Sonho de 12 para 23 de dezembro de 2009, mais ou menos das 4 às 6:50 horas.
Estava e Cruzeiro, voltando para Caraguá. Detalhe: de bicicleta. Estava cansado e queria encurtar o
caminho, guardando a magrela em algum lugar e voltando de carro ou ônibus.
Encontrei o Daniel, meu primo. Ele caminhava por uma rua estreita, em direção a um lugar que me
pareceu ser sua casa. Aparentava certa idade, cabelos meio brancos. O tempo disso, seria o
presente? Um pouco mais projetado num passado não tão distante? Não sei, não houve qualquer
dica neste sentido que confirmasse. Andando pelas suas costas, sem que ele visse meu rosto,
perguntei-lhe, sem me identificar como primo, como estava sua esposa, Regina. Detalhe: não sei se
ele tem alguma esposa nem sei seu nome. Ele respondeu que estava tudo bem. Ele também
aparentava muita paz e tranqüilidade.
De repente, vi-me num lugarejo. Estava chovendo fino. Muitas pessoas transitando de um lado e de
outro. Pessoas carentes, pobres, mulheres, crianças. Eu tinha perto de 600 reais no bolso, em notas
de 50. Distribuí a elas, 50 para cada. Ficaram contentes. Saíram em busca de algo que me pareceu
comida. Fiquei com alguns trocados, menos de 50, mas não me importei. As pessoas pareciam
felizes. A chuva aumentava e as pessoas demonstravam muita preocupação, sempre olhando para o
alto, como que consultando as condições do tempo. Não consegui identificar esse lugar, mas
pareceu-me perto de Caraguá, lá pelos lados da zona norte. Tinha um morro enorme à frente, que
não consegui identificar. Casas humildes, mal construídas, umas contíguas às outras, improvisadas,
muito mato separando as casas, algumas árvores grandes, pequenas trilhas unido umas às outras,
crianças circulando de um lado para outro, com roupas pesadas, mas não demonstravam frio –
apenas um proteção contra a chuva, pela menos foi essa a impressão, mas roupas velhas, surradas,
sujas. As pessoas, na verdade, demonstravam uma grande preocupação com algo que não pude
saber o que era. Algo as incomodava, e muito, mas não falavam; mostravam-se agradecidas.
No meio daquela situação estranha, apareceu minha mãe. Sabia que era ela, embora não distinguisse
seu rosto. Estava em pleno vigor físico, não acredito que seria a mesma idade de quando nos deixou;
um pouco antes, talvez. Ela me disse que em Caraguá estava chovendo muito. Dava as informações
“aos poucos”, falava de alguns desabrigados, de algumas pessoas desaparecidas, acredito que para
não assustar. Convidou-se a ver o morro do Santo Antonio. Naquele momento, deparei-me estando
já em outro lugar, agora em Caraguá, num local qualquer do Sumaré, longe acho que uns 500 metros
do morro da cidade. Possivelmente estava entre as avenidas Castelo Branco e Siqueira Campos,
perto da Rua Caçapava ou São José dos Campos. Era ali. Pude ver que uma grande parte do morro do
Santo Antonio havia caído, desmoronado, descido. Chovia, mas já não tão forte; o grosso havia
acontecido antes. Vi que o sopé do morro só havia um amontoado de terra. Um grande volume de
terra. E as pessoas que moravam ali, no sopé do morro? Todas soterradas, mortas, foi a resposta.
Conclui que a situação era muito grave e que minha mãe dava as informações de modo a não
assustar de imediato, aumentando a gravidade da situação aos poucos. Olhei com bastante cuidado
para o pé do morro, onde havia casas: nada, absolutamente nada; parecia que uma bomba havia
caído ali e revolvido tudo. Era o caos: terra e mais terra, só terra, árvores retorcidas, disformes, semi-
enterradas, lama. As pessoas, as casas, nem sinais delas. Era o fim para elas. Perguntei de nossa casa.
Respondeu que estava tudo bem. Dirigi-me até o local de nossa casa, ela estava de pé, mas só as
paredes: o telhado havia ruído. Ninguém se machucou ou morreu naquelas imediações, disse-me
minha mãe. Foi um grande susto, mas ninguém havia sido pego de surpresa por ali. As pessoas
estavam abrigadas em algum lugar, mas não vi ninguém por ali. A situação era mesmo
desesperadora. Não consegui identificar direito aquele local apontado como “nossa casa” como um
local conhecido. Havia árvores por perto, algumas outras construções, um local que aparentava ser
muito úmido, com parte do solo encharcado, alagado. Não entendi a razão para o telhado ter caído e
as paredes continuarem de pé. Não fora atingida por deslizamento algum – logo, por que teria
sumido o telhado? As paredes se mostravam irregulares, partes delas destruídas, caídas; outras, não.
