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Murilo Dias César

XVIII Prêmio Vladmir Herzog de Anistia e Direitos Humanos

Adaptação teatral livre de “São Bernardo”, de Graciliano Ramos

SÃO BERNARDO Adaptação Teatral Livre

CONTATO:

MURILO D. CÉSAR

Av. da Liberdade, 959 / 901 - B. Liberdade

CEP: 01503-001 - SÃO PAULO - SP

Tel.: (11) 3207 2343

[email protected]

SÃO BERNARDO Adaptação Teatral Livre

SÃO BERNARDO

CENÁRIO:

DIVIDIDO EM PLANOS, DE ACORDO COM AS NECESSIDADES DA AÇÃO. OS CORREDORES DA PLATÉIA DEVERÃO SER UTILIZADOS COMO SE FIZESSEM PARTE DA FAZENDA.

ÉPOCA

DÉCADAS DE VINTE E TRINTA.

LOCAL

“SÃO BERNARDO”, GRANDE FAZENDA NAS PROXIMIDADES DE VIÇOSA, ALA-GOAS.

PERSONAGENS

• PAULO HONÓRIO - Poderoso e autoritário proprietário de “São Bernardo”.

OBS.: O personagem Paulo Honório, ao longo da ação, será apresentado em diversas facetas de sua enigmática personalidade:

- o namorado e noivo carinhoso; o marido exemplar;

- o “self-made man” sertanejo, implacável, ambicioso, que pretende aumentar as terras de “São Bernardo”, invadindo as fazendas vizinhas e criar uma dinastia. Uma frase sua define bem esse objetivo: “Eu tinha de me apossar das terras de “São Bernardo”… E, para me apossar das terras de “São Bernardo”, fiz o diabo… O diabo!”

- o homem solitário, impotente, amargo, permanentemente mergulhado dentro de si próprio.

• MADALENA - Professora, esposa de Paulo Honório, “livre-pensadora”. Uma mulher co-rajosa, culta e humanista. Sua personalidade forte, determinada, embora sensível e deli-cada, contrasta com a rudeza a quase insensibilidade do marido, tornando o choque entre ambos inevitável.

• LÚCIO DE AZEVEDO GONDIM - Proprietário de “O Cruzeiro”, jornalista corrupto. Amigo interesseiro e, ao mesmo tempo, sincero de Paulo Honório.

• CASIMIRO LOPES - Pistoleiro franzino, de estatura baixa, feições comuns e rudes. Analfabeto, corajoso, sua fidelidade quase ilimitada ao patrão só é menor que seu amor ao filho deste, o nenê Honorinho.

• LUÍS PADILHA - Ex-proprietário de “São Bernardo” e, depois de perder a propriedade, professor da escola primária da fazenda. Nutre por Paulo Honório um sentimento que mistura admiração, subserviência e rancor.

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• JOÃO NOGUEIRA - Rábula de Paulo Honório, responsável por todos os “problemas jurídicos” de “São Bernardo” e, depois, já decadente, simples guarda-livros da fazenda.

• D. GLÓRIA - Tia e amorosa mãe adotiva de Madalena, costureira. Doente, vive atormen-tada por uma dor de cabeça que, com freqüência, transforma-se em enxaqueca.

• VELHA MARGARIDA - Mãe “adotiva” de Paulo Honório, negra, analfabeta, profunda-mente devotada ao “filho”.

OBS.: A velha Margarida será apresentada em duas etapas de sua vida:

• Aos 57 anos, trabalhando como doceira, quando “adota” e “educa” o menino Paulo Ho-nório, impondo-lhe os valores culturais da região.

• Aos 90 anos, beata e esclerosada.

• PADRE SILVESTRE - Sacerdote amigo de Paulo Honório e Madalena. Tem um senti-mento paternal por ambos, em especial por Madalena.

• GOVERNADOR - Governador de Alagoas, na época em que Paulo Honório está no auge de seu prestígio. Um ambicioso político de ontem e de hoje.

• VELHO MENDONÇA - Proprietário de “Bom-Sucesso”, fazenda vizinha de “São Ber-nardo”. Um representante típico e tradicional de sua classe. Seu desprezo pelo “adventício” Paulo Honório é evidente.

• GERMANA - Jovem, bela e sensual camponesa, com a qual Paulo Honório, na mocidade, teve breve e marcante relacionamento.

• JOÃO FAGUNDES - Jovem simpático, rival de Paulo Honório na disputa por Germana.

• JOAQUIM SAPATEIRO - Companheiro de prisão de Paulo Honório jovem e seu único “professor”.

NOTAS E / OU SUGESTÕES DO AUTOR

1. O número de atores fica a critério da direção. O autor, porém, esclarece que esta adaptação livre da obra-prima de Graciliano Ramos foi escrita de modo que um elenco reduzido de seis / sete atores possa encená-la. Observe-se que diversos personagens têm breve, embora importante, participação na peça, o que possibilitará (exceto os que fizerem Paulo Honório e Madalena) aos atores “dobrar” papéis.

2. Os cenários poderão ser realistas e subjetivos: efeitos de luz e som poderão, eventualmente, “ criar” os diversos ambientes sugeridos no texto.

3. De preferência, em diversas cenas, não haverá a divisão “ realista” palco / platéia. O teatro todo — entrada, platéia, palco, etc. — poderá ser a grande propriedade rural de “São Bernardo”.

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I ATO

TEATRO ÀS ESCURAS.

PAULO HONÓRIO - (VOZ IRRITADA, CHAMANDO) Madalena! Madalena! Madalena! (SENTINDO QUE NÃO SERÁ OUVIDO) Madalena!… (NUM MURMÚRIO) Madalena… Madale…

FOCO DE LUZ. PAULO HONÓRIO SENTADO À MESA, SOBRE A QUAL SE VÊ UMA GARRAFA DE CONHAQUE E DOIS COPOS. A SEU LADO, EM PÉ, COM UM BLOCO DE PAPEL NA MÃO, AZEVEDO GONDIM. MAIS À FRENTE, À ESQUERDA, CASI-MIRO LOPES PICA UM PEDAÇO DE FUMO. ESSES DOIS PERSONAGENS, DE IME-DIATO, NÃO SÃO BEM VISÍVEIS PELO PÚBLICO.

PAULO HONÓRIO - (NUMA ANGUSTIADA LEMBRANÇA) Madalena!

LUZ GERAL. SALA DE ESTAR DE “SÃO BERNARDO”.

AZEVEDO GONDIM - (LENDO ANIMADO, QUASE DISCURSANDO) Foi então que o destemido e pioneiro Sr. Paulo Honório tomou a implacável e corajosa decisão de empregar as técnicas mais modernas para aumentar a produção, melhorar o rebanho e desenvolver “São Bernardo”!… (BREVE PAUSA. OLHA PARA PAULO HONÓRIO, AGUARDANDO O EFEITO DE SUAS PALAVRAS)

PAULO HONÓRIO - (IRRITADÍSSIMO) Esse é o meu livro?… Vá pro inferno, Gondim!

AZEVEDO GONDIM - (ATINGIDO) Seu Paulo, o senhor acha que…

PAULO HONÓRIO - (CORTA) Está idiota!… Pelo amor de Deus! Ninguém fala desse jeito, Gondim!

AZEVEDO GONDIM - Calma, seu Paulo, calma… Um escritor não pode escrever como se fala.

PAULO HONÓRIO - E por que não pode?

AZEVEDO GONDIM - Não pode porque… porque não pode. (PONDERADO) O senhor entende muito de negócios, mas… Negócios é uma coisa, literatura é outra…

PAULO HONÓRIO, AINDA IRRITADO, DIRIGE-SE AO PROSCÊNIO, DE ONDE PASSA A OBSERVAR OS “SEUS DOMÍNIOS” (A PRÓPRIA PLATÉIA). REFLETE. MUDANÇA DE LUZ. SILÊNCIO. UMA CORUJA PIA. PAULO HONÓRIO “VÊ” MA-DALENA, CUJA FIGURA SURGE SOB LUZ EM FOCO, NUM PONTO QUALQUER DA PLATÉIA, PARA DESAPARECER LOGO EM SEGUIDA.

PAULO HONÓRIO - Madalena!… Madalena, eu…

POR INSTANTES, ABATIDO, FICA PENSANDO EM MADALENA. DE NOVO, PIAR DE CORUJA QUE SE SOBREPÕE A OUTROS SONS, “DESPERTANDO-O”.

PAULO HONÓRIO - Esse livro não anda!… Três tentativas num mês — e nada!… É o diabo! (BREVE PAUSA. AUTORITÁRIO) Beba conhaque, Gondim!

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AZEVEDO GONDIM BEBE. PAULO HONÓRIO, DE NOVO, ENTREGA-SE A SEUS PENSAMENTOS.

AZEVEDO GONDIM - A gente pode recomeçar o livro descrevendo aquele episódio em que o senhor… (NOTA QUE NÃO ESTÁ SENDO OUVIDO) Seu Paulo!… Seu Paulo!

PAULO HONÓRIO - Beba conhaque, Gondim… Conhaque!

AZEVEDO GONDIM BEBE. OBSERVA PAULO HONÓRIO, CUJA MENTE DIVAGA.

AZEVEDO GONDIM - Se o senhor precisar de mim, estou às suas ordens. (VAI SAINDO, VOLTA-SE) Aquele pequeno problema do “Cruzeiro” que eu contei pro se…

PAULO HONÓRIO - (CORTA, BRUSCO) Que problema?

AZEVEDO GONDIM - Nada, nada… A gente deixa pra conversar outro dia.

PAULO HONÓRIO - (DESCONFIADO) Que problema, Gondim?

AZEVEDO GONDIM - (DISPARA) Seu Paulo, o governo vive dizendo que a situação fi-nanceira do país é muito boa, que conseguiu salvar a moeda, controlar a inflação, mas está tudo subindo de preço e “O Cruzeiro” anda com falta de capital de giro. Desse jeito, o meu jornal vai…

PAULO HONÓRIO - (CORTA, RÍSPIDO) Boa noite, seu Gondim!

AZEVEDO GONDIM - A gente deixa esse assunto pra depois… Boa noite! (SAI)

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - (IRADO) Canalha!… Me chantageando de novo!… Esse “Cruzeiro” está me custando os olhos da cara! (PENSA) Vou ter mesmo que gemer, de novo, com mais uns cobres pro Gondim…

PAUSA. LUZ EM FOCO. PAULO HONÓRIO REFLETE.

PAULO HONÓRIO - (LEMBRANDO, AMARGO) Madalena… (DEVANEIA. NOVO PIO DE CORUJA O DESPERTA. OBSERVA CASIMIRO LOPES QUE, NO SEU CANTO, CONTINUA PICANDO FUMO. REFLETE) Tem coisas em minha vida que eu nunca vou revelar, cara a cara, pra ninguém. (OBSERVA O BLOCO DE PAPEL EM CIMA DA MESA) Mas vou contar tudo no meu livro. Vai ser publicado com pseudônimo mesmo… (EXAMINA AS FOLHAS) Que porcaria! (RASGA AS FOLHAS, ATIRANDO-AS NO LIXO) Casimiro, eu sempre achei esse Gondim uma besta… Uma besta!

CASIMIRO LOPES - Uma besta… Uma besta, seu Paulo…

PAULO HONÓRIO - Casimiro, me esquenta o café.

PAULO HONÓRIO REFLETE. CASIMIRO LOPES, LENTO, VAI ATENDER À ORDEM. BARULHO VINDO DE FORA. CASIMIRO LOPES APANHA SUA ESPINGARDA E PASSA A OBSERVAR PELA FRESTA DA JANELA.

CASIMIRO LOPES - (TENSO) Tem gente lá fora, seu Paulo! O Tubarão deu o alarme.

PAULO HONÓRIO, DESCRENTE, OBSERVA CASIMIRO LOPES. O CÃO LOGO PÁRA DE LATIR. ALÍVIO DE CASIMIRO LOPES.

PAULO HONÓRIO - Que é isso, Casimiro? Foi-se o tempo que…

CASIMIRO LOPES - Acho que era só um bicho do mato que assustou o Tubarão.

BREVE PAUSA.

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PAULO HONÓRIO - As coisas mudam, Casimiro. Mudam… (O.T.) Me traz o café. (OBSERVA CASIMIRO LOPES QUE, TRÔPEGO, SEGUE EM DIREÇÃO À COZINHA) Todo estropiado! Está que não se agüenta… (COM DESPREZO) Um molambo! (REFLETE) O Casimiro, agora, só me serve pra fazer café e de companhia… É por isso que ainda não mandei o Casimiro embora… (SURGE-LHE UMA IDÉIA) Ainda!… (ARREPENDE-SE) Não, não, o Casimiro eu não posso mandar embora nunca. Nunca! (VOLTA À MESA, APANHA PAPEL E CANETA. SENTE DIFICULDADE EM COMEÇAR. ESTÁ TENSO) Vou desistir desse troço… (BREVE PAUSA) Essa idéia de escrever o livro não me sai da cabeça… Me persegue!… (IRRITA-SE. VAI ATÉ O PROSCÊNIO E OBSERVA OS “SEUS DOMÍNIOS”) Se eu tivesse metade da instrução da Madalena, escrevia o livro brincando…

REFLETE. CASIMIRO LOPES VOLTA COM UMA XÍCARA DE CAFÉ NA MÃO.

CASIMIRO LOPES - O café, seu Paulo.

PAULO HONÓRIO - (COM CERTO AFETO) Obrigado, Casimiro.

CASIMIRO LOPES - Mais alguma coisa, seu Paulo?

PAULO HONÓRIO - Não, obrigado. (VOLTA A OBSERVAR CASIMIRO LOPES, QUE SE ENCOLHE NO SEU CANTO) Até que gosto do Casimiro Lopes. Ainda é corajoso e tem fidelidade de cão. Fidelidade de cão… (TOMA O CAFÉ E VOLTA A SENTAR-SE) De le-tras, não entendo nada… Entendo é de gado, agricultura, zootecnia, criação de porcos, de ga-linhas… Mas escrever… (REFLETE) Escrever é o diabo, Casimiro!

CASIMIRO LOPES - É o diabo… É o diabo, seu Paulo…

PAULO HONÓRIO - (APANHA PAPEL E TINTA) Por que preciso escrever a minha histó-ria?… Porque preciso, ora essa! Preciso! (DECIDE-SE FINALMENTE) Que título? (RE-FLETE E ESCREVE) “São Bernardo”… Gosto do título: “São Bernardo”!… Vou contar tudo, tudo, tudo — e pronto! (ESCREVE) Eu tinha de me apossar das terras de “São Ber-nardo”, reconstruir a fazenda que estava caindo aos pedaços, levantar a serraria e o açude, introduzir a pomicultura e a avicultura, criar gado bovino… E, para me apossar das terras de “São Bernardo” fiz o diabo… o diabo! (RELÊ. ANIMADO) Até que está bom. (ESCREVE. MUDANÇA DE LUZ) Meu nome é Paulo Honório. Nem sei quantos anos tenho exatamente: devo andar pelos cinqüenta, como consta na certidão de nascimento que não menciona nem pai, nem mãe, nem a cidade em que nasci… De onde vim então? (IRÔNICO) Acho que vim do nada… Da minha infância, só me recordo que andei por aí, à toa… Me lembro que fui guia de cego, que me puxava pela orelha quando ficava bravo, e da velha Margarida…

LUZ NUM OUTRO PONTO DO PALCO. SURGE A VELHA MARGARIDA, MEXENDO UM TACHO COM UMA COLHER DE PAU. A LUZ APAGA-SE SOBRE PAULO HO-NÓRIO.

VELHA MARGARIDA - Num ponha a mão aí, menino. Vai se queimá e desandá o doce… Depois separo um bocadinho procê e ti deixu raspá o tacho…

A VELHA MARGARIDA CONTINUA SEU TRABALHO SOB LUZ EM FOCO.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) Até os dezoito anos, trabalhei de sol a sol, aqui mesmo em “São Bernardo”, na enxada, no eito. Não passava de um molambo… Um molambo!

A LUZ APAGA-SE SOBRE A VELHA MARGARIDA. PALCO MAL ILUMINADO. SURGE A FIGURA DE PAULO HONÓRIO JOVEM, MAL VESTIDO, TRABALHANDO NA ENXADA.

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PAULO HONÓRIO - Diabo de vida! (DEIXA A ENXADA DE LADO) Isso lá é vida? (VOLTA A TRABALHAR)

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) A primeira mulher que tive foi a Germana…

FOCO SOBRE GERMANA, DECOTADA, QUE, SORRIDENTE E CONVIDATIVA, OLHA PARA PAULO HONÓRIO. UMA ATRAÇÃO ALGO ANIMALESCA APRO-XIMA-OS DE IMEDIATO. ABRAÇAM-SE, OU ANTES, ATRACAM-SE. PAULO HO-NÓRIO BELISCA-LHE A BUNDA.

GERMANA - (COM DOR) Aiii!… (SENSUAL) Repete, repete… (COM GOZO) Aiii!…

A LUZ APAGA-SE LENTAMENTE…

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) Ah, a Germana!… Acho até que ia ficar com a Ger-mana…

LUZ POUCO NÍTIDA, PERMITINDO AO PÚBLICO APENAS DIVISAR OS PERSONA-GENS. GERMANA E JOÃO FAGUNDES, ABRAÇADOS, SÃO SURPREENDIDOS POR PAULO HONÓRIO, QUE PUXA GERMANA E BATE-LHE. JOÃO FAGUNDES REAGE, MAS PAULO HONÓRIO O ESFAQUEIA E ELE CAI. PAULO HONÓRIO OBSERVA-O E FOGE.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) Pensei que o João Fagundes tivesse batido as botas, mas ele teve sorte e não morreu…

SURGE PAULO HONÓRIO, TORTURADO PELA POLÍCIA.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) Na cadeia, aprendi a ler com o Joaquim Sapateiro, que tinha uma bíblia dos protestantes…

LUZ EM FOCO SOBRE JOAQUIM SAPATEIRO, DE BÍBLIA NA MÃO.

JOAQUIM SAPATEIRO - (LENDO) “Bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados… Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra…”

JOAQUIM SAPATEIRO CONTINUA A LER, MAS NÃO SE OUVE O QUE DIZ.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) O Joaquim Sapateiro morreu na prisão… (A LUZ VAI SE APAGANDO SOBRE JOAQUIM SAPATEIRO) A Germana, coitada, caiu na vida e fi-cou com a doença do mundo… (BREVE PAUSA) Bem mais tarde, o seu Pereira, agiota e chefe político, me emprestou cem mil-réis…

A LUZ ACENDE-SE SOBRE PAULO HONÓRIO, CONTANDO DINHEIRO.

PAULO HONÓRIO - (REFLETINDO) Cinco por cento ao mês… Um roubo!… Mas a mi-nha vida agora vai mudar… Vai mudar! (COM ÓDIO) Um dia, o seu Pereira vai se ver co-migo… Se vai!

OLHA PARA O DINHEIRO, REMOENDO-SE DE ÓDIO, ENQUANTO A LUZ APAGA-SE LENTAMENTE.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) A princípio, o capital fugia de mim e eu tinha de correr desesperado atrás dele… Passei fome e sede, dormi ao relento na areia dos rios secos, briguei com gente valente que fala aos berros e fiz muito negócio com arma engatilhada na mão…

LOGO NO INÍCIO DESTA FALA, SURGEM DR. SAMPAIO, ACOMPANHADO DE SEU CAPANGA, E PAULO HONÓRIO, ACOMPANHADO DE CASIMIRO LOPES. PAULO HONÓRIO E O DR. SAMPAIO DISCUTEM. PAULO HONÓRIO ESBRAVEJA, EN-

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QUANTO DR. SAMPAIO, APARENTEMENTE CALMO E SEGURO DE SI, FAZ GESTO NEGATIVO COM A CABEÇA.

DR. SAMPAIO - Pois não vou te pagar um tostão, Honório… Um tostão!

PAULO HONÓRIO - (TENTANDO APARENTAR CALMA) Mas que é isso, Dr. Sam-paio? O senhor me comprou a boiada e agora não quer me pagar…

DR. SAMPAIO - (IRÔNICO) Entra na Justiça… Entra na Justiça, Honório…

PAULO HONÓRIO - (FINGINDO) Vou entrar… Vou entrar, Dr. Sampaio…

PAULO HONÓRIO VAI SAINDO. FAZ SINAL A CASIMIRO LOPES QUE, NUM GESTO RÁPIDO, ATIRA NO CAPANGA. PAULO HONÓRIO AGARRA DR. SAMPAIO E PÕE-LHE A FACA NA GARGANTA.

