UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
MÚSICAS, SÁTIRAS, ANEDOTAS, PIADAS E RISOS: A
DESCONSTRUÇÃO DOS ESTEREÓTIPOS CAIPIRAS NAS
PERFORMANCES ARTÍSTICAS DE ALVARENGA E
RANCHINHO
ALESSANDRO HENRIQUE CAVICHIA DIAS
FRANCA 2011
ALESSANDRO HENRIQUE CAVICHIA DIAS
MÚSICAS, SÁTIRAS, ANEDOTAS, PIADAS E RISOS: A
DESCONSTRUÇÃO DOS ESTEREÓTIPOS CAIPIRAS NAS
PERFORMANCES ARTÍSTICAS DE ALVARENGA E
RANCHINHO
Monografia apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, Campus Franca, como trabalho de Conclusão de Curso de Bacharelado em História.
Orientadora: Prof.ª Tânia da Costa Garcia
FRANCA 2011
Dias, Alessandro Henrique Cavichia
Músicas, sátiras, anedotas, piadas e risos : a desconstrução dos
estereótipos caipiras nas performances artísticas de Alvarenga e
Ranchinho / Alessandro Henrique Cavicchia Dias. – Franca: [s.n.],
2011
87 f.
Trabalho de conclusão (bacharelado – História).
Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Tânia da Costa Garcia
1. Música sertaneja – Brasil. 2. Modernidade social – Humor – Caipiras. I. Título CDD – 780.981
Dedico este trabalho a Aldete
Aparecida Cavichia Dias e
Valdenor Martins Dias pessoas
as quais tenho o orgulho e a
honra de chamar de pais.
Agradecimentos
Agradeço primeiramente a Daiane Pedro de Lima, minha amiga e
companheira, pelos incentivos nas horas difíceis.
Agradeço aos meus pais e ao meu irmão Julio Cesar Cavichia Dias por
acreditarem em mim e me apoiar nesta empreitada e principalmente por agirem
como agência de fomento deste trabalho.
Agradeço a minha orientadora Tânia da Costa Garcia pela paciência,
solicitude e liberdade intelectual na produção desse trabalho.
Agradeço aos irmãos que pude escolher Lincoln Massuda, Caio Fabricio
Martins, Eder Fazolli, Adimar Moretti Junior pelo grande incentivo e apoio
Por fim agradeço aos meus amigos pelos amplos debates
historiográficos que se fazem presente neste trabalho.
"Seja você quem for, seja qual for a posição social que você tenha na vida, a mais alta ou a mais baixa, tenha sempre como meta muita força, muita determinação e sempre faça tudo com muito amor e com muita fé em Deus, que um dia você chega lá. De alguma maneira você chega lá." Ayrton Senna
RESUMO: A dupla caipira Alvarenga e Ranchinho iniciou sua carreira artística
em 1933, ainda sob ressonância das idéias pré–modernistas que permeavam o
imaginário da sociedade urbana. No primeiro quarto do século XX a sociedade
urbana brasileira encontra–se sob o mais profundo êxtase modernizador, em
que é criado o contrato com o novo e os indivíduos que não se enquadravam
aos novos anseios, esses seriam postos a margem da sociedade. Nessa
perspectiva ressalta–se a obra do intelectual pré-modernista Monteiro Lobato
que vê o caipira como sinônimo de atraso na sociedade brasileira e, por isso,
passa a defini-lo como preguiçoso, ingênuo, sujo, doente, ou seja, um
verdadeiro entrave para a modernidade. Frente a esse panorama, Alvarenga e
Ranchinho iniciam suas apresentações contrapondo a representação do caipira
apresentado por Monteiro Lobato, tendo como principal ferramenta o bom
humor constantemente presentes em sua criticas, sátiras e anedotas
destinadas aos políticos e aos novos aspectos da modernidade social. Para a
dupla o humor possui uma vocação sintética para destruir, modificar e
desmistificar tipos e estereótipos, permitindo compreender como o caipira
representava no seu cotidiano esses novos anseios propostos pela
modernidade, além de desconstruir os estereótipos criados em torno da figura
do caipira.
Palavras Chave: Caipira, Estereótipos e Modernidade.
SUMÁRIO
Introdução....................................................................................................... 10
1º Capitulo: As múltiplas representações desenvolvidas em torno da figura do caipira. 1.1 Os embates teóricos em torno da construção da figura do caipira.... 20
1.2 _ O caipira analisado através de uma nova ótica: as considerações do
movimento modernista de 1922.....................................................................30
2º Capítulo: Interpretações, Performances e Tendências nas apresentações da dupla Alvarenga e Ranchinho. 2.1 – A consolidação e tendências da música caipira, nas interpretações das duplas Alvarenga e Ranchinho e Raul Torres e Florêncio...................40 2.2 – A representação do caipira através das performances de Alvarenga e
Ranchinho........................................................................................................45
Considerações Finais.....................................................................................57
Referências Bibliográficas.............................................................................60
Anexo...............................................................................................................65
INTRODUÇÃO
10
Este trabalho tem por objetivo analisar de que forma o caipira
desconstruía os estereótipos criados em torno de si durante as primeiras
décadas do século XX, tendo como referência a atuação artística da dupla
caipira Alvarenga e Ranchinho1, que se consagraram durante os anos 1930 e
1940 com base, principalmente, em uma ferramenta de humor e fortes críticas
e sátiras destinadas aos políticos da época, pois o humor possui uma vocação
sintética para destruir, modificar e desmistificar tipos e estereótipos2.
A presente pesquisa não tem por intuito analisar toda a carreira artística
de Alvarenga e Ranchinho mais apenas o período compreendido entre 1933,
ano que marca o início da trajetória artística da dupla, até 1948, época em que
se encerrou o Programa Radiofônico, protagonizado pela dupla e conhecido
como ―Os Milionários do Riso‖, que ia ao ar as terças-feiras na Rádio Nacional.
Alvarenga e Ranchinho viveram parcialmente o período marcado pelo
―boom modernizador‖ em que encontrava-se a sociedade urbana brasileira,
onde se tinha como preocupação o contrato com o novo e o moderno, sendo
que o que não se refletia sob os novos anseios, estaria na contra-mão desses
valores, ou seja, seria um obstáculo para o processo modernizador. Em
contrapartida encontrava-se nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,
São Paulo, Norte do Paraná, Minas Gerais e Espírito Santo a figura do caipira
que, frente à modernização brasileira, passa a representar o oposto desse
processo, além de ser visto como sinônimo de atraso, algo que não possui
vínculo algum com as novas aspirações da elite urbana brasileira.
As representações do mundo social assim constituídas, embora aspirem a universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinados pelo interesse de grupo que as forjam. Daí para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem utiliza3
1 Murilo Alvarenga nasceu em Itaúna/MG no dia 22 de maio de 1912 e Diésis dos Anjos Gaia, o
Ranchinho, nasceu em Jacareí/SP no dia 23 de 05 de 1913, ambos na zona demarcada pela cultura caipira no país, entendida como os estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Norte do Paraná, Minas Gerais e Espírito Santo (RIBEIRO, ano )
2SALIBA. Elias Thomé. Raízes do Riso: a representação humorística na história brasileira:
da Belle Époque aos primeiros Tempos do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras,
2002, p. 32. 3CHARTIER, Roger. A História cultural entre praticas e representações. Lisboa:Difel,1988,p
17.
11
Dessa maneira, constroem-se inúmeros estereótipos em torno da figura
do caipira, entre eles destaca-se a obra do pré-modernista Monteiro Lobato
intitulada ―Urupês‖ e publicada em 1919, em que no capítulo ―Velha Praga‖
define o caipira como preguiçoso, totalmente sem falta de providência, ingênuo,
sujo, doente, ou seja, um verdadeiro entrave para a modernidade como afirma
Lobato:
Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização, mais que vive a beira da penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugiando em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a picapau4 e o isqueiro de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e Sorna5.
Nesta perspectiva, a obra de Monteiro Lobato passa a legitimar os
conceitos criados em torno do caipira ou caboclo, como ele cita em sua obra,
sendo que ambos os conceitos se referem ao mesmo indivíduo. Nota-se,
também na fala de Lobato, que o caipira não se mantinha apenas alheio a
modernidade mais possuía uma aversão a ela, pois se mantinha sempre
fronteiriço fugindo sempre ao menor sinal de progresso em direção a sua
tapera.
Com a publicação dessa obra Monteiro Lobato caiu nas graças de toda
uma elite urbana e oligarca, pois deu respaldo acadêmico as suas aspirações.
Ao mesmo tempo, ele conseguiu se indispor com inúmeros intelectuais e
pesquisadores do gênero, que detinham uma visão contraria a sua e por isso
saem em defesa do caipira, entre eles se destaca Cornélio Pires6 conhecido
como o bandeirante da música caipira7 por ser o primeiro a realizar gravações
de músicas em 1929. Junto a ele destaca-se a atuação dos Modernistas da
semana de 1922.
O movimento modernista tomou força a partir da década de 1920 tendo
São Paulo como palco da semana da arte moderna de 1922. O movimento
prolonga-se com Mario de Andrade e, principalmente, a partir de seus estudos
4 Nota do autor (Espingarda de carregar pela boca)
5 LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo, Brasiliense Ed 16, 1969, p. 271.
6 Cornélio Pires foi Jornalista, escritor, poeta, folclorista e cantador, ele foi o primeiro a gravar um disco de música caipira em 1929. É também obra sua a divulgação do gênero musica abaixo.
7 http://www.violatropeira.com.br/cornelio%20pires.htm. acesso em 03/11/2009
12
sobre folclore e na sua tentativa de criar um Departamento de Cultura, que
entre outros aspectos volta-se para a cultura popular8
Nesse contexto, alguns intelectuais modernistas como Mario de
Andrade9, Renato Almeida10, Heitor Villa-Lobos11 entre outros, voltam seus
olhares para o interior do Brasil com intuito de encontrar algo na cultura popular
que representasse a identidade nacional, que dispusesse valores culturais
livres de qualquer influência alienígena. Com isso, tudo que era tido até então
como sinônimo de atraso, malandragem, preguiça, indolência passa a ser
desconstruído por tais intelectuais e em seu lugar começa a ser alicerçado o
ideal de símbolo nacional, o qual recebe grande atenção no governo de Getúlio
Vargas.
Frente a essa conjuntura Alvarenga e Ranchinho iniciam suas
apresentações artísticas como dupla caipira nos primeiros anos da década de
1930 tanto no interior como na capital paulista, já sob a política do Regime de
Estado Novo, em que não apenas o poder conferido pela cultura não é
reprimido, mas é desenvolvido e plenamente utilizado. A única condição é que
esse poder seja submisso ao Poder nacional12, pois
o radio e o cinema, a cultura de massa do período tem um papel central na construção simbólica comum que contribuía para a criação de uma identidade nacional a partir Capital da Republica13.
A política cultural do Estado Novo pautava-se na busca e afirmação de
uma identidade nacional, característica essa que vinha preocupando os
intelectuais desde o século XIX, como Nina Rodrigues e Sílvio Romero, que
8 ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional, São Paulo Ed Brasiliense, 1986, p. 128.
9 Mário Raul de Moraes Andrade, (São Paulo, 9 de outubro de 1893 — São Paulo, 25 de fevereiro de 1945) foi um poeta, romancista, crítico de arte, musicólogo da época do movimento modernista no Brasil e produziu um grande impacto na renovação literária e artística do país, participando ativamente da Semana de Arte Moderna de 22, além de se envolver (de 1934 a 1937) com a cultura nacional trabalhando como diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo.
10 Renato Almeida foi nomeado diretor-executivo da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Publicou vários livros sobre música e folclore, além de inúmeras obras a respeito da temática.
11 Heitor Villa-Lobos (Rio de Janeiro, 5 de março de 1887 – Rio de Janeiro, 17 de novembro
de 1959) foi um dos maestros e compositores brasileiros de maior expressão. Dentre seus
arranjos destaca-se a música ―Luar do Sertão‖. 12
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional, São Paulo: Ed Brasiliense, 1986. 13
GARCIA. Tânia da Costa. O “IT Verde Amarelo” de Carmen Miranda (1930 – 1946). São Paulo: Annablume, FAPESP, 2004.
13
acreditavam que o Brasil não possuía uma única raça que pudesse ser símbolo
de nacionalidade, ou seja, apresentava-se como um país de mestiços, o que
seria um problema segundo Sílvio Romeiro, pois apenas as ―raças
antropológicas‖, caracterizadas como aquelas vinculadas com parâmetros
biológicos, trariam consigo as qualidades psicossociais das nacionalidades.
Diante dessa perspectiva, para o autor, somente no futuro o Brasil poderia ser
uma ―raça histórica14‖, devido a sua ausência de herança genética social.
Somente em 1933, com a publicação do livro Casa Grande e Senzala de
Gilberto Freyre, que a negatividade da mestiçagem é transformada, pois, com a
obra, é atribuído ao Brasil a idéia de um país formado por uma misigenação
racial, o que torna plausível o mito das três raças15. Tal perspectiva permitiu a
idéia estadonovista de construção da uma nova identidade nacional, embasada
na cultura popular como era proposta por Getulio Vargas.
Dentre as novas políticas culturais destaca-se a função adquirida pelo
rádio ao longo do período aqui abordado, pois até o início de 1930 ele
caracterizava-se como um produto destinado as famílias mais abastadas da
sociedade, devido ao seu alto valor de importação. Dessa forma, essas elites
econômicas ? utilizavam-se do rádio com a finalidade de atingir algo que ainda
não tinham alcançado plenamente tornando a programação muito seleta,
composta por músicas clássicas, operetas, palestras e recitais de poesia16,
ambas de caráter erudito, o que também não contribuía para despertar o
interesse do grande publico, uma vez que tal programação não possuía vinculo
com a sua realidade.
A partir de 1932 a radiofonia no Brasil adquire uma nova dinâmica, visto
que nesse ano, por meio do decreto nº 21.111 de março de 1932, que
completava o de número 20.047 de maio de 1931, a propaganda comercial é
permita no rádio o que era proibido até então, possibilitando que se
inaugurasse uma nova era da rádio comunicação, uma vez que, até esse
momento, as emissoras eram mantidas através das contribuições de sócios e
14
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional, São Paulo: Ed Brasiliense, 1986, p. 37.
15 O mito das três raças trata-se de uma noção desenvolvida tanto no senso comum quanto em obras de autores que afirmam que a cultura e a sociedade brasileira foram constituídas através de influências culturais de três raças: européia, africana e indígena.
16 JORGE, Sonia. Rádio, Modernidade e Sociedade em Ribeirão Preto 1924 – 1937. Franca {s.n} 2007, p. 10.
14
apaixonados pelo novo artefato. Com isso, as relações entre radiofonia e
mercado passam a se estreitar, no mesmo período em que ocorre uma
inversão no quadro social, visto que a população de maioria rural migra em
direção aos centros urbanos devido à crise do café e a ampliação do parque
industrial, derivada de investimentos do poder público, o que proporcionou uma
nova dinâmica ao mercado interno17.
Com o aumento populacional urbano e a ascensão da rádiofusão junto
ao mercado brasileiro, o rádio torna-se algo indispensável para todos os níveis
sociais. Dessa maneira, seria necessário criar uma grade de programações
que despertasse o interesse nos mais variados indivíduos. Devido a isso, nota-
se um crescente espaço dos programas humorísticos que estavam sempre
vinculados ao anúncio de algum produto. Assim, ficava a cargo do humorista
divulgá-lo, principalmente quando se tratava de algum produto de difícil
veiculação como purgantes, roupas íntimas, reguladores menstruais entre
outros18. Nesse tocante, entre os anos de 1939 a 1946 cerca de 40% dos
programas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro que iam ao ar eram
humorístico19.
A dupla Alvarenga e Ranchinho inicia as apresentações do seu
programa Milionários do Riso em 1947, em todas as terças-feiras entre as
20:00 e 20:30 hrs, sendo patrocinados pelo Rhum Ceosotado. Pode-se notar
que Alvarenga e Ranchinho iniciam suas apresentações no rádio um ano após
o ápice dos programas humorísticos, nesse período, com suas canções,
anedotas, piadas e especialmente inúmeras sátiras bem humoradas
direcionadas a política do período em questão, a dupla adquire grande
notoriedade e fama.
Alvarenga e Ranchinho ao iniciarem seus trabalhos artísticos incorporam
a indumentária caipira severamente criticada por Monteiro Lobato, usando
assim, o chapéu de palha, a calça curta e a camisa xadrez, além de acentuar
os erros na fala. Com isso, a dupla primeiramente reúne em torno de si os
estereótipos criados pela sociedade urbana moderna, pois ao realizarem tal ato
17
Ibidem, p 11. 18
SALIBA. Elias Thomé. Raízes do Riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros Tempos do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.223.
19 Ibidem, p 289.
15
Alvarenga e Ranchinho produziu em si as rupturas que originam o riso, porque
tendo em vista que o riso nasce da ruptura das expectativas, ou seja, ele é
fruto de algo que fuja dos padrões convencionais estabelecidos pela dinâmica
social, sobretudo do sentimento de superioridade20 que é visível nesse
momento na sociedade brasileira urbana, uma vez que esta vive as aspirações
da modernidade. Esse cenário remete a indumentária da dupla caipira em algo
retrógado, atrasado que não possui vínculo nenhum com a sociedade moderna
brasileira.
Com a finalidade de analisar a desconstrução dos estereótipos criados
em torno da figura do caipira utilizarei como principal fonte as apresentações
de Alvarenga e Ranchinho no seu programa ‗Milionários do Riso‘ referente aos
dias 25 de fevereiro de 1947, data que marca a estréia do programa, 04 /de
março de 1947, 03 de junho de 1947, 17 de junho de 1947 e, por fim, os quatro
últimos programas da dupla na Rádio Nacional relativos aos dias 03, 10,17 e
24 de dezembro de 194821. Mas, em momento algum serão desconsideradas
as produções anteriores que os levaram várias vezes a pernoitar na prisão
devido as censuras do Departamento de Imprensa e Propaganda (D.I.P) do
Estado Novo, sendo liberados somente mediante a fiança. Pode-se observar a
astúcia da dupla realizada através da sátira exposta abaixo, a qual elucida com
perfeição o tom em que se embasavam as críticas de Alvarenga e Ranchinho:
Liga dos Bichos Já formaro a sociedade / Protetor dos animais / Enquanto os bichos forgueti / A gente anda pa trás / Esse mundo tá virado / Tem coisa que não se atura / A gente passa apertado / E os bicho passa fartura Os bicho tem sociedade / Adonde tem protetor / Na família do seu Galo / Tem muito Pinto doutor / Já vi Leitão professor /Vi Aranha de talento / Mas o que me deixou besta / Foi ver Cavalo Sargento / Também vi Coeio fardado / Oficiar de longo curso / E na crasse dos artistas / Tenho visto muito Urso / Pra chegar a capitão /A gente quase se mata / E os bicho sobe na vida / Tem até major Barata Da maneira que vai indo / Tô vendo que não demora / Os burro monta na gente / E ainda chama na espora / Vou se embora pro sertão / Não vorto aqui nunca mais / Que lá num tem
20 Ibidem, p. 24. 21 Os programas aqui citados se encontram nos anexos no fim deste trabalho.
16
sociedade Protetor dos animais22
Na canção acima Alvarenga e Ranchinho empregam metáforas ao
relacionar os políticos da época a animais. Tal procedimento, nessa canção,
faz forte alusão a Oswaldo Aranha, ministro da fazenda e um dos principais
membros do governo Vargas.
Assim sendo, embasaremos o trabalho em analises de discografias e
programas radiofônicos, como salientamos a acima, pois o trabalho será um
convite a um mergulho na cultura caipira e nas suas representações, sobretudo
as proporcionadas por Alvarenga e Ranchinho, visto que tais representações
culturais nos levam seguidamente a considerar estas representações como
matrizes de discurso e de práticas diferenciadas23. Diante da análise de
representações, cabe considerar as práticas e apropriações que a dupla
incorporou em si, pois
mais do que conceito de mentalidade ela [as representações criadas pela dupla] permite articular três modalidades da relação como mundo social: em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos, seguidamente, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição, por fim, as formas institucionalizadas e objetivadas, graças as quais uns representantes (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetua a existência do grupo da classe ou da comunidade24.
Com isso, pode-se, ao longo do trabalho, entender a atuação do sujeito
não apenas como resultante de uma conjuntura social pré-estabelecida, mas
compreender o indivíduo como um ator social, além de analisar como ele
interage com o cenário que forma em torno de si, articulando como suas
apropriações e representações fundamentam sua prática.
22 Alvarenga e Ranchinho. Liga dos bichos. Rio de Janeiro: Victor 1936. As barras colocadas no corpo da citação indicam a separação dos versos, procedimento que
será efetuado durante todo o trabalho. 23
CHARTIER, Roger. A História cultural entre praticas e representações. Lisboa: Difel.1988, p.18.
24 Ibidem, p. 24.
17
No que diz respeito ao estudo referente à cultura caipira, as produções
acadêmicas ainda são modestas, ao contrário das obras que abordam o
processo de radiodifusão no Brasil. Desse modo, elencamos as produções que
melhor contemplam a proposta citada acima e que nos permite, além de
compreender o cenário em que atua o caipira e sua canção, refletir sobre
novas abordagens para nosso objeto. Seguindo esse caminho, destacamos o
trabalho de Antônio Cândido denominado ―Os Parceiros do Rio Bonito25‖ que
aborda as transformações da sociabilidade juntamente com o cotidiano do
caipira do município de Bofete/SP, ressaltando elementos como a sua
religiosidade, alimentação e organização do trabalho. Em seguida cabe
salientar a obra de Romildo Sant‘ Anna intitulada ―Moda é Viola Ensaios do
Cantar Caipira26‖, cujo foco pauta-se em analises das configurações do cantar
caipira e na canção caipira hoje em dia. Nessa direção, podemos contar com a
dissertação de mestrado apresentadas a Universidade Estadual Paulista ―Júlio
de Mesquita Filho‖ de Lucas Antônio de Araújo, com o título ―A Representação
do Sertão na Metrópole a Construção de um Gênero Musical (1929 – 1940)27‖,
tal trabalho visa analisar a formação de um gênero musical e a forma com que
esse permitia construir a representação de um sertão. Para abordar os
aspectos da radiodifusão podemos contar com o apoio de inúmeras obras,
entre elas a dissertação de Sônia Jorge denominada ―Rádio, Modernidade e
Sociedade em Ribeirão Preto, 1924 – 193728‖ apresentada ao programa de
pós-graduação da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, em
que é analisado o papel do rádio no processo de desenvolvimento das
conjunturas sociais, econômicas e políticas na cidade de Ribeirão Preto. Com
essas reflexões utilizaremos também a pesquisa de Lia Calabre de Azedo, cujo
título é ―No Tempo do Rádio: Radiodifusão e Cotidiano no Brasil 1923 - 196029‖,
25
CANDIDO, Antônio. Os parceiros do rio bonito: estudos sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades, 1979
26 SANT‘ANNA. Romildo. Moda é viola: Ensaios do cantar caipira, 2ª edição. São Paulo: Arte e Ciência, 2009.
27 ARAÚJO, Lucas Antônio de. A Representação do Sertão na Metrópole a Construção de um Gênero Musical (1929 – 1940). Franca {s.n} 2007.
28 JORGE, Sonia. Rádio, Modernidade e Sociedade em Ribeirão Preto 1924 – 1937. Franca {s.n} 2007.
29 AZEVEDO. Lia Calabre de. No Tempo do Radio: Radiodifusão e Cotidiano no Brasil 1923 – 1960. Niterói {s.n} 2002.
18
a qual analisa o poder e a interferência do rádio no cotidiano das práticas
culturais urbanas.
E por fim, aproximando de nossa temática, tendo como objeto a atuação
do caipira nas rádios, examinaremos o trabalho de Rosa Geni Duarte intitulado
―Múltiplas vozes no Ar: O Rádio em São Paulo nos anos 30 e 4030‖, cuja
atenção volta-se para os programas humorísticos em especial os de música
caipira, com a finalidade de interpretar como os programas constroem um
discurso que atua na confirmação das cidades em metrópoles ao apresentar o
caipira como um individuo que não pertence a tempos distantes que não se
referia mais a realidade do Brasil, ressaltando assim, a cidades modernas e
urbanizadas como grade centro de atração de migrantes.
. Além dessa obra, estaremos dialogando com o livro de Elias Thomé
Saliba denominado ―As Raízes do Riso. A Representação Humorística na
história brasileira: da Belle Époque aos primeiros Tempos do Rádio31‖, nesta
obra Saliba explica quem eram os humoristas e como atuavam e se inseriam
no campo intelectual, tendo o humor como arma para exposição das
contradições apresentadas ao longo do período abordado em sua obra.
Por fim, teremos como apoio metodológico ao examinar as músicas de
Alvarenga e Ranchinho as obras do pesquisador Marcos Napolitano que foca
seu trabalho na apropriação da música como objeto e fonte para História, onde
tal pesquisador afirma:
O grande desafio de todo pesquisador em música popular é
mapear as camadas de sentido embutidas numa obra musical,
bem como suas formas de inserção na sociedade e na história,
evitando, ao mesmo tempo, as simplificações e mecanicismos
analíticos que podem deturpar a natureza polissêmica e
complexa de qualquer documento de natureza estética.32
30
DUARTE. Rosa Geni. Múltiplas Vozes no Ar: o radio em São Paulo nos anos de 30 e 40. São Paulo. {s.n} 2000.
31SALIBA. Elias Thomé. Raízes do Riso: a representação humorística na história
brasileira: da Belle Époque aos primeiros Tempos do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
32 NAPOLITANO, Marcos. História e Música. Coleção ―História &... Reflexões‖. MG: Editora
Autêntica, 2005. Págs. 77-78.
19
O presente texto encontra-se dividido em dois capítulos, sendo que o
primeiro tem como objetivo a análise dos meios e as formas em que são
construídos os estereótipos em torno da figura do caipira, ressaltando as novas
aspirações que levam a sociedade a elaborar essas novas visões em torno do
mesmo, que não se remetia a seus ideais, evidenciando as antíteses que
marcam a sociedade brasileira como os contrastes entre arcaico e moderno.
No segundo capítulo, iniciaremos as discussões da relação do caipira
com a radiodifusão, e dentre essa dinâmica iremos ressaltar a aceitação desse
novo gênero musical até então ignorado pela sociedade urbana.. Dentre essas
perspectivas poderemos ressaltar os contratos sociais que se estabeleceu na
sociedade brasileira no período, como as relações entre sagrado e profano,
arcaico e moderno.
20
1º Capítulo: As múltiplas representações desenvolvidas em torno da figura do caipira
21
1.1 – Os embates teóricos em torno da construção da
figura do caipira.
Alvarenga e Ranchinho iniciam definitivamente sua carreira como dupla
em 1933 no Circo Pinheiro em Santos/SP, com um repertório que se baseava
em valsas, modinhas, tangos e chorinhos, todavia, apresentavam estilização
totalmente opostos a do caipira como se pode observar na figura 01 em anexo,
ou seja, ainda estavam distantes do gênero caipira que consagraria a dupla.
Em suas apresentações é curioso que a forma de cantar de Alvarenga e
Ranchinho despertava risos na platéia33 devido ao sotaque e ao som
anasalado típico do cantar caipira, o que os levam a inserir entre uma música e
outra, algumas piadas da mesma forma que fazia Jararaca e Ratinho34.
Nesse primeiro momento da carreira artística da dupla já é possível
notar uma adaptação ao mercado fonográfico do período, visto que em 1933 a
música caipira se caracterizava por ser um segmento em construção de pouca
relevância no cenário musical o que força inicialmente Alvarenga e Ranchinho
a incorporarem em si esses elementos da modernidade urbana e reproduzir
tais aspirações em suas músicas. Pautando-se inicialmente a dinâmica de suas
apresentações nesse modelo, Alvarenga e Ranchinho seguem no mesmo ano
para São Paulo, onde passam a realizar suas apresentações em outros circos.
Em São Paulo a carreira de Alvarenga e Ranchinho adquiriu um novo
ritmo, pois entraram em contato com a turma caipira de Cornélio Pires, que já
havia gravado algumas ―Modas de Viola‖ e ―Causos‖ interpretados pelo
Tibúrcio e sua turma caipira desde o final dos anos de 1920. A partir dessa
aproximação Alvarenga e Ranchinho assumem definitivamente o figurino
caipira com suas botinas, camisas xadrez, calças curtas e o chapéu de palha
(como é visível na figura 02 em anexo), traje que se tornará um dos traços
marcantes da dupla junto a suas sátiras.
33
Disponível em: <http://www.recantocaipira.com.br/alvarenga_ranchinho.html>. Acessado em: 6 mar. 2011
34 Jararaca e Ratinho foi uma dupla musical formada por José Luis Rodrigues Calazans (o Jararaca, Maceió, 29 de setembro de 1896 — Rio de Janeiro, RJ, 11 de outubro de 1977) e Severino Rangel de Carvalho (o Ratinho, Itabaiana, Paraíba, 13 de abril de 1896 — Duque de Caxias, 8 de setembro de 1972).Além de cantores e compositores, eram também humoristas.
22
Em 1934 Alvarenga e Ranchinho a convite do Maestro Breno Rossi,
começam a realizar apresentações esporádicas na Rádio São Paulo, já
imbuídos da indumentária caipira. Dessa maneira, passam a representar um
personagem totalmente oposto ao apresentado por Monteiro Lobato, uma vez
que Lobato define o caipira e sua prática na obra Urupês da seguinte forma:
A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho da terra, peculiar ao solo brasileiro como o ―Argas‖ o é os galinheiros ou o ―Sarcoptes mutans‖ á perna das aves domésticas. Poderíamos, analogicamente, classificá-lo entre as variedades do ―Porrigo decalvans‖, o para sita do couro cabeludo produtor da ―pelada‖, pois que onde ele assiste35 se vai despojando a terra de sua coma vegetal até cair em morma decrepitude, nua e descalvada. Em quatro anos, a mais ubertosa região se despe dos jequitibás magníficos e das perobeiras milenárias - seu orgulho e grandeza, para, em achincalhe crescente, cair em capoeira, passar desta á humildade da vassourinha e, descendo sempre, encruar definitivamente na desdita do sapezeiro – sua tortura é vergonhosa. Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização, mais que vive a beira da penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugiando em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a picapau36 e o isqueiro de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e Sorna37.
Ao longo da explanação de Monteiro Lobato a respeito do Caboclo ou
Caipira, sendo ambos fruto da miscigenação do branco português com o
indígena, é curioso notar que o termo caipira é uma denominação tipicamente
paulista, usada para denominar o caboclo que não residia nos centros urbanos.
"Kaai 'pira" na língua indígena significa, o que vive afastado, "Kaa"-mato "Pir"
corta mata38. Monteiro Lobato como pode-se ver na citação acima coloca o
caipira como uma praga para sociedade moderna tanto nas suas práticas com
a terra como por se manter alheio a modernidade visto que sempre se
mantinha fronteiriço, criando assim, a figura do Manoel Peroba, do Chico
Marimbondo e o famoso Jeca Tatu39.
35 Nota do autor (Reside, está estabelecido) 36
Nota do autor (Espingarda de carregar pela boca) 37
LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense Ed 16, 1969, p.271. 38
Disponível em: <http://www.violatropeira.com.br/origem.htm>. Acessado em: 03 nov. 2009. 39
LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo, Brasiliense Ed 16, 1969.
23
Vinculado a esses pré-conceitos já apresentados ainda perpetuava a
idéia do caipira como um indivíduo preguiçoso, totalmente sem falta de
providência, ingênuo, sujo, doente como é perceptível na passagem abaixo de
Monteiro Lobato:
Pronto o roçado, e chegando o tempo da queima, entra em função o isqueiro. Mas aqui o ―sarcopte‖ se faz raposa. Como não ignora que a lei que impõe aos roçados um aceiro de dimensão suficiente a circunscrição do fogo, urde traças para iludir a lei, cocando des‘arte a insigne preguiça e a velha malignidade40 O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cincoenta alqueires de terra para extrair deles o com que passar fome e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo Maximo de sua resistência as privações. Nem mais, nem menos. ―Dando para passar fome‖, sem virem a morrer disso, ele, a mulher e o cachorro – está tudo muito bem; assim fez o pai, o avô, assim fará a prole empanzinada que naquele momento brinca nua no terreiro41.
Ao apresentar esses conceitos o autor ignora inúmeros fatores de
fundamental importância para a compreensão da sociabilidade caipira, pois por
se tratar de indivíduos fronteiriços como ele mesmo afirma, que vive a margem
do suposto progresso modernizador ainda não havia incorporado em si a
dinâmica capitalista da sociedade urbana moderna que se firmava no Brasil
nesse período. Dessa maneira, Antônio Cândido descreve os anseios caipiras
da seguinte forma ―Desambição e imprevidência devem ser interpretadas como
a maneira corrente de designas a desnecessidade de trabalho, no universo
relativamente fechado e homogêneo de uma cultura rústica em território
vasto”42
Nessa esteira deve se levar em consideração o meio em que esse
indivíduo reside, como Antônio Cândido ressalta, pois ao viver em um universo
relativamente homogêneo e de cultura rústica em território vasto, o caipira se
caracteriza como um refém do tempo climático visto que sua miséria ou
opulência depende estreitamente da produção de sua lavoura, com isso torna-
se necessário cultivar em grandes áreas devido as significantes perdas
decorrentes do mau tempo e pragas. Essa baixa produtividade é interpretada
40
Ibidem, p. 273 41
Ibidem, p. 275 - 276 42
CANDIDO, Antônio. Os parceiros do rio bonito: estudos sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades, 1979, p. 103
24
por Lobato como mais um símbolo do seu atraso ao afirmar que “O caboclo é
uma quantidade negativa. Tala cincoenta alqueires de terra para extrair deles o
com que passar fome e frio durante o ano”. Nesse ponto, o autor ao proferir,
novamente, que o caipira ou caboclo é atrasado em relação às praticas
modernas aplicadas à agricultura, contradiz-se em relação à imagem do caipira
―vadio‖, principalmente ao afirmar que o caipira tala cinqüenta alqueires de
terra que seria aproximadamente 1.210.000 m², todavia como é possível que
um único indivíduo cultive tamanha área tendo a preguiça como principal
qualidade?
No entanto, é interessante notar como o caipira desfaz tal pré-conceito,
para tal, utilizaremos a anedota de Alvarenga e Ranchinho com o intuito de
exemplificar esse posicionamento por parte do caipira apresentado nos
programas ―Milionários do Riso‖ com apresentação de Sérgio Moraes. Essa
anedota é imprescindível para compreender a visão do caipira perante as
representações criadas ao redor da sua figura no que diz respeito à concepção
de seu trabalho:
A: Mas so Sergio o senho que é perfessor essas coisas, o senhor deve saber, Quantos, quantos, quantos mião tem de habitantes tem o Brasir né / Sergio: sim o que, que há / A: quanto, quanto é memo o certo / Sergio: estamos aproximadamente com 50 mil / A. R. cinqüenta mir / A.R: cinqüenta mião / Sergio: você perguntou o valor em nível / A.R: então eu tive fazendo uma conta aqui sabe so Sergio, pavê quantos trabaia nesse cinqüenta mião né / R: E quantos trabaia cumpade? / A: o senhor entende bem de conta né, o senhor pega no lápis que senhor vai Ver se eu to com a razão ou não né / Sergio; Lápis e papel,vamos lá então / A: cinqüenta mião de habitante nois tem, / Sergio: está bem, / A: agora vamos dize trinta mião de muié né ? / Sergio: é / A: que não trabalha, que é domestica esposa vive em casa tratando das Crianças essa coisa toda / Sergio: è isso / R. Tá certo / A: que dize sobra vinte mião pra trabaia né, / Sergio: è isso mesmo, até ai a matemática anda certa / A: vinte mião pra trabaia, agora pessoa com mais de sessenta e cinco anos, Que dize ta aposentado já não trabaia mais, cansaço ta veio da coluna / R: Ta bão / Sergio: sim / A: vamo pó cinco mião / Sergio: Razoável /A: que dize sobra quinze mião pra trabaia né, / Sergio: é exatamente / R: é /
A: agora vamos por aqui pessoas com menos de vinte e um anos de idade, Que dize criança jeito que vive a custa do pai essa coisa ta estudando essa coisa / A: não trabaia né / Sergio: sim / A: vamo pó cinco mião / Sergio: cinco milhão / A: que dize sobra dez mião só pra trabaia né / Sergio: está razoável / A:
25
agora vamos por aqui funcionário publico / Sergio: oito milhões / R: oito mião / A: ta bom né, ou põe mais / Sergio: oito milhões está muito bem, so (..) / A: ta bom né / A: então, que dize que sobra dois mião pra trabaia / Sergio: dois milhões pra trabalha / R: dois mião pra trabaia / A: agora rico esse pessoar que não faz nada vive as custa do dinheiro que ganho financiando, não trabaia né, / A: um mião e quinhentos mir / R: um mião e quinhetos mir ! / Sergio: sim é / A: que dize sobra quinhentos mi pra trabaia / R: quinhentos mir pra trabaia / Sergio: quinhentos mil pra trabalha / A: agora vamo por aqui preso gente que ta na cadeia não trabaia memo ta lá preso não pode trabaia, vamo pó aqui quatrocentos mir desses / Sergio: quatrocentos mil / A: Ta bão né / Sergio: Ta bom, ta razoável / A: que dizer sobra mir pra trabalha / R: mir / A: cem mir / Sergio: é / R: mir / A: cem mir / Sergio: cem mil / A: vamo pó agora loco doente que ta no hospitar noventa mir dessa gente, tem muito loco no Brasil não tem? / Sergio: acho que você esta sendo exagerado mais em todo caso vá lá / A: é né, / A: noventa mir, que dize que fica dez mir pra trabaia / R: dez mir pra trabaia / Sergio: dez mil para trabalhar / A: agora pessoa que vive de jogo, vive de apostar em jóquei essas coisas todas vamo por ai nove mir /R: nove mir / Sergio: Nove mil / A: sobra um mir pra trabaia / Sergio: é / A: Agora artista de de tiatro jogador de futebol novecentos e noventa e oito uma conta assim mais ou menos / Sergio: hum / A: que dize que sobra só dois pra trabalha / R: é / Sergio: é dois / A: dois pra trabaia, sabe quem é esses dois? / Sergio: ham / A: é nois / Sergio: mais e eu / (...)43
No decorrer da anedota acima, Alvarenga e Ranchinho também voltam
suas atenções para a relação do trabalho na sociedade moderna, pois ao
dividir os 50 milhões de habitantes do Brasil em algumas profissões e afirmar
que as mesmas não realizam trabalho algum que contribua para o
desenvolvimento da sociedade moderna, a dupla está questionando como
pode então o caipira ser um entrave para modernidade se inúmeros
profissionais do meio urbano não contribuem para a solidificação de tal
processo. Nessa anedota, a dupla expõe com clareza a visão estereotipada
que se formou ao redor do caipira, principalmente em relação a idéia de
―Vadio‖, visto que tal conceito foi criado pelas camadas urbanas supostamente
modernas, devido a sua provável falta de disposição do caipira ao trabalho
braçal, é nessa perspectiva que se fundamenta a sátira de Alvarenga e
Ranchinho ao citar as seguintes profissões de funcionários públicos, artista,
jogadores de futebol, apostadores e estudantes tidas como não trabalhadoras,
43
Programa exibido em 03 de junho de 1947
26
pois nenhuma delas desenvolve trabalho braçal, dessa forma, por que só o
caipira seria considerado indolente. Assim, no fim da anedota quando todos os
50 milhões de habitantes foram cartesianamente divididos e sobram apenas
dois, os qual a dupla se auto proclama como únicos e exímios trabalhadores
atribuindo à figura do caipira por eles representado o status pioneiro de
desenvolvimento social brasileiro, visto que, segundo a dupla, seria pelas mãos
do caipira que poder-se-ia alcançar qualquer pretensão de modernidade tanto
industrial quanto social, por que só seria possível, no caso do Brasil, importar a
tecnologia que propiciaria tal transformação mediante a exportação da
produção agrícola nacional, principalmente de café, que correspondia à grande
parte da receita nacional no período aqui abordado.
Sob essa perspectiva, podemos observar que o caipira não era o
indolente representado nas décadas iniciais do século XX. Ainda assim, a
respeito de sua alimentação ou a falta dessa, Monteiro Lobato apresenta mais
um símbolo de insuficiência do caipira como humano em se prover, visto que
ele cita duas vezes no mesmo parágrafo a carestia de alimentação da
genealogia da família caipira, além do seu cálculo extremamente cartesiano no
momento de realizar a sementeira para que sua produção seja de acordo com
sua resistência a fome e ao frio. Nessa direção, Cornélio Pires e Antônio
Cândido apresentam a problemática da alimentação caipira através de um
outro ângulo, pois tanto Cornélio Pires quanto Antonio Cândido embasam sua
retórica em pesquisas de campo.
Ainda sob o exame da questão alimentícia do caipira, Cornélio Pires
nos propõe uma outra visão em sua obra ―Conversas ao pé do fogo‖44 ao fazer
a seguinte afirmação ―Diz-se que o caipira se alimenta mal, que a sua
alimentação é insuficiente. Puro engano. Apesar de passar o dia no trabalho da
lavoura, bate cada pratarrão!45”. Para esse autor, o caipira é um verdadeiro
glutão, além de possuir enorme diversidade alimentícia:
(...), o roceiro tem sempre o que comer, além do indispensável feijão com angu, ou farinha de milho—os seus inseparáveis arroz e torresmo. Cria galinhas e porcos e além das cabras leiteiras salvação das crianças, nada lhe custa ter uma vaca de
44
PIRES. Cornélio. Conversas ao pé do fogo. São Paulo: Companhia editora Nacional, 1927. 45
Ibidem, p. 131.
27
leite, ou duas, que se revezam, ageitando a época de leite, por meio de barganhas e empréstimos. Que mais falta? Pouco distante da casa está o mandiocal, de mandioca-brava para raspas, farinhas e tratamento de porcos; mais próximo o mandiocal de mandioca mansa, o aipim. Não faltam tumbas de batata doce, branca ou roxa; de ―cara‖, de ―mangarito‖, de ―batatinha‖. Na horta não falta a couve, a alface, o repolho, o quiabo o ―cara-de-árvore‖‖, hervilhas, as favas, o feijão-guandu‖, o ―feijão-de-vara‖, a ―taiopa‖, a mostarda , a aboboreira para ―cambuquira‖ e abobrinhas, morangos e morangas, o xúxú, o alho e as cebolas. Na ―roça‖, na mata e nos brejos, vegetam espontaneamente a gostosa ―serralha‖, o amargo almeirão e o caruru, o palmito doce e garerova amarga, o agrião saudável. Nos rios e riachos, abundantes peixes. Nos campos e nas grotas os veados, as capivaras, as pacas, as cotias, os ―tatus‖, os lagartos, os ―jaguaracambés‖, as ―camdimbas‖, os coelhos, os ―gambás‖ e um dilúvio de aves aquáticas (. . .). Frutas em abundancia só não tem o vagabundo. E os ―pratos‖ caipiras? São variados. Só consome as carnes de porco e caça e raramente de vaca, em forma de xarque de sal, de sól, ou de vento. (...) O caipira é menos carnívoro que nós outros, mas come por quatro .... Venha o leitor passar uns dias cá comnosco e verá...46
Como podemos notar na citação de Cornélio Pires antes mesmo de
iniciar sua descrição da admirável variedade de viveres que o caipira tem a sua
disposição, ele afirma que ―Não sendo vadio, o roceiro tem sempre o que
comer‖, com isso, fica visível que o caipira também não está isento do trabalho
e que as atividades de caçador e coletor não seriam suficiente para sua
subsistência, entretanto, isso não significa que a sua produção tenha que ser
em escala industrial, como ambiciona a sociedade urbana moderna dominada
pelo modo de produção capitalista, o que se difere veemente do caipira.
Antônio Cândido tem seu foco na dieta do parceiro ou meeiro, ou mais
precisamente o agricultor, que trabalha em terra alheia mediante contrato, no
qual é estipulado que cerca de 30% de sua produção ficará com o proprietário
da área arrendada. Diante desse cenário e devido ao fato de que a pesquisa de
Cândido foi iniciada no final dos anos de 1940, é perceptível que, na visão do
autor, a sociedade caipira já estava permeada pelos anseios capitalista
diferentemente da análise apresentada por Monteiro Lobato e Cornélio Pires.
46
Ibidem, p. 132 - 134
28
Devido a isso, focaremos nossa análise na perspectiva apresentada por
Cândido e realizada na primeira parte de sua obra, em que ele faz uma
retrospectiva da construção da alimentação do caipira, enquadrando-se assim,
no recorte espaço-temporal aqui proposto.
Ao analisar a dieta caipira Cândido apresenta o aspecto socializador
presente nas comunidades caipiras, como o fato de se dividir entre os vizinhos
a caça e a produção doméstica tanto de carnes como outros itens de
subsistência, mas ressalta, principalmente, a contribuição do sal, um dos
principais fatores da sociabilidade inter-grupal que levou os indivíduos a
estabelecerem contato com alguns grandes centros populacionais47.
No exame da dieta do caipira, Antônio Candido ressalta a afinidade que
o caipira desenvolveu com seu meio no cultivo das plantas que ele chama de
triângulo básico da alimentação caipira que seria o feijão, o milho e a mandioca
ambos de herança de seu antepassado indígena.
No que tange à carne na dieta caipira, o autor concorda com os argumentos
de Cornélio Pires, no que diz respeito à caça do caipira, que possui uma ampla
variedade, como pode-se ver na citação da obra ―Parceiros do Rio Bonito‖, em
que tamanha variedade é elencada:
(...) Caça principal no mato eram o macuco e os nhambus ou inambus (varias espécies do gênero Crypturus), dentre as aves; dentre os mamíferos, pacas, cutias, quatis, porco-do-mato, de que há a espécie menor, cateto ou caititu, e a maior, queixada. A capivara se encontra a beira d‘água. No campo, brejo e lagoa, dentre as aves: perdiz e codorna; saracuras, frangos-d‘água, marrecas e patos etc. Dos mamíferos principalmente os veados, de caça trabalhosa: campeiro, catingueiro, mateiro, galheiro. Mais acessíveis, o lagarto ou teiú e os tatus, principalmente tatuetê, ou tatu-galinha48.
Pode-se notar, as duas exposições acerca da alimentação caipira
diferem-se das perspectivas apresentadas por Monteiro Lobato vista tamanha
abundância exposta na narrativa tanto de Antônio Candido quanto de Cornélio
Pires que deixam o convite ao leitor para que passe uns dias em meio às
comunidades caipiras com a finalidade de comprovar suas afirmações. Ainda
47
CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do rio bonito: estudos sobre o caipira paulista e a
transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades, 1979, p. 67. 48
Ibidem, p.69.
29
assim, ambos estabelecem o mesmo paralelo ao afirmar o enorme volume de
viveres que o caipira tem ao seu dispor entre cereais, hortaliças, frutas,
legumes e de ração cárnea, exceto em relação à carne bovina que se torna
uma iguaria dentre as comunidades caipiras, ou seja, devido a essa ampla
variedade de componentes alimentícios ao seu dispor, o caipira não possui a
fome como sua fiel companheira ao longo da sua vida. Sob esse ponto de
vista, a definição do caipira proporcionada por Romildo Sant‘Anna contempla
as explanações de Antônio Candido e Cornélio Pires como podemos notar na
seguinte exposição:
Nessa linha de formação social e cultural o caipira se define como homem rústico de evolução muito lenta, tendo por fórmula de equilíbrio a fusão intensa da cultura portuguesa com o aborígene e conservando a fala, os usos, as técnicas, os cantos, as lendas que a cultura da cidade ia destruindo, alterando essencialmente ou caricaturando. Não se trata, portanto, de um ser a parte, mas mais de um irmão mais lerdo para quem o tempo correu tão devagar que freqüentemente não entra como critério de que em pleno século XX podia viver, em parte, como um homem do século XVIII.49
Romildo Sant‘Anna, em suas considerações citadas acima, a respeito do
caipira contempla as descrições tanto de Cornélio Pires como de Antônio
Cândido, pois ambos apresentam o caipira como fruto de uma sociedade
fechada e rústica, desse modo o caipira desenvolve sua cultura e sociabilidade
a par das relações sociais urbanas. Todavia, o caipira não deve fazer alusão às
definições apresentadas pelo pré-modernismo, pelo contrário ao relacionar-se
com o cenário urbano apresenta-se como um indivíduo sagaz, astuto e
extremamente crítico aos fenômenos da modernidade técnico-industrial, como
também aos aspectos políticos e econômicos de seu tempo.
Em suma, a partir das considerações acima expostas pode se notar que
os conceitos a respeito do caipira tecidas pelo pré-modernismo de Monteiro
Lobato equivoca-se em vários pontos, pois o caipira não se caracteriza nem
como uma ―Velha Praga‖ como seu texto é intitulado e muito menos como um
49 SANT‘ANNA. Romildo. Moda é viola: Ensaios do cantar caipira, 2 ed São Paulo : Arte e
Ciência. 2009
30
entrave para o avanço da modernidade visto que sua imagem é recuperada
com o movimento modernista de 1922, e a sua imagem de indolente, sujo e
doentio é promovida a um dos símbolos de nacionalidade como pode-se
observar no sub-capítulo abaixo.
31
1.2 _ O caipira analisado através de uma nova ótica: as
considerações do movimento modernista de 1922.
No início da década de 1920 o cenário tanto político como cultural
adquiriu uma nova dinâmica ao incorporar as novas idéias e representações
que tangia a definição de nação, apresentadas pelo movimento Modernista que
ao contrário do pré-modernismo - que mantinha seu contrato apenas com o
novo, relacionado à tecnologia e a idéia de que o avanço viria acompanhado do
imigrante branco europeu.
O movimento modernistas de 1922 propõe uma nova perspectiva de
modernidade, sendo que, tornar-se moderno é encontrar-se em um ambiente
que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e
transformação das coisas ao redor e, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o
que sabemos e tudo o que somos50. Desse modo, surge a preocupação da
criação de uma identidade nacional, ocorrendo uma intensa busca das origens,
pois os intelectuais modernistas voltam seus olhares para a cultura popular, em
especial para o interior do país e as periferias dos grandes centros urbanos
onde a cultura popular ainda não havia sofrido influências externas e estaria
em sua forma original, porque, dessa forma, a sociedade urbano-industrial não
teria a sua alma dissipada pelo advento da modernidade visto que estaria
sempre relembrado suas origens por estar mantendo contato com suas raízes.
Nessa perspectiva, alguns intelectuais modernistas junto a Mario de
Andrade51 voltam seus olhares para o interior do Brasil, como Renato
Almeida52, Heitor Villa-Lobos53 entre outros, com intuito de encontrar algo na
cultura popular que representasse essa identidade nacional.
50
BERMAN, Marshall. Tudo que é Solido Desmancha no Ar, A aventura na Modernidade. São Paulo, Ed Companhia das Letras 14 edição 1982. P 15
51 Mário Raul de Moraes Andrade, (São Paulo, 9 de outubro de 1893 — São Paulo, 25 de fevereiro de 1945) foi um poeta, romancista, crítico de arte, musicólogo da época do movimento modernista no Brasil e produziu um grande impacto na renovação literária e artística do país, participando ativamente da Semana de Arte Moderna de 22, além de se envolver (de 1934 a 37) com a cultura nacional trabalhando como diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo.
52 Renato Almeida foi nomeado diretor-executivo da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Publicou vários livros sobre música e folclore: e publicou inúmeras obras a respeito da temática.
32
Ao curvarem sobre o interior do Brasil, principalmente para o circuito
centro-sul, tais intelectuais se deparam com a figura do caipira sujeito simples e
isento de qualquer influência exterior ao seu meio, autêntico representante dos
anseios modernista por não conter em sua cultura valores que não pertencesse
ao seu meio. Portanto, o caipira, que até então tinha sua imagem depreciada
pelo movimento pré-modernista, é eleito um dos símbolos da nação o que
permitirá uma maior aceitação, por parte das elites urbanas, da música caipira,
facilitando o acesso das duplas caipiras, entre elas Alvarenga e Ranchinho, ao
rádio e a produção midiáticas de suas obras.
A proposta modernista de manter o contrato com o moderno e ao
mesmo tempo recorrer às origens para construir uma nacionalidade, é visível,
especialmente, nas produções cinematográficas da época, que apresentam
cunho nacionalista ao exaltar as peculiaridades da cultura brasileira, entre elas
o Samba, que com as políticas do Estado novo adquiri uma nova roupagem e,
por isso, é eleito o símbolo máximo de nacionalidade, uma vez que tal gênero
não representava mais o malandro indolente que vivia no morro, mas sim o
trabalhador honesto dedicado com o labor. Nesse período, o samba carioca
tem como sua principal porta voz à portuguesa radicada no Brasil Carmen
Miranda, que em suas performances artísticas nos apresenta uma baiana
estilizada com brocados e brilhantes e um arranjo na cabeça que pouco se
assemelhava as vestes e adereços das negras descritas na música de Dorival
Caymmi54. A música, ―O que, que a Baiana tem‖, resgata a raiz negra de nossa
cultura, dissimulada na cor branca de pele européia de Carmem Miranda55.
Assim como o samba carioca, a música caipira e o próprio caipira também
foram elevados ao status de símbolo de brasilianidade, o que permitiu a esse
novo cancioneiro e a sua canção serem representados nas produções
cinematográficas, visto que tal representação no cinema se torna mais uma
53
Heitor Villa-Lobos (Rio de Janeiro, 5 de março de 1887 – Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1959) foi um dos maestros e compositores brasileiro de maior expressão,dentre eles o arranjo da musica ―Luar do Sertão‖.
54 Dorival Caymmi nasceu em Salvador no dia 30 de abril de 1914 e faleceu no Rio de Janeiro, em 16 de agosto de 2008 foi cantor, compositor, violonista, pintor e ator brasileiro.
Compôs inspirado pelos hábitos, costumes e as tradições do povo baiano. Tendo como forte influência a música negra, desenvolveu um estilo pessoal de compor e cantar, demonstrando espontaneidade nos versos, sensualidade e riqueza melódica.
55 GARCIA. Tânia da Costa. O “IT Verde Amarelo” de Carmen Miranda (1930 – 1946). São Paulo: Annablume, FAPESP, 2004, p. 61.
33
insígnia do contrato entre arcaico e moderno, pois só é possível apresentar o
caráter rural brasileiro por o país estar em um momento de euforia urbano-
industrial e que tais aspectos não correspondiam mais com a realidade do país,
ou seja, seriam memórias distantes e não contribuíam mais para ameaça à
imagem diante do estrangeiro56. Assim, o caipira passa a delimitar a
urbanidade57 brasileira, pois ele se torna um molde a não ser seguido por quem
desejasse ser urbano e moderno algo apresentado para contemplação e
expurgação, não para ser seguido ou imitado. Com isso, a produção
cinematográfica brasileira se torna o arauto da representação da modernidade
perante o mundo com afirma Rosa Geni Duarte,
esses f i lmes demarcavam, portanto, um outro espaço de produção musical na cidade, emoldurado pela tecnologia representada pelo cinema. Apresentar um desses f i lmes signif icava muitas vezes, como já sal ientamos, a alocação de uma quantidade imensa de recursos - orquestra, coral, art istas, cantores. Mas eles representavam algo que se diferenciava do que se via nos demais espaços musicais, em que o contato se dava diretamente entre público e art istas - circos, cafés, teatros, festas populares. A técnica real izava esse afastamento, mas aproximava o público de algo que aos poucos se tornava um dos símbolos da modernidade - o cinema 58.
Dentre as inúmeras produções cinematográficas que abordam a
temática caipira e passam a representar no cinema o caráter do cancioneiro
caipira há mais de 30 filmes que possuem participação de Alvarenga e
Ranchinho, entre essas películas estão ―Fazendo Fitas‖ de 1935, ―Tererê não
Resolve‖ - 1938, ―Banana da Terra‖ - 1939, ―Céu Azul‖ - 1940, ―Laranja da
China‖ - 1940, ―Samba em Berlim‖ - 1943, ―Abacaxi Azul‖ - 1944, ‗Berlim na
Batucada‖ - 1944, ―Não Adianta Chorar‖ - 1945, ―Pif – Paf‖- 1945, ―O Cavalo
13‖ - 1946, ―o Malandro e a Grãnfina‖ - 1947, ―Folias Cariocas‖ - 1948, ―O
Mundo se Diverte‖ - 1948, ―É com este que eu vou‖ - 1948 e ―Carnaval em Lá
maior‖ de 195559.
56
TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O rural no cinema brasileiro. São Paulo: Editora Unesp, 2001 p 23
57 Ibidem
58 DUARTE. Rosa Geni. Múltiplas Vozes no Ar: o radio em São Paulo nos anos de 30 e 40. São Paulo. {s.n} 2000 p 43
59Disponível em:
34
Foi em 1935 no filme ―Fazendo Fita‖ 1935 (ver imagem 03 e anexo) sob
direção de Wallace Downey60, que Alvarenga e Ranchinho iniciam sua atuação
no cinema devido à desistência da dupla anteriormente convidada ―Mariano e
Caçula61‖. Isso ocorreu no momento em que o sobrinho de Cornélio Pires,
Ariovaldo Pires62 vulgo Capitão Furtado, responsável por selecionar o elenco
das produções de Wallace Downey, estava ensaiando o programa Cascatinha
do Genaro na emissora quando viu dois ―meninotes‖ passando com seus
instrumentos. Abordou-os e perguntou se eram violeiros, se cantavam no estilo
de Mariano e Caçula e se queriam participar de um filme. Pegos de surpresa e
espertos para não rejeitarem proposta boa, disseram sim para tudo63.
Posteriormente, a convivência com o mundo do cinema seria reproduzido em
suas sátiras políticas como pode-se ver na anedota abaixo:
R: Mas o cumpadi vancê vancê vancê ouviu a fita que tão anunciando que vai passa ai / A: Não / R: disse que uma fita que vai passa ai no no palácio parece / A: é / R: Fita de cinembra / A: ah fita de cinembra / R: vai passa ai / A: ah bom, eu gosto de fita de cinembra é bão /R: é feita, é feita em São Paulo essa fita / A: é / R: é / A: o diacho / R: o mocinho da fita é o Hugo Borgh / A: Hugo Borgh / R: é uma fita que vai passa ai no palácio / A: a é / R: a mocinha é o Armeida Prado /A: a há ta bão / R: o pai da moça é o Mario Tavares / A: rsrsrsrsrsr / R:Quem trabalha de bandido é o Luis Carlos Preste / A: é, não, os elementos são bão com a fita né cumpadi / R: o mocinho é o Hugo Borgh, já falei né / A: o mocinho, né é / R: o nome da fita é Adhemar foi minha ruina / A: re re re re / R: diz que é colorida a fita / A: colorida !! o que / R: diz que é uma produção Getulio Vargas / A: pro cê vê né / R: é o tar negocio / A: mais tamo nois na conversa / R: outra veis64
<http://translate.google.com.br/translate?hl=ptBR&langpair=en%7Cpt&u=http://www.imdb.com/
name/nm0236047/>. Acessado em: 08 jun. 2011 60
Produtor, diretor norte americano da companhia Sonofilmes. Produziu e dirigiu inúmeros filmes que contavam com um elenco formado por Alvarenga e Ranchinho e Carmen Miranda entre outros artistas de renome.
61 Dupla formada por Mariano Silva, o Mariano, nascido em Piracicaba/SP, no ano de 1910; e Rubens da Silva, também nascido na mesma cidade. Além de os irmãos terem participado da Turma do Caipira Cornélio Pires, eles foram os primeiros a gravarem um disco de moda de viola. A música que mais fez sucesso foi ‗Jorginho do Sertão‘, uma adaptação de Cornélio Pires, gravada em 1929.
62 Ariowaldo Pires, o Capitão Furtado, nasceu em Tietê-SP no dia 31/08/1907 e faleceu em São Paulo-SP no dia 10/11/1979; foi cantor e compositor de música caipira
63 NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: 34 1999. p 290
64 Programa 04/03/1947
35
A dupla caipira, dessa forma, iniciou seu contato com a indústria cultural
de forma distinta das demais, apesar de na época não haver muitas. Foi
somente depois de um ano da divulgação do filme supracitado que Alvarenga e
Ranchinho conseguem gravar o primeiro disco de 78 rotações pela gravadora
Odeon com a participação de Ariovaldo Pires. O disco possuía faixas Itália e
Abissínia do lado A e Liga das Nações do lado B. Ainda assim, é importante
salientar, que na época, que as produções do trio Alvarenga, Ranchinho e o
Capitão Furtado sofreram um aumento repentino dentro de um ano e meio, o
que fez com que os três saíssem do completo anonimato, em especial
Alvarenga e Ranchinho, para tornarem-se uma das duplas caipiras mais
conhecidas.
Em 1936, ano em que estreou na Casa de Caboclo65, a dupla foi
contratada pela rádio Tupi após uma apresentação em um programa de visita
e, especialmente, depois de serem ouvidos por Assis Chateaubriand, o chefão
das Associadas. Ela estreou na rádio Tupi como ―A Trinca do Bom Humor66‖,
programa que possibilitou, especialmente a dupla Alvarenga e Ranchinho, que
se consagrasse, além de ser convidada a se apresentar no Cassino da Urca,
ponto de encontro da elite carioca. As apresentações da dupla caipira para a
elite econômica e intelectual da capital federal alcançou tamanha aceitação que
suas apresentações perduraram por 10 anos encerrados em 1946 com o
fechamento do cassino, nessas constantes apresentações o repertório de
Alvarenga e Ranchinho apresentava as costumeiras sátiras, anedotas e
paródias musicais destinadas aos políticos, com severas críticas e uma boa
dose de bom humor destinos a sociedade moderna e aos elementos que
representam essa modernização, pois o humor não é um estado de espírito,
mas uma visão de mundo67. Tais críticas mescladas a um bom humor pode ser
observado na piada apresentada abaixo:
R:Sabe cumpadi veno as moça aqui eu lembrei de uma namorada que eu tive / A: è / R: Eu tinha uma namorada tão
65
A Casa de Caboclo foi fundada por Jararaca e Ratinho entre outros em 1931 com o intuito de
criar um espaço de promoção da canção nacional. 66
Ibidem p 291 67
SALIBA. Elias Thomé. Raízes do Riso: a representação humorística na história
brasileira: da Belle Époque aos primeiros Tempos do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 15.
36
bejoqueira / A: bejoqueira ? / R: Tão bejoqueira, Tão bejoqueira / R: que casião ela deu um beijo em mim com tanta força que eu engoli a dentadura dela / A: Nossa !!! / R: mais ela teve sorte / A: a é / R: Dia seguinte eu devorvi / Risadas ao fundo ..... R: rerê / R: você não ta bão não / A: eu num to bão memo não / R: o que houve / A: a uma sumana que eu to assim / R: é / A: eu vó conta pro cê / A: Cheguei em casa nove hora da noite / R:humm / A: eu fui atrais da muié minha e não encontrei a muié minha, esperei a muié minha até a meia noite e a muié minha num foi em casa / R: a muié minha / A: não a muié minha / R: ahh a muié sua / A: muié minha! eu só de uma família de gente brava eu só de uma família de gente que mata eu só de uma familia de gente pirigosa / R: humm / A: vancê viu fala naquele grande valentão que mato muita de gente o Lampião / R: vi fala, num conheci mais vi fala / A: mais viu fala no Lampião / R: vi A: eu sou irmão dele / R: há / A: só Lamparina / R: tá meio apagada em cumpadi / A: ta memo / Risos / A: mais se sabe que na mesma hora passei a mão num revorve e fui atrais da muié minha, / A: a cumpadre do céu, a três quatro quarteirão de casa encontrei a muié minha debaixo de um poste namorando um home / R: nossa / A: tomei providencia na hora / R: já sei mato os dois / A: não vortei pra trais e chamei um guarda / R: ué / A: seu guarda vancê toma providencia que a muié minha ta debaixo de um poste namorando um home / A: a cumpadre do céu seu guarda passou a mão no cassetete, seu guarda foi de cassetete na mão / R: sei / A: quando seu guarda chegou, ele não foi bobo correu / R: ReRê / A; mais a muié num deu tempo de corre não, / R: Rerê / A: com uma mão o guarda segurou a muié e a outra o cassetete óh lepó e lepó, lepo e lepo e lepo e lepo e lepo e lepo e lepo e lepo / A: eu vendo o guarda batendo na muié e eu todo satesfeito / A: e o guarda ta lepo e lepo, lepo e lepo, lepo e lepo, lepo e lepo, lepo e lepo / A: quando eu aproximei eu vi / R: é / A: a moça soltava sangue pela cara pela testa pela boca / R: nossa!!! / A: e o guarda tá lepo e lepo, lepo e lepo, lepo e lepo, lepo e lepo, lepo e lepo / A; ai quando eu cheguei pertim / R: o quê que houve / A: ai que eu fui vê / R: quê que é / A: num era a muié minha / R: nossa / A: falei seu guarda para, para que essa num é minha muié / A: o guarda respondeu: Num é a tua mais é a minha!68
Ao analisarmos as piadas da dupla expostas acima podemos observar
que ela demonstrou alguns aspectos do homem moderno que também passam
a serem criticados por Alvarenga e Ranchinho a luz de valores e
representações caipiras. Sob esse exame, devemos considerar o caipira não
se apresenta alheio a modernidade como afirma Monteiro Lobato, mas sim 68
Alvarenga; Ranchinho, Coletânea Raízes Sertanejas, São Paulo, EMI, 1998
37
integrante e crítico de tais valores que passam a orientar os anseios da
sociedade brasileira. Como se observa nas piadas aos elementos da
modernidade, quando expõem que o marido se sente traído e não se vinga da
suposta adultera e de seu amante, mas sim delega o problema à polícia,
símbolo da justiça e da modernidade humana. Nesse cenário, o policial,
incumbido de zelar pela paz e ordem na sociedade moderna, não se isenta de
recorrer aos antigos valores que não caberia mais em tal meio, ao castigar a
esposa adultere desmedidamente, como se pode notar na frase ―a moça
soltava sangue pela cara, pela testa, pela boca‖.
A partir dessas piadas Alvarenga e Ranchinho questionam até que ponto
essa suposta modernidade das relações sociais está incutido nas almas
desses homens que se posicionam como modernos, ou seja, existe mesmo
uma modernidade ou apenas uma modernização parcialmente importada de
outros países. Ao realizar essas críticas, a dupla Alvarenga e Ranchinho nos
demonstra a forma com que o caipira representa a modernidade e como ele
desconstrói os estereótipos erguidos ao seu redor, além de permitir que a
cultura caipira, livre de influências estrangeiras, corresponda aos anseios dos
intelectuais modernistas, como já foi citado acima. Diante dessa perspectiva, o
caipira, ao se tornar o representante da cultura nacional segundo Mario de
Andrade, apresenta-se como um termômetro que permite a realização de tal
análise ao ser comparado com os indivíduos da sociedade urbana moderna.
Ao realizarmos tal comparação entre o choque de valores entre o urbano
e rural, podemos verificar que o caipira e sua cultura representam o símbolo da
tradição e resistência à modernidade. Essa oposição a modernidade
apresentadas pela música caipira não é imparcial, pois esse caipira também
incorpora em si essa modernização das relações pessoais, um exemplo claro
dessa relação entre incorporação e crítica da modernidade, encontra-se na
dupla Alvarenga e Ranchinho tanto nos programas radiofônicos como já foi
mencionados acima, como também nas suas gravações, como podemos ver na
música ―O Divórcio vem Aí‖ 69 gravada em 1939 pela ODEON, em que a
música inicia-se com Ranchinho explicando a Alvarenga o seria o divórcio,
como demonstrado abaixo:
69
Letra da Música se encontra nos anexos deste trabalho
38
R:"Êta mundo véio, hein, cumpadre? / A:É... / R :Violinha boa, essa, hein? / A: Ah... / R: Especiar memo, hein / A: Especiar de boa, cumpadre / R: Ô cumpadre, / A: Ahn? / R: Sabe de uma notícia? / A: Ahn? / R: Tão dizendo que o divórcio vem aí... / A : Uai, o que é divórcio, cumpadre? / R: Num sabe o que é divórcio, rapaz? / A:Não! / R: Divórcio é ansim mais ou menos, né, pre exempre / R: Vancê casa cuma mulher, mais vancê vai, num gosta dessa mulher, né, então vancê larga dela e casa co outra, depois então vancê pre exempre num gostô mais dessa outra, vancê larga dessa e casa co outra / R: E ansim por endiante / A: Ansim que é divórcio, é? / R: O divórcio é ansim / A: Ô, que coisa, né cumpadre / R:Tá torto, hein, cumpadre? / A: Tá torto! / R: Ô cumpadre, falando em divórcio / R: Eu tenho uma letra que eu inventei dessa negócio do divórcio vem aí / A: É? / R: Cê qué fazê um duete aí? / A: Ora, cumpadre, vambora / R:Então duete aí / R: Eita violinha boa, hein, cumpadre? Dá inté vontade de dançá / A:Vamo lá, cumpadre70"
Na introdução dessa música é visível a costumeira sátira da dupla que
apresenta sua resistência a esse novo padrão social, quando afirma que tal
modelo esta ―Ta torto‖, ou seja, não se encaixa ao nível de sociabilidade
tradicional da cultura caipira. Dessa forma, é possível notar a resistência que o
caipira apresenta à modernidade, não que ele não a compreenda ou esteja
alheio a mesma, pelo contrário ele a compreende e a representa, como é
manifestado na definição de Ranchinho em o que seria o divórcio: ―Vancê casa
cuma mulher, mais vancê vai, num gosta dessa mulher, né, então vancê larga
dela e casa co outra, depois então vancê pre exempre num gostô mais dessa
outra, vancê larga dessa e casa co outra‖. Essa definição de divórcio contribui,
mais uma vez, para desmistificar o caráter de alienado as novas aspirações
sociais que é atrelado a figura do caipira, contrariando, assim, o que afirmava
Monteiro Lobato.
É interessante notar que ao mesmo tempo em que o caipira se posiciona
contra a esses novos padrões, como no caso do divórcio por ter sua cultura
arregimentada em uma profunda religiosidade católica, que não permite essas
práticas por ver o matrimônio como uns dos sete sacramentos que
fundamentam a prática do catolicismo, ele também começa a incorporar tais
padrões em sua visão da realidade, como apresentado por Alvarenga e
70
ALVARENGA E RANCHINO, O Divorcio Vem AI,
39
Ranchinho no fim da música exposta cima, ao dizer ―Quando o divórcio vier /
Vai ficar mulher de sobra / Eu vô me divorciar / E me livra de duas cobras /
Cascaver de minha mulher e Jaracuçu da minha sogra‖, ou seja, por mais que
o divórcio seja contrário as doutrinas religiosas ele possibilita ao caipira atingir
uma nova dinâmica social, em que mais uma vez encontra-se a resistência do
arcaico sendo submetida a modernidade.
No entanto, como se pode ver ao longo deste capitulo o caipira não
corresponde com as descrições desenvolvidas pelo pré-modernismo e
apresentadas nas palavras de Monteiro Lobato, nesse capitulo voltamos
nossas atenções para os conceitos criados em torno do caipira através de
outros pesquisados como Cornélio Pires, Antônio Cândido e Romildo
Sant‘Anna, assim como para os pequenos contos apresentados por Alvarenga
e Ranchinho nas anedotas e piadas mencionadas, em que é possível perceber
a sagacidade e astúcia do caipira em relação ao seu meio social. Na mesma
direção, no próximo capítulo nos debruçaremos sob a problemática que tange a
relação do caipira com o rádio e qual a influencia do movimento modernista
sobre tais aspectos, além de interpretar como a Indústria Cultura recebe tal
influência e a incorpora. Por fim, analisaremos a relação de Alvarenga e
Ranchinho com a política em especial com Getulio Vargas e o Estado Novo.
40
2º Capítulo: Interpretações, Performances e Tendências nas apresentações da dupla Alvarenga e Ranchinho.
41
2.1 – A consolidação e tendências da música caipira, nas interpretações das duplas Alvarenga e Ranchinho e Raul Torres e Florêncio. Alvarenga e Ranchinho iniciam sua carreira artística em 1933 já sob a
ressonância dos primeiros discos produzidos por Cornélio Pires em 1929, em
forma de matéria paga pela gravadora Colúmbia, pois nenhuma gravadora via
potencial de a música caipira alcançar altas vendagens. Dessa forma, Cornélio
Pires arca com os custos da prensagem do disco, lançando o com selo
vermelho ao qual não se referia a gravadora totalizando cerca de cinco mil
discos nesta primeira tiragem que teve sua produção esgotada em menos de
vinte dias. Dessa maneira, Cornélio pires se desataca como o pioneiro da
música caipira, tanto por ser o primeiro a gravar como por difundir as músicas
através das suas inúmeras apresentações realizadas no interior do Brasil, onde
com a sua turma formada por violeiros, catireiros e contadores de causos
(como pode – se vê na imagem 03 no fim desta pesquisa) divertiam o publico
por onde passavam, apresentando – se em circos, pequenos teatros ou
qualquer outro espaço que o município que a turma estivesse visitando
pudesse ceder.
Nessas apresentações Cornélio Pires por ter um amplo conhecimento da
cultura caipira em especial nos causos que permeava o imaginário rural no
período, intercalava entre uma musica e outra interpretada por sua turma
caipira com longos causos que prendiam a atenção e excitava a imaginação do
público ouvinte com sua performance onde mudava frequentemente sua dicção
salientando alguns aspectos o que permitia uma maior proximidade do publico
com a anedota contada.
Com base em sua apresentações Cornélio Pires constata a existência
de um público cativo a suas performances que a cada dia se ampliava mais
estando, desse modo, sempre com a casa cheia em todas as apresentações, o
que permitiu também a rápida vendagem dos discos que era feita pelo próprio
Cornélio ao fim de seus espetáculos, pois por se tratar de uma produção que
posteriormente seria conhecida como ―independente‖ a divulgação e a
vendagem ficava por conta de seu produtor e não mais da gravadora. Com
isso, nota – se que Cornélio Pires não era apenas mais um aventureiro no
42
ramo musical, pois ele conhecia muito bem a ressonância da música caipira no
interior do país e conseguiu visualizar o seu potencial comercial algo que a
Industria Cultural ainda não tinha estrutura para fazer no Brasil devido seu
caráter inicial, mas que posteriormente foi muito bem assimilado pelas
gravadoras o que gerou uma enxurrada de duplas e turmas caipiras lançando
seus disco no mercado fonográfico.
Assim como vimos acima nota – se uma grande semelhança na
estruturação do repertorio entre Alvarenga e Ranchinho e Cornélio Pires, pois
ambos se baseiam não apenas nas apresentações musicais, mas sim em uma
performance recheada de piadas, parodias e anedotas algo que atraia grande
atenção do público principalmente por se tratarem de performances cômicas,
onde Alvarenga e Ranchinho se diferenciam pela sátira política algo que
Cornélio Pires não desenvolvia em seus espetáculos.
Contemporâneo as apresentações tanto de Cornélio Pires quanto de Alvarenga
e Ranchinho cabe citar a dupla Jararaca e Ratinho que apesar de não
pertencerem ao circuito caipira delimitado por Darcy Ribeiro, também se
tornaram importantes interpretes da música caipira tendo seu repertorio
semelhante ao de Cornélio Pires junto às anedotas, parodias e o grande
volume de piadas, mas assim como Alvarenga e Ranchinho também possuem
uma ampla quantidade de sátiras políticas que permeiam seu repertorio.
No entanto a dupla Jararaca e Ratinho se diferenciam de Alvarenga e
Ranchinho principalmente por sua indumentária, pois em nenhum momento da
sua carreira eles fazem uso do conhecido traje caipira formado pelas roupas
remendadas, as botinas e o chapéu de palha, seguindo uma linha que se
aproxima do ―vagabundo‖ interpretado por Chales Chapilin (como pode se vê
na imagem 04 no fim deste trabalho).
Neste mesmo período, mas apresentando outra representação do
caipira e um repertorio oposto ao desenvolvidos pelos interpretes citados até o
momento se destaca a dupla Raul Torres e Florêncio com uma indumentária
que não lembra em nada o caipira representado até o momento pelas outras
duas duplas. Pois, Raul Torres e Florêncio aproximam – se ao vestuário do
gaucho dos pampas trajando botas de cano longo, bombachas, lenço no
pescoço e abandonando o chapéu de palha (ver figura 05 em anexo) algo que
não fazia referência ao caipira descrito por Monteiro Lobato. Junto a tais
43
representações Torres e Florêncio fundamentam seu repertorio apenas em
interpretações musicais, com uma temática voltada para as tradições rurais, as
narrativas épicas dos peões de boiadeiro heróis que desbravam os sertões
bravio do país a fora, diferentemente de Alvarenga e Ranchinho que em suas
músicas nem sempre está explicito o seu caráter rural como nas músicas
―Drama de Angélica‖, ―Racionamento de Gasolina‖ e ―O Divorcio vem ai‖(letras
das canções se encontram no fim deste trabalho) .
Pois como afirma o pesquisador Lucas Antonio Araujo Raul Torres e Florêncio
apresentam uma nova perspectiva a musica caipira:
Raul Torres e Florêncio representam um olhar sobre o homem do campo, na trajetória da música sertaneja tradicional, bem distinto tanto da difundida imagem do Jeca Tatu quanto de suas ramificações como Alvarenga e Ranchinho. Terão como um dos principais personagens das narrativas de seu repertório, sempre pintado com cores de herói, o boiadeiro, o homem vinculado à tradição da pecuária.71
Assim Raul Torres e Florêncio apresentam uma nova perspectiva da música
caipira ao mercado fonográfico que se consolida junto as representações
defendidas por Alvarenga e Ranchinho, criando assim duas tendências da
música caipira, como afirma Araujo:
Foram as que mais se destacaram no que se pode definir como a primeira fase da música sertaneja, após sua consolidação como um filão promissor para rádios e indústria fonográfica. Alvarenga e Ranchinho e Raul Torres e Florêncio são duplas representantes, cada uma, de tendências distintas e que inspirariam padrões no gênero nascente. Ambas se tornaram símbolos, mas só uma se tornaria referência para as duplas posteriores da música sertaneja tradicional e outra se tornaria símbolo urbano de certa representação do ―caipira‖. Claro que a separação entre elas não foi absoluta, mas referente à características do conjunto da obra de cada uma, de sua ―marca‖ e baseada nas recorrências e continuidades, características que se repetem em diversas canções. Refere-se, enfim, à imagem que cada uma construiu de si mesma.72
Apesar de ambas as duplas consolidarem tendências distintas apenas
a apresentada por Raul Torres e Florêncio se consolidará terá continuidade
71
ARAUJO, Lucas Antonio de. A Representação do Sertão na Metrópole a Construção de
um Gênero Musical (1929 – 1940). Franca {s.n} 2007 p 84 72
Ibidem p 74
44
através de varias duplas de grande sucesso que os sucederam entre elas
Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, Pena Branca e Xavantinho entre
outras.
Embora a tendência apresentada por Alvarenga e Ranchinho não
tenha tido continuidade com outras duplas, isso não significa que seu trabalho
não teve relevância e sim que tais aspirações não refletiam mais as
necessidades da Indústria Cultural tanto que a carreira da dupla alcançou
pouca expressividade na televisão nada comparado ao radio, pois com a
modernização da música caipira que se transformará em ―sertanejo‖ ou
―sertanejo raiz‖ como é defendida por alguns estudiosos, o caipira havia se
tornado algo do passado que não refletia mais a realidade do período. Dessa
forma, entre as duplas mantêm – se a temática rural, mas muda – se a
representação em torno dela, ou seja, não era necessário encarar os
estereótipos do Jeca Tatu descrito por Monteiro Lobato por que o campo
também havia se modernizado e os aspectos característicos do caipira como a
preguiça, a falta de providencia, doença e a ingenuidade haviam sido
dissipadas, então o caipira característico descrito por Rosa Nepomuceno não
existia mais:
Alvarenga e Ranchinho encarnaram o estereótipo já mencionado do caipira. Procuravam valorizar este ―tipo humano‖, mas partindo da premissa pejorativa sintetizada e difundida por Monteiro Lobato. Vestiam-se como o Jeca Tatu, com roupas remendadas, chapéu de palha desfiada nas abas e os dentes pintados para darem a impressão de que caíram. Representavam o papel deste Jeca, mostrando-se sempre simplórios, exaltando uma certa malícia que proviria da consciência da própria ingenuidade.73
Desse modo, como tais perspectivas descritas acima não se referiam
ao período destacasse então as narrações épicas interpretadas por Raul
Torres e Florêncio e seus sucessores que citamos acima. Música a qual refletia
os valores da sociedade rural, como a moral, religiosidade, os amores sinceros
a importância família e por fim representaria o herói valoroso que imbuído dos
valores aqui citados seria responsável pela domesticação de um sertão bravio,
herói esse que é materializado na figura do peão de boiadeiro.
73 NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: Editora 34,1999. P
287
45
No entanto, mesmo com a mudança dos anseios da sociedade tanto urbana
quanto rural moderna não se pode descartar a importâncias desses pioneiros
da música caipira que tiveram a função de abrir espaço para a música caipira e
suas diversas interpretações.
46
2.2 – A representação do caipira através das performances de
Alvarenga e Ranchinho.
Alvarenga e Ranchinho se destacam entre os demais por terem sido a
primeira dupla caipira a ter seu trabalho divulgado através das ondas
radiofônicas no início da década de 1930, estreando na Rádio São Paulo, pelo
convite do maestro Breno Rossi que os acompanhavam desde suas atuações
na companhia de Teatro Trololó. Antes da década de 1930, Alvarenga, em uma
entrevista realizada na TV Cultura em 1973, relata a dificuldade que as duplas
caipiras tinham em cantar no rádio, como exemplificado pela dupla, acerca de
um fato curioso ocorrido em sua carreira em relação às dificuldades de se
apresentