral Teatro X Identidad ................................. 180
20
Figura 31 - Charge publicada no mensurio de Abuelas sobre a Lei de ADN ............................................194
Figura 32 - Charge sobre os casos de mostras de DNA fraudadas ............................................................. 195
Figura 33 - Ilustrao em aluso luta por justia de Abuelas, em Mensurio da organizao ........... 202
Figura 34 - Ilustrao representando a apropriao, em Mensuario da organizao Abuelas ................ 206
Figura 35 - Desenho de uma abuela regando uma rvore genealgica ....................................................... 212
Figura 36 - Abuelas com a geneticista Mary Claire King, em 1983 ............................................................. 215
Figura 37 - Ilustrao de abuela caminhando sobre molculas de DNA para chegar na ONU ............ 217
Figura 38 - Srie em quadrinhos Historietas X la Identidad ........................................................................ 219
Figura 39 - Srie em quadrinhos Historietas X la Identidad ........................................................................ 220
Figura 40 - O neto restitudo Manuel Gonalves junto com sua filha e sua av ....................................... 239
Figura 41 - Cartaz de HIJOS para difuso do incio do julgamento conhecido como Causa ABO ...... 244
Figura 42 - Familiares em frente ao tribunal de Buenos Aires, em novembro de 2009 ......................... 245
Figura 43 Telo em frente ao tribunal de Buenos Aires, no dia da sentena da Causa ABO ............. 245
Figura 44 - Cartaz para ato no tribunal de Buenos Aires, no dia da sentena da Causa ABO .............. 246
Figura 45 - Familiares com fotos de desaparecidos em frente ao tribunal de Buenos Aires ................. 246
Figura 46 - Mapa indicando os julgamentos de delitos lesa humanidade em curso no pas ........................ 249
Figura 47 - Cartaz de HIJOS para difuso do julgamento Plan Sistemtico de Robo de Bebs ............ 265
Figura 48 - Desenho de repressor em audincia da Causa El Vesubio ......................................................... 266
Figura 49 - Desenho de testemunha-sobrevivente em audincia da Causa El Vesubio ............................ 266
Figura 50 - Cartaz de HIJOS para difuso da sentena da Causa Campo de Mayo ................................... 267
Figura 51 - Fotografias de desaparecidos na sala de audincia do tribunal federal de Florida ............ 270
Figura 52 - Familiares com foto de Juan Scarpati no tribunal federal de Florida ................................... 271
Figura 53 - Denncia do caso Jorge Julio Lopez em calada no centro de Buenos Aires ...................... 283
Figura 54 - Militantes de HIJOS escracham Alfredo Astiz em tribunal de Buenos Aires ...................... 299
Figura 55 - Cartaz de divulgao de evento da AfaVitA na Plaza San Martin, em Buenos Aires ....... 303
Figura 56 - Charge ironizando os discursos dos acusados nos julgamentos ............................................ 305
21
LISTA DE ACRNIMOS
AfaVitA Asociacin de Familiares y Amigos de Vctimas del Terrorismo en Argentina
AFyAPPA Asociacin de Familiares y Amigos de los Presos Polticos Argentinos
APDH Asamblea Permanente por los Derechos Humanos
BNDG Banco Nacional de Datos Genticos
CCDTyE Centro Clandestino de Detencin, Tortura y Exterminio
CELS Centro de Estudios Legales y Sociales
CEMIDA Centro de Militares para la Democracia
CGT Confederacin General del Trabajo
CIDH Corte Interamericana de Direitos Humanos
CONADEP Comisin Nacional sobre la Desaparicin de Personas
CONADI Comisin Nacional por el Derecho a la Identidad
COSUFA Consejo Supremo de las Fuerzas Armadas
EAAF Equipo Argentino de Antropologa Forense
ERP Ejrcito Revolucionario del Pueblo
ESMA Escuela Mecnica de la Armada
FEDEFAM - Federacin Latinoamericana de Asociaciones de Familiares de Detenidos-Desaparecidos
GAC Grupo de Arte Callejero
JUP Juventud Peronista
MEDH Movimiento Ecumnico por los Derechos Humanos
PRT Partido Revolucionario de los Trabajadores
SEPARJ Servicio de Paz y Justicia
UBA Universidade de Buenos Aires
UES Unin de Estudiantes Secundarios
UNASUL Unio das Naes Sul-Americanas
22
23
INTRODUO
Parentesco, Poltica e Memria Nacional
Primero buscamos a los desaparecidos. Primero los buscamos porque no podamos pensar que tantos miles haban muerto, que los haban matado [...] Despus, cuando nos dimos cuenta de que no los encontrbamos, realmente comenzamos a reivindicarlos como militantes, revolucionarios, socialistas.1 Yo creo que en estos aos qued claro cul era la lucha de nuestros hijos, de nuestras hijas y por qu de esa lucha y adnde estaba dirigida. Creo que est claro que el tema de la justicia social y de terminar con esta brecha que a cada da es ms grande entre ricos y pobres era la meta que se ponan. Esa lucha la llevaron poniendo su vida, perdindola. [...] Ahora la lucha sigue para que haya verdad y justicia, para hacer memoria.2
Tuve mucho tiempo de bsqueda y hace 2 aos, sin tener elementos fuertes, le puse nombre a lo que buscaba: "Soy hijo de desaparecidos", dije. Encontr la verdad hace 2 meses, cuando el anlisis de ADN confirm que soy hijo de Alicia y Damin. Ahora soy Juan Cabandi-Alfonsn. Soy mis padres, Damin y Alicia. [] el plan siniestro de la dictadura no pudo borrar el registro de la memoria que transitaba por mis venas y me fue acercando a la verdad que hoy tengo. Bastaron los 15 das que mi Mam me amament y me nombr, para que yo le diga a mis amigos, antes de saber quin era mi familia, antes de saber mi historia, que yo me quera llamar Juan, como me llam mi Mam durante el cautiverio en la ESMA. Este lugar estaba guardado en la sangre de Juan. [] Hoy estoy ac, 26 aos despus, para preguntarles a los responsables de esa barbarie si se animan a mirarme cara a cara y a los ojos y decirme dnde estan mis padres, Alicia y Damin. Estamos esperando la respuesta que el punto final quiso tapar.3 H mais de trs dcadas, um ritual ocorre toda quinta-feira s 15h30 na Plaza de Mayo,
centro da vida poltica argentina. Mes de desaparecidos da ltima ditadura militar (1976-
1983), conhecidas como Madres de Plaza de Mayo ou pejorativamente Las locas de Plaza de
Mayo , marcham lado a lado levando sobre as cabeas pauelos brancos. l onde voltam
1 Depoimento de Nadia de Ricny, integrante da Asociacin Madres de Plaza de Mayo, registrado em 12 de julho de 2007 na sede da associao, em Buenos Aires. O filho e a nora de Nadia desapareceram em 21 de julho de 1977. 2 Depoimento de Nora Cortias, integrante de Madres de Plaza de Mayo-Lnea Fundadora, registrado em 11 de julho de 2007 na sede da organizao, em Buenos Aires. O seu filho desapareceu em 15 de abril de 1977. 3 Discurso de Juan Cabandi, filho de desaparecidos, em ato oficial realizado na Escuela Mecnica de la Armada (ESMA) para as comemoraes do aniversrio do golpe militar em 24 de maro de 2004. Esse evento formalizou a transformao do local, que funcionou no perodo ditatorial como centro clandestino de deteno, em um espao de memria e de promoo dos Direitos Humanos.
24
semanalmente para continuar exigindo Memria, Verdade e Justia pelos desaparecidos e
violaes cometidas durante a ditadura. Desde as primeiras marchas em abril de 1977, quando
comearam a clamar por informaes sobre o paradeiro de seus filhos, Madres e familiares
procuraram tornar pblico um problema que as autoridades militares insistiam em ocultar: a
existncia de milhares de desaparecidos polticos no pas.
Aps dcadas de incessante ativismo, atravs da conformao de organizaes de direitos
humanos, as demandas dos familiares de desaparecidos se ampliaram e ganharam legitimidade
social: condenao penal dos responsveis por crimes de lesa humanidade; esclarecimento do
destino de cada uma das vtimas; restituio da identidade dos filhos de desaparecidos
apropriados ilegalmente; reivindicao dos ideais polticos defendidos pelos tombados;
construo da memria coletiva sobre a ditadura. Longe de haver um consenso em torno destas
demandas, seja no interior do prprio movimento de direitos humanos seja na sociedade em
geral, elas constituem-se antes como um campo permanente de disputa poltica no pas,
sobretudo no que se refere aos sentidos atribudos ao passado ditatorial e aos desaparecidos.