PAULO HONÓRIO - (COM ÓDIO) Quer dizer que não vai me pagar, hem, Sampaio?… Paga ou não paga, filho de uma égua?

DR. SAMPAIO - (APAVORADO) Pelo amor de Deus, seu Paulo! Pelo amor de Deus! Por que o senhor não entra na justiça?

PAULO HONÓRIO - Que Deus! Que justiça! Que nada!… Deus está lá no céu e não se mete em negócio de homem… Sampaio, me espicha trinta contos mais juros de seis meses… Trinta e seis contos e trezentos mil-réis!

DR. SAMPAIO - (DESESPERADO) Eu pago! Eu pago! Eu pago!

A CENA SE CONGELA. PAUSA.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) O Dr. Sampaio escreveu um bilhete pra família dele e naquele dia mesmo me pagou trinta e seis contos e trezentos mil-réis…

PAULO HONÓRIO ENTREGA UM RECIBO AO DR. SAMPAIO. O CAPANGA FERIDO CONTINUA DEITADO, GEMENDO, SEM SER ATENDIDO. PAULO HONÓRIO CONTA O DINHEIRO.

PAULO HONÓRIO - Certinho da silva. Aí está o recibo… Dívida quitada, Dr. Sampaio! Quitadinha!… Adeus! (VAI SAINDO. VOLTA-SE) Muito obrigado e que Deus ilumine o senhor, Dr. Sampaio.

SAI JUNTO COM CASIMIRO LOPES, ENQUANTO A LUZ VAI SE APAGANDO NESTE PLANO.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) Claro que nunca mais apareci por aquelas bandas… (O.T.) Afinal, cansado daquela vida de cigano, resolvi me estabelecer aqui, na minha terra adotiva, Viçosa, Alagoas. (LUZ) “São Bernardo”!… Já disse que tinha trabalhado na enxada em “São Bernardo”... (BREVE PAUSA. COBIÇOSO) Eu tinha de me apossar das terras de “São Bernardo”…

MUDANÇA DE LUZ. AO LADO DE PAULO HONÓRIO, CASIMIRO LOPES. PAULO HONÓRIO OBSERVA “SÃO BERNARDO” COM VISÍVEL INTENÇÃO DE POSSE.

PAULO HONÓRIO - “São Bernardo”, Casimiro!… “São Bernardo”!…

CASIMIRO LOPES - (SEM ENTENDER) “São Bernardo”, seu Paulo… “São Bernardo”…

PAULO HONÓRIO E CASIMIRO LOPES CONTEMPLAM “SÃO BERNARDO”. CASI-MIRO LOPES DESAPARECE. A CENA SE TRANSFORMA, ENQUANTO SE OUVE A VOZ DE PAULO HONÓRIO.

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PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) Lembro-me muito bem da primeira vez que, como quem não quer nada, me aproximei do Padilha, então proprietário de “São Bernardo”…

A CENA JÁ SE TRANSFORMOU. LUZ EM FOCO SOBRE LUÍS PADILHA, UM POUCO EMBRIAGADO, SENTADO A UMA MESA, JOGANDO BARALHO. APENAS PAULO HONÓRIO, QUE O OBSERVA À DISTÂNCIA, E LUÍS PADILHA SÃO BEM VISÍVEIS. AO LADO DE LUÍS PADILHA, UMA GARRAFA QUE ELE BEBE NO GARGALO. ÀS TANTAS, OS DEMAIS JOGADORES APANHAM SUAS FICHAS E RETIRAM-SE. LUÍS PADILHA BEBE, AMARGANDO SUA DERROTA. PAULO HONÓRIO SENTA-SE A SEU LADO. DE INÍCIO, NÃO É BEM RECEBIDO, MAS LOGO COMEÇAM A CON-VERSAR. SOM CARACTERÍSTICO OU MÚSICA TÍPICA IMPEDE QUE SE OUÇA O QUE DIZEM. PAUSA.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) Travei amizade com o Padilha e logo emprestei dez contos pra ele… Depois, como esperava, o Padilha voltou…

MUDANÇA DE CENA. LUÍS PADILHA, ALGO EMBRIAGADO, E PAULO HONÓRIO CONVERSAM. DE INÍCIO, NÃO SE OUVE O QUE DIZEM.

LUÍS PADILHA - Só mais quinhentos mil-réis, seu Paulo. Eu pago depois, com juros.

PAULO HONÓRIO - (PASSA-LHE O DINHEIRO) Claro que você me paga…

LUÍS PADILHA - Se o senhor quiser, eu assino uma letra.

PAULO HONÓRIO - Você é meu amigo, Padilha… Mas é mera formalidade, hem!

LUÍS PADILHA ASSINA A LETRA. RECEBE UM CUMPRIMENTO E UM ABRAÇO.

PAULO HONÓRIO - Mera formalidade… (GUARDA O PAPEL NO BOLSO)

LUÍS PADILHA - Nem sei como agradecer ao senhor.

PAULO HONÓRIO - Os amigos são pra essas coisas…

LUÍS PADILHA - Sábado, à noite, vai ter festa de São João, em “São Bernardo”. O senhor está convidado, seu Paulo.

PAULO HONÓRIO - Ando muito ocupado, mas se puder eu vou… (LUZ GERAL SE APAGA. FOCO SOBRE PAULO HONÓRIO) Fui.

A CENA SE TRANSFORMA. PAULO HONÓRIO ESTÁ EM “SÃO BERNARDO”. EN-TARDECER. OUVE-SE, PRÓXIMO, MÚSICA DE ZABUMBA E PÍFANOS.

PAULO HONÓRIO - (COMENTANDO) Tudo abandonado… A casa-grande está pratica-mente em ruínas… E o resto então? Só mato, lama, mutuca comendo a gente. (OBSERVA “AS TERRAS”) Mas que terra excelente, meu Deus!

O SOM DA MÚSICA AUMENTA. ENTRA LUÍS PADILHA, JÁ MEIO EMBRIAGADO.

LUÍS PADILHA - Que prazer! O senhor aqui em “São Bernardo”…

PAULO HONÓRIO - Estou de passagem. Ando ocupadíssimo. Vim só conhecer “São Ber-nardo” e dar dois dedos de prosa.

LUÍS PADILHA - Fica pra nossa festa de logo mais à noite, dorme aqui e amanhã mostro a fazenda toda pro senhor.

PAULO HONÓRIO - Tenho um compromisso ainda hoje. Volto outro dia.

LUÍS PADILHA - Mas, seu Paulo, e a nossa festa de São João?

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PAULO HONÓRIO - Não posso mesmo. (O.T.) Estive olhando por aí. Padilha, por que você não cultiva “São Bernardo”?

LUÍS PADILHA - Cultivar como?

PAULO HONÓRIO - Compra maquinário, tratores, arados, constrói açude…

LUÍS PADILHA - Mas tudo isso custa muito dinheiro, seu Paulo.

PAULO HONÓRIO - (INSINUANTE) Dinheiro não é problema, Padilha…

LUÍS PADILHA - Posso… Posso contar com o senhor?

PAULO HONÓRIO - Somos amigos, não somos?

LUÍS PADILHA - (REFLETE) “São Bernardo” já produz alguma coisa…

PAULO HONÓRIO - Mas pode produzir muito mais.

LUÍS PADILHA - Tenho pensando muito numa plantação de mandioca.

PAULO HONÓRIO - Excelente idéia, Padilha! (À PARTE) Estragar terra tão fértil plan-tando mandioca… Burrice!

LUZ GERAL DESAPARECE. FOCO SOBRE PAULO HONÓRIO. NO OUTRO PLANO, O BAILE DE SÃO JOÃO.

PAULO HONÓRIO - (COBIÇOSO) “São Bernardo”… (FOCO SOBRE LUÍS PADILHA AGARRADO A UMA MULHER, BEBENDO. PAULO HONÓRIO O OBSERVA) “São Bernardo”… (LUÍS PADILHA DANÇA, BÊBADO) “São Bernardo”… (A LUZ SE APAGA) “São Bernardo”…

LUZ. PASSAGEM DE TEMPO. PAULO HONÓRIO E LUÍS PADILHA, SÓBRIO, CON-VERSAM. TENSÃO.

PAULO HONÓRIO - Desta vez, está difícil… Por que você não conversa sobre esse em-préstimo com o seu Pereira?

LUÍS PADILHA - Já conversei, mas o homem é uma toupeira, não entende nada de planta-ção. Aí achei que o negócio interessa pro senhor, seu Paulo… (NERVOSO) O senhor me em-presta vinte contos e eu pago com juros… Só vinte contos, seu Paulo.

PAULO HONÓRIO - (PENSATIVO, COMO SE ESTIVESSE PARA NEGAR) Vinte con-tos… (OBSERVA LUÍS PADILHA) E o que é que você me dá em garantia?

LUÍS PADILHA - (SURPRESO) Mas o senhor nunca me falou em garantia…

PAULO HONÓRIO - As coisas mudam, Padilha… Mudam…

BREVE PAUSA.

LUÍS PADILHA - (HESITANTE) Eu… Eu ofereço ao senhor “São… (MUDA DE IDÉIA, ASSUSTADO COM O QUE PRETENDIA PROPOR) Eu assino uma letra.

PAULO HONÓRIO - (IRÔNICO) Mais uma letra?… Estou falando em garantia, Padilha. Garantia!

A TENSÃO AUMENTA. LUÍS PADILHA CONTINUA HESITANTE. PAULO HONÓRIO, IMPASSÍVEL, DISFARÇA SEU GRANDE INTERESSE. LUÍS PADILHA ENGOLE EM SECO E DECIDE-SE.

LUÍS PADILHA - “São Bernardo”…

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BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - Que é que você disse, Padilha?

LUÍS PADILHA - Eu dou “São Bernardo” em garantia do empréstimo.

BREVE PAUSA. PAULO HONÓRIO FINGE DESINTERESSE.

PAULO HONÓRIO - (IRÔNICO) “São Bernardo”?… Bobagem!… O seu Pereira tem ra-zão: a fazenda está toda esbagaçada… “São Bernardo”, hoje, não vale o que um periquito rói…

LUÍS PADILHA - Mas o senhor mesmo disse que as terras de “São Bernardo”…

PAULO HONÓRIO - (CORTA) Vou pensar, Padilha!… Dinheiro é dinheiro… (LUZ GE-RAL É SUBSTITUÍDA POR LUZ EM FOCO) Dinheiro é dinheiro… (O.T.) Emprestei os vinte contos pro Padilha… (COM DESPREZO) O molambo meteu o rabo na ratoeira: assinou a letra de garantia, pegou os vinte contos, me agradeceu e… (IRÔNICO) e foi plantar man-dioca! (BREVE PAUSA) É claro que o Padilha deu com os burros n’água e se esbodegou de vez. (COBIÇOSO) “São Bernardo”…

A LUZ APAGA-SE NESTE PLANO. LUZ. ATENTO, CASIMIRO LOPES OBSERVA A CONVERSA.

LUÍS PADILHA - (INDIGNADO) “São Bernardo” é herança de meu pai, de meu avô, de meu bisavô, da minha família… Nasci em “São Bernardo”, me criei em “São Bernardo”, a maior parte da minha vida passei aqui, em “São Bernardo”…

PAULO HONÓRIO - E arruinou “São Bernardo”, é isso que você fez…

LUÍS PADILHA - Mas só sete contos? Que absurdo!

PAULO HONÓRIO - E a dívida que você tem comigo, se esqueceu?

LUÍS PADILHA - Sete contos é muito pouco, seu Paulo!

PAULO HONÓRIO - Não é só sete contos, Padilha… São sete contos e quinhentos mil-réis… E isso porque estou enfiando no negócio a sua casa da cidade, senão não tinha que te pagar nada…

LUÍS PADILHA - (SURPRESO) O quê?! A minha casa na cidade também?

PAULO HONÓRIO - A sua casa na cidade… também!

BREVE PAUSA.

LUÍS PADILHA - Meu Deus!… (CONFORMADO) E onde é que eu vou morar?

PAULO HONÓRIO - Até arranjar outra acomodação, você pode ficar morando nela…

TENSÃO. PAULO HONÓRIO SENTE QUE LUÍS PADILHA ESTÁ PARA DESISTIR.

LUÍS PADILHA - Não posso aceitar esse negócio… Não posso…

PAULO HONÓRIO - (VIOLENTO, IMPLACÁVEL) Claro que pode!… Gasta todo di-nheiro no jogo, na bebida, na farra com as putas e agora fica aí fazendo cara de coitado… Aceita o negócio ou paga tudo o que me deve… E paga já!… Você acha que o meu dinheiro dá em árvore? Meu dinheiro vem do suor do meu trabalho! Pensa que sou trouxa? (MOSTRA PAPÉIS QUE TIRA DO BOLSO) Não tem vergonha na cara? Você é ou não é homem? Que é que eu faço com estas letras? Enfio no rabo? (MODERA-SE UM POUCO) E olha que nem estou falando nos juros…

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BREVE PAUSA.

LUÍS PADILHA - (DERROTADO) Sete contos…

PAULO HONÓRIO - Sete contos e quinhentos mil-réis… (APRESENTA-LHE PAPEL, QUE LUÍS PADILHA LÊ. ENCARAM-SE) Assine!

LUÍS PADILHA, ABATIDO, ASSINA. PAULO HONÓRIO GUARDA O PAPEL E DÁ-LHE O DINHEIRO. NUM GESTO AUTOMÁTICO, LUÍS PADILHA PEGA O MAÇO DE DINHEIRO E, PROSTRADO, FICA OLHANDO PARA ELE. A LUZ GERAL SE APAGA, PERMANECENDO UM FOCO SOBRE PAULO HONÓRIO.

PAULO HONÓRIO - (COMENTANDO) Sete contos e quinhentos mil-réis!… Não tive remorsos: (COM DESPREZO) Padilha era mesmo um molambo!… (TRIUNFANTE) “São Bernardo” agora está em minhas mãos!… (NUM PRAZER SENSUAL) “São Bernardo”!…

A LUZ APAGA-SE LENTAMENTE.

PASSAGEM DE TEMPO. LUZ. PAULO HONÓRIO E CASIMIRO LOPES CONSERTAM UM MOURÃO CAÍDO, COLOCANDO FIO DE ARAME NUMA DAS PASSAGENS LA-TERAIS DA PLATÉIA. SURGE SEU MENDONÇA, FAZENDEIRO VIZINHO, COM CARMO, SEU CAPANGA. POR INSTANTES, OBSERVAM O TRABALHO DE PAULO HONÓRIO E CASIMIRO LOPES. PAUSA. PAULO HONÓRIO E O VELHO MEN-DONÇA SE ENCARAM.

PAULO HONÓRIO - (DESAFIADOR) Bom dia, seu Mendonça.

VELHO MENDONÇA - Bom dia, seu Paulo Honório.

TENSÃO. CASIMIRO LOPES E CARMO ENTREOLHAM-SE EM DESAFIO.

PAULO HONÓRIO - (FALSO) Como vai o senhor?

VELHO MENDONÇA - (IDEM) Muito bem, obrigado. E o senhor?

PAULO HONÓRIO - Também vou muito bem, obrigado.

BREVE PAUSA.

VELHO MENDONÇA - Trabalhando logo cedo, hem!

PAULO HONÓRIO - A gente precisa ganhar a vida…

PAUSA. TENSÃO.

VELHO MENDONÇA - Éééé… Acho que o senhor devia ter me consultado antes de com-prar “São Bernardo”…

PAULO HONÓRIO - Por quê, seu Mendonça?

VELHO MENDONÇA - Aí eu ia explicar pro senhor que o antigo proprietário tinha uma questão de limite de terras comigo.

PAULO HONÓRIO - (IRÔNICO) Ele me disse que o senhor andou “encolhendo” um pouco as terras de “São Bernardo”…

VELHO MENDONÇA - (IRRITADO) Não encolhi nada!… Direito é direito.

PAULO HONÓRIO - Direito é direito… (FINGE RECUAR) Quem sabe se a gente não po-dia chegar num acordo.

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VELHO MENDONÇA - Depende do acordo… Por enquanto, cada um fica no que é seu e deixa as terras do outro em paz.

PAULO HONÓRIO - Eu sou um homem de boa paz, seu Mendonça.

VELHO MENDONÇA - Eu também sou homem de boa paz, seu Paulo. Mas… (INSI-NUANTE) Não vale a pena o senhor consertar a cerca que ela pode cair de novo…

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - (PROVOCANDO, MAS AFETANDO INDIFERENÇA) Éééé… As terras de “São Bernardo” encolheram que é o diabo…

VELHO MENDONÇA - As minhas é que encolheram!

ENCARAM-SE DE NOVO. TENSÃO. CASIMIRO LOPES AVANÇA ALGUNS PASSOS, NO QUE É IMITADO POR CARMO.

PAULO HONÓRIO - Nossa mãe! Estou com as botas cheias de barro… Esse encharca-mento todo é por causa da chuva, seu Mendonça?

BREVE PAUSA.

VELHO MENDONÇA - Éééé… É por causa da chuva, seu Paulo…

RIEM. A TENSÃO MOMENTANEAMENTE SE DESFAZ.

VELHO MENDONÇA - No que o senhor precisar de mim, seu Paulo. Estou às suas or-dens…

PAULO HONÓRIO - Se o senhor precisar de alguns cedros, seu Mendonça, não faça ceri-mônia…

APROXIMAM-SE. CONVERSAM ANIMADAMENTE, MAS OS GESTOS E AS EX-PRESSÕES DE AMBOS DENOTAM FALSIDADE. DESPEDEM-SE. O VELHO MEN-DONÇA E CARMO VÃO SE AFASTANDO. MENDONÇA VIRA-SE E TROCA ACENOS COM PAULO HONÓRIO.

VELHO MENDONÇA - (SUSSURRA AO CAPANGA, ENQUANTO ACENA PARA PAULO HONÓRIO) Carmo, esse canalha está roubando as minhas terras. Precisamos dar um jeito no Honório… e logo.

CARMO - Pode ficá sossegado, seu Mendonça, que eu vô prepará tudo…

AFASTAM-SE. PAULO HONÓRIO, PENSATIVO, E CASIMIRO LOPES OBSERVAM O VELHO MENDONÇA E CARMO JÁ DISTANTES.

CASIMIRO LOPES - (SEGREDA) Se o senhor quisé, seu Paulo, é só dá ordem que a gente…

PAULO HONÓRIO - (REPREENDENDO) Que é isso, Casimiro?!… (BREVE PAUSA) Por enquanto, a coisa fica assim mesmo… empatada.

LUZ GERAL SE APAGA. FOCO SOBRE PAULO HONÓRIO, PENSATIVO. O FOCO SE APAGA. VOLTA A LUZ GERAL. SALA DE JANTAR DA CASA GRANDE DE “SÃO BERNARDO”. SENTADOS À MESA, PAULO HONÓRIO E CASIMIRO LOPES TOMAM SOPA EM SILÊNCIO. FIM DA REFEIÇÃO. PAULO HONÓRIO ACENDE O SEU CA-CHIMBO. LATIDOS DE CACHORRO. CASIMIRO LOPES APANHA A ESPINGARDA, CORRE PARA A JANELA E ABRE UMA FRESTA. ELE E PAULO HONÓRIO FICAM À

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ESPREITA. O CÃO LATE MAIS UM POUCO, PÁRA DE LATIR E COMEÇA A ROS-NAR.

CASIMIRO LOPES - No portão de entrada, seu Paulo!… (APRUMA A ESPINGARDA) O senhor quer que eu…

PAULO HONÓRIO - Espera, Casimiro… Espera…

TENSÃO. CONTINUAM A OBSERVAR PELA FRESTA DA JANELA. O CÃO ROSNA MAIS UM POUCO E PÁRA. SILÊNCIO. A TENSÃO SE DESFAZ.

CASIMIRO LOPES - Foi embora, seu Paulo… Gente do seu Mendonça…

PAULO HONÓRIO - (REFLETE) Gente do seu Mendonça…

BREVE PAUSA.

CASIMIRO LOPES - O que é que a gente vai fazer agora, seu Paulo?

