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22 Perspetivas Fevereiro 2016

SaúdeServiço de Angiologia e Cirurgia Vascular do Hospital de Santa Marta

Um serviço pioneiro que se mantém na vanguarda

Começando por nos dar uma breve

definição daquele que é o seu trabalho

de uma vida, diz-nos que a Angiologia

e Cirurgia Vascular “é uma especiali-

dade médico-cirúrgica, que estuda os

vasos sanguíneos e linfáticos, fazendo

o diagnóstico das doenças que lhes di-

zem respeito e tratando-as, procuran-

do a recuperação dos doentes com pa-

tologias da circulação arterial, venosa

e linfática”.

Em 18 de junho de 1973, esta es-

pecialidade autonomizou-se da Ci-

rurgia Geral, nascendo neste serviço

onde o nosso entrevistado nos rece-

beu. Como refere, “foi este o primei-

ro serviço em Portugal com instala-

ções próprias e quadro próprio, quer

médico quer de enfermagem. O seu

primeiro diretor foi o Dr. Mendes

Fagundes, que foi o grande impul-

sionador do serviço, ao qual se se-

guiu o Dr. Armando Farrajota e,

mais tarde, o Dr. Santos Carvalho,

sendo eu o quarto diretor da sua his-

tória”.

Luís Mota Capitão ingressou

aqui, no internato de Angiologia,

corria o ano de 1978. Foi o quinto

interno da especialidade a aparecer e

orgulha-se de o ter feito num servi-

ço “com um enorme peso histórico”,

com “grande tradição no tratamento

destas doenças e também na forma-

ção de profissionais quer na área mé-

dica quer na área da enfermagem”.

Acerca desse peso histórico, convém

lembrar que, nas décadas que se se-

guiram, o serviço do Hospital de

Santa Marta manteve a responsabi-

lidade de ser um dos muito poucos

existentes no país. “Só nos últimos

dez anos é que esta especialidade,

que é altamente diferenciada, deixou

de ser praticada apenas em Lisboa,

Porto e Coimbra, tendo começado a

haver uma abertura para unidades

mais pequenas ”, indica.

A perceção que pôde ter ao longo

deste tempo resulta num testemunho

de inegável importância quanto à evo-

lução da prática da Cirurgia Vascular:

“Está muito distante da que existia na

altura. Está menos agressiva, mais ex-

pandida e a qualidade é muito diferen-

te mas temos que nos colocar no papel

dos pioneiros, aos quais devemos

imenso. Penso que deve ter sido muito

difícil, para quatro jovens médicos, ini-

ciarem uma especialidade oficial, so-

bretudo tratando-se de uma especiali-

dade de enorme complexidade, com

cirurgias muito difíceis, em que os re-

sultados por vezes não eram os espe-

rados. Se nos colocarmos no papel de-

les, percebemos que foram uns gran-

des heróis, muito corajosos e arroja-

dos, tal como foram também os

pioneiros no Porto e em Coimbra”.

Continuando, conta que, “ao assistir a

toda a evolução da Cirurgia Vascular”,

assistiu também “a cirurgias cada vez

mais arrojadas, feitas de uma maneira

menos agressiva”. De tal forma que,

“hoje, num serviço moderno como es-

te, 60% das cirurgias é por via endo-

vascular”.

Contudo, e relembrando que se tra-

ta de “uma especialidade médico-ci-

rúrgica”, afirma que o objetivo é “tra-

tar os doentes de maneira a não ter-

mos de os operar”. Para esse fim, “a te-

rapêutica médica das doenças

vasculares, nomeadamente arteriais,

também não tem nada a ver com o que

era, muito por via de um enorme de-

senvolvimento do ponto de vista da

indústria farmacêutica”. Outro fator

que concorre para tal tem sido “a pre-

venção dos fatores de risco (como o ta-

baco, a hipertensão e o consumo do

sal, a diabetes, a obesidade ou o seden-

tarismo) que, ao fim de 20 ou 30 anos,

modificou o panorama das doenças,

nomeadamente na arterioesclerose, e,

portanto, as lesões que hoje são trata-

das não são as mesmas da altura”.

“Nós sabemos fazer tudo”Como se conclui do que já nos foi di-

to, “hoje existe, de facto, uma compo-

nente endovascular da capacidade téc-

nica dos cirurgiões que não havia há

30 anos e que lhes permite resolver os

problemas de uma maneira menos in-

vasiva”. Respondendo adequadamente

à prática atual desta cirurgia, o serviço

do Hospital de Santa Marta mantém-

-se versátil: “Há serviços que não têm

a parte endovascular e há outros que

não têm a parte clássica. Nós aqui sa-

bemos oferecer tudo; se é para fazer

por via convencional, por via endovas-

cular ou por via híbrida, nós sabemos

como fazer e, portanto, oferecemos ao

doente aquilo que é o melhor para o

seu caso”.