As epgrafes no incio do texto referem-se s falas de duas geraes de familiares de
desaparecidos. Por um lado, esto os depoimentos de Nora Cortias e Nadia de Ricny,
integrantes do movimento Madres de Plaza de Mayo. O que fica evidente em suas narrativas a
centralidade atribuda trajetria poltica de seus filhos. Elas mobilizam categorias, como
militante, revolucionrio, socialista, para localiz-los num dos lados do campo de disputa poltica,
e ressignificam os ideais defendidos por eles, tal como o de justia social. Essas Madres afirmam
tornar prprias as bandeiras de luta de seus filhos, impondo como necessidade a defesa e
continuidade dos ideais pelos quais lutaram (e morreram) os desaparecidos. Nessa operatria,
transformam o imperativo de memria numa ao explicitamente poltica.
A terceira epgrafe refere-se ao discurso de Juan Cabandi, filho de desaparecidos,
nascido, em 1978, na Escuela Mecnica de la Armada (ESMA), um dos principais centros
clandestinos de deteno, tortura e extermnio4 em funcionamento durante a ditadura militar.
4 Nomenclatura utilizada atualmente pelo Estado e pelas organizaes de direitos humanos para denominar os locais de deteno clandestinos que funcionaram em todo territrio nacional durante a ditadura.
25
Poucos dias aps o seu nascimento, Juan foi entregue ilegalmente a um membro do servio de
inteligncia da Polcia Federal, quem lhe ocultou por quase trs dcadas a origem criminosa e
clandestina do vnculo que os unia como pai e filho. No ano de 2004, aos 26 anos de idade e
aps inmeras desconfianas acerca de sua filiao, ele procurou voluntariamente a organizao
Abuelas de Plaza de Mayo e se submeteu a um teste de DNA.
Atravs do cruzamento das informaes genticas de Juan com a das famlias de
desaparecidos, armazenadas no Banco Nacional de Datos Genticos (BNDG), comprovou-se o seu
parentesco biolgico com um casal desaparecido. Seguindo o mesmo caminho de outros jovens
apropriados5, desde que Juan recuperou a sua verdadeira identidade, tornando-se o neto restitudo
nmero 77 de Abuelas de Plaza de Mayo, rompeu afetiva e ideologicamente com aqueles que at
ento eram a sua famlia. Tornou-se um ativista de direitos humanos e elegeu-se deputado da
cidade de Buenos Aires pela lista Frente Para La Victoria, encabeada pelo ento presidente
Nstor Kirchner.
No discurso de Juan ficam evidentes as conexes estabelecidas entre identidade biolgica
(filho de desaparecidos) e identidade poltica (identificao no campo poltico com os valores da
militncia setentista e do movimento de direitos humanos). Para Juan, se a verdade lhe foi
revelada pelo exame de DNA (Encontr la verdad hace 2 meses, cuando el anlisis de ADN confirm
que soy hijo de Alicia y Damin), os valores polticos igualmente parecem ser transmitidos pelo
sangue (la dictadura no pudo borrar el registro de la memoria que transitaba por mis venas). O seu
discurso sugere, de forma emblemtica, como os domnios do parentesco e da poltica
encontram-se, neste contexto especfico, articulados e combinados.
O esforo empreendido na reconstruo da memria e da trajetria poltica dos
tombados para, entre outras coisas, ressignificar suas prprias aes, parece ser um dos eixos
norteadores da experincia dos familiares de desaparecidos dedicados ao ativismo pelos direitos
humanos na Argentina. Partindo de uma perspectiva histrica e processual da cultura, julgo
5 Apropriado a categoria nativa empregada para nomear esse grupo de crianas sequestradas, enquanto restituio o nome dado ao processo de identificao e recuperao da Verdade da origem biolgica. Assim como os detenidos-desaparecidos, a apropriao emerge como categoria mobilizada pelos familiares das vtimas para denunciar o desaparecimento forado de pessoas, neste caso, de crianas (os desaparecidos com vida).
26
que o entendimento do campo de ativismo deste movimento social exige a dilucidao de uma
linguagem de combinao entre distintos domnios (STRATHERN, 1992) para compreender as
formas nativas de associar espaos sociais concebidos como de natureza e escalas diferentes
(NEIBURG, 2004): o parentesco e a poltica, a famlia e a nao, o privado e o pblico, o natural
e o social.
Neste trabalho trato, portanto, das relaes entre parentesco, poltica e memria nacional no
que tange ao campo de ativismo dos familiares de desaparecidos na Argentina. Exploro em que
medida e como os domnios do parentesco e da poltica se combinam nos processos de
construo das memrias sobre a ditadura nesse espao nacional. Nesse sentido, busco analisar
como noes sobre parentesco cujas representaes, neste caso, esto em grande parte
pautadas na biologia/sangue/gentica so ressignificadas pelos familiares em sua militncia
por Memria, Verdade e Justia. O objetivo analisar como, ancorados nas relaes de
parentesco com as vtimas da represso, os familiares atribuem sentido s suas prprias
experincias e identidades, ao passo que encontram legitimidade social para suas demandas e
aes polticas.
********************
As memrias da ditadura ocupam lugar significativo no imaginrio nacional argentino e
servem, com recorrncia, de palco para disputas, embates e ritualizaes pblicas sobre a nao.
So os familiares das vtimas que se apresentam como os principais atores engajados na
construo dessas memrias. Eles lutam contra o esquecimento desse passado e afirmam
identidades polticas, ressignificando os ideais dos detenidos-desaparecidos. A presena
contundente do passado de ditadura na vida poltica nacional, e a exibio pblica das memrias
a ele referenciadas, podem ser observadas nas freqentes manifestaes, cujo cenrio so as
avenidas e praas do centro da capital Buenos Aires. Os atos organizados para o 24 de Maro
(aniversrio do golpe), por exemplo, continuam a mobilizar setores expressivos da sociedade
organizaes de direitos humanos, artistas, partidos polticos e diversos movimentos sociais. A
27
data foi assim transformada em feriado nacional na gesto do presidente Nstor Kirchner
(2003-2007).
Alm dessas manifestaes polticas/artsticas/estticas silhuetas dos desaparecidos,
murais, performances teatrais6, pauelos das Madres, livros, documentrios, filmes, programas
de TV, textos acadmicos, lugares e marcas fsicas de memria no espao urbano , com a
anulao das leis de anistia, em 2005, reabriram-se processos judiciais contra militares e outros
envolvidos nos crimes da ditadura. Estas causas penais, que acionam as organizaes de
familiares e a imprensa no acompanhamento das audincias e na publicao de reportagens nos
principais jornais do pas, trazem tona, mais uma vez, as memrias sobre a represso.
Desde a abertura democrtica, em 1983, a ditadura militar nunca deixou de ser
tematizada na esfera pblica argentina. Distintos eventos e dramas sociais (TURNER, 1985)
garantiram que o passado ditatorial continuasse a repercutir de maneira significativa no
presente poltico nacional, a saber: iniciativas institucionais (como o estabelecimento da
CONADEP7); julgamentos de agentes do Estado responsveis por violaes (julgamento s
Juntas Militares em 1985, aes movidas por Abuelas de Plaza de Mayo contra apropriadores no
final dos anos 1990, causas judiciais reabertas a partir de 2005); leis reparatrias e anistias;
aberturas de valas clandestinas, exumaes, identificaes e rituais funerrios de desaparecidos;
questes envolvendo a restituio da identidade dos bebs apropriados; confisses pblicas de ex-
repressores, etc. Portanto, para alm do permanente ativismo dos familiares de desaparecidos,
eventos como os mencionados mantiveram as memrias da ditadura latentes e presentes.
