Simbologias cruzadas em Angola
no sculo XVIII: o cisma antoniano de D.
Beatriz1
1 Comunicao lida na Universidade de Npoles, em Dezembro de 1994, no Congresso Portugal
e os mares: um encontro de culturas. Foi inicialmente publicada nas respectivas Actas e em
separata.
1. Reflexo sobre o estudo de uma forma de religiosidade nacional
Um artigo de Henrique Abranches, vertido captulo do livro Reflexes sobre cultura
nacional (Abranches, 1980, pp. 74-75), constitui (quanto saiba) a primeira principal
reflexo de um intelectual angolano directamente ligado ao MPLA sobre a religiosidade
popular em Angola2. Talvez o monolitismo ideolgico dos primeiros anos de
independncia, de um atesmo oficial, no estimulasse a realizao de pesquisas livres e
inovadoras sobre a religiosidade dos povos. Prximo como estava o tempo do
antagonismo contra as autoridades portuguesas e eclesisticas, tambm no se pensou
muito na relao da religiosidade popular angolana com a portuguesa e,
consequentemente, no se aferiu o grau de diferenciao e o peso poltico do
sincretismo religioso. preciso debruarmo-nos, ento, sobre os processos de
diferenciao nos contactos entre a religiosidade popular portuguesa e a angolana, bem
como sobre o respectivo envolvimento e simbolismo poltico j libertos do monolitismo
inicial.
Tomo como exemplo a figura da princesa do Soyo, D Beatriz Quimpa3 Vita,
personagem principal do que ficou na histria da Igreja africana conhecido como o
cisma antoniano do sculo XVIII.
1.1. O antonianismo
Eduardo dos Santos considera que o antonianismo precede a pregao de D. Beatriz
(Santos, 1969, p. 488)4. A figura imediatamente anterior a D. Beatriz seria Mafuta
Fumaria (ou Apolnia, segundo o capuchinho Bernardo da Gallo), que Ibrahim Baba
Kak diz chamar-se Matufa (Kak & Rouzet, 1976). Em 1704 Mafuta afirmou ter
encontrado a cabea de Cristo, deformada pelas maldades dos homens. Garantia
tambm demonstrando-se assim a profunda ligao entre a religio e a poltica no Kongo a indignao do prprio Cristo contra o estado de coisas a que se tinha chegado naquele potentado. Na sua viso, em que aparecia Nossa Senhora, pedia-lhe a Virgem que rezassem e invocassem a misericrdia divina, e que restaurassem a capital
do Reino.
1704 foi o ano em que se iniciou a pregao de D. Beatriz, pelo que Mafuta Fumaria
pode apenas ter sido um balo de ensaio da pregao da princesa. Os cronistas da poca parecem apresent-la como uma espcie de So Joo Baptista do mito, com a
diferena de que Mafuta sobrevive a Kimpa Vita: Adriano Parreira diz que Mafuta,
condenada morte pelo ntotela D. Pedro IV Nzanu-a-Mbemba, conseguiu fugir e levou
consigo um filho de Kimpa Vita e Barro, seu marido, chamado igualmente So Joo
Barro (Parreira, 2003, pp. 115-116).
A verso de Eduardo dos Santos fortemente ampliada por Antnio Custdio
Gonalves. Este autor, em Kongo: le lignage contre ltat (Gonalves, 1985), afirma que, com D. Beatriz, o antonianismo ganha nova fora e forma um tanto diversa. H de facto vrios sinais de antonianismos anteriores, o que se foi confirmando na
2 O autor retornou ao cisma antoniano sob a forma de romance em Misericrdia para o reino do
Kongo! (Lisboa, D. Quixote, 1996).
3 Tenho visto escrito assim (grafia colonial), ou Kimpa, ou Cimpa, ou mesmo Nsimba, conforme
a regra ortogrfica seguida pelos ensastas.
4 Religies de Angola, Lisboa, JIU, 1969, p. 488. Ele escreve Chimpa Vita.
bibliografia das ltimas dcadas (em particular a de J. Thornton). Se esta interpretao
for fundamentada, como julgo ser, ela refora uma das hipteses que procuro
desenvolver e que a de ter o antonianismo origem numa mescla, de crenas animistas
e crists, que recupera simbolicamente a figura do Rei D. Antnio I Nvita-a-Nkanga,
marqus de Kiva (tambm chamado manimulaza, de mwana Nlaza, o senhor de Nlaza5).
2. Resumo do mito e proposta de caminho
O esqueleto da narrativa referente ao cisma e protagonizao de D Beatriz simples e
pode, sem prejuzo, resumir-se aos aspectos mais pertinentes para a reflexo que
proponho.
Beatriz Kimpa Vita era chefe da aldeia de Tibii, da casa do Soyo tradicionalmente decisiva para a eleio do Rei do Kongo e pertencente sua linhagem. A partir de 1704
comeou a pregar ao povo e da sua pregao consistiam segundo parece afirmaes como a de que morria Sexta-Feira e ressuscitava ao Domingo (ao Sbado,
segundo outras verses); a de se encontrar durante o tempo em que estava morta com os anjos e os santos, muito em especial Santo Antnio (que ela chegara a afirmar,
segundo as verses, ser o segundo Deus e cujo nome tambm a designava a ela (Parreira, 2003)), e ainda So Joo (de quem teria dito que tinha tido filhos o que d outro sentido ao cognome do seu marido, So Joo Barro); afirmava tambm que, nos
cus, havia pequenos seres brancos abanando leques para lhe suavizarem o calor, seres
que sempre a rodeavam; ainda afirmava que Deus quer a inteno frase to sugestiva que se transforma no seu lema e no mote da orao que ensina aos discpulos;
acrescentava que Jesus Cristo era natural de S. Salvador, tal como as principais figuras
da Igreja adoptadas pelo cisma; tambm dizia que o povo branco era impuro consequentemente, cabia aos congoleses recuperar a pureza do cristianismo, para o que
era fundamental reocuparem a cidade de S. Salvador e reorganizarem decisivamente o
Reino do Kongo.
Os efeitos da sua pregao no se fizeram esperar: o candidato ao trono que ela apoiava
estava cada vez melhor situado para o ocupar, porque o povo seguia D Beatriz em
nmero cada vez maior. Por isso uma das faces rivais tentou prend-la, o que foi
conseguido; aps a sua priso, em Maio de 1706, ela foi interrogada por padres que
concluram pela acusao de heresia, condenando-a morte na fogueira. Pediria ento
5 D. lvaro I, nos anos 80 do sculo XVI, inclui entre os seus ttulos o de senhor dos sete reinos
de [...] Riamulaza. A rea na qual prosperava essa espcie de confederao monrquica ficava
a Este do reino do Kongo. Integrou-se na provncia de Mbata, que liderou a expanso do Kongo
para Este e que vinha do reino homnimo. Ao reino de Mbata se aliou o reino de Mpemba Kasi,
chamado a me do rei do kongo por ser o incio do reino; a aliana estabelecia que qualquer
das duas famlias podia eleger o futuro rei da outra nao. Mbata era, portanto, uma provncia
eleitora e candidata, colocando-se desde quase o incio no processo de formao do reino.
Quanto a Nlaza, era famosa pelos tecidos de rfia e pelos panos de palma, que serviam de moeda
de troca e de pagamento no exrcito portugus em Angola durante praticamente o sculo XVII.
No sculo XVII Nlaza era mencionada como Momboares, aportuguesamento de mu (prefixo
de classe para pessoa) e mbadi (sete). Nlaza era ainda o nome-ttulo de um dos sobrinhos de
Nimi-a-Lukeni que lhe sucede no trono (o 3. rei depois da aliana entre Mbata e Mpemba).
Informaes extradas wikipdia (http://en.wikipedia.org/wiki/Kongo_dia_Nlaza).