PAULO HONÓRIO - Dormir, Casimiro… Dormir… (SENTA-SE NA REDE E VAI TI-RANDO AS BOTAS) Fiquei sabendo que a mulher do seu Mendonça morreu na semana pas-sada. Coitada. Era uma senhora muito boa… Amanhã vamos fazer uma visita de condolências ao seu Mendonça…

CASIMIRO LOPES - Condolências, seu Paulo?

PAULO HONÓRIO - (SEM EXPLICAR, REFLETINDO) Éééé… Condolências… Ama-nhã…

ACENDE O CACHIMBO, DEITA-SE NA REDE E DESAPARECE DAS VISTAS DO PÚ-BLICO. CASIMIRO LOPES AJEITA-SE NA ESTEIRA A SEU LADO. PAULO HONÓRIO FUMA E VÊ-SE APENAS A FUMAÇA DE SEU CACHIMBO. SONS TÍPICOS DE NOITE CAMPESTRE QUE SE ELEVAM GRADATIVAMENTE. A LUZ VAI SE APAGANDO. ESCURIDÃO. PASSAGEM DE TEMPO. SILÊNCIO. UM TIRO. LUZ. NUM CANTO MAL ILUMINADO DO PALCO, UM CORPO CAÍDO. NOUTRO, NA FRENTE DE UMA IGREJA, PAULO HONÓRIO CONVERSA COM PADRE SILVESTRE.

PAULO HONÓRIO - Ninguém mais pensa em religião hoje em dia, Padre Silvestre. É por isso que vou construir uma igreja em “São Bernardo”.

PADRE SILVESTRE - Que notícia boa que o senhor me dá, seu Paulo!

PAULO HONÓRIO - Não é bem uma igreja — é uma capela. A caboclada está precisando de religião… Mas é coisa um pouco mais pra frente, se os negócios correrem bem.

PADRE SILVESTRE - Com a ajuda de Deus, vão correr muito bem.

PAULO HONÓRIO - O senhor não está precisando de alguma coisa pra quermesse da se-mana que vem?

ALGUÉM ENTRA, SUSSURRA ALGO AO PADRE SILVESTRE E SAI.

PADRE SILVESTRE - (PERTURBADO) Que horror!… Que horror, meu Deus!

PAULO HONÓRIO - Que foi? Que foi, Padre Silvestre?

PADRE SILVESTRE - Mataram o seu Mendonça!… Mataram o seu Mendonça!…

PAULO HONÓRIO - Um homem tão bom…

BREVE PAUSA.

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PADRE SILVESTRE - Como tem gente ruim neste mundo… O seu Mendonça tinha inimi-gos, seu Paulo?

PAULO HONÓRIO - Não conheci muito bem o seu Mendonça, mas dizem que tinha inimi-gos que nem carrapato.

PADRE SILVESTRE - Que há de se fazer, seu Paulo?

PAUSA. REFLETEM.

PAULO HONÓRIO - Vamos voltar ao assunto que a gente estava tratando: eu estava di-zendo ao senhor que, além de ajudar na quermesse da semana que vem, pretendo doar um sino para a igreja… (VÃO SAINDO) Quanto custa um sino, Padre Silvestre?

ESTÃO DIANTE DO CORPO CAÍDO, QUE “NÃO VÊEM”.

PADRE SILVESTRE - Depende… Depende muito… (QUASE TROPEÇA NO CORPO. PULA-O E SAI)

PAULO HONÓRIO - (PULA O CORPO) Depende do quê? (SAINDO. PÁRA E VOLTA-SE PARA PADRE SILVESTRE)

PADRE SILVESTRE - (JÁ FORA DE CENA. VOZ “OFF”) Depende do material, do tipo e do tamanho do sino…

MÚSICA IMPEDE QUE SE OUÇA A CONTINUAÇÃO DA FALA.

A LUZ GERAL SE APAGA, PERMANECENDO UM FOCO SOBRE PAULO HONÓRIO E OUTRO SOBRE O CORPO CAÍDO NO CANTO DO PALCO.

PAULO HONÓRIO - (REFLETINDO) Onde andará a velha Margarida?

OS FOCOS SE APAGAM NESTE PLANO. LUZ NO OUTRO PLANO. ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA. PAULO HONÓRIO E JOÃO NOGUEIRA, O RÁBULA, CONVERSAM.

PAULO HONÓRIO - (IRÔNICO) Foi só uma bala perdida, Dr. Nogueira… Felizmente só me pegou de raspão no ombro… Mas o pior é que perdi mais dois caboclos desta vez…

JOÃO NOGUEIRA - Quando me contaram, seu Paulo, fiquei preocupado… muito preocu-pado…

BREVE PAUSA. CERTO EMBARAÇO.

PAULO HONÓRIO - E a papelada de “São Bernardo”, como é que fica agora?

JOÃO NOGUEIRA - Essa questão da papelada até que dá pra resolver. Em tese!… Mas na prática, lá no fórum, a gente tem que escorregar um bocadinho pra fulano, outro bocadinho pra sicrano… As terras de “São Bernardo” aumentaram mais um pouco desta vez e isso dei-xou a coisa meio complicada… Mas ajeita-se… ajeita-se…

PAULO HONÓRIO - Será que a família do seu Mendonça vai entrar na justiça, Dr. No-gueira?

JOÃO NOGUEIRA - Até que pode entrar. Em tese… Mas na prática, duvido muito… A justiça é cara, seu Paulo… E a família do seu Mendonça agora está na lona. (COM DES-PREZO) Esqueça essa gente, seu Paulo.

PAULO HONÓRIO - E a questão das terras com o Fidélis?

JOÃO NOGUEIRA - Talvez o senhor tenha se precipitado um pouco ao invadir… quero dizer, ocupar… “anexar” aquela parte das terras do Fidélis a “São Bernardo”, seu Paulo.

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PAULO HONÓRIO - Tudo terra sem cultivo, abandonada… E sei lá se aquela terra é mesmo dele, de papel passado… Depois, se o Fidélis é paralítico de um braço, pra que é que vai precisar de tanta terra?

JOÃO NOGUEIRA - Vou ver o que a gente pode fazer no fórum… (BREVE PAUSA) Seu Paulo, pelo amor de Deus, com as terras do Dr. Magalhães, nem pensar! Nem pensar!… O homem, além de usineiro, é juiz!… Juiz!

PAULO HONÓRIO - E eu sou louco?… O Dr. Magalhães é meu amigo… (O.T.) Ficou sa-bendo alguma coisa do seu Pereira?

JOÃO NOGUEIRA - O homem está que não se agüenta de dívidas… Com a corda no pes-coço!… Mas ele ainda tem aquelas terras no Catimbó.

PAULO HONÓRIO - Discretamente, Dr. Nogueira, ofereça minha ajuda pro seu Pereira… Sob hipoteca das terras dele no Catimbó.

JOÃO NOGUEIRA - A juros de quanto?

PAULO HONÓRIO - O mesmo que, no passado, o seu Pereira cobrou de mim: 5% ao mês… Quanto valem as terras dele no Catimbó?

JOÃO NOGUEIRA - Vou me informar, seu Paulo.

PAULO HONÓRIO - Veja se me consegue essa hipoteca, Dr. Nogueira… Estou com o seu Pereira na cabeça faz muito tempo… Muito tempo…

SOM OU MÚSICA DA REGIÃO. JOÃO NOGUEIRA CONTINUA FALANTE, MAS PAULO HONÓRIO, DEGUSTANDO SUA FUTURA VINGANÇA, NÃO LHE PRESTA ATENÇÃO. REFLETE… A CENA PROSSEGUE ENQUANTO SE OUVE A VOZ DE PAULO HONÓRIO.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) As coisas estavam progredindo em “São Bernardo”: importei gado nelore e galinha Orpington, comecei a cultivar flores para a exportação, expor-tei laranjas, construí a capela, concluí o açude e a serraria… (A LUZ SE APAGA) Por esse tempo, “São Bernardo” teve a honra de receber a visita do Excelentíssimo Sr. Governador do Estado de Alagoas…

LUZ. AMBIENTE FESTIVO. UMA PEQUENA COMITIVA ANDA PELOS CORREDO-RES DA PLATÉIA, COMO SE ESTIVESSE EM “SÃO BERNARDO”: O GOVERNADOR, PAULO HONÓRIO, JOÃO NOGUEIRA, AZEVEDO GONDIM E LUÍS PADILHA, ESTE UM TANTO EMBRIAGADO. CASIMIRO LOPES SE ENCARREGA DA SEGURANÇA. O TEMPO TODO JOÃO NOGUEIRA E AZEVEDO GONDIM DISPUTAM O LADO ES-QUERDO DO GOVERNADOR, JÁ QUE O DIREITO “PERTENCE” A PAULO HONÓ-RIO.

AZEVEDO GONDIM - Que ótima forma física a do senhor, Excelência!

JOÃO NOGUEIRA - Vossa Excelência é um autêntico desportista!

O GOVERNADOR SENTE VISÍVEL PRAZER EM SER CORTEJADO.

PAULO HONÓRIO - O que é que Vossa Excelência achou do açude de “São Bernardo”?

GOVERNADOR - Uma obra notável, seu Paulo!… Notável!

PAULO HONÓRIO - Além do açude, Excelência, temos a invernada (APONTA) e, depois, a plantação de cedro.

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GOVERNADOR - Que trabalho magnífico o senhor tem feito em “São Bernardo”, seu Paulo!

AZEVEDO GONDIM - Falou em trabalho, o negócio é com o seu Paulo Honório, Excelên-cia!

JOÃO NOGUEIRA - O seu Paulo dá emprego a muita gente… Muita gente!

AZEVEDO GONDIM - Se não fosse o seu Paulo Honório, essa caboclada toda estava mor-rendo de fome.

PAULO HONÓRIO - Gostou da nossa granja, Excelência?

GOVERNADOR - Que beleza, seu Paulo!… Eu ainda não conhecia aquelas galinhas da raça… da raça…

AZEVEDO GONDIM E JOÃO NOGUEIRA - (ATROPELAM-SE) Orpington!… São galinhas importadas da… da Inglaterra!… Da Inglaterra, não: da França!… Isso mesmo: da França… E da Holanda também… A galinha Orpington é uma delícia… Etc.

ENQUANTO AZEVEDO GONDIM E JOÃO NOGUEIRA CONTINUAM A BAJULA-ÇÃO, FORA DAS VISTAS DO GOVERNADOR, LUÍS PADILHA E PAULO HONÓRIO “DIALOGAM” À MEIA VOZ.

LUÍS PADILHA - Pelo amor de Deus, seu Paulo, só cem mil-réis!… Me empresta…

PAULO HONÓRIO - (IRRITANDO, EMPURRANDO-O) Você está bêbado!… Me faz passar vergonha…

LUÍS PADILHA - Só cem mil-réis, seu Paulo!… Eu assino uma letra, duas, três…

PAULO HONÓRIO - Nem um tostão!… Some daqui… Caia fora!

MÚSICA OU SOM CARACTERÍSTICO TORNA MÍMICA PARTE DA VISITA DO GO-VERNADOR QUE, ÀS TANTAS, ALGO ENFASTIADO, DESVENCILHA-SE DE JOÃO NOGUEIRA E AZEVEDO GONDIM, DIRIGINDO-SE A PAULO HONÓRIO.

GOVERNADOR - Onde fica a escola de “São Bernardo”, seu Paulo?

PAULO HONÓRIO - (EMBARAÇADO) Escola?! Pra que escola, Excelência?

GOVERNADOR - (DECEPCIONADO) Então “São Bernardo” não tem escola…

PAULO HONÓRIO - (TENTANDO REMEDIAR) Mas temos uma capela, Excelência.

AZEVEDO GONDIM - Todo domingo tem missa, Excelência.

JOÃO NOGUEIRA - O senhor precisa ver como a capela fica apinhada de gente.

GOVERNADOR - (ABORRECIDO) Capela é coisa muito boa, mas escola é fundamental! (DISCURSIVO) Temos o patriótico dever de dar nossa contribuição para acabar com o anal-fabetismo no Brasil de uma vez por todas! (IRÔNICO) Então “São Bernardo” não tem es-cola…

PAUSA. CONSTRANGIMENTO GERAL.

JOÃO NOGUEIRA - (FAZ SINAL PARA PAULO HONÓRIO) Não tem escola ainda. Mas pode ter. Futuramente…

AZEVEDO GONDIM - O seu Paulo está estudando o assunto com muito carinho…

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GOVERNADOR - (DISCURSIVO) Não existe progresso sem cultura, sem educação, sem escola!

PAULO HONÓRIO - (A GONDIM, À PARTE) Escola vai me comer um dinheirão! Que me interessa que molambo aprenda a ler? (AO GOVERNADOR) Excelência, meus dois queridos amigos “estragaram” um pouco a surpresa que eu tinha preparado para o senhor: (FAZ “SUS-PENSE”) tenho a honra de anunciar ao nosso ilustre governador a construção da escola pri-mária de “São Bernardo”!…

CENA MÍMICA. MÚSICA. AMBIENTE FESTIVO. O GOVERNADOR, SORRIDENTE, CUMPRIMENTA PAULO HONÓRIO. LUÍS PADILHA, CAMBALEANTE, APROXIMA-SE DO GOVERNADOR PARA CUMPRIMENTÁ-LO, MAS O EMPURRAM. ENTRA UM FOTÓGRAFO.

AZEVEDO GONDIM - Um momentinho, Excelência! Agora, fotografia para a primeira página do “Cruzeiro”, um jornal a serviço do povo, que sempre apoiou e sempre vai apoiar o patriótico, popular e democrático governo de Vossa Excelência!

JOÃO NOGUEIRA - A imprensa registra agora um momento histórico!

TODOS FAZEM POSE PARA A FOTOGRAFIA. AZEVEDO GONDIM E JOÃO NO-GUEIRA, TROCANDO PALAVRAS INAUDÍVEIS, DISPUTAM POSIÇÃO AO LADO DO GOVERNADOR. LUÍS PADILHA APROXIMA-SE DE PAULO HONÓRIO, COM A VISÍVEL INTENÇÃO DE PEDIR DINHEIRO, E ACABA SE JUNTANDO AO GRUPO. “FLASH” FOTOGRÁFICO. OS PERSONAGENS SE CONGELAM, FORMANDO UM QUADRO ALGO GROTESCO. PAUSA. OUVE-SE SOM CARACTERÍSTICO DE AU-TOMÓVEIS ANTIGOS QUE SE PREPARAM PARA PARTIR. JOGO DE VOZES MIS-TURADAS. APENAS AS PRÓXIMAS FALAS EM “OFF” SÃO AUDÍVEIS.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) Foi uma honra muito grande receber Vossa Excelência em “São Bernardo”, Governador.

GOVERNADOR - (VOZ “OFF”) A honra foi minha, seu Paulo.

AZEVEDO GONDIM - (VOZ “OFF”) Amanhã, Excelência, veja a fotografia do senhor na primeira página do “Cruzeiro”.

JOÃO NOGUEIRA - (VOZ “OFF”) Pode contar com a gente na sua campanha eleitoral para presidente, Excelência!

AZEVEDO GONDIM - (VOZ “OFF”) O povo brasileiro exige que o senhor se candidate, Excelência!

JOÃO NOGUEIRA - (VOZ “OFF”) Sua candidatura já está nas ruas, Excelência!

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) “São Bernardo” é a sua casa, Excelência!

GOVERNADOR - (VOZ “OFF”, DESTA VEZ, BEM NÍTIDA) Muito obrigado, meus se-nhores!… Obrigado, seu Paulo, e parabéns por tudo o que o senhor tem feito em “São Ber-nardo”… Precisamos de gente que nem o senhor… Apareça no palácio…

ALVOROÇO CARACTERÍSTICO, SOM DE BUZINA E MOTORES LIGADOS. PAL-MAS. O AUTOMÓVEL, BARULHENTO, AFASTA-SE, SEGUIDO DE OUTROS. SO-MENTE AGORA O QUADRO SE DESFAZ. A LUZ GERAL APAGA-SE, PERMANE-CENDO UM FOCO SOBRE PAULO HONÓRIO.

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PAULO HONÓRIO - (EM TOM DE CÁLCULO) Essa visita do governador me traz uma penca de vantagens: um capital, um autêntico capital!… A capela já é um capital!… A escola vai ser outro capital! (REFLETE)

A LUZ APAGA-SE LENTAMENTE. ANTES QUE A LUZ SE APAGUE, OUVE-SE BA-RULHO CARACTERÍSTICO DE OFICINA DE JORNAL ANTIGO. LUZ. ESCRITÓRIO DE “O CRUZEIRO”. PAULO HONÓRIO E AZEVEDO GONDIM CONVERSAM.

AZEVEDO GONDIM - (MOSTRA EXEMPLAR DO JORNAL) Eu não disse pro senhor, seu Paulo, que a visita do governador ia ser um bom negócio? Todo mundo saiu lucrando.

PAULO HONÓRIO - Excelente negócio, Gondim!

AZEVEDO GONDIM - Eu é que consegui arrumar a visita. Não se esqueça disso, seu Paulo.

PAULO HONÓRIO - (ALGO IRRITADO) Não vou me esquecer, Gondim.

AZEVEDO GONDIM - (MOSTRA) Taquei a notícia logo na primeira página. Olha só a manchete: GOVERNADOR VISITA “SÃO BERNARDO”… Com fotografia e tudo!… (BA-JULANDO) Olha só como o senhor saiu muito bem na fotografia… Ao lado do governador…

PAULO HONÓRIO - (ANSIOSO, PEGA O JORNAL) Deixa ver, Gondim! Que maravilha!

AZEVEDO GONDIM - Tem muita gente por aí babando de inveja do senhor…

PAULO HONÓRIO - (ENTUSIASMADO) Manda tirar logo dez cópias desta fotografia, Gondim!… Esse seu fotógrafo é muito bom mesmo.(OBSERVA MELHOR A FOTO. IR-RITA-SE) Não! Não é possível!

AZEVEDO GONDIM - Que foi, seu Paulo?

PAULO HONÓRIO - (IRRITADÍSSIMO) O Padilha! Que diabo esse molambo do Padilha está fazendo aí, na minha fotografia?… Esse parasita parece um fantasma que me persegue! Não é possível!

AZEVEDO GONDIM - Calma, seu Paulo! (OLHA A FOTO) O Padilha está no cantinho, mal aparece, nem dá pra reparar nele… É um pobre diabo, um bêbado que não tem onde cair morto… (O.T.) Agora é claro que a câmara municipal aprova de uma vez a subvenção para “O Cruzeiro”.

PAULO HONÓRIO - Que bom! Então aquele negócio do capital de giro, que você me falou, está resolvido. O seu jornal agora não precisa mais de minha “ajuda”…

AZEVEDO GONDIM - (CAUTELOSO) Não é bem assim, seu Paulo… Ainda não foi nada aprovado: é só uma possibilidade… Depois, subvenção para imprensa é uma coisa, capital de giro é outra completamente diferente… (MEDINDO AS PALAVRAS) Espero que o senhor não tenha se esquecido que “O Cruzeiro” sempre tem apoiado o senhor na questão das terras de “São Bernardo”… E vai continuar apoiando…

PAULO HONÓRIO - Não me esqueci, Gondim… (O.T.) Estou precisando que “O Cru-zeiro” me publique esta notinha sobre o seu Pereira…

AZEVEDO GONDIM - (LÊ, APREENSIVO) Mas, seu Paulo, esta nota pode complicar as coisas pro jornal…

PAULO HONÓRIO - Publica como notícia sem importância, no meio do jornal…

AZEVEDO GONDIM - Sem importância?!… Os credores vão cair de pau em cima do seu Pereira.

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BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - Vai negar esse favorzinho pro amigo, Gondim?

AZEVEDO GONDIM - (TENSO) Não, não… (REFLETE) A gente não cita o nome do seu Pereira e dá na mesma! Veja só! (RISCA ALGO NA NOTA) Pode ser?

PAULO HONÓRIO - (APANHA A NOTA E RELÊ) Éééé, dá na mesma! (ANIMADO, RINDO) Você entende mesmo do seu negócio, Gondim!

AZEVEDO GONDIM - (ENVAIDECIDO) Obrigado, seu Paulo.

BREVE PAUSA..

PAULO HONÓRIO - Ah! Me acha o Padilha. Preciso falar com ele. Deve estar num boteco por aí… Mas ele que não me apareça bêbado em “São Bernardo”, hem!

AZEVEDO GONDIM - Que mais, seu Paulo?

PAULO HONÓRIO - Conseguiu localizar a velha Margarida?