Também na atividade de diagnósti-

co o serviço foi pioneiro, fazendo-o,

atualmente, tanto por meios não inva-

sivos (ecodoppler) como invasivos (ca-

teterismo). “Não perdemos controlo

dos diagnósticos das doenças vascula-

res quer arteriais, venosas ou linfáti-

cas”, diz, reforçando novamente que,

sendo uma especialidade medico-ci-

rúrgica, implica um acompanhamento

do doente em que “somos nós que o te-

mos na consulta, que fazemos o diag-

nóstico não-invasivo ou invasivo, que

operamos ou não e somos nós que fica-

mos com ele para o resto da vida”.

Quanto à estrutura que este traba-

lho pressupõe, o diretor faz-nos a se-

guinte descrição: “Em termos de capa-

cidade instalada, este é o maior serviço

da especialidade a nível nacional, sen-

do que, em recursos humanos, é equi-

valente aos do Santa Maria, do São

João e do Santo António. Temos uma

enfermaria de 34 camas, uma unidade

de cuidados intermédios vasculares

com quatro camas (para doentes com

uma necessidade de monitorização

quer operatória quer pós-operatória

mais vigilante) e uma unidade de dor

vascular também com quatro camas.

Temos também um bloco operatório

específico para a Cirurgia Vascular

(1500 a 2000 cirurgias por ano), com

duas salas que funcionam das 8 da ma-

nhã às 8 da noite, sendo que uma delas

recebe doentes urgentes sempre que

for necessário. A nossa urgência é re-

ferenciada, a única do país, e tenho

aqui dois médicos em permanência fí-

sica, 24 horas por dia, para a urgência

vascular. Para além disso, temos uma

consulta diária, que todos os nossos

O Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular do Hospital de Santa Marta foi o berço desta especialidade na medicina nacional. O diretor, Luís Mota Capitão, tem acompanhado a sua evolução desde há quase 40 anos e apresentou-nos o seu balanço.

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Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular do Hospital de Santa Marta

médicos fazem, a começar no diretor e

a acabar no interno do 4º ano. Faze-

mos cerca de 14 mil consultas por ano,

distribuídas por consultas de Cirurgia

Vascular Geral, consulta protocolada

de Úlcera Venosa da Perna, de follow-

-up de endopróteses, de tratamento de

aneurismas da aorta TEVAR/EVAR,

de acessos vasculares para hemodiáli-

se e também para malformações vas-

culares. Depois, dispomos também de

um Laboratório de ecodoppler, em que

realizamos cerca de 6500 exames por

ano, e, dois dias por semana (quarta e

sexta), temos uma sala de Hemodinâ-

mica partilhada em que fazemos cate-

terismos (350 por ano)”.

Todo este trabalho passa por Luís

Mota Capitão e pelos dois chefes de

serviço, João Albuquerque e Castro e

Maria Emília Ferreira, estando o ser-

viço dividido em duas equipas. Ao to-

do, o pessoal médico é composto por

19 profissionais, em que, para além

dos três já mencionados, contam-se

cinco assistentes hospitalares gradua-

dos, cinco assistentes hospitalares e

seis internos. Há ainda dois técnicos

de Cardiopneumologia e o quadro de

enfermagem, chefiado, na parte do in-

ternamento e consulta, por Paula Pi-

nheiro e, no bloco operatório, por Ana-

bela Madaleno. “Temos um corpo de

enfermagem que trabalha connosco

há bastante tempo e que é, de facto,

uma equipa impecável”, sublinha.

Papel formativoAcerca da atividade formativa que

aqui é desenvolvida, divide-se em pré-

-graduada e pós-graduada. Na última,

o serviço acolhe um interno por ano,

merecendo este elemento uma espe-

cial atenção: “Queremos que saiam da-

qui com uma capacidade de interven-

ção profissional muito alta e, de facto,

quando saem daqui, ficam sempre em

primeiro ou segundo lugar dos con-

cursos nacionais da especialidade. São

muito bem formados e é ponto de hon-

ra desta casa que toda a gente tenha

esse cuidado com eles”. Continuando a

esclarecer-nos acerca do trabalho que

é feito com os internos, explica que

“rodam entre as duas equipas que

compõem o serviço, ficando na equipa

em que está o respetivo tutor no últi-

mo ano. Todos os anos, os internos fa-

zem um exame que é semelhante ao de

um concurso de saída”.

A atividade pré-graduada passa pe-

las “aulas práticas e teóricas aos alu-

nos do 2º e 4º ano do Mestrado Inte-

grado em Medicina (cadeiras de In-

trodução à Prática Clínica e de Espe-

cialidades Cirúrgicas, respetivamente)

da Faculdade de Ciências Médicas da

Universidade Nova de Lisboa, que

passam aqui uma semana”. Esta parte

é “coordenada por mim, pelo Profes-

sor Frederico Gonçalves, que é o nos-

so primeiro doutorado, pelo Dr. Gon-

çalo Alves e pela Dra. Rita Ferreira”.

Quanto à investigação, é um serviço

que “tem uma tradição de fazer inves-

tigação já de longa data, ainda que nos

últimos anos esse trabalho tenha sido,

de facto, intenso, quer na investigação

clínica quer para programas de douto-

ramento”. É uma parte “muito acari-

nhada” junto deste grupo, estando fo-

cado em conseguir fazer parte de gru-

pos de investigação internacionais e a

contribuir com guidelines e ensaios

clínicos.

Constante atualizaçãoRetomando a ênfase já colocada na

importância deste serviço, Luís Mota

Capitão vinca que “só há um serviço

de Angiologia e Cirurgia Vascular no

Centro Hospitalar de Lisboa Central,

que é este. Há, portanto, uma enorme

responsabilidade porque este é um dos

grandes centros hospitalares do país e

porque temos que responder não só ao

Hospital de Santa Marta, como tam-

bém a São José, D. Estefânia, Capu-

chos e Curry Cabral”.

Atendendo a isso, aqui faz-se “tudo

quanto é do campo da Angiologia e

Cirurgia Vascular que se pratica na

Europa e no Mundo, porque houve

sempre a capacidade de estarmos na

crista da onda do que se faz a nível in-

ternacional”. Algo que já é genético

neste serviço é o facto de todos os in-

ternos, no fim do internato, irem para

o estrangeiro (o nosso interlocutor,

por exemplo, esteve em Londres). “No

4º ou 5º ano, vamos para centros que

evidenciem uma excelência prática em

determinadas áreas que nós queremos

trazer para Portugal. Todos nós te-

mos essa preocupação e é isto que to-

dos os internos fazem, durante alguns

meses. Acaba por ser algo que nos per-

mite não só ter uma visão aberta da es-

pecialidade, sobre como está a correr

no mundo, como também nos permite

ter laços de amizade com outros cirur-

giões estrangeiros, o que é importan-

te. Com isso, ganhamos conexões,

oportunidades para trabalho de inves-

tigação em grupo, parcerias, trocas de

impressões quanto a casos mais com-

plexos e temos pareceres de líderes de

opinião mundiais com muita facilida-

de”, elucida.

Panorama atualPartilhando connosco a maneira co-

mo observa a realidade da Angiologia

e Cirurgia Vascular, diz-nos que “a es-

pecialidade já não está naquela muta-

ção em que se encontrava há sete ou

oito anos, dado que a parte endovascu-

lar já está muito afirmada. Não há, de

facto, nenhum sítio da árvore circula-

tória onde não se consiga ir por via en-

dovascular”.

O que teme é, precisamente, que se

perca qualidade na abordagem con-

vencional, deixando o alerta: “As gera-

ções que vêm a seguir à minha não po-

dem perder a parte da cirurgia pesada

e clássica, porque continua a aplicar-

-se. Os riscos que há nesta especialida-

de é que as gerações futuras só façam

cirurgia endovascular. Depois, quando

é preciso usar uma técnica clássica têm

mais dificuldade, o que é o contrário

do que acontecia há 15 ou 20 anos. Lá

fora, há serviços que só fazem uma

coisa ou outra e o que é difícil é conse-

guir manter o equilíbrio nestes servi-

ços formadores. É daqui que saem es-

pecialistas para todo o lado, assim co-

mo acontece no Santa Maria, em

Coimbra, no São João ou no Santo An-

tónio, e, portanto, eles têm que sair da-

qui a saber atender de todas as manei-

ras. No nosso serviço, temos a particu-

laridade de dar capacidade formativa

em cirurgia clássica e em endovascu-

lar, assim como também na híbrida.”

Quanto à parte médica, está “con-

victo de que vai continuar a progre-

dir, por via da capacidade da indús-

tria farmacêutica para desenvolver

novas moléculas para o tratamento

de doenças como a arterioescleróti-

ca”. Também na componente pre-

ventiva, nota que, hoje, “toda a gen-

te percebe que os fatores de risco

cardiovasculares são verdadeiros.

Percebe que o tabaco é gravíssimo

não só a nível oncológico como tam-

bém cardiovascular; que a hiperten-

são destrói vários órgãos e que é

uma condicionante da circulação que

tem que ser controlada, daí que a

restrição de sal seja muito importan-

te; que a diabetes é uma pandemia e

que o seu controlo é vital para a so-

brevivência da humanidade”.

Continuando, vinca que, “felizmen-

te, os cirurgiões vasculares, apesar de

serem cirurgiões, perceberam muito

cedo que a doença vascular tinha uma

componente médica que era funda-

mental e nunca abriram mão disso”.

Encontrando, no seu serviço, um

exemplo de como isso se traduziu

num êxito, conclui a nossa entrevista

com os seguintes resultados: “Temos

14 mil doentes para consulta e só ope-

ramos dois mil, ou seja, não são mais

de 13% os doentes que nos chegam às

mãos para cirurgia”.

Serviço de Angiologia e Cirurgia Vasculardo Hospital Santa Marta do Centro Hospitalar Lisboa Central

Rua de Santa Marta, 50 • 1169-124 Lisboa • Tel. 213 594 000


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