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Sobre a pesquisa-ao na educao e as armadilhas do praticismo
Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 33 set./dez. 2006 511
Introduo
O conceito de pesquisa-ao representa um veio
privilegiado para a discusso de um dos maioresimpasses enfrentados pelos educadores: a relao en-
tre teoria e prtica. A educao , afinal, uma prtica
social constituda na estreita relao com o conjunto
das cincias sociais e outras reas do conhecimento.
Descobrir-se no seio dessa contradio e seus desdo-
bramentos e, ainda, apreender a tenso que lhe ine-
rente so condies de todos aqueles que pensam a
educao e nela atuam, seja ela entendida em sua di-
menso mais particular, que a educao escolar, ou
mais global, a cultura.
Mediante a pesquisa-ao uma concepo de
pesquisa que, desde o incio, se define por incorporar
a ao como sua dimenso constitutiva , o pesquisa-
dor em educao no deixa dvidas sobre a relevn-
cia conferida prtica em seu processo de investiga-
o. Tratar-se-ia, assim, de uma pesquisa que articula
a relao entre teoria e prtica no processo mesmo de
construo do conhecimento, ou seja, a dimenso da
prtica que constitutiva da educao seria fonte
e lugar privilegiado da pesquisa. Alm disso, a pr-
pria investigao se converteria em ao, em inter-
veno social, possibilitando ao pesquisador uma atua-
o efetiva sobre a realidade estudada. Reflexo e
prtica, ao e pensamento, plos antes contrapostos,
agora seriam acolhidos em uma modalidade de pes-
quisa que considera a interveno social na prtica
como seu princpio e seu fim ltimo.
precisamente na perspectiva da articulao
entre teoria e prtica que o presente artigo pretende
abordar a noo de pesquisa-ao. Longe de preten-
der fazer uma exaustiva discusso sobre as caracte-
rsticas e possibilidades dessa importante modalida-
de de investigao, o que se prope pensar a
pesquisa-ao e suas condies e possibilidades de
articular a reflexo e a ao no contexto da prtica
educativa. Para tanto, ter que ser feita uma incur-
so na questo da produo do conhecimento no
mundo moderno, passo necessrio para a compreen-
so da articulao da relao entre teoria e prtica
nesse mesmo contexto. Em seguida, so feitas con-
sideraes sobre a modalidade de pesquisa-ao, a
partir de autores aqui tomados como exemplos de
Sobre a pesquisa-ao na educao e as
armadilhas do praticismo
Marilia Gouvea de Miranda
Universidade Federal de Gois, Faculdade de Educao
Universidade Catlica de Gois, Departamento de Educao
Anita C. Azevedo Resende
Universidade Federal de Gois, Faculdade de Educao
Universidade Catlica de Gois, Departamento de Psicologia
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Marilia Gouvea de Miranda e Anita C. Azevedo Resende
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distintas possibilidades de entendimento do termo,
para, finalmente, sugerir os riscos inerentes ao su-
posto de resoluo imediata da contradio entre
teoria e prtica: a instrumentalizao da teoria e opraticismo na educao.
Conhecimento e interveno social
O dilema das possibilidades e condies do co-
nhecimento desde sempre tem sido um impasse para
os homens, e tem-se restabelecido, por diferentes pers-
pectivas, matizes tericos e propostas metodolgicas
de variados aportes, em distintos momentos histri-
cos. Afinal, quais so as condies de possibilidade
de apreenso da realidade pelo sujeito de conheci-
mento? Qual a relao desse conhecimento com a
objetividade, com a prtica? Seja na mitologia, na fi-
losofia, nas cincias naturais, nas cincias humanas,
nas artes, ou nas relaes sociais cotidianas, a ques-
to tem-se recriado e seu enfrentamento desafiado o
pensamento e compreendido processos tericos im-
portantes. A discusso acerca da pesquisa-ao deve
ser tomada como um desses momentos.