Manimulaza seria portanto o senhor dos sete reinos de Kongo ria Mulaza.
para morrer com o filho nos braos, o que ter sucedido, segundo alguns autores, mas
desmentido por Adriano Parreira. Aps a sua morte, na fogueira, com o marido, a 2 de
Julho de 1706, os discpulos acreditavam que ela voltaria para salvar e reerguer o Reino
do Kongo.
Quando um europeu ouve pela primeira vez falar nestes sucessos reage sorrindo
complacente e imaginando que D. Beatriz desconhecia os rudimentos da f catlica,
arrastando consigo um povo ignorante. Mas nenhuma de tais suposies parece
plausvel contra todas as aparncias que o condicionamento cultura europeia vestiria de evidentes.
Um antroplogo de formao religiosa percebeu muito bem o sentido social e poltico
do cisma antoniano, sobre o qual elaborou em Lovaina a sua tese de doutoramento.
Esse antroplogo, Antnio Custdio Gonalves, defendeu que a pregao de D. Beatriz
pode ser compreendida como dinamizao das funes sociais que detinham as
narrativas fundadoras e os ritos religiosos na tradio congolesa anterior ao contacto
com os portugueses. Dinamizao realizada com inteligncia por uma mulher que
percebeu que a linguagem crist era j inseparvel dessa tradio, para alm de
conveniente face aos condicionamentos polticos do espao-tempo em que vivia. A lio
de Antnio Custdio Gonalves parece-me indispensvel ao aprofundamento dos
significados que podemos extrair das narrativas acerca do cisma antoniano ou antonino.
Tomando-a como justificada, creio que possvel avanar um pouco mais na
descodificao da simbologia dos factos agora j no marcadamente sociolgicos. Algumas das sugestes aqui deixadas estavam, de resto, latentes em uma ou em outra
das obras que sobre o assunto publicou.
Ao iniciar a reflexo, defini trs aspectos fundamentais a levar em conta:
1. o de que a leitura do cisma ter de ser feita perspectivando-o como sincrtico; 2. a diferena entre uma religio centralizada pela escrita e outra essencialmente oral; 3. a diferena entre a religiosidade institucional e a popular.
A partir daqui vou pensar sobre o cisma e seus antecedentes vistos como o incio do
funcionamento de um sistema simblico peculiar no espao angolano: o congols
posterior chegada dos portugueses e introduo do Cristianismo de quando em quando em dilogo com o que, noutro plo da futura angolanidade, se espalhava a partir
do hinterland de Luanda, que nessa altura estava ainda em fase de consolidao,
justamente, como hinterland.
3. Escrita, mito e oralidade na religiosidade angolana
Quando foi adoptado no Kongo, o Cristianismo oralizou-se, dado que passou prtica
numa sociedade no condicionada por aquilo a que Goody chamou a lgica da escrita (Goody, 1987). A lgica oral no recorrendo fixao estrita das leis, das revelaes e dos acontecimentos permite inserir, modificar, esbater e apagar aspectos diversos, quer por uma adaptao s circunstncias, quer por uma evoluo no
pensamento sobre os temas envolvidos, quer, simplesmente, para se acumular mais uma
fonte de poder mgico.
Assim, a religio tradicional das culturas orais possui um corpo doutrinrio dinmico, o
qual lhe permite facilmente integrar outras mesmo que estas venham a ter um papel estruturante procedendo por saltos e no estando, como as religies da escrita, limitada pela fixao cannica (dada a ausncia de uma estruturao social a partir da
fixao escrita de regras estritas e descobertas comunitrias). Um bom exemplo dos
saltos por que procede a lgica da oralidade, acordada funo social das narrativas de linhagens, explorado por A. C. Gonalves, em Kongo: le lignage contre l'tat,
quando refere que a colocao de uma pessoa no seio da genealogia pode ser
modificada ao longo da vida, reflectindo a sua ascenso na comunidade.
Esta circunstncia, da oralidade pulsando fora da escrita como se de dois sistemas
separados se tratasse, obriga-nos a descodificar em crnicas diversas a progresso que
ter seguido a prtica no-escrita de uma dada vivncia religiosa e o discurso que a
oralizou.
Por vezes, a transcrio dos acontecimentos integra ou verte extractos do discurso oral,
permitindo-nos aceder imediatamente aos dados originais (nos casos em que a
transcrio foi fiel). Mas, como ser reconhecido, descodificar a partir de uma narrativa
literariamente organizada a progresso que ter seguido a prtica no-escrita de uma
dada vivncia religiosa e o discurso que a oralizou uma tarefa cheia de escolhos e cuja
concluso nunca se d cabalmente.
Um caso tpico de como o grau de influncia da oralidade no se descobre com a clareza
necessria sob a aparente evidncia que a tradio da escrita impe, o do mito
sebstico da morte de Ngola Kiluanji, ou da Rainha Nzinga. Apesar da escassez de
estudos realizados por autores nacionalistas, nenhum deles se referindo a este mito, ele
deixou marcas at nos escritores aparentemente menos predispostos a referirem-no.
Marcas a pedirem um estudo aprofundado, tanto no que respeita ao desaparecimento do
Rei, aps a batalha, quanto no que diz respeito ao regresso deixado em aberto por esse
desaparecimento.
Um dos militantes histricos do MPLA e do nacionalismo em Angola, o embaixador e
ex-governador Manuel Pedro Pacavira, ao escrever o que pretendia que fosse o primeiro
romance histrico angolano dedicado mtica figura da Rainha Ginga (Nzinga Mbandi) desenvolve o motivo que constitui a biografia poltica da Rainha, explorando-o com a preocupao de uma didctica prpria da mentalidade exaltada do
ps-independncia. O livro, pela circunstncia que acabo de expor, acentua com
facilidade excessiva passagens de anti-portuguesismo, como aquelas em que se acusa os
portugueses de terem apenas morto velhos, mulheres e crianas em todas as suas guerras
em Angola e de serem cobardes. Confundindo governos e povos, o autor afasta-se assim
da ideia de possveis osmoses espirituais entre angolanos e portugueses.
Insuspeito, por isso, quanto ao que vou dizer, o livro de Pacavira mostra no entanto
sinais da influncia do mito sebstico, por ele figurado em Ngola Kiluanji e nas Pedras
do Ndongo. Por ele e por toda uma tradio que o antecede.
Trata-se de um mito que em Angola ouvimos tambm relacionar com a fundao do
Reino do Ndongo. As pedras de Mpungo-a-Ndongo (Pungo Andongo) constituram
ainda um referencial mtico para os guerrilheiros que ali se entrincheiraram em 1961,
num episdio conhecido da luta pela independncia. fonte que de l mana se atribuem
igualmente poderes miraculosos. H quem diga que as pegadas encontradas na pedra
so do fundador do reino, ou da prpria Nzinga Mbandi. As tradies no so unvocas.
Pacavira, a pp. 119, no resiste a referir, numa das passagens interessantes do livro, a
verso popular do passamento do Rei: teria ele morrido, na verdade?... Um Ngola
daquele?... Filho de Ngola Ndambi! No, ele no podia morrer. E se tinha morrido
quem atestava lhe ter visto o corpo frio, quem?... O que pessoa nenhuma pudera negar
entretanto a verdade sobre aquelas pegadas que se vem em uma daquelas colossas
pedras negras do Ndongo. Pegadas de pessoas e pegadas de um co. No andava sempre
o Rei-Soldado com um co? Que dizia a este respeito o Katumua? O Katumua de que se
acompanha agora a filha do seu Amo? Que vira seu Ngola a se encaminhar para
Mpungo-a-Ndongo. E no quis ele o Katumua lhe acompanhasse. Nada mais. S isso.
