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SOCIOLOGIA POLÍTICA DA GUERRACAMPONESA DE CANUDOS

Da destruição do Belo Monte ao aparecimento do MST

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Clóvis Moura

SOCIOLOGIA POLÍTICA DA GUERRACAMPONESA DE CANUDOS

Da destruição do Belo Monte ao aparecimento do MST

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Copyright © 2000, by Editora Expressão Popular

Projeto gráfico, Capa e diagramaçãoZAP Design

Foto da CapaIlustração: montagem tendo como fundo foto de Sebastião Salgado –manifestação dos camponeses em comemoração à conquista da FazendaCuiabá no sertão do Xingó, Sergipe, 1996.

Impressão e acabamentoCromosete Gráfica e Editora

ISBN 85-87394-06-1

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro pode ser utilizadaou reproduzida sem a autorização da editora.

1ª edição: Maio de 2000

EDITORA EXPRESSÃO POPULARRua Bernardo da Veiga, 14CEP 01252-020 - São Paulo-SPFone/Fax: (11) 262.4921e-mail: [email protected]

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Sumário

Apresentação .......................................................... 11

1. Sociologia política da guerra

camponesa de Canudos .................................... 21

2. Antônio Conselheiro:

um abolicionista da plebe ................................. 63

3. De Canudos ao Movimento

Sem Terra: novas perspectivas para

a revolução agrária no Brasil? ........................... 79

4. Depois do massacre de Canudos

os camponeses se rearticulam e lutam .......... 107

5. A Fênix renascida?

– O Movimento Sem Terra ............................ 125

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A libertação econômica, política, militar, de um povo doterceiro mundo, a renascença de sua identidade cultural

singular só pode se concretizar pela ruptura radical com acultura alógena dominante. Ou bem um povo do terceiro

mundo consegue conservar, ressuscitar, reinterpretar,transformar sua cultura ancestral autóctone, ou ele desaparece

como sujeito autônomo da história.

Jean Ziegler – A vitória dos vencidos.

“Toda história é remorso”

Carlos Drummond de Andrade.

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Para

Haroldo Lima e Mário Maestri,fanáticos defensores dos heróis de Canudos.

À memória de Paulo Fontelles,assassinado na luta pela revolução camponesa

no Brasil.

E para Jean Ziegler, lembrança fraterna.

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Apresentação

Quando em 1959, em São Paulo, aos 34anos, o jornalista, cientista social e militantedo Partido Comunista Brasileiro, ClovisMoura, publicou seu primeiro livro, Rebeliõesda senzala, registrou-se um novo marco nainterpretação da história do Brasil. Con-trariando todo o pensamento da época,mesmo o de seu companheiro de militânciaCaio Prado Júnior, o jovem estreante de-fendia desde então que, durante o períododominado pelo modo de produção escravistaem nosso país, o eixo fundamental da luta declasses se concentrou entre os senhoresbrancos e os escravos negros.

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Tanto os intelectuais do PC, como as uni-versidades brasileiras resistiram à sua tese,que no entanto irá encontrar repercussão nosEstados Unidos.

Para Moura, o problema é que os PCs –não apenas brasileiros, mas os latino-ameri-canos em geral – até o presente têm difi-culdade em entender a questão raça/classeque envolveu e envolve a problemática dosafricanos trazidos à força para as Américasdurante o período colonial. De acordo comele, quando o negro era trazido para o novocontinente, ele já vinha marcado, enquadradonuma classe: a de escravo. O não enten-dimento disto faz com que o papel do negroescravo e em seguida o do ex-escravopermaneça uma categoria não muito definida.Foi também nesse contexto que, afirmaMoura, se criou o racismo, que não atingeapenas as elites.

Para ilustrar a dificuldades dos PCs frenteà questão, o autor de Rebeliões da senzala contaque, durante o processo constituinte pós-Estado Novo, o deputado Hamilton Nogueira(UDN) apresentou projeto contra o racismo

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a ser incluído na nova Constituição. Noentanto, a bancada do PCB vota contra oprojeto, sob o argumento de que no Brasil nãoexiste luta de raças, mas de classes (!).

De qualquer modo, além de Rebeliões nasenzala ter se tornado base para cursos e estudosnos EUA e ser considerado um clássico naChina (onde foi traduzido), hoje, no Brasil, emsua quarta edição, é referência obrigatória paraestudiosos que rediscutem o tema.

Mas o escravismo e a questão negra cons-tituem apenas um dos quatro vieses da obradeste piauiense de Amarante, Clovis Steigerde Assis Moura, nascido em 10 de junho de1925, e que tem entre seus antepassados umbarão do império da Prússia (Ferdinando vonSteiger, seu bisavô pelo lado materno) e, pelolado paterno, a bisavó Carlota, a escrava negrade um português – seu bisavô. Os outros trêsvieses do seu trabalho se constituem peloestudo dos movimentos camponeses noBrasil; pelos ensaios e investigações teóricose, por fim, sua obra poética.

Com 24 títulos publicados, o autor acabade concluir seu Dicionário da escravidão negra

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no Brasil, que será lançado pela UniversidadeFederal do Rio de Janeiro – UFRJ. Tempronto também seu sexto volume de poemas,Duelos com o infinito.

O livro que ora apresentamos, faz parte deseus estudos sobre as lutas no campo bra-sileiro, texto inédito cedido por Clovis(incluindo direitos autorais) para a EditoraExpressão Popular. Aqui, além de importantereflexão teórica sobre a natureza e caráterpolítico dos movimentos sociais em geral, eem particular dos movimentos camponeses,o leitor encontrará os elos históricos que nosfazem entender a Guerra Canudos e oMovimento dos Trabalhadores Rurais SemTerra – o MST, como parte de uma mesmacadeia de resistência ao monopólio dapropriedade da terra em nosso país – um dospontos cruciais de nosso atraso econômico esocial. O comportamento das elites deantanho e do presente são, por sua vez, provascabais da permanência da ignorância,reacionarismo e truculência das forças quedesde sempre vêm dirigindo os destinos daNação.

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É isto enfim que nos ensina Clovis Mouraque desde após o levante de Natal em 1935(onde morava), ainda pré adolescente, passaa simpatizar com as idéias de esquerda, vindopor fim encontrar o Partido Comunistasomente em 1946, no interior da Bahia(Juazeiro) ao qual se ligará, militando naqueleestado até 1949, quando se transfere para SãoPaulo, passando a atuar na Frente Cultural,organismo que reunia Caio Prado, VillanovaArtigas, Artur Neves e outros importantesintelectuais comunistas.

Alipio FreireSão Paulo, maio de 2000

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A obra de Clovis Moura

1959 – Rebeliões da senzala, Ed. Zumbi-SP.Reedições: 1972, Ed. Conquista- RJ; Ed. CiênciaHumanas-SP, e 1988, Ed. Mercado Aberto-RS.

1961 – Espantalho na feira (poesia), Ed. Fulgor-SP

1964 – Argila da memória (poesia), Ed. Fulgor-SP. Reedição, Ed. Corisco-PI.

1964 – Introdução ao pensamento de Euclides daCunha, Ed. Civilização Brasileira-RJ.

1964 – Âncora do Planalto (poesia), Ed. do Brasil-SP.

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1976 – O preconceito de cor na literatura de cordel,Ed. Resenha Universitária-SP.

1976 – Sociologia de la Praxis, Editorial Siglo XXI,México.

1977 – O negro: de bom escravo a mau cidadão?,Ed. Conquista-RJ.

1977 – Manequins corcundas (poesia), Ed. IlaPalma, S. Paulo-Palermo.

1978 – A sociologia posta em questão, Ed. CiênciasHumanas-SP.

1979 – Sacco e Vanzetti – o protesto brasileiro, Ed.Brasil-Debate-SP.

1979 – Diário da guerrilha do Araguaia (apre-sentação), Ed. Alfa-Ômega-SP.

1981 – Os quilombos e a rebelião negra, Ed.Brasiliense-SP – 8ª edição, 1994.

1983 – Brasil: raízes do protesto negro, Ed. Global-SP.

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1984 – A imprensa negra, Imprensa Oficial-SP.

1987 – Quilombos: resistência ao escravismo, Ed.Ática-SP – 3ª edição, 1993.

1987 – História de João da Silva (poesia), Ed.Corisco-PI.

1987 – Da insurgência negra ao escravismo tardio(Separata de Estudos Econômicos) FEA/USP.

1988 – Sociologia do negro brasileiro, Ed. Ática-SP.

1989 – História do negro brasileiro, Ed. Ática-SP –2ª edição, 1992.

1990 – As injustiças de Clio – o negro na historiografiabrasileira, Ed. Oficina de livros-MG.

1994 – Dialética radical do Brasil negro, Ed. Anita-SP.

1995 – Flauta de argila (poesia), Ed. Mons.Chaves-PI.

1997 – Bahia de todos os homens, Ed. BDA-BA.

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Capítulo I

Sociologia política da guerracamponesa de Canudos

IntroduçãoCem anos depois da destruição de Canudos e

a morte dos seus defensores, há a necessidade dese resgatar da penumbra em que esteve até hojeo seu significado político. Movimento social dosmais significativos, é visto ainda ou através deuma manifestação de religiosidade popular, oucomo um simples episódio de misticismo no qualas populações sertanejas expressaram os seussentimentos de fanatismo religioso. O máximoque se costuma destacar nele é a manifestaçãode heroísmo dos seus habitantes, os quais lutaramabnegadamente até o último homem na defesade um “falso direito” na expressão de RuiBarbosa.

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O seu conteúdo de protesto organizado nadireção de reordenar as relações sociais no campo,expresso através de véus ideológicos possíveis ecompatíveis com a época e as circunstâncias émuitas vezes escamoteado e ressaltada a formamessiânica através da qual ele se expressou. Noentanto, Canudos é um dos movimentos sociaismais importantes da América do Sul e culminouna maior guerra civil do Brasil, depois da Cabana-gem no Pará e do Contestado em Santa Catarina-Paraná. O seu conteúdo social e por isto tambémpolítico não tem sido devidamente avaliado. Aguerra liderada por Antônio Conselheiro é o reflexoeloqüente e ao mesmo tempo incompleto (pelosuporte ideológico religioso em que se apoiou) dascontradições que existiam naquela época e aindapersistem nas relações sociais (no nível das relaçõesde produção) do nosso setor agrário. Eclodiu emplena zona agropecuária dos grandes latifúndiosdo interior da Bahia e a violência dos combatestravados entre os chamados fanáticos e as tropas doExército bem reflete o grau de antagonismo a quehaviam chegado as relações entre o latifúndio e amassa camponesa explorada da época...1.

É verdade, sabemos, que muita tinta já foi gastapara estudar-se esse movimento como sendo defanáticos, messiânico, religioso, místico e mesmopré-político, mas nunca, ou quase nunca, comosendo um protesto radical da massa camponesa por

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melhores condições sociais. Com isto, exclui-se omovimento de Canudos do nosso processoemergente de transformação social, de mudançasocial e de protesto social colocando-o, por isto,como atípico, marginal e divergente daquilo queseria a nossa evolução histórico-social normal. Daíprocurarem enquadrar o seu principal líder comopessoa exótica, louca, delinqüente ou dominadopor complexos patológicos. E, por outro lado, amassa camponesa que o seguia como composta deignorantes, fanáticos e possuídos de fantasiasalucinatórias. Esses estudiosos destacam este ladoconstantemente, obscurecendo o estudo objetivodas causas pelas quais a massa camponesa seguiuo seu líder, organizou-se e depois pegou em armascom tanta obstinação, dando um exemplo deheroísmo como encontramos poucos na históriacontemporânea. Mas isto só será corretamentecompreendido se atentarmos nos fatos objetivos,no comportamento social dos seus membros, nasua criatividade construtiva e não nos preconceitosideológicos daqueles que o estudaram.

Desmoralizado demais o viés racista queapontava Antônio Conselheiro como um mestiço– de fato, no seu registro de nascimento ele é tidocomo pardo – e, por isto, como um desequilibrado,com os desequilíbrios que a mestiçagem propor-ciona e os camponeses que o seguiam como sendopossuídos de loucura coletiva, as ciências sociais

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tradicionais ideologicamente subordinadas aestereótipos elitistas e preconceitos de classeprocuraram outros caminhos “científicos” paraexplicar a excepcionalidade do movimento e osmotivos que determinaram não se poder colocá-locomo um capítulo dos mais importantes da nossahistória social e política, mas como simples casode patologia social2.

Surgem então as explicações messiânica, pré-lógica, carismática e finalmente pré-política domovimento. Criou-se um conceito de movimentosocial no qual somente seriam consideradospolíticos aqueles que tivessem condições deelaborar um programa de ação e de governo deacordo com os postulados da Revolução Francesae que desembocassem, como conclusão, em umprojeto liberal. Fora desse caminho não haveriasalvação. Os demais seriam formas arcaicas demovimentos sociais, banditismo social, milena-rismo, mas todos fora dos padrões normativos eideológicos que dariam as razões para seremreconhecidos como políticos.

Embora o conceito de movimento pré-políticotenha sido cunhado por um historiador grande-mente ligado ao pensamento marxista – E. J.Hobsbawm – acreditamos que ele é eurocêntrico,elitista e uma forma neoliberal de se analisar einterpretar a dinâmica social. Se o aceitarmosseriam excluídos como políticos todos os movimen-

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tos do chamado Terceiro Mundo. A luta de Zapatae Pancho Villa no México, a de Sandino, naNicarágua, o movimento camponês de Pugachov,na Rússia, todos os movimentos de libertação daÁfrica Negra como o kinbangista, incluindo-se osMau Mau e o de Lumumba. Todos seriamenglobados genericamente sob o título demilenarismo, salvacionismo ou banditismo sociale com isto seria descartada a essência dos mesmos,conservando-se apenas a sua casca exterior, a suaforma, sem, no entanto, decifrar-lhe o seu conteúdopolítico. Marx, no entanto, já nos advertia de quese a forma dos fenômenos fosse idêntica ao seuconteúdo não haveria necessidade da ciência. Emrelação aos movimentos sociais dizia, por istomesmo que “não haverá jamais movimento políticoque não seja social ao mesmo tempo. Não serásenão numa ordem de coisas na qual não haja maisclasses, que as evoluções sociais deixarão de serrevoluções políticas”3. Achamos, por estas razõesque todos os movimentos que desejam mudançasocial são movimentos políticos apesar do fato dosseus agentes coletivos não terem total consciênciadisto. O que vale e determina é o nível deconsciência social de cada um e as propostassubseqüentes para a mudança projetada. Mas todosse enquadram (com maior ou menor nível deconsciência social) na proposta da transformaçãorevolucionária (ou não) da sociedade.

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Ainda na direção de desmascarar o conteúdoideológico e anti-científico do conceito de pré-político a professora Zilda Márcia Gricoli Iokoiescreve com razão que “ao enfrentar Canudos, oEstado atribuiu ao grupo de Antônio Conselheiroum caráter político, sendo seus membros qualifi-cados de monarquistas e combatidos como sefossem ‘os subversivos da República’. Euclides daCunha, jornalista do Estado de São Paulo, que apósacompanhar todo o movimento escreveria o clássi-co Os Sertões, desqualifica o grupo politicamente,afirmando que se tratava de um bando de miserá-veis, famintos e infelizes, que precisavam dereformas sociais. Era a mea culpa de um intelectualliberal que percebeu que o projeto político liberal,não podendo absorver os conflitos sociais, preferiuo massacre.

A produção acadêmica sobre o conflito não édiferente. Maria Isaura Pereira de Queiroz, em Omessianismo no Brasil e no mundo, qualifica o movi-mento como pré-político. Enfatiza a inexistência deuma dimensão política, de um projeto, como se omovimento não estivesse agindo pela transformaçãoda sociedade. Considera que esses homens serebelaram e morreram como fanáticos por nãocompreenderem a realidade. A crendice, a igno-rância e o fanatismo terminaram levando ao conflito.

Em Canudos não existia efetivamente umaestrutura partidária que aglutinasse o movimento,

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muito menos um projeto para o conjunto da nação.Mas tanto na teoria como na prática criou-se umacomunidade de pessoas que elaboraram sua própriadefinição para a educação, para a moral, para areligiosidade, para o trabalho, para a defesa etc. Oque se pode analisar são os limites da utopia, masnão negá-la enquanto proposta política. A questãoque se coloca é por que os camponeses tiveramque ser liquidados. Era impossível permitir aorganização e a luta que ameaçavam as instituiçõesburguesas em vários níveis, e dessa forma elasprecisavam ser eliminadas”4.

Por outro lado, o conceito de messianismo temo defeito básico de ser derivado do métodotipológico de inspiração weberiana que define osmovimentos sociais e culturais apenas pela formade que se revestem no nível das idéias (superes-truturas) e com isto explica tudo e não explica nada.Isto porque os movimentos que se apresentam daforma messiânica podem ter várias essências e comisto significados sociais diferentes ou mesmoantagônicos. Souza Barros listou vinte e doismovimentos messiânicos e pára-messiânicosincluindo no mesmo plano (messiânicos) o deCanudos e o de Juazeiro. Coloca, desta forma,como idênticos de conteúdo social o movimentode Antônio Conselheiro (Canudos) e o do PadreCícero (Juazeiro do Norte). No entanto, no seusentido sociológico preciso os dois não podem ser

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equiparados nem pela composição e essência dosseus agentes sociais, nem pelas contradições queprocuravam resolver, nem pelas propostas de ação.O primeiro era composto de camponeses pobresque se auto-organizaram para uma vida comunitáriaautônoma. O segundo tinha uma proposta decontrole social da massa camponesa através de umaliderança da classe média a serviço das oligarquiaslocais5.

As propostas sociais e políticas dos dois erampor isto antagônicas. Antônio Conselheiro, atravésda forma messiânica de comportamento criou umacomunidade camponesa autônoma, enquanto opadre Cícero (também de forma messiânica)inseriu os seus romeiros em uma ordem explo-radora, onde os níveis de exploração e níveis depoder continuaram intactos e as relações deprodução da região foram consolidadas. Estadiferença foi destacada inclusive por um observa-dor do assunto adepto do Padre Cícero que assima assinala: “Que seria do sertão se esse homem(Padre Cícero) que exercia irresistível fascinaçãosobre as multidões do Nordeste, em vez de orientá-las para o Bem se convencesse do seu própriomessianismo e assumisse atitudes agressivas deresistência à ordem e a Lei como AntônioConselheiro e José Maria no Contestado?6

Como se pode concluir, o problema que ossepara é que Antônio Conselheiro estava contra a

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ordem latifundiário-oligarquica (embora sem plenaconsciência disto) e o Padre Cícero ordenava osseus adeptos a seguirem-na, condicionando-os àobediência dos seus valores e interesses. Daí, oconceito de messianismo ter de ser acompanhadode uma análise dialética (estrutural) das relaçõessociais fundamentais (relações de produção),descobrindo-se, assim, o projeto social que cadaum representa no processo de mudança social, ascausas que os determinaram e, em conseqüência,a direção que adquiriram no sentido de solucionaros problemas das classes exploradas e/ou excluídasque deles participaram ou colocá-las sob o controledas classes exploradoras. Aí é que o conceito demessianismo – por só analisar a forma – é ambíguoe insuficiente se não for acompanhado pela suaanálise dialética. Se isto não for feito, ignora-se onexo causal que determinou a possibilidade doaparecimento desses movimentos, pois não foramanalisados os elementos concretos (estruturais) queos determinaram. Isto é, a dinâmica dos mesmosficou sendo apresentada através da aparência. Vistaatravés de formas de pensamento abstratodesligado da sua base material, como epifenômenoe por isto mesmo historicamente inexplicável.

Até que ponto e em que proporções os seusagentes sociais têm percepção dos mecanismosdinamizadores da mudança já é outro problema eexige um outro nível de análise teórica. Hegel dizia

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que a África era um continente sem história. Poriguais razões poderíamos dizer que todos osmovimentos sociais do chamado Terceiro Mundonão têm essência política e por isto fogem a lógicada história. Seriam movimentos que refletiriamapenas descontentamentos que surgem paraperturbar a harmonia da normalidade. Por outrolado, se assim pensarmos, todos os movimentosinsurrecionais dos servos durante a Idade Médiacontra o feudalismo não teriam conteúdo políticoem conseqüência da sua forma de misticismoreligioso. No entanto, F. Engels escreveu que a“oposição revolucionária contra o feudalismomanifesta-se através de toda a Idade Média.Segundo circunstâncias aparece como misticismo,heresia aberta ou insurreição armada. No que serefere ao misticismo já se conhece até que pontoos reformadores do século XVI sofreram suainfluência. Também Münzer muito lhe deveu”7.

Como se pode ver, o conceito de políticatranscende em muito ao seu aspecto imediato eexplícito para abarcar as manifestações maisinformais e imanentes da plebe rural a qual, mesmosem um conceito iluminista do que se podeentender por política, pratica-a no seu desejo demudança e de aperfeiçoamento das suas institui-ções, embora sem uma visão conceitual elaboradae requintada. O que Engels afirma sobre osmovimentos camponeses da Idade Média pode ser

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repetido em relação aos movimentos da plebecamponesa no Brasil.

O que desejamos dizer, finalizando estasconsiderações introdutórias é que o movimento deCanudos foi um movimento social e por istomesmo político e que somente se assim oanalisarmos e interpretarmos poderemos com-preendê-lo cientificamente.

A fundação do arraialQuando Antônio Conselheiro fundou o arraial

de Canudos (Belo Monte), fê-lo decidido a marcaruma nova etapa na luta que vinha liderando. Desde1874, quando pela primeira vez se tem notíciassuas, nas províncias de Bahia e Sergipe até afundação do arraial em 1893 passaram-se pratica-mente vinte anos. Durante esse período operegrino foi preso, perseguido pelo clero e travouuma escaramuça com a polícia. Já havia portantoexperimentado a força do Estado contra a suapessoa e seus seguidores e disto assimilara aexperiência. Havia, portanto, no seu pensamentoa intenção de fazer uma mudança nas estratégiasde sobrevivência para si e para os seus adeptos.Durante esse grande período resolveu estabeleceruma base territorial para o movimento. Percorreupara isto os atuais estados de Alagoas, Sergipe,Pernambuco e Bahia até chegar à região deCanudos. Isto porque, segundo um dos seus

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biógrafos, Abelardo Montenegro, ele previa novasperseguições, depois de haver desbaratado tropasda polícia em Masseté, fato que o deixou marcadopelas autoridades políciais.

A fazenda onde Antônio Conselheiro se instaloucom o seu povo era uma área de grande extensão eque se achava abandonada desde 1891. Ficava numentroncamento das estradas de Geremoabo, Uauá,Cambaio, Rosário, Chorrochó e Curral dos Bois.Para Mário Maestri e José Rivair Macedo “sualocalização geográfica era típica do sertão. Situadaa aproximadamente 270 quilômetros de distânciada capital do Estado, distanciado das planícies daregião costeira, o povoado era circundado porexcepcionais irregularidades do relevo, desta-cando-se grandes serras e montanhas, como a SerraGrande, a do Atanásio, a de Cambaio, a deCoxomongó, a de Calumbi e a de Aracati. Nasproximidades imediatas do arraial de Belo Monte,estava o Morro da Favela”8.

O local era dos mais favoráveis para o início daconstrução do arraial pois estava protegido porserras pedregosas em cujas vertentes se estendiamcaatingas. “Para se chegar lá – escreve AbelardoMontenegro – o caminhante teria de atravessaruma zona sem água e sem recursos”9. Como aindadiz o mesmo autor “Antônio Conselheiro não seconsiderava mais o peregrino, o missionário secular,o evangelizador que palmilhara o sertão no

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desempenho da missão divina. ‘Julgava-se oConselheiro’”10.

Instalou-se por isto em “lugar bem seguro”como afirma Rui Facó, construindo celerementeo seu reduto defensivo que batizou de Belo Montee que depois ficaria celebre com o nome deCanudos.

“Havia cinco anos que fora abolida a escravaturanegra e quatro de proclamada a República quandochegou a Canudos a gente do Conselheiro. Masaquelas mudanças na fisionomia política do País,imposta embora por certas modificações naestrutura econômica, em nada melhoraram a sortedos trabalhadores e muito menos da grande massado campo submetida pelos senhores latifun-diários”, ainda explica Rui Facó11.