Nos quase trs sculos que vo desde os finais
de 1600 at meados de 1800, de Descartes a Comte,
passando por Kant e Hegel, constituem-se as bases
da moderna compreenso da relao entre o sujeito
que conhece e a objetividade a ser conhecida, suas
possibilidades e seus limites, suas condies e exi-
gncias a constituio da razo como uma faculda-
de propriamente humana. J em Descartes (1983,
p. 29), a razo revelava-se substncia e possibilidade
da subjetividade de todos os homens, e no encontra-
va sua validade e garantia em Deus, mas no respeito a
regras precisas: o poder de bem julgar e distinguir o
verdadeiro do falso, que propriamente o que se de-
nomina o bom senso ou a razo, naturalmente igual
em todos os homens.
Descortinavam-se o desencantamento, a secula-
rizao e a humanizao da razo, que encontrar na
cincia, particularmente na matemtica, o fundamen-
to do mtodo a ser aplicado a todos os campos do
saber, e mais: a afirmao do sujeito como portador
de razo ante a um objeto que podia conhecer e sobre
o qual existiria uma s verdade.
Essa f na razo impregnaria o programa ilumi-
nista para o qual a extenso da razo a todos os cam-pos do conhecimento, se era limitada pelo prprio
fenmeno e no poderia ir alm desse, no encontra-
ria limites. Nenhum campo havia que no devesse ser
submetido indagao racional, inclusive a poltica
e a religio. A conformao da cincia como o nico
conhecimento possvel, e de seu mtodo como o ni-
co vlido, implicaria que o recurso a causas ou prin-
cpios que no fossem acessveis a esse mtodo no
daria origem ao conhecer. E qualquer conhecimento
que no recorresse a tal mtodo tambm no teria
valor. O mtodo da cincia devia ser estendido a to-
dos os campos da indagao e da atividade humana, e
a vida humana deveria ser por ele guiada. Nessa pers-
pectiva, o mtodo da cincia constituiu-se descritivo,
no sentido de que os fatos e as suas relaes constan-
tes foram compreendidos pelas leis que consentiam
na sua previso.
Assim, a possibilidade do conhecimento, o modo
de conhecer, seu valor e finalidade deslocaram-se para
a afirmatividade da forma, ou seja: a verdade havia
de ser garantida mais pela forma como era obtida,
pelos procedimentos e instrumentos, do que pelo con-
tedo que pudesse revelar. A discusso epistemolgi-
ca migrou para a afirmatividade de regras e mtodos
de bem conhecer, e a empiria constituiu-se como ex-
presso exclusiva do real.
J as cincias humanas e sociais, que se consti-
tuiro a partir de meados do sculo XIX, sero soli-
drias e contemporneas de um questionamento radi-cal dessa possibilidade de conhecimento, apreenso
do objeto pelo sujeito que conhece e relao desse
conhecimento com a objetividade e a prtica histri-
cas. Da complexa revoluo social que a Europa trans-
poria para o resto do mundo se desenvolveriam no-
vas formas de sociabilidade, de entendimento, de
objetivao que constituiriam novas realidades sociais
e desafios para o conhecimento cientfico. Processa-
ram-se a afirmao da razo, da cincia, da cultura
secular e do comportamento, a indstria e a urbaniza-
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o, a diviso do trabalho social e a mercantilizao,
num decurso crescente de intelectualismo e raciona-
lidade que reduziu os espaos da tradio, da supers-
tio, da religio.A compreenso desse mundo complexo elabo-
rou propostas distintas para o conhecimento da reali-
dade. De um lado, foram traduzidos para o campo da
sociedade, da cultura e do indivduo os procedimen-
tos que j haviam sido elaborados e continuavam a
elaborar-se nas cincias fsicas e naturais; de outro,
produziram-se novos procedimentos de reflexo ante
a originalidade dos acontecimentos e dilemas que
caracterizavam a vida social e o indivduo no mundo
moderno. Institucionalizadas nesse quadro, as cin-
cias humanas e sociais desenvolveram-se sobrema-
neira a partir da virada do sculo XX, enfrentando,
sem resolver, as questes fundamentais da relao
entre sujeito e objeto e entre teoria e prtica.
O pensamento positivista foi um momento radi-
cal dessa elaborao. Assentou-se no suposto da rup-
tura entre o sujeito e o objeto, possibilitando a apro-
priao dos modelos e mtodos das cincias naturais
como garantia e critrio da verdade do conhecer. A
verdade do objeto estava assegurada pela fiel e com-
provada apreenso emprica, pela possibilidade de re-
petio, refutao e experimentao, descrio do ob-
jeto em sua representao, forma de manifestao
imediata ou aparncia. Tanto mais verdadeiro seria o
seu conhecimento quanto mais fossem fiis sua des-
crio e representao, de maneira que qualquer su-
jeito poderia comprovar a sua verdade, desde que ga-
rantidos os mesmos procedimentos e regras de
conhecer.No se distinguiram, nessa perspectiva, os mo-
mentos de pesquisa e de exposio do objeto. O pro-
cesso do conhecer era a expresso exata do objeto
conhecido. A descrio do caminho da pesquisa e de
sua metodologia era j exposio do objeto investi-
gado e confirmao de sua verdade. Este era o que a
regra de conhecer permitia apreender, e essa regra era
a garantia de seu conhecimento.
Afastando qualquer possibilidade de interfern-
cia do sujeito, portanto, as regras e os procedimentos
interpuseram-se entre o sujeito e o objeto para garan-
tir a inteireza presumida e interna deste, e a pesquisa
no se comprometeu para alm da representao desse
mesmo objeto. E, como exigncia de validade, con-firmava-o, confirmando ao mesmo tempo uma reali-
dade que podia ser explicada, quantificada, compro-
vada, prevista e, pois, controlada. Dessa forma, o
conhecimento postulou-se objetivo e neutro. Contu-
do, ao descrever a realidade e afirm-la na sua
exterioridade, ele tambm se tornou confirmativo e,
a despeito de sua pretensa neutralidade e iseno, aca-
bou por constituir-se como prtica, ao conceber como
verdade a realidade manifesta, reiterando-a e confir-
mando-a.
A neutralidade ante a objetividade efetivou-se,
portanto, como conservao e afirmao da realida-
de mesma, revelando-se pseudopretenso, porque
efetivada historicamente como conservao, manu-
teno, funcionalidade e controle. Da que se tenha
realizado como prtica tomada como aplicao e
utilidade.
Entretanto, diante dos desafios que se colocavam
no mundo que se revolucionava, j no sculo XIX,
avanando para o sculo XX, tendncias e vertentes
nas cincias humanas e sociais buscaram libertar-se
da epistemologia das cincias naturais. Do modelo
explicativo das abordagens positivistas, organicistas
e funcionalistas, os cientistas sociais voltaram-se para
uma abordagem compreensiva: em lugar da
causao funcional, a conexo de sentido, a com-
preenso, o mundo da vida, as aes e relaes so-
ciais, o indivduo, a identidade, a alteridade, a subje-
tividade, os valores, os ideais, as fabulaes (Ianni,2003, p. 21).
Tratava-se, nessa perspectiva, de assumir a uni-
dade originria da relao entre sujeito e objeto, a in-
vestigao cientfica devendo aceitar o desafio de um
objeto que no se revela pela descrio de sua mani-
festao, mas somente pela apreenso e compreen-
so da diversidade de seus nexos, processos e estru-
turas de diferentes ordens. Um objeto ao mesmo tempo
singular e universal, particularidade e totalidade, que
no se revela na sua expresso imediata e aparente,
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mas carrega o passado e o futuro na sua expresso
presente, que histria, que faz histria, que se trans-
forma, que razo, emoo, sentido, desejo. Enfim,
um objeto que se pe como desafio, seja ele o indiv-duo, a sociedade, o grupo, a classe, o movimento so-
cial, a escola, o ser humano na sua intricada e contra-
ditria realidade individual e histrica: as formas das
objetivaes humanas que constituem a realidade
objetiva e as subjetivaes da objetividade que cons-
tituem o sujeito.
nessa perspectiva que se compreende que as
cincias naturais realizam principalmente a explica-
o, ao passo que as cincias sociais propiciam prin-
cipalmente a compreenso, reconhecendo-se que as
artes surpreendem e fascinam pela revelao (idem,
p. 24-25, grifos do original). Assim, o desafio da com-
preenso da realidade social passou a ser enfrentado
pelo sujeito que conhece num outro patamar.