A companhia do co no desaparecimento do Rei recorda-nos a viso da morte como
viagem que, j conhecida na tradio egpcia, passa para a Grcia, como muitos outros elementos religiosos e mticos (de que um dos ltimos e mais populares expoentes foi o
culto de side, havendo outros como o de Zeus Ammone que provam pelo sincretismo realizado a presena religiosa e mtica do Egipto nas culturas helnicas ou
helenizadas). No Museu Arqueolgico de Npoles h uma estela funerria oriunda da
col. Brgia (c. de 480 A.C., Inv. 6556), onde o defunto est precisamente representado
como um viajante e acompanhado por um co. Vrias outras ser possvel encontrar
tambm ao longo do planeta. Por exemplo o co, nas tradies americanas, guia o
homem na passagem do dia para a noite e da vida para a morte.
Ngola Kiluanji pintado no mito como quem parte em viagem, igualmente com o seu
co. O significado da palavra bingar, mais adiante referido, permitir-nos- confirmar a familiaridade da tradio com a ideia de que os Reis partem em viagem quando
morrem. Os mortos, no Kongo, so enterrados colocando-se-lhes, por cima da sepultura
(num hbito comum a vrias naes angolanas), os utenslios prprios do falecido, bem
como alimentos e leo de palma que tanto figuram a crena na continuao do morto como homo viator quanto servem para dar sorte na caa. A ideia de que o defunto, entre
outras coisas, caa (como qualquer homem nobre em muitos pontos do mundo), poder
estar tambm por detrs da figurao da partida de Ngola Kiluanji acompanhado pelo seu co.
A transcrio do desaparecimento sebstico do Rei mostra como a tradio oral era
conhecida pelos escritores que, no entanto, no referiam as suas fontes. A histria destas fontes , por sua vez, esclarecedora das enredadas malhas em que esto
envolvidas em Angola as diversas memrias orais e literrias. Ao contrrio do que
seramos levados a pensar, o mais provvel que a fonte principal do autor fosse a
histria colonial, que foi beber tradio oral directamente, ou atravs de outros
documentos coloniais. Este facto permite explicar parcialmente o miticismo transposto
para o extracto narrativo em causa.
A fonte colonial ainda mais provvel por se tratar aqui de sebastianismo. O
sebastianismo angolano (sem considerarmos agora a sua projeco popular nos reinos
do pas) recebeu uma forte contribuio dos cronistas da histria da colnia, que sempre
projectaram a imagem de D. Sebastio sobre poderosos e desafortunados Reis locais,
fosse por exorcismo, fosse por no poderem caracterizar o heri colonial como um
derrotado, fosse pela sugesto das realidades tratadas, ou pelo conhecimento de uma
angolanizao ao nvel popular do mito sebstico, ou de qualquer outro parecido com ele. Tal facto comprovado nos relatos sobre a batalha de Ambula e a morte
herica do jovem e impetuoso Rei D. Antnio do Kongo, de quem Kimpa Vita podia ser
ainda parente.
A questo central, que levara batalha de Ambula (a das minas de cobre), tinha j
surgido no reinado de D. Afonso I e foi-se gradualmente agudizando, at se tornar
declarado pomo de discrdia no tempo de D. Pedro II Afonso, que se recusava a
entreg-las, bem como a ceder algumas chefias integradas no Reino. J se tinha no
tempo consolidado no Kongo um sentimento de independncia e defesa dos interesses
prprios face ao territrio colonial de Angola (Luanda), sentimento de que D. Afonso I
(o mais catlico dos congoleses) dera tambm sinais. O esprito nacional, que ento se
revigorava, era estimulado por uma linguagem que recorda diz Gasto de Sousa Dias a mentalidade portuguesa antiga, as proclamaes de guerra dos Reis de antanho e o sentido da liberdade e da integridade dos Reinos. Quando D. Antnio Manimulaza parte
com o seu exrcito para a batalha de Ambula, com a imprudncia da sua juventude, que
no teria sabido substituir a manha e a velhice do pai (D. Garcia II), ele representa todo
este sentimento nacional congols que a Histria do Reino de Portugal ajudara, sem
querer, a estruturar na sua forma recente por vezes com a contribuio de cnegos e letrados europeus, outras vezes com a firme contribuio dos cnegos filhos da terra.
A idade e o mpeto com que D. Antnio parte para a guerra sugerem desde logo uma
proximidade com a biografia do Desejado portugus, mas a sua morte que ir permitir
a projeco sobre ele do mito sebstico. O retrato de D. Antnio aproxima-se, nesse
ponto, do de Ngola Kiluanji e do de D. Sebastio. Como sucedera com o relato sobre a
morte de Ngola Kiluanji, a figura que estruturalmente se mitifica prxima de D.
Sebastio a do monarca africano e no a de um heri colonial (que podia fazer parte
da elite culturalmente crioula de Luanda). Mas se, no primeiro exemplo (o de Nzinga
Mbandi), se trata de uma tradio popular angolana aproveitada por um escritor
angolano (ainda que entre eles surja a crnica colonial), agora a verso sebstica do
avano de D. Antnio Manimulaza para o seu passo derradeiro vai ser directamente
construda pela prpria histria dos colonizadores. O resumo dos relatos que, j no
sculo XX, fez sobre tal batalha Gasto de Sousa Dias, suficientemente curto e
elucidativo, no que a este aspecto concerne. Escreve ele:
O rei enfurece-se. Num mpeto de raiva, le mesmo que, embraando uma adarga e armado de
espada cortadeira, se cerca da melhor nobreza do Kongo e se arremessa para a frente,
atirando-se s cegas para o emmaranhado da peleja.
Em volta dle, na confuso da refrega, desenha-se um agitado redemoinho de corpos em luta:
mal ferido por uma bala perdida, o rei tombara por terra e tentava erguer-se raivosamente,
descrevendo com a espada, em torno da cabea, verdadeiros crculos de morte. Para esse ponto,
onde a juventude congolesa se batia hericamente em defesa do seu rei, converge por instinto o
fogo do quadrado.
E, de repente, um quilamba dos nossos, que conseguira aproximar-se do rei ensangentado,
vibra-lhe um golpe rpido e certeiro, fazendo rolar pelo cho a sua orgulhosa cabea! 6
Se substituirmos a conotao propositadamente negativa que o autor incute s aces de
D. Antnio do Kongo por uma outra positiva se colocarmos, por exemplo, herosmo onde est raiva e heroicamente onde est raivosamente podemos utilizar esta passagem para descrever o fim de D. Sebastio no Norte de frica.
E, tal como para o caso portugus, tambm o desenlace fatal fora prognosticado na
capital do Reino (S. Salvador, para o exemplo em causa), registando-se vaticnios
vrios: primeiro aparecera uma
6 Gasto de Sousa Dias, A batalha de Ambula, Lisboa, Museu de Angola, 1942, p. 48.
quantidade de pssaros negros muito grandes e medonhos, que assombravam a todos os que os
viram, por no serem aves conhecidas, nem daquela nao nunca vistas! Isso para alm do
cometa, que durou muitas noites, com a cauda como azorrague, que todos os fidalgos daquela
crte e gente principal, a quem no falta juzo, vaticinaram que havia de haver naquele reino
um grande castigo, e principalmente por estarem mui esquecidos daquela cristandade antiga
que naquele reino tinha havido
segundo assevera Cadornega (Cadornega, 1972).
S faltava que D. Antnio, como o Ngola de Pacavira ou D. Sebastio, tivesse tambm
desaparecido. Justamente para evitar a criao desse mito, os portugueses fizeram desfilar pelas ruas de Luanda a sua orgulhosa cabea. No entanto, estou convicto de que foi a sua morte que veio possibilitar a emergncia de um mito e rito fundamentais
inseridos no cisma e a que me refiro adiante.