AZEVEDO GONDIM - Está meio difícil… O “Cruzeiro” todo dia está publicando anúncio... Nem sei se vale a pena: pelo que o senhor me disse, ela está muito velha.

PAULO HONÓRIO - (IRRITADO) Isso é comigo, Gondim! Mandei localizar — e pronto!

AZEVEDO GONDIM - Calma, seu Paulo… A gente localiza a velha Margarida. (O.T.) Como é que o senhor sabe se ela ainda está viva?

PAULO HONÓRIO - Alguma coisa me diz que a velha Margarida está viva, alguma coisa… (LUZ GERAL É SUBSTITUÍDA POR LUZ EM FOCO SOBRE PAULO HONÓRIO, RE-FLETINDO. O FOCO VAI SE APAGANDO LENTAMENTE) Alguma coisa bem dentro de mim me diz que Mãe Margarida está viva… (ESCURIDÃO. BREVE PAUSA) Mãe Marga-rida está viva, tenho certeza…

LUZ EM FOCO SOBRE PAULO HONÓRIO NO PROSCÊNIO, À ESQUERDA. ATRÁS DELE, SENTADOS À MESA E “CONGELADOS”, ESTÃO AZEVEDO GONDIM, JOÃO NOGUEIRA E LUÍS PADILHA. CASIMIRO LOPES PICA FUMO EM SEU CANTO.

PAULO HONÓRIO - (REFLETE, OBSERVANDO OS “SEUS DOMÍNIOS”, ISTO É, A PLATÉIA) “São Bernardo”!… Preciso preparar um herdeiro para “São Bernardo”… Vou morrer um dia… Todo mundo morre um dia… E quem vai ficar com “São Bernardo”?… Éééé, preciso me casar… Mas onde vou arranjar mulher pra casar?… Aqui em “São Ber-nardo” tem umas moças… Mas são filhas dessa gente miúda, gentinha… (BREVE PAUSA.) O curioso é que, coincidindo com essas coisas que caraminholavam dentro da minha cabeça, peguei um fiapo de conversa do Dr. Nogueira, do Gondim e do Padilha, que estavam me espe-rando na sala…

LUZ GERAL. DE INÍCIO, NÃO SE OUVE CLARAMENTE O QUE DIZEM.

AZEVEDO GONDIM - Que pernas que ela tem! Que coxas! (GESTO) Dá uma tremenda vontade de agarrar aquelas coxas…

LUÍS PADILHA - Já viu as coxas dela?

AZEVEDO GONDIM - Claro que vi.

JOÃO NOGUEIRA - Ela tem uns peitos!… (GESTO) Que peitaços que ela tem!… Não sei por que gosto mesmo é de mulher de peitos bem grandes…

LUÍS PADILHA - Já viu os peitos dela?

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JOÃO NOGUEIRA - Não. Ainda não.

AZEVEDO GONDIM - (RINDO) O Nogueira tem mania de mulher peituda. Acha que mu-lher peituda tem muito leite e assim economiza dinheiro.

LUÍS PADILHA - Então por que você não casa logo com uma vaca, Nogueira?

RIEM. PAULO HONÓRIO PIGARREIA. SÓ AGORA DÃO PELA SUA PRESENÇA.

AZEVEDO GONDIM - (AOS OUTROS) Melhor a gente elevar o nível da conversa.

SILÊNCIO. PAULO HONÓRIO SENTA-SE À MESA.

PAULO HONÓRIO - De quem vocês estão falando?

AZEVEDO GONDIM - Da Madalena, seu Paulo.

PAULO HONÓRIO - Madalena?

JOÃO NOGUEIRA - Uma professorinha lá da cidade. O senhor não conhece a Madalena? É uma moça bonita, atenciosa, educada…

AZEVEDO GONDIM - Muito educada.

JOÃO NOGUEIRA - Mas já deve ter uns trinta anos.

LUÍS PADILHA - Solteirona!

AZEVEDO GONDIM - Que trinta! Vinte anos, aposto. É que você nunca viu a Madalena de perto, Nogueira.

JOÃO NOGUEIRA - Claro que vi. Mas mulher disfarça muito a idade.

AZEVEDO GONDIM - Essa não disfarça nada. Tem vinte!

JOÃO NOGUEIRA - Trinta!

LUÍS PADILHA - (IRÔNICO) Proponho vinte e cinco. Nem vinte, nem trinta. Vinte e cinco.

PAULO HONÓRIO - Muito bem! Essa tal de Madalena tem vinte e cinco anos e está aca-bado… Casimiro, prepara um cafezinho pro pessoal. (BREVE PAUSA) Preciso falar com você, Padilha.

LUÍS PADILHA - Recebi seu recado, seu Paulo. É por isso que estou aqui.

PAULO HONÓRIO - Padilha, vou abrir a escola primária de “São Bernardo”. Será que você está interessado em dar aula?

JOÃO NOGUEIRA - Aceitou o conselho do governador, hem, seu Paulo!

AZEVEDO GONDIM - (DISCURSIVO) Não tem nada neste mundo como a instrução, o saber, a cultura!

JOÃO NOGUEIRA - Uma escola em “São Bernardo” vai ser muito útil, seu Paulo.

PAULO HONÓRIO - Sei lá se vai ser “muito útil”. Tanto que resolvi aproveitar até o Padi-lha…

AZEVEDO GONDIM - (À PARTE, A JOÃO NOGUEIRA) O seu Paulo não perde chance de humilhar o Padilha…

PAULO HONÓRIO - É só pra ensinar a caboclada a ler e a escrever. Você acha que tem condições de ser professor da escola?

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LUÍS PADILHA - Condições eu tenho, mas ando muito ocupado. (RISOS DE JOÃO NO-GUEIRA E AZEVEDO GONDIM) Quanto é que o senhor paga?

PAULO HONÓRIO - Estou com muita despesa em “São Bernardo”… Agora estamos se-meando, reformando, construindo… Aceita ou não aceita?

LUÍS PADILHA - Qual é mesmo o ordenado, seu Paulo?

PAULO HONÓRIO - Nem sei quanto você vale… Digamos uns… (CALCULA) Cem mil-réis por mês.

LUÍS PADILHA - Mas é muito pouco.

PAULO HONÓRIO - Então cento e cinqüenta mil-réis… E nem mais um tostão… Com casa, comida e oito horas de trabalho por dia… É minha última oferta. Mas aviso logo: ser-viço é serviço e empregado meu não bebe. Em “São Bernardo” agora só bebem os hóspe-des… Entendeu, Padilha?

LUÍS PADILHA - Entendi perfeitamente. Só bebo nas refeições e assim mesmo nem sem-pre… Talvez aceite a sua oferta, seu Paulo: o ordenado é pequeno, mas tenho queda para o magistério.

PAUSA. CAMISIRO LOPES TRAZ O CAFÉ E COMEÇA A SERVIR.

AZEVEDO GONDIM - Tenho uma boa notícia pro senhor, seu Paulo: descobri o paradeiro da velha Margarida.

PAULO HONÓRIO - (ANSIOSO) Onde é que ela está?

AZEVEDO GONDIM - Mora num lugarejo chamado São José da Tapera. Vive num quarti-nho dos fundos, com uma família que faz queijo.

PAULO HONÓRIO - Bom trabalho, Gondim! Manda trazer logo a velha Margarida para “São Bernardo”.

AZEVEDO GONDIM - (CHANTAGEANDO) Seu Paulo, o senhor, por acaso, não se es-queceu que “O Cruzeiro” está precisando, com urgência, de clichês e vinhetas?

PAULO HONÓRIO - (IRÔNICO) Você entende mesmo do seu “negócio”, Gondim… Manda buscar os clichês e vinhetas… Mas só quando a velha Margarida estiver em “São Ber-nardo”, hem!

JOÃO NOGUEIRA - (AOS OUTROS) Não sei o que o seu Paulo vai fazer com uma velha de mais de cem anos…

PAULO HONÓRIO - (IRRITADO) Mais respeito, Dr. Nogueira! (QUASE GRITANDO) Esse é assunto meu!

PAUSA. CONSTRANGIMENTO GERAL.

JOÃO NOGUEIRA - Eu também tenho uma boa notícia pro senhor, seu Paulo: o seu Pe-reira… (FAZ SUSPENSE)

PAULO HONÓRIO - Que é que tem o seu Pereira?

JOÃO NOGUEIRA - O seu Pereira vai aceitar o empréstimo do senhor, dando como hipo-teca as terras dele do Catimbó.

PAULO HONÓRIO - (COM PRAZER SENSUAL) Aaaah!… Peguei o seu Pereira!… Fi-nalmente peguei o seu Pereira!…

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JOÃO NOGUEIRA - Pegou mesmo, seu Paulo!… Antes de aceitar a hipoteca, o seu Pereira, desesperado, correu para o palácio em Maceió falar pessoalmente com o governador. (RINDO) Mandaram um contínuo dizer pro seu Pereira que o governador estava “muito ocu-pado”.

AZEVEDO GONDIM - O seu Pereira era copa e cozinha com o governador… Copa e cozi-nha!

RIEM.

PAULO HONÓRIO - Era, passado!… Hoje o governador é meu amigo do peito… (LUZ EM FOCO SOBRE PAULO HONÓRIO. FALA COMO SE O INIMIGO ESTIVESSE PRE-SENTE) Se lembra, seu Pereira, daqueles cem mil-réis, a juros de 5% ao mês?… 5% ao mês, seu Pereira! (BREVE PAUSA) Agora, a conversa é entre nós dois. (SÁDICO) Só nós dois, seu Pereira…

O FOCO DE LUZ SE APAGA. MÚSICA EVOCANDO UMA LEMBRANÇA OU UM RE-ENCONTRO. NUM PONTO QUALQUER DO PALCO, EM QUE SE VÊ UMA REDE ES-TENDIDA, UMA CADEIRA DE MADEIRA, UMA MESINHA RÚSTICA E UM VELHO ARMÁRIO, A VELHA MARGARIDA EXAMINA SEUS TRASTES, QUE VAI RETI-RANDO DE UMA TROUXA. SEUS MOVIMENTOS SÃO LENTOS E SENTE DIFICUL-DADE EM ENXERGAR. A LUZ POR INSTANTES FICA NA SEMIPENUMBRA PARA, EM SEGUIDA, ILUMINAR UM POUCO MAIS. PAULO HONÓRIO, COMOVIDO, OBSERVA ATENTAMENTE A VELHA MARGARIDA.

PAULO HONÓRIO - (CARINHOSO) Mãe Margarida!… (SUA VOZ, EMOCIONADA, QUASE NÃO SAI) Mãe Margarida!

VELHA MARGARIDA - Quem… Quem é? (VIRA-SE LENTAMENTE)

PAULO HONÓRIO - Sou eu, o Paulo…

VELHA MARGARIDA - Paulo?… Qui Paulo?

PAULO HONÓRIO - O Paulinho… O seu Paulinho, se lembra?… Se lembra, Mãe Marga-rida, do seu Paulinho?…

PAULO HONÓRIO APROXIMA-SE DELA. MÃE MARGARIDA TOCA-LHE O ROSTO, RECONHECENDO-O.

VELHA MARGARIDA - Paulinho!… Meu Paulinho!… Faiz tanto tempo… Como ocê cresceu, meu Deus!… Paulinho, meu fio…

PAULO HONÓRIO - (AMOROSO) Como vai a senhora, Mãe Margarida?

VELHA MARGARIDA - Gemendo e chorando, meu fio… (MOSTRA UM TERÇO) E cheia de pecado… Muito pecado…

PAULO HONÓRIO - Muito pecado?!… A senhora é uma santa…

VELHA MARGARIDA - Num sô, não… Num sô, não…

PAULO HONÓRIO - Nunca me esqueci da senhora… Estou muito feliz com a senhora aqui, em “São Bernardo”… Mãe Margarida, trabalho muito, nem sempre posso estar aqui, com a senhora… Mas, precisando de alguma coisa, é só me avisar… Por favor, Mãe Margarida, não se acanhe…

VELHA MARGARIDA - Tanto luxo!… Óia, em cama, Paulinho, eu num mi deitu di jeitu nenhum, qui tenhu medu di caí. Só na rede.

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PAULO HONÓRIO - Então a senhora dorme só na rede e pronto. Fique sossegada… Precisa de mais alguma coisa, Mãe Margarida?

VELHA MARGARIDA - Só queru um tachu.

PAULO HONÓRIO - Um tacho, Mãe Margarida?

VELHA MARGARIDA - Um tachu… Preciso de um tachu pra trabaiá… Um tachu qui nem aqueli… Si lembra daqueli tachu, Paulinho?

PAULO HONÓRIO - Aquele tacho que a senhora fazia doce pra gente viver?

VELHA MARGARIDA - Éééé, aquele… (LEMBRA-SE DE ALGO DESAGRADÁVEL) Mi roubaram, Paulinho!… Mi roubaram aqueli tachu… (CHORA)

PAULO HONÓRIO - Por favor, não chore, Mãe Margarida… Não chore que eu mando ou-tro tacho para a senhora…

VELHA MARGARIDA - Só si fô iguarzinho aqueli.

PAULO HONÓRIO - Igualzinho aquele. Igualzinho…

A VELHA MARGARIDA TOSSE. PAULO HONÓRIO ACODE-A, DANDO-LHE XA-ROPE E AJUDANDO-A A DEITAR-SE NA REDE.

MÃE MARGARIDA - Tem qui sê iguarzinho aqueli.

PAULO HONÓRIO - Igualzinho aquele… Agora, a senhora precisa descansar… Descanse, Mãe Margarida, descanse…

ACOMODA-A NA REDE. O PÚBLICO NÃO MAIS A VÊ. PAULO HONÓRIO, CARI-NHOSO, BALANÇA A REDE LENTAMENTE. A LUZ VAI SE APAGANDO…

PAULO HONÓRIO - (ANTES QUE A LUZ SE APAGUE, BALANÇANDO A REDE) Seis meses depois, Mãe Margarida me foi embora para sempre… Comprei uma mortalha, um caixão e mandei enterrar Mãe Margarida no cemitério de “São Bernardo”… Mãe Margarida levou qualquer coisa de mim com ela… (NUMA MEDITAÇÃO) Mãe Margarida levou qual-quer coisa de bem dentro de mim com ela…

PAULO HONÓRIO CONTINUA BALANÇANDO LENTAMENTE A REDE, ENQUANTO A LUZ SE APAGA…

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) Depois que Mãe Margarida me foi embora para sem-pre, comecei a sentir solidão… (A LUZ ACENDE-SE LENTAMENTE) No começo era muito pouco, quase nada… Mas, depois… Depois esse troço de solidão começou a me roer… me roer por dentro… Voltei a pensar em me casar… (BREVE PAUSA) E também a pensar num filho para ficar com “São Bernardo”… (O.T.) “São Bernardo”!… É um absurdo que “São Bernardo”, um dia, venha pertencer sei lá a quem… Casamento, um herdeiro, “São Ber-nardo”!… Essas três coisas se juntavam e pareciam uma coisa só… (COM CONVICÇÃO) Eram uma coisa só!… (QUEDA-SE PENSATIVO. OUVE VOZES)

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) De quem vocês estão falando?

AZEVEDO GONDIM - (VOZ “OFF”) De Madalena, seu Paulo.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) Madalena?

JOÃO NOGUEIRA - Uma professorinha lá da cidade. O senhor conhece a Madalena? É uma moça bonita, fina, educada.

AZEVEDO GONDIM - Muito educada.

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ESSAS DUAS ÚLTIMAS FALAS RESSOAM EM ECO NO OUVIDO DE PAULO HO-NÓRIO.

PAULO HONÓRIO - (REFLETE) Como será essa tal de Madalena?… Professorinha?!… Esse negócio de mulher que trabalha fora de casa, não sei, não… Mas casando, ela pára de trabalhar e fica em “São Bernardo” cuidando da casa, das empregadas, dos filhos… (BREVE PAUSA) Preciso conhecer Madalena…

A LUZ APAGA-SE LENTAMENTE. BARULHO DE PRESTES A PARTIR. LUZ EM FOCO APENAS SOBRE UM DOS “BANCOS DO TREM”, EM QUE ESTÃO PAULO HONÓRIO E D. GLÓRIA. ELE LÊ JORNAL, ELA TENTA DIZER-LHE ALGO.

D. GLÓRIA - Senhor! (ATENTO AO JORNAL, PAULO HONÓRIO NÃO A OUVE) Meu senhor!

PAULO HONÓRIO - (ATENCIOSO) A senhora falou comigo?

D. GLÓRIA - Desculpe incomodar. Posso pedir um pequeno favor? Eu preciso me sentar do lado da janela.

PAULO HONÓRIO - Pois não, minha senhora.

TROCAM DE LUGAR.

D. GLÓRIA - Estou com dor de cabeça e aqui dentro está um pouco abafado… E o pior é que tenho enxaqueca, ainda por cima.

PAULO HONÓRIO - A senhora está com enxaqueca?

D. GLÓRIA - Só dor de cabeça, por enquanto. A enxaqueca me vem sempre depois da dor de cabeça.

PAULO HONÓRIO - (OBSERVANDO-A) Será que nós já nos conhecemos, minha se-nhora?

D. GLÓRIA - Não, senhor. Acho que não.

PAULO HONÓRIO - Me enganei… (VOLTA AO JORNAL)

APITO. O TREM COMEÇA A PARTIR. RUÍDO CARACTERÍSTICO QUE, AOS POU-COS, DIMINUI, PERMITINDO QUE SE OUÇA OS PERSONAGENS. PAULO HONÓRIO PÁRA DE LER E VOLTA A OBSERVAR D. GLÓRIA.

PAULO HONÓRIO - Me lembrei! Acho que já nos conhecemos mesmo. (GENTIL, APRE-SENTANDO-SE) Meu nome é Paulo Honório. Posso perguntar qual é sua graça, minha se-nhora?

D. GLÓRIA - Glória Aparecida de Oliveira.

PAULO HONÓRIO - D. Glória, muito prazer… Conheci a senhora na casa do Dr. Maga-lhães, juiz de direito de Viçosa… A senhora estava acompanhado de uma moça…

D. GLÓRIA - Uma moça? Ah, sim, de Madalena.

PAULO HONÓRIO - Madalena?! Que coincidência!

D. GLÓRIA - Como “coincidência”?

PAULO HONÓRIO - Nada, nada. (O.T.) Essa moça, a Madalena, ela é sua parenta?

D. GLÓRIA - Minha sobrinha. Vive comigo desde a morte da minha irmã, mãe dela, faz quinze anos. (ORGULHOSA) É professora!

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PAULO HONÓRIO - Professora?… Coitada!

D. GLÓRIA - Por que “coitada”?

PAULO HONÓRIO - Se é professora, deve ganhar muito pouco… Minha senhora, quanto é que ganha uma professora?

D. GLÓRIA - (QUASE EM SEGREDO) Uma professora hoje, no início de carreira, ganha cento e oitenta mil-réis.

PAULO HONÓRIO - Mas é muito pouco mesmo. Que absurdo!

D. GLÓRIA - Eu ajudo nas despesas da casa, fazendo tricô e crochê, além de costurar para fora.

PAULO HONÓRIO - Cento e oitenta mil-réis!… Como pagam mal as professoras!… D. Glória, vou indicar um jeito da senhora e da sua sobrinha ganharem dinheiro que nem água: criar galinhas.

D. GLÓRIA - Criar galinhas?

PAULO HONÓRIO - Galinhas “Orpington”!… Dá muito mais que ser professora.

D. GLÓRIA - “Orpi”… “Orpi” o quê?

PAULO HONÓRIO - (ANIMADO) Orpington, D. Glória! Orpington! (EMPOLGA-SE) Galinha “Orpington” é um negócio que está começando a crescer no Brasil, começando… (A SI MESMO) Mas já é um bom negócio! (À D. GLÓRIA, MAS SEM “VÊ-LA”) Como nosso país está progredindo, meu Deus!… A gente olha pela janela do trem e só vê canaviais e mais canaviais… Ou então criação de gado… E tem gente que ainda fala em crise… Que crise, que nada! (PERCEBE QUE D. GLÓRIA, OCUPADA COM SUA DOR DE CABEÇA, NÃO LHE PRESTA ATENÇÃO) Desculpe, D. Glória, hoje estou falando muito, demais…

D. GLÓRIA - (A MEIO TOM) Que dor, meu Deus! Já nem sei mais se ainda é dor de cabeça ou se já virou enxaqueca.

PAULO HONÓRIO - Posso ajudar em alguma coisa?