6 Cabe destacar o movimento teatral denominado Teatro X Identidad. Esse movimento surgiu no ano 2000 com a proposta de utilizar performances teatrais para auxiliar o trabalho de busca dos jovens apropriados empreendido por Abuelas de Plaza de Mayo. Como o prprio movimento afirma: [...] nos autoconvocamos e hicimos propia la lucha de Abuelas de Plaza de Mayo y logramos tender un puente que une las voces del teatro con el pblico y con cada chico que duda. La respuesta fue contundente: casi 70 jvenes se presentaron espontneamente para preguntar por su identidad. Nuestra identidad. Disponvel em: . Acesso em: 08 de outubro 2007. Para uma antologia dos textos teatrais do movimento Teatro X Identidad, ver Petruzzi (2009). 7 Constituindo-se como uma das primeiras aes do governo democrtico de Ral Alfonsn (1983-1989) e pioneira do gnero na Amrica Latina, a Comisin Nacional sobre la Desaparicin de Personas (CONADEP) foi instaurada com o objetivo de investigar a verdade acerca dos desaparecidos e das violaes cometidas no perodo ditatorial. Formada em 1984, essa iniciativa resultou na elaborao do Informe Nunca Ms que, aps publicao, tornou-se um best-seller no contexto ps-ditatorial argentino. Para o informe, ver Conadep (2009).
28
Alm do mais, a partir de 2003, quando Nstor Kirchner assume a presidncia do pas, as
demandas por Memria, Verdade e Justia do movimento de direitos humanos foram
transformadas em poltica de Estado, tornando-se emblema da poltica da Era Kirchner em
matria de direitos humanos. A implementao de uma poltica pblica de Memria, assim
como a apropriao do tema da ditadura por parte do governo nacional, trouxe o passado da
ditadura, os desaparecidos e seus familiares, mais uma vez, para o centro da vida poltica
nacional.
As memrias da ditatura adquiriram, desde ento, visibilidade pblica ainda maior, ao
passo que a condio de familiar de detenido-desaparecido ou de vtima direta viu-se
transformada em capital social e poltico, em contraste ao estigma sofrido pelos afetados durante
a represso. Isso gerou um processo de crescente incorporao de familiares e sobreviventes do
Figura 1 - Madres integrantes da Asociacin Madres de Plaza de Mayo em sua marcha semanal na Plaza de Mayo, em maro de 2011. Foto: Gbor Basch
29
desaparecimento forado (os aparecidos) poltica formal, seja pela eleio destes ativistas no
legislativo seja pelo exerccio de funes na Secretaria de Direitos Humanos ou outras pastas.
Vale ressaltar que as organizaes de familiares se legitimam como movimento social
ancoradas nas relaes de parentesco que seus integrantes guardam com as vtimas da
represso, cuja atuao poltica dirige-se, sobretudo, reconstruo e afirmao de memrias e
identidades. Nesse sentido, tais organizaes tornaram-se empreendoras de memria (JELIN,
2002), ao buscarem, por um lado, consolidar uma memria sobre o passado ditatorial (que se
pretende hegemnica/nacional) e, por outro lado, ao se empenharem na tarefa de restituir as
identidades dos desaparecidos (tanto dos detenidos-desaparecidos quanto dos apropriados).
Depreende-se disso que, ao abordar o campo de ativismo dos familiares de desaparecidos na
Argentina, noes/categorias como memria, identidade, nao, movimento social, parentesco e
poltica tornem-se centrais. Caberiam assim algumas consideraes sobre essas noes para
esclarecer a perspectiva analtica da etnografia que segue.
Ao procurar relacionar conceitos e categorias analticas e nativas, ressalto que memria,
identidade, nao e poltica constituem parte fundamental do vocabulrio acionado pelos
familiares de desaparecidos em sua militncia pelos direitos humanos. Nessa direo, para alm
de sua abordagem como categorias analticas prprias teoria social, as mesmas so tratadas
aqui como categorias micas, apropriadas poltica e socialmente pelos atores sociais. As formas
como essas noes so ressignificadas e instrumentalizadas pelo movimento de familiares sero
analisadas ao longo da etnografia. Mesmo que tal ressalva j aponte para a perspectiva analtica
do trabalho, ainda assim julgo tambm pertinente apresentar o referencial terico escolhido
para tratar essas noes. Para tanto, recorro contribuio de alguns autores.
Embora a memria j aparea como foco dos trabalhos de Halbwachs (1990) na dcada de
1920, foi somente nos anos 1970 e 1980 que o interesse em estudos centrados em analisar as
memrias e identidades sociais encontra o seu auge. Isto pode ser atribudo, em grande medida,
emergncia do multiculturalismo como projeto poltico, difuso das polticas de ao
afirmativa, dissoluo do bloco socialista, mas tambm a um crescente interesse na teoria
30
social dos anos 1960 e 1970 no desenvolvimento de anlises preocupadas em investigar a
construo social do passado.
Nesse contexto, diversos autores acusaram a historiografia de servir como fonte de
dominao. Para tanto, buscaram desafiar as narrativas hegemnicas (atravs da visibilidade
dos relatos das minorias sociais) e privilegiaram a histria oral como metodologia. Os ps-
modernos questionariam a ideia de objetividade e neutralidade do saber cientfico,
procurando desconstruir a clssica dicotomia positivista que opunha verdade e interpretao.
Dessa perspectiva, a histria seria uma narrativa construda por indivduos e grupos, a partir
do presente e com propsitos determinados, evidenciando como a seleo e a interpretao das
fontes constitui uma tarefa necessariamente arbitrria. Cresce aqui o interesse em estabelecer
as relaes entre histria, memria, identidade e poder8.
Influenciado em grande medida por Maurice Halbwachs (1990) e interessado em
problematizar a questo da singularidade e universalidade das experincias humanas diante de
situaes-limite, Pollak (1989 e 1992) priorizou uma abordagem de vis construtivista,
articulando uma compreenso circunstanciada das memrias e identidades sociais, entendidas
como fennemos construdos e ressignificados no curso da histria e dos processos sociais.
Portanto, em consonncia com a preocupao de historicizao das memrias e identidades,
ganha relevo o interesse em analisar como as mesmas se transformam no tempo, no espao e
em face de contextos sociais e polticos especficos.
Reconhece-se assim a memria como um objeto de disputa e como parte constitutiva dos
embates travados por diferentes grupos sociais para a afirmao de sentidos ao passado e
identidade coletiva. Nesse sentido, considera-se os atores sociais que cumprem papel ativo e
interferem nos processos de produo das memrias. Por isso, Pollak (1989) reiterar que junto
aos processos de construo das memrias, so tambm produzidos silncios e esquecimentos,
desvelando como as identidades e memrias so valores negociados e em disputa.
Sob essa tica, pretende-se aqui que a abordagem analtica das memrias e identidades
sociais tenha como foco os processos que envolvem a sua estruturao, com nfase na
8 Para uma reviso das principais linhas e abordagens tericas presentes nos estudos sobre memria social, ver Olick e Robbins (1998).
31
compreenso das maneiras a partir das quais diferentes grupos sociais ressignificam suas
identidades e acionam memrias, esquecimentos e silncios em situaes estratgicas
especficas. Entende-se ainda que as prticas de representao social impliquem
necessariamente em posicionamento e, por conseguinte, as identidades, [...] longe de fixas
eternamente em algum passado essencializado, esto sujeitas ao contnuo jogo da histria, da cultura e
do poder (HALL, 1996, p. 69). Conforme analisa Feldman-Bianco (2000), seria preciso [...]
examinar criticamente a produo contempornea de polticas culturais e das identidades como polticas,
no contexto das (mltiplas) intersees entre processos de reestruturao do capitalismo global e
reconfiguraes da cultura e da poltica (FELDMAN-BIANCO, 2000, p. 14). Essa perspectiva,
que insere a problemtica das identidades e memrias no jogo da histria, torna-se
imprescindvel aos estudos que pretendam abordar as relaes entre cultura e poder.
Alm disso, como apontado por Pollak (1989 e 1992) em suas pesquisas com
sobreviventes do Holocausto, parece-me pertinente analisar as identidades e memrias como
processos sociais intimamente relacionados. O autor notou que, ao definir as experincias e
histrias compartilhadas pelo grupo social, a memria constitua um dos elementos chave de
identificao dos grupos sociais, fundamentando e reforando os sentimentos de pertencimento
e as fronteiras scio-culturais. Pollak atentava ainda para a importncia de referenciais e
marcos de memrias como eventos, personagens e lugares (NORA, 1997) nos processos de
conformao de identidades e imaginrios coletivos.