Como se v pelos trs relatos citados (o de Pacavira, o de Gasto de Sousa Dias e o de
Cadornega), difcil sabermos onde acaba a oralidade e onde comea a lgica da escrita, ou saber at que ponto a escrita instrumentaliza a oralidade. No fcil tambm deslindarmos o que portugus e o que congols a, nem separarmos o que
catlico do que animista. De qualquer modo h um caminho da oralidade para a
escrita. Nesse aspecto, as narrativas de D. Beatriz sobre as experincias msticas que
teria vivido fazem o percurso contrrio: integram-se na lgica de uma oralidade que
aprendera a instrumentalizar a religio escrita, parecendo partir da escrita (da Bblia e da
bibliografia catlica) para a oralidade. Mantendo-se na esfera da oralidade,
compreensvel que ela pudesse operar por saltos, que geravam necessariamente afirmaes herticas na ptica do cristianismo institucional. Isso explica por que pode
ela situar no Kongo as figuras patronmicas adoptadas pelo cisma, motivada como
estava pelo funcionamento social das narrativas genealgicas no Reino.
3.1. Religio institucional e religiosidade popular
A oralizao do cristianismo letrado no se deve somente pregao dos missionrios
que, na maioria do territrio congols, no seria to frequente quanto em So Salvador. Ela deve-se tambm aos incontrolveis e incontornveis contactos entre
comerciantes urbanizados e pombeiros, de um lado, e, do outro, os povos mais distantes
de S. Salvador, Luanda e Benguela. Isso remete-nos para a relao da religiosidade
popular com as prticas institucionais e para a relao entre religiosidades populares de
origem diversa.
Trata-se de uma distino complementar da dicotomia oralidade-escrita, porque pelo menos neste caso a religiosidade popular escapa lgica da escrita propagando-se oralmente. No exemplo concreto de contactos comerciais, no temos maneira segura de
saber o que ter passado de Portugal para Angola, ou Kongo, e vice-versa.
O intercmbio religioso ao nvel popular era completado por outro tipo de propagao,
tambm sustentado sobre as condies da oralidade: o que se consumava atravs de
homens que aprendiam com os Padres os rudimentos da f catlica e depois se dirigiam
de novo para as suas terras, fazendo as vezes dos eclesisticos durante o longo tempo
em que eles no se deslocavam l. H queixas de missionrios sobre homens desses que
exploravam economicamente os seus conterrneos, ou seja: que se achavam no direito
de ter as benesses dos feiticeiros, ou as ddivas da Igreja, uma vez que detinham o saber
e o poder prprios dos padres.
Significa isso que o religioso catlico era colocado pelas comunidades locais na
categoria do feiticeiro tradicional, ocupando o lugar simblico normalmente reservado
quele. O que, por si s, constitui j um princpio de heresia. Atente-se na opinio de
Antnio Brsio (Brsio, 1969, p. 351)7:
[] o Cristianismo essencialmente adoptado como fonte de ngolo, isto , de poder. (...)
acrescentar um poder novo ao poder antigo, sem que se possa falar de uma verdadeira renncia
a este
3.2. Francisco Kazola
A primeira heresia de que tenho conhecimento no Kongo, ou em Angola, centra-se
precisamente numa figura deste recorte. Trata-se de um obscuro profeta do princpio do
sculo XVII (cerca de 1632, segundo o relato do missionrio Pero Tavares)8. De seu
nome Francisco Kazola, homem da regio do Bengo (prximo de Luanda), dizia-se
filho de Deus e as suas prticas revelavam a assimilao da doutrina catlica em
convivncia original com ritos animistas locais. sintomtico o retrato feito por Pero
Tavares, segundo o qual o nosso santo era inteligente como um portugus e tinha antes aprendido com os padres os ditames da religio. Assim que chegava a uma
povoao mandava erguer quatro casas: uma para dormir, uma para o bom tempo, outra
para a chuva e outra para as curas. Pregava tambm contra a abstinncia nos dias
previstos pelos missionrios, realizando milagrosamente o aparecimento de comida e
bebida nas casas das pessoas sem vveres antes de as visitar. A sua pregao foi
considerada hertica pelos padres e, em conformidade com tal atitude, o Rei do Kongo
(onde pregava) veio a persegui-lo tendo ele que se refugiar na terra-me. Segundo Adriano Parreira foi mandado prender pelo padre Jernimo Vogado, comissrio do Santo Ofcio da Inquisio em Luanda. Foi o padre Pero (Pedro) Tavares que o prendeu.
Dois aspectos nos interessam neste caso:
- o nvel que atingiu o intercmbio entre a religiosidade europeia e a africana;
- o facto de as instituies (eclesistica e real) se unirem contra uma manifestao da religiosidade popular.
7 Nota-se nesse posicionamento a influncia de Balandier (cf. p. 357).
8 Pregador e missionrio portugus que viveu muitos anos em Angola, onde ganhou fama junto
aos povos circunvizinhos da capital. Chegou colnia em 1619 e partiu em 1634, doente. Foi
tambm professor de Latim no Colgio da Companhia de Jesus em Luanda.
O aparecimento miraculoso dos alimentos e das bebidas, bem como as curas, associados
pregao contra a abstinncia nos dias previstos pelos padres, realizam narrativamente
cpias da vida de Cristo segundo os Evangelhos, que multiplicou os pes, e que curou
em dias em que tal no era previsto9. Na religiosidade popular portuguesa h um mito
que igualmente prev a gratuitidade dos alimentos e bebidas e o fim das abstinncias, ou
seja, a realizao plena do mundo. Tendo origem nas profecias de Joaquim de Fiore
(Joaquim de Flora), tal mito ganha realidade, segundo Antnio Quadros, no reinado de
D. Diniz e D. Isabel (Quadros, 1999), que pareciam agir como quem estivesse a iniciar
a Terceira Idade aquela em que tudo seria gratuito, abolindo-se o trabalho e o castigo pela incorporao e realizao plena do Esprito Santo. O famoso milagre das rosas
devia mesmo ser reinterpretado luz deste mito condutor.
O mito portugus da Terceira Idade permitia, portanto, conceber que, pela fora do
Esprito, se supriam as deficincias do corpo e incorporava-se o Cu na terra. A
popularidade de tal mito facilmente o transporia para Angola como o levou para os Aores e o Nordeste do Brasil, com os cultos do Esprito Santo tornando-se presente na heresia de Cazola, que se apresentaria ento como possuidor da fora mgica referida
pela religiosidade dos estrangeiros como prpria da realizao plena do mundo. Isso
decerto lhe traria, em face do seu povo, um prestgio superior ao dos prprios
sacerdotes10, ainda por cima familiar, na medida em que mesclado com mitos e ritos
locais.
As referncias heresia de Kazola (como a outras), so porm escassas, pelo que no
podemos aprofundar aqui a sua comparao com elementos mticos da religiosidade
popular portuguesa, nem sequer comprovar o j dito.
A condenao do profeta ilustra, porm, a unio de duas instituies (a Igreja e o Reino)
contra uma vivncia popular e profundamente marcada pela oralidade. Como veremos
no exemplo a seguir, a instituio real, no Kongo, nem sempre combatia a religiosidade
popular. O facto de aqui o ter feito pode ser devido falta de controlo que a Corte
congolesa podia exercer sobre a heresia e no apenas convenincia em estar de boas relaes com a Igreja. Esta hiptese importante, porque ela permite postular que
o Reino congols se apresentava como elemento intermdio entre a religio institucional
e a popular, aproximando-se de uma ou de outra apenas quando visse nisso vantagem.
O canal de comunicao entre a corte do Kongo e o seu povo permitia, como vamos ver,
esse aproveitamento sem que fosse posto em causa provadamente o seu catolicismo. A
monarquia congolesa comunicava com o povo atravs da palavra reproduzida
oralmente, mesmo quando as ordens reais estavam escritas num edital. Isso teve duas
consequncias, a reter: levou para a oralidade as marcas das declaraes reais s
9 Contrariamente ao que se podia pensar, essa pregao no surge associada magia, pois os
curandeiros tradicionais do Kongo tambm impunham restries alimentao. V., a tal
propsito, o livro de Ferreira Diniz (Populaes indgenas de Angola, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1918, p. 84).
