SARAU DA PALAVRA
PALAVRA: INSTRUMENTO E MATÉRIA-PRIMA DAESCRITA
- efeitos da internet sobre elaMaria Helena Martins
O séc. XXI entronizou a internet na vida dos letrados,
ainda que a duras penas, e democratizou a escrita
entre os iletrados. Uma conquista inquestionável.
A internet propiciou à palavra escrita um novo canal
que a faz disparar mundo afora, capaz de atingir
milhões de interlocutores em instantes. Feito foguete,
foge ao nosso controle, num pequeno descuido. Um risco.
Tais pressupostos indicam quanto a palavra tem seu
poder de expressão e comunicação potencializado; sua
importância fica redobrada. E, sendo cada vez mais
acessível, torna-se mais necessário saber como tratá-la.
Uma contradição.
Para perceber esse poder de expressão e comunicação
potencializado, é preciso ter consciência da linguagem
escrita. Não aquela, digamos, consciência ingênua da
maioria dos adolescentes, mas um conhecimento
efetivo de seu significado. Algo vivenciado talvez até
intuitivamente, de início, mas sedimentado pelo seu
exercício cotidiano. Isso vai indicando que a escolha das
palavras e as circunstâncias em que são usadas, mais
nossas emoções e nossos pensamentos vão compor
nosso discurso e dar nosso recado conforme
desejamos.
Por que tantos cuidados com a palavra ?
Que tipo de tratamento é necessário ?
Tornando-a mais elaborada e atraente?
mais transparente e acessível?
Isso aconteceria por conta da instantaneidade da internet?
Caberia pensar em modos de dominá-
la, ainda que o poeta Drummond alerte:
essa luta é em vão?
Ou nós que temos de domar nosso
trato com ela?
Essa tem sido a função principal de
escritores e escreventes.
Quem são eles?
De fato, escritores e escreventes têm suas funções ampliadas,
mas não facilitadas. É preciso usarem e trabalharem a palavra
com mais precisão.
Seria essa também uma tarefa dos escribas das redes sociais?
Mas quem são mesmo os escreventes e os escritores?
Essas denominações, na presente apresentação, se referem àqueles que escrevem e às características predominantes das relações deles com a palavra,
segundo Roland Barthes (1915-1980),
a quem homenageamos por seu centenário de nascimento, como um dos mais significativos estudiosos da linguagem no séc. XX.
Os escritores trabalham a palavra como matéria-prima da
expressão escrita, moldam seu texto à semelhança de um
escultor manipulando o mármore,
criam assim um universo ficcional ou poético.
Enfatizam o aspecto conotativo, a ambiguidade da palavra, a
polivalência semântica, permitem-se uma visão mais subjetiva.
Sua finalidade é criar literatura, o que será sua
perdição ou salvação.
Por quê ?
Porque, como escritores, têm na palavra escrita seu
compromisso consigo mesmos e com o mito do "bem-
escrever", como romancistas, poetas, dramaturgos. E
mais: o compromisso se estende a seus leitores, sem os
quais deixa de ter razão esse seu escrever.
Por que o mito do bem-escrever? Qual seu s igni ficado ?
Esse mito não é característico de outros tempos , da l iteratura cl ássi ca, romântica, parnasi ana, reali sta, m odernis ta.
O escrever bem tem si do marcado por cada época, cada corrente literária, cada gênero , cada autor destacado ...
Ass im, m esmo em nossos tempos - em que aparentemente não há m ai s parâmetros para esse bem -escrever -, cada escri tor tem seus referenciais , mas busca evi denciar seu própri o modus faci end i e ai nda quer ser bem lido . Ou seja, tende a moldar seu estilo ao que supõe sej a mais adequado a quem queira conquis tar como l ei tor.
O DIABO EXISTE E NÃO EXISTE
(...)De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no
moquém: quem mói no asp'ro não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei nesse gosto de especular ideia. O diabo existe e não existe. Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água caindo por cima dele, retombando; o senhor consome essa
água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso. (...)
Onde se identifica a escrita do escritor nessa passagem ?
Que escritor será esse? Estaria escrevendo assim para
agradar um certo tipo de leitor?
Por que Guimarães Rosa, embora considerado um dos maiores
escritores brasileiros é pouco lido e considerado um autor difícil?
Os escreventes usam a palavra como instrumento de
comunicação,
como veículo primordial da informação, eles enfatizam o aspecto
denotativo da palavra, seu significado primordial ou
dicionarizado, buscam a objetividade.
Eles se utilizam da palavra escrita com a finalidade de transmitir
conhecimento, ensinar, esclarecer dentro de certos
conhecimentos ou divulgar acontecimentos e ideias no âmbito
de sua atividade profissional. Para tanto buscam a clareza da
linguagem, do discurso. São jornalistas, intelectuais, professores
– geralmente bons comunicadores.
Exemplo de texto de escrevente jornalista.
2040 -Esse é o ano que os chineses agendaram para conquistar o planeta Marte
A missão chinesa surpreendeu o mundo, que estava esperando uma investida
tripulada somente em 2018, e provou que o país entrou para valer na corrida espacial
do futuro. Não faltam projetos. Um deles, anunciado na semana passada, dá conta de
uma estação espacial produzida 100% na China. O objetivo é "realizar experiências
científicas de grande escala" e criar uma "sólida base para utilização pacífica do
espaço e exploração de seus recursos". Essa estação ajudará o país a avançar em
projetos muito mais ambiciosos. Em 2017, por exemplo, a sua agência espacial
lançará missão com robô para a lua. Se tudo correr bem, em 2020 serão os próprios
taikonautas que pisarão o solo lunar. E o passo seguinte já está previsto: Marte, até
2040. (Revista Istoé, 08/10/2008)
Para Roland Barthes “nossa época ( séc XX) deu à luz um tipo
bastardo: o escritor-escrevente , que tem em si os dois papéis, de
escritor e de escrevente”.