D. GLÓRIA - Obrigada, mas um pouco antes de entrar no trem, tomei quatro comprimidos… Agora é esperar bem quietinha que passa… Demora um pouco, mas passa…

PAUSA.

PAULO HONÓRIO - A senhora mora na cidade?

D. GLÓRIA - Moro. Em Viçosa.

PAULO HONÓRIO - Devia morar no campo, em fazenda… Dor de cabeça, enxaqueca, dor de não sei onde, tudo isso é doença da cidade.

D. GLÓRIA - Sempre vivi na cidade e não ia me dar bem no campo, no meio do mato… Lá deve ter muito carrapato, pernilongo, cobra… Tenho pavor de cobra!… Um tio meu foi pi-cado por cobra e morreu… (GEMENDO) Aaaiii! Só de pensar em cobra a dor de cabeça está aumentando… Já já vira enxaqueca…

D. GLÓRIA VOLTA A OCUPAR-SE COM SUA DOR DE CABEÇA. NOTA-SE PREO-CUPAÇÃO NO ROSTO DE PAULO HONÓRIO.

PAULO HONÓRIO - Desculpe incomodar a senhora, D. Glória, mas só mais uma pergunti-nha: a sua sobrinha, a Madalena, tem dor de cabeça e enxaqueca que nem a senhora?

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D. GLÓRIA - A Madalena trabalha o dia inteiro sem parar, sem Paulo… Não tem nada, nunca teve nada, nem resfriado… A Madalena vende saúde, seu Paulo! Vende saúde!

PAULO HONÓRIO - (ALIVIADO) Doença hoje em dia custa caro, D. Glória, muito caro… Ainda bem que a Madalena não tem dor de cabeça nem enxaqueca… Ainda bem! (D. GLÓ-RIA, GEMENDO DISCRETAMENTE, ENCOLHE-SE NO SEU CANTO. O BARULHO DO TREM AUMENTA, DIMINUINDO LOGO EM SEGUIDA. FOCO DE LUZ SOBRE PAULO HONÓRIO, REFLETINDO) Madalena vende saúde… Vende saúde!…

A LUZ VAI SE APAGANDO. APITO DO TREM. BREVE PAUSA. LUZ ILUMINA LEN-TAMENTE. ENQUANTO SE OUVE A VOZ DE PAULO HONÓRIO, O CASAL JÁ ESTÁ EM CENA.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) Quando chegamos a Viçosa, D. Glória já estava melhor e me apresentou à sua sobrinha… Algo me atraiu naquela moça alegre, agradável, simpática e comecei então a fazer a corte a Madalena…

PASSAGEM DE TEMPO. MODESTA SALA DE ESTAR DA CASA DE MADALENA. ALGUNS PEQUENOS VASOS DE PLANTAS E BIBELÔS ALEGRAM O AMBIENTE. NOTA-SE DISCRETA PROXIMIDADE ENTRE MADALENA E PAULO HONÓRIO.

PAULO HONÓRIO - Sua tia está melhor, Madalena?

MADALENA - Um pouco melhor. A enxaqueca vai e volta… Muito agradecida pelas ervas que você mandou para a minha tia.

PAULO HONÓRIO - Não tem de quê, Madalena. Depois mando trazer mais.

TOQUE DE CAMPAINHA.

MADALENA - Você é muito gentil, Paulo. Com licença. (PAUSA. EXPECTATIVA DE PAULO HONÓRIO. MADALENA VOLTA COM UM BUQUÊ DE FLORES) Flores! Flo-res, Paulo! Eu não disse que você é muito gentil? (EMOCIONADA) Nunca recebi flores tão bonitas!… (A SI MESMA) Aliás, nunca recebi flores na minha vida… Como são bonitas, meu Deus!… (A PAULO HONÓRIO) Que surpresa mais agradável!… Nem sei o que dizer…

PAULO HONÓRIO - A sua alegria já disse tudo, Madalena.

MADALENA - São flores de “São Bernardo”, Paulo?

PAULO HONÓRIO - Não, não… Estou só começando a cultivar flores em “São Bernardo” para exportação, que é um negócio que ainda nem existe no Brasil e eu tenho certeza de que vai dar muito lucro… (ENTUSIASMADO) Estas flores, Madalena, eu encomendei na Flori-cultura Nossa Senhora do Socorro, a mais cara de Viçosa!

MADALENA - (UM POUCO DECEPCIONADA) Aaah…

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - Tem um cartãozinho aí.

MADALENA - Cartãozinho?… Ah! (LÊ) “Com amor, muito amor / E aquele toque de cari-nho… / E a certeza de que / Com você / A vida é um constante florescer / De sempre novas e sentidas esperanças…” // (REPETE, EMOCIONADA) “Sempre novas e sentidas esperan-ças…” (PAUSA. MADALENA ESTÁ MUITO EMOCIONADA) Que coisa bonita, Paulo!… E eu… Eu nem sabia que você escrevia…

PAULO HONÓRIO - (MODESTO) Eu escrevo algumas coisas… sempre escrevi…

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MADALENA - A sua poesia é linda, Paulo!… Linda! (VOLTA A LER A POESIA)

PAULO HONÓRIO - (À PARTE) Madalena tem razão: é linda a minha poesia… Também pelo preço que paguei por ela… Ora essa, se posso comprar flores, por que não posso comprar poesia para Madalena? Tudo se compra neste mundo…

MADALENA - (ENCANTADA) Então você escreve, Paulo…

PAULO HONÓRIO - Umas coisinhas… (DELICADO) Madalena, você não terminou de ler o cartãozinho…

MADALENA - (LENDO) “… de sempre novas e sentidas esperanças…” Do seu noivo… (SURPREENDE-SE) Do seu noivo, Paulo Honório!… (BREVE PAUSA.) Noivo?!… (EM-BARAÇADA) Mas, Paulo, nós… Nós nos conhecemos faz pouco tempo… É muito cedo para…

PAULO HONÓRIO - (CORTA) Madalena, para mim é difícil dizer certas coisas… (SIN-CERO) Eu me engracei por você desde que nos conhecemos… Aí eu fiquei pensando muito em você… (COM DIFICULDADE) Eu… Eu gosto de você, Madalena… Gosto muito… Muito mesmo, palavra…

MADALENA - Nunca me fizeram uma declaração de amor tão bonita, Paulo… (A SI MESMA, SEM IRONIA) Nunca me fizeram nenhuma declaração de amor…

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - (FIRME) Peço você em casamento, Madalena.

MADALENA - (SURPRESA E CONFUSA) Casamento?!

PAUSA. MADALENA, EMOCIONADA, REFLETE…

PAULO HONÓRIO - Que é que você me diz?

MADALENA - Paulo, nunca conheci ninguém como você… Mas não custa nada a gente esperar um pouquinho mais… Ainda nem nos conhecemos direito…

PAULO HONÓRIO - (COM CONTIDA VEEMÊNCIA) Como não nos conhecemos?… Eu sou o que sou, o que você está vendo que sou… E já sei muito bem que você é uma pessoa muito educada, econômica, trabalhadora, prendada, que vai ser uma boa esposa e uma boa mãe de família…

PAUSA. EXPECTATIVA.

MADALENA - Sei que você é um homem honesto, respeitoso, trabalhador…

PAULO HONÓRIO - Mas então, Madalena? Se eu sou tudo isso que você está dizendo…

MADALENA - Para ser franca, Paulo, eu… eu tenho muita simpatia por você, gosto de você, mas…

PAULO HONÓRIO - (CORTA) Mas o verdadeiro amor vem com o tempo, com a convi-vência. Se você dissesse que já está apaixonada por mim, eu não ia mesmo acreditar. Não gosto de gente que se apaixona sem mais nem menos e toma decisões sem pensar. (DETER-MINADO) Vamos marcar já a data do nosso casamento.

MADALENA - Data do casamento?!… Pra que tanta pressa? Talvez daqui a um ano.

PAULO HONÓRIO - Um ano, Madalena?! Pelo amor de Deus! Negócio de um ano não presta! É tempo demais!

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MADALENA - Preciso me preparar…

PAULO HONÓRIO - Que é que falta? Vestido de noiva a gente manda fazer já! Os procla-mas começam a correr a partir de amanhã mesmo… Que é que você decide, Madalena?

TENSÃO. MADALENA HESITA.

MADALENA - (REFLETINDO) A gente tem muitas diferenças… Muitas.

PAUSA. PAULO HONÓRIO SENTE QUE MADALENA ESTÁ PARA NEGAR E “ATACA”.

PAULO HONÓRIO - Gostou das flores, Madalena?

MADALENA - Gostei. Gostei muito, Paulo.

MADALENA PEGA O CARTÃO E COMEÇA A RELER. PAULO HONÓRIO OBSERVA-A E TEM UMA IDÉIA.

PAULO HONÓRIO - (PEGA-LHE NA MÃO E PASSA A LER O CARTÃO) “Com amor, muito amor / E aquele toque de carinho… E a certeza de que…”

MADALENA, ENVOLVIDA, ACOMPANHA-O NA LEITURA.

AMBOS - “A vida é um constante florescer / De sempre novas e sentidas esperanças…” (ENTREOLHAM-SE)

MADALENA - (RECITANDO) “A vida é um constante florescer / De sempre novas e senti-das esperanças…” (DECIDE-SE FINALMENTE) Aceito, Paulo… Aceito!

PAULO HONÓRIO - Que foi que você disse, Madalena?

MADALENA - Aceito!… Aceito sua proposta de casamento… (SINCERA) Estou muito, muito feliz, Paulo!

PAULO HONÓRIO - Eu também estou feliz, Madalena.

MADALENA PREPARA-SE PARA RECEBER O ABRAÇO. EM VEZ DISSO, ELE ES-TENDE A MÃO, CUMPRIMENTANDO-A. MADALENA ESTRANHA.

PAULO HONÓRIO - (PRÁTICO) Agora vamos avisar sua tia.

MADALENA SAI. PAULO HONÓRIO FAZ GESTO COM OS PUNHOS DE QUEM, DE-POIS DE MUITA LUTA, CONQUISTOU MAIS UMA VITÓRIA. MADALENA E D. GLÓRIA ENTRAM.

D. GLÓRIA - O senhor quer falar comigo, seu Paulo?

PAULO HONÓRIO - Em primeiro lugar, está melhor da enxaqueca, D. Glória?

D. GLÓRIA - Bem melhor, mas ainda dói um pouco.

PAULO HONÓRIO - (SOLENE) D. Glória! (PUXA MADALENA PARA SEU LADO) Madalena e eu… Eu e Madalena… estamos comprometidos!

D. GLÓRIA - Comprometidos?

PAULO HONÓRIO - Comprometidos, quero dizer, noivos. E já decidimos: vamos nos casar daqui a um mês, no máximo… A senhora, claro, vem com a gente para “São Bernardo”… Afinal, onde comem dois, comem três, quatro, cinco…

NUM GESTO RESPEITOSO, PAULO HONÓRIO TOMA A MÃO DE D. GLÓRIA E BEIJA-A. MÚSICA OU SOM CARACTERÍSTICO. OS TRÊS CONVERSAM AMISTO-

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SAMENTE. A LUZ GERAL SE APAGA, MAS ANTES OUVE-SE SOM CARACTERÍS-TICO DE MÁQUINAS IMPRESSORAS DA ÉPOCA. ESCURIDÃO. ESCRITÓRIO DE “O CRUZEIRO”.

AZEVEDO GONDIM - (COM CERTO EXAGERO) Parabéns, seu Paulo! Parabéns! E muitíssimo obrigado por me convidar para o seu casamento. É uma honra!

PAUSA. AZEVEDO GONDIM PERCEBE QUE PAULO HONÓRIO VAI PEDIR-LHE ALGO. UM POUCO TENSO, AGUARDA.

PAULO HONÓRIO - Gondim, vou precisar de um favorzinho seu…

AZEVEDO GONDIM - (APREENSIVO) Pois não, seu Paulo.

PAULO HONÓRIO - A Madalena escreve no “Cruzeiro”…

AZEVEDO GONDIM - (DISPARA) Ah, escreve!… A Madalena, quero dizer, a D. Mada-lena escreve bem, seu Paulo, escreve muito bem… Os nossos leitores gostam tanto da coluna dela que…

PAULO HONÓRIO - (CORTA) Escrevia, Gondim! Escrevia!… A Madalena escrevia para “O Cruzeiro”… Escrevia!

AZEVEDO GONDIM - Como “escrevia”, seu Paulo?

PAULO HONÓRIO - Enquanto a Madalena não me conhecia, estava certo: ela não tinha nenhum compromisso comigo… Mas agora ela é minha noiva, daqui a menos de trinta dias será minha esposa, a minha mulher, compreende?

AZEVEDO GONDIM - Mas, seu Paulo…

PAULO HONÓRIO - (CORTA) Não fica bem a esposa do dono da fazenda “São Bernardo” escrever artigos em jornal… Não é, Gondim?

AZEVEDO GONDIM - (CONTRARIADO, MAS OBEDECENDO) O senhor é que sabe, seu Paulo…

PAULO HONÓRIO - Tem razão, Gondim: eu é que sei.

BREVE PAUSA.

AZEVEDO GONDIM - (INTENCIONAL) E que é que eu digo para D. Madalena? Que foi o senhor que…

PAULO HONÓRIO - (IRRITADÍSSIMO) Você está louco, Gondim! Quer estragar a minha vida? (BREVE PAUSA) Invente alguma coisa, ora essa!… Você é que conhece o seu negó-cio… Invente! (O.T.) Outra coisa: a Madalena pediu que o nosso casamento seja discreto, nada de espalhafato… (VAIDOSO) Os meus padrinhos vão ser o governador e a senhora dele.

AZEVEDO GONDIM - (IRÔNICO) O senhor quer um casamento discreto e convida logo o governador para padrinho.

PAULO HONÓRIO - (EXPLICATIVO) O governador e a senhora dele vão direto para “São Bernardo”…

AZEVEDO GONDIM - (CORTA) Uma notícia e tanto, seu Paulo! Vai vender muito jornal!

PAULO HONÓRIO - (AUTORITÁRIO) E não quero nenhuma palavra no “Cruzeiro” sobre o assunto, Gondim!

AZEVEDO GONDIM - Mas, seu Paulo…

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PAULO HONÓRIO - (CORTA) Nada!

BREVE PAUSA.

AZEVEDO GONDIM - Mais alguma coisa, seu Paulo?

PAULO HONÓRIO - Não.

AZEVEDO GONDIM - (INSINUANTE) As nossas máquinas impressoras estão sempre me dando problemas, sempre… A gente chega até a publicar o jornal com atraso… São antigas, antiquadas, superadas…

PAULO HONÓRIO - Quanto desta vez, Gondim?

AZEVEDO GONDIM - Pouco, seu Paulo, pouco… O mais importante é outra coisa: já que o senhor é muito amigo do governador, bem que podia me…

LUZ EM FOCO SOBRE AZEVEDO GONDIM QUE CONTINUA FALANTE, MAS O SOM DAS MÁQUINAS IMPRESSORAS, ELEVANDO-SE, IMPEDE QUE SE OUÇA O QUE DIZ. A LUZ APAGA-SE LENTAMENTE. PAUSA. BURBURINHO DE FESTA DE CASAMENTO, BRINDES, ETC. UMA VALSA. LUZ. PAULO HONÓRIO E MADALENA DANÇAM. A MÚSICA SE ELEVA, ENCOBRINDO O BURBURINHO.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF” ENVOLVE A MÚSICA) Madalena estava bonita!… linda!… deslumbrante!… (BREVE PAUSA) Mas o governador acabou não comparecendo…

MADALENA E PAULO HONÓRIO CONTINUAM DANÇANDO. ESTÃO SORRIDEN-TES, ESBANJANDO FELICIDADE. QUANDO A MÚSICA CESSA, ASSUMEM POSI-ÇÃO PARA A FOTO. FLASH. LUZ EM FOCO SOBRE MADALENA, QUE SE PRE-PARA PARA O “RITUAL” DE JOGAR O BUQUÊ. JOGA. PALMAS, ETC. FOCO SOBRE PAULO HONÓRIO, JÁ TROCADO, NUM OUTRO PONTO DO PALCO.

PAULO HONÓRIO - Começamos nos dando muito bem em “São Bernardo”… Madalena era mesmo a mulher dos meus sonhos… Um dos meus maiores prazeres era levantar ainda mais cedo do que Madalena e levar café com leite na cama para ela… Depois, íamos cavalgar pelas terras de “São Bernardo”, vendo o sol nascer diante de nós… Aqueles foram os dias mais felizes de minha vida… Madalena tinha me trazido sorte, muita sorte: “São Bernardo” progredia, dava cada vez mais lucro e o governador passou mais um fim de semana hospe-dado em nossa casa…

A LUZ APAGA-SE SOBRE PAULO HONÓRIO. RUÍDOS TÍPICOS DE ALVORECER CAMPESTRE. LUZ. QUARTO DE CASAL. UM CRUCIFIXO PENDE NA PAREDE. MADALENA ESTÁ DEITADA. PAULO HONÓRIO ESTÁ EM PÉ, A SEU LADO.

MADALENA - Estou me sentindo um pouco… um pouco indisposta… meio enjoada… Você vai ter de ir sozinho hoje…

PAULO HONÓRIO - (APROXIMA-SE, PREOCUPADO) Está doente, Madalena? Vou mandar já o Casimiro buscar o médico na cidade.

MADALENA - Não, não precisa… Paulo, chega mais perto.

PAULO HONÓRIO APROXIMA-SE MAIS DE MADALENA, QUE O ABRAÇA, CARI-NHOSA.

PAULO HONÓRIO - Que foi, Madalena? Você está meio esquisita hoje… Você está bem?

MADALENA - Estou muito bem, Paulo. (INTENCIONAL) Só um pouco enjoada… En-joada! (NOTA QUE ELE NÃO ENTENDE) As minhas regras, desta vez, não vieram…

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PAULO HONÓRIO - Não vieram?! (COMPREENDE) Isso quer dizer que… (EMOCIO-NADO) que você… que eu… que nós…

MADALENA - (SORRINDO) Que nós vamos ter um filho, Paulo!…

PAULO HONÓRIO - (ABRAÇA-A E BEIJA-LHE AMOROSAMENTE O ROSTO) Ma-dalena!… Um filho!… Um filho!… Um filho!

MADALENA - Ou uma filha, Paulo.

PAULO HONÓRIO - Não!… É claro que vai ser um menino… O meu filho! (ABRAÇA-A NOVAMENTE) Posso te dizer uma coisa, Madalena?… Uma coisa que… que está lá dentro e eu nunca tive coragem de te dizer?

MADALENA - Diga, Paulo… Diga…

PAULO HONÓRIO - Eu… Eu te amo… Eu te amo muito, Madalena!… (BEIJAM-SE CA-RINHOSAMENTE) Ah! Eu não vou passear hoje… Vou ficar com você, Madalena… Com você e com nosso filho…

MADALENA - Vai sim, Paulo, e vai já… Estou me sentindo meio cansada e quero dormir um pouco mais…

PAULO HONÓRIO - (AFETUOSO, AJEITANDO-LHE O TRAVESSEIRO E O LENÇOL) Não vai tomar o seu café com leite?… Então come só a bolacha. (MADALENA FAZ GESTO NEGATIVO E FECHA OS OLHOS PARA DORMIR) Descanse, Madalena, descanse… (BEIJA-LHE O ROSTO E AFASTA-SE DELA. BREVE PAUSA. AO PÚBLICO) Naquela madrugada, pela primeira vez desde que Madalena chegou a “São Bernardo”, fui passear so-zinho… Eu queria mesmo cavalgar sozinho, sozinho com o Aladim e com meus pensamen-tos… (BREVE PAUSA. REFLETE) Lá fomos nós, o Aladim e eu, ver o nascer do sol no ponto mais alto de “São Bernardo”… De lá, fazendo um giro, se avistam quase todas as terras de “São Bernardo”… (MUDANÇA DE LUZ E DA POSIÇÃO DO ATOR. AGORA, PAULO HONÓRIO FALA COMO SE ESTIVESSE NO LOCAL) Mandei construir em “São Ber-nardo” a escola, a capela e o cemitério… Na capela, vou batizar e casar os meus filhos… No cemitério, vão ficar os meus ossos e os da minha família… Uma grande família! (SEN-TINDO IMENSO PRAZER NO QUE DIZ) Um filho!… Um filho que, a esta hora, está dor-mindo tranqüilo na barriga de Madalena… Um filho!… (BREVE PAUSA) Depois, o se-gundo… o terceiro… o quarto… o sexto!… Pode vir até uma menina, que não tem importân-cia: vai servir pra fazer companhia pra mãe… (BREVE PAUSA) “São Bernardo”!… Mada-lena!…Filhos!…

PAULO HONÓRIO OBSERVA UMA VEZ MAIS “OS SEUS DOMÍNIOS”. ESTÁ IMEN-SAMENTE FELIZ E TRIUNFANTE. A LUZ APAGA-SE LENTAMENTE…

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II ATO

JARDIM OU POMAR DE “SÃO BERNARDO”. AMBIENTE AGRADÁVEL E DESCON-TRAÍDO. PAULO HONÓRIO, SATISFEITO CONSIGO MESMO, OBSERVA UMA VEZ MAIS “OS SEUS DOMÍNIOS” (A PRÓPRIA PLATÉIA).

PAULO HONÓRIO - Feliz em “São Bernardo”, Madalena?

MADALENA - (SORRIDENTE) Felicíssima! Minha vida mudou tanto, meu Deus!

PAULO HONÓRIO - Para melhor ou para pior?

MADALENA - Para muito melhor.

PAULO HONÓRIO - (ABRAÇA-A) Eu não disse que a gente ia se dar muito bem em “São Bernardo”? (O.T.) Como vai indo o nosso filho Honorinho?

MADALENA - Ele é tão sossegado, tão quietinho…

PAULO HONÓRIO - Ao contrário da mãe, que não pára nunca… E já está começando a me preocupar…

MADALENA - Como assim, Paulo?

PAULO HONÓRIO - Meu Deus, Madalena! Você está grávida e não pára, não descansa nunca: uma hora está cuidando do jardim, outra hora ajudando a lavar a louça na cozinha, outra na escola…

MADALENA - Fui ver se estava faltando material para as crianças e…

PAULO HONÓRIO - (CORTA) Logo depois está no escritório, folheando os livros, a pa-pelada, consertando a máquina de escrever que estava emperrada…

MADALENA - (DESCONFIADA) Você andou me espionando, Paulo?

PAULO HONÓRIO - Pelo amor de Deus, Madalena! Só estou preocupado com você.

PAUSA. CONSTRANGIMENTO. MADALENA ESTÁ ABORRECIDA E DESCON-FIADA.

MADALENA - Preciso tratar um assunto importante com você, Paulo.

PAULO HONÓRIO - Se é importante, então fale.

MADALENA - A família de Mestre Caetano está passando necessidade: mal tem o que co-mer. Além disso, ele está doente e precisa urgente de remédios.

PAULO HONÓRIO - Aposto que a mulher dele anda se queixando para você. Ela é muito esperta, hem!… Mestre Caetano está muito velho, praticamente já não faz mais nada. Mesmo assim, ainda pago cinqüenta mil-réis por mês para ele.

MADALENA - Sóoo?!

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PAULO HONÓRIO - (IRRITADO) Como “sóóó”? Pago cinqüenta mil-réis por mês para Mestre Caetano não fazer quase nada e você ainda me diz “sóóó”? Quem é que faz isso hoje em dia?

MADALENA - Mas ele trabalhou muito em “São Bernardo”!

PAULO HONÓRIO - Você tem razão: ele “trabalhou”, passado… (BREVE PAUSA. PAULO HONÓRIO RACIOCINA RÁPIDO) Está certo, Madalena, está certo. (VAI ABRAÇÁ-LA, MAS ELA O EVITA) Vamos indo tão bem, por que é que a gente tem de discutir por bobagem?

MADALENA - (IRRITADA) Bobagem?!

PAULO HONÓRIO - (CONTEMPORIZANDO) Vamos encerrar já esse assunto: aumento o salário de Mestre Caetano. (À PARTE) É dinheiro jogado fora. (A MADALENA) Você manda comprar remédios e tudo o que a família dele precisar — e pronto. Está bom assim, Madalena?

MADALENA - Está, mas quem sabe se a gente…

PAULO HONÓRIO - (CORTA) E não quero mais saber de discussão entre nós, hem! (BRINCALHÃO, ENCOSTA O OUVIDO NA BARRIGA DE MADALENA) Honorinho, fala pra mamãe não brigar mais com o papai. (IMITANDO VOZ DE BEBÊ) “Manhê, num briga mais com o paiê, senão eu choro.” (“CHORA”. RIEM. JÁ ESTÃO ÀS BOAS) Mamãe Madalena, se eu pedir um favorzinho, será que a senhora me faz?

MADALENA - (ALEGRE) Pois não, Papai Paulo Honório.

PAULO HONÓRIO - (CAUTELOSO, PATERNAL) Madalena, por favor, não se aproxime muito dessa gente… Nós somos os donos de “São Bernardo” e temos de manter distância... Além de tudo, você é minha esposa… É uma questão de respeito, compreende?… Se, por um acaso, você precisar mesmo de alguma coisa dessa caboclada, mande recado pelo Casimiro ou então pelo capataz. Mas tratar diretamente com essa gente, essa gentalha, não. Por favor.

MADALENA - (IRRITADÍSSIMA) Que absurdo! Isso é um absurdo!

PAULO HONÓRIO - Absurdo?!… Que absurdo?

MADALENA - Isso aí que você está me propondo… Um absurdo!… E a minha resposta é não!… (FIRME) Não!… (ENCARA-O POR UM INSTANTE) Com licença, seu Paulo! (SAI)

PAULO HONÓRIO - (PERPLEXO) Que diabo deu nessa mulher?! (INDIGNADO) Falei com tanto jeito, com tanta educação, e ela… (“COMPREENDE”. SORRI) Ah! Madalena está grávida, como é que fui me esquecer, meu Deus!… Mulher prenha fica assim mesmo, ner-vosa, brigando por nada, se irritando à toa… (SAI À PROCURA DE MADALENA. A CENA FICA VAZIA. OUVE-SE SUA VOZ, CHAMANDO) Madalena!… Madalena!… Madalena.

PAUSA. A LUZ APAGA-SE LENTAMENTE.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) Ah! O Dr. Nogueira… Quero dizer, o Nogueira… O Nogueira até que era competente, mas muito desajeitado e lá um dia foi apanhado com a boca na botija… (A LUZ VAI SE ACENDENDO. PAULO HONÓRIO ESCREVE) Apanhado, não: armaram a ratoeira e o desastrado do Nogueira foi agarrado pelo pescoço, quando dava uma propina, quero dizer, uns trocados para um funcionário do fórum…” (PÁRA DE ES-CREVER. REFLETE. A LUZ AGORA ESTÁ BEM NÍTIDA. ELE DIRIGE-SE DIRETA-MENTE AO PÚBLICO) Éééé… Deu um bode danado, tive de me virar pelo avesso e por

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muito pouco o Nogueira não foi parar na cadeia… Por trás de tudo isso, tenho certeza, estava o Dr. Magalhães, juiz de direito e dono de terras vizinhas de “São Bernardo”… (COM ÓDIO) Canalha!… (BREVE PAUSA) O Dr. Nogueira… quer dizer, o Nogueira nunca citou o meu nome nessa embrulhada toda… (NO OUTRO PLANO, CENÁRIO DO ESCRITÓRIO DE “SÃO BERNARDO”. JOÃO NOGUEIRA CONVERSA COM MADALENA E MOSTRA-LHE OS LIVROS DE ESCRITURAÇÃO. NÃO SE OUVE O QUE DIZEM) Em sinal de agradecimento, eu trouxe ele para trabalhar em “São Bernardo”. Além disso, o Nogueira en-tendia de contabilidade e eu estava precisando mesmo de um guarda-livros. (O.T.) A verdade é que o Nogueira, depois que não pôde mais advogar, perdeu qualquer importância. Se estou citando o nome dele aqui, é por causa de um incidente desagradável que aconteceu comigo e com Madalena (IRRITADO), justamente por causa do Nogueira…

LUZ GERAL. SALA DE “SÃO BERNARDO”. PAULO HONÓRIO E D. GLÓRIA CON-VERSAM.

PAULO HONÓRIO - Eu não costumava dizer pra senhora, D. Glória, que esse negócio de dor de cabeça, enxaqueca, dor de não sei onde, é tudo coisa ruim da cidade?

D. GLÓRIA - O senhor tinha razão, seu Paulo. Desde que cheguei a “São Bernardo”, só tive dor de cabeça e assim mesmo pouca coisa. Enxaqueca mesmo não tive.

PAULO HONÓRIO - A senhora continua tomando o seu chazinho de ervas?

D. GLÓRIA - Continuo, seu Paulo. Obrigada. Quer que eu faça um pouco de chá de ervas pro senhor?

PAULO HONÓRIO - Não, obrigado. (BREVE PAUSA) D. Glória, a senhora viu a Mada-lena?

D. GLÓRIA - Deve estar no escritório, conversando com o seu Nogueira.

PAULO HONÓRIO - (COM CONTIDA IRRITAÇÃO) De novo?… Com licença, D. Gló-ria. (SAI)

D. GLÓRIA - (QUE NOTOU A IRRITAÇÃO DE PAULO HONÓRIO) Aiii! (PÕE A MÃO NA TÊMPORA) Acho que vou ter a minha primeira enxaqueca em “São Bernardo”.

A LUZ APAGA-SE SOBRE D. GLÓRIA E ACENDE-SE NO ESCRITÓRIO DE “SÃO BERNARDO”. PAULO HONÓRIO MANTÉM-SE A CERTA DISTÂNCIA DE MADA-LENA E JOÃO NOGUEIRA, QUE CONVERSAM AMISTOSAMENTE. JOÃO NO-GUEIRA MOSTRA LIVRO DE ESCRITURAÇÃO A MADALENA. LUZ EM FOCO SO-BRE PAULO HONÓRIO QUE, ENQUANTO OS OBSERVA, OUVE VOZES.

LUÍS PADILHA - (VOZ “OFF”) Já viu as coxas dela?

AZEVEDO GONDIM - (VOZ “OFF”) Claro que vi.

JOÃO NOGUEIRA - (VOZ “OFF”) Ela tem uns peitos!… Que peitaços que ela tem!… Não sei por que gosto mesmo é de mulher de peitos bem grandes…

LUÍS PADILHA - (VOZ “OFF”) Já viu os peitos dela?

JOÃO NOGUEIRA - (VOZ “OFF”) Ainda não.

PAUSA. PAULO HONÓRIO OBSERVA MADALENA E JOÃO NOGUEIRA. REFLETE, DESCONFIADO.

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PAULO HONÓRIO - “Ainda não”… (FAZ GESTO, ESPANTANDO SEUS PENSAMEN-TOS) Bobagem! Que homem vai querer mulher grávida, com filho na barriga? Eu é que ando cismado à toa… (APROXIMA-SE) Madalena, você por aqui?

MADALENA - O seu Nogueira está me mostrando os livros de escrituração… Como tem trabalho aqui, hem, seu Nogueira?… Paulo, já vi que o seu Nogueira está precisando de um auxiliar: é muito serviço para uma pessoa só… Tem de registrar todo o movimento de “São Bernardo”: o que entra, o que sai, o que importa, o que exporta, o que compra, o que vende, listagem de preços, recibos, pagamentos, impostos… (SÉRIA) Estou querendo trabalhar aqui para ajudar o seu Nogueira.

PAULO HONÓRIO - (CONTRARIADO) Se você quiser… (IRÔNICO) Quanto você quer ganhar de ordenado, Madalena?

MADALENA - Estou falando sério, Paulo.

PAULO HONÓRIO - Está certo. Depois a gente conversa melhor.

MADALENA - Falando em ordenado, quanto é que o senhor ganha, seu Nogueira?

PAUSA. EMBARAÇO GERAL, EM ESPECIAL DE JOÃO NOGUEIRA.

JOÃO NOGUEIRA - (PERTURBADO) Eu, D. Madalena?!… (OLHA PARA PAULO HONÓRIO)

MADALENA - Éééé… Quanto o senhor ganha?

PAUSA. JOÃO NOGUEIRA, NERVOSO, OLHA PARA PAULO HONÓRIO, SEM SABER SE DEVE OU NÃO RESPONDER.

PAULO HONÓRIO - Já que Madalena quer saber, diga, Nogueira.

JOÃO NOGUEIRA - Duzentos mil-réis.

PAULO HONÓRIO - Mais casa, comida e roupa lavada.

MADALENA - É muito pouco…

PAULO HONÓRIO - Como “muito pouco”?

JOÃO NOGUEIRA - (ASSUSTADO) Seu Paulo, eu não estou me queixando de nada.

PAULO HONÓRIO - Você acha que ganha muito pouco, Nogueira?

MADALENA - É muito pouco mesmo.

JOÃO NOGUEIRA - (RECEOSO, A MADALENA) D. Madalena, por favor, em tese… em tese, talvez não seja muito… (A PAULO HONÓRIO) Não me falta nada, seu Paulo, nada! (A MADALENA) Mas, na prática, D. Madalena, o que eu ganho em “São Bernardo” até que dá muito bem para mim.

MADALENA - Só duzentos mil-réis…

TENSÃO. PAULO HONÓRIO ESTÁ MUITO NERVOSO, MAS CONTÉM-SE. REFLETE.

PAULO HONÓRIO - Nogueira, vá tomar um pouco de ar puro, que preciso conversar com Madalena.

JOÃO NOGUEIRA - Vou já, vou já…

JOÃO NOGUEIRA SAI. PAUSA. PAULO HONÓRIO FALA CAUTELOSO, TOMANDO CUIDADO PARA NÃO SE DESCONTROLAR.

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PAULO HONÓRIO - (NERVOSO) Madalena, você… Você quer mesmo ajudar o No-gueira?

MADALENA - (SEM NOTAR O ESTADO DE PAULO HONÓRIO) Quero, Paulo. Além disso, preciso me sentir útil, trabalhar, ter um serviço sob minha responsabilidade, em vez de procurar coisas para fazer por aí.

PAULO HONÓRIO - Então trabalhe com o Nogueira… Trabalhe… (VAI SE ACAL-MANDO. REFLETE) Então você acha que o Nogueira ganha muito pouco em “São Ber-nardo”…

MADALENA - Muito pouco. E você sabe disso.

PAULO HONÓRIO - (ALGO IRRITADO) Não sei, não!… Duzentos mil-réis por mês mais casa, comida e roupa lavada, por acaso tudo isso é muito pouco?

MADALENA - Muito pouco, Paulo… Além disso, o seu Nogueira sempre foi seu amigo.

PAULO HONÓRIO - (MAIS IRRITADO, MAS AINDA CONTROLANDO-SE) Amigo é uma coisa, negócio é outra coisa completamente diferente… Quando o Nogueira podia advo-gar no fórum, valia muito, muito mesmo e eu pagava muito bem pra ele… Agora, como guarda-livros, que é que ele vale?… Está “assim” (GESTO) de guarda-livros procurando em-prego por aí, Madalena!… Duzentos mil-réis por um guarda-livros é até demais… O No-gueira não vale isso, Madalena!

MADALENA - (NERVOSÍSSIMA, QUASE CHORANDO) Fala desse jeito do seu Nogueira e ainda diz que é amigo dele… Paulo, quer saber de uma coisa? Você… Você não era assim tão rude, tão… tão insensível!

PAULO HONÓRIO - Madalena, você está um pouco nervosa…

MADALENA - Estou muito nervosa… Muito nervosa, seu Paulo! (CHORA)

PAULO HONÓRIO - (APROXIMA-SE DELA) Calma, Madalena!… Não aconteceu nada grave… Pelo amor de Deus, esses seus nervos não vão fazer nada bem para o nosso filho… Vai descansar, vai… Eu vou junto com você…

MADALENA - (RECUPERANDO-SE) Não precisa que eu sei o caminho… Eu sei muito bem o caminho, seu Paulo.

SAI. PAULO HONÓRIO ESTÁ PARA EXPLODIR. ENTRA JOÃO NOGUEIRA.

JOÃO NOGUEIRA - (TÍMIDO) Desculpe, seu Paulo, mas já que a D. Madalena saiu, achei melhor voltar para o meu trabalho.

PAULO HONÓRIO - (EXPLODE) Já agüentei muito! Demais! Chega! (ESMURRA O AR)

JOÃO NOGUEIRA - (APAVORADO) Seu Paulo!… Me desculpe… Eu… Eu fiz alguma coisa errada?

PAULO HONÓRIO - (IGNORA A PRESENÇA DE JOÃO NOGUEIRA. FAZ ESFORÇO PARA SE CONTER. FALA A SI MESMO) Se agüentei até aqui, agüento um pouco mais, ora essa!… (VAI SE ACALMANDO) Depois que o Honorinho nascer, as coisas vão mudar muito em “São Bernardo”… Muito! (SÓ AGORA NOTA A PRESENÇA DO OUTRO) No-gueira, a Madalena vai conhecer melhor o marido que tem, saber quem é que manda, quem é o homem da casa… Depois!

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SAI. JOÃO NOGUEIRA, DESNORTEADO, ENXUGA O SUOR DO ROSTO. SOM DE CHORO DE BEBÊ. A LUZ VAI SE APAGANDO. ANTES OUVE-SE SOM DE AM-BIENTE ALEGRE, MODERADAMENTE FESTIVO. AS VOZES SE MISTURAM, MAS ALGUMAS FRASES SÃO BEM NÍTIDAS. OS PERSONAGENS APARECEM EM DIFE-RENTES PONTOS DO PALCO.

D. GLÓRIA - Mas que olhinhos bonitinhos, meu Deus! Herdou de Madalena.

AZEVEDO GONDIM - Que menino forte, sadio, esperto, hem, seu Paulo!

PAULO HONÓRIO - (NUM RESMUNGO) Que diabo esse molambo do Padilha está fa-zendo aqui?!

LUÍS PADILHA - Meus parabéns, seu Paulo!

PAULO HONÓRIO - (CONTRARIADO) Obrigado, Padilha.

LUÍS PADILHA - Parece muito com o senhor, seu Paulo. É a cara do pai.

JOÃO NOGUEIRA - O nenê parece também com D. Madalena.

PAULO HONÓRIO - Não fala besteira, Nogueira! Meu filho é homem. Não tem cara de mulher!

RISADAS. O SOM DIMINUI GRADATIVAMENTE E AS LUZES APAGAM-SE SOBRE OS PERSONAGENS. BREVE PAUSA. LUZ. QUARTO DO CASAL.

PAULO HONÓRIO - (EMOCIONADO) Posso entrar, Madalena?

MADALENA - Claro que pode! (BREVE PAUSA) Seu filho, Paulo… Não é o nenê mais bonito, mais lindo do mundo?

PAULO HONÓRIO - (EMOCIONADO, MAL CONSEGUE FALAR) É… É sim… O nosso filho… O meu filho é o nenê mais lin… mais forte do mundo… (OBSERVA O FILHO COM CARINHO. SENTA-SE AO LADO DE MADALENA E BEIJA-LHE A MÃO) Me desculpe, Madalena… Eu sei que não tenho sido um bom marido… mas prometo que de hoje em diante…

MADALENA - (PÕE-LHE OS DEDOS NOS LÁBIOS) Paulo, queria te fazer um pedido.

PAULO HONÓRIO - Faça, Madalena, faça.

MADALENA - Vamos voltar a viver em paz… sem discussões, sem brigas… como quando a gente chegou a “São Bernardo”…

PAULO HONÓRIO - Isso é tudo o que eu quero na vida: viver em paz com você, sem dis-cussões, sem brigas… (QUEIXOSO) Mas é sempre você que começa, Madalena.

MADALENA - (ANIMADA) O que passou passou, Paulo. Vamos fazer o seguinte: eu juro e você jura. Eu começo primeiro. (SINCERA) “Prometo viver em amor e harmonia, com meu querido marido e meu adorado filho…”

PAULO HONÓRIO - (SINCERO) “Prometo viver em amor e harmonia, com minha querida esposa e meu adorado filho…”

AS VOZES DE AMBOS RESSOAM EM ECO, ENQUANTO A LUZ SE APAGA. CHORO DE CRIANÇA, QUE LOGO CESSA. PAUSA. LUZ. SALA DE JANTAR. PAULO HONÓ-RIO, D. GLÓRIA E MADALENA, SENTADOS À MESA, TOMAM CAFÉ DA MANHÃ. SILÊNCIO CONSTRANGEDOR, ENTRECORTADO PELO RUÍDO DOS TALHERES E

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SONS TÍPICOS DE AMANHECER CAMPESTRE. ÀS TANTAS, MADALENA QUEDA-SE PENSATIVA. PAULO HONÓRIO A OBSERVA.

PAULO HONÓRIO - (COMO SE PRETENDESSE PENETRAR NA MENTE DE MADA-LENA) Em que é que você está pensando?

MADALENA - Não estou pensando em nada…

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - (A SI MESMO, NUM RESMUNGO) Pode alguém ficar pensando em nada?…

O “CLIMA” PIORA. PAUSA. D. GLÓRIA SENTE NECESSIDADE DE DIZER ALGO.

D. GLÓRIA - Que dia bonito, não? (SILÊNCIO. ARRANJA UMA DESCULPA PARA SE RETIRAR) Ai, minha cabeça! Deu um estalo… A minha dor de cabeça já está começando… Com licença.

D. GLÓRIA RETIRA-SE. CONSTRANGIMENTO.

MADALENA - (TOM BAIXO) Paulo!… (UM POUCO MAIS ALTO) Paulo!

PAULO HONÓRIO - Você disse alguma coisa?

MADALENA - Disse.

PAULO HONÓRIO - E que é que você disse?

MADALENA - Disse o seu nome…

PAULO HONÓRIO - Ahn… (SECO) E o que você quer?

MADALENA - Conversar…

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - E o que é que você chama de “conversar”?

MADALENA - Conversar é… conversar.

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - Então vamos conversar.

MADALENA - Vamos.

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - Vamos conversar sobre o quê?

MADALENA - Qualquer coisa… conversar…

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - Vamos conversar…

SILÊNCIO. ENTREOLHAM-SE. CONSTRANGIMENTO AINDA MAIOR.

PAULO HONÓRIO - Comece você.

MADALENA - Melhor começar você.

PAULO HONÓRIO ESBOÇA DIZER ALGO. NÃO CONSEGUE. MADALENA IDEM. TERMINAM DE TOMAR CAFÉ EM SILÊNCIO.

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MADALENA - Mais um pouco de café?

PAULO HONÓRIO - Não, obrigado.

DE NOVO, ENTREOLHAM-SE CONSTRANGIDOS. PAUSA. MADALENA LEVANTA-SE E SAI.

PAULO HONÓRIO - (AMARGO) Não sei mais o que é pior: as nossas discussões, as nos-sas brigas… ou o nosso silêncio. (BREVE PAUSA) Eu me sinto só… Madalena se sente só… Então por que é que nós dois não nos enten… Impossível!… (LANCINANTE) Que inferno! (REFLETE)

A LUZ SE APAGA.

CHORO DE NENÊ, A PRINCÍPIO QUASE INAUDÍVEL, AUMENTA DE INTENSI-DADE.

PAULO HONÓRIO - (IRRITADO, GRITANDO) D. Glória!… Madalena!… D. Glória!… Madalena!

BREVE PAUSA. LUZ GERAL. SALA DA FAZENDA.

D. GLÓRIA - (ENTRANDO) Que foi, seu Paulo?

PAULO HONÓRIO - A senhora não está ouvindo, não? O Honorinho está se esgoelando! Vai ver o que o menino tem.

D. GLÓRIA - Estou com tanta enxaqueca que não me agüento em pé… Mal consigo abrir o olho. (SAI)

PAULO HONÓRIO - Velha parasita! Só serve para comer… (GRITA) Madalena! Mada-lena!… (IRRITADÍSSIMO) Madalena!

MADALENA - (VOZ, IRRITADA TAMBÉM) Que é, seu Paulo?

PAULO HONÓRIO - (COMENTANDO) “Seu” Paulo… (À MADALENA, FORA DE CENA) O menino está chorando, você não está ouvindo? (MAIS ALTO) Vai cuidar do teu filho, mulher! (O.T.) Duas inúteis, imprestáveis… (BREVE PAUSA) Um inferno! O meu lar virou um inferno dos diabos… (O CHORO AUMENTA. PAULO HONÓRIO REFLETE) O meu filho, o Honorinho, é um fraco, um fracote…

PAUSA. PAULO HONÓRIO COMEÇA A ENTRAR NUM PROCESSO ALUCINATÓRIO QUE VAI AUMENTAR GRADATIVAMENTE. OUVE VOZES.

LUÍS PADILHA - (VOZ “OFF”) Meus parabéns, seu Paulo!

PAULO HONÓRIO - O Padilha!

LUÍS PADILHA - (VOZ “OFF”) Parece muito com o senhor, seu Paulo. É a cara do pai.

PAULO HONÓRIO - (QUASE DELIRANDO) Cara do pai?!… Do pai, o Padilha!… (COM ÓDIO) O molambo do Padilha estava caçoando, zombando de mim… Ele vai ver co-migo! (BREVE PAUSA. AINDA CONSEGUE RACIOCINAR) Não, não, bobagem! Eu é que estou meio… meio atrapalhado, meu Deus!… Cada coisa que passa pela cabeça da gente… (CHORO DE CRIANÇA) Meu filho é um fracote mesmo… Fica por aí, se arrastando pela casa, derrubando as coisas, se machucando, chorando… (NUMA ANTEVISÃO) Um fracote comandando “São Bernardo”… Nunca! (BREVE PAUSA) Isso aí vai é virar bacharel de direito, deputado, político… (CHORO DE CRIANÇA) Nenhuma das mulheres da casa se interessa por ele… Madalena, agora, anda pelos cantos da casa, olhos vermelhos, chorando

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abafado… D. Enxaqueca nem se fale… Um inferno! (BREVE PAUSA. AFETUOSO) O único que se interessa pelo Honorinho é o Casimiro Lopes... (FOCO SOBRE CASIMIRO LOPES, QUE EMBALA O NENÊ) Meu melhor e único amigo… (OBSERVA-O) Tem gente que tem medo dele… Dizem que o Casimiro é uma fera… Pois eu digo que nunca conheci, em toda minha vida, alma mais pura, mais boa neste mundo de Deus… Casimiro, meu irmão, só você me entende… (A CASIMIRO LOPES) A coisa vai mal, Casimiro… De mal a pior…

CASIMIRO LOPES - (SEM ENTENDER, CUIDANDO DO BEBÊ) De mal a pior, seu Paulo…

DOIS FOCOS DE LUZ: UM SOBRE CASIMIRO LOPES QUE, EMBALANDO O BEBÊ, CANTA UMA CANÇÃO DE NINAR REGIONAL, E OUTRO SOBRE PAULO HONÓ-RIO, PENSATIVO. AS DUAS LUZES APAGAM-SE LENTAMENTE. O FOCO SOBRE CASIMIRO LOPES PERDURA POR ALGUM TEMPO MAIS. PASSAGEM DE TEMPO. A LUZ ACENDE-SE LENTAMENTE. PAULO HONÓRIO ESCREVE.

PAULO HONÓRIO - O ciúme é como a solidão: no começo é um quase nada… depois, rói a gente por dentro… (PÁRA DE ESCREVER) Quando reparei que estava perdendo Mada-lena, comecei a sentir ciúme dela, um ciúme terrível, quase incontrolável… (BREVE PAUSA. COM ÓDIO) Tive uma vontade doida de agarrar o molambo do Padilha pela goela, jogar ele pra fora de “São Bernardo”, na estrada, a pontapés… (MUDANÇA DE LUZ. TEMPO PRESENTE) Madalena sofre me vendo humilhar o Padilha e é isso mesmo que eu quero: que ela veja e sofra!… Piso nele como um verme… E o que é que Madalena tem com isso? (BREVE PAUSA) Será que a Madalena e o Padilha não?… (PÕE-SE A REFLETIR)

MUDANÇA DE LUZ. A AÇÃO CONTINUA NA SALA DA FAZENDA. MADALENA E PADRE SILVESTRE CONVERSAM. PAULO HONÓRIO ESTÁ PRESENTE, MAS SUA MENTE DIVAGA ATÉ QUE, NUM DADO INSTANTE, PRESTA ATENÇÃO NO QUE DIZEM.

MADALENA - … e é por isso, Padre Silvestre, que eu digo pro senhor que existe uma linha depois da vida da qual ninguém voltou para contar como é o lado de lá.

PADRE SILVESTRE - (COM CONTIDA CONTRARIEDADE) Então não estou enten-dendo mesmo a senhora… Me diga uma coisa: qual é, afinal, a sua religião, D. Madalena?

MADALENA - Não tenho nenhuma, Padre Silvestre.

PAULO HONÓRIO - (À PARTE) Madalena não tem religião?!… (IRRITADO) Absurdo! Nunca me disse nada…

PADRE SILVESTRE - (SURPRESO) A senhora não tem religião?!… (ABORRECIDO) Então a senhora não acredita em Deus?

MADALENA - Eu não disse que não acredito em Deus, mas que não tenho religião. É dife-rente.

PADRE SILVESTRE - Mas, afinal, a senhora acredita em quê?

MADALENA - Eu sou uma livre-pensadora, Padre Silvestre.

PADRE SILVESTRE - (SEM ENTENDER) “Livre-pensadora”?!

PAULO HONÓRIO - (TAMBÉM SEM ENTENDER, MAS À PARTE E CADA VEZ MAIS IRRITADO) “Livre-pensadora”?! Madalena é “livre-pensadora”! Que diabo!… Mais essa agora…

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PADRE SILVESTRE - (PENSATIVO) “Livre-pensadora”… A senhora então é “Livre-pen-sadora”… (BREVE PAUSA) Já ouvi falar em livre-pensador, mas em livre-pensadora… Em “livre-pensadora”, nunca.

MADALENA - (EXPLICATIVA) Padre Silvestre, “livre-pensadora” é a pessoa que, em ma-téria de religião, pensa livremente só aceitando…

PAULO HONÓRIO - (CORTA, AUTORITÁRIO, QUASE VIOLENTO) Padre Silvestre, a minha mulher… A minha mulher, não sei mais o que ela tem… Está é com minhoca, mi-nhoca, muita minhoca na cabeça!… A culpa toda é desses malditos livros que ela anda lendo escondida por aí…

MADALENA - (OFENDIDA) Eu não leio livro escondida.

PAULO HONÓRIO - (QUASE PERDENDO O CONTROLE) Não lê? Não lê? Não lê?… Está vendo só, Padre Silvestre?… A minha mulher, agora, está me chamando de mentiroso. (À MADALENA) Está me chamando de mentiroso, é?

PADRE SILVESTRE - Calma, seu Paulo, calma… A D. Madalena não chamou ninguém de mentiroso. A gente só estava conversando…

PAULO HONÓRIO - (NERVOSO) Estou calmo, estou muito calmo…

SILÊNCIO CONSTRANGEDOR.

PADRE SILVESTRE - (PIGARREIA E OLHA O RELÓGIO) Já é tarde… Nem senti o tempo passar e tenho muita coisa para fazer hoje… Com licença… Até logo, seu Paulo… Até logo, D. Madalena…

MADALENA - (FIXANDO PAULO HONÓRIO COM EXPRESSÃO DE CENSURA) Eu acompanho o senhor até a porta, Padre Silvestre. (SAEM)

PAULO HONÓRIO - (NERVOSO, ENSIMESMADO) Madalena não tem religião… Nem sei se acredita mesmo em Deus… (IRÔNICO) Minha mulher é “livre-pensadora”… (OBSESSIVO) Minhoca na cabeça… minhoca na cabeça… minhoca na cabeça… Minhoca! Minhoca! Minhoca!…

MADALENA ENTRA E ENCARA PAULO HONÓRIO. TAMBÉM ESTÁ IRRITADÍS-SIMA. TENSÃO.

MADALENA - Que papelão, hem, seu Paulo!… Me deixou morrendo de vergonha!

PAULO HONÓRIO - Essa é boa! Eu é que fiz papelão?! (EXALTA-SE CADA VEZ MAIS) A minha mulher diz a um padre, (FRISA) a um padre amigo da família ainda por cima, que não tem religião, que é livre-pensadora, que é não sei o quê, e eu, eu é que fiz papelão?! (GRITANDO) Eu é que fiz papelão, me responda!… Me responda, Madalena!

BREVE PAUSA.

MADALENA - (IRADA) Não tem resposta, seu Paulo!… Você não vai entender nunca, seu… (COM DESPREZO) Seu ignorante! Ignorante!

PAULO HONÓRIO - (QUASE APOPLÉTICO) Não se atreva a falar assim comigo, Mada-lena! Não se atreva!

MADALENA - (GRITANDO) Me atrevo! Me atrevo, sim! Seu bruto! Ignorante!

PAULO HONÓRIO - (NO AUGE) Madalena, você é minha mulher — minha mulher e está me desrespeitando!… Minha mulher me desrespeitando! É o cúmulo!!! (FECHA AS

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MÃOS, ESMURRA A MESA COM VIOLÊNCIA E DERRUBA UMA CADEIRA) Inferno! Minha vida virou um inferno! Um inferno!… Nem a minha mulher me respeita mais!… Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!

ALUCINADO, SAI EM DIREÇÃO À PLATÉIA. MADALENA, CHORANDO, DEIXA-SE CAIR SENTADA NUMA CADEIRA. A LUZ APAGA-SE LENTAMENTE SOBRE ELA, PERMANECENDO SOBRE PAULO HONÓRIO QUE “PERCORRE SEUS DOMÍNIOS” (PLATÉIA).

PAULO HONÓRIO - (UM TANTO INCOERENTE, REMOENDO-SE E RUMINANDO AS PALAVRAS) Quem era Madalena antes de me conhecer? Uma porcaria de professorinha, que ganhava uma miséria… Agora, que é proprietária de “São Bernardo”, a ingrata me desa-fia, investe contra mim, o marido dela!… Dei tudo, tudo, tudo pra essa mulher e ela nem reli-gião tem, (IRÔNICO) é “livre-pensadora”, não vai na missa… (OCORRE-LHE ALGO) Não vai na missa, como é que eu não tinha reparado?!…

REMEMORA. NUM PONTO QUALQUER DA PLATÉIA, LUZ EM FOCO SOBRE A VELHA MARGARIDA.

VELHA MARGARIDA - Meu fio, muié qui num tem religião, qui num vai na missa, tem coisa, tem coisa… tem coisa!

LUZ EM FOCO SOBRE A VELHA MARGARIDA DESAPARECE.

PAULO HONÓRIO - Mãe Margarida tinha razão: mulher que não vai na missa tem coisa!… (DESCONFIADO) Madalena tem coisa, claro!… Por que então não vai na missa?… Eu tam-bém não vou, não tenho tempo, mas eu sou homem e missa é mais pra mulher… (BREVE PAUSA) “São Bernardo” é minha fazenda… Minha!… As terras de “São Bernardo” são mi-nhas… Minhas!… Esses molambos são meus empregados… Meus!… Agora, Madalena, a minha mulher, até parece que não é minha… Coisa mais esquisita, meu Deus!… (PÁRA E LÊ UMA PLACA) “Escola Primária de São Bernardo”… Outro dia, Madalena me apre-sentou uma nota de seis contos: cartilhas, cadernos, livros, giz, lápis, armário, o diabo!… Ti-nha até globo terrestre!… Que é que molambo vai ver num globo terrestre?… (BREVE PAUSA) Madalena está é me dando um tremendo prejuízo: ela gasta muito, demais… (RE-FLETE) “Demais!”… Tem gente demais em “São Bernardo” fingindo que trabalha!… Isso aqui virou cabide de emprego… Esses molambos são uns preguiçosos, uma cambada de va-gabundos!… Vou começar a despedir gente… Essa parasita da Dona Enxaqueca já me encheu de vez… Quem sabe se ela não vai embora com essa gente toda que vou despedir? (CALCU-LANDO) Vou começar mandando embora o chefe da olaria, cinco trabalhadores da oficina e o chefe da serraria… Tudo ferro velho!…

DEPARA-SE COM ALGO. DETÉM-SE E PASSA A OBSERVAR LUÍS PADILHA QUE DISCURSA A CASIMIRO LOPES E A ALGUNS COLONOS.

LUÍS PADILHA - (INFLAMADO) Léguas e léguas de terra, casas, açude, invernada, gado, tudo na mão de um homem só!… Vocês trabalham de sol a sol, na enxada, dando um duro danado, e o que é que vocês têm?… Nada! Vocês não têm nada na vida e, ainda por cima, ganham um salário de fome, de miséria! É por isso que o nosso país está precisando urgente de reforma agrária!… (BREVE PAUSA) Vocês sabem o que é reforma agrária?… (OBSERVA OS COLONOS, PARA SENTIR O EFEITO DE SUAS PALAVRAS)

PAULO HONÓRIO - (AOS GRITOS, CAMINHANDO EM DIREÇÃO A LUÍS PADI-LHA) Eu sei o que é reforma agrária, seu filho de uma égua!… É dar terra de graça pra gente que nem você, seu molambo!… Por que você não fez reforma agrária quando era dono de

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“São Bernardo”? Agora que não tem nada quer dar terra dos outros! (LUZ NO PALCO, DE ONDE MADALENA ASSISTE AO QUE SE PASSA) Vai embora já, seu parasita, lambaio, molambo! (AGARRA LUÍS PADILHA PELO PESCOÇO, SACODE-O E JOGA-O NO CHÃO) Está despedido, seu verme! Pé na estrada, cachorro! Vá pro diabo que te carregue, filho de uma cadela! (AOS DEMAIS) Que é que vocês estão olhando? Vão trabalhar, seus vagabundos, senão pé na estrada, atrás do Padilha! (OS COLONOS VÃO SAINDO. PAULO HONÓRIO CHAMA) Casimiro!

CASIMIRO LOPES VOLTA-SE PARA ATENDER PAULO HONÓRIO. LUÍS PADILHA, DESESPERADO, TOMA-LHE A FRENTE.

LUÍS PADILHA - Pelo amor de Deus, seu Paulo! Me perdoa!

PAULO HONÓRIO - Mal agradecido! Ingrato! Depois de tudo o que eu tenho feito por você… Fora!

LUÍS PADILHA - Era só umas teorias, coisas de livros… Eu lá quero saber de reforma agrá-ria, seu Paulo!

PAULO HONÓRIO NOTA QUE É OBSERVADO POR MADALENA.

PAULO HONÓRIO - (SEM CONVICÇÃO) Vai embora, vai…

LUÍS PADILHA - Pelo amor de Deus, seu Paulo. Eu não tenho pra onde ir… Me perdoa, estou pedindo!

PAULO HONÓRIO - (CEDENDO) Eu nem sei se você merece…

LUÍS PADILHA - Me dá mais uma chance, seu Paulo! Só mais uma!

PAULO HONÓRIO - Última chance, hem!… Mijou fora do penico, te entrego ao Delegado Firmino, que é meu amigo… Agora, some da minha frente!

LUÍS PADILHA - (BAJULADOR) Muito agradecido, seu Paulo!… Muito agradecido! (AFASTA-SE)

PAULO HONÓRIO - Você também está contra mim, Casimiro?

CASIMIRO LOPES - Eu contra o senhor, seu Paulo?! Só tava escuitando, nem entendi di-reito… Não sabia que era contra o senhor… (EM SURDINA) Se o senhor quiser, a gente dá um jeito no Padilha…

PAULO HONÓRIO - (CENSURANDO) Que é isso, Casimiro!… Vai trabalhar, vai. (TENDO “EXPLODIDO”, ESTÁ MAIS CALMO. SEGUE EM DIREÇÃO AO PALCO, REFLETINDO) Tenho de fazer as pazes com Madalena… Ela é minha mulher, que diabo!… Todo casal discute, briga, mas depois fica de bem… (DÁ COM MADALENA. ENCARAM-SE) Madalena, eu estava pensando se a gente…

MADALENA - (CORTA) Sempre humilhando o Padilha, hem, seu Paulo!

PAULO HONÓRIO - Pelo contrário, eu sempre ajudei o Padilha. (IRRITA-SE AO LEM-BRAR DO PADILHA) Ele é que é um ingrato, um molambo, não vale o prato que come… Agora mesmo peguei o Padilha falando pra essa gentinha sabe o quê? Reforma agrária… Que absurdo!

MADALENA - (REFLETINDO) Reforma agrária…

PAULO HONÓRIO - (COM DESPREZO) Reforma agrária… O Padilha agora é a favor da reforma agrária… Só rindo!

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MADALENA - Eu também sou…

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - O que foi que você disse, Madalena?

MADALENA - (IMPASSÍVEL, FRISANDO AS PALAVRAS) Disse que eu também sou a favor da reforma agrária… no Brasil.

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - (EXPLODE) O quê?!… Minha mulher é a favor da reforma agrá-ria?!… (GRITANDO, IRADO) Dar terra pra molambo! NUNCA!

Só se for pra molambo mijá e cagá em cima dela!… Mijá e cagá em cima dela!

MADALENA - (COM DESPREZO) Como você é grosseiro, bruto, estúpido!

PAULO HONÓRIO - (SEM OUVI-LA, VIOLENTO) Que é que você tem com o Padilha, mulher!

MADALENA - (SURPRESA) Não tenho nada, ora essa!… Que é que vou ter com o Padilha?

PAULO HONÓRIO - Ah! Não tem nada com o Padilha, mas concorda com o Padilha…

MADALENA - Concordo com a reforma agrária no Brasil, é diferente.

PAULO HONÓRIO - Que o Padilha também concorda… Concorda com o Padilha, mas não tem nada com o Padilha!… Pensa que sou trouxa?… (BERRA) Está me fazendo de corno, mulher? De corno? De corno? De corno?

MADALENA - (GRITANDO) Você está me ofendendo! Quem pensa que eu sou?

D. GLÓRIA - (ENTRANDO) Que aconteceu? Que aconteceu, meu Deus?

PAULO HONÓRIO - (SEMPRE GRITANDO) É a sua sobrinha: a Madalena está me cor-neando com o Padilha e eu descobri!… De corno ninguém me faz!… Ninguém me faz de corno!

D. GLÓRIA - Pelo amor de Deus, seu Paulo! Estão ouvindo lá fora…

PAULO HONÓRIO - (SOMENTE AGORA REALMENTE NOTA A PRESENÇA DE D. GLÓRIA) Que é que a senhora tem com isso, hem?… Se metendo em briga de casal, sua abelhuda!… Sempre enfiando o nariz onde não é chamada, sua… (VAI DIZER UM PALA-VRÃO)

MADALENA - Paulo, respeite a minha tia! Respeite!

PAULO HONÓRIO - Respeitar a sua tia… E alguém me respeita nessa casa?

D. GLÓRIA - Por favor, seu Paulo, calma… calma…

PAULO HONÓRIO - (DESCONTROLADO) Calma é a puta que te pariu!

MADALENA - (GRITANDO) Não admito que você fale assim com minha tia! Não admito! Não admito!

PAULO HONÓRIO - Falo! Falo! Falo!… QUERO QUE ELA VÁ À PUTA QUE A PA-RIU!… Querem saber de uma coisa? (BERRA) A senhora, a sua sobrinha, vocês duas VÃO À PUTA QUE AS PARIU!… Acharam ruim? Então vão pro inferno! Pro inferno!

MADALENA - (PERDENDO O CONTROLE) Grosseirão! Bruto! Louco! Miserável!

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PAULO HONÓRIO - Vão pro inferno, já disse! Pro inferno!

MADALENA - Melhor ir pro inferno do que viver com um assassino! (D. GLÓRIA PUXA MADALENA, A ESTA ALTURA TOTALMENTE DESCONTROLADA) Assassino! É isso mesmo: assassino!… Pensa que não sei?… (VAI SAINDO, PUXADA PELA TIA) Assas-sino!… Assassino!… Assassino! (SAEM)

PAULO HONÓRIO PERPLEXO, ABATIDO, DEIXA-SE CAIR NUMA CADEIRA. PAUSA.

PAULO HONÓRIO - (A SI MESMO) Assassino?!… Assassino, eu?!… Essa mulher ficou louca, meu Deus!… Assassino?!… Eu nunca matei ninguém. Nunca!… Fiz coisas ruins, re-conheço, mas matar, matar mesmo, nunca matei ninguém na minha vida!… (PENSATIVO) Nunca… nunca… E agora a minha mulher… Meu Deus!

QUEDA-SE ARRASADO. CASIMIRO LOPES ENTRA SEM NADA PERCEBER.

CASIMIRO LOPES - Seu Paulo, aquelas cinco vaca que tinham sumido a gente já encon-trou… O sinhô não precisa mais se preocupá cum nada… Num foram roubada, não…

PAULO HONÓRIO - (“DISTANTE”) Certo, Casimiro… Certo…

CASIMIRO LOPES - É que tinha um lado da cerca do pasto que… (CHORO DE NENÊ) Já volto, seu Paulo.

CASIMIRO LOPES SAI E VOLTA EMBALANDO O NENÊ. AOS POUCOS, PAULO HONÓRIO “VOLTA A SI”.

PAULO HONÓRIO - Que é que tem o menino, Casimiro? Está com fome?

CASIMIRO LOPES - (AMOROSO, BRINCANDO COM O NENÊ) Que nada, seu Paulo! O Honorinho deve ter ouvido a minha voz. Peguei ele no colo e parou de chorar na hora. (FAZENDO CHAMEGO NA CRIANÇA) Tava com saudade do Casimiro, hem, seu danadi-nho!

CASIMIRO LOPES SEGUE PARA SEU CANTO, EMBALANDO O NENÊ E CAN-TANDO-LHE UMA CANÇÃO DE NINAR. PAULO HONÓRIO OS OBSERVA.

PAULO HONÓRIO - (COMENTA) Como a Madalena é ingrata, meu Deus!… Chamar o Casimiro Lopes de assassino… O Casimiro é a única pessoa na casa que cuida do filho dela… (PENSA EM MADALENA) Mulherzinha ingrata!

DOIS FOCOS DE LUZ: UM SOBRE CASIMIRO LOPES, EMBALANDO O NENÊ E SUSSURRANDO-LHE UMA CANÇÃO, E OUTRO SOBRE PAULO HONÓRIO, AMARGO, REFLETINDO. O FOCO SOBRE CASIMIRO LOPES SE APAGA, PERMA-NECENDO O OUTRO SOBRE PAULO HONÓRIO QUE, COM O ÓDIO ESTAMPADO NO ROSTO, RUMINA ALGO. PAUSA. OUVE-SE A VOZ DE MADALENA EM ECO: “Assassino!… Assassino!… Assassino!

PAULO HONÓRIO - (COM ÓDIO) Madalena… Vadia!

A LUZ APAGA-SE SOBRE PAULO HONÓRIO E ACENDE-SE EM FOCO SOBRE MA-DALENA.

MADALENA - (EM DESESPERO, CHORANDO) Não agüento mais! Não agüento mais! Não agüento mais!

FOCO SOBRE PAULO HONÓRIO EM OUTRO PONTO DO PALCO. FALA SEM SE DI-RIGIR DIRETAMENTE A MADALENA.

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PAULO HONÓRIO - (IRADO) E eu é que agüento você me corneando o tempo todo? Pensa que não sei?… Me corneia com o Padilha!… Me corneia com o Nogueira!… Me corneia com o Gondim, quando ele vem aqui me pedir dinheiro, me chantagear… Me corneia até… até com o Padre Silvestre!… Éééé, com o Padre Silvestre!… (NUMA DESCOBERTA) E com o governador! Você anda me corneando com o governador! Não é à toa que ele ria, ria, ria, ria sem parar… Estava rindo de mim, da minha cara de corno!… É por isso que ele veio aqui três vezes sem mulher nenhuma… Não precisava, já tinha! (AOS BERROS) Já tinha! Já tinha! Já tinha!

A LUZ APAGA-SE SOBRE PAULO HONÓRIO E ACENDE-SE SOBRE MADALENA, COMPLETAMENTE ARRASADA PELO TORMENTO.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”. VIOLENTO) O Honorinho é um fracote! Não é meu filho! Não é meu filho! Não é meu filho!

MADALENA - Pare, pelo amor de Deus! Não agüento mais! Não agüen…

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”) De quem o Honorinho é filho, hem? Quem é o pai? Quem é o pai? Quem é o pai?

MADALENA - É você!… é você… você… Pare! Pare com isso!

PAULO HONÓRIO - (SEM OUVI-LA, NUM CRESCENDO) É o Padilha! É o Padilha!… Você disse que não tem nada com o Padilha, mas concorda com o Padilha, não concorda?… Ah, é o Nogueira! Safado!… Não, não, é o Padre Silvestre!… O Honorinho é filho de padre! Filho de padre! Claro que é: fracote desse jeito só pode ser filho de padre… (BREVE PAUSA) Sua puta!… Sua puta! Sua puta!

MADALENA - (COMPLETAMENTE EXAURIDA, FÍSICA E PSICOLOGICAMENTE) Não agüento mais… Não agüento mais… Não agüento… Chega… Chega… Che…

OS INSULTOS CONTINUAM EM ECO, ENQUANTO A LUZ APAGA-SE SOBRE MA-DALENA. ESCURIDÃO. SILÊNCIO. PASSAGEM DE TEMPO. LUZ. PAULO HONÓ-RIO, COM VISÍVEL ÓDIO, RUMINA. ENTRA MADALENA, MUITO ABATIDA, MAS FAZENDO VISÍVEL ESFORÇO PARA DISFARÇAR SUA PRECÁRIA CONDIÇÃO.

PAULO HONÓRIO - (SECO) Que é que você quer?

BREVE PAUSA.

MADALENA - Estou cansada… Muito cansada…

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - Eu também estou.

MADALENA - Vou viajar…

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - (ESTRANHANDO) Viajar pra onde?

MADALENA - (SEM OUVI-LO) O seu Nogueira trabalha muito bem, você não acha?

PAULO HONÓRIO - Éééé…

MADALENA - Merece um salário melhor…

PAULO HONÓRIO - Até que merece… E a viagem?

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MADALENA - Minha tia Glória fez muito por mim… Foi mais que uma mãe… A enxa-queca não larga dela, coitada, mas é uma pessoa útil, trabalhadora… Trate bem dela, por fa-vor…

PAULO HONÓRIO - Vou tratar bem dela, Madalena… Você vai viajar pra onde?

MADALENA - O Padilha…

PAULO HONÓRIO - (IRRITA-SE) É um inútil! Um molambo!

MADALENA - Ele é um ser humano… Por favor, pare de humilhar o Padilha…

PAULO HONÓRIO - Que rosário de pedidos, hem!

MADALENA - As minhas roupas você manda para a família de Mestre Caetano… Os meus livros você distribui para o Gondim, para o seu Nogueira e para o Padilha…

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - Afinal, para onde você vai?

MADALENA - Viajar… viajar… viajar…

PAULO HONÓRIO - Para onde, Madalena?

MADALENA - Longe… Bem longe…

BREVE PAUSA.

PAULO HONÓRIO - (COM VAGO PRESSENTIMENTO) Se você esperar um pouco, de-pois da safra, eu viajo com você… Eu também ando muito cansado… A vida inteira traba-lhando, dando duro… (REFLETE. ANIMA-SE) Quer saber de uma coisa? Nem vou esperar a safra. (DECIDIDO) A gente vai viajar juntos!… Vamos viajar juntos, você vai ver que mara-vilha… Vamos viajar, Madalena!… Viajar!… Rio de Janeiro, Argentina, Europa!… Vamos pra onde você quiser… Madalena, você escolhe o roteiro da viagem!

MADALENA - Já escolhi… Já escolhi…

PAULO HONÓRIO - Ótimo!… Boa idéia essa de dar suas coisas velhas… A gente compra tudo novo… Tudo novo!

BREVE PAUSA.

MADALENA - Estou muito cansada…

PAULO HONÓRIO - Então vai descansar, Madalena, vai descansar… Depois, vamos con-versar sobre a nossa viagem…

MADALENA - Muito cansada… (VAI SAINDO. VOLTA-SE) Ah, Paulo, ia me esque-cendo… (ENTREGA-LHE UM ENVELOPE E SAI)

PAULO HONÓRIO - (EUFÓRICO) Essa viagem vai ficar um pouco caro, mas vai valer a pena!… A gente vai se dar bem de novo, muito bem!… Precisamos mesmo viajar juntos, só nós dois, voltar a conversar, a fazer planos… (BREVE PAUSA) Vai ser um reencontro… O nosso reencontro! (REFLETE. AGORA ATENTA PARA O ENVELOPE. ABRE-O E LÊ.

MADALENA - (VOZ “OFF”) “Com amor, muito amor / E aquele toque de carinho… / E a certeza de que / Com você / a vida é um constante florescer / De sempre novas e sentidas es-peranças”… // (BREVE PAUSA) “Paulo, foi por causa desta poesia que eu vim para “São Bernardo”. Desta poesia e daquelas flores, se lembra? Madalena.”

PAUSA. PAULO HONÓRIO REFLETE…

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PAULO HONÓRIO - (DESCONFIADO) Por que diabo ela está me devolvendo a poesia?… Devolve a poesia e vai viajar… Viajar para onde? (REFLETE. DESCOBRE) “Viajar!!!”… Meu Deus!… Meu Deus!… (DESESPERADO) Madalena! Madalena!… Madaleenaaa!…

D. GLÓRIA - (GRITO “OFF”) Acuda! Acuda! Acuda! A Madalena, seu Paulo! Acuda a Madalena!

ALVOROÇO FORA DE CENA. PAULO HONÓRIO CORRE PARA ATENDER MADA-LENA. VOZES EM CONFUSÃO. CHORO.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”, GRITANDO) Madalena! Madalena, pelo amor de Deus, fale comigo! Madalena! Fale comigo, Madalena!

VOZES “OFF” - (MISTURADAS) Um médico! Um médico! Depressa! Um médico! Manda o Casimiro buscar o médico depressa! ETC.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”, DOMINANDO O ALVOROÇO) Madalena, fale co-migo, pelo amor de Deus!… Eu te amo tanto, tanto, Madalena… Não vá embora, estou te pedindo!… Me perdoa… Me perdoa, Madalena… (GRITO DE DOR) Madalena!… (VAI BAIXANDO O TOM) Fica comigo, Madalena, fica… A gente vai viajar juntos… Juntos!… Madalena! Madalena… Madalena… (CHORA)

OS SONS VÃO DIMINUINDO. A LUZ SE APAGA. SILÊNCIO… PASSAGEM DE TEMPO. DE INÍCIO, APENAS A LUZ VINDA DA BRASA DE UM TURÍBULO OSCI-LANTE, QUE SOLTA FUMAÇA DE INCENSO. PADRE SILVESTRE E UM COROI-NHA, EM PENUMBRA, ESTÃO NO PROSCÊNIO.

PADRE SILVESTRE - Oremus pro fidelibus defunctis. Requiem aeternam dona eis Do-mine.

COROINHA - (MANEJANDO O TURÍBULO) Et lux perpetua luceat eis.

PADRE SILVESTRE - Et fidelium defunctis animae per misericodia Dei requiescat in pa-cem. Amen.

COROINHA - Amen.

PADRE SILVESTRE - Que a alma da nossa bondosa irmã Madalena Silveira Honório des-canse em paz. Amém.

COROINHA - Amém.

PADRE SILVESTRE ASPERGE ÁGUA BENTA, COMO SE ESTIVESSE BENZENDO O CAIXÃO QUE DESCE À COVA. O FOCO DE LUZ SE APAGA, ACENDENDO-SE OU-TRO SOBRE PAULO HONÓRIO, NA SALA. ELE ESTÁ ENCOLHIDO NUMA CA-DEIRA, EM ATITUDE DE DESESPERADORA IMPOTÊNCIA. A SEU LADO, AGORA MAIS PRÓXIMO, O SOLIDÁRIO CASIMIRO LOPES. LONGA PAUSA. PAULO HO-NÓRIO LEVANTA-SE LENTAMENTE E OBSERVA “SEUS DOMÍNIOS”, DESTA VEZ COM PROFUNDA TRISTEZA.

PAULO HONÓRIO - (AMARGO, A SI MESMO) “São Bernardo”… Madalena… Filhos… Nada agora tem sentido… Nada…

CASIMIRO LOPES - (SOLIDÁRIO, MAS SEM ENTENDER) Nada tem sentido, seu Paulo… Nada…

PAUSA. MUDANÇA DE LUZ. SONS TÍPICOS DE MADRUGADA NO CAMPO. UMA CORUJA PIA. PENUMBRA QUE, AOS POUCOS, TORNA-SE UM POUCO MAIS NÍ-

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TIDA. PAULO HONÓRIO ANDA LENTAMENTE, AO ACASO, CURTINDO SUA SO-LIDÃO. NO SEU CANTO, CASIMIRO LOPES PICA FUMO.

PAULO HONÓRIO - (FALA A INTERVALOS ÀS VEZES MAIS, OUTRAS VEZES MENOS LONGOS. HÁ CERTA INCOERÊNCIA NO QUE DIZ) Foram-se todos: o No-gueira, D. Glória, o Padilha… (COM DESPREZO) Só me ficaram alguns molambos… Penso em reconstruir “São Bernardo” que agora está em abandono… (IRÔNICO) Dinheiro ainda tenho, senão o Gondim não aparecia mais aqui… (BREVE PAUSA) Mas será que vai valer a pena?… (PAUSA) Depois que perdi Madalena, o mundo virou de cabeça para baixo, as coi-sas ficaram confusas, muito confusas… Até o molambo do Padilha, sempre tão submisso, tão servil, se meteu numa revolução que estourou por aí… (IRÔNICO) Uma revolução que tem o Padilha como soldado vai é dar com os burros n’água… (SILÊNCIO. PAUSA) Que horas são?… Meia-noite, uma hora, duas… (PUXA SEU RELÓGIO DE BOLSO) Parado… Es-queci que nunca mais dei corda em relógio. Pra quê? Durmo e acordo na hora que bem en-tendo… (PAUSA) Sinto uma dor, uma dor tão grande aqui dentro. Tem hora que me dá uma vontade doida de… (NÃO COMPLETA) E o esquisito é que sei que não estou doente, nunca estive doente, sempre fui forte, (IRÔNICO) muito forte… (BREVE PAUSA. REFLETE) “São Bernardo”!… Pra que tudo isso? (NUM QUASE GRITO QUE LHE ENROSCA NA GARGANTA) Pra que tudo isso, meu Deus, se não tenho mais Madalena… a minha Mada-lena? (LONGA PAUSA. ANDA VAGAROSAMENTE AO ACASO E DIZ NUM TOM DE SUFOCANTE DESESPERO) Madalena!… (PAUSA) O corpo de Madalena repousa no ce-mitério de “São Bernardo”… Mas ela, ela mesma, a minha Madalena está em algum lugar de “São Bernardo”… (PAUSA. ANDA UM POUCO MAIS. PÁRA E DIZ NUM TOM DE PROFUNDA MEDITAÇÃO) A minha Madalena está em algum lugar de “São Ber-nardo”… ALGUM LUGAR…

QUEDA-SE PENSATIVO. PAUSA. CHORO DE NENÊ. CASIMIRO LOPES, PREOCUPADO, SAI PARA APANHÁ-LO. FOCO DE LUZ SOBRE PAULO HONÓRIO, MERGULHADO DENTRO DE SI MESMO. CASIMIRO LOPES VOLTA COM O NENÊ NO COLO, SEGUE PARA SEU CANTO. DOIS FOCOS DE LUZ: UM SOBRE PAULO HONÓRIO, MERGULHADO DENTRO DE SI MESMO, E OUTRO SOBRE CASIMIRO LOPES QUE CANTA, NUM TOM BAIXO, PLANGENTE E AFINADO, UMA CANÇÃO DE NINAR, ENQUANTO EMBALA HONORINHO.

CASIMIRO LOPES -

Dorme, Honorinho,

Dorme sussegado…

Dorme bem quietinho

E bem acomodado…

Si arguém ti acordá

E ti assustá,

O tio Casimiro

Vai tê qui matá…

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DISTANTE, A VOZ DE PAULO HONÓRIO SE SUPERPÕE À CANTIGA, EMBORA ESTA CONTINUE A SER OUVIDA.

PAULO HONÓRIO - (VOZ “OFF”, CHAMANDO NUM TOM BAIXO, DE IMPOTENTE E SUFOCANTE DESESPERO) Madalena!… Madalena!… Madalena!… Mada…

OS DOIS FOCOS DE LUZ VÃO SE APAGANDO LENTAMENTE… PRIMEIRO, SOBRE PAULO HONÓRIO E, POUCO DEPOIS, SOBRE CASIMIRO LOPES. NA ESCURIDÃO, POR SEGUNDOS AINDA SE OUVE CASIMIRO LOPES CANTANDO:

O tio Casimiro

Vai tê qui matá...

Vai te qui mata...

DEPOIS, SILÊNCIO…

F I M

Murilo Dias César

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