Nesse mesmo sentido, Jelin (2002) salienta que para fixar certos parmetros identitrios
(de gnero, de classe, polticos, tnicos, nacionais), os grupos sociais tendem a selecionar as
memrias daquelas experincias consideradas socialmente significativas, definindo-se, nesse
processo, como coletividade. A memria cumpre ento o papel de ressaltar os traos de
identificao e de diferenciao diante do outro. dessa constatao que deriva a
compreenso das memrias e identidades enquanto processos sociais indissociveis: [...] a
memria um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na
medida em que ela tambm um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de
coerncia de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstruo de si (POLLAK, 1992, p. 204).
32
Nos embates travados pelas memrias da ditadura no espao nacional argentino, o
movimento de familiares das vtimas busca afirmar uma Verdade sobre o passado de violncia,
assim como procura devolver identidade s vtimas (tornar os 30 mil detenidos-desaparecidos!
Presentes!), protagonizando um processo que culmina na construo dos desaparecidos como
categoria social. Por sua vez, ser esta mesma categoria que se tornar referncia nos processos
de redefinio das identidades e aes dos prprios familiares como atores polticos. Fica assim
patente como, tambm aqui, a dimenso da identidade e a dimenso da memria encontram-se
relacionadas: a memria sobre o passado ditatorial e suas vtimas constitui um dos referenciais
a partir do qual os familiares mobilizam e reconstroem suas prprias identidades.
Trata-se assim de verificar de que forma as memrias do passado ditatorial, atravs da
definio de certos referencias mnemnicos (os detenidos-desaparecidos, experincias e dramas
sociais compartilhados, lugares de rememorao do passado, etc.), constituem comunidades de
sentidos para os familiares de desaparecidos dedicados ao ativismo pelos direitos humanos.
Seria preciso ainda postular interrogantes tais como quando, de que forma e por que estes
familiares se voltam para o passado, analisando em que medida, nos processos de afirmao de
sentidos aos fatos narrados e recordados, existe o esforo de definio de suas prprias
identidades como atores polticos.
Cabe ressaltar que em sociedades que emergem de perodos de guerra e violncia, as
memrias ocupam lugar privilegiado nos processos de (re)construo de identidades coletivas,
pois, como lembra Jelin (2002), El espacio de la memoria es entonces un espacio de lucha poltica, y
no pocas veces esta lucha es concebida en trminos de la lucha contra el olvido: recordar para no
repetir (JELIN, 2002, p. 6). No que tange a esse campo de luta pela afirmao de imaginrios
nacionais, Fox (1989) destaca a presena de [...] uma srie de percepes coexistentes e ainda
contraditrias, que constituem ideologias nacionalistas competitivas (FOX, 1989, p. 4). Servindo-se,
portanto, da noo de ideologia nacional entendidas como concepes de pertencimento de
um povo e do que a nao ou deveria ser , o autor enfatiza a importncia de um olhar atento
aos [...] projetos individuais e confrontaes de grupos na criao da cultura nacional (FOX, 1989,
p. 7).
33
Em suma, o que os estudos sobre memrias e identidades que incorporam a dimenso do
poder ao seu entendimento colocam em tela no a unicidade das narrativas, mas o fato de que
as mesmas esto em permanente contestao: as prticas de memria so parte constitutiva das
disputas pela afirmao de identidades coletivas, visto que diferentes grupos sociais pretendem
ver-se representados na histria. Dessa perspectiva e diante dos interesses desta etnografia nos
conflitos travados pela afirmao de sentidos ao passado ditatorial na Argentina, entendo que o
processo de construo das memrias est conformado por vises plurais que, neste contexto,
se pretendem hegemnicas e constitutivas do imaginrio nacional (ANDERSON, 1989)9.
Refletindo sobre as memrias construdas em torno do evento do desaparecimento
forado de pessoas na Argentina, ao invs de procurar reconstruir como, de fato, pessoas
viveram e eventos ocorreram, a nfase da anlise recair no entendimento de como os mesmos
so lembrados e mobilizados pelos atores sociais a partir do presente e em face de projetos
futuros. Procuro, portanto, entender como os familiares ativistas se apropriam do passado e
como ele usado como recurso para expressar interesses e projetos. Analiso ainda como as
imagens e narrativas sobre o perodo ditatorial e sobre os detenidos-desaparecidos se
transformaram ao longo da histria do movimento, tornando-se nesse processo constitutivas
do imaginrio nacional. Se, por um lado, analiso essa dimenso mais instrumental das
memrias, por outro lado, julgo fundamental considerar tambm a sua dimenso simblica, j
que a escolha daquilo a ser narrado e rememorado pode ser reveladora de como indivduos e
grupos concebem a sua prpria experincia de mundo.
Em consonncia com os apontamentos de Cohen (1979) sobre uma antropologia da
poltica e do simbolismo poltico, entendo que os processos de configurao das memrias e
9 Para as reflexes sobre a questo da nao, baseio-me em autores como Anderson (1989) e Hobsbawm (1997). Considero a nao como uma construo histrica especfica a partir da qual grupos sociais passam a se definir por meio da reivindicao de pertencimento a uma comunidade poltica. Hobsbawm (1997) analisou os processos de inveno das tradies a fim de compreender as formas de manuteno e legitimao do poder poltico frente s transformaes geradas pela expanso do capitalismo, desvendando a importncia que os elementos irracionais (o sentimento nacional, por exemplo) prestam para a manuteno da ordem social. Anderson (1989) combinou a anlise do desenvolvimento da imprensa, do capitalismo e do processo de secularizao para compreender a emergncia da identidade nacional como eixo chave da organizao poltica contempornea. Nesse processo, a construo de uma narrativa sobre um passado compartilhado serve de ponto de partida para a imaginao da nao e para a criao do sentimento de comunidade.
34
identidades sobre o passado ditatorial na Argentina possuem essa dupla dimenso: uma
instrumental e outra simblica. Logo no me atenho nem escola de pensamento que Cohen
denomina de intuitivista que tende a sustentar a singularidade e a irredutibilidade das
obrigaes sociais , nem tampouco de vis mais utilitarista que busca explicar a obrigao
em termos de clculos egostas com vista na maximizao de benefcios. Considerarei aqui [...]
as duas dimenses nas orientaes acerca da obrigatoriedade e do contratual como variveis
diferenciadas e intimamente envolvidas em todas as relaes sociais (COHEN, 1979, p. 100) na
medida em que compreendo que [...] os smbolos da cultura normativa so quase por definio
bivocais, sendo simultaneamente polticos e existenciais (COHEN, 1979, p. 109).
Ao portarem a bandeira dos Direitos Humanos e enquanto protagonistas legtimos neste
campo, os familiares de desaparecidos acabaram redefinindo a prpria noo de Direitos
Humanos e, em grande medida, delineando a agenda nacional neste mbito. A legitimidade das
aes e reivindicaes desse movimento se deu, portanto, por meio do uso da linguagem dos
direitos humanos, que, como ressalta Roniger e Snajder (2004), transformou-se no fator central
da poltica internacional, por intermdio das aes governamentais americanas na administrao Carter,
da Comisso Interamericana de Direitos Humanos, da ONU, de alguns governos da Unio Europia e
de associaes de exilados polticos (RONIGER e SZNAJDER, 2004, p. 43).
Se os familiares de desaparecidos puderam organizar-se politicamente acionando a noo
de Direitos Humanos como valor universal, tambm o fizeram mobilizando as representaes
mais tradicionais do lugar ocupado pelos laos de parentesco e pelo vnculo materno na vida
social. Tais representaes funcionaram como motor de legitimidade social ao esvaziar de
contedo poltico, ao menos num primeiro momento, as demandas do movimento pela
aparicin con vida de los detenidos-desaparecidos. Foi a famlia que organizou a oposio poltica
ditadura militar, bem como foi a famlia, atravs do ativismo dos familiares de desaparecidos,
que se tornou no perodo democrtico a voz mais legtima para definir as narrativas sobre o
passado de represso.
No processo de abertura poltica, as Madres e demais familiares de desaparecidos
passaram a redefinir suas aes coletivas, adotaram canais institucionalizados de participao e
35
assumiram, de forma crescente, o carter poltico do movimento social. Elaboraram assim novas
formas de conceber e fazer poltica, reconhecendo-se nesse processo como grupo social. Vale
destacar neste ponto as colocaes de Jelin (1987) sobre o interesse analtico nos movimentos
sociais a fim de questionar [...] una nueva forma de hacer poltica y una nueva forma de
sociabilidad. Pero, ms profundamente, lo que se intuye es una nueva manera de relacionar lo poltico y
lo social, el mundo pblico y la vida privada, en la cual las prcticas sociales cotidianas se incluyen junto
a, y en directa interaccin con, lo ideolgico y lo institucional-poltico (JELIN, 1987, p. 18).