Esse escritor–escrevente seria bastardo por incorporar aspectos de
ambos sujeitos, sem que sua escrita tenha uma identificação
definida, de imediato, pois ela apresenta características tanto de
subjetividade quanto de objetividade, que se assemelham ora a de
um escritor, ora a de um escrevente. Os ensaístas seriam os mais
representativos dessa categoria . Aliás, pode-se dizer que o próprio
Roland Barthes estaria entre eles.
Eu via muito bem que estavam em questão movimentos de uma subjetividade fácil, que acaba logo, assim que a exprimimos: gosto/não gosto: qual de nós não tem sua tábua interior de gostos, desgostos, indiferenças? Mais precisamente: sempre tive vontade de argumentar meus humores; não para justificá-los, menos ainda para preencher com minha individualidade a cena do texto, mas, ao contrário, para oferecê-la, estendê-la, essa individualidade, a uma ciência do sujeito, cujo nome pouco me importa, desde que ela alcance (o que ainda não está decidido) uma generalidade que não me reduza nem me esmague.
Roland Barthes. Roland Barthes par lui-même.
Exemplo de texto de escritor-escrevente ensaísta
Pseudo escritores e escritores–escreventes
Muitos buscam transpor seus escritos na rede para livros
impressos. A fantasia de "palavras ao vento" ou ao sabor da
instantaneidade da web atrai pelo aparente facilitário da
expressão e a complacência da tela. Mas é próprio do ser humano
o desejo de ser (re)lembrado, de deixar-se ficar e de deixar sua
marca. Ainda que ela acabe ignorada num vão de biblioteca ou
na penumbra de um sebo.
Cerca de 10 anos para cá, Facebook, Twitter, Blogs, as redes
sociais, enfim, são magnânimos ao acolher tudo que neles
queiram publicar. Mas depois da liberdade quase total, há
escribas da internet que estão buscando um diferencial, uma
maneira de seus escritos serem menos transitórios, de tornar sua
linguagem menos rasteira. Ronda esses cuidados um desejo de
escapar do virtual e encontrar o aconchego das páginas de um
livro.
O livro redivivo
Há quem começou a escrever na internet e já está publicando
livros. Não os ebooks. Ocorre um movimento curioso, na
contramão de previsões pessimistas quanto ao futuro do livro
convencional diante da invasão tsunâmica da internet.
Parece haver um desejo de superar a transitoriedade, fixando os
textos num suporte durável.
O preço dessa passagem é alto.
Não só porque a editoração e impressão de um livro seja cara,
mesmo com toda a informatização desses processos. Mas, feito
o livro, como levá-lo até o leitor? Aí começa a via sacra do novel
autor. O gosto especialíssimo de sentir entre as mãos a sua obra
pode amargar. Mesmo (que ironia!) recorrendo à web para
divulgá-lo...
Os autores internautas assumidos
O exercício da escrita na internet pode ir se refinando e afinando-se com o meio virtual de modo a construírem um casamento feliz. Harmonia seria a palavra adequada para essa relação.Então encontramos aqueles dedicados aprendizes da linguagem internética, de suas características . Eles vão dando ao seu jeito de escrever – certamente com qualidades próprias - um toque que torna o possível superficial e óbvio, tanto no vocabulário como no conteúdo textual, em algo a mais que impregna seu escrito de um sabor original, muito atraente.
A autora, que prefere ficar no pseudônimo - Dolce Vita, é uma perfeita adepta da internet como seu veículo de expressão e comunicação, ainda que sua farta produção use múltiplas linguagens, trabalhe com vários gêneros de escrita e diferentes suportes e veículos. Detenho-me no que caracteriza como narrativas curtas. Minicontos é como esses textos estão sendo chamados. Sem dúvida contam uma história em poucas palavras, criam um clima de modo a deixar o leitor em suspenso. Até porque não raro surpreendem pelo inesperado: um ensaio de sorriso sede espaço à reversão de expectativa, diante de um anticlimax.Um estilo que se apropria de características formais típicas da internet, com um humour super refinado, vem ao encontro da curtição ligeira do leitor internauta. Deixando um rastro de qualidade literária.
Encerro esta apresentação passando a palavra à Dolce Vita, que certamente fará ter valido a pena chegarmos até aqui.
DUAS MULHERESA primeira mulher vivia alegre porque o marido adivinhava tudo que ela queria. A segunda, justamente, por ele nem desconfiar. A MULHER INSATISFEITAEscrevia cartas imaginárias, e ainda reclamava nunca ter recebido resposta. O DESILUDIDO― Eu te amo.― Vai passar.
E ASSIM NASCEU UMA MULHER MASOQUISTAIngrid Aparecida estava tão carente que passou a confundir beliscão com carinho. O PEDIDO― Faz uma cara feliz, mãe.― Por quê?― Pra variar um pouco...
SEM PONTO NEM VÍRGULADe tanto fazer discursos, morreu falando com as paredes.
Dolce Vita ( http://www.dolcevita.prosaeverso.net/)