Num sentido amplo, e de incio, pode-se afirmar
que o objeto constitui uma totalidade que conecta e
sintetiza sentidos e significados, descortinando pro-
cessos em desenvolvimento. A fidelidade ao objeto
diz respeito apreenso dos diferentes nexos que o
constituem. No entanto, no se trata simplesmente de
arrolar e descrever tais nexos, mas de apreend-los
como sntese significativa e histrica de seus proces-
sos, numa totalidade que no se reduz relao de
tudo que lhe diz respeito, mas se refere a um todo
significativo que apreende o objeto como expresso
objetivada de sujeitos humanos em condies hist-
ricas determinadas e elabora a sntese da experincia
recriada pelo pensamento.
Tomadas dessa forma, a teoria e a prtica consti-tuem-se reciprocamente, porque a objetividade hist-
rica e no-natural , antes, produto de objetivaes
humanas. O objeto sempre objetivao de sujeitos,
e compreend-lo apreender os sentidos e significa-
dos humanos que ali se depositam. O seu conheci-
mento ser o reconhecimento da histria e, portanto,
das prticas sociais que ali se cristalizaram, sendo o
desvendamento da realidade ou o conhecimento pro-
duzido acerca dos seus objetos sempre prxis que
descortina e se compromete com a realidade.
Esse debate fertilizou-se e ainda ecoa no presen-
te, e pode ser retomado nos diferentes programas e
projetos de pesquisa que, a partir da crtica s possi-
bilidades postas na incorporao do modelo das cin-cias naturais aos objetos das cincias histricas, apre-
sentam propostas de pesquisa e interveno no campo
social. E uma das perspectivas que podem ser apre-
endidas nessa direo aquela que se convencionou
chamar pesquisa-ao, que se constituiu a partir da
primeira metade do sculo XX.
Pesquisa-ao e prtica social
Diversos autores descrevem a trajetria da pes-
quisa-ao desde os anos de 1940 at o presente.
Numa perspectiva bastante abrangente, possvel
situ-la em dois grandes perodos: o primeiro, mais
norte-americano, a partir da emergncia do termo
cunhado por Kurt Lewin nos anos anteriores Se-
gunda Guerra Mundial, indo at os anos de 1960; o
segundo, mais europeu, australiano e canadense, do
final dos anos de 1960 at os dias atuais (Barbier,
2002; Andr, 1995). Trata-se, na verdade, de um gran-
de mosaico de concepes de pesquisa-ao, cuja
abordagem qualitativa nas cincias sociais ter seu
conceito, justificativa e explicitao metodolgica
constitudos a partir de distintas vinculaes terico-
metodolgicas.
A noo de interveno poder variar de uma po-
sio mais prxima experimental (como a de
Lessard-Herbert, 1991 apudBarbier, 2002) at proje-
tos de ao social com vistas soluo de problemas
coletivos (Thiollent, 1984). Assim, pesquisa-ao
so atribudas leituras que adotam uma perspectiva
mais explicativa (experimental) ou mais compreensi-
va (fenomenolgica ou dialtica). Em princpio, as
abordagens da pesquisa-ao constituem-se como cr-
tica ao positivismo, ainda que se possa entender que
nem todas logrem afastar-se inteiramente dessa con-
cepo. Tambm certo que, em princpio, elas se
situam como abordagens compreensivas, uma vez que
reconhecem que a realidade social no algo que
exista e possa ser conhecida com independncia por
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aquele que queira conhec-la, mas uma realidade
subjetiva, construda e sustentada por meio dos signi-
ficados dos atos individuais (Carr & Kemmis, 1988,
p. 116).Na atualidade, delineiam-se algumas concepes
que buscam distinguir-se dos aportes clssicos das
cincias sociais descritos. Dentre outras, pode-se es-
tabelecer um paralelo entre duas dessas novas
releituras da pesquisa-ao: as abordagens francesa e
canadense, destacando-se, respectivamente, Ren
Barbier (2002) e Andr Morin (2004); e a abordagem
australiana, cujos principais expoentes so Wilfred
Carr e Stephen Kemmis (1988). Ao tomar como refe-
rncia esses autores e algumas de suas obras, no se
pretende uma exegese de seu pensamento e de sua
produo, mas situar alguns aspectos gerais que per-
mitem apreender os desdobramentos da pesquisa-ao
no campo da educao na atualidade.