10 Cf. Antnio Brsio, O Problema da coroao e eleio dos reis do Kongo, e A. C.
Gonalves, Kongo: le lignage contre letat (Lisboa; vora, IICT; UE, 1985). A interpretao,
feita por este ltimo, da funo social que a mestiagem religiosa desempenha, numa sociedade
como a do Kongo dos sculos XVII e XVIII, permite igualmente elucidar o que teria sido a
pregao de Kazola, cujo nome ficou na tradio (oua-se a msica de Bonga: Dia Kazola nos
acompanha para podermos desfrutar e visite-se o Dicionrio de regionalismos angolanos de
scar Ribas.
vezes escritas por sacerdotes ou letrados portugueses e situou a Instituio Real no lugar de veculo de transformao do Cristianismo ortodoxo em religio popular quando
no havia mediao da escrita entre o dito e o transmitido.
3.3. D. Pedro II Afonso
Exemplar para o segundo caso o facto que se deu aps a morte do Rei D. lvaro III,
ao qual sucedeu D. Pedro II Afonso exaltado pelos jesutas como catlico e governante exemplar, cujo reinado foi principalmente perturbado pelas aces do
famigerado Governador Joo Correia de Sousa. Joo Correia de Sousa foi levado preso
para Portugal, em consequncia dos seus actos, apesar de inicialmente ter fugido para as
Amricas (passou pela colnia de Sacramento). Conseguiu reunir contra si a opinio
pblica de Luanda, do reino do Kongo, dos religiosos e mesmo de funcionrios do Rei
de Portugal. A histria variamente contada, por fontes coloniais e religiosas, pelo que
no vale a pena referi-la aqui.
A caracterizao ideal do Rei D. Pedro II Afonso, contraposta de Joo Correia
de Sousa, atinge talvez o seu cume numa Carta enviada por um religioso ao P.e Manuel
Rodrigues. A carta, annima, foi escrita para dar conta do seu reinado. Trata-se de um
documento apologtico, fortemente crtico em relao ao Governador Joo Correia de
Sousa, comparado aos Jagas e associado a eles. Traz-nos, seja como for, a viso do
outro lado, mais distante da autoridade colonial. O documento atribudo ao padre
Andr Cordeiro por Antnio Custdio Gonalves (Gonalves, 1985), que traduz a frase
escrita no incio do documento para francs, como se ela comeasse dizendo Carta de
Andr Cordeiro, missionrio ao Nsundi[...]. Consultei uma cpia dela mas o que l vi
foi s Cpia de hu [C?] q hu Conego do Kongo escreueo ao padre Manoel Roiz no
Coll. da Companhia de Loanda e o nmero da cota que nos dado por Gonalves o mesmo (BPE: CXVI/2-15, n 7). Na sua obra, nas pp. 40 (nota 7) e 41 (nota 12), diz-se
que a carta dataria provavelmente de 1624. Pelo que transcreve a cpia no final
(querer Deus siga as pizadas de seu Pae) deve ter sido escrita logo a seguir posse do
novo rei, que foi quinze dias depois da morte de D. Pedro Afonso II, ou seja, a 28 ou 29
de Abril de 1624. Uma vez que no refere a morte do Bispo D. Frei Simo de
Mascarenhas, nem a vinda do novo Governador, de certeza anterior a 13 de Outubro
de 1624 e, eventualmente, chegada deste Governador. De qualquer modo, essa
verdadeira apologia de D. Pedro II mostra como era possvel e real o aproveitamento,
por parte da corte congolesa, de recursos simblicos e polticos postos disposio
pelas autoridades religiosas portuguesas. Mostra como, conforme as circunstncias o
permitissem, era possvel ao Rei ter a Igreja do seu lado e, portanto, rentabiliz-la
politicamente.
Adiante vou referir ainda esta carta, mas agora passo a um verbo que tambm
nos vai ser til. Quando o Rei D. lvaro III morreu, os fidalgos diziam ao povo que ele
era ido a bingar. A frase vem escrita numa descrio da coroao de D. Pedro II Afonso, assinada por Andr Cordeiro (o que levou os investigadores a pensar na sua
autoria para a carta de que falei no pargrafo anterior). Em nota, esclarece o padre
Brsio que o termo significava pedir e, por extenso, rezar. O significado de pedir devia ser o mais forte, pois na mesma nota se afirma que, no estado do Paran, os
escravos utilizavam o termo para significar pedir de porta em porta, no por amor de Deus, mas com arrogncia e de forma impositiva. Esta generalizao de uso do termo
permite-nos aventar a hiptese de o pedir quando se morre (anunciado pelos fidalgos) ser sinal de autoridade. Ao fazerem-no substituam a ideia crist de morte pela ideia
tradicional que nos diz que a morte a partida para outra dimenso da vida, na qual
continuamos a cumprir as nossas obrigaes terrenas (da que os mortos estejam no
mundo dos vivos interferindo nele, e da tambm que sejam enterrados com alimentos e
utenslios, recordando o que acontecia no antigo Egipto e j desde o paleoltico): o rei
que tinha ido a bingar tinha ido falar com os antepassados em defesa dos sbditos e a sua personalidade perdurava, portanto, para alm da morte.
Dessa forma, uma instituio ligada oficialmente ao cristianismo fazia a transio deste para a religiosidade popular congolesa, que podia entender assim legitimadas
leituras mais prprias e heterodoxas perante a religio institucional. Ora parecida com estas a estratgia de D. Beatriz Kimpa Vita.
4. Miscigenao e perspectiva
No concernente ao primeiro dos trs aspectos inicialmente referidos, parece-me que
temos de considerar a miscigenao tanto ao nvel do objecto quanto ao nvel do sujeito
de estudo. Quer dizer que no apenas olhamos para um cisma que consiste na mistura de
elementos simblicos vrios, tentamos ns prprios olh-lo de acordo com o que, em
sentido lato, se podia chamar de perspectivismo ainda que no radical.
Dois procedimentos nos parecem de evitar: o visionamento do cisma a partir de uma
perspectiva ou teoria exclusivamente europeia; ou o visionamento do cisma procurando
somente encontrar, sob a capa dos seus meios expressivos, a manifestao cautelosa de
uma cosmoviso tradicional congolesa. Os fenmenos de que o antonianismo o
primeiro grande exemplo, que se repetem desde o princpio do sculo XVII at hoje,
tm uma dupla face que nos obriga a encararmo-los considerando sempre a
possibilidade de ter origem africana o que parece de raiz europeia, ou de ter raiz
europeia o que muitas vezes conotado com a tradio congolesa.
Um caso tpico o daquela parte da narrativa da experincia mstica de D. Beatriz em
que ela afirma estar no Cu rodeada por crianas brancas, que abanavam leques para lhe
aliviarem o calor. A interpretao de tais figuras como crianas brancas resulta
possivelmente inexacta por condicionamento cultura especfica do colector da histria.
O branco a cor da morte, dos cadveres, os quais so pequenos, e essas crianas
podem no ter qualquer espcie de relao com a raa branca ou a infncia, mas
representar os corpos dos antepassados acompanhando e assessorando a princesa
durante a sua ausncia do mundo visvel. E se D. Beatriz se referisse mesmo a crianas, era preciso levar em conta ainda outro factor: o esprito da criana que simboliza na Europa a inocncia mas tambm a impotncia (de que a etimologia de
infncia revela um dos aspectos) em princpio um esprito bom, mas pode ser um dos mais poderosos em algumas das tradies orais angolanas (como sucede com o
Camiam entre os ovimbundo (Diniz, 1918, p. 366)).
Outros exemplos h, na histria de Angola, que nos fariam incorrer no erro contrrio.
Porm, mais do que citar exemplos interessa aqui definir os conceitos operatrios que
nos faltam para nos aproximarmos do cisma e as cautelas a tomar.