Como aponta Dagnino (2000), no contexto de construo democrtica na Amrica
Latina, caracterstico dos anos 1990, as relaes entre organizaes da sociedade civil e aparato
institucional-poltico so redefinidas e passam, cada vez mais, a assumir uma natureza de
atuao conjunta. Para os prpositos de uma anlise de cunho mais antropolgico, pretendo
investigar os significados e sentidos das aes e prticas engendradas pelos atores que
constituem os movimentos sociais, analisando [...] seu significado para aqueles que dele
participam, procurando, portanto, uma interpretao a partir de dentro (DURHAM, 2004, p. 283).
No caso do movimento social aqui tratado, preciso dizer que o uso de referncias das
relaes de parentesco no campo poltico funciona tanto em seu sentido literal quanto
metafrico. Literalmente, so mes, esposas, pais e filhos de desaparecidos, irmos de jovens
apropriados, netos de militantes de Familiares, Madres e Abuelas de Plaza de Mayo que entram na
cena poltica na luta por memria, justia e reparao. So as concepes do parentesco (e suas
conexes entre vnculos biolgicos, sanguneos e simblicos) que sero ressignificadas pelos
familiares e que sero constitutivas de seus discursos e aes polticas. J em seu sentido
metafrico, as Madres se transformaram em mes dos 30 mil detenidos-desaparecidos (processo
que denominaro de socializao da maternidade), os filhos de desaparecidos se consideram
irmos, assim como as Abuelas se dizem avs de todos os netos apropriados. Neste outro sentido,
as relaes de parentesco funcionam como metforas para o estabelecimento de novas redes
sociais e novas famlias entre as vtimas da represso.
Se as geraes ascendentes dos desaparecidos protagonizaram a militncia pelos direitos
humanos durante a ditadura militar e no perodo de transio democrtica, essa militncia se
36
ver renovada, na segunda metade da dcada de 1990, pelos descendentes dos mesmos: os filhos
de desaparecidos. Estes jovens ativistas, organizados em HIJOS, mas tambm em Abuelas de
Plaza de Mayo, emergem como ator fundamental desse trabalho pela memria, pautados no que
entendem como um duplo legado de ativismo poltico.
Com a entrada na vida adulta (e poltica) dos filhos de desaparecidos, torna-se
interessante analisar como essa nova gerao assumir, por um lado, o legado poltico de seus
pais (desaparecidos, sobreviventes, assassinados, presos polticos e exilados), atravs da
reconstruo da memria e do que concebem como os ideais e valores da militncia/gerao
setentista. Por outro lado, preciso analisar como os mesmos assumiro o legado poltico de
seus avs (integrantes de Familiares, Madres e Abuelas de Plaza de Mayo), atravs da
continuidade da militncia pelos direitos humanos, reelaborando as histricas demandas por
Memria, Verdade e Justia.
Mannheim (1957) argumentou como a memria de certos eventos sociais e polticos
podem moldar as geraes por meio do compartilhamento de experincias vividas no mundo
pblico, entendidas como chaves para a sua conformao e definio. As geraes poderiam ser
entendidas assim como [] comunidades de pertenencia e identificacin que permiten diferenciar a
sectores sociales particulares en la cadena temporal que se procesa en el seno de una cultura (JELIN e
SEMPOL, 2006, p. 9). Cabe destacar que gerao parece funcionar aqui como ferramenta
conceitual central, visto que o movimento social tratado nesta etnografia se define pela
memria de eventos e dramas sociais compartilhados (o passado ditatorial e o desaparecimento
forado), assim como pela relao de temporalidade estabelecida entre aqueles que antecedem e
sucedem os detenidos-desaparecidos na cadeia genealgica do parentesco. Gerao constitui, por
conseguinte, um dos referenciais centrais no processo de construo dos detenidos-desaparecidos
como categoria social (generacin de los 70, generacin diezmada, juventud de los 70), ao passo que
chave para o entendimento dos familiares como atores polticos (Abuelas, Madres, HIJOS): a
cadeia genealgica que estabelece os nexos destes ativistas com as vtimas da represso e que
articula a incorporao de legados familiares e polticos.
37
Considerando a poltica como questo fundamental para o movimento de familiares de
desaparecidos, ressalto que pretendo abord-la de duas formas: como categoria analtica e como
categoria nativa. No primeiro caso, poltica constitui um instrumento de anlise das relaes de
poder entre indivduos e grupos e, seguindo a perspectiva de Cohen (1979), compreendida
como prtica social (e discursiva) referente distribuio, manuteno, exerccio e luta pelo
poder em um determinado contexto social. Por sua vez, o poder entendido aqui como um
aspecto e uma condio inerente s relaes sociais nos mais diferentes nveis, e, enquanto
prtica social constituda historicamente, apresenta-se de diversas formas (FOUCAULT, 2007).
Conforme apontado por Verdery (1999), a poltica deve ser concebida como uma forma de
atividade conjunta entre atores sociais que, com frequncia, envolve a demanda por objetivos
especficos. Esses objetivos podem ser contraditrios, por vezes quase-intencionais, podendo
englobar a elaborao de polticas, a justificativa de aes, a reivindicao da autoridade ou a
disputa pela autoridade reivindicada por outros, assim como a criao e manipulao de
categorias culturais. Logo, a poltica no se restringe s aes de lideranas, podendo ser
engendrada por qualquer indivduo, embora os atores sociais busquem, de forma recorrente,
apresentar suas demandas como um assunto de ordem pblica.
Verdery (1999) ressalta ainda que, pelo fato da atividade humana constituir-se por
dimenses afetivas e significativas e se desenvolver atravs de processos simblicos complexos,
a poltica deve ser concebida como um lugar de disputa permanente pela afirmao de sentidos
e significados. Tal abordagem permite ver a transformao poltica como algo alm de um
processo tcnico introduo de procedimentos e mtodos eleitorais, a formao de partidos
polticos e organizaes no governamentais , o que inclui significados, sentimentos, o
sagrado, noes de moralidade, o no racional. A ideia aqui ampliar o vis analtico da teoria
da ao racional a fim de elaborar uma abordagem da poltica e do simbolismo poltico que
considere tambm a dimenso afetiva e existencial da ao humana.
Diante disso, pretendo analisar a poltica tambm como categoria mica mobilizada pelos
atores sociais para pontuar e marcar suas identidades e sua posio no campo de disputa de
poder. A nfase da anlise recair na descrio das relaes de poder travadas entre indivduos
38
e grupos e dos fatores que definem contextualmente a poltica. Neste caso, a ideia desvendar
os sentidos que os sujeitos atribuem s experincias que eles mesmos entendem como polticas,
assim como [...] examinar as relaes que indivduos e grupos estabelecem com a histria, com formas
de agir e sentir identificadas com geraes anteriores, associadas a tradies (NEIBURG, 1995, p.
121).
Dado o interesse da presente etnografia em analisar as relaes entre o parentesco e a
poltica, parece-me relevante considerar as propriedades polticas de smbolos que, primeira
vista, so concebidos como a-polticos. Como bem afirma Cohen (1979), Frequentemente, quanto
menos obviamente polticas forem as formas simblicas, mais eficazes politicamente elas provam ser. A
grande contribuio da antropologia cultural para o estudo da poltica tem sido a anlise das funes do
simblico, das instituies no-polticas como o parentesco e a religio (COHEN, 1979, p. 87).
No que se refere especificamente ao parentesco como conceitualizao terica, Piscitelli
(2006) ressalta que se, por um lado, ele entendido como uma instituio central nas
sociedades ditas primitivas na medida em que concebido como princpio que regulamenta as
relaes sociais e como marco organizador do social tambm em termos polticos e econmicos
, por outro lado, a sua abordagem considerada problemtica nas sociedades contemporneas
j que estas ltimas so analisadas a partir da separao da vida social em diferentes domnios
(economia, poltica, parentesco, religio). Nesse sentido, nas chamadas sociedades
contemporneas, o parentesco tende a no ser considerado como um domnio capaz de englobar
e articular todas as relaes sociais.