Correndo a notícia da fundação do arraial, logopara lá se dirigiram pessoas de vários estados doNordeste como do Ceará, Pernambuco, Alagoas,Minas Gerais e até de São Paulo, todos procurandoencontrar melhores perspectivas de vida. Grandemassa de camponeses pobres, remediados e mesmoelementos de outras profissões para lá acorreram naânsia de melhorar o futuro e, ao mesmo tempo emdecorrência da fama de que já gozava AntônioConselheiro na região. Em conseqüência, o arraialcresce rapidamente num ritmo febril que mais seacentua com a chegada incessante de novosperegrinos que se fixam no local. Diz neste sentido

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Marco Antônio Villa que “as casas são construídaspelos próprios sertanejos e, apesar das tentativas deAntônio Vilanova de organizar uma ocupaçãoplanejada do espaço urbano, o que se vê sãoconstruções que se espalham ao longo do Vaza-Barrise pelas encostas à semelhança da maioria das cidadesbrasileiras da época principalmente durante o últimoano de vida da cidade, quando cresceu em ritmovertiginosos”12.

O interior dessas casas retratava a pobreza daeconomia da região. Euclides da Cunha, possi-velmente depois de percorrer algumas durante osintervalos dos combates afirma: “compreende-seque haja povos vivendo, ainda, felizes e rudes nasafrantuosidades fundas das rochas; que o caraiba,feroccíssimo e aventureiro se agasalhe bem nastubanas de paredes feitas de sebes entrelaçadas detrepadeiras agrestes e tetos de folhas de palmeirasou caucásios nas suas burkas cobertas de couro –mas não se compreende a vida dentro dessas furnasescuras e sem ar, tendo por única abertura, às vezes,a porta estreita da entrada e cobertos por um tetomaciço e impenetrável de argila sobre folhas deicó”. A mobília é assim descrita por ele: “um bancogrande e grosseiro (uma tábua sobre quatro pésnão torneados): dois ou três banquinhos; redes decruá; dois ou três baús de cedro de três palmossobre dois. E toda a mobília. Não há camas; não hámesas, de modo geral”13.

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O arraial assim construído tinha um centro co-mercial, uma escola e obviamente uma igreja, alémdo templo novo que nunca foi terminado, servindode fortaleza defensiva na última fase da invasão.

Como diz ainda Marco Antônio Villa, “apesarda importância econômica, como centro criador degado, e política, como um dos maiores núcleoscomerciais do interior, o poder público nunca seimportou por Canudos. O governo estadual nãooficializou o município, não designou delegado,juiz e outras autoridades. A criação de uma escolafoi uma iniciativa da comunidade. A professoraMaria Francisca de Vasconcelos, de 26 anos, quetinha cursado a Escola Normal de Salvador, seestabelece em Canudos. Sua importância socialpode ser medida pela, designação da rua em quemorava: a rua da professora”14.

Com o passar do tempo essas relações comu-nitárias vão ficando mais complexas. Há uma novadivisão de poderes internamente e AntônioConselheiro passa a exercer principalmente asfunções religiosas, embora a religião nesse contextodesempenhasse um papel político muito acen-tuado como bloco de poder. A gestão pública passaa ser dividida, ficando nas mãos de outros líderes:João Abade, Pajeú, Joaquim Macambira, AntônioVilanova e outros.

João Abade ao que tudo indica, ficou res-ponsável pela segurança do arraial, pois frei

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Evangelista de Monte Marciano que esteve emCanudos em 1895 em uma santa missão deespionagem diz que ele era tratado pelos seushabitantes de chefe do povo e comandante do povo.Chefiava também a Guarda Católica ou Com-panhia do Bom Jesus, organização armada que eraresponsável pela segurança de Antônio Conse-lheiro e por ordem no arraial. José Calasans informaneste sentido que ele já se tornara pessoa destacadado movimento antes da chegada a Canudos.Dirigira em maio de 1893 o primeiro choque dosjagunços com soldados da polícia baiana. Nascerano sertão, vila de Tucano, Bahia. “Descendia deboa família do Pé da Serra, informou José Aras, noseu livro Sangue de Irmãos. Antônio Cerqueira Galo,em carta ao Barão de Geremoabo, chefe políticodo Nordeste baiano, garantiu que o ‘chefe do povo’era de Tucano. (...) Frei João Evangelista, no diada sua malograda Santa Missão em Canudos, viucom os próprios olhos a capacidade aliciadora dosertanejo de Tucano. João Abade, usando um apito,convocava gente canudense, fazendo e desfazendo,lançando contra os capuchinhos da Piedade opovão do Belo Monte. (...) Somente a morte iriaafastá-lo da chefia indiscutível dos fanatizadoshomens do Bom Jesus Conselheiro. (...) Foiatingido por um estilhaço no patamar de uma dasigrejas, ao cruzar a praça na direção do Santuário,morada do Conselheiro”15.

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Quanto a Pajeú, o mesmo autor informa queera “um eficiente chefe de guerrilhas. ManuelBenício consignou a seu respeito: ‘Negro, ex-soldado de linha, enxotado e perseguido pelapolícia de Baixa Verde, em Pernambuco, porocasião do motim de Antônio Diretor, ondecometera diversos crimes’. José Aras fala de suacondição de soldado, desertor, por crime, da políciade Pernambuco. Natural de Riacho do Navio, lugarchamado Pajeú, donde o apelido. (...) Soldado delinha ou de polícia. Pajeú teria alguma vivênciamilitar, aproveitada nas guerrilhas de Canudos.Pelo que se disse a seu respeito, o negro pernam-bucano era ardiloso, bom de tocaia. Conforme orepórter do Estado de São Paulo, Pajeú morrera emjulho notícia que se choca com outras informaçõesa respeito do seu fim. Percebe-se que viveu alémdo citado mês. Em setembro, Lelis Piedadedeclarou que parecia sem fundamento a notícia desua morte”16.

Joaquim Macambira era mais administrador quesoldado. Para José Calasans ele “desempenhoupapel saliente na comunidade por ser homem debem, um negociante acreditado, que mantinharelações comerciais com os seus colegas daslocalidades próximas, amigo do coronel JoãoEvangelista Pereira de Melo, abastado proprietárioem Juazeiro, a quem encomendou o tabuado paraa igreja nova de Canudos, ponto de partida da

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guerra sertaneja. Era o mais prestigioso dos adeptosde Antônio Conselheiro fora do arraial. Faleceudurante a guerra.

Antônio Vilanova era um dos mais influentesmembros da comunidade. Na hierarquia vinha logoabaixo do Conselheiro. Negociante capaz, dirigiaa economia e a política. Resolvia pendências locais,fazendo ás vezes de juiz de paz.

Se esta era a organização política e adminis-trativa, do ponto de vista econômico-financeirohavia um sistema de circulação monetária eficientee plenamente satisfatório aos objetivos dacomunidade. “O dinheiro não circulava emCanudos, e o existente era mantido em um cofresob a responsabilidade de Antônio Vilanova que,para intercâmbio interno, emitia um vale. Com opassar dos anos, esse vale era também aceito nascidades vizinhas, revelando não só a carência domeio circulante como também sua importâncialocal e para a região circunvizinha. “É uma faláciaafirmar que em Canudos só circulava dinheiromonárquico e que Antônio Conselheiro não tocavaem dinheiro republicano: ele não pegava emdinheiro de nenhuma espécie”17.

Através dessa dinâmica demográfica e organi-zação sócio-política, Canudos de simples fazendaque fora constituía agora um arraial. Havia crescidotambém o seu espaço físico graças a invasão deterras vizinhas abandonadas. Transformara-se em

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ativo centro de comércio. Os comerciantes deMonte Santo e Cumbe, Uauá e outras localidadesvizinhas, segundo informações de HonórioVilanova tinham inveja de Canudos, porque oscomerciantes do arraial não pagavam impostos eprosperavam. Ainda Abelardo Montenegro afirmaque “havia gado para o açougue. Os paióiscontinham provisões. As roças estavam plantadas.Enquanto isto a influência de Antônio Conselheirose estendia pelos sertões, aumentando, por isso, otemor dos fazendeiros e das autoridades”18.

Mas, a carne que estava no açougue tinha umaprocedência: decorria de uma atividade pecuáriaintensa e da racionalização de sua distribuição.Além da carne para a alimentação dos seushabitantes, criou-se uma indústria de couro quedava para ser largamente exportada. Os curtumeslocalizavam-se às margens do rio Vaza-Barris, aolado das roças de legumes, cana-de-açúcar, batata,feijão, mandioca, melancia que eram cultivadas nasterras que os sertanejos recebiam de AntônioVilanova quando chegavam ao arraial. Haviatambém atividade metalúrgica fabricando-se noarraial machados, facas, foices para serem usadasnas atividades agrícolas e possivelmente militares.Fabricavam também a pólvora com o salitre local,o enxofre próximo do São Francisco e relati-vamente próximo a Canudos e a galena argentíferado Assuruá.

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Desenvolvia-se, assim, uma economia comu-nitária e alternativa auto-suficiente bem superiornas suas relações sociais e na distribuição da suaprodução aquela latifundiária baseada na explo-ração camponesa do resto da região. Daí o ódio e otemor dos fazendeiros e das autoridades ao seucrescimento e ao nome do seu líder AntônioConselheiro.

Para o latifúndio Canudos era um exemplodesafiador e perigoso.

Prepara-se a defesaPara garantir a integridade territorial do arraial e

manter a organização interna de Canudos, foramcriados mecanismos administrativos e militares.Antes das invasões das tropas republicanas, a suamais importante organização militar era incontes-tavelmente a Guarda Católica, comandada por JoãoAbade, composta de setecentos ou mil homens. Era,um corpo remunerado, mantido pelo próprio Conse-lheiro com recursos angariados entre os fiéis. Essaguarda também era conhecida por Companhia doBom Jesus e foi criada com fins defensivos pois,segundo o próprio frei Marciano ao interpelar oConselheiro porque tanta gente armada em Canu-dos, ele lhe respondeu: “É para a minha defesa quetenho comigo esses homens armados, porque V.revma. há de saber que a polícia atacou-me no lugarchamado Masseté, onde houve mortos de um e do

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outro lado”. Esses membros da Companhia do BomJesus, segundo o mesmo frei Marciano era composta“de mil homens e se vestiam de camisa, calça e blusaazulão, gorro azul à cabeça, alpercatas aos pés”19.

Durante a paz esse efetivo militar permaneciano arraial. Com o início das hostilidades, houvenecessidade de se distribuir esses comandados deJoão Abade para as missões de vanguarda em Uauá,Serra do Cambaio, Cocorobó, Umburanas e outraslocalidades ou pontos avançados móveis. Piquetesforam colocados em pontos estratégicos e entre-gues a chefia de lutadores corajosos, alguns comexperiência da luta armada, de guerrilhas. Ficaramconhecidos como comandantes de piquetes, tendoEuclides da Cunha recolhido alguns dos seusnomes e postos avançados.

Esses piquetes eram compostos de, em média,vinte homens. Para Cocorobó e caminho de Uauáforam designados os irmãos Mota (ou Mata), sendoque João, caboclo moço, movimentou-se nessesdois pontos e Chiquinho de Maria Antônia pareceter andado também em Canabrava. O negroEstevão, com fama de malvado segundo JoséCalasans, tomou conta da estrada do Cambaio,onde se distinguira anteriormente, por ocasião daexpedição Febrônio de Brito e o guerrilheiro JoãoGrande, chefe de caboclos de Rodelas. Gozava afama de bom jogador de facão, morreu des-pedaçado por uma granada20.

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Após a segunda expedição, no entanto, a lutase transformou em guerra de todo o povo, não sedistinguindo mais os seus habitantes em ativos epassivos. Todos dela participavam, dependendodas circunstâncias. Neste nível de participaçãovamos encontrar até velhos, mulheres e crianças.Canudos transformou-se em uma imensa fortaleza.As mulheres deram exemplo de combatividade,abnegação e heroísmo. A maioria preferia a mortea deixar-se aprisionar, e mesmo quando prisioneirasadquiriam uma atitude de altivez tão desafiadoraque terminavam sendo degoladas sumariamentepelos soldados do Exército.

Macedo Soares escreve neste sentido que “asmulheres uivavam de cólera, animando os maridose irmãos, limpando as armas e preparando-lhes aparca refeição”. Como diz ainda o mesmo autor,“todos entre eles que podiam empunhar uma armacombatiam. Até os meninos auxiliavam-nos”21.

A trajetória do arraial foi pontuada por duasetapas significativas. A primeira foi a da suafundação, construção e desenvolvimento, quandose criou o espaço urbano no qual a sua populaçãoestabeleceu-se, produziu e elaborou uma comu-nidade apropriada a vencer as vicissitudes do meioe manter a harmonia social entre os seus membros;a segunda foi a de se preparar para o pior,estabelecer a sua estratégia de resistência eorganizar-se para a luta em defesa do patrimônio

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construído cultural e socialmente. O epílogo foi asua destruição total depois de resistir heroicamentea três expedições enviadas contra o arraial.

Guerra nacional: Canudos ameaça a PátriaDiante do fracasso da terceira expedição, os

brios do Exército são desafiados e inicia-se umaverdadeira mobilização militar, política, cultural eideológica contra os canudenses. É como seestivéssemos em guerra com uma grande potênciainimiga. A recém-fundada República sentia-seabalada nos seus alicerces e o seu maior inimigo,aquele que mais ameaças apresentava a suaestabilidade eram os camponeses de Canudos.

A montagem desse perigo é habilmente adminis-trada por todos aqueles que tiravam partido com aescolha de um bode expiatório para o qual todas ascontradições e desajustes da República seriamdirigidas. Até auxílio de forças estrangeiras foramdescobrir ajudando impatrioticamente os conse-lheiristas naquilo que caracterizaria em uma traiçãoà pátria.

De fato, o que acontecera era incompreensívelpara a mentalidade do Poder da época. Oscamponeses de Canudos haviam derrotado tropascomandadas a princípio por um tenente, depoispor um major e finalmente por um coronelreputado como representativo da elite do ExércitoNacional. Com a derrota e morte de Moreira Cesar

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houve uma síndrome do medo a qual se exteriorizouno discurso restaurador: Canudos nada mais era doque um foco de monarquistas que desejavam fazervoltar o antigo regime. A República recém-proclamada estava sendo desafiada. E as vitóriasmilitares dos canudenses punham-na em perigo.Urgia, portanto, uma resposta à altura. Com estediscurso, todas as possíveis restrições à guerra deCanudos foram psicologicamente neutralizadas ea opinião pública se uniu diante de um objetivoinadiável: liquidar-se a sua população e o seu líderde forma que o exemplo servisse para todosaqueles que desejassem desestabilizar a República.Um verdadeiro delírio de patriotice tomou contadas classes dominantes, elites de poder, classemédia, intelectualidade, políticos, militares,imprensa e oportunistas de toda laia. O objetivonacional e imediato era destruir o reduto deAntônio Conselheiro. Um monarquista. Gentil deCastro, foi brutalmente assassinado no Rio deJaneiro. Jornais monarquistas foram empastelados.Vivia-se o dia do resgate da honra nacional. Umfantasma percorria a pátria: os monarquistas“restauradores” de Canudos. “As nossas armasestão cobertas de crepe”, dizia o ministro da Guerrae o jornal O País notíciava diariamente osacontecimentos sob um título denunciador: “ACatástrofe”. E, de fato, a expedição Moreira Cesarfora exatamente isso.

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Os guerrilheiros de Canudos não apenasderrotaram os soldados da poderosa expediçãomilitar, mas, também abateram seu comandante eos melhores oficiais que a compunham, inclusiveo coronel Tamarindo que o substituíra. Como dizRui Facó com propriedade “o aniquilamentocompleto da força militar tão numerosa para aépoca e para as circunstâncias, a perda de todas asarmas e munições, agora em poder dos camponesessublevados, criou uma situação de pânico entre asclasses dominantes do Brasil inteiro”22.

A luta final inicia-se com os conselheiristas jámuito mais bem armadas em face da apreensãodas armas e munições das outras expedições,especialmente da comandada por Moreira Cesar.Aprenderam também a conviver com a violência.Era uma guerra cujas armas e estratégia não foramescolhidas por eles. Pelo contrário. Os invasoresforam aqueles que determinaram as normas deconduta no conflito. E eles ensinaram que setratava de uma guerra de extermínio e não haviacomiseração com o inimigo. Os militares tinhamcomo norma a degola e o suplício dos prisioneiros.A “gravata vermelha” não perdoava nem asmulheres e crianças. Os camponeses somenteentraram nela para defender as suas terras e as suasfamílias atacadas. Os assaltantes justificavam aviolência apenas pelo poder, pela posse e manu-tenção dos seus privilégios, os privilégios das

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oligarquias que representavam e no ódio a tudoaquilo que significasse a legitimação dos direitosdos camponeses. Os canudenses aprenderam alição. Isto irá explicar as grandes baixas nas fileirasdo Exército. Basta dizer que a 4ª expedição aochegar a Favela tinha perdido 1.200 homens numtotal de 4.300. No combate de 18 de julho, que asarmas legais consideraram uma vitória, dos 3.500soldados e oficiais lançados ao ataque, mais de milforam postos fora de combate e o número deoficiais mortos e feridos deixara muitas unidadessem comando. Nesse mesmo dia batalhões de 400soldados e oficiais ficaram reduzidos a 300 e até àmetade. Um batalhão teve seis oficiais mortos equatro feridos. A ala da cavalaria foi desbaratada enesse mesmo dia ficaram fora de combate 67oficiais sendo 27 mortos.

Nessa altura da guerra a violência do oprimidoe agredido contrapôs-se a violência do agressor eos camponeses passaram a não fazer mais prisio-neiros, mesmo porque não havia mais condiçõespara alimentá-los e alojá-los. Eram por istoexecutados. E não podia ser de outra forma. Oscanudenses lutavam contra tropas infinitamentesuperiores. A primeira expedição era composta de100 soldados, a segunda de 600, a terceira de 1.200e a quarta de cerca de 10 a 12 mil soldados.Venceram as três primeiras e só foram derrotadospela última, depois de infringir enormes baixas ao

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inimigo. Canudos demonstrou com o seu heroísmoe sacrifício como os camponeses brasileirosestavam cientes de que não haveria terceira posiçãonaquela guerra. Ou sairiam vencedores ou seriamdefinitivamente destruídos.

Derrota camponesa e terrorismo republicanoOs grandes proprietários de terras e as estruturas

de poder que os representavam saíram vitoriosos.E com eles os liberais que deram o golpe de estadorepublicano inspirados nos postulados da Revolu-ção Francesa embora conservassem a mesmaestrutura de poder e pólos de dominação dasociedade escravista. O liberalismo republicano,num pacto com as oligarquias latifundiáriasdestruíram até o último homem os habitantes deCanudos que ousaram pôr em execução um projetode sociedade igualitária e de comunitarismorústico, mas capaz de satisfazer os seus desejos enecessidades23.

A vitória sobre Canudos representou a vitóriadas forças mais arcaicas da sociedade brasileira quese diziam representantes do progresso e damodernidade. Canudos para elas seria o atraso, ofanatismo, a loucura e o antigo. Inverteram ostermos da realidade. E comemoraram o massacrecomo se ele tivesse sido uma festa cívica na qualtodos os valores de liberdade, igualdade efraternidade estivessem representados. Apenas

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algumas vozes isoladas de estudantes se fizeramouvir denunciando o crime, verdadeiro genocídiopraticado contra os habitantes de Canudos. Mas, aopinião pública manipulada via-a como um feitopatriótico do nosso glorioso Exército. Para os seusautores o fundamental era a preservação da ordemoligarquico-latifundiária (capitalista) que substi-tuíra os privilégios senhoriais da ordem escravista.

Neste episódio, como podemos ver sem muitoesforço, o racional e o moderno sociologicamente(no sentido de projetar um tipo de sociedade quesatisfizesse as necessidades dos seus membros)estava com os canudenses e a irracionalidade e oatraso estavam com os membros de uma sociedadeque embora tecnologicamente mais avançadadesenvolvia um modelo (sociedade capitalista) noqual os níveis de exploração do trabalho eram cadavez mais violentos e alienados. A tecnologia, nestecaso, servia para desenvolver uma sociedadebaseada na exploração e em Canudos, mesmo como atraso tecnológico que existia, a produção erasuficiente para suprir os seus habitantes donecessário e ainda comerciar excedentes, porquea distribuição era feita de forma comunitária. Estaera a contradição entre as duas sociedades que sedefrontaram: de um lado Canudos que desenvolviaum tipo de sociedade comunitária e solidária,embora as suas forças produtivas fossem aindarudimentares e a outra tecnologicamente muito

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mais evoluída, mas cujo modelo era a exploraçãodo trabalho da maioria dos seus membros peloslatifundiários. Essa inversão de valores é que nãofoi ainda analisada devidamente. Daí ter-sedificuldades em apresentar a guerra civil deCanudos como política. Descartar de Canudos oseu conteúdo social e político é esvaziá-lo daquiloque ele tem de mais importante e o motivo quejustifica a sua permanência na história. Canudosconseguiu, através de uma ordenação política dasua produção equilibrar as contradições quepoderiam existir na distribuição da sua rendainterna. Com isto, os seus membros encontravam-se alocados em um universo no qual as suasnecessidades materiais e espirituais eram satisfeitase os pólos de diferenças entre os seus membros(indivíduos e grupos) eram muito pequenos e nãochegavam a alterar o equilíbrio social.

Daí essa unidade de comportamento social dosseus membros quando ela foi atacada. Emboraenvolta em anteparos ideológicos místicos, o queeles defendiam era a comunidade que funcionavacomo um universo coletivo porque dava pratica-mente a todos os seus membros o direito às fontesde participação econômica e social.

Surge daí o conceito de “falso direito” atribuídopor Rui Barbosa aos cidadãos de Canudos. Etambém a forma lamentativa usada para chorarema morte dos seus habitantes, mas sempre ressal-

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vando o erro fundamental de terem se deixadoiludir por um pregador no mínimo alucinado.Acham que o remédio era necessário, mas a dosepode ter sido excessiva... Não analisam o seuheroísmo como conseqüência da convicção doscanudenses de que a outra sociedade – aquela quese contrapunha à deles – era uma sociedadeexploradora e por isto queria implantar através dasarmas os seus padrões de exploração. Sabiam,também, que o exemplo de Canudos devia serextinto para que não se propagasse na região,criando centenas de comunidades alternativascomo a do Conselheiro, contrapondo-se à ordemlatifundiária, exploradora do trabalho camponês eatravés dessa convicção (possivelmente apenasintuída muitas vezes) resistiram até o últimohomem.

Mas, para os republicanos o fundamental era apreservação da ordem latifundiária-oligárquica. RuiBarbosa chegou a redigir um discurso denunciandoa selvageria da repressão comandada pelo Exércitoe ordenada pelos políticos do Poder. Dizia ele:“Canudos arasou-se; mas não é no arrasamento deCanudos que se acha o melhor proveito moral.Suprimistes uma colônia de miseráveis. Mas nãotocastes na miséria que o produziu. A miséria é aignorância, o estado rudimentário, o abandonomoral dessas populações, sem escolas, sem culturacristã, sem vias férreas, sem comércio com o mundo

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civilizado. Os jagunços são as vítimas da situaçãoembrionária de uma sociedade enquistada aindana rusticidade colonial. A lição não está na exibiçãoatroz de uma cabeça cortada ao corpo exumado deum núcleo de homens decididos a se matarem pelavisão de um falso direito, espetáculo oriental, queos nossos sentimentos repelem e que nem opretexto da curiosidade científica absolve. (...)Supunha-se que esta nação só se compusesse dapopulação híbrida, invertebrada das cidades; maso deserto revoltado nos fez sentir na medula doleão a substância de que se fazem os povos viris.Mais ainda outra coisa se viu: para debelar umarraial, defendido pelo frenesi de um núcleodecidido a se matarem pela visão de um falsodireito, foi mister um exército. Calculem agoraquantos exércitos não seriam necessários semearneste pais, para lhe impor o cativeiro, imaginemse há reações militares, que não desapareçam aosopro do direito popular, quando a nação levantada,tiver consciência, a vontade e a coragem de suasoberania”24.

Estas palavras que Rui Barbosa iria pronunciarno Senado ficaram no fundo da gaveta do sagazpolítico baiano. As razões que o levaram a silenciarnão foram reveladas, mas é de se presumir que,ponderando melhor, resolve aderir à avalanchedaqueles que viram no genocídio mais um feitobrilhante das armas da República25.

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O significado de CanudosCanudos não foi apenas uma utopia camponesa,

mas, pelo contrário, uma experiência camponesabem sucedida, cuja evolução posterior nãopodemos avaliar, mas indicar que ia na direção deuma comunidade igualitária, sem níveis deexploração capazes de transformá-la em umaunidade de exploradores e explorados, isto é,organizar-se pelo modelo capitalista. A suaestrutura interna, a divisão do trabalho entre asdiversas camadas que a compunham estavam ademonstrar um tipo de evolução não-capitalista nasua trajetória. Se isto iria continuar por muitotempo, somente sua trajetória posterior poderiadizer. Mas a sua evolução foi brutalmente fraturadapela violência e essa experiência social e políticatransformou-se em tragédia26.

Havia também a possibilidade da experiênciade Canudos servir de modelo a outras comunidadescamponesas que estavam se formando e comoresultado termos um conjunto de comunas campo-nesas que poderiam influir, já naquele tempo, nasolução da questão agrária no Brasil, até hoje emdiscussão e sem solução. O Movimento dos SemTerra ressurge atualmente, evidentemente deforma diferenciada e muito mais elaborada, inician-do a formação de um conjunto de unidades campo-nesas autônomas através das ocupações, mas que seconstituirão em uma unidade maior capaz de

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neutralizar ou fazer desaparecer o latifúndio atravésde uma reforma agrária auto-sustentada pelopróprio Movimento Sem Terra.

Mas, tudo isto são conjecturas. Nem podemosdizer com segurança se era possível, na época deCanudos, surgirem outras comunidades campo-nesas vitoriosas, nem que o Movimento dos SemTerra teria ligações históricas com a experiênciacanudense, assim como com o movimento dasLigas Camponesas de Francisco Julião ou com omovimento Território Livre de Formoso de JoséPorfírio. Mas, eles demonstram que o movimentocamponês não cria apenas utopias agrárias, mas,nas condições brasileiras, encaminham o problemada terra na direção da sua solução.

O certo porém – e agora falamos no nível dosfatos – a guerra civil de Canudos e a violência brutalda elite governamental e do seu segmento militarveio pôr a nu o conteúdo da nova ordem repu-blicana que se instaurara no país. Aos gritos doliberalismo mais exacerbado, os políticos republi-canos fizeram um pacto com a antiga classesenhorial escravista, conservando-lhe o poder e osinstrumentos de dominação. A estrutura agrária,ainda uma herança sesmarial da Colônia, mostroucomo ainda funcionava com os seus mecanismosde repressão intactos.

Atualmente o fenômeno se repete, embora emnível mais sofisticado e modernizado como prova

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de que praticamente nada ou quase nada mudou.Nossa história tem três momentos que simbo-

lizam os movimentos de ruptura radical com osistema de dominação e conseguiu abalar a suaestrutura: Palmares, no Brasil colônia; a Cabana-gem, no Brasil Império e Canudos na República.Esses três momentos nos quais os escravosinicialmente e depois a plebe rebelde passaram aser agentes sociais dinâmicos, mostra comosomente através desse radicalismo o Brasil poderáreformular os pólos de poder e articular politica-mente um novo ordenamento social no qual osoprimidos e excluídos poderão ser os atoresdinâmicos da História.

Notas

1 A situação econômica e social da época e do local e assim descritapor dois historiadores: “Em meados do século XIX, menos de5% da população rural possuía terras. Paralelamente ao processode crise do sistema escravista, diversas leis procuraram regularas formas de acesso à propriedade, proibindo a distribuiçãogratuita de terras às comunidades necessitadas, restringindo aspossibilidades de aquisição pelas camadas pobres e facilitandoa concentração fundiária das oligarquias locais. Em 1895, ogoverno baiano promulgou a Lei nº 286. Ela estabelecia comodevolutas as terras que não tinham uso público, as de domínioparticular sem título legitimo, as posses que não se fundassemem documentos legítimos e os terrenos de aldeias indígenasextintas por lei ou pelo abandono dos seus habitantes. Doisanos depois a Lei nº 198, de 21 de agosto de 1897, declaravaterras devolutas as que não tivessem título legal e as que nãofossem legalizadas em tempo hábil. Ambas as leis fragilizavam

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a situação dos ocupantes pobres de terras familiares não-comprovadas por documentos que ficavam sujeitos a perdê-lasa qualquer momento, mediante a pressão dos grandesfazendeiros. Ao mesmo tempo, forçavam os posseiros apermanecer atrelados e dependentes aos personagenspoliticamente influentes. Nesse contexto geral o arraial de BeloMonte transformou-se em uma espécie de ‘terra prometida’, àmargem dos males da terra, para os adeptos e simpatizantes dolíder religioso”. Macedo, Josá Rivair e Maestri, Mário: BeloMonte - uma história da guerra de Canudos. Ed. Moderna SP,1997, págs. 47/48.

2 Sobre a explicação patológica do movimento de Canudos ver:Rodrigues, Nina: As coletividades anormais, capítulo sobre aloucura epidêmica de Canudos, Ed. Civilização brasileira, SP,1936, págs. 50ss. Ver ainda no mesmo sentido: Cesar, Osório:Misticismo y locura. Ed. Parternon, B. Aires, 1945,especialmente capítulo IV, Fanatismo y psicopatia, págs. 133sse Oliveira, Xavier de: Espiritismo e loucura, Ed. A. CoelhoBranco, RJ, 1931, especialmente págs. 25ss. Na mesma direçãopoderemos incluir Euclides da Cunha em Os Sertões, cujopensamento no particular é todo inspirado nas conclusões deNina Rodrigues.

3 Marx, K.: Miséria da filosofia, Ed. Flama, SP, 1946, págs. 156/57.

4 Ioko, Zilda Márcia Gricoli: Lutas sociais na América Latina -Argentina - Brasil Chile. Ed. Mercado Aberto, Porto Alegre,1989, págs. 68/69. Como vimos o conceito de movimento pré-político leva a que esses momentos em que a plebe se organizasejam criminalizados e com isto a sua destruição seja apenasuma conseqüência das desordens por eles produzidas e orestabelecimento da Lei seja aplicado contra o banditismo social.A desqualificação do movimento de Antônio Conselheiro depolítico permitiu que os seus agentes fossem violentamentemassacrados como jagunços e fanáticos e com isto fosserestabelecida a normalidade social. A repressão polícial e aviolência ficaram plenamente justificadas. Essa tendência dasclasses dominantes é uma constante da política de repressão àsreivindicações camponesas. Quando a líder dos Sem TerraDeolinda Alves foi presa, acusada, entre outras coisas deformadora de quadrilha é recolhida como presa comum aopresídio do Carandiru em São Paulo sem nenhum dos benefícios

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a que os presos políticos têm direito. Foi presa como criminosacomum e com isto o governo brasileiro continua dizendo queno Brasil não há presos políticos. Essa criminalização dosmovimentos sociais e por isto políticos dos camponeses, comovemos, passa pelo massacre de Canudos e se estende até osnossos dias com as prisões e mortes dos membros do MovimentoSem Terra.

5 Souza Barros: Messianismo e movimento de massa no Brasil,Ed. Civilização Brasileira, RJ, 1986, pág. 83.

6 Carvalho, Afonso de: Carta a Reis Vidal apud Vidal, Reis: PadreCícero, RJ, s/e. 1936. pág. 13. Sobre a caracterização social dosdois movimentos e suas diferenças estruturais e ideológicas.Marco Antônio Villa assim os analisa: “Apesar de padre Cíceroestar em conflito com a Igreja, o mesmo não ocorria em relaçãoao Estado e à classe dominante da região. Quando se retirou deJuazeiro rumo a Salgueiro, em Pernambuco, foi expedidomandado de prisão contra ele pois o governo federal supunhaque estava aliado a Antônio Conselheiro - foi logo sustado pelainterferência de vários juízes de direito e delegados de políciada região, que enviaram telegramas ao governador dePernambuco notificando ser infundado o boato de que haviaalguma ligação entre o líder de Juazeiro e os conselheiristas.Em telegrama, o juiz de direito de Salgueiro considerou ‘serabsolutamente falsa notícia padre Cícero deixar Juazeiro doCrato, procurando Canudos para prestar auxílio Antônioconselheiro (... ) Posso garantir ser ele virtuoso sacerdote,completamente hostil movimento sedicioso Canudos incapazde tentar contra a ordem pública.( ... ) O líder de Juazeiro, aocontrário do fundador de Belo Monte, sempre procurou estarassociado às oligarquias da região. Foi prefeito de Juazeiro, vice-presidente do Estado do Ceará e deputado federal”. (Villa,Marco Antônio: Canudos, o povo da terra, Ed. Ática, SP, 1995,pág. 181.

7 Engels, F.: As guerras camponesas na Alemanha. Ed. Vitória,RJ, 1946, pág. 38. No mesmo sentido escreve Eric Wolf: “Osmovimentos simples de protesto entre os camponesesfreqüentemente se centralizam no mito de uma ordem socialmais justa e igualitária do que no presente que ora éhierarquizado. Esses mitos voltam-se para o passado, para arecriação de uma idade de ouro de justiça, igualdade, ou nofuturo ao estabelecimento de uma nova ordem na terra, uma

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mudança completa e revolucionária das condições existentes.Esses desejos animaram os movimentos revolucionáriosquiliastas na Europa depois do século XIX, o crescimento dosanarquistas espanhóis no século XIX, a rebelião Taiping namesma época e assim dor diante. Muitas vezes as expectativasde reordenamento radical da sociedade podem mobilizar ocampesinato por algum tempo e levar a uma jacquerie típica ouderramamento de sangue”. Wolf, Eric: Sociedades camponesas,Ed Zahar, RJ, 1970, pág. 142

8 Macedo, José Rivair e Maestri, Mário: Op. Cit. pág. 44.9 Montenegro, Abelardo: Fanáticos e cangaceiros, Ed. Enriqueta

Lisboa, Fortaleza, 1973, págs. 107ss.10 Montenegro, Abelardo: Op. Cit.11 Facó, Rui: Cangaceiros e fanáticos, Ed. Civilização Brasileira,

RJ, 1963, pág. 77.12 Villa, Marco Antônio: Canudos - o campo em chamas, Ed.

Brasiliense, SP, 1992, pág. 32.13 Cunha, Euclides da: Canudos - diário de uma expedição. Ed.

José Olímpio, RJ, 1939, págs. 100ss. - Temos nossas dúvidasquanto a Euclides da Cunha ter visto uma dessas casas pordentro, pois ele esteve poucas vezes no interior de Canudos.Mas, de qualquer maneira é a descrição impressionista dasresidências camponesas da região. Sobre o autor de Os Sertõese o seu comportamento durante a campanha ver: Villa, MarcoAntônio: Canudos, o povo da terra, Ed. Ática, SP, 1995, Especial-mente o apêndice - Euclides da Cunha e Canudos, págs. 246ss.Ver também: Moura, Clóvis: Introdução ao pensamento deEuclides da Cunha, Ed. Civilização Brasileira, RJ, 1964, passim

14 Villa, Marco Antônio: Op. Cit. pág. 33 - Antes desta escolaexistiram pelo menos duas. Uma dirigida por João Gomes dosReis. Ela foi fechada devido ao alcoolismo do seu professor,expulso da comunidade. Outra, regida por um homem chamadoMoreira. José Calasans escreve sobre a última professora: “Teriasido substituído (Moreira) por uma moça que morava na baixadado Belo Monte, por detrás do cemitério, na rua chamada, porsua causa da professora. Manuel Benício registrou seu nome,Maria Francisca de Vasconcelos, morena arisca, com 23 anos deidade, cursara a Escola Normal da Bahia, onde adquirirainstrução. A família impedira seu casamento com um moço deorigem plebéia. Fugiram os dois do Soure e foram viver na

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cidadela do Bom Jesus Conselheiro”. Calasans, José: Quasebiografias de jagunços, publicação da Universidade Federal daBahia, Salvador, 1986, pág. 74.

15 Calasans, José: Quase biografias de jagunços. Publicação daUniversidade Federal da Bahia, Salvador, 1986, pág. 38.

16 Villa, Marco Antônio. Op. Cit.17 Montenegro, Abelardo. Op. Cit.18 Monte Marciano, Frei Evangelista de: - Relatório apresentado

ao Arcebispado da Bahia sobre Antônio Conselheiro e seuséquito no Arraial de Canudos - 1895 - Edição facsimilar.Publicação da Universidade Federal da Bahia, 1987, págs. 4ss

19 Calasans, José. Op. Cit.20 Macedo Soares citado por Facó, Rui: Cangaceiros e fanáticos,

pág. 109.21 Facó, Rui. Op. Cit.22 No sentido de demonstrar como a dinâmica da comunidade de

Canudos funcionava articulada em todos os seus níveis -econômico, social, político e ideológico (religioso) - objetivandoestabelecer a harmonia entre as necessidades dos seushabitantes e a produção da comunidade, escreve Maria Sylviade Carvalho Franco: “O arraial de Belo Monte cresce comocentro comercial, artesanal e agrícola. Define-se uma hierarquiapolítica interna ao grupo e determina-se uma estratificação,baseada na riqueza e no prestígio. Desenvolvem-se controlessociais com raízes religiosas, mas com a função de fortalecer avida familiar e política. Estas indicações são suficientes parademonstrar o quanto esse movimento messiânico correspondiapraticamente as necessidades da existência. Pode-se afirmar queem Canudos as práticas religiosas de negação do mundo,conscientemente observadas pelos fiéis como meio de salvação,tiveram na verdade a função de introduzir em suas existências,uma incipiente ‘racionalidade’. O ‘comunismo’ de Canudosconsistiu numa técnica para regularizar o provimento dos meiosde vida no povoado”. (...) Esse movimento religioso, longe depoder ser interpretado como ‘regressão’ e ‘fanatismo’, expressa,antes, a organização transitória da população rural justamentecom base no modelo oferecido pela ‘civilização’ que sempreexistiu paralelamente a ela. Nessa linha torna-se tambéminteligível a intenção de preservar o Paraíso Terrestre e dedefendê-lo das ameaças exteriores. As virtudes ordenadas pelo

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Messias e praticadas pelos fiéis assumem caráter coletivo,correspondendo à necessidade de exaltação de todos eencobrindo a necessidade de redenção material. Compreende-se assim a agressividade de Canudos, a guerra contra a sociedademais ampla, que lhe era adversa”. Franco, Maria Sylvia deCarvalho: Homens livres na ordem escravocrata, Ed. Kairós (39Ed.) 1983, pág. 105, nota.

23 Barbosa, Rui: Obras completas, vol. XIV, RJ, 1952, págs. 299/304.

24 Sobre as razões que silenciaram Rui Barbosa o historiador MarcoAntônio Villa assim as explica: “Vale destacar que não éexeqüível incluir entre os denunciadores do massacre o senadorRui Barbosa, que teria escrito um discurso, não lido,solidarizando-se com os prisioneiros. Conhecido pelo gosto daoratória e pelos longos discursos, não perderia uma ocasião comoesta. Certamente não leu o discurso porque já tinha manifestadopublicamente a sua posição sobre Canudos, considerando-o “umacinte monstruoso dos aluviões morais do sertão; AntônioConselheiro não passava de “um louco”; e seus partidários “umahorda de bandidos”. Villa, Marco Antônio: Canudos, o povo daterra. Ed. Ática, SP, 1995, pág. 213.

25 Na direção de demonstrar as possibilidades da comunacamponesa (como foi o caso de Canudos) ter possibilidades dese afirmar politicamente como algo além da utopia, escreveOctávio Ianni: “Em geral, no entanto, o movimento socialcamponês se torna um ingrediente básico, freqüentementedecisivo da revolução. O caráter das suas reivindicaçõeseconômicas, políticas, culturais, religiosas ou outras implica noquestionamento da ordem social vigente. Não se interessa pelodilema ‘povo sem história’ ou ‘povo histórico’. Pouco seempenha na controvérsia sobre ‘movimento social’ ou ‘partidopolítico’. A sua prática social como um todo, compreendendo aluta pela preservação, conquista ou reconquista das suascondições de vida e trabalho, acaba por tornar-se umcomponente das lutas sociais que se desenvolvem no âmbitoda sociedade como um todo”. (...) De fato, o movimento socialcamponês não se propõe conquistar o poder estatal, aorganização da sociedade nacional, a hegemonia camponesa.Essas talvez sejam as tarefas do partido político. Pode ser a tarefada classe operária, associada a outras categorias sociais, inclusiveo campesinato. Mas isso não elimina nem reduz o significado

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revolucionária das muitas lutas que esse movimento realiza. Emessência, o seu caráter radical está no obstáculo que representaa expansão do capitalismo no campo; na afirmação da primaziado valor de uso sobre o valor de troca; a produção do valor, otrabalho alienado; na resistência à transformação da terra emmonopólio do capital; na afirmação de um modo de vida etrabalho de cunho comunitário. Ianni, Octávio: Dialética &capitalismo. Ed. Vozes, Petrópolis, 1988, págs. 105ss.

26 Sobre a evolução da questão camponesa no Brasil e aimportância do MST na sua solução, a perspectiva é que ascontradições se aguçem e as medidas de repressão se acentuem.No particular é sintomática a entrevista que Paulo Brossard (ex-senador, ex-ministro da Justiça e ex-ministro do SupremoTribunal Federal) deu sobre o assunto, acenando para umpossível golpe de Estado para deter o movimento. Vale refletirsobre o seu texto. Perguntado sobre “O que o governo devefazer para conter as invasões dos sem-terra e sem-teto”respondeu: “Tem de fazer cumprir a lei. Acredito que houveuma inflexão no comportamento do governo, lastimo que tenhademorado, mas espero que persista. Há uns dois anos houveuma marcha de produtores rurais em direção à Brasília. Quandochegaram à Capital, o presidente não os recebeu e os chamoude caloteiros. Há pouco, ele recebeu uma delegação de sem-terra. Funcionou aí um mecanismo de dois pesos e duasmedidas. Um cidadão sentou-se à mesa do presidente daRepública com um boné na cabeça. Isso é uma completaimpropriedade. (...) Está em curso um processo de erosão daautoridade. Já invadiram terras com dia e hora marcadas. Depoisdas fazendas, passaram a invadir imóveis urbanos. Quanto faltapara invadirem automóveis? Isto acaba mal, muito mal’.Interrogado sobre o significado do acabar mal o ex-ministro daJustiça assim se expressou: “Em 1964 havia um pessoal quesaia pelo país gritando que a reforma agrária seria feita ‘na leiou na marra’. Na marra, o que tivemos foi a ditadura e essasmesmas pessoas passaram 20 anos chorando. O processo deinstalação da violência se dá aos poucos, é quase imperceptível.Primeiro se diz que os invasores são pessoas expulsas de suasterras pelos grileiros, depois se vê que há invasões com genterecrutada em outros Estados. Se o senhor dá a outra pessoa aprerrogativa de transgredir a lei não vá supor que mais adiantehaverá de contê-la. Quem acha que pode transgredir uma leiacaba se julgando no direito de decidir quais leis cumpre e quais

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desrespeita. E aí, repito, a coisa acaba mal” Ao ser perguntadosobre o que o governo deveria fazer respondeu enfaticamente:“Tem de garantir o cumprimento da lei. Não nos esqueçamosque a invasão de propriedade é um dos poucos casos em que oCódigo Civil admite a legalidade da reação da vítima. Essesinvasores, trazidos de outros municípios, são posseiros semposse, figura semelhante à do fazendeiro do ar. Existem porquea lei está desconceituada. Um governo pode tolerar semelhantesituação, mas jamais haverá proprietário que a admita. Umcolapso como o de 1964 não ocorre de repente. Os absurdosvão se tornando familiares e só quando a casa cai é que sepercebe o tamanho do erro cometido”. Paulo Brossard -Entrevista, in Folha de S. Paulo, 1 de junho de 1997.

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Capítulo II

Antônio Conselheiro:um abolicionista da plebe

... é preciso, porém que não se deixe em silêncio aorigem do ódio que tendes à família imperial,

porque sua alteza Senhora Dona Isabel libertou aescravidão... (...) Porque era chegado o tempomarcado por Deus para libertar esse povo de

semelhante estado, o mais degradante a que podiaser reduzido o ser humano.

Antônio Conselheiro

O movimento camponês de Canudos, no interiorda Bahia, durante o governo de Prudente de Morais,infelizmente ainda não foi estudado em todas as suasvertentes e devida profundidade social e política daépoca. Ele é discutido mais a partir das diversascorrentes republicanas que disputavam o poder.

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Situa-se o movimento como se ele fosse decorrentedas contradições das próprias classes dominantes enão como uma conseqüência das contradições entreas oligarquias latifundiárias e os interesses doscamponeses sem terra. A autonomia da soluçãodessa contradição passou a ser um problema crucialquando os camponeses assumiram a hegemonia domesmo e criaram a sua solução a partir dos seusinteresses, criando uma unidade comunitária nointerior da Bahia independente e não subordinadaaos interesses e valores do latifúndio. A imagem deCanudos como perigo surge exatamente desseconflito de interesses e a solução que os camponesesencontraram, desligando-se da estrutura latifun-diária. É aí que podemos encontrar explicação para aviolência da repressão contra Canudos e o heroísmodos seus defensores.

Por outro lado, a obra de Euclides da Cunha “OsSertões”, tornou-se um clássico literário e aquelesestudiosos que procuram analisar e interpretar esseacontecimento histórico na sua estrutura e na suadinâmica, quase sempre partem das suas afirmações.Uma pesquisa rigorosa e exaustiva, feita de formasistemática ainda não foi feita com a profundidadeque merece. Um dos defeitos mais visíveis é ignorar-se a importância de Antônio Vicente Mendes Maciel(o Conselheiro) como líder, agitador e organizador.Ele é sempre visto como um lunático, um místico,messiânico, quando não desequilibrado mental,

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louco que teria transmitido a sua insanidade àquelaspopulações que o seguiam. O seu crânio, após a suadegola, foi enviado a Salvador para estudos médico-antropológicos por cientistas influenciados pelaescola criminalista de Lombroso, para seremprocurados nele os estigmas do criminoso nato 1.

Até hoje, por outro lado, não possui umabiografia que o estude através de pesquisasmodernas e de uma metodologia satisfatória. Olivro de Edmundo Moniz, por muitos motivosvalioso, que vai nessa direção, procurando resgatara memória e o papel de liderança política doConselheiro ressente-se de falhas teóricasacentuadas 2. O certo é que a figura de AntônioConselheiro é sempre apresentada como se elefosse uma individualidade delirante, desligada docontexto social-econômico e político de ondesurgiu e sem ter nenhuma ligação funcional edinâmica com os problemas concretos e as contra-dições emergentes da região em que a luta eclodiu.A biografia política de Antônio Conselheiro aindaestá por ser escrita.

Por estas razões, poucas vezes é lembrado comoabolicionista e de pregador para a massa escrava.Mas, esse personagem que percorreu a partir de1874 grande parte do território cuja populaçãoescrava era considerável não podia deixar deinteressar-se pelos cativos, muitos deles egressos dassenzalas para os quilombos da região ou com a

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revolta latente em face das contradições criadas pelasua situação de escravos.

Em primeiro lugar, para avaliarmos o seu nível deinteresse pela Abolição, devemos ver as suas raízesétnicas, pois quase todos os que dele se ocuparamafirmam ter sido branco. No entanto, no seubatistério ele é registrado como pardo. Vejamos osseus termos: “Aos vinte e dois de maio de miloitocentos e trinta batizei e pus os Santos Óleosnesta Matriz de Quixeramobim ao párvulo Antôniopardo nascido aos treze de março do mesmo ano,filho natural de Maria Joaquina; foram padrinhosGonçalo Nunes Leitão e Maria Francisca de Paula.Do que, para constar, fiz este termo em que assinei.O Vigário Domingos Alvaro Vieira” 3.

Como podemos ver pela sua certidão de batismo,Antônio Conselheiro foi considerado pardo pelopadre que o batizou. Se isto não é de grandeimportância para se avaliar o seu abolicionismo,serve para repor a verdade sobre as suas origensétnicas. O que é importante apurar-se é se na suabiografia pode-se constatar uma postura abolicio-nista nas suas pregações e no seu comportamento emais especialmente se essas prédicas foram, emalguma ocasião, dirigidas aos próprios escravos.