Ren Barbier (2002) atribui pesquisa-ao o
sentido de uma revoluo epistemolgica ainda no
suficientemente explorada nas cincias humanas. Sua
noo de pesquisa-ao a de uma arte de rigor cl-
nico, desenvolvida coletivamente, com o objetivo de
uma adaptao relativa de si ao mundo (p. 67), o
que implica uma mudana do sujeito (indivduo ou
grupo) com relao sua realidade. Reputa como bas-
tante prxima da sua noo a do canadense Andr
Morin (2004), de quem agrega o sentido de pesquisa-
ao integral, que visa mudana pela transfor-
mao recproca da ao e do discurso. Ambos re-
correm teoria da complexidade de Edgar Morin para
contrapor-se ao ideal de simplicidade das cincias
da natureza. Afinal, s um paradigma da complexida-de poderia apreender o ser humano entendido como
uma totalidade dinmica, biolgica, psicolgica, so-
cial, cultural, csmica, indissocivel (Barbier, 2002,
p. 87). Esse paradigma, como reconhece Barbier, im-
pe ao pesquisador uma viso sistmica aberta: Ele
deve combinar a organizao, a informao, a ener-
gia, a retroao, as fontes, os produtos e os fluxos,
input e output, do sistema, sem fechar-se numa
clausura para onde o leva geralmente seu esprito te-
rico (idem, p. 91).
De uma perspectiva vinculada a Jrgen Habermas,
os canadenses Carr e Kemmis (1988, p. 142-143), ao
formularem sua concepo de pesquisa-ao na edu-
cao, defendem que a teoria educativa devecorresponder a cinco exigncias: a) rejeitar as noes
positivistas de racionalidade, de objetividade e de
verdade; b) admitir a possibilidade de utilizar as cate-
gorias interpretativas dos docentes; c) encontrar meios
para distinguir as interpretaes que esto ideologi-
camente distorcidas das que no esto, devendo pro-
porcionar tambm alguma orientao sobre como su-
perar os auto-entendimentos distorcidos; d) preocupar-
se em identificar aspectos da ordem social existente
que frustram a obteno dos fins racionais, devendo
poder oferecer explicaes tericas mediante as quais
os docentes vejam como eliminar ou superar tais as-
pectos; e) reconhecer que a teoria educativa prtica
no sentido de que a questo de sua considerao edu-
cacional seja determinada pela maneira pela qual se
relaciona com a prtica. Assim, a verdadeira finalida-
de da teoria educativa seria informar e guiar a prtica
dos educadores, indicando quais aes devem empre-
ender se querem superar os problemas e eliminar as
dificuldades.
Inegavelmente, podem ser feitas muitas distin-
es entre as abordagens de pesquisa-ao desses
autores. No entanto, a que reputamos mais importan-
te se refere aos aportes tericos adotados: a teoria da
complexidade de Edgar Morin (e o vis sistmico que,
ao seu modo, Ren Barbier e Andr Morin lhe confe-
rem) e a teoria da ao comunicativa de Habermas,
trazida por Carr e Kemmis.