A anlise do campo de ativismo dos familiares de desaparecidos na Argentina no qual
noes associadas ao parentesco parecem articular o mbito da famlia ao mbito poltico,
constituindo identidades e memrias (individuais/familiares/coletivas), bem como a sua
transmisso ao longo das geraes , demonstra o sentido do parentesco em sociedades
complexas, revelando [...] a importncia simblica de um sistema de categorias que confere
significado s experincias sociais (PISCITELLI, 2006, p. 45). Tendo isso em vista e baseando-
me nas abordagens mais contemporneas dos estudos de parentesco (CARSTEN, 2004;
SCHNEIDER, 1984), a proposta analisar os significados conferidos ao parentesco e o que ele
39
representa em cada cultura. Trata-se, portanto, de [...] tomar o parentesco como uma questo
emprica, no como um fato universal, partindo de uma hiptese de trabalho que indague sobre aquilo de
que trata o parentesco. No se poderia mais supor que a cadeia genealgica universal ou que tem o
mesmo valor e significado em todas as culturas (PISCITELLI, 2006, p. 51).
Posto isto, fica claro que a perspectiva analtica pretendida nesta etnotrafia busca
afastar-se das discusses tericas mais normativas com o intuito de problematizar como noes
sobre parentesco, poltica, memria, identidade e nao so apropriadas e instrumentalizadas
pelo movimento de familiares de desaparecidos na Argentina. Busco assim analisar como estes
ativistas, em sua militncia por Memria, Verdade e Justia, atribuem sentido s suas prprias
experincias e identidades, ao passo que encontram legitimidade social para suas demandas e
aes polticas.
Objetivos e Questes do Trabalho
Esta etnografia trata do campo de ativismo poltico das organizaes de direitos
humanos argentinas integradas por familiares de desaparecidos da ltima ditadura militar
(1976-1983), definidas como organizaes dos diretamente afetados pelo terrorismo de Estado.
So elas: Asociacin Madres de Plaza de Mayo, Madres de Plaza de Mayo-Lnea Fundadora, Abuelas
de Plaza de Mayo, Familiares de Desaparecidos y Detenidos por Razones Polticas e H.I.J.O.S. (Hijos
por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio)10.
O objetivo do trabalho compreender os processos sociais que levam essas organizaes
a assumirem o lugar de protagonistas na construo das memrias sobre o passado ditatorial,
bem como analisar as disputas que envolvem a consolidao de uma memria pblica sobre a
ditadura nesse espao nacional. Partindo de uma perspectiva histrica e processual da cultura, o
intuito analisar como os familiares de desaparecidos, ancorados nas relaes de parentesco
com as vtimas da represso, atribuem sentido s suas prprias experincias e identidades, ao
10 A partir deste momento utilizarei, respectivamente, as seguintes abreviaes para referir-me a estas organizaes: Madres (especificando, quando for o caso, entre os dois grupos de Madres); Abuelas; Familiares e HIJOS.
40
passo que encontram legitimidade social para suas demandas e aes polticas. Exploro assim
como noes sobre poltica, parentesco, sangue, identidade e verdade histrica atravessam os
embates pelas memrias da ditadura na Argentina.
No captulo I Entre a Ausncia e a Presena: o desaparecimento poltico e a luta pela memria
analiso as relaes entre a poltica de desaparecimento forado levada a cabo pela ditadura
argentina e a luta pela memria empreendida pelos familiares de desaparecidos. Para tanto,
busco examinar as particularidades da poltica repressiva implementada nesse pas em
comparao com as demais ditaduras que tiveram lugar no Cone Sul. Alm disso, investigo
quais as relaes que o fenmeno da memria guarda com os processos de conformao de
imaginrios nacionais e identidades sociais, com prticas de temporalidade e historicidade,
considerando tambm os sentidos atribudos pelos familiares das vtimas ao desaparecimento
forado nesse espao nacional.
No Captulo II A nao como famlia: uma comunidade poltica de sangue analiso o
processo de legitimao do movimento de familiares de desaparecidos como portador da
Verdade sobre a ditadura. Partindo das representaes sobre o parentesco presentes na vida
social, busco examinar por que os laos de sangue funcionam como um recurso chave nos
processos de legitimao poltica na Argentina. Considerando a importncia das metforas
familiares para a simbolizao dos Estados-Nao, investigo como o parentesco tornou-se um
meio privilegiado para a articulao de comunidades polticas nesse contexto nacional. Analiso
assim o lugar da famlia no discurso da ditadura e na trajetria do movimento de direitos
humanos. Problematizo ainda as implicaes sociais do protagonismo dos familiares de
desaparecidos na vida poltica contempornea, destacando o papel que cumpre o Estado na
consagrao dos direitos humanos como uma questo familiar atrelada ao passado ditatorial.
No Captulo III Legado Familiar, Legado Poltico: tecendo genealogias militantes analiso
como os familiares de desaparecidos que militam pelos direitos humanos apresentam e
relacionam poltica e parentesco, ao passo que problematizo como os filhos e netos das vtimas
que se incorporaram ao movimento social ressignificam essas relaes. O intuito verificar de
que forma o parentesco conforma identidades polticas e um campo de militncia que se dirige a
41
dar continuidade memria dos detenidos-desaparecidos. Portanto, busco entender como esses
ativistas articulam heranas familiares e tradies polticas e em que medida suas condutas
pautam-se (poltica e existencialmente) em prticas e concepes sobre o parentesco e a
constituio de identidades nesse contexto particular. De modo que procuro abordar o
parentesco contextualmente e no fluxo da ao social para compreender a experincia familiar
atravs da histria. Analiso ainda a trajetria de significao da categoria detenido-desaparecido,
revelando como novas conjunturas histricas, assim como as aes de uma nova gerao de
ativistas (HIJOS), abrem espao para a emergncia de novas narrativas sobre o passado
ditatorial.
No Captulo IV Sangue, Identidade e Verdade analiso como o processo de restituio da
identidade vivido e pensado pelos filhos de desaparecidos que foram apropriados durante a
ditadura. Tomando como objeto de anlise os debates acerca da aprovao da Lei de ADN para
a resoluo dos casos dos apropriados que se recusam a se submeter de forma voluntria ao
exame de DNA, exploro as polmicas nacionais que envolvem o processo de restituio da
identidade dos netos procurados por Abuelas de Plaza de Mayo. Analiso o lugar que ocupam as
narrativas do movimento de familiares nos processos de construo da apropriao como crime
e de que forma a legitimidade da demanda de Abuelas pela restituio dos apropriados encontra
respaldo no campo jurdico e cientfico (sobretudo na gentica). O intuito examinar em que
medida o sangue converte-se num instrumento crtico para a afirmao da Verdade sobre o
passado de represso e como os familiares de desaparecidos (principalmente os jovens
apropriados) articulam legados familiares e polticos, forjando uma narrativa na qual o sangue
estabelece a relao, mas sobretudo a Verdade Histrica.
No captulo V - Memrias em conflito nos tribunais argentinos trato das disputas pelas
memrias da ditadura que tem como locus o campo jurdico. Analiso assim a trajetria da luta
por Justia do movimento familiares de desaparecidos (tanto no mbito nacional quanto
transnacional), assim como o debate jurdico empreendido para legitimar a demanda pela
responsabilizao penal por violaes aos direitos humanos. Ao abordar o processo de crescente
judicializao da poltica, e compreendendo o Direito como uma forma de ao poltica, exploro
42
em que medida a cena judicial vem desempenhando-se como espao central de produo do
saber e da verdade sobre a ditadura na Argentina. Por meio da realizao de uma etnografia das
audincias nos chamados julgamento de delitos de lesa humanidade, problematizo como familiares
de desaparecidos, sobreviventes do desaparecimento forado, promotores, advogados, juzes e
agentes do Estado acusados de violaes, por meio das narrativas que enunciam, converteram
os tribunais em lugar privilegiado para a afirmao de sentidos ao passado ditatorial recente.
Percursos da investigao, Pesquisa de Campo e Fontes
Dei incio ao presente trabalho no ano de 2007, quando viajei a Buenos Aires para uma
pesquisa de campo preliminar a fim de realizar os primeiros contatos com as organizaes de
familiares de desaparecidos e um mapeamento do campo e das questes iniciais da investigao.
Desde 2002 vinha estudando questes relacionadas ditadura militar argentina. Por cinco
anos, dediquei-me ao estudo dos processos migratrios desencadeados ao longo dos anos 1970
devido represso poltica. Realizei assim uma pesquisa sobre o exlio poltico, analisando as
trajetrias de vida de migrantes argentinos estabelecidos nesse perodo no Brasil11.
O meu interesse na investigao de temas relacionados Argentina e sobre fenmenos
decorrentes desse perodo de represso poltica encontram referncia na minha prpria histria
familiar. Meu pai, um argentino que deixou o seu pas no ano de 1976, falecido em 2001, raras
vezes compartilhou-me as suas experincias no que se refere ao perodo que antecedeu a sua
vinda ao Brasil, ou se negou a falar sobre as razes que determinaram a sua sada da Argentina.
A morte de meu pai coincidiu com o auge da crise econmica argentina (cujo evento
emblemtico ficou conhecido como corralito), com os episdios de represso na Plaza de Mayo
(que antecederam a renncia do ex-presidente Fernando De La Ra, em dezembro de 2001) e
com a sucesso de um crescente processo migratrio de argentinos para fora das fronteiras
nacionais. Nesse momento, o passado ditatorial (com seus desaparecidos e exilados), a ento
11 Esse projeto de pesquisa resultou na dissertao intitulada Narrativas do Exlio argentino no Brasil: Nao, Memrias e Identidades. Ver Sanjurjo (2007).
43
crise econmica (com seus mortos na represso do corralito e o desencadeamento de uma nova
onda emigratria) e os dilemas acerca do futuro da Argentina cruzavam-se, numa histria
nacional conturbada e marcada por excluses, mortes e pela singularidade de uma violncia
cujo signo poltica parecia ocupar um lugar central.
Estas reflexes levaram-me a uma busca pessoal e intelectual, traando os caminhos de
uma investigao impulsionada, em grande medida, pelo intuito de entender a trajetria de meu
pai a partir de uma perspectiva histrica em escala ampliada. Sua histria representava apenas
uma trajetria de vida dentre milhares de outras que se viram marcadas pelo golpe de Estado
de 1976, cujos efeitos, que continuam a reverberar no presente, manifestam-se, por vezes, de
forma paradoxal: como nos silncios para com as geraes descendentes (caso de meu pai) ou na
persistncia das vozes dos familiares de desaparecidos em sua militncia pela memria no
espao pblico nacional e internacional.
Se num primeiro momento foram os exilados e a peculiaridade da histria desse exlio no
Brasil a fonte das respostas aos silncios que me eram prprios, num segundo momento
busquei naqueles que expuseram publicamente sua resistencia ao processo de silenciamento e
desaparecimento fsico e simblico de pessoas, o entendimento dos processos que levavam o
passado ditatorial e seus mortos, assim como os familiares de desaparecidos, a ocupar lugar
significativo na vida poltica argentina. Por isso a questo da memria central nesse trabalho.
Ao estudar sobre as coletividades de exilados em diversos pases (Espanha, Frana,
Itlia, Mxico, Venezuela e Brasil), percebi a importncia da formao de redes transnacionais
entre esses exilados e o movimento de resistncia ditadura militar no espao nacional
argentino. De fato, estas redes viabilizaram o trabalho de denncia internacional, desafiando a
censura imposta no pas. Tais redes foram ainda responsveis por facilitar o estabelecimento
dos primeiros contatos dos familiares de desaparecidos com integrantes das Naes Unidas
(ONU), em Genebra, e da Organizao dos Estados Americanos (OEA), em Washington. Este
trabalho de denncia no exterior foi fundamental para que o movimento de familiares passasse
a receber o apoio, atravs de doaes de recursos e outros meios, de organizaes humanitrias
44
internacionais, o que, em grande medida, viabilizou o trabalho das mesmas no contexto
nacional.
Tendo isso em vista, decidi iniciar a pesquisa sobre o movimento de familiares de
desaparecidos na Argentina. Como brasileira e, portanto, tomando a experincia desse pas em
perspectiva comparativa, motivava-me compreender os processos sociais que levavam tal
movimento social a persistir no tempo e a cobrar tamanha importncia no contexto argentino.
Em comparao com as demais experincias ditatoriais que tiveram lugar no Cone Sul, a
Argentina apresentava-se como um caso paradigmtico, tanto no que se refere s
especificidades e extenso da poltica de desaparecimento forado de opositores polticos,
quanto representatividade e continuidade no tempo do movimento de reao a esta poltica. A
importncia e a persistncia temporal do movimento pelas memrias (do passado e das vtimas),
protagonizado por aqueles que guardam vnculos familiares com os desaparecidos, parecia no
encontrar paralelo, ao menos no que se refere ao seu alcance e repercusso poltica, na
experincia de nenhum outro pas da regio.
Essas indagaes iniciais, que emergiam da comparao da experincia argentina diante
da brasileira e, em menor medida, diante de outras experincias ditatoriais da regio, derivavam
da minha prpria vivncia entre esses dois pases. Essa minha ambiguidade uma brasileira
que tambm era quase uma argentina, uma antroploga estrangeira que tambm era uma
espcie de nativa e filha de um exilado teve implicao direta nas questes que formulava para
a investigao, mas tambm na forma como me inseri no campo de pesquisa: o universo de
militncia dos familiares de desaparecidos. Esse lugar de fronteira entre esses dois pases me
permitiu acionar mltiplas identidades, o que me possibilitou entradas diferenciadas tanto no
campo de investigao quanto na minha relao com o movimento de familiares: via a mim
mesma ao mesmo tempo em que era identificada, ora como uma antroploga estrangeira em
campo, ora como parte do movimento, hija de uma mesma histria, uma compaera de
militncia.
Contudo, se a minha entrada como nativa facilitava o meu acesso ao universo de
militncia dos familiares de desaparecidos, apresentava-se como um impedimento para a
45
explorao de outros universos em relao direta ou at em oposio com o mesmo, como o
caso do movimento conformado por familiares de militares e membros das foras de segurana.
Muitas vezes, pareceu-me pertinente realizar entrevistas com esse grupo, j que as suas
narrativas estavam inseridas no mesmo contexto de militncia dos familiares de desaparecidos
o campo de disputa pela afirmao de sentidos ao passado ditatorial no espao nacional
argentino e, por conseguinte, poderiam me informar sobre posies diferenciadas dentro dele.
As propriedades que me constituam enquanto pessoa nesse universo, filha de um
argentino (ex-militante da Juventud Comunista que deixou o pas aps o golpe de Estado em
1976) e que, alm do mais, falava um espanhol argentino, me impossibilitavam qualquer acesso
aos familiares de militares, ao contrrio do que ocorria com outros dois antroplogos
estrangeiros que compartilhavam o campo comigo (Eva e Ram). Alm do mais, nunca senti
gozar de distanciamento emocional suficiente para encarar frente a frente ex-repressores, como
fez o norte-americano Ram Natarajan, ou para visitar Jorge Rafael Videla na priso, como fez a
holandesa Eva Van Roekel. Optei por fazer uso das narrativas de militares e de seus familiares
disponibilizadas em outros meios ou proferidas durante as audincias judiciais que presenciei
nos tribunais de Buenos Aires, alm, claro, de ouvir sobre as incurses de Eva e Ram nesse
universo. Tambm frutferos foram os dilogos mantidos com a sociolga Valentina Salvi, cujo
objeto de investigao o movimento Memria Completa, conformado por militares e seus
familiares.
A minha identidade ambivalente, sem dvida alguma, facilitou a minha entrada no
universo dos familiares de desaparecidos, ao passo que me vi constantemente confrontada com
o imperativo de no deixar-me fundir completamente nele a fim de manter o distanciamento
analtico necessrio para a reflexo antropolgica. Perguntava-me, portanto, o quanto
compartilhava da realidade que estudava e em que medida isso poderia contribuir ou dificultar
o entendimento e minha reflexo sobre a mesma (GUBER, 1996a). Longe das pretenses
positivistas de veracidade e neutralidade, j to criticadas pelos debates da antropologia ps-
moderna (CLIFFORD, 1998; CLIFFORD e MARCUS, 1986), estava preocupada em distinguir
e identificar conceitos nativos e analticos para formular e arriscar a minha prpria
46
interpretao. Alm do mais, partia do pressuposto de que era do vnculo estabelecido entre
antroplogo e nativos, assim como do dilogo entre conceitos nativos e conceitos analticos,
que se produziria o conhecimento antropolgico.
O dilema de minha ambiguidade experimentado durante a pesquisa de campo viu-se
replicado no tratamento da bibliografia relacionada ao tema de investigao: tendo minha
formao acadmica no Brasil, deparei-me com toda uma literatura produzida no campo da
teoria social argentina sobre memria, ditadura militar e o movimento de direitos humanos. Ao
mesmo tempo em que busquei conhecer os principais debates que constituem esse campo de
investigao nas cincias sociais nesse pas, procurei incorporar a minha formao nas cincias
sociais brasileira, num esforo de encontrar, precisamente nesse meu lugar de fronteira, algum
rendimento analtico. Tendo isso em vista, busquei construir uma anlise que fosse capaz de
estabelecer um dilogo criativo entre os debates que so prprios da antropologia feita no
Brasil e aqueles que constituem o campo de estudo sobre memrias e ditadura militar nas
cincias sociais produzida na Argentina.
Vale dizer que o campo da militncia dos familiares de desaparecidos e o campo de
produo acadmica sobre o tema das memrias e da ditadura se encontram, em grande medida,
atravessados nesse pas12. Categorias como, por exemplo, prtica social genocida (FEIERSTEIN,
2007), terrorismo de Estado (DUHALDE, 1999) e poder concentracionrio (FOUCAULT, 2008;
CALVEIRO 2005 e 2008) so acionadas pelos ativistas em sua militncia pelas memrias,
tornando-se nessa operao categorias micas e linguagem do movimento social, ao passo que
se constituem como categorias analticas construdas, em princpio, dentro do campo
acadmico.
A relao entre esses dois campos, que no se limita a uma questo semntica como
demonstra a experincia de inmeros militantes do movimento de direitos humanos que so
produtores de saber a partir do campo acadmico , evidencia como, neste contexto especfico,
as supostas fronteiras que separariam o universo da poltica e o universo acadmico no so to
impermeveis e definidas. Longe de afirmar o comprometimento da qualidade analtica e terica
12 Utilizo-me aqui do referencial terico de Bourdieu (2004) para pensar a constituio de campos sociais e a relao entre eles.
47
dessa produo acadmica, quero antes explicitar a relao existente entre produo do saber, a
poltica e a questo do poder (FOUCAULT, 2007), relao que pode adquirir contornos mais
difusos em determinados contextos sociais13.
Aps a minha primeira breve incurso ao campo de investigao em 2007, quando
realizei algumas entrevistas com membros das organizaes de familiares e a compilao de
algum material documental sobre as mesmas, retornei Buenos Aires em mais duas ocasies
para um perodo mais extenso de pesquisa, permanecendo durante seis meses em 2009 e por um
perodo de mais quatro meses no ano de 2010.
Ressalto que a escolha de Buenos Aires como local da investigao no foi aleatria. H
uma evidente configurao desigual do poder econmico, poltico e cultural no espao nacional
argentino, cuja centralidade de Buenos Aires como ponto nevrlgico da nao encontra suas
origens ainda no sculo XIX nas disputas polticas (e guerras civis) pela consolidao e
construo desse Estado Nacional. Da mesma forma, a mobilizao e organizao do
movimento de familiares de desaparecidos segue esta mesma lgica: as sedes das organizaes,
suas principais lideranas e atividades tm como locus a capital Buenos Aires, bem como seus
discursos e polticas so delineados da perspectiva portenha14. Ainda que vrias das
organizaes possuam sedes e regionais em diversas cidades do pas, o centralismo portenho,
que determina a proximidade com o poder poltico e com os meios de comunicao de alcance
nacional, limita a repercusso e o protagonismo das vozes perifricas.
Tendo em vista a unidade de observao (VINCENT, 1987) desta pesquisa as
organizaes de familiares de desaparecidos na cidade de Buenos Aires , pareceu-me
13 Ao analisar, por um lado, a produo intelectual que trata da antinomia peronismo-antiperonismo e, por outro lado, o histrico de interveno poltica nas universidades argentinas, Neiburg (1995 e 1997) revela o papel de personagens e instituies nos processos de construo de representaes sobre a nao, evidenciando as relaes de poder inerentes s representaes culturais. Neste sentido, chama a ateno para o fato de que os contedos destas representaes encontram-se necessariamente movidos por processos e lutas sociais que pretendem descrever e informar como uma cultura ou nao deveria ser, ao passo que possuem incidncia direta na vida social: Tomando como referncia a Argentina, essas teorias tm a particularidade de revelar o que muitas outras teorias construdas para pensar outras realidades nacionais ocultam: o fato de serem descries que contm aspiraes normativas. Sua maior ambio, e tambm sua maior prova de eficcia, serem capazes de atuar e produzir efeitos sobre o mundo social (NEIBURG, 1997, p. 215). 14 Os efeitos dessa centralidade portenha sero problematizados mais adiante, sobretudo no que se refere a uma configurao desigual dos direitos humanos como problema social no pas.
48
pertinente operacionalizar a investigao servindo-me de algumas contribuies da Escola de
Manchester. Isto se deve a sua nfase, por um lado, na adaptao de metodologias
antropolgicas mais tradicionais (coleta de dados detalhada) para a anlise da mudana social
(GLUCKMAN, 1987) e, por outro lado, na combinao da anlise da estrutura a de processos
sociais. O mtodo proposto como anlise situacional (VAN VELSEN, 1987), por exemplo,
permitiu que a investigao antropolgica privilegiasse os atores sociais (como indivduos
ocupantes de status) e o registro de aes individuais especficas, analisando o contexto no qual
os atores sociais representavam seu status e interesses.
Importante tambm foi diferenciar, conforme ressalta Vincent (1987), os limites da
observao (atravs da anlise de campos de atividade, por exemplo) dos limites da
investigao e, como corolrio, integrar material histrico e documental aos dados
antropolgicos, desenvolvendo uma perspectiva processual e histrica da cultura. Como bem
coloca Feldman-Bianco (1987), Ao evitar o estudo da mente e das representaes de forma esttica,
e a partir to-somente de questionamentos formulados a informantes sobre temas abrangentes, esta
perspectiva abre possibilidades para a anlise da cultura enquanto processo. Pode, provavelmente,
favorecer a operacionalizao de pesquisas que tm por premissa entender como conjuntos de significados
so transmitidos e desenvolvidos e como a ao humana mediada por um projeto cultural no contexto
das complexidades dos processos sociais (FELDMAN-BIANCO, 1987, p. 11).
No incio da pesquisa de campo em Buenos Aires tinha como intuito priorizar o registro
de entrevistas com os membros das organizaes pesquisadas. Contudo, na medida em que me
inseri no campo de investigao, percebi a disposio de uma quantidade significativa de
material testemunhal. Considerando tambm que esses relatos encontravam-se atravessados
por uma experincia de dor, decidi enfatizar o trabalho de pesquisa no acompanhamento das
atividades realizadas pelas organizaes, na recoleo de material produzido por/sobre elas e
de testemunhos j publicados. Alm do mais, ao conhecer o acervo documental da Asociacin
Civil Memoria Abierta15, entrei em contato com um Arquivo Oral constitudo por mais de 300
15 Memoria Abierta foi criada em 1999 com o objetivo de sistematizar e organizar informao e documentao sobre o perodo da ditadura militar, impulsionar a criao de um museu e realizar atividades educativas com jovens com o intuito, segundo seus membros, de promover a transmisso inter-geracional das memrias.
49
entrevistas videografadas, muitas das quais com membros das organizaes pesquisadas. Tendo
isso em vista, decidi coletar parte do material testemunhal no prprio Arquivo Oral de Memoria
Abierta, conforme explicitarei a seguir.
Ainda assim, realizei o registro de 14 entrevistas com integrantes do movimento de
familiares, alm de manter inmeras conversas informais com ativistas, sobretudo do
movimento de HIJOS, durante todo o perodo de pesquisa. Foram entrevistadas sete mes de
desaparecidos: duas integrantes de Madres de Plaza de Mayo-Lnea Fundadora, duas da
Asociacin Madres de Plaza de Mayo e trs de Abuelas de Plaza de Mayo. Ainda com relao
organizao Abuelas, realizei entrevistas com um advogado, um psiclogo, com um filho de
desaparecidos (cuja identidade foi restituda em 2005) e com o secretrio da organizao (pai de
uma criana apropriada).
Alm disso, entrevistei dois integrantes de Familiares de Desaparecidos y Detenidos por
Razones Polticas (um pai e uma esposa de desaparecido, esta ltima sobrevivente de um centro
clandestino de deteno). Registrei o te