Quem toma como fonte de informações “OsSertões” de Euclides da Cunha certamente nadaencontrará nessa direção. Para ele as pregações deAntônio Conselheiro tinham sempre a incoerência

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de um louco. Diz, retratando o seu comportamento:“Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaroàs aberrações católicas, todas as tendências impul-sivas das raças inferiores, livremente exercitadas naindisciplina da vida sertaneja, se condensaram noseu misticismo feroz e extravagante. Ele foi,simultaneamente, o elemento ativo e passivo daagitação de que surgiu. O temperamento maisimpressionável apenas fê-lo absorver as crençasambientes, a princípio numa quase passividade pelaprópria receptividade mórbida do espírito torturadode reveses e elas refluiriam, depois, mais fortementesobre o próprio meio de onde haviam partido,partindo de uma consciência delirante” 4. O seudiscurso, para Euclides da Cunha era subordinadona sua essência ao atavismo das raças inferiores,agravado pela sua personalidade delirante. Tudoisto, em última análise, significa esconder a verda-deira mensagem do líder atrás de vaus mistifica-dores, apresentando o seu discurso como fruto dedistúrbios patológicos e não da sua posição diantedos acontecimentos sociais.

Quem toma, por estas razões, como fonte deinformações da vida de Antônio Conselheiro o textode “Os Sertões”, especialmente sobre a sua posiçãoem relação aos escravos e a escravidão nada en-contra. O seu racismo no particular é evidente, poiscomo acentua com muita razão o professor JoséCalasans, apoiado em livro de Pedro A. Pinto sobre

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o vocabulário usado no livro, as palavras escravo eescravidão não se encontram ali uma só vez 5. (É poristo que, se quisermos saber a verdade sobre aposição de Antônio Conselheiro sobre o assuntoteríamos de recorrer a outras fontes).

Essas outras fontes, porém, revelam umAntônio Conselheiro preocupado com a es-cravidão e a sorte dos cativos, dirigindo-se aospróprios escravos, os quais, posteriormente, irãoengrossar as suas fileiras. Ainda o professor JoséCalasans escreve que o jornalista Manuel Benício,correspondente do Jornal do Comércio, do Rio deJaneiro, junto às forças em operações contra osjagunços, autor de um bom livro relativo à vida dosconselheiristas e de seu guia e líder percebeu eregistrou a posição adotada por Antônio Con-selheiro em face do problema da escravidão:“Ignorante e enraizado nos velhos hábitos daadministração de então, desconfiado como sãotodos os sertanejos”, escreveu Manuel Benício:“de índole conservadora por nascença, achava quetoda reforma na administração e toda inovação naeconomia política era um meio de se roubar opovo. Fora contra a introdução do sistemamétrico-decimal no comércio e a única reformaque encontrou sua aquiescência mais tarde, em1888, foi a abolição dos escravos. Talvez porquegrande porção de quilombos e mucambeirosacautelassem a sua errante estrada”.

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Para José Calasans ele “transmitiu aos escravosos ensinamentos dos evangelhos. Não estamosformulando uma hipótese”. Prossegue o mesmohistoriador baiano: “Baseamos nossa assertiva numdepoimento contemporâneo, perdido nas folhas deuma gazeta baiana de 1897, no auge da luta fra-tricida. Um italiano que trabalhava na construçãoda estrada de ferro Salvador-Timbó, narrou nestestermos, seu encontro com o peregrino: ‘Veja comoeste povo’, dizia-lhe o Conselheiro apontando agente que aguardava a sua pregação, ‘na suatotalidade escrava vive pobre e miserável. Vejacomo ela vem de quatro e mais léguas para ouvir apalavra de Deus. Sem alimentar-se, sem sabercomo se alimentará amanhã, ele nunca deixa deatrair presuroso às palavras religiosas, que, indignoservo de Deus e por ele amaldiçoado, iniciei nestelocal para a redenção de muitos pecados’. Nolugarejo mencionado, que outro não era senão Saco,entre Timbó e Vila do Conde, na então Provínciada Bahia, durante o dia quase não havia alma. Maisde 2000 pessoas, porém, surgiram de noite, ansiosaspara ouvirem os conselhos do Bom Jesus. “Aoanoitecer, prosseguiu o empreiteiro, “começaram achegar e as 8 horas a praça estava cheia, tendo maisde mil pessoas, todas escravas, e após o sermão, queem seguida um explicava ao outro, visto quesomente os mais vizinhos podiam ouvi-lo, todoscantavam as seguintes estrofes: “Louvado seja

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nosso Senhor Jesus Cristo” ao que as mulheres emeninos respondiam “para sempre seja louvado osanto nome de Maria”, e isto até a meia noite,algumas vezes. De manhã não havia pessoa algumano arraial”.

“A informação transcrita, documenta, comsegurança, as relações do Conselheiro com osescravos da zona citada que atentamente escutavama pregação do ‘santo’ de Quixeramobim. Convémesclarecer, desde logo, que na região de Itapicuru,onde Antônio Conselheiro passou grande parte dasua vida de pregador, havia na época aqui estudada,apreciável número de pequenos engenhos, o queexplica a presença de grande quantidade deescravos. Os cativos necessitavam da palavra deconforto e ajuda do bondoso peregrino, que confor-me escreveu o informante acima citado, distribuíaapreciáveis quantias com as famílias pobres,naturalmente obtidas nas casas dos mais ricos,daqueles senhores de engenhos e negociantes maisgenerosos” 6.

Convém notar que na zona de Itapicuru existiuum quilombo que durante muito tempo deutrabalho às autoridades e do qual certamenteAntônio Conselheiro ouvira falar, assim como naregião de Tucano um dos locais que forneceu grandenúmero de adeptos ao Conselheiro. Por outro lado,a área de pregação do Conselheiro era tambémregião de quilombos.

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Foram registrados ajuntamentos de negrosfugidos em Cairu, Rio das Contas, Geremoabo,Jacobina, Rio de São Francisco e em outros pontosda Serra Negra. A estas populações certamente oConselheiro deveria ter tido contato direto ouindireto ao que tudo indica 7.

José Calasans, cujo esclarecedor trabalho estamosacompanhando, escreve ainda que “outros ele-mentos poderão ser apresentados no mesmosentido, isto é comprobatório do papel desempe-nhado pelo Conselheiro junto à população escravano Nordeste baiano, que ele mais de perto conheceue assistiu. Num interessante artigo publicado noJornal de Notícias, da Bahia, edição de 5 de março de1897, o doutor Cícero Dantas, barão de Geremoabo,proprietário no município de Itapicuru, e prestigiosochefe político contou que com a abolição daescravatura aumentara o número de acompanhantesdo Bom Jesus Conselheiro. “O povo em massa”,declarou Geremoabo, “abandonava suas casas e seusafazeres para acompanhá-lo. Com a abolição doelemento servil ainda mais se fizeram sentir osefeitos da propaganda pela falta de braços livres parao trabalho. A população vivia como que em delírioou êxtase e tudo quanto não fosse útil ao alucinadode Deus facilmente não prestava. (...) Assim foiescasseando o trabalho agrícola e é atualmente comdificuldade que uma ou outra propriedade funciona,embora sem precisa regularidade”.

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O mesmo autor, refutando as razões do barão deGeremoabo, afirma que talvez esse chefe conser-vador tivesse confundido a causa com o efeito, poisnão teria sido “Antônio Vicente quem afastou daspropriedades agrícolas os negros libertados pela leide 1888. O Santo Conselheiro outra coisa não teriafeito senão recebê-los e, possivelmente, ampará-los,quando eles próprios sequiosos de desfrutarem aliberdade alcançada, fugiram dos antigos locais doseu cativeiro. (...) Não foram poucos os ex-escravosrecebidos na comunidade conselheirista. Antônio deCerqueira Galo, morador em Tucano, localidadebaiana donde saíram inúmeros seguidores doConselheiro, numa carta enviada ao barão deGeremoabo, dando notícias dos habitantes deCanudos, destacou que o contingente de ex-escravos formavam a maioria. “Lá os vultuosos queestão disinvolvendo (sic) a revolta”, escreveu omissiva, “é o mesmo Conselheiro com os seussequazes d’entre estes soldados e desertores dediversos e o povo 13 de maio que é a maior gente” 8.

O depoimento altamente esclarecedor de JoséCalasans, descobrindo novas fontes de informaçõesque recolocam não apenas o pensamento, mas,também, a ação de Antônio Conselheiro em relaçãoao sistema escravista e as suas contradições estru-turais, e plenamente corroborado pelas própriaspalavras do líder de Canudos no manuscrito quesobreviveu à chacina (sabemos que ele escreveu ou

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ditou outros os quais certamente foram destruídosou perdidos) intitulado Predicas aos canudenses eum discurso sobre_a República – Belo Monte,província da Bahia 12 de janeiro de 1897.

A obra foi encontrada em uma velha caixa, noSantuário, por José Pondé, médico baiano que seencontrava na expedição que destruiu a comuni-dade. Afrânio Peixoto recebeu-o de quem o encon-trou e fez doação do mesmo a Euclides da Cunha,cuja reação sobre o seu texto ninguém sabe. O certoé que o subestimou, pois refere-se a outros manus-critos encontrados entre os escombros, mas silenciasobre este. Talvez não teve tempo de analisá-lo apósrecebê-lo de Afrânio Peixoto 9.

Dizia Antônio Vicente Mendes Maciel nessemanuscrito, referindo-se à Abolição e ao trabalhoescravo:

“É preciso, porém, que não se deixe emsilêncio a origem do ódio que tendes à famíliaimperial, porque sua alteza a Senhora Dona Isabellibertou a escravidão, que não fez mais do quecumprir a ordem do Céu; porque era chegado otempo marcado por Deus para libertar esse povode semelhante estado, o mais degradante a quepodia ser reduzido o ser humano; a força moral(que tanto a orna) com que ela procedeu asatisfação da vontade divina, constitui a confiançaque bem tem Deus para libertar esse povo, (mas)não era suficiente para soar o brado da indignação

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que arrancou o ódio da maior parte daqueles aquem o povo estava restrito. Mas os homens nãopenetram a inspiração divina que moveu o coraçãoda digna e virtuosa princesa para dar semelhantepasso; não obstante ela dispor do seu poder,todavia era de supor que meditaria, antes de o porem execução, acerca da perseguição que havia desofrer, tanto assim que na noite que tinha deassinar o decreto da liberdade, um ministro lhedisse: Sua Alteza assina o decreto da liberdade,olhe a República como ameaça; ao que ela nãoligou a mínima importância, assinando o decretocom aquela disposição que tanto a caracteriza. Asua disposição porém, à prova que atesta do modomais significativo que era a vontade de Deus quelibertasse esse povo. Os homens ficaram assom-brados com o belo acontecimento, porque jásentiam o braço que sustentava o seu tesouro,correspondendo com ingratidão e irresponsabili-dade ao trabalho que desse povo recebiam.Quantos morreram debaixo dos açoites poralgumas faltas que cometeram; alguns quase nus,oprimidos de fome e de pesado trabalho. E quedirei eu daqueles que não levavam com paciênciatanta crueldade e no furor do exceda sua infelizestrela se matavam? Chegou enfim o dia queDeus tinha de pôr termo a tanta crueldade, como-vido de compaixão a favor do seu povo e ordenapara que se liberte de tanta penosa escravidão”10.

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Pelo exposto – o pensamento de Antônio Conse-lheiro através de um texto por ele redigido –podemos concluir que ele não era aquele perso-nagem bronco ou louco que costuma se afirmar nosensaios tradicionais sobre a guerra de Canudos, masum agente de dinâmica social no período que vai daescravidão ao abolicionismo e posteriormente, de 13de maio até a luta e destruição do arraial de BeloMonte.

Na primeira fase, reunia escravos e com elesfalava através de um código ligado à simbologiareligiosa para denunciar a situação e sugerir anecessidade de se libertarem, com isto atraindo,numa região de pequena densidade demográfica naépoca, cerca de 2.000 escravos para ouvirem as suasprédicas, segundo testemunho da época.

Em 1897 escreve um dos seus muitos manus-critos. Nele expressa a sua aprovação da Lei que pôsfim à escravidão e procura explicar, a seu modo,porque a princesa Isabel estava apoiada nas forçasdivinas (Direito divino) ao assinar a Lei de 13 demaio, defendendo a necessidade de se acabar com aescravidão, que para ele era uma situação quechegava aos limites da degradação humana, levando,por isto, muitos escravos ao suicídio.

Finalmente, quando os ex-escravos fugiam dasterras que simbolizavam a escravidão, AntônioConselheiro abre-lhes um espaço físico, social ehumano um espaço livre – no qual eles se reinte-

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gram participando ativamente como agentes his-tóricos e sociais da comunidade de Canudos até oseu final. Fizeram parte do seu componente militar,religioso e político. Lutaram juntamente com o líderque os reintegrou na sua condição de homens livres.E antes (quando ainda eram escravos) acenava-lhescom a possibilidade da liberdade, com eles reu-nindo-se e esclarecendo a possibilidade de mudançasocial capaz de libertá-los, palavras que eramtransmitidas de boca em boca.

Queremos crer, por tudo isto, que AntônioConselheiro foi um abolicionista plebeu, atuando naárea rural do Nordeste, onde os líderes do Aboli-cionismo tradicional e por isto mesmo conciliadornunca atuaram dinamicamente, com uma mensa-gem dirigida diretamente às populações oprimidase as massas escravas descontentes, muitos dos seusmembros possivelmente saíam dos quilombosexistentes na região – e eram muitos – para ouvi-loe se refugiarem depois no arraial de Belo Monte.

Notas

1 Quem fez o exame craniométrico de Antônio Conselheiro foramos médicos Nina Rodrigues e Sã de Oliveira, tendo escrito oprimeiro que “o crânio de Antônio Conselheiro não apresentavanenhuma anomalia que enunciasse traços de degenerescência:é um crânio de mestiço, onde se associam caracteresantropológicos de raças diferentes”. Apesar desta conclusão.Nina Rodrigues não teve dúvidas de escrever que “em Canudos

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representa de elemento passivo o jagunço que corrigindo aloucura mística de Antônio Conselheiro e dando-lhe umasmisturas de questões políticas e sociais, de momento, criou,tornou plausível e deu objeto ao conteúdo do delírio, tornando-o de fazer vibrar a nota étnica dos instintos guerreiros, atávicos,mal extintos ou apenas sofreados no meio social híbrido dosnossos sertões de que a loucura como os contagionados são fiéise legítimas criações. Ali se chocavam de fato, admiravelmenterealizadas, todas as condições para uma constituição epidêmicada loucura”. Rodrigues, Nina: As coletividades anormais. Ed.Civilização Brasileira, SP, 1939, pág. 42.

2 Muniz, Edmundo: Canudos: a guerra social. Elo Editora edistribuidora Ltda. 2ª Ed, RJ, 1987, Passim.

3 Transcrito de Macedo, Nertan: Antônio Conselheiro (A morteem vida do beato de Canudos). Gráfica Record Editora, RJ,1969, pág. 42.

4 Cunha, Euclides da: Os sertões. Ed. Francisco Alves (12ª ediçãocorrigida) RJ, 1933, pág. 150.

5 Pinto, Pedro A: Os Sertões de Euclides da Cunha – vocabulárioe notas lexicográficas. Ed. Francisco Alves, RJ, 1930, Passim. –Para se ter uma posição crítico-revisionista do pensamento deEuclides da Cunha em relação à escravidão, ao negro e aoAbolicionismo ver: Moura, Clóvis: Introdução ao pensamentode Euclides da Cunha. Ed. Civilização Brasileira, RJ, 1964, págs.67/94. Na mesma direção radical ver: Bastos, José AugustoCabral Barreto: Incompreensível e bárbaro inimigo – A guerrasimbólica contra Canudos. Ed. Edufba, Salvador, 1995.

6 Calasans, José: Antônio Conselheiro e a escravidão, s/ed. s/d.,passim.

7 Calasans, José: Op. Cit. - Sobre a importância dos quilombos nosertão o historiador baiano Borges de Barros assim se expressa:“Na Bahia muitos foram os pontos em que eles se localizaram:Cairú, Rio de Contas, Geremoabo, Rio de São Francisco, Ilhéus,Camamú, Barra do Rio das Contas, Tucano e em vários outrospontos, como Serra Negra. Era uma praga espalhada por todos oscantos e sem remédio. Eram como que irmãos e bem coligadostodos em se tratando de defender o sertão de sorte que lá nãopudessem penetrar nem mais aventureiros, nem descobridores”.Barros, Borges de: “Bandeiras e sertanistas baianos. Ed. ImprensaOficial do Estado, Salvador, 1919, pág. 216.

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8 Calasans, José. Op. Cit.9 Euclides da Cunha refere-se a outros manuscritos encontrados

nos escombros, escrevendo ao dar as fontes das transcrições dealgumas profecias de Antônio Conselheiro: “Os dizeres dessasprofecias estavam escritos em grande número de pequenoscadernos encontrados em Canudos. Os que aí vão, foram lámesmo, copiados de um deles pertencente ao secretário docomandante em chefe da campanha”. Cunha, Euclides da: Ossertões, Ed. Francisco Alves, RJ, 1933, pág. 171 (nota de rodapé)

10 Conselheiro, Antônio: Prédicas aos canudenses e um discursosobre a República, Belo Monte, província da Bahia 12 de janeirode 1897, apud Nogueira, Ataliba: Antônio Conselheiro eCanudos, Cia. Editora Nacional, SP, 1974, págs. 47ss.

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Capítulo III

De Canudos ao Movimento Sem Terra:novas perspectivas para a revolução

agrária no Brasil?

A situação do Brasil é tão grave que só se podecaracterizar a política econômica vigente comogenocida. Estão matando nosso povo. Estãominando, carunchando a vida de milhões de

brasileiros. Desnutrida, desfibrada, nossa genteacabará se tornando mentalmente deficiente para

compreender seu próprio drama e fisicamenteincapacitada para o trabalho no esforço de

superação do atraso.Vivemos um processo genocida. O digo com dor,

mas com o senso de responsabilidade de umbrasileiro sensível ao drama do nosso povo.

Darcy Ribeiro – O povo brasileiro – aformação e o sentido do Brasil

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O monopólio da terra no Brasil inicia-se já antesda sua descoberta. Com o tratado de Tordesilhas(1494) aquilo que seria descoberto foi divididoentre os Reinos de Portugal e da Espanha pelopapa Alexandre VI (aprovado posteriormentetambém pelo papa Júlio II) e a parte que seria oBrasil ficou com Portugal. Com isto, as terrasficaram sob o monopólio da coroa de Portugal esomente o seu Rei tinha poderes para doá-las. Opoder real após a descoberta era quem doava,através de sesmarias as terras àquelas pessoas que,a critério real, eram disto merecedoras. Surgiu,através dessas origens irracionais a forma como aterra no Brasil ficou sendo dividida entre os nobrese homens ligados diretamente à corte, dandoorigem a grandes extensões pertencentes a umaúnica pessoa.

Somente em 1850 surge uma lei da terra noBrasil. Não para dividi-la democraticamente, maspara vendê-la aos possuidores de capitais. Com isto,concentrou-se ainda mais a propriedade fundiáriaentre nós, dando origem ao latifúndios e às oligar-quias agrárias atuais, fator de atraso da nossasociedade 1. Mas, a propriedade dessas terras estavaapenas no papel. Para concretizá-la havia necessi-dade de conquistá-la. O massacre, o genocídio demilhões de índios virá responder e satisfazer a essanecessidade do conquistador. Mas, o índio reagiubravamente à expulsão das suas terras. Lutou

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desde o primeiro instante em que as caravelas lusasaqui aportaram com cruzes e arcabuzes para escra-vizá-lo. Essa tragédia, pouco contada pela procuçãouniversitária ainda não terminou. É um dos muitosproblemas inconclusos da nação brasileira.

A luta dos índios em defesa das suas terrasinvadidas dura até os nossos dias. Os sobreviventesdo massacre – menos de 300.000 – ainda lutam pelademarcação das suas terras enquanto as autoridadesatuais executam, no particular, a mesma política,odiosa dos soldados e funcionários da coroa.

Sobre esta matança criminosa contra oslegítimos donos da terra assim se expressa ohistoriador Luís Luna: “À época em que secaçavam índios na região sanfranciscana, El-Reihavia dividido o Brasil em duas grandes fatias.Uma, de Porto Seguro para o Sul, entregou aAntônio Salema, que se celebrizou pela matançados Tamoios; a outra, de Porto Seguro para o Norte,foi entregue a Luís de Brito de Almeida, tambémtrucidador de índios. A primeira preocupação desse‘cristão’, ao assumir as funções, foi diligericiar oextermínio dos Potiguares, que repeliam osportugueses no Nordeste. Preparou poderosaexpedição punitiva, cujo comando confiou aoouvidor-geral Fernão da Silva. Saiu-se mal. Osíndios, excelentes guerrilheiros, empregaram atática dos ataques de surpresa e a expedição foidestroçada. Por isso, Luís de Brito desistiu da

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‘operação-potiguar’ e voltou-se contra os índios deSergipe, onde também viviam muitos Caetés,expulsos das aldeias primitivas”. (...) Assassinandoe destruindo, os portugueses iam doninando a terraque descobriram. Nesse particular, os espanhóisforam menos atrabiliários, pois permitiram, noParaguai, a língua guarani, ainda hoje faladajuntamente com o castelhano. Aqui, porém, os‘cristãos’ de além-mar nem a língua nativadeixaram viva. (...) Os Caetés eram caçados comoferas, mas nunca deixaram de reagir, com hombri-dade, às tentativas de extermínio. Com os Aimorése Potiguares, talvez hajam sido os índios que maisresistiram. (...) Era o saque na guerra de conquista,em “grande estilo”. Mataram e cativaram os índiossem piedade cristã, roubaram-lhes a terra erepartiram-na entre si, ficando a melhor e a maiorparte para o chefe da quadrilha.

Este é um resumido relato do que foi ahecatombe produzida pelo colonizador. Realmenteos padres jesuítas envolveram-se em todos osnegócios e negociatas que houve por estas terras,desde que nelas pisaram. Além de fazendas degado, com admiráveis rebanhos de animais e deescravos negros e índios, possuíam engenhos deaçúcar, casas comerciais, colégios e até em negóciosde açougues se meteram” 2.

Essa carnificina pela posse da terra foisuportada pelo índio com grande sacrifício. A

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Confederação dos Tamoios (1554-1567), e Confe-deração dos Guerans, a “guerra dos bárbaros” (quedemorou quase cem anos) são movimentos quecomprovam a luta do índio pela defesa da terra,pela reconquista de cada pedaço ocupado pelocolonizador português, lutando pelo território quelhe pertencia.

Foi uma luta desigual. Os jesuítas disseminarampara justificarem a carnificina o mito do “índiobárbaro”, a antropofagia, e a maldade congênita,dos seus membros. Antes da conquista, e a cartade Pero Vaz Caminha é um documento irretor-quível, os índios eram belos, formosos e as índiaseram igualados pela sua beleza às mulhereseuropéias. Quando o índio começa a resistir àconquista passa a ser considerado o canibal, oprimitivo, o perigo à fé, o mau selvagem, inver-tendo-se a visão roussouriana inicialmenteapresentada. Esta nova imagem montada é que irájustificar o massacre como necessário ao chamado“processo civilizatório”.

Criou-se a figura do “feroz Tupinambá” queresumia todas aquelas anti-qualidades apontadas.Os Caetés, então, eram perseguidos e exter-minados barbaramente sob o pretexto de que eleshaviam devorado o bispo Sardinha. Antes daresistência, o índio era visto através do mito do“Bom selvagem” de J.J. Rousseau. Em 1550 ossilviculas brasileiros ainda eram exportados para a

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França para darem espetáculo teatral, quando sereconstruiu a forma de vida dos índios em“espetáculos agradáveis e magníficos teatroserigidos e exibidos pelos cidadãos de Ruão” emhomenagem à “sacra Majestade do CristianíssimoRei de França, Henrique II” 3.

Com a resistência, a imagem se inverte. O índiopassa a ser o inimigo bárbaro e à medida que aconquista avança, racionalizam-se os mecanismosde combate e as ideologias justificadoras. Osconquistadores portugueses criam as milíciasmercenárias dos bandeirantes, os quais agiamprofissionalmente, tendo por ofício o combate, oextermínio ou a escravização dos índios. Outrosmecanismos são montados posteriormente comoos aldeamentos, quando os jesuítas perceberam noíndio também uma fonte de mão-de-obra e passaa explorá-los em proveito próprio (sob o manto decristianizá-los), entrando, por isto, em contradiçãocom os bandeirantes.

Este massacre histórico, esse genocídio étnicoainda continua no Brasil “moderno” de FernandoHenrique Cardoso.

Exemplo disso é o que foi feito com o índiopataxó Galdino em pleno Distrito Federal, no anode 1997, já beirando o século XXI, por cinco jovensda classe média alta local (elite burocrática) que oqueimaram vivo quando estava dormindo. Estecrime hediondo, no entanto, já encontrou respaldo

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de defesa da própria Justiça, que criou as premissas“jurídicas” para a sua impunidade. Os bandei-rantes, também, queimavam índios vivos e nadalhes acontecia. O “moderno” atual pode sercomparado ao tempo do Brasil-colônia.

Os sobreviventes do genocídio, ou estão lutandoatualmente pelas demarcações das suas terras, ouforam destribalizados nesse processo e ocupam osespaços do interior do Brasil, constituindo ocampesinato pobre, camponeses sem-terra ou de“bóias frias”, sujeitos a um nível de vida de semi-escravos. Quando não estão sendo exploradosdentro dos padrões do trabalho escravo no Brasil.

São tipos de organização do trabalho que atingemníveis de exploração somente igualados aos paísesmais atrasados do mundo. Sobre o trabalho escravodevemos esclarecer que cada vez que se aprofun-dam pesquisas neste sentido, mais ele é constatadoe a sua presença registrada não apenas nas chamadasáreas atrasadas (Nordeste, Leste e Norte), mastambém no Sudeste e Sul do país.

Mas, há de fato trabalho escravo e semi-escravono Brasil? Depende da óptica de análise. RomeuTuma, por exemplo, atualmente senador daRepública e ex-polícial envolvido em crimes detortura durante a ditadura militar acha que não.Informa ele em ofício dirigido ao secretárioexecutivo do Conselho de Defesa dos Direitos daPessoa Humana, que a ação polícial (nesse tempo

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ele era diretor da Polícia Federal) “Não logrouflagrar ou constatar a ocorrência de crimes àcondição análoga à de escravo em nenhuma daspropriedades denunciadas ou quaisquer que foramsubmetidas à vistoria” 4.

No entanto o sociólogo José de Souza Martinsafirma que “neste ano de 1986, quase um séculodepois da escravidão ter sido extinta por lei,compram-se e vendem-se escravos no Brasil. Desde1970 até hoje, dados ainda incompletos indicam aocorrência de 105 casos de cativeiro. Em 55 delesforam contados 19.713 escravos (dos quais apenas1.292, conseguiram fugir). A imensa maioria é muitojovem. Vários são os casos de menores de idadeescravizados. Em 1970, de quinhentos trabalhadoreslibertados de uma fazenda no norte de Mato Grosso,cinqüenta eram menores. Em 1984, de 160 peõesescravizados em fazenda na periferia do Grande Riode Janeiro, cinqüenta o eram. Em 1980, 23 menoresresgatados de uma fazenda de Diamantino (MT)haviam sido seqüestrados em Arenápolis (MT),filhos de trabalhadores pobres. Tinham de dez acatorze anos.

O preço varia, continua o sociólogo citado –“Em 1980, um empreiteiro confessou que vendiatrabalhadores à Usina de Tucuruí (uma empresapública) a Cr$ 3 mil a cabeça. Uma fazenda deSantana do Araguaia (Pará), em 1983 compravapeões de Paraíso do Norte (Goiás) a Cr$ 40 mil

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cada um. Os vendedores são empreiteiros de mão-de-obra, conhecidos como ‘gatos’. Mas sãofreqüentes as empresas legalmente organizadaspara tratar desse tipo de comércio.

Informa ainda José de Souza Martins: “É umaforma de escravismo clara e crua. Em 46% doscasos, há expressa referência ao controle dostrabalhadores por pistoleiros profissionais. Numadas fazendas foram encontradas quarenta armas eseis mil balas. A repressão é muito significativa:em 36% dos casos, há informações sobre espanca-mentos, chicotadas e outras formas de tortura. Otronco, velho símbolo da escravidão, foi encontradoentre outros casos numa fazenda do Paraná em1975 e numa fazenda do Pará, em 1980. Várioscasos referem-se à tortura de trabalhadores quepermanecem amarrados a árvores durante horas,ou amarrados sobre formigueiros. Num caso, otrabalhador permaneceu longas horas com os pése as mãos amarrados a dois animais: se um delesdisparasse o peão seria estraçalhado. De 35trabalhadores escravizados em uma fazenda doNorte de Mato Grosso, onze apanharam de cipó,seis apanharam de cipó, pau, facão, além de teremsofrido o castigo de ficarem três dias semalimentação. Um trabalhador teve o ânus pene-trado pelo cabo da foice. Trabalharam quatro mesessem nada receber. As punições quase sempredecorrem da tentativa de fuga. Caso recente é o

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de uma fazenda que a pune cortando o calcanhardo peão”.

Depois de enumerar uma série de provas sobreo trabalho escravo ou semi-escravo no Brasil, Joséde Souza Martins conclui afirmando: “Num paísem que a liberdade da pessoa vale tão pouco,quanto valerá a democracia? Por quanto tempo epara quem? Que democracia pode ser edificada emum país em que milhares de trabalhadores estãoreduzidos a condição de escravos, apanham paratrabalhar e podem ser vendidos e comprados semque ninguém moleste os que se aproveitam do seutrabalho? A liberdade que falta a eles falta a todosnós e sua falta contamina e vicia toda a nossaestrutura política” 5.

Em 1985 as jornalistas Gioconda Mentoni eVirgínia Galvez escreveram em um jornal de SãoPaulo que também presenciaram a existência detrabalho escravo em fazendas do Brasil. O próprioMinistério do Trabalho, segundo elas, haviarecebido 72 denúncias sobre a existência detrabalho escravo, especialmente em estabele-cimentos do Norte e Nordeste. As formas maisviolentas de coerção extra-econômica, a violênciacontra esses trabalhadores são normas comuns emgrandes parcelas de estabelecimentos agrícolas. Aspróprias autoridades têm informações dos fatos,mas se confessam impotentes para coibi-los. O ex-ministro da Justiça Fernando Lyra, segundo as

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jornalistas, teria afirmado: “É revoltante. Chego anão acreditar nas denúncias que leio”. Ele foiinformado sobre a existência de cárceres privados,castigos físicos, má alimentação e péssima moradiaa trabalhadores em fazendas. Esses trabalhadoressão arregimentados por promessas, mas nãorecebem salário. Ganham vales para pagaremalimentação e casa – e devem fazer as compras dopróprio fazendeiro. Quando querem fugir sãoperseguidos e, se capturados são vítimas de açoitesou assassinados” 6.

Mas, a violência permanente contra a populaçãocamponesa no Brasil ainda é vista como “pequenosexcessos” que não caracterizam um processo deviolência permanente. Aí está a opinião de RomeuTuma e de outros representantes da ordemjurídico-polícial para desmentirem um processo deviolência genocídica amparado ou escondido pelasestruturas de poder nacionais. Estratégia que apóso massacre de Canudos foi, habilmente camuflada,mas agora se visibiliza novamente nos massacresdos sem-terra e sem-teto expostos periodicamentenos vídeos da TV.

A Coordenadoria de Conflitos Agrários doINCRA-Mirad apurou em 1987 (e a situação até apresente data se mudou foi para pior) a existênciade trabalho escravo em 167 propriedades agrícolasdo País, entre elas, várias pertencentes aVolkswagen, Bradesco, Atlântica Boa Vista, Camargo

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Correia, Votorantim, Maria Pia Matarazzo, JeremiasLunardelli e Alysson Paulinelli. No entanto não setem notícias de que uma sequer dessas empresasou pessoas foram punidas pelo crime.

A estrutura fundiária brasileira e as estruturasde poder que a ela correspondem formam umaunidade, que possibilita a impunidade dosinfratores. O relatório “Trabalho escravo” daCoordenadoria de Conflitos Agrários de 1987expõe com muita clareza a existência do trabalhoescravo mas, também a violência como umelemento permanente, integrante dessa estrutura.Segundo o documento as características dosimóveis que exploram o trabalho escravo, 65 sãolocalizados na região Norte. Não há qualquerreferência ao Estado do Maranhão o que evidenciaas lacunas do documento e a maneira como foielaborado, 54 são localizadas na região Nordeste,47 localizadas na região Sudeste e Sul, maisexatamente em São Paulo, Minas Gerais e SantaCatarina.

Por outro lado a professora Sônia HelenaGuimarães Novais, mostra os dados estruturaisdessa realidade de forma mais conclusiva 7. Mostraque ao procurar-se modernizar a estrutura agráriabrasileira ancorada nas grandes empresas, investin-do em projetos baseados em grandes propriedadesacabou contribuindo para a ocorrência da escravi-zação do trabalhador rural, um dos aspectos mais

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negativos da situação agrária brasileira. Oslatifúndios no Brasil detêm uma área de 409,5milhões de hectares, contra 114,5 milhõescorrespondentes à soma das terras públicas, seis emeio milhões correspondentes às terras em mãosde estrangeiros e 0,18 milhões pertencentes àIgreja Católica (ver quadros 1 e 1A).

A área total dos latifúndios brasileiros (mais de4 milhões de quilômetros quadrados) só é menorque a superfície de cinco países: Austrália, Canadá,China, Estados Unidos e ex-URSS.

Os 27 maiores detentores de terras e latifúndiosno país concentram um total de 25,5 milhões dehectares, área equivalente à superfície do Estadode São Paulo. Essa área corresponde a 250 milquilômetros quadrados e é maior que 101 países.

Já os 79 detentores de 276 imóveis ruraissuperiores a 200 mil ha (45 pessoas físicas e 34jurídicas) ocupam uma área de 38,9 milhões dehectares, o que dá em média para cada um quasemeio milhão de ha. A área total – correspondentea 389 mil quilômetros quadrados é maior do que117 nações do planeta.

A concentração da propriedade da terra emníveis tão altos – um traço histórico da realidadesocial do Brasil – foi agravada pelo modelo dedesenvolvimento patrocinado pela DitaduraMilitar. Um dos mecanismos usado por ela foramos incentivos fiscais que viabilizaram os grandes

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projetos agropecuários da Amazônia – a região,aliás, de onde mais chegam as denúncias deescravidão. Isto demonstra como o mecanismo quea Ditadura Militar pretendeu modernizar aestrutura agrária brasileira veio agravar ainda maiso problema camponês.

Essa estrutura fundiária altamente concentrada,arcaica e geradora do poder, para manter-se,evidentemente tem de recorrer a métodosviolentos de controle social exercidos contra oscamponeses. A violência em todos os níveis é asua arma preferida e o mecanismo mais comumde se preservar os privilégios dos latifundiários.

A perversa face da violênciaA violência é uma arma permanente da qual se

recorrem os latifundiários. Ela vai da destruiçãode roças, invasão de lares, tortura no trabalho,estupro de camponesas, intimidação e assassinatosindividuais ou de grupos de trabalhadores nocampo. Para isto recorrem a pistoleiros profissio-nais, capangas, ou mesmo criminosos comuns. AUDR (União Democrática Ruralista) é o braçolegal e procura dar cobertura aos crimes e escondê-los ou, em última instância, culpar os próprioscamponeses pela violência. Os órgãos de divulga-ção e comunicação somente se ocupam do assuntoquando a violência se visibiliza como nos massacresde Corumbiara e Eldorado dos Carajás, quando a

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opinião nacional viu pela televisão camponesesserem executados pelos órgãos da repressão. Mas,a violência cotidiana contra a vida, a honra, apropriedade do camponês, no dia-a-dia, no seutrabalho cotidiano, isto tudo é acobertado pelaUDR, o braço político dos latifundiários.

Quando há um fato de repercussão internacional,como o de Chico Mendes, essa violência vem à tona,mas somente enquanto é de interesse da mídiainternacional. As coisas voltam à normalidadepassada a febre de especulações e esgotado ointeresse meramente jornalístico. Mas, não sãoapenas os camponeses que são vítimas da violência.Ela se concentra também nos seus líderes que sãomuitas vezes assassinados por agentes dos fazen-deiros, quase sempre com a conivência dasautoridades e executados pela própria polícia.

Daí a constância dos chamados conflitos deterras que se avolumam à medida que os campo-neses se conscientizam e os latifundiáriosorganizam grupos ou milícias de mercenários parainiciarem o enfrentamento armado. É longa a listade líderes assassinados (ver quadro 4).

Qualquer lista, no entanto, é apenas parcial e olado visível da medalha. Mas, a estratégia deextermínio atinge os camponeses no próprioprocesso de trabalho e na impossibilidade dereclamar contra as condições subumanas a queestão subordinados.

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Para Aldo Arantes “entre maio de 1980 efevereiro de 1991 foram assassinados 174 traba-lhadores e dirigentes sindicais rurais nesta região(Sul do Pará). A truculência dos latifundiáriosdesta área foi verbalizada por um dos irmãosCarioca, freqüentador assíduo da fazenda domandante do crime de Expedito, que afirmou aoGlobo Repórter no programa que foi ao ar no dia12 de abril: ‘burro só desempaca na espora eposseiro só tem um remédio para ele: bala’”. (verquadro 5).

O País já tomou conhecimento das macabraslistas dos “marcados para morrer”, elaboradas emreuniões de fazendeiros e políticos, indicando aexistência do crime organizado na região.

O autor que estamos acompanhando afirma emseguida que “em depoimento prestado no processoque investiga o assassinato de João Canuto, o crimeorganizado foi denunciado pelo trabalhador JoãoMartins, quando falou da reunião que elaborou alista para o assassinato de três lutadores em defesados trabalhadores: João Canuto (assassinado),Paulo Fontelles (assassinado) e Ademir Andrade.Martins tomou conhecimento de tal reunião porintermédio de seu cunhado, Marcondes Mendonçade Lima, que participou da mesma juntamentecom Orlando Mendonça, então prefeito deConceição do Araguaia; Adilson Laranjeiras, entãoprefeito de Rio Maria; Elviro Arantes, candidato a

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prefeito de Xinguara pelo PDS em 1982 epresidente da UDR da região; o fazendeiro LuizArnelas e Jordão Mendonça. Outra lista de“marcados para morrer” foi denunciada pelopróprio Paulo Fontelles, quando ainda deputado.Na época, da tribuna da Assembléia Legislativado Pará, denunciou a realização de uma reuniãoem Paragominas para a elaboração de uma lista comoito nomes, entre os quais estava o dele e da atualdeputada federal do PCdoB do Pará, SocorroGomes 8.

O massacre não se circunscreve ao Pará, mas segeneraliza por todas as áreas do território nacional.A essa generalização da violência algumasentidades de Direitos Humanos se manifestam.No particular, segundo a Comissão Pastoral daTerra, houve um aumento significativo deassassinatos no campo, passando de 56 em 1989para 75 em 1990, com um crescimento de 34%.Destes, 30 foram assassinados na região Norte, 26no Nordeste, 9 no Sudeste, 8 no Centro-Oeste e 2no Sul. Na região do Pará houve um aumento demais de 50% do número de assassinados delideranças e trabalhadores rurais, aumentando de14 em 1989 para 30 em 1990.

A região Nordeste, aparece como a segundaárea com maior número de assassinados no campo,surge como a região onde foram maiores osnúmeros de conflitos por questões de terras. E os

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conflitos ocorreram principalmente no Sul daBahia e Maranhão. Nesses dois estados ocorreramquase todos os assassinatos do Nordeste. (Verquadros 2, 3 e 4).

Prossegue Aldo Arantes: “No Centro-Oeste aviolência também está presente. Inúmeros casosde violência continuam ocorrendo. Em Goiáscontinuam impunes os mandantes dos crimes deNativo da Natividade, Sebastião da Paz e outros.No Mato Grosso a violência se equipara à de 1984.O trabalho escravo é encontrado na região e apolícia realiza execuções sumárias. A regiãosudeste, como indicam os números, não fica foradeste quadro de violências” 9.

Poderemos ver, assim, que pelo exposto, asituação fundiária no Brasil tem as seguintescaracterísticas:

a) Intensa, concentração fundiária.b) Existência do trabalho escravo e semi-escravo

nesses latifúndios.c) Violência sem limites para manter sob controle

o descontentamento e o protesto camponês.E devemos acrescentar a estas três tendências

uma outra que as complementa: a impunidade.É um mecanismo acionado através de pressõespolíticas e econômicas. Com isto, praticamente aJustiça não existe no campo. Juízes venais,máquina judiciária viciada, interesses pessoais dospróprios juízes e de suas famílias determinam que

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praticamente a Justiça não exista. No particularainda Aldo Arantes esclarece que “Os prefeitosnas regiões agrárias são, normalmente represen-tantes dos latifundiários. O resultado disto é que,com raras exceções, a justiça e a polícia fazem“vistas grossas” para os crimes cometidos contratrabalhadores rurais. Exemplo gritante destasituação é o que acontece em Rio Maria. Sendouma das localidade onde ocorreram o maiornúmero de assassinatos de trabalhadores elideranças sindicais, até hoje não se realizou alinenhum Júri Popular”. (Ver quadro 5)

E mais: “No Tribunal Nacional dos Crimes doLatifúndio, realizado em 1988, chegou-se àconclusão de que dos mais de 1.500 trabalhadoresrurais, índios, religiosos, advogados e outrosprofissionais assassinados desde 1964, somente 6casos tiveram julgamento na Justiça, sendo que em3 houve condenação dos executores dos crimes emoutros 3 houve absolvição. Em nenhum dos casosos mandantes foram levados aos Tribunais e namaioria absoluta sequer foram indiciados”10.

Como podemos detectar a impunidade é o atoconclusivo dos assassinatos. O exemplo citado não éúnico. Esses homicídios, respaldados pela impuni-dade se alastram por todo o país. Dos 1.630 homi-cídios a Justiça promoveu Júri Popular em apenas 19casos; destes, somente condenou mandantes em trêsprocessos: o da chacina dos índios Xacriabá, em

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Minas Gerais e os dos sindicalistas Júlio Rodriguesde Miranda e de Francisco Mendes Filho, no Acre.No Pará, não houve até 1990 um júri popular sequercontra pistoleiros ou latifundiários. Pelo contrário,houve processo e condenação de 13 posseiros e 2padres em 1982 11.

Uma realidade escandalosa que revela o nívelde corrupção e violência para garantir a impuni-dade dos criminosos está num caso que registra-mos, nem por isto o único: Em 2.3.82 foiassassinado em Rio Maria o lavrador BelchiorMartins da Costa. Estava desarmado, colhendoarroz, quando foi atacado. Segundo a sua família,pelo fazendeiro Valter Valente, seu genro e doispistoleiros. No Hospital São Francisco de Assis,a enfermeira que cuidou do corpo informou aosfamiliares ter contado 140 perfurações, perce-bendo que havia fratura no pescoço e os olhoshaviam sido igualmente perfurados. Colhia arrozcom ele o lavrador Luiz Cabeça Branca, quetambém foi atingido, recebendo alguns tiros, massobrevivendo. O inquérito polícial desapareceue nada foi realizado para sanar tal problema”12.

Mas, relatar apenas esses casos isolados nãocaracteriza o conjunto da realidade como ela sedesenvolve no campo no Brasil. É preciso que seestabeleça critérios de julgamento dessa situação.E esse julgamento social só se realizará quando olatifúndio desaparecer, com isto democratizando-

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se as relações entre as classes e os grupos e aspessoas no campo.

De Canudos a Carumbiara e Eldorado dos Carajás:impunidade

A interpretação que podemos fazer do processode violências no campo no Brasil é que as elitesagrárias para defenderem os seus privilégioscentenários, recorrem a todos os métodos selva-gens. As estruturas de poder garantem-lhes aimpunidade, com isto montando um aparelhoterrorista que é aplicado sistematicamente contraos camponeses e os seus líderes. É, portanto, umaparelho político, capaz de impedir qualqueravanço na modernização no campo. Essa moder-nização que seria uma reforma agrária planejada,é concebida no sentido inverso por essas elitescomo a modernização do latifúndio, introduzindoreformas tecnológicas, mas, ao mesmo tempo,expulsando cada vez mais a população camponesapara as áreas urbanas, onde ela vai compor ademografia social das áreas gangrenadas dasgrandes cidades.

Assim, as relações sociais no campo brasileiro(relações latifundiários X camponeses,) têm umconteúdo extremamente violento. As relações deprodução herdadas do Brasil Colônia aindamantêm o seu dinamismo intacto, enquanto umamodernização sem mudança social permite a

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imagem de um Brasil moderno e democrático navisão neoliberal. Os fazendeiros, em face destemodelo, podem mandar anualmente os filhos paraa Disneyword enquanto os filhos dos camponesescontinuam trabalhando a partir dos 5 anos de idade,em regime de trabalho escravo, como na época daescravidão. Os ritmos de exploração se ampliam àmedida que essa modernização é implantada. Éum modelo, portanto, arcaico e desumano.

Esta forma despótica como o capitalismopenetra no campo no Brasil ainda não teve umaanálise teórica satisfatória. O nosso passadoescravista de quase quatrocentos anos não éconsiderado convenientemente, ficando-se presosa esquemas da dinâmica social criados para aexplicação de sociedades com passado econômicobem diferente da sociedade brasileira. O certo éque as relações escravistas deixaram aderênciasprofundas no relacionamento social e a suapresença negativa ao desenvolvimento ainda sefarão presentes por muitos anos.

Como se vê, o massacre de Eldorado dosCarajás, assim como o de Corumbiara, já não sãoum fato deslocado do lugar, mas obedecem a essalógica diabólica da penetração do capitalismo nocampo. Em países dependentes os quais necessi-tam da violência para manter os seus privilégios ea taxa de lucros capaz de proporcionar poder eriqueza a uma minoria privilegiada. A violência

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também é um fator econômico, como já assinalaraMarx. Esse processo de modernização tecnológica(penetração do capitalismo no campo) cria ascondições para o desemprego da mão-de-obracamponesa e, ao mesmo tempo, a formação de umassalariado agrícola também subordinado àinfluência das reminiscências da escravidão,constituindo-se um subproletariado rural aindapreso, por uma série de vínculos econômicos eextra-econômicos, culturais e sociais, às relaçõespré-capitalistas.

A produtividade agrícola, desta forma, não serefletirá em maiores salários para o trabalhador, masem maior lucro para os donos das terras, doslatifundiários. Acresce notar que o desenvol-vimento desse capitalismo se realiza dentro de umcontexto de subordinação global no qual estáinserido o projeto capitalista brasileiro: dependentedos monopólios internacionais.

Notas

1 Cláudio de Albuquerque Bastos, em livro de sociologia daslinhagens - talvez o único no Brasil - escreve que “esta monografiapretende constituir-se em um estudo sobre a influência clânica napolítica brasileira, tentando mostrar como em determinados casos,algumas famílias, de origem essencialmente portuguesa, vêmtendo predomínio e domínio nos postos executivos do Brasil,desde a época da instalação do sistema de Capitanias hereditáriasem 1534, logo após o descobrimento do país até os nossos dias.Nessas mostras das generalidades do assunto, pretende-se a

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delimitação do tema, fazendo-se um estudo, tanto quantodespretensioso, da suposta desarticulação das oligarquiasnacionais para, em conclusão, mostrar as perspectivas de umfuturo não distante, com base na realidade atual, ou seja, da nãodesagregação que se teria manifestado, a partir dos efeitos da criseeconômico-social de 1929, isto é o princípio de uma revoluçãoglobal que viria a processar-se no pais”. Bastos, Cláudio deAlbuquerque: Família & Poder, Belo Horizonte, s/e. 1991, pág. 5.

2 Luna, Luiz: Resistência do índio à dominação do Brasil. Ed.leitura, RJ, 1967, pág. 12ss. Ver também: Fernandes, Florestan:Os tupi e a reação tribal à conquista, in Mudanças social noBrasil, Ed. Difusão Européia do Livro, SP, 1960, págs. 287/297.Indispensável a leitura do livro de John Manuel Monteiro:Negros da terra e bandeirantes nas origens de São Paulo, Ed.Companhia das Letras, SP, 1994.

3 Enquanto os portugueses já haviam modelado o símbolo do“índio bárbaro”, os franceses ainda alimentavam a visãoIluminista do “bom selvagem” de Rousseau. Além dainterferência da visão Iluminista, os franceses, nas suastentativas de colonização no Brasil ainda necessitavam dos índiospara realizarem os seus intentos contra os portugueses comoaconteceu na Confederação dos Tamoios. Sobre esta festa, ourepresentação teatral dos Tupinambás na capital francesa ver:Denis, Ferdinand: Uma festa brasileira, Er. EPASA, RJ, 1944,passim. Sobre a influência do mito do “bom selvagem” emrelação ao índio brasileiro ver: Franco. Afonso Arinos de Mello:O índio brasileiro e a revolução francesa. 24 ed., RJ, Ed. JoséOlímpio, 1976.

4 Citado por Figueira, Pe. Ricardo Rezende: Violência no campo,Cadernos CEAS, nº 138.

5 Martins, José de Souza: A escravidão hoje no Brasil in Folha deS. Paulo, 13 de maio de 1986. - A situação atual não é muitodiferente da do trabalhador amazonense descrita faz quase umséculo por Euclides da Cunha: “o seringueiro e não designamoso patrão opulento, senão o freguês junjido à gleba das ‘estradas’,o seringueiro realiza uma tremenda anomalia. É o homem quetrabalha para escravizar-se. Demonstra-se esta enormidadeprecitando-a com alguns cifrões secamente positivos e seguros.Vede esta conta na vida de um homem: No próprio dia em quechega do Ceará, o seringueiro principia a dever: deve a passagemde proa até ao Para (35 000), e o dinheiro que recebeu para

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preparar-se (150$000). Depois vem a importância do transporte,num gaiola qualquer de Belém ao barracão longínquo a que sedestina, e que é na média, de 150$000. Aditem-se cerca de800$000 para, os seguintes utensílios invariáveis: Um bolão defuro, uma bacia, mil tijelinhas, uma machadinha de ferro, ummachado, um terçado, um rifle (carabina Winchester) e duzentasbalas, dois pratos, duas colheres, duas xícaras, duas panelas, umacafeteira, dois carretéis de linha e um agulheiro”. (...) Isto é,ainda não aprendeu o corte da madeira e já deve 1:135$000.Segue para o posto solitário encalçado de um comboio levando-lhe a bagagem e viveres, , , , , rigorosamente marcados, que lhe bastampara três meses: 3 paneiros de farinha de água e 1 saco de feijão,outro, pequeno, de sal, 20 quilos de arroz, 30 de charque, 21 decafé, 30 de açúcar, 6 latas de banha, 6 libras de fumo e 20 gramasde quinino. Tudo isto lhe custa cerca de 750$000. Ainda não deuum talho de machadinha, ainda é o brabo canhestro, de quemchasqueia o manso experimentado, e já tem o compromisso sériode 2:090$00011. (...) Os ‘Regulamentos’ dos seringais são a estepropósito dolorosamente expressivos. Lendo-os, vê-se orenascer de um feudalismo acalcanhado e bronco. O patrãoinflexível decreta, num emperramento gramatical estupendocoisas assombrosas. Por exemplo: a pesada multa de 100$000comina-se a estes crimes abomináveis: a) “fazer na árvore umcorte inferior ao gume da machadinha” b) “levantar o tampo damadeira na ocasião de ser cortada” c ) “sangrar com machadinhasde cabo maior de quatro palmos”. Além disto o trabalhador sópode comprar no armazém do barracão “não podendo comprara qualquer outro, sob pena de passar pela multa de 50% sobre aimportância comprada. (...) É natural que ao fim de alguns anoso freguês esteja irremediavelmente perdido. A sua, divida avultaameaçadoramente: três, quatro, cinco, dez contos, as vezes, quenão pagará nunca. (...) Fugir? “O Regimento” é impiedoso:“Qualquer freguês ou aviado não poderá retirar-se dapropriedade sem que liquide todas as suas transaçõescomerciais”. Fugir? Nem cuida em tal, Aterra-o o desmarcadoda distância a percorrer. Buscar outro barracão? Há entre ospatrões acordo de não se aceitarem, uns os empregados deoutros, antes de saldarem as dívidas”. Cunha, Euclides da: Àmargem da história, Ed. Livraria Lello, Porto, 1941, págs. 24ss.

6 Para se avaliar a abrangência da existência do trabalho escravoe semi-escravo no Brasil registramos os títulos de alguns jornaissobre o assunto:

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TRABALHO ESCRAVO ATINGE 35 MIL EM SP, AFIRMASECRETARIA, Folha de S. Paulo, 28 de dezembro de 1986;DOCUMENTO DENUNCIA TRABALHO ESCRAVO EM167 FAZENDAS, Rosane Garcia, Folha de SP, 27 dezembro de1986; TRABALHO ESCRAVO É UM PROBLEMA NACIO-NAL, AFIRMA PAZZIANOTTO, Folha de SP, 29 dezembro de1986; CEARÁ PEDE QUE PF APURE CASO DE SEMI-ESCRAVIDÃO, Folha de SP. 16 fev. 1989; PF RESGATA OITOTRABALHADORES DA SEMI-ESCPAVIDÃO, Folha de SP.17 fev. 1984. LAVRADORES ALAGOANOS DENUNCIAMESCRAVIDÃO NO INTERIOR DE SÃO PAULO, O Globo,RJ., 19 de junho de 1987; CPT DENUNCIA AUMENTO DOSCASOS DE TRABALHO ESCRAVO, Folha de SP. 11 abril de1987; RIO GRANDE DO SUL: EMPREITEIRO AUTUADOPOR USAR TRABALHO ESCRAVO por Flávio Porcello,Gazeta Mercantil, SP, 17 de junho de 1988; TRABALHOESCRAVO, Folha de S. Paulo, 1 de fev. 1987; BROSSARDAPURARÁ DENÚNCIAS DE TRABALHO ESCRAVO NOPA, Folha de SP, 29 outubro, 1987; A FUGA DO INFERNO,COM CÃES E JAGUNÇOS NO ENCALÇO: DAMIÃO ES-CAPA E É ESCONDIDO PELA IGREJA,O Globo, RJ.19 abril,1987; EM RONDÔNIA SURPRESA: DENÚNCIA DE ES-CRAVIDÃO E CHACINA, Estado de São Paulo, 8 junho, 1986;AUMENTAM CASOS DE ESCRAVIDÃO NO SUL DOPARÁ, Folha de São Paulo, 14 junho, 1987, POLÍCIA LIBERTA8 OPERÁRIOS ESCRAVIZADOS POR COREANOS, OGlobo, RJ. 8 de agosto, 1987; TRABALHO ESCRAVO EMANGATUBA, O Estado de São Paulo, 22 de abril, 1986;FAZENDEIRO ACUSADO DE UTILIZAR TRABALHOESCRAVO É ASSASSINADO, Folha de São Paulo, 11 janeiro,1989; POLÍCIA EXAMINA DENÚNCIA DE TRABALHOESCRAVO, Folha de São Paulo, 20 janeiro, 1989; DPF LIBERA63 ESCRAVOS DE FAZENDEIRO NO PARÁ, Jornal do Brasil,RJ, 8 de julho, 1986; COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO,por Ivanir José Bortot, Gazeta Mercantil, 30 de junho, 1986;TRABALHO ESCRAVO SUBSISTE EM RORAIMA, porMontezuma Cruz, Jornal do Brasil, 5 de maio, 1989 e GOVERNOCONSTATA TRABALHO ESCRAVO NO INTERIOR DOPAÍS, por Gioconda Mentoni e Virginia Galvez, Folha de SãoPaulo, 3 de outubro, 1985.

7 Novaes, Sônia Helena Guimarães: Alguns pontos de discussãosobre a questão da Reforma Agrária: o caso Brasil - comunicação

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apresentada na Jornada Internacional sobre Reforma Agrária,Mérida, Venezuela, 1986.

8 Arantes, Aldo: Violência: produto em expansão no campo, inPrincípios, n 22, 1991, SP, págs. 18ss.

9 Arantes, Aldo: Loc. Cit.10 Arantes, Aldo: Loc. Cit. As relações entre o latifundiário e o

camponês são baseadas na violência e criam formas patológicasde desumanização como no exemplo seguinte: “O número dosque desaparecem sem registro, sem nome, enterradosclandestinamente é muitas vezes superior ao número dos mortosconhecidos. Suspeita-se da existência de cemitérios clandestinosem diversas fazendas. Surgem comentários acerca da descobertade diversas ossadas no interior das matas. E mesmo noscemitérios oficiais, nas cidades, o registro é duvidoso. Em 1987,Antônio Bispo dos Santos, posseiro da Fazenda Agropecus, foiassassinado e enterrado às pressas como indigente. Para oreconhecimento do corpo, foi necessária a exumação, já que noregistro de óbito constava, no local da identidade a palavradefunto. Nesta mesma época, um coveiro revelou que foraorientado pela polícia para enterrar um lavrador assassinado efazer constar, no lugar do nome do morto a palavra cachorro.Conferindo no livro de registro dos mortos da funerária lá estavaescrito cachorro. Por tudo isso, nenhuma entidade da sociedadecivil é capaz de calcular quantos peões têm perdido a vida aotentar a liberdade”. Pe. Ricardo Rezende Figueira: Violênciano campo, in Cadernos do CEAS, no. 134 junho/agosto, 1991,págs. 13ss.

11 Figueira, Pe. Ricardo Rezende: Violência no campo. CadernosCEAS. N 134.

12 Figueira, Pe. Ricardo Rezende: Loc. Cit.

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Capítulo IV

Depois do massacre de Canudos oscamponeses se rearticulam e lutam

Em que camada foram recrutados os primeiroscristãos? Entre os ‘CAÍDOS E OPRIMIDOS’,

principalmente as mais baixas camadas dopovo, segundo convém a um elemento

revolucionário. E de que se compunham estascamadas? Nas cidades, de homens livres, de

degenerados de toda classe, de gente semelhanteaos mennwhites DOS ESTADOS

ESCRAVAGISTAS DO SUL, dos aventureirose vagabundos europeus das cidades marítimas

coloniais e chinesas dos libertos e dosescravos em particular.

F. Engels – “O Cristianismo primitivo”.

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Canudos foi um fato emblemático das contra-dições no campo na sociedade brasileira. Isto porqueele conseguiu criar um modelo de comunidadecamponesa que funcionou com êxito enquantoexistiu. Emblemático também pela violência comofoi destruído e também emblemático pelo heroísmoda resistência dos seus habitantes.

A reação do latifúndio e do Estado republicanopensou imobilizar os camponeses na luta pela terra.A sua destruição fez as oligarquias agrárias suporemque para sempre o problema da terra no Brasilestava resolvido de acordo com os seus interesses.

Tal porém não se verificou. A inquietaçãocamponesa se rearticula de várias maneiras ediferentes pontos do território nacional.

Sem analisarmos aqui o movimento itinerantedo cangaço, que é um movimento paralelo (1917-1938) nem movimentos que antecederam aCanudos como os Muckers, no Rio Grande do Sul(1872) 1 temos de considerar o movimento doContestado (1912-16) como o mais importanteprotesto camponês surgido no Brasil após Canudos.O problema da terra aqui se apresenta em primeiroplano e surge numa área contestada pelos Estadosde Santa Catarina e Paraná. Entra também emcontato e conflito com a penetração do imperia-lismo no campo. É que há a tentativa de expulsãodos posseiros da região com a chegada, de um ladoda Souther Brazil Lumber Colonization Co. e, de

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outro a Empresa Farqhuar, para a construção deuma ferrovia e a exploração industrial da madeira.

“Em 1912, durante a festa de São Sebastião emPerdizes Grande, diferentes grupos de trabalha-dores se uniram a um curandeiro de nome JoséMaria. Corria pela região uma lenda sobre aexistência de um monge que fizera no final doséculo XIX muitos milagres e curas e deveriaressuscitar em Campos Novos. José Maria, aceitocom o santo-ressuscitado, estabelece um acordocom o coronel Henriquinho Almeida, levando ocoronel rival Francisco Albuquerque, temeroso detal aliança, a denunciar o curandeiro comomonarquista e proclamador da monarquia emTaquaruçu”2.

O início aparentemente é uma rivalidade entrecoronéis. Mas, o que está atrás dessa aparência é avontade dos homens sem terra da região de sefixarem e desenvolveram a sua comunidadecamponesa, como já fora tentada em Canudos. Masisto não é possível e a repressão começa. “Com arepressão, José Maria e seus seguidores retiram-separa Irani. Com um grande número de posseiros,ocupam a região, no Paraná, ocupação consideradacomo invasão pelos catarinenses.

O comandante da força pública local, coronelJoão Gualberto, organiza então uma brigada contraos camponeses. José Maria solicita um tempo paraempreender a retirada rumo ao Mato Grosso, mas

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João Gualberto ataca com uma metralhadora(testada naquele momento contra o refúgio doscamponeses). José Maria é morto, e um pequenogrupo de líderes, 24 cavaleiros, chamados de osDoze Pares de França (designação inspirada nolivro História de Carlos Magno e seus Doze Pares deFrança, muito difundido no Brasil), avança sobreas tropas de João Gualberto e, pela luta corpo acorpo, apossa-se da metralhadora 3.

Este é o início de uma guerra camponesa dasmais violentas na América do Sul. Diferentementede Canudos, os camponesas de Contestadoperderam o seu líder José Maria, logo no primeirocombate. Daí as suas lideranças terem de sereorganizar, sem contar com a presença do chefe.E os camponeses resolvem partir para a ofensiva.

“Diferentemente do que ocorrera em Canudos,os componentes do Contestado que haviamperdido seus amigos, líderes e terras, passaramatravés do conflito a tentar reencantar seu mundolutando pela defesa da comunidade santa. Lutamcontra os coronéis, a política e a construtora daferrovia, a empresa Farqhuar, que, ao exigir alimpeza da área, isto é, a expulsão dos camponesesprovoca a ação organizada dos produtores explo-rados. A ferrovia exigia, como parte do contrato,10 léguas de cada lado por onde a estrada fossetraçada. Assim iniciou-se o processo de expulsãodesses trabalhadores, colonos, posseiros, meeiros

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e alguns assalariados que trabalhavam nessa regiãona produção de erva-mate.

Neste segundo movimento camponês, que paraMaria Isaura Pereira de Queiroz era pré-político,o sociólogo Douglas Teixeira Monteiro, embora oqualifique entre os movimentos milenaristasdestaca-lhe o conteúdo político. Diz ele “entre osrebeldes, a idéia monárquica era, antes de maisnada, um símbolo que exprimia, primeiramente, aúnica alternativa política formal que conheciam,em face da República. Se entre os revolucionáriosde 1893 as aspirações desta natureza eram mais oumenos diluídas, para os combatentes da SantaReligião (muitos deles ex-maragatos), cristali-zavam-se em torno de crenças místicas. Não épossível, por isso, dissociar-se esses dois aspectosna análise do comportamento político rebelde.

Que essas convicções tinham um conteúdopolítico, é inegável. Correspondiam a afirmaçãoarmada de uma ordem nova e, mesmo para os queas combatiam, não podiam ser vistas apenas comouma quimera milenarista, pois realizavam-seobjetivamente através da conquista da autonomiaorganizatória com relação ao poder público e darejeição frontal do sistema social e da ordenaçãojurídica externos” 4.

Por isto, de forma conclusiva, escreve aindaZilda Márcia Grisoli Iokoi que “ambos os conflitos(Canudos e Contestado) estão relacionados à

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negação por parte do Estado burguês, de qualqueração que pusesse em risco o controle sobre a terra,mesmo que esta ação fosse fornecedora de renda emão-de-obra. A produção só era permitida para omercado. A população de José Maria se organizoupara resistir ao processo de sua liquidação. E, em seorganizando para resistir, organizou uma comuni-dade que não ficou na defensiva, mas avançou. Erapreciso lutar e morrer, para ressuscitar e viver.Enquanto Canudos tinha uma estratégia de guar-necer o seu espaço e impedir a penetração dastropas legais, no Contestado tinha uma propostamais avançada, porque seus membros invadiam eenfrentavam o Exército nacional, os capangas dacompanhia e dos coronéis. Para os grupos a respostafoi o massacre, a liquidação absoluta 5.

Podemos acrescentar para somar-se à soluçãogenocida da democracia capitalista o exemplo daRepública de Palmares, quando os cidadãospalmarinos foram também destruídos e extermi-nados pelas tropas mercenárias do bandeiranteDomingos Jorge Velho. É uma estratégia terroristados dominadores de plantão contra qualquer formade organização da plebe para emancipar-se dasformas de trabalho e exploração a que estásubmetida no latifúndio, quer escravista, queroligárquico.

Um exemplo desses movimentos organizativoscamponeses, os quais vão muito além da simples

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demonstração de descontentamento individuais ougrupal será encontrado no território livre deFormoso, entre os anos de 1948 a 1964. Este jánão poderá ser mais chamado de messiânicoporque a proposta política vinha explícita a eratransparente a liderança do Partido Comunista doBrasil no movimento. Foi um verdadeiro territóriolivre em pleno espaço latifundiário. O territóriolivre é organizado numa área de quase dez milquilômetros quadrados, no Estado de Goiás. É ummovimento de posseiros que passou a ocupar osvazios demográficos da região. A atuação dessescamponeses foi muito intensa, com táticas políticasalternativas, permitindo isto resistirem dez anos(1948-1964). O território Livre de Formoso erapraticamente um território independente, domina-va o território de Trombas “Estabelecendo umacomunidade livre da estrutura de poder do EstadoNacional. Esses trabalhadores rurais de origemnortista encontravam-se em Goiás, na região dePedro Afonso, desde o final de 1948, e tinhamcomo líder José Porfírio, que sofrera uma série daviolências dos grileiros das terras que ocupava. Osconflitos eram muitos, mas os grupos se organiza-vam em mutirões, tanto para abrir novas frentesde posseiros como para guarnecer, através dehomens armados as terras conquistadas na luta” 6.

Os trabalhadores rurais que aí se organizaramfundaram a Associação dos Lavradores de Formoso

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e Trombas com o objetivo de administrarem asterras ocupadas e a sua produção. Viabilizava-seum projeto de autogestão camponesa tendo comoponto central político o Partido Comunista doBrasil. Esse projeto, no entanto, é abandonado emconseqüência de injunções políticas e a tática doPartido e, ao mesmo tempo, pelo aumento darepressão armada, tendo o Estado enviado tropaspara combatê-los. Nessa época o Partido Comunis-ta defendia a aliança com a burguesia nacional, oupelo menos com a burguesia progressista e istojustificou teoricamente o seu acordo com o entãogovernador de Goiás, Pedro Ludovico, no sentidode apoiar eleitoralmente o seu filho à governançado Estado em troca da retirada das tropas do Estadodo território dos camponeses.

Com esta tática de neutralização do avançorevolucionário, mas por outro lado, sem seremdestruídos naquilo que já havia sido conquistado,os camponeses liderados por João Porfírioconseguem sobreviver como território livre e umgoverno popular.

Esse movimento, no entanto, será definitiva-mente esmagado com o golpe militar de 1964quando o seu líder é preso e depois de soltodesaparece definitivamente nos subterrâneos darepressão em 1973 7.

O período de 1950 até o estrangulamento dosmovimentos camponeses feitos pela ditadura

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militar, é rico em movimentos no campo, como ode Porecatu, no Paraná. Movimento de posseirosque eram sistematicamente expulsos de suas terraspelos grileiros da região. No final de 1950 “sob aliderança de José Billar a região oeste vive umprocesso de guerrilha, sendo a ação políticadefinida pelo Comitê Regional do PartidoComunista de Londrina, no Paraná, e em Presiden-te Prudente e Assis, no Estado de São Paulo

O movimento camponês no interior de SãoPaulo, na região de Tupã, no mesmo períodotermina com a chacina dos líderes Marma, Rossi eGodoi.

Outros movimentos no campo dinamizam-secomo em Capanema, Francisco Beltrão e PatoBranco. Em Beltrão, segundo José de SouzaMartins, 4.000 camponeses expulsaram as autori-dades e tomaram o poder, controlando inclusiveestações de rádio.

Ainda segundo Zilda Márcia Gricoli Iokoi“também em Santa Fé do Sul, no sudoeste de SãoPaulo, conflitos ocorreram. Nessa região, segundoVera Chaia, os arrendatários que compunham afrente pioneira, ameaçados de serem expulsos dasterras após o fim dos arrendamentos, lutavamtambém sob orientação do Partido Comunista.Esses arrendatários procuravam ampliar seuscontratos, uma vez que já haviam perdido suasterras no Nordeste do Brasil. Eles eram migrantes

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contratados para a derrubada da mata e plantio docapim para formar pasto, entre outros trabalhos”.

Apesar da disposição de luta eles foram expulsose os seus líderes presos.

Na região de Araçatuba (Estado de São Paulo),surge na década de 1940 outro movimentocamponês na fazenda Primavera. Muitos outrosconflitos esporádicos continuam nas regiões daBahia, Pernambuco e Goiás.

Em Pernambuco organiza-se um movimentoque depois terá repercussão nacional: o movimentodas Ligas Camponesas criadas por Francisco Julião.Surgiu das reivindicações dos trabalhadoresagrícolas do Engenho Galiléia e sobre essaorganização assim se refere Francisco Julião, umdos seus executores: “No Brasil, há muitos anostiveram início as organizações camponesas. A maiorparte das tentativas foi orientada no sentido deconstituir sindicatos rurais. Houve bom impulso,no início, mas não chegaram a vingar. Muitos nãoresistiram à pressão do poder econômico edesapareceram. Em Pernambuco, eles nasceramem Escada, em Goiana, em Pau D’Alho e outrascidades. Milhares de trabalhadores, atenderam aoseu chamado. A reação não se fez esperar. Caiu dechofre sobre os camponeses. Os sindicatos nãoconseguiram registro nem carta patente, nãoobstante as promessas de Vargas e de todos osministros do Trabalho das últimas décadas. Por fim,

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arrefeceu-se o ânimo dos trabalhadores e ossindicatos agrícolas morreram quase ao nascer.

Em 1955 – prossegue Francisco Julião – surgea “Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadoresde Pernambuco”, mais tarde chamada de “LigaCamponesa da Galiléia”. Esta iniciativa coube aospróprios camponeses do “Engenho da Galiléia”,município de Vitória de Santo Antão, não muitolonge do Recife”. (...) Diante desta elementarprova de organização camponesa os latifundiáriosse articulam no sentido de impedi-la, iniciandouma campanha ideológica, taxando-a de comunis-ta. “Começam, sem tardar – prossegue FranciscoJulião – as intimidações as chamadas à Delegaciade Polícia, à presença do Promotor, do Prefeito,do Juiz, procuram isolar os mais responsáveis comoManoel Gonçalves, João Vergílio, José Braz deOliveira, entre dezenas de outros. O cercoapertava-se, dia após dia” 8.

Depois de iniciar, na qualidade de advogado acausa dos camponeses, Francisco Julião trava“verdadeira batalha judiciária entre os camponesasda “Galiléia” e os proprietários. Durou anos.Esteve no noticiário da imprensa”. (...) Essa batalhaterminou com a vitória dos camponeses, não juntoaos Tribunais, porém na Assembléia Legislativa, aqual votou a desapropriação da “Galiléia”. (...) Foiuma peleja cheia de lances inesquecíveis. Oscamponeses das ligas mais atuantes (“Galiléia”,

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“Limão”, “Espera”, “Cova da Onça”, “Miroeira”)desceram sobre a cidade do Recife. Eram três mil.Concentraram-se desde o amanhecer em torno daAssembléia Legislativa. A batalha durou todo o diae entrou pela noite. Houve passeata até o Paláciodo Governo. O governador desceu as escadariaspara falar aos camponeses”. (...)

Finalmente a lei foi aprovada. Mas, aindasegundo Francisco Julião, “Durou pouco a alegriados galileus, não tardou que o mesmo governo quesancionara a lei incorporasse as terras da Galiléia auma “Companhia de Revenda e Colonização”,criada especialmente para combater as Ligas, aoinvés de entregá-las aos camponeses, dispostos aexplorá-las por meio de uma cooperativa”.

Mas, as contradições no campo não se resolvematravés de simples opções no quadro das variadassoluções que elas oferecem. Como essas contradi-ções são radicais, as medidas mais aproximadas dasua solução também o são. Daí ser ilustrativo oregistro desse episódio narrado por Francisco Juliãoda seguinte forma: “Em novembro do mesmo anode 1955, ano do nascimento das Ligas, um grupode camponeses do município de Goiana (Pernam-buco) repeliu à bala a polícia que os agredira,fazendo várias vítimas. Esse episódio teve comoherói o velho João Tomás. Era o recrudescimentoda reação contra o despertar da massa camponesa.Não se sabe o destino que tomou o velho João

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Tomás, já com dois outros irmãos assassinados porcapangas e políciais nas usinas “Santa Teresa” e“Maravilha”. O desaparecimento do líder JoãoTomás não é registrado como um componente daviolência, mas se dilui imperceptivelmente no texto.

Mas, isto que na realidade empírica se dissolvenum caso individual, sem continuidade naestrutura e na dinâmica, pode ser sociologicamenteexplicável através da uma análise dos objetivosfinais das ligas camponesas.

As lutas dos camponeses brasileiros, ou melhor,a luta pela terra do homem que viva no campo,podem ser divididas historicamente em trêsmódulos básicos a que de qualquer forma conse-guem a articulação e desarticulação da estratifi-cação social e da mudança social provocada. Aprimeira é a luta dos escravos formando quilombos,com uma economia e uma cultura paralelas, edurou até o fim da escravidão. O segundo módulovem dos movimentos posteriores a Palmares e aCabanagem no Pará até os movimentos deCanudos e Contestado. Neles, a massa camponesaprocurava formar comunidades alternativas parasubsistir paralelamente ao modelo de capitalismono campo. Essas tentativas de um modeloalternativo à estrutura latifundiária, organizandoos camponeses nesse tipo de comunidade vai deCanudos e comunidades do beato Lourenço aoContestado e termina na experiência do território

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livre do Formoso, liderado por José Porfírio. Essesprojetos criativos de um novo universo social,procuravam dinamizar internamente as comu-nidades, ordená-las socialmente, estratificá-lasindependentemente dos valores e do ordenamentode estratificação da sociedade maior.

Em última instância, criaram um Poder paraleloao da sociedade maior.

No caso das Ligas Camponesas o fenômeno seprocessa dentro de uma dinâmica bem diferen-ciada. A sua função é unir o direito dos homens docampo a uma força do Estado que obrigue a queesse direito já existente passe a ter função e fossecumprido. Em outras palavras: tem um papelintegrativo, isto é, ao invés de criar um direitoalternativo, contestatório, o que elas querem é serlegitimadas social e juridicamente. Essas duasfunções diferenciadas entre os movimentos deCanudos e Contestado de um lado e das LigasCamponesas, de outro, é que explica os modos decomportamento também diferenciados. É que osmovimentos anteriores às ligas criavam valoresdiferenciados à sociedade abrangente, enquantoas Ligas Camponesas procuravam criar ou fazerfuncionar mecanismos que as integrassem noDireito tradicional da sociedade capitalista.

Em resumo: os movimentos anteriores às ligaseram revolucionários e o das ligas camponesas eramum movimento reformista.

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Isto, porém, não tira o seu mérito e a sua funçãodentro de uma análise sociológica mais correta. Ocerto é que, em função da composição inicial, essasligas desejavam integrar-se social e juridicamenteao sistema burguês capitalista existente. O seupapel era conseguir, ou ver se conseguia, atravésde elementos legais modificar a estrutura agráriadentro da ordem, mas, ao mesmo tempo utilizamum elemento de intimidação social quando diziamque a reforma agrária seria feita “na Lei ou namarra”, como palavra de ordem adjetiva.

É interessante notar, para uma análiseposterior desses acontecimentos sociais epolíticos e como eles se encaminharam nadireção de um dilema que os colocaram em umaposição politicamente ambígua, exatamente estafunção integrativa na ordem a que os diretoresdas Ligas se propuseram.

As Ligas Camponesas, se realizassem os seusobjetivos programáticos conseguiriam estabelecero capitalismo no campo pela via democrática. Mas,a ordem oligárquico-latifundiária não podiapermitir esta mudança e, em aliança com as forçasconservadoras internas e o imperialismo compôs-se para impedir essa mudança social no setoragrário, pois isso representava fragmentar as basese as fontes do poder político oligárquico. Essesfatores conjugados levaram ao golpe militar de1964.

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A experiência das Ligas Camponesas e o seuesmagamento terrorista após o golpe, com a mortede milhares de camponeses no interior do país,especialmente no Nordeste veio demonstrar como otecido social na área camponesa ainda era frágil edesorganizado. De qualquer maneira foi uma tenta-tiva válida e criou na população camponesa umaconsciência crítica que nem as medidas repressivas.muitas vezes genocidas do latifúndio conseguiamapagar. Ficou como uma experiência na consciência,social da população camponesa. Muitos dos seuslíderes foram assassinados ou “desapareceram” semdeixar vestígios dos crimes praticados contra eles.Era como se o setor camponês no Brasil deixasse deexistir como agente social dinâmico. Estabeleceu-sea paz dos cemitérios.

Notas

1 Sobre os Mukers ver especialmente: Amado, Janaina: Conflitosocial no Brasil - a revolta dos “Mucker”, Ed. Símbolo, SP, 1978;Schupp, Pe Ambrósio: Os Muckers - episódio histórico, Livreiroseditores Selbach & Mayer, Porto Alegre, s.d. e Petry. Leopoldo: Oepisódio do Ferrabraz (Os Mucker), Editora Rotermund. S.Leopoldo, 1957. Sobre o movimento do Contestado ver Queiroz.Maria Isaura Pereira de: La I”Guerre sainte” au Brásil: lêmouvement messianique du “Contestado”, Fac. de FilosofiaCiências e Letras, Boletim nº 187, SP, 1957; Monteiro, DuglasTeixeira: Os errantes do novo século, Ed. Liv. Duas cidades, SP,1974; Queiroz, Maurício Vinhas de: Messianismo e conflito social.Ed. Civilização Brasileira, RJ, 1966, Cabral, Oswaldo R.: JoãoMaria - interpretação da Campanha do Contestado, Cia Editora

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Nacional, SP, 1960; Nascimento, Noel: Casa Verde (Guerra doContestado) Ed. Lítero-técnica ltda. Curitiba, s/d., e Derengoski;Paulo Ramos: O desmoronamento do mundo jagunço, FCC-Ed.,Florianópolis, 1986. No nível ficcional, em relação ao movimentodo Contestado, ver o romance de Aracyldo Marques “Demôniosdo Planalto” no qual o autor faz conexão entre esse movimento eo de Canudos através de um personagem no qual, no seu imagi-nário une esses dois fatos através das prédicas do Conselheirolevadas para a região do Contestado. Marques, Aracyldo:Demônios do Planalto, Ed. Cátedra, RJ, 1995.

2 Iokoi, Zilda Márcia Gricoli: Lutas sociais na América Latina, Ed.Mercado Aberto, RS, 1989, pág. 69.

3 Iokoi, Zilda Márcia Gricoli: Op. Cit.4 Monteiro, Duglas Teixeira,: Os errantes do novo século, Ed. Nova

Cidade, SP, 1974, pag. 110.5 Iokoi. Zilda Márcia Grícoli: Op. Cit. pág. 71.6 Op. Cit.7 José Porfírio de Souza, militante do Partido Revolucionário dos

Trabalhadores (PRT). Líder camponês da revolta da região deTrombas de Formoso. Nasceu em 27 de junho de 1912, em PedroAfonso, Estado de Goiás. Casado duas vezes, teve 18 filhos dosdois casamentos. Era pequeno proprietário. Desaparecido desde1973 quando tinha 61 anos, militou no PCB, AP e PRT. Ajudou acriar a Associação dos Trabalhadores Camponeses de Goiânia(1962) e foi um dos organizadores do Congresso dos Camponesesde Belo Horizonte (1963). Foi cassado com o AI - 1, de abril de1964. Deslocou-se para o sul do Maranhão, onde foi preso nafazenda Rivelião Angelical, em 1972, e levado para Brasília. Foisolto no dia 7 de julho de 1973, tendo ido almoçar com suaadvogada Elizabeth Diniz. Esta levou-o até a Rodoviária deBrasília, para embarcar no ônibus que o levaria até Goiânia, játendo inclusive passagem comprada. Depois desse encontro, JoséPorfirio nunca mais foi visto. Era pai de Durvalino de Souza,também desaparecido. Dossiê dos mortos e desaparecidospolíticos a partir de 1964, CEPE - Companhia Editora dePernambuco, Recife, 1995, págs. 327/328.

8 Julião, Francisco: Que são as Ligas Camponesas? Ed. CivilizaçãoBrasileira, RJ, 1962, pág. 23. As demais citações são do mesmolivro.

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Capítulo V

A fênix renascida?– O Movimento dos Sem Terra

Em 1896 há-de rebanhos mil correr da praia parao sertão.

Então o sertão vai virar praia, e a praia vaivirar sertão.

Em 1897, haverá muito pasto e pouco rasto, e umsó pastor, e um só rebanho.

Em 1898 muitos chapéus e poucas cabeças.

Em 1899 ficarão as águas em sangue.

(Manuscrito encontrado nas ruínas deCanudos após a sua derrota final)

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A dinâmica da contradição fundamental e subs-tantiva no campo, porém, continuou sendo deter-minada pelas relações conflitantes entre os campo-neses, os latifundiários e os capitalistas agrários. Éverdade que, durante esses mais de vinte anos deditadura militar houve uma processo de diversi-ficação e modernização tecnológica no campo,como a substituição de produtos de exportaçãocomo por exemplo o do açúcar e outros gênerospela soja, que passou a ser visto como o produtoque poderia salvar a nossa economia de exportação.Paradoxalmente, porém, para o camponês a suasituação piorou nas áreas de saúde pública, educa-ção, assistência social e lazer. Os antigos colonos,camponeses moradores nas fazendas foram substi-tuídos pelos “bóias frias”, trabalhadores alugadossem nenhuma garantia trabalhista, contratados naperiferia gangrenada das grandes cidades, criando-se uma categoria nova de trabalhadores lumpeniza-dos ainda vivendo em condições subumanas.

A divisão do trabalho neste contexto estruturalcontinuou praticamente a mesma, já que oaparelhamento tecnológico modernizante atingiuapenas algumas camadas não significativas dotrabalhador rural. E quando isto aconteceusignificou a diminuição de empregos e frentes detrabalho, em conseqüência da operacionalidade dasmáquinas usadas na obtenção do lucro máximo quetomaram os lugares dos camponeses.

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A ditadura militar estabeleceu uma estratégiade dominação na área rural baseada no terror sociale militar. As organizações camponesas foramdestruídas, seus líderes assassinados ou “desapa-recidos”, como foi o caso de João Porfírio. Comoafirmam Stédile e Sérgio “a repressão foi de talordem que todas as três organizações foramdestroçadas. Acabaram. Persistiram apenas, muitodebilmente alguns sindicatos de trabalhadoresrurais, que mudaram completamente suas ativida-des e passaram a ter um caráter basicamenteassistencialista. Esse caráter assistencialista dossindicatos foi reforçado quando, em 1971, o generalMédici criou o Funrural, para a previdência nomeio rural, e transferiu suas atividades burocráticaspara dentro dos sindicatos. Tanto é que até hoje,muitos sindicatos são confundidos pelos trabalha-dores como escritórios do Funrural”.

O sentido social da reforma sofreu, com isto,uma transformação quer no seu sentido teóricoquer na prática política dos camponeses. Nosentido teórico a produção acadêmica passou a veras modificações que deveriam ocorrer no campocomo uma questão técnica, sem nenhuma vincu-lação com a política, e, na prática camponesa, nadespolitização dos seus problemas e a procura desoluções individualistas, quer migrando para asgrandes cidades, quer procurando as soluçõesinduzidas pela ditadura. Dizem os mesmos autores

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que “foram então (os camponeses) em busca desaídas individuais: num primeiro momentobuscaram a colonização da região amazônica.Também sob influência da propaganda oficial, queprometia terra em abundância às margens dasgrandes rodovias da região: Transamazônica,Cuiabá-Santarém, Cuiabá-Porto Velho. Milharesde famílias chegaram à Amazônia, no início dadécada de 70. Mas os problemas da colonizaçãoespontânea induzida ou oficial, logo apareceram.Falta de estradas, de condições de produção, faltade assistência social, abandono total dos migrantesà sua própria sorte e, entre os muitos problemas,logo destacou-se um: Fazendeiros e empresas dosul, estimulados por incentivos fiscais do governo(a possibilidade de aplicar o dinheiro do impostode renda em fazendas na Amazônia, passaram acomprar títulos de terra na região Amazônica).Acontece que muitas áreas cobiçadas pelasempresas já estavam ocupadas por trabalhadores,por posseiros, e a maioria deles não possuía titulode propriedade da área onde viviam e trabalhavamhá anos” 1.

Essa nova contradição iria reordenar o processode luta de classes: a luta dos posseiros contra osfazendeiros e empresas, muitas delas trans-nacionais. Ainda segundo os autores que estamosacompanhando “multiplicam-se os conflitos, amaioria deles com mortes, queima de plantações

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e das casas dos posseiros. E os posseiros não tinhama quem recorrer. Defendiam-se como podiam, namaioria das vezes de forma muito individualizadaou em pequenos grupos, pois as condiçõesgeográficas da região tinham também dispersadoa população ao longo das estradas e rios.

Destes fatores e outros a ele conjugados –objetivamente a luta de classes no setor agrário, –surgiu o Movimento Sem Terra. Não vamosanalisar aqui os diversos aspectos empíricos eideológicos que participaram da elaboração do seuprograma e das suas metas estratégicas. Pelocontrário. Usando a obra que estamos acompanhan-do, vamos seguir, através da sua própria ótica, comoele se apresenta politicamente perante a sociedadecivil. Antes de historiarem a origem do movimentoeles explicam o que é um “sem terra” para omovimento. Incluíam nessa categoria:

Parceiro: é aquele agricultor que trabalha comsua família, arrenda uma terra de outro e faz umaparceria; ele entra com o trabalho, com ferramen-tas, às vezes com sementes. E o proprietário coma terra, às vezes com sementes, adubo, etc. E nacolheita dividem a produção: quando é metadepara cada um, são conhecidos como meeiros. Àsvezes o parceiro paga 30% do que colhe aoproprietário e assim por diante. Mas o pagamentoé sempre parte do produto colhido. E as divisões econdições são as mais variadas possíveis.

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Arrendatário: é aquele agricultor que trabalhacom sua família e arrenda uma terra por um preçofixo combinado, que pode ser pago em dinheiroou em produto. E independente do volume dacolheita naquela área. Existem também grandesarrendatários que arrendam grandes extensões deterras, para cultivar com máquinas etc. Esses sãoconhecidos como arrendatários-capitalistas e,obviamente, não são considerados “sem terra”.

Posseiro: é aquele agricultor que trabalha comsua família numa determinada área, como se fossesua, mas não possui título de propriedade da terra.Na maioria das vezes a terra é do Estado outambém, sem ele saber, pode ser de um proprie-tário qualquer. A maior parte dessa categoriaencontra-se na região norte do país, nas regiões defronteira agrícola.

Assalariado rural: é aquele agricultor que nãotrabalha por conta, apenas vende seus dias deserviço a um fazendeiro qualquer. Existe umgrande número de arrendatários, parceiros,pequenos proprietários que, para sobreviverem,também se assalariam em algumas épocas do ano.Segundo alguns estudos, uma grande parte dosassalariados, em torno de 60%, deseja possuir terraprópria e luta pela reforma agrária.

Pequeno agricultor: é aquele agricultor quetrabalha com sua família, mas possui uma parcelamuito pequena de terra, por exemplo, menos de 5

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hectares, e com isso não consegue sobreviver esustentar sua família. Por isso, almeja terra e éconsiderado um “sem-terra”.

Filhos de pequenos agricultores: são aquelesagricultores filhos de pequenos proprietários, quesó podem possuir até 50 hectares mas que não têmcondições de se reproduzir como pequenosproprietários e, portanto, passam a ser sem-terra,quando constituem novas famílias.

Somando-se todas essas categorias sociais quecompõem os sem-terra, segundo dados oficiais doIBGE, totalizam 4,8 milhões de famílias detrabalhadores rurais, que são os sem-terra” 2.

Dentro dessa concepção teórica da estratificaçãosocial no campo, os sem-terra iniciaram a sua mobili-zação, fazendo com que, à medida que os conflitosdiferenciados entre os possuidores de terra e os sem-terra se aguçassem a ação dinâmica se apresentassepara organizá-los. Daí eles próprios não terem umadata precisa para dizer quando começou. A própriadialética da realidade no campo foi o motor quedeterminou a sua dinâmica. Diz, por isto, os autorescitados que “a história do movimento Sem Terra nãopossui uma data específica de início. Por ser ummovimento social, que reúne milhares de traba-lhadores rurais, seu surgimento teve várias origens,em vários locais, e sua história é composta pela somade vários acontecimentos que se desenvolveramespecialmente a partir de 1978 3.

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“A partir desta data, aconteceram em váriosestados muitas lutas de agricultores sem-terra, quese reuniam, discutiam seus problemas e se organi-zaram para, de forma coletiva, conquistarem umaárea de terra. Assim, multiplicaram-se inúmerasocupações de terra, em diferentes regiões. Paraexemplificar os fatos mais conhecidos: no RioGrande do Sul, as primeiras ocupações aconte-ceram quando cem famílias ocuparam a FazendaMacali, em Ronda Alta e, em seguida, mais 240famílias ocuparam a Fazenda Brilhante. A maioriadessas famílias era oriunda de um outro conflito deterras: os índios Kaigang haviam expulsado, de suareserva de Nonoai, cerca de 1.400 famílias queviviam como posseiros. Parte deles foi para MatoGrosso, parte foi para as cidades e parte resolveuentão a lutar por terras no Rio Grande do Sul.

Em Santa Catarina a primeira ocupaçãoaconteceu no município de Campo Erê, naFazenda Burro Branco. No Estado de São Paulo,havia um conflito na Fazenda Primavera, nomunicípio de Andradina, que foi então ocupadapor mais de trezentas famílias. No Mato Grossodo Sul também proliferaram conflitos, em que osfazendeiros tentavam despejar centenas defamílias que viviam como parceiros nas fazendas eestes mesmos passaram a ocupar as terras.

No Paraná, a retomada da luta pela terra sedeveu à construção da Barragem de Itaipu, que

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inundou as terras de mais de mil famílias na regiãofronteiriça com o Paraguai. A única proposta paraa Itaipu era a indenização em dinheiro. Muitosaceitavam. Mas um grande número de famíliasiniciou então um movimento: “Terra e Justiça”,em que reivindicavam o pagamento da indenizaçãoem terras, no estado do Paraná, e melhores preçospor suas benfeitorias e áreas inundadas. Em outrosestados como na Bahia, Rio de Janeiro, Goiás,também aconteceram ocupações de terras por partede famílias que se organizaram para isso, juntandocentenas de pessoas” 4.

Essas ocupações passaram a ser a forma típicade efetivação da posse da terra. Não apenas ocamponês, mas a sua família: mulher, filhos,parentes. Formavam um grupo social o qual porvínculos de parentesco se consideravam proprie-tários. Dai até a sua articulação em um movimentoorganizado, de âmbito nacional foi razoavelmentefácil.

Em 1984 realiza-se em Cascavel (estado doParaná) o 1º Encontro Nacional dos Sem Terra.Depois disto o MST articulou-se em praticamentetodos os estados do Brasil, sendo, atualmente(1997) a mais representativa e organizada correntesocial e política na dinâmica da sociedadebrasileira. É um movimento que transcendeu emmuito os objetivos da reforma agrária, para seapresentar perante a sociedade civil como a

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corrente que tem uma proposta de modernizaçãoda nação brasileira objetivando integrar o campo ea cidade em um só organismo social articuladomutuamente, fazendo desaparecer ou pelo menosatenuar as profundas distorções que a altaconcentração de rendas – no campo e nas cidades– cria para a sociedade brasileira.

A marcha sobre Brasília, abril de 1997, veiodemonstrar como esse movimento rural conseguiuapresentar-se diante da sociedade global comoaquele em cujos objetivos o povo mais se identifica.Pela primeira vez um movimento político vai àCapital Federal e impõe o seu ritmo de conver-sação com o governo em pé de igualdade. E mais:incorpora ao discurso político em circulação umprojeto global para resolver os problemas sociaismais agudos acima dos discursos dos demaispartidos. (ver Carta de Brasília, anexo1).

O MST incorpora, hoje em dia, o que é de maisconfiável, novo, na política. Isto por quê? É ummovimento que traz como patrimônio o sacrifíciode vários dos seus membros, mas assimilando, poroutro lado a parte heróica do sacrifício, nunca seapresentando como um movimento derrotado.Pelo contrário. Ele aproveita-se politicamentedesse enfrentamento com as forças latifundiáriaspara mostrar a toda a sociedade a necessidade dese mudar a estrutura fundiária brasileira. Os mortosde Eldorado dos Carajás e de outras regiões são

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cobrados politicamente e apresentados comosímbolos emblemáticos do arcaísmo social doBrasil. Cada vez que se assiste na televisão umaagressão que termina em morte da populaçãocamponesa, todos nós paramos para uma reflexãodo que representa o movimento sem-terra. Ascondições de vida, a pobreza em que se encontram,a perversidade política dos donos das terras, tudoisto é visto e comparado. Daí o problema dareforma agrária está hoje em dia posto em discussãonacional, com o respaldo da opinião pública,segundo mostram as pesquisas em todo o territórionacional.

A ocupação das terras foi aprovada pelasociedade civil como instrumento de reivindicaçãopor 85% dos entrevistados em pesquisa feita noano de 1997 e 74% consideravam a política deocupações como importante para chamar a atenção;94% disseram que o MST deve lutar pela reformaagrária; 77% consideram o MST como ummovimento legítimo e 88% pensam que o governodeve confiscar as terras improdutivas e distribuí-las. É a situação do que o Brasil tem de atraso,colonial, pré-capitalista, semi-escravista que estavaoculto, escondido, escamoteado, negado que vemà tona e surpreende, revolta e apavora o homemcomum no Brasil, os intelectuais e artistas e ospolíticos dos partidos democráticos, progressistase revolucionários.

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Por tudo isto, o MST incorpora o que há de novona política. E há um outro detalhe importante: elereabilita o radicalismo político que foi abandonadopelo oportunismo de todos os partidos que vivemdo jogo (sujo) eleitoral e, em face desse mecanismoregulador oportunista abandonam o radicalismorevolucionário por um falso discurso apaziguador,anódino, sem perspectivas de polemizar osproblemas mais agudos e as contradições maisabrangentes que o capitalismo neoliberal produzna sua perversidade irreversível se não forenfrentado radicalmente pelas forças socialistas,democráticas e excluídas.

O MST, por outro lado, ao que sentimos nasua dinâmica política, está isento do oportunismosindicalista. O movimento sindical transformou-se, em grande parte, em uma ponte para elegerlíderes sindicais ao Parlamento, onde eles semfunção específica de classe se perdem no mesmooportunismo do Congresso Nacional, eletambém transformado em um lobby institu-cionalizado das transnacionais e do que há demais socialmente retrógrado e atrasado no país.Não é mais representativo da sociedade civil. Portudo isto, o MST, conforme afirmei ante-riormente, representa o discurso e a atividadeprática do que há de novo na nossa vida política.Até quando e até que nível ele conseguiráconservar e dinamizar esta posição de inde-

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pendência é assunto para se discutir à medidaque ele evoluir.

Isto, no entanto é difícil de prever. Irá dependerda evolução interna do próprio movimento.

Se o movimento sem terra assimilar e passar aagir de acordo com os interesses de liderançasoportunistas e reformistas dessas entidades, em umperíodo de tempo relativamente próximo será ummovimento olhado pela opinião popular com asmesmas reservas das entidades e partidos tradi-cionais. Haverá uma visão crítica da sociedade nãocontra o latifúndio e os latifundiários mas emrelação ao MST. E esta inversão de análise, paranós, irá também influir no julgamento que asociedade brasileira tem dos seus líderes. Osestereótipos usados contra os líderes sindicais,deputados, sindicalistas, políticos dos partidostradicionais serão transferidos para os lideres doMST e da grande massa, que milita no mesmo.

A trajetória independente do MST certamentenão será fácil. Mas poderá ser, de qualquer maneira,aquela força que poderá ser o eixo político capazde unir e dinamizar os trabalhadores das cidades edo campo para iniciar uma nova etapa da sociedadebrasileira em direção ao socialismo. Veremos.

O discurso atual do MSTSegundo Stedile e Frei Sérgio, os objetivos do

MST são claramente definidos. Para eles “o

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objetivo de lutar por terra busca atender a umanecessidade econômica de sobrevivência de cadafamília sem terra. O “sem terra” aspira à terra comouma oportunidade de trabalho. Como uma garantiade sobrevivência para ele e para os seus filhos”.(...) Nesse sentido, almeja a terra como forma desobrevivência econômica, tem um caráter de lutacorporativa, sindical. A exemplo de quando osoperários industriais lutam por melhores salários,lutam apenas por melhorar suas condições desobrevivência” 5.

Mas, os autores, ao exporem a estratégia políticano seu conjunto extrapolam do nível sindicalista eafirmam que “o segundo objetivo que é a reformaagrária é um objetivo amplo. Se entende porreforma agrária um conjunto de medidas a seremtomadas pelo governo para alterar a estruturalatifundiária do país, e garantir terra a todos osagricultores que quiserem trabalhar. Além disso,medidas complementares de política agrícola,como crédito, preços, assistência técnica, segurorural etc., necessárias para garantir a viabilidade ea rentabilidade da pequena produção. Logo, lutarpela reforma agrária é lutar por mudanças naagricultura brasileira que vão atingir todos ostrabalhadores rurais, e não apenas aqueles queestão lutando agora, imediatamente, para resolve-rem seus problemas de sobrevivência. E então umobjetivo de maior amplitude, de cunho social, que

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interessa não somente aos “sem terra”, mas a todosos trabalhadores rurais, e também aos trabalhadoresurbanos”.

Finalmente, apresentam os objetivos estraté-gicos finais, o que implica na sua definição em faceda sociedade civil e às demais organizaçõespolíticas quando dizem: “O terceiro objetivo doMovimento Sem Terra é lutar por uma sociedademais justa. Uma sociedade sem exploradores eexplorados, como diz sua carta de princípios. Comose vê, esse objetivo tem um claro caráter político,pois está relacionado com a organização dasociedade e com o poder político entre suasaspirações de classe. A argumentação é simples, Aimplantação de uma reforma agrária ampla, querealmente faça mudanças na estrutura da proprie-dade da terra e na forma como está organizada aprodução na agricultura, somente acontecerá commudanças no atual poder político, com importantesmudanças sociais. Uma reforma agrária dependeessencialmente de vontade e da força política porparte do governo. E seguramente somente serárealizada por um governo claramente identificadocom os interesses das camadas populares, especial-mente os trabalhadores rurais e urbanos. Destaforma, lutar por reforma agrária no Brasil é tambémlutar por mudanças sociais e políticas no país”.

Pelo exposto, três são os níveis de luta do MST,sendo que o último implica numa mudança do

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tipo de Poder na sociedade brasileira. O isola-mento, as limitações dos movimentos camponesesaté então apresentados como obstáculos queimpediam a elaboração de um projeto nacionalvindo dos camponeses parece que foi transpostona proposta do MST.

Isto tem um significado teórico substancial.Pela primeira vez vemos o discurso camponêstranscender aos seus interesses limitados de classee faz uma proposta para toda a sociedadeoprimida, apresentando soluções para as contra-dições, não apenas às existentes no campo masde toda a sociedade civil.

Esta proposta vem mais bem elaborada emdocumento posterior redigido por João PedroStedile e tem o seguinte texto:

“O governo acaba de baixar uma medidaprovisória com grande estardalhaço na imprensa,anunciando novos critérios para o impostoterritorial. A iniciativa é muito boa. O MSTcumprimenta. Mas estamos desconfiados que ogoverno está muito mais interessado em fazerpropaganda do que de fato cobrar os latifundiários.Os novos critérios que aumentam a taxação dasterras improdutivas é positivo. Mas o fato depermitir que o proprietário declare ele mesmojulgue quanto vale a sua terra, é uma armadilha.É evidente que o proprietário vai colocar o valorlá embaixo. E mesmo que a alíquota for alta, o

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pagamento será pequeno. O governo argumentaque para efeito de desapropriação vai vigorar essevalor. Mas as desapropriações jamais atingirão atodos os 160 milhões de hectares que estãoimprodutivos. Por outro lado, se o proprietárioquer vender sua terra para o Incra, ele vai fazerjustamente ao contrário, vai colocar o preço daterra lá em cima, e aí quando for desapropriadoserá um verdadeiro prêmio. Como aliás já vemacontecendo em diversas regiões. O Governoanuncia que entrarão muitos recursos para areforma agrária, fala em 400 milhões em 97 e até1.6 bilhões em 1998. No entanto, no orçamentoda União de 1997, o ministro Kandir, colocou umareceita de apenas 203 milhões de ITR. Por outrolado, os recursos de 97 do novo ITR serãocobrados apenas a partir de agosto de 97, ou seja,na verdade o Incra não disporá logo dos novosrecursos”.

Depois de discutir temas conjunturais Stédilepassa a analisar a posição do governo de FernandoHenrique Cardoso contrapondo a essa política oprojeto do MST. Afirma no seu discurso políticoque “nós do MST temos duas divergênciasbásicas com a política do governo FHC, uma vê areforma agrária apenas como uma medida depolítica social para resolver conflitos sociais queenvolve os excluídos com empregos na cidade oucom cestas básicas, então o governo se dispõe a

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assentar 280 mil famílias em 4 anos. Mas, só isso!Alerta. Caso o MST conseguir organizar maisexcluídos já seria uma provocação. Nós de-fendemos que na nossa sociedade existe ainda umgrave problema agrário, que afeta a toda apopulação, especialmente a população que já estána cidade. Porque para resolver os problemas dodesemprego, da fome, do êxodo rural, damarginalidade, é necessário realizar uma reformaagrária ampla, abrangente e que atinja milhõesde pessoas.

O governo não aceita essa avaliação porque noseu projeto neoliberal não tem lugar para aagricultura, para um problema de desenvol-vimento da produção voltada para as necessidadesda população pobre. O plano do governo émodernizar de acordo com os interesses do capitalestrangeiro e do capital financeiro. A economiavai crescer. Mas apenas para esses setores, e nãoem beneficio da maioria da população.

A segunda, divergência básica é em relação asmedidas concretas que o governo está tomandopara resolver os conflitos de terras. Nós achamosque o governo apenas faz propaganda do querfazer. Mas não faz. Às vezes por incompetência,às vezes por falta de prioridade política. Apenascomo exemplo gostaria de relatar os compromissosque acordamos na audiência com o presidente darepública em dois de maio passado, ou seja, há

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seis meses. O presidente garantiu que iria darprioridade aos assentamentos das famílias acam-padas. Eram 37 mil na época. O Incra nãopriorizou e hoje são 52 mil famílias espalhadasem 168 acampamentos pelo país. O presidentegarantiu que não faltariam recursos para a reformaagrária. O dinheiro do orçamento do Incrasomente começou a ser liberado em setembro. Edos 243 milhões de reais para crédito da populaçãonos assentamentos somente saíram 10 milhões,embora haja decreto presidencial. O presidentese comprometeu a mobilizar sua bancada paraaprovar três leis fundamentais que agilizariam eresolveriam os conflitos de terra. Os três estãoparados no Senado. O presidente se comprometeua punir os responsáveis pelos massacres deCorumbiara e Carajás. Os processos estão paradose nenhum punido.

Como se pode ver o MST e os milhões de sem-terra acampados ou não têm motivos de sobra paraserem devotos de S. Tomé, e só acreditarem nogoverno depois de verem” 6.

É este discurso político do MST que diferede todos os ouvidos na nossa história socialdurante os levantes e protestos camponeses. Emprimeiro lugar a mensagem política não vemmediada por nenhum símbolo ou forma defini-dora, mas, ao mesmo tempo, escamoteadora. Elase afirma como uma proposta da transformação

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da realidade social brasileira num caminho dedesobediência civil, ou seja aproxima-se dasposições revolucionárias.

Ao mesmo tempo procura articular um projetonacional na base de unidade estrutural e dinâmicaentre o rural e o urbano, o sem-terra e o sem-teto,o desempregado das favelas e o camponês sem-terra, entre o operário industrial e o assalariadoagrícola.

Isto faz com que se procure articular politica-mente o movimento através de um discursoabrangente, no qual todas e cada uma dascategorias de trabalhadores se encontremincluídas. Evidentemente que este discurso aindanão se apresenta como um projeto de um novomodelo de reorganização da sociedade brasileira,mas já configura um pensamento político nessadireção.

O perigo do MST se descaracterizar ao entrarem alianças é justamente o oportunismo eleitoral.Na medida em que esses partidos que procuramalianças abandonam as posições radicais e caem emposições moderadas e/ou oportunistas vão procuran-do se apoiar naqueles movimentos que para asociedade civil representam os anseios de mudançapolítica. Se esses movimentos deixarem-se envolvere serem conduzidos pelas frações oportunistasdesses partidos eles também se deformam e apósalgum tempo o processo corruptor interno e externo

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atinge-os e eles se transformam em mais umafrustração política do povo.

O exemplo do PT é ilustrativo. Quando elesurgiu passou a representar o novo na vida políticabrasileira. Acusado de fechado, sectário, até desubversivo, foi exatamente por aí que ele adquiriupersonalidade e ficou excluído do julgamentonegativo que a sociedade civil faz dos demaispartidos políticos. Hoje já se diz que são farinhado mesmo saco. O PT é julgado pela opiniãopública no mesmo nível dos demais partidosburgueses. Ele não é mais acusado por xiita,sectário ou subversivo, mas por também ser mauadministrador, corrupto e oportunista. A mudançanos valores através dos quais a sociedade civil julgao PT se inverteram. E a tendência tende a seagravar à medida que as alianças eleitorais foremdescaracterizando cada vez mais o seu perfil departido dos trabalhadores.

Se as lideranças do MST não se deslumbraremcom a miragem parlamentar e continuarem nassuas posições de independência e dinamismo sociale organizacional, poderão ser uma força que aliadaàs correntes revolucionárias do Brasil tentarão (epossivelmente conseguirão) dar uma viradahistórica na estrutura da sociedade brasileira.

Cem anos depois da destruição de Canudos, ostrabalhadores brasileiros dos campos e das cidadesenfrentam ainda o problema mais relevante para

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se conseguir a modernização (e falamos emmodernização social e não tecnológica) das relaçõesquase coloniais da estrutura da sociedade brasileira:a reforma agrária.

Notas

1 Op. Cit. págs. 22-23.2 Stedile, João Pedro e Frei Sérgio: A luta pela terra no Brasil, Ed.

Scritta, SP, 1993, págs. 1-22.3 Stedile, João Pedro e Frei Sérgio. Op. Cit. pág. 23.4 Op. Cit. pág. 30.5 Op. Cit.6 Stedile, João Pedro: O ITR e a verdadeira reforma agrária, in

Princípios, nº. 45, maio/junho/julho 1997, São Paulo.

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Anexo I

Conferência Nacional em Defesa da Terra, do Trabalho e da Cidadania

As entidades reunidas na Conferência Nacionalem Defesa da Terra, do Trabalho e da Cidadanianos dias 2, 3 e 4 de abril de 1997, em Brasília, anali-sando a situação de crise social por que passa o Bra-sil, decidem tornar pública a sua avaliação e convo-cam o conjunto da sociedade brasileira a unificar asua força e riquíssima capacidade de inovação soci-al e mobilização. Nosso objetivo é a promoção denovos direitos e a defesa dos direitos sociais e polí-ticos conquistados nas últimas décadas, hoje em

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processo de desmonte pelo autoritarismo inerenteao projeto neoliberal do Poder Executivo.

Mesmo com a resistência oferecida pelas orga-nizações dos trabalhadores, aumentam preocupan-temente o desemprego, o arrocho salarial e a desre-gulamentação das relações de trabalho. Excluídosdo mercado formal de trabalho e sem qualquer po-lítica de geração de emprego, contigentes crescen-tes são forçados a engrossar o mercado informal, semgarantias de remuneração, aposentadoria e outrosdireitos sociais. Em conseqüência dessa política quepromove a exclusão, cresce a miséria no campo ena cidade, agravada pela criminalidade e violênciaque se abatem sobre o povo brasileiro. A cada dia,há, inclusive, nas grandes cidades, um número maiorde homens, mulheres e crianças vivendo nas ruas.

Outra face desta política de destituição dos direi-tos sociais é o desmonte do Estado no atendimentode políticas universais nas áreas de saúde, educação,previdência, habitação, assistência social e outras. Asociedade brasileira vê envergonhada o ressurgi-mento de doenças endêmicas, a gravidade das altastaxas de mortalidade infantil, o abandono de nossosidosos e os milhões de analfabetos relegados à condi-ção de marginalidade.

Enquanto o governo federal propagandeia a exis-tência de um Programa Nacional de Direitos Hu-manos, a mídia anuncia o crescimento da violênciapolícial. A prostituição e o turismo sexual, o exter-

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mínio de crianças e adolescentes e a exploração dotrabalho escravo e infantil continuam sendo moti-vo de denúncias tanto no Brasil como no Exterior.

A juventude, mesmo com a luta de suas entida-des estudantis e juvenis, se vê cada vez mais priva-da do emprego e da educação, sofrendo a ameaçade ter a universidade e o ensino técnico públicosprivatizados. Sem perspectiva futura, ela vê-se as-sediada pelo narcotráfico e pelos valores assimila-dos da violência crescente em nossa sociedade.

Aprofunda-se o processo de feminização da po-breza, ainda mais acentuado entre as mulheres ne-gras. Configura-se um quadro de maiores desigual-dades para as mulheres nas suas condições de vida,acesso ao trabalho e ao ensino. A maternidade nãoé tratada como questão social e inexistem creches eescolas em período integral. As mulheres continu-am sendo vítimas de violência na sociedade e nafamília. A população negra é duramente atingidapelo processo de apartação em curso, responsávelpela ampliação do racismo, da exclusão e margina-lização desse segmento populacional. Nesse caldode cultura, ganham força o fundamentalismo reli-gioso, a xenofobia e o racismo.

Seguindo a política de exclusão e massacre pro-movida pelos governos anteriores (Carandiru, Vi-gário Geral), em dois anos de governo FHC a soci-edade testemunhou os massacres de trabalhadoresrurais sem-terra, em Corumbiara (RO) e Eldorado

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do Carajás (PA), até hoje impunes, como os ante-riores, e agora a ignominiosa violência polícial pra-ticada pela Polícia Militar de S. Paulo na cidadede Diadema.

Abandonados pelo governo em acampamentosà beira de estradas, os sem-terra reafirmam a vita-lidade de seu movimento na marcha de milharesde quilômetros a Brasília para cobrar medidas efe-tivas de reforma agrária. Agricultores familiaresvivem em permanentes dificuldades e muitos per-dem suas terras por causa da falta de crédito e fi-nanciamento. Diante desta realidade trabalhadorese trabalhadoras rurais se mobilizam em defesa daterra, agricultura familiar, emprego, salário eseguridade social para o campo nas ações do Gritoda Terra Brasil.

Os povos indígenas, vítimas seculares da opres-são e da exploração, encontram-se numa intolerá-vel situação de abandono e de um continuado pro-cesso de espoliação de suas terras. A políticaindigenista do governo agride direitos históricospovos indígenas e favorece a lógica dos predado-res dos recursos naturais. As comunidades negrasrurais estão se organizando e lutando para fazervaler o direito constitucional dos Remanescentesde Quilombos à propriedade de suas terras.

Aumentam as desigualdades regionais aprofun-dando as injustiças sociais nas regiões Norte eNordeste. Da mesma forma, o governo ignora as

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pressões sociais em defesa do meio ambiente, com-prometendo a qualidade de vida da atual e dasfuturas gerações. São nessa perspectiva a Lei dePatentes, a Lei de Cutivares, a retomada das Usi-nas Angra 2 e 3, a falta de políticas públicas coe-rentes para a Amazônia, o esvaziamento doConama e o não cumprimento dos acordos assu-midos na ECO-92.

O governo impõe maiores sacrifícios ao povopara garantir a estabilidade da moeda e o plano deintegração subordinada do Brasil ao mercado glo-bal. As precárias bases da estabilização monetária,o aumento das dívidas interna e externa, e a buscado equilíbrio fiscal em detrimento exclusivo dosdireitos sociais são algumas das questões subtraí-das à participação democrática da sociedade peloautoritarismo da gestão econômica.

A prioridade deste governo é voltada apenas aosbanqueiros, latifundiários, grandes empresários einvestidores internacionais. O Proer, que já gas-tou mais de R$ 20 bilhões em socorro do sistemafinanceiro, o não pagamento da dívida dos gran-des latifundiários e usineiros junto ao Banco doBrasil e a abertura indiscriminada do mercado bra-sileiro às empresas transnacionais são exemplos dosinteresses defendidos pelas políticas de Governo.

O sucateamento do sistema nacional de ciên-cia e tecnologia, a privatização das telecomunica-ções, do setor energética e sua decisão de privatizar

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a Companhia Vale do Rio Doce e a Petrobras sãoatentados à soberania nacional, privando o País deinstrumento de política econômica essenciais aodesenvolvimento sustentável.

Para atender aos interesses das elites, FernandoHenrique Cardoso governa por Medidas Provisórias,fere a autonomia dos Poderes Legislativo e Judiciá-rio e submete o Parlamento a uma barganha cliente-lista e fisiológica, com a conivência de ampla maioriado Congresso Nacional. Essas práticas se inscrevemnas piores tradições da história política do Brasil,demonstradas, entre outros atos, pela aprovação daemenda casuísta e golpista da reeleição. Sua vontadeimperial se afirma na imposição de uma políticaantisocial que fere os direitos e os interesses do povobrasileiro, propondo inclusive uma reforma políticarestritiva e antidemocrática. No plano das relaçõesinternacionais, FHC se submete aos programas deajuste estrutural impostos pelo Fundo Monetário In-ternacional e interesses do capital especulativo e fi-nanceiro.

Os movimentos sociais, entidades da socieda-de civil, sindicais, estudantis, personalidades queapresentam suas criticas ou reivindicações, são re-cebidos não apenas com a insensibilidade caracte-rística do governo FHC, como são obrigados a en-frentar pesados ataques que visam destruir asorganizações sociais, especialmente as dos traba-lhadores e do movimento popular.

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As lutas democráticas pelas eleições diretas,pela inscrição de novos direitos na Constituiçãode 88, pelo impeachment de Fernando Collor, pelaÉtica na Política, são expressão dá vontade e damobilização do nosso povo por um Brasil mais jus-to e pela dignidade cidadã.

Diante desta situação, deliberamos pela con-vocação à mobilização da sociedade brasileira epara isso propomos a construção de uma políticaunitária de nossas organizações em defesa da Ter-ra, do Trabalho e da Cidadania.

É por meio de uma ampla mobilização socialque conseguiremos resistir à ofensiva neoliberaldo governo FHC. Essa resistência se articula naluta concreta por políticas públicas que atendamàs demandas do povo brasileiro. Nossas energiasse dirigem neste momento às mobilizações porReforma Agrária Já, Reforma Urbana, Redução daJornada de Trabalho Sem Redução Salário, Con-tra a Privatização da Vale, Defesa do Sistema Úni-co de Saúde, Por uma Política de Habitação Po-pular, Defesa da Educação Pública e Gratuita, pelaimplementação da Lei Orgânica da AssistênciaSocial, Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida.

Desde já, as campanhas nacionais na defesa dedireitos se contrapõem à agenda neoliberal postasna ordem dia pelo Governo e, sabemos, requeremum amplo apoio e sustentação do conjunto da nossasociedade.

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As entidades e partidos integrantes da Confe-rência assumem o compromisso de fortalecer eimpulsionar as lutas dos trabalhadores, somandoas iniciativas em torno a uma agenda de mobili-zações sociais.

Assumimos também o compromisso da reali-zação de um Encontro Nacional Democrático ePopular, com a participação de entidades popula-res de base, no segundo semestre deste ano, bemcomo a permanência desta articulação entre as en-tidades do movimento democrático e popular quefortaleça a luta contra o neoliberalismo. O Encon-tro será precedido de Conferências Regionais quereproduzam o debate dos temas apontados nestaCarta e organizem as Campanhas Nacionais.

O movimento popular e democrático tem di-ante de si o desafio de retomar os ideais libertáriose de justiça social, resgatar a esperança e reforçar asolidariedade.

Brasília, 4 de abril de 1997CUT – ABONG – CMP – CONTAG – MST –

CNBB – UNE – UBES – CONAM – COBAP –UJS – UBM – MAB – LAC – FASE – IBASE –CONE – CEPEL – Instituto Cidadania – Pasto-rais Sociais – Ação da Cidadania (SP/MS) – RedeUnitrabalho – Instituto Ecoar – Fórum NacionalPela Reforma Urbana – Fórum de ONGs PeloMeio Ambiente – PT – PCdoB – PSTU.

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Anexo II

Gráficos e Estatísticas

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409,5

114,6

6,9 0,180

50

100

150

200

250

300

350

400

450

LatifúndiosPrivados

Terras Públicas Estrangeiros Igreja Católica

Quadro 1Comparação entre os maiores latifúndios do Brasil

(em milhões de ha)

Fonte: “O debate da Proposta do I PNRA da Nova República”, José Gomes da Silva, Incra, 1995,Brasília. Publicado em “Alguns pontos de discussão sobre a questão da Reforma Agrária: o casodo Brasil”.

Quadro 2Assassinatos (1985-90) conflitos de terra no Brasil

1985 1986 1987 1988 1989 1990

125

105

109

93

56

75

Norte 30

Nordeste 26Sudeste 9Sul 2Centro Oeste 8

Fonte: Revista Princípios, nº 22

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4.14

0.76

72.

918.

892

2.19

4.87

41.

682.

227

1.07

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Fonte: cáculos, tabulação e idealização do engenheiro agrônomo Carlos Lorena a partir dedados do Incra. Publicado em “Alguns pontos de discussão sobre a questão da ReformaAgrária: o caso do Brasil”.

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Page 158: Sociologia Politica Da Guerra Camponesa de Canudos

Quadro 3

Conflitos de Terra por Regiões em 1991

Conflitos Assassinatos Ameaça Tent. dede terra de Morte assassinato

Norte 104 171 102 42Nordeste 157 23 129 26Centro-Oeste 38 1 4 3Sudeste 24 2 9 6Sul 60 6 9 19

Fonte: CPT Nacional

Page 159: Sociologia Politica Da Guerra Camponesa de Canudos

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Page 160: Sociologia Politica Da Guerra Camponesa de Canudos

Quadro 5

Observação: Durante 1992, houve mandato judicial de prisão preventiva, que não conseguiramse efetuar, contra 28 trabalhadores rurais: SC, 3; MS, 18; SP, 7.Fonte: MST, CPT e Departamento rural da CUT

Estados AnoTrabalhadores Liderançasassassinados do MST presas

90 91 92 90 91 92Acre 02 - 01 - - -Alagoas 01 - 01 - - -Amazonas 01 01 - - - -Bahia 11 08 01 03 02 06Ceará 01 - - 02 - -Espírito Santo 01 - 01 05 10 05Goiás 01 01 - - - 02Maranhão 08 06 07 08 02 07Minas Gerais 03 02 03 15 - -Mato Grosso 09 01 01 - - -Mato Grosso do Sul - 02 02 - 12 62Pará 20 16 09 - 07 -Paraíba 01 01 04 - - -Paraná 02 04 03 01 04 -Pernambuco 02 01 01 04 - -Piauí 01 01 01 04 - -Rio de Janeiro 06 - - - - -Rio Grande do Norte 01 02 - 05 - 05Rio Grande do Sul - 01 01 04 11 -Rondônia 02 01 01 - - 04Santa Catarina - 01 - 07 11 07São Paulo 01 - - - - 09Sergipe - - 01 - - -Tocantins 02 01 01 - - -Totais 76 50 39 58 59 107

Assassinatos e prisões de trabalhadoresrurais no Brasil (1990 a 1992)