Em que pesem as distines entre as abordagensde Barbier e Morin, de um lado, e de Carr e Kemmis,
de outro, so muitas as suas aproximaes e elas so
essenciais para a compreenso do que tem sido for-
mulado como pesquisa-ao na atualidade, especial-
mente na educao. Primeiro, os autores so bastante
incisivos na crtica ao positivismo nas cincias so-
ciais, aos limites de sua noo cientificista de pesqui-
sa, de objetividade, racionalidade e verdade. Segun-
do, com maior ou menor aproximao, recorrem s
abordagens compreensivas para extrair delas as pos-
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sibilidades do sujeito (do conhecimento ou da ao) e
dar significado realidade vivida mediante catego-
rias interpretativas.1 Terceiro, vinculam a noo da
pesquisa idia de mudana, de transformao dosatores e sua realidade. Quarto, e conseqentemente,
investigam o conceito de pesquisa junto ao, pr-
tica, com a resoluo dos saberes nas cincias huma-
nas e sociais dando-se, preferencial ou exclusivamen-
te, no campo da prtica e da ao social. Quinto,
postulam uma noo de totalidade que se afirma refe-
rida prtica e diz respeito a tudo que nela se consti-
tui, abrangendo a ao e a experincia do sujeito. Sex-
to, a pesquisa-ao, mais do que uma abordagem
metodolgica, um posicionamento diante de ques-
tes epistemolgicas fundamentais, como a relao
entre sujeito e objeto, teoria e prtica, reforma e trans-
formao social.
O praticismo e seus riscos
Quais as implicaes desse posicionamento epis-
temolgico para a pesquisa-ao? Antes de tudo, deve-
se reconhecer o quanto importante que a pesquisa-
ao se posicione como crtica ao objetivismo estril
prprio do positivismo, e que possa buscar, na pers-
pectiva compreensiva, uma apreenso da relao en-
tre sujeito e objeto que contemple essas polaridades
reciprocamente referidas e contraditrias. Est em
causa, portanto, a natureza da relao entre sujeito e
objeto nas cincias humanas e sociais. Adorno (1995)
lembra que a separao entre sujeito e objeto, ao mes-
mo tempo real e aparente, se torna ideologia sempre
que for fixada sem mediao. Por isso, deve-se evitar
incorrer na armadilha de, ao se contrapor ao primado
da objetividade, resvalar no subjetivismo. Mesmo
porque o sujeito tanto mais quanto menos , e tan-
to menos quanto mais cr ser, quanto mais se ilude
em ser algo para si objetivo (p. 198).
importante ressaltar a crtica que a pesquisa-
ao faz a uma noo de teoria contemplativa e abs-trata. A afirmao de Marx de que no se trata apenas
de compreender o mundo, mas de buscar transform-
lo, sempre presente e deve ser entendida na pers-
pectiva das mediaes constitutivas das relaes pos-
tas entre sujeito e objeto, teoria e prtica.
Deve-se, no entanto, estar atento para que o im-
perativo de transformao da realidade social no
implique a perda da mediao terica na apreenso
dessa realidade. Nesse sentido, importante discutir
a tendncia que hoje se verifica de estabelecer o pri-
mado da ao sobre a reflexo, da prtica sobre a teo-
ria, da experincia sobre o pensamento, tendncia de
que resultam pelo menos dois graves reducionismos:
o praticismo e a instrumentalizao da teoria (Miranda,
2004, p. 21). O suposto de que a produo do conhe-
cimento seja orientada para subsidiar a ao pode in-
correr numa noo bastante pragmtica de teoria,
aquela que se orienta para um fim til, o que viria a
conferir-lhe um carter de instrumentalidade ou, no
limite, a sua negao como teoria. No demais lem-
brar que teoria e prtica guardam entre si uma rela-
o de contradio: mesmo sendo sempre e necessa-
riamente vinculada prtica, teoria no prtica, no
se reduz a esta e no pode orientar-se imediatamente
pelo seu interesse.
Tal praticismo pode afetar a formao inicial e
continuada do professor, especialmente tudo o que
diga respeito ao seu trato com a teoria, entendida aqui
de modo bastante abrangente e envolvendo, alm daschamadas teorias da educao, a filosofia, as cincias
humanas e sociais, a arte, a cultura humana. O ideal
de formao no pode, por qualquer pretexto, passar
ao largo da defesa de uma slida formao terica,
cujo princpio no deveria ser a instrumentalidade da
ao (teoria para qu?), mas a fecundidade da pr-
tica social em sua estreita vinculao com a mesma
teoria. nesse sentido que se deve propor a teoria
efetivada como prtica, sobretudo quando aquela exer-
ce seu vigor crtico: crtica da sociedade, das refor-
1 Nesse ponto, h uma distino importante a ser ressaltada
em Carr e Kemmis com relao aos outros autores citados: os
australianos afirmam que o limite da abordagem compreensiva
(que eles chamam de interpretativa) seria o no-reconhecimento
de que a realidade pode afetar (deformar) a conscincia.
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mas educacionais, das polticas pblicas, dos conte-
dos ensinados, das prticas de gesto, do discurso
educacional, das teorias adotadas, da prtica cotidia-
na. No h dvida de que o ponto de partida e de che-gada dessa crtica seja a prtica. Mas no h crtica
possvel sem a mediao da teoria. Como a teoria no
algo que possa ser buscado ou constitudo para um
fim dado (como instrumento), no h alternativa se-
no assegurar uma formao terica aos professores.
Isso, evidentemente, custa caro, requer uma mudan-
a cultural de gigantescas propores, contraria os
interesses da indstria cultural e, sobretudo, tem o
inconveniente de gerar um professorado crtico e
reivindicativo, difcil de ser administrado.
Assim, uma grave conseqncia do praticismo
que sua defesa vem alimentando a retrica reformista
da educao e seus efeitos se vm fazendo sentir nas
diversas expresses de repdio teoria e cultura
acadmica. Outra vez, so muitos os riscos: o aligei-
ramento da formao, a descaracterizao da univer-
sidade como agncia de formao de professores, a
banalizao da pesquisa, a reduo das condies de
autonomia e rigor para o exerccio da crtica.
Voltando questo da pesquisa-ao, deve-se
considerar que, do ponto de vista da atuao pedag-
gica do professor, preciso estar atento aos exageros
do praticismo. Uma incorreta compreenso da pes-
quisa-ao pode gerar a falsa noo de que essa atua-
o deva orientar-se para a soluo de problemas iso-
lados na sala de aula ou escola. Ou seja, as idias de
ao, mudana, interveno podem ficar condiciona-
das s exigncias normativas e adaptativas da resolu-
o de problemas imediatos: a boa pesquisa, a boaprtica e a boa teoria seriam, assim, aquelas que pre-
sidiriam a efetiva soluo dos problemas enfrentados
individual ou coletivamente pelo professor. No
preciso argumentar muito para demonstrar que efeti-
vas solues implicam muito mais que solues pon-
tuais e emergenciais, pois requerem mediaes teri-
cas, histricas, polticas, sociais e culturais a serem
construdas coletivamente, so reivindicativas e rara-
mente se orientam pela adaptao dos indivduos ou
grupos ao j institudo.
Uma outra implicao de um incorreto enten-
dimento da pesquisa-ao seria responsabilizar os
sujeitos (da ao, da pesquisa) pela mudana pre-
tendida, quando se sabe que sob as mediaes te-ricas, histricas, polticas, sociais e culturais j re-
feridas so limitadas as possibilidades da ao
individual docente. Pode-se incorrer no voluntaris-
mo messinico da ao bem-sucedida ou, o que
mais provvel, no insucesso frustrante da ao ma-
lograda. Ambos os enredos contrariam uma atua-
o poltica refletida, realista e efetivamente trans-
formadora.
Por fim, deve-se insistir no risco de fazer com
que a pesquisa-ao seja convertida em estratgia de
polticas pblicas com a finalidade de imprimir refor-
mas no campo da retrica e da ao do professor, quan-
do ento a sua discusso epistemolgica e conceitual
se transfere para normalizaes instituidoras da pr-
tica docente. A instituio da pesquisa como prtica
comum e generalizada aos professores ou s escolas
desconsidera que ela requer suporte institucional e
acadmico adequado, condies de trabalho compa-
tveis, alm da disposio e do interesse dos docen-
tes. Sem essas condies, pode-se alimentar uma re-
trica reformista que institui o imperativo de que o
professor assuma sozinho a deciso e o risco de se
contrapor a uma realidade que no d sinais de pre-
tender se transformar.
Referncias bibliogrficas
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Marilia Gouvea de Miranda e Anita C. Azevedo Resende
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MARILIA GOUVEA DE MIRANDA, doutora em educao
pela Pontifcia Universidade de So Paulo (PUC/SP), professora
da Faculdade de Educao da Universidade Federal de Gois e do
Departamento de Educao da Universidade Catlica de Gois.
ltimas publicaes: Sobre tempos e espaos da escola: do princ-
pio do conhecimento ao princpio da socialidade (Educao & So-
ciedade, Campinas: CEDES, v. 27, n. 91, p. 639-651, 2005); A psi-
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sua pretenso de resolver a relao teoria e prtica na formao de
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mao e na prtica dos professores. 4. ed. Campinas: Papirus, 2005,
p. 129-143).E-mail: [email protected]
ANITA C. AZEVEDO RESENDE, doutora em cincias so-
ciais pela PUC/SP, professora da Faculdade de Educao da
Universidade Federal de Gois e do Departamento de Psicologia
da Universidade Catlica de Gois, e pesquisadora do CNPq. l-
timas publicaes: Subjetividade: novas abordagens de antigas
antinomias (In: REUNIO ANUAL DA ANPEd, 28., 2005,Caxambu.Anais... 1 CD-ROM); Subjetividade e educao: um
no-to-novo desafio para um no-to-novo mundo (Educ Ativa,
Goinia, v. 6, n. 2, p. 311-321, jan./dez. 2003); O processo de
individualizao: alienao (Estudos, Goinia, v. 30, n. 1, p. 201-
215, 2003).E-mail: [email protected]
Recebido em fevereiro de 2006
Aprovado em julho de 2006
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Marilia Gouvea de Miranda e Anita C.
Azevedo Resende
Sobre a pesquisa-ao na educao e
as armadilhas do praticismo
A pesquisa-ao, uma modalidade de
pesquisa muito utilizada na educao,
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abordada na perspectiva de suas contri-
buies e de seu duplo risco: o
praticismo e a instrumentalizao da
teoria. O artigo parte de ampla discus-so sobre as condies e possibilidades
do conhecimento nas cincias sociais no
mundo moderno, para situar a pesquisa-
ao como uma proposta de pesquisa e
interveno na realidade social. Aps
uma exposio da trajetria da pesqui-
sa-ao, distingue duas grandes tendn-
cias de releitura dessa modalidade de
pesquisa nos dias atuais: as abordagens
francesa e canadense, destacando-se,
respectivamente, Ren Barbier e Andr
Morin; e a abordagem australiana, cujos
principais expoentes so Wilfred Carr e
Stephen Kemmis.
Palavras-chave: pesquisa-ao; pesqui-
sa educacional; teoria e prtica
On action research in education and
the snares of practicism
Action research, a type of research
frequently employed in education, is
approached from the perspective of its
contributions and its double risk:
practicism and instrumentalization of
theory. Starting with a broad discussion
on the conditions and possibilities of
knowledge in social sciences in the
modern world, action research is
conceived as a proposal for research
and intervention in the social reality.
After discussing the trajectory of action
research, the article distinguishes two
strong tendencies in this modality of
research: the French and Canadian
approaches, emphasizing Ren Barbierand Andr Morin respectively; and the
Australian approach, whose main
exponents are Wilfred Carr and Stephen
Kemmis.
Key words: action research; educational
research; theory and practice
Sobre la pesquisa-accin en la
educacin y las trampas de la
practicidad
La pesquisa-accin, un modo de
encuesta muy utilizada en la
educacin, es abordada en la perspec-
tiva de sus contribuciones y de su
doble riesgo: la practicidad y la
instrumentacin de la teora. El artcu-lo parte de una amplia discusin sobre
las condiciones y posibilidades del
conocimiento en las ciencias sociales
en el mundo moderno, para situar la
pesquisa-accin como una propuesta
de pesquisa e intervencin en la
realidad social. Despus de una
exposicin de la trayectoria de la pes-
quisa-accin, distingue dos grandes
tendencias de relectura de esa
modalidad de pesquisa en los das
actuales: los abordajes francs y
canadiense, destacndose, respectiva-
mente, Ren Barbier y Andr Morin; y
el abordaje australiano, cuyos
principales exponentes son Wilfred
Carr y Stephen Kemmis.
Palabras claves: pesquisa-accin;
pesquisa educacional; teora y
prctica