Minha mãe entregou-me um recorte de jornal, onde era relatado todo o desastre ocorrido em
Caraguá, tudo com muito detalhe. Dobrei-o e guardei comigo.
Saí decidido a encontrar as pessoas. Eu me sentia leve, muito jovem, e andava apressado por entre
escombros, com bastante desenvoltura. Na mão direita tinha um enorme pau; na verdade, um
pedaço de sarrafo, cortado fino e pontiagudo. Era bem mais forte que um pau comum, que se
poderia quebrar com facilidade. Serviria para defesa em caso de ataque, principalmente de
cachorros. Não sei por que, na outra mão, segurando meio que nas costas, trazia uma máquina de
escrever, dessas antigas, portáteis, de ferro na cor verde – não era pesada.
Vi a cidade. Estava destruída em vários pontos – casas quebradas, desmoronadas, destorcidas,
esticadas, meio enterradas, alagadas, muitas pessoas indo de um lado para o outro, aparentemente
andando sem sentido prático algum, apressadas, levando coisas nas mãos. Vi um grupo de homens
improvisando um canal de concreto – eles estavam retirando suas tampas também de concreto para
permitir que a água fluísse. Isso era perto do centro da cidade. Engraçado era que a cidade não se
parecia com a que temos na atualidade. Parecia outra cidade, pois não conseguia identificar pontos
conhecidos. Ora se parecia com a Caraguá antiga, ora se parecia com a Caraguá atual – mas isso era
apenas um sentimento, pois nada do que via comprovava isso. Lembro-me vagamente de alguém ter
falado o nome Antonio Carlos; lembro-se até de seu rosto no meio das pessoas, em tom pesado,
aflito, o tempo todo calado.
Logo me si subindo uma ladeira, com casas de um só lado – o esquerdo – daquilo que seria uma via
pública íngreme. Deste lado havia casas; do outro, elas todas haviam sido levadas por um
deslizamento. Havia parado de chover e era hora de buscar pessoas que ainda estavam no morro.
Subi com muita dificuldade, escolhendo lugar onde pisar, desviando de coisas, algumas ainda
escorrendo; pulando de um lugar para outro. Começou a chover novamente e aumentou o medo de
que houvesse um novo escorregamento, que poderia levar tudo abaixo, inclusive eu. Comecei a
descer pela ladeira. Foi quando vi um menino, de uns 8 ou 9 anos, num lugar onde seria uma sala,
com apenas três paredes – a outra fora arrastada. Chamei-o para descer, ele se recusou. Insisti, mas
o moleque teimava. Ensinei a ele como descer por entre os entulhos. Pareceu-me que tinha medo e
não saía do lugar onde se encontrava. A chuva aumentava e não poderia ficar ali, correndo risco.
Percebi que o menino neste momento se dispôs a caminhar. Fui ao seu auxílio, ajudei-o nos seus
passos, segurando pelas mãos e indicando os locais seguros onde pisar. Tinha pressa. A chuva
aumentava; a descida era lenta. Por fim, chegamos a um local seguro; eu sempre temendo que a
qualquer momento ocorresse o fim, pois tudo poderia ruir em segundos. O risco era muito grande.
Passei a cuidar desse menino. Não sabia o seu nome, ele não disse. O interessante era que a
preocupação maior não era com a comida, como seria esperado, mas “sair dali”. Não sei por que,
mas tinha o pressentimento que aquele menino era eu mesmo. Mas isso não fazia sentido: como
poderia estar aqui, adulto, e ali, menino? Estaria ficando maluco? Como poderia ser duas pessoas a
um só tempo? Esforcei-me, mas não conseguia distinguir seu rosto para alguma compreensão maior.
Mas esse sentimento era muito forte.