A perspectivao do nosso objecto de estudo como hbrido no evita a distino entre o
conceito de estruturante e o de estruturado termos que o estudo dos crioulos conhece j no que s lnguas se refere. Por sua vez, o perspectivismo ou relativismo que a cada
passo adopto permitir concluir que no h obrigatoriamente, no cisma antoniano, uma
cultura propriamente estruturante, h sim traos culturais estruturantes que se
manifestam a diferentes nveis e que provm de culturas diferentes. O mito que
estruturante dos elementos anteriores, como de resto sucede em geral com os mitos
crioulos.
A imagstica utilizada, por exemplo, parece predominantemente estruturada pelos mitos
cristos (morrer Sexta-Feira, ressuscitar ao Domingo), mas alguns dos smbolos so,
no mnimo, ambivalentes (entre eles sobressaindo o da ressurreio, como iremos ver) e
a sua adopo reestrutura os mitos cristos, para alm de os refuncionalizar. A funo
poltica das narraes msticas parece, por sua vez, radicar na tradio congolesa, mas o
processo de apropriao de uma ideia como a de povo eleito vem j da cultura europeia
e do judasmo.
4.1. Processos
Aps este esboo de nomeao e preciso dos conceitos operatrios e d
e interpretao dos antecedentes histricos que nos pareceram mais apropriados leitura
do cisma antoniano, passo enumerao dos aspectos que nele entendo oportunos:
- em primeiro lugar, a presena de um processo de apropriao, particularmente no que diz respeito apropriao da ideia de povo escolhido;
- em segundo lugar, a estruturao post-mortem do regresso sebstico da profeta; - em terceiro lugar a forma de morte escolhida (com o filho nos braos); - em quarto lugar a composio e congolizao da patronmia aproveitada pelo
cisma;
- em quinto lugar a maternalizao e a masculinizao da profetiza; - em sexto lugar a discusso da principal narrativa (ou ritual) mstica de D.
Beatriz;
- em stimo lugar a interpretao do relacionamento com Santo Antnio tal como foi por ela expresso.
No falarei, pois, propriamente dos rituais complicados, onde se misturavam tradies africanas e influncias europeias, como algumas cerimnias na igreja, as de eleio e coroao dos reis, as da beno dos sbditos e as de outorga de benefcios e
dignidades (Brsio, 1969). Situo ainda ao nvel da instituio dramtica e esttica esses rituais (a solenidade esttica). Aqui procuro efectuar o estudo simblico das vivncias
dinmicas (no institucionalizadas) expressas a partir das referncias ao mito.
4.1.1. A Apropriao da ideia de povo escolhido
A partir do momento em que reflectimos acerca de um cisma que resulta de uma
profunda mistura de elementos diversos, inicialmente separados em tradies diferentes,
sabemos que tal cisma est erigido sobre um processo de apropriao e transposio
cultural. Parte dos elementos que iremos observar aparecem, portanto, como resultado
da sua integrao num contexto novo precisamente aquela parte relativa componente crist do cisma. Mas, ao ficarem inseridos num contexto novo, os
elementos novos tambm o mudam provocando assim, por extenso, a mudana dos elementos locais reformulados em funo da nova totalidade.
Neste ponto pensaremos apenas um particular processo de apropriao: o da ideia de
povo eleito.
A apropriao a que me atenho tambm de mbito poltico. Desde cedo as chefias
congolesas tinham aprendido a capitalizar em seu favor os interesses comerciais e a
instituio religiosa dos portugueses. D. Pedro II Afonso teve consigo, durante o seu
curto reinado, a Igreja de Angola e Kongo e os portugueses residentes no Reino, como
disse atrs.
Por outro lado, os exageros, a corrupo e o excesso de ambio das autoridades
coloniais foram quase desde o incio notrios, facto que levou o conhecido padre
angolano Antnio do Couto, em 1649, a aconselhar o monarca portugus em carta que no passou pelas mos da autoridade colonial a ter muito cuidado na escolha dos governadores. A carta referida por Alfredo de Albuquerque Felner e depois por Gasto
de Sousa Dias (Dias, 1942, pp. 28-31). Veja-se como este ltimo interpreta a crtica do
padre Couto: ...para no lanar as culpas tdas sbre a cabea do rei do Kongo, dava
conselhos a D. Joo IV sbre a qualidade dos governadores a enviar a Angola (Dias,
1942, p. 31). O condicionamento poltico do autor deve poder explicar a frase, mas ele
tambm reconhece a justeza da crtica de Antnio do Couto ao denunciar os abusos da
escravatura e do colonialismo, que em si prprios so j abusos. O exemplo mais
acabado, a meu ver, da conjugao do descontentamento de alguns missionrios com a
defesa do reino do Kongo na perspectiva da chefia congolesa, o da tal Carta escrita
por um cnego de S. Salvador ao Padre Manuel Rodrigues no Colgio da Companhia
de Jesus em Loanda, carta referida morte do mesmo rei D. Pedro II, ocorrida a 13 de
Abril de 1624. A se esboa uma narrativa que recorda relatos portugueses de esprito
medieval, juntando os acontecimentos com datas significativas do calendrio cristo,
principalmente as que se prendem com a Paixo de Cristo, que junto com a Virgem era das principais devoes do rei D. Pedro II. Ao mesmo tempo Rei e Santo, mrtir da f catlica, da ambio desmedida do Governador e da barbaridade dos jagas, o
monarca do Kongo aparece a como uma figura modelar e mitolgica, sob qualquer
ponto de vista equiparvel de outros reis europeus.
As circunstncias que antecederam a batalha de Ambula revelam tambm a
coincidncia de interesses entre a chefia congolesa e vrios representantes dos
portugueses e da Igreja Catlica. A batalha encontra missionrios angolanos e
comerciantes portugueses tambm do lado do exrcito real congols. O cabido de S.
Salvador, em particular, desempenhou a um papel activo, procurando que o
Governador-Geral no invadisse o territrio, depois acompanhando o Rei atravs dos
Padres e filhos da terra Manuel Rodrigues e Manuel Roboredo (filho este do portugus
Tomas Roboredo, que vivia em S. Salvador, e de uma parente do Rei D. Garcia II, Eva
de seu nome prprio e cristo (Dias, 1942, p. 75ss)).
A colocao destes elementos no cenrio do conflito contribuiu sem dvida para que no
Kongo se fosse formando a ideia de que o mal estava do lado das autoridades coloniais
ambiciosas e sem escrpulos e o bem do lado da chefia local, sobretudo quando esta assumia os smbolos da monarquia crist. O que D. Beatriz fez, quando reclamou a
pureza da raa negra e protestou contra a corrupo da raa branca, antepondo-lhe o seu
lema (Deus quer a inteno), foi radicalizar e interiorizar a prtica seguida pelos reis anteriores quando eles colocavam os padres do seu lado contra as autoridades que
trouxeram a religio. S que ela no instrumentalizava os prelados, mas directamente a
doutrina. Ao concretizar esse processo, a princesa apropriava-se da ideia de povo eleito
e essa apropriao veio a marcar heresias congolesas posteriores, para vrias das quais
ao povo negro, puro, estaria destinada a salvao do mundo (pelo menos do seu) contra
os que se afastavam dos caminhos de Deus (o que justifica o facto de no aceitarem
brancos em algumas destas igrejas).
A apropriao da ideia de povo eleito (tal como ela foi desenvolvida pelos judeus) tinha
j sido realizada em Portugal, quer atravs do mito sebstico, quer antes ainda, pelo j
citado mito da Terceira Idade que pela virtude portuguesa viria terra e se espalharia pelo mundo (dando um sentido nobre e oculto s Descobertas (Quadros,
1999, p. 65)). A sua possvel transferncia para o Kongo facilitada pela propaganda real que se sustentava em letrados portugueses e congoleses d-se no seio de uma profunda convivncia mtico-religiosa ao nvel popular, de quando em quando
apadrinhada por instituies locais.
4.1.2. O regresso de D. Beatriz
Esta convivncia com mitos que eram populares em Portugal reforada pela reaco
dos fiis antonianos ao castigo mortal sofrido por Kimpa Vita. Postos perante o facto da
sua morte, eles reagiram dizendo que ela voltaria (pois costumava morrer e ressuscitar)
para salvar o Kongo dos males que o afligiam.
Trata-se de uma reaco post-mortem idntica que tiveram os portugueses perante a
notcia do desastre de Alccer-Quibir (Ksar-el-Kbir). A resposta dos fiis antonianos
recorda ainda a narrativa sobre o desaparecimento de Ngola Kiluanji, que apaga ou neutraliza igualmente o seu desaparecimento. Se nos lembrarmos dos vaticnios sobre a
derrota de Ambula, a conjuno destes trs factos poder significar que, com toda a
probabilidade, um complexo mtico envolvendo vrios elementos presentes no
sebastianismo circulava por Angola e Kongo nos sculos XVII e XVIII, mesclando-se
com as mitologias tradicionais e com as narrativas institucionalmente aceites pelo
cristianismo no que diz respeito vida de Cristo. Ibrahim Baba Kak fala, a propsito,
em Joana d'Arc por motivos bvios. Se a vida da profetisa evoca de alguma forma a herona francesa, a sua morte, como adiante veremos, evoca mais a imagem de D. Ins
de Castro imagem forjada por um mito igualmente popular. Nessa medida, os discpulos deram continuidade apropriao dos discursos mticos do outro,
reformulando os traos tpicos das suas prprias narrativas genealgicas, que passam,
por exemplo, a incluir o regresso de profetas ou de reis, como antes incluam a sua
incorporao em pessoas vivas. Esta apropriao combina-se, portanto, com a crena na
possibilidade de o esprito das antigas chefias poder encarnar em novas personagens
histricas. Quando os fiis acreditam no regresso de D. Beatriz, nada nos obriga a
pensar que eles a imaginariam voltando de corpo e alma, como Cristo perante os apstolos. O seu regresso natural porque h meios tradicionais para fazer voltar o seu
esprito ao mundo visvel.
4.1.3. Ressurreio
Neste e em outros aspectos, o cisma foi precursor das agitaes poltico-religiosas modernas, como o kimbanguismo e seus sucedneos (Santos, 1969, p. 489). A ideia da ressurreio do profeta, que viria resgatar o povo negro, retomada mais tarde pelo
amicalismo quando, chegado ao Zaire, este movimento sincrtico absorveu o
kimbanguismo ainda existente; aps a criao da Igreja dos Negros, de Simo Mpadi,
que se dizia discpulo de Simo Kimbango e pelo seu esprito guiado, o mito da
ressurreio dos profetas reanima-se, principalmente depois da morte de Mpadi,
acreditando os seus fiis que ele e Kimbango haviam de regressar com uma locomotiva, um camio sagrado, um navio e um avio que Deus lhes daria, munidos de
armas de poderes terrveis. ainda o prprio Mpadi quem faz a ligao do mito do regresso dos profetas com a figura de Hitler, que ajudaria os povos negros a
reapossarem-se de tudo e a adorarem o seu Deus (Santos, 1969, pp. 468-469).
Estas metamorfoses do mito demonstram, a meu ver, vrias coisas:
- a profunda radicao desse tipo de apropriaes; - a plasticidade que a religio oral permite, por oposio escrita, plasticidade que
facilita
- a actualizao dos mitos adaptando-os a personagens da histria moderna; - a persistncia da ideia sebstica de ressurreio ou regresso do heri (profeta ou
chefe) para salvar um povo oprimido por uma dominao estrangeira.
Acompanhando-as, subsistem igualmente na prtica destas igrejas rituais prprios da
tradio animista, mesmo quando ela era oficialmente combatida pelos seus mentores.
Os ritos da incorporao dos espritos, por exemplo, que passam a ser descritos como a
descida do Esprito Santo sobre as pessoas, permitem aos adeptos destas religies
manterem viva a prtica de incorporao da energia dos antepassados. Como veremos,
um ritual desse tipo que pode parcialmente explicar o papel privilegiado que
desempenha o nome de S.to Antnio na pregao de Kimpa Vita.
4.1.4. O Fim e o Princpio
A santa foi, segundo alguns, queimada com o filho nos braos a 1 de Julho de 170611. Se a condenao fogueira no era, infelizmente, estranha aos rituais da Inquisio, portanto da Igreja, o facto de D. Beatriz morrer com o filho nos braos
duplamente significativo para ns.
Em primeiro lugar ele evoca a histria de D. Ins de Castro, reforando a ideia da
circulao no Kongo de mitos populares portugueses. Essa evocao de uma figura
feminina da mitologia popular portuguesa vem acompanhada por uma especial
referncia ao culto da Virgem, que era uma das principais devoes do Rei D. Pedro II
Afonso. A pp. 191-192 do livro de Antnio Custdio Gonalves apontado um
episdio que revela a apropriao da imagem de Nossa Senhora outra figura recorrente na religiosidade popular portuguesa, onde o culto mariano assumiu
propores nacionais a ponto de ser ela a rainha de Portugal a partir da Restaurao.
Nos dois casos, ergue-se perante a morte o smbolo por excelncia da continuidade da
vida, atravs da ideia de maternidade mais, de maternidade sacrificada (caso de Ins de Castro) e divinizada (caso da Virgem). As duas evocaes (de Ins e da Virgem)
representam o lado feminino do cisma, que surgira j ligado ideia de maternidade
quando Kimpa Vita afirmara ter tido filhos de S. Joo, fosse ele So Joo Baptista ou
So Joo Barro. Elas alertam-nos para a complexidade simblica da figura da mulher completada, como adiante veremos, pela do homem. A seu modo, colocam um princpio
no lugar do fim. A sua simblica reverte o processo, como fez o povo colocando na
morte da princesa o mito do seu regresso.
11 Cf. Ferronha, Quando o sagrado se manifesta: as brancas imagens, O confronto dos povos
na poca das navegaes portuguesas, Lisboa, Caminho, 1991, p. 331.
4.1.5. A Patronmia
A patronmia invocada pelo antonianismo pode ser perspectivada em duas vertentes: a
da sua composio e a da sua congolizao.
primeira vista, a congolizao da patronmia adoptada seria apenas mais um aspecto
da apropriao sobre a qual o cisma se teria constitudo, dando motivos a investigadores
como Jean-Pierre Dozon para afirmarem a inteira dependncia dos antonianos face
tradio crist. Parece-me, pelo contrrio, que a congolizao da patronmia o aspecto
mais complexo a tratar e, por esse motivo, irei reservar as consideraes sobre ele para
o fim no deste ponto, mas de todo o trabalho. Aqui fique apenas recordado que o antonianismo afirmou a naturalidade congolesa dos principais patronos do Cristianismo
que invocou e do prprio Cristo, que seria natural de S. Salvador. Quanto explicao
social desse facto, dela j tratou Antnio Gonalves nos livros citados, nomeadamente
no que concerne adaptao das funes assumidas pelas narrativas genealgicas na
relao entre o indivduo e a sociedade. Dessa forma, no s a patronmia ganha uma
nova dimenso no Kongo, tambm as narrativas fundadoras ficam reestruturadas pela
importao de uma simbologia nova.
As figuras escolhidas para fazerem parte do panteo antoniano reforam desde logo a
que tem sido uma das teses aqui defendidas: a de que houve uma osmose entre
religiosidade popular portuguesa e congolesa (ou angolana) durante o sculo XVII.
Efectivamente, para alm da Virgem (a remeter para o culto mariano), aparece a figura
de S. Joo com algum realce S. Joo que , como se sabe, um dos santos populares festejados em Portugal e em todo o Nordeste brasileiro. Mas a principal figura do cisma
que lhe d o nome Santo Antnio, que chegou a ser nomeado por Kimpa Vita o segundo Deus e a encarnar no corpo da princesa (que nesses momentos se chamava Santo Antnio).
Santo Antnio , para alm de um dos santos populares portugueses (porventura o mais
popular), uma das figuras da patrologia lusitana estudadas por Pinharanda Gomes e
outro dos santos das festas juninas no Nordeste brasileiro. Antnio Gonalves aponta
uma razo para ser Santo Antnio a figura central do cisma: a importncia que tinham,
naquele tempo e lugar, os franciscanos (Gonalves, Reestruturao do poder poltico e
inovao social na sociedade Kongo, 1984). Mas essa razo, sozinha, no tem poder
explicativo suficiente, porque S. Francisco no referido quando se fala no cisma
antoniano, nunca apontado por Kimpa Vita nas transcries que dos seus discursos
nos fizeram. Ora, seria de esperar que ele desempenhasse um papel importante na
mitologia religiosa do cisma se a influncia dos franciscanos fosse decisiva. A pregao
dos franciscanos pode ter sido marcante, mas consagrada pelo culto popular alis tambm apontado pelo estudioso portugus como uma das causas do significado de S.to
Antnio para D.a Beatriz e seus discpulos.
Se a escolha destas figuras parece indiciar juntamente com os dados acima aduzidos uma convivncia profunda entre duas vivncias populares da religio, a incorporao de S.to Antnio reter-nos- a partir de agora a ateno pelos indcios que, s por si, nos
traz de algo mais profundo que a troca de mitos e narrativas.
4.1.6. O Sexo dos Santos e o Kimpasi
A princesa-profetiza diz, entre outras coisas, que Santo Antnio entrava no seu corpo.
Ou seja: que em certos momentos ela no era ela, mas o Santo lisboeta.
A incorporao de S.to Antnio em D. Beatriz processa, em primeiro lugar, um
movimento simblico oposto ao que a leva a falar na paternidade de So Joo. Esta
reafirma-a enquanto mulher (que, na tradio local, valorizada em funo da sua
capacidade reprodutora); aquela possibilita a masculinizao da santa.
Se o reforo da imagem da maternidade parece fcil de compreender face tradio
banto, ao mito de Ins de Castro e ao culto mariano, a masculinizao da princesa
difcil de explicar. No plano poltico, ela apoiava um candidato (masculino) ao trono,
portanto no podemos postular a hiptese de se masculinizar para aceder ao cargo de
maior prestgio daquele Imprio. Mesmo para se afirmar como profetiza ela no
precisaria de incorporar um homem, visto haver profetizas na tradio crist e no prprio antonianismo ( o caso de Mafuta Fumaria, que teria antecedido imediatamente
Kimpa Vita). Contrariamente ao que nos sugere uma leitura influenciada pela moda
dominante na cultura europeia e norte-americana, no penso que a explicao para tal
facto advenha de um estudo sexuado do cisma e das tradies locais j a esse nvel amplamente consideradas pela antropologia contempornea. Parece-me que tal facto
deriva de uma vivncia religiosa tpica.
A narrativa que me parece central para a legitimao da verdade pregada por D. Beatriz
a da sua morte e ressurreio. O facto de isso ocorrer Sexta-Feira, e ao Sbado ou
Domingo12, prende-se claramente com o mito da morte e ressurreio de Cristo. Parece,
pois, que, por essa via tal como o fora para Kazola Cristo o smbolo colando-se ao qual os santos podiam comunicar com os fiis e convenc-los da sua verdade.
Mas h como lembra Custdio Gonalves um ritual prprio que pode estar transfigurado pela simblica de referncia crist, baseando-se porm numa outra
vivncia, pela qual a princesa falaria com o seu povo e o convenceria, tornando a sua
morte numa representao de significado ambivalente. Penso no ritual do kimpasi.
O kimpasi uma espcie da experincia de morte e ressurreio em que dado indivduo,
num momento difcil para a comunidade, deixa de existir para encarnar um antepassado
mais forte mudando, portanto, de personalidade e de posio na genealogia do grupo (Gonalves, Kongo: le lignage contre ltat, 1985). Dessa forma, o grupo e o indivduo se renovam e, simultaneamente, se religam tradio por vnculos vigorosos.
A incorporao do Santo investia a pessoa de D. Beatriz da fora anmica dele,
permitindo-lhe resgatar o reino e moralizar a sociedade, bem como enfrentar a
hierarquia religiosa, visto que assumia o nome de algum que nessa hierarquia estava
muito acima de qualquer dos mortais e de qualquer suspeita. Se a incorporao parecia
hertica, os portugueses tinham igualmente em D. Sebastio uma figura humana que era
vista por muitos como capaz de regressar ao mundo aps o desaparecimento, incorporando por exemplo em D. Joo IV (segundo o P.e Antnio Vieira), para salvar o
seu povo: ou seja, um homem que ressuscitava, como Deus, ou que entrava em outro
corpo. Havia cristos sebastianistas (e padres, como Antnio Vieira) e o sebastianismo
esteve muito activo ao longo do sculo XVII, por causa da dominao espanhola sobre
Portugal. Portanto o cristianismo popular portugus tinha j dado um passo idntico,
embora sem o ritual do kimpasi e esse cristianismo popular vinha, naturalmente, com os
portugueses que tentavam melhorar a sorte em Angola. Isso tudo criava um ambiente
que permitia princesa jogar na ambiguidade e falar duas linguagens, uma para dentro
do seu reino, outra para os de fora.
12 Segundo Eduardo dos Santos (op. cit.) isso acontecia aos Sbados; segundo Antnio
Gonalves, aos Domingos.
Conforme recorda Antnio C. Gonalves, a morte e renascimento de D. Beatriz
evocam o ritual do kimpasi num momento em que a sociedade Kongo atravessava uma
grave crise de afirmao (a qual se arrastava h j vrias dcadas). A hiptese a de que
tanto quanto o ritual subjacente ao mito da ressurreio da princesa visava dinamizar as foras simblicas prprias da tradio o prprio nome do Santo era ambivalente, porque remetia tambm para um rei que morrera lutando contra os portugueses em
nome do Kongo, numa batalha rodeada por vaticnios diversos comentados por todo o
povo como sucedera com D. Sebastio em Alccer-Quibir. A assuno de um novo nome e a incorporao consequente eram, ao mesmo tempo, a encarnao de um grande
esprito do passado e de um Santo portugus, que visava importar a sua energia para
dentro da pessoa que o invocava, morrendo e renascendo sob a sua benigna e poderosa
influncia, assistncia, ou alma. Habitualmente pensamos na incorporao de um
esprito mas, sendo o nome ambivalente, possvel que a princesa tenha incorporado ao
mesmo tempo a energia dos dois grandes espritos, o de S.to Antnio e o de D. Antnio.
Visto que, para a interpretao correcta do cisma, se prope uma leitura do cristianismo
(por parte de D. Beatriz), que aproxima as suas figuras essenciais e patrimoniais pela funo poltica que lhes dada s figuras das genealogias e da histria do Kongo, parece bastante plausvel a hiptese de, a par do nome de S.to Antnio, se
invocar e evocar igualmente o malogrado Rei D. Antnio, o Mani Mulaza das crnicas
coloniais, que se levantara em defesa da independncia do Reino do Kongo face s
humilhantes capitulaes anteriores e que morrera no combate heroicamente.
Seguindo a linha de raciocnio de Antnio Custdio Gonalves, verificamos que, dessa
forma, as concepes histricas e genealgicas da comunidade Kongo se mantinham
dinmicas e dinamizadas pelas suas funes sociais, reguladas e alimentadas estas por
expresses religiosas sincrticas. E percebemos igualmente que fora fundamental a
morte de D. Antnio para se realizar o regresso espiritual do Rei, incorporado em
Kimpa Vita. Porque se, para os portugueses, era necessrio conceber o desaparecimento
e no a morte para criarem o mito do regresso de D. Sebastio, para os congoleses era a
morte que permitiria a reincarnao do Mani.
Por tudo isto, a nomeao do movimento animado por Kimpa Vita como antoniano faz
muito mais sentido do que primeira vista pudesse parecer.
Francisco Soares