De repente, vi-me sobre a carroceria de um caminhão, que ia rasgando as ruas alagadas, parecendo
um barco percorrendo o leito dum rio em velocidade. O menino estava seguro comigo. O
interessante era que, além dele, havia agora um outro, da mesma idade. Eles falavam pouco, mas
não pareciam assustados. A imagem daquilo que se observava ao redor era de destruição e o
caminhão ia para algum lugar, e nós não sabíamos para onde, se em busca de abrigo ou em socorro
de outras pessoas. Não sei dizer como, mas um aguaceiro pesado, lamacento, nos atingiu, talvez
arremessado de algum barranco, de um deslizamento. O segundo menino desapareceu no meio
dessa água densa. Passei a procurá-lo com as mãos dentro dessa água barrenta. Estava cheia de
coisas estranhas, muitos galhos de árvores, muitas varas dispostas meio que em seqüência, pelo que
pude sentir. Varas de cerca de uns seis centímetros de diâmetro cada. Não fazia sentido, mas essa
era a composição daquela lama que nos atingiu sobre o caminhão. Até que, em dado momento,
consegui localizar o garoto naquele emaranhado de galhos. Segurei firme o trouxe à tona. Ele
respirava com dificuldades, tossia, mas estava vivo. O motorista acelerou firme e em meio à fumaça
ele e nos tirou dali, e aquele local perigoso foi ficando para trás.
Esse menino que quase se afogou começou a aparentar fraqueza, estar doente. Pedi para o
motorista parar numa rua qualquer, perto de um local onde estavam aplicando vacinas. Desci, peguei
os dois moleques e me dirigi ao posto. Lá, um senhor de certa idade aplicava injeções em si mesmo.
Uma após outra. Parecia que tinha perdido a razão, que não sabia mais o que fazia. Terminava uma
aplicação e já preparava outra. Quando pensava que ia injetar em algumas das pessoas que
aguardavam ali, ele a aplicava em si mesmo. Discuti com ele e o obriguei a preparar duas doses.
Ensinei aos garotos que era preciso, antes de aplicar, eliminar o ar da seringa. Eles fizeram assim e se
automedicaram. O maluco do enfermeiro falou – não sei se por brincadeira – que o menino que
havia que havia caído na água não iria sobreviver. Mandei-o pra “aquele” lugar e saímos, retornando
ao caminhão, que retomou viagem, sem rumo algum; pelo menos, não se conhecia esse rumo.
Não estava mais no caminhão, mas num avião. Sobrevoando uma região que me pareceu entre
Caraguá e Ubatuba, talvez Maranduba. Era noite, tudo escuro, só umas poucas luzes internas da
aeronave quebravam a escuridão total. Pelo interfone, o comandante avisou que Caraguatatuba
havia sofrido um grande desastre natural por causa do excesso de chuva que recebeu, que havia
muitos mortos, pessoas desaparecidas, a destruição era grande e que as vítimas ainda recebiam
socorro. Avisou que íamos sobrevoar a cidade. Foi uma grande comoção entre as pessoas que
estavam no aparelho. Quando chegamos ao ponto onde seria “sobre a cidade”, sentimos uma
pressão muito grande, como que puxando para baixo, o avião trepidou, as pessoas gritavam, houve
muita aflição, medo, pânico. Foram momentos de terror, parecia ser o fim. Conseguimos passar.
Depois, ficamos sabendo que uma outra aeronave tinha tido o mesmo problema mas não a mesma
sorte. Não conseguiu atravessar aquela zona perigosa e sumiu na região da serra de Caraguatatuba.
Não se teve mais notícias dela nem de seus passageiros. Todos mortos, era o saldo anunciado. A
explicação era que a pressão das chuvas, que continuavam caindo, forçava para baixo o ar, criando
uma espécie de redemoinho, e a violência da deslocação desse ar desestabilizava aviões próximos,
derrubando-os.
Acordei às 6:50 horas, com essas informações ainda vivas na cabeça. Fiquei muito intrigado, pois o
sonho me pareceu real o tempo todo, pelas imagens nítidas, fortes, detalhes e minúcias, não pela
coerência dos fatos e das informações, que se misturavam ilogicamente em muitos momentos. Antes
que se perdessem, decidi escrever como esse sonho se passou. É certo que muitos detalhes se
perderam, pois grande parte deles se apagam quando acordamos. Mas, antes que todos caíssem no
esquecimento, decidi registrar aqueles que ainda tinha na lembrança. O resultado é este relato, que
ora encerro e cujo significado desconheço, embora possa encontrar pontos de ligação entre a
realidade vivida e a estória sonhada e criada – ou recriada? – engenhosamente pelo subconsciente.
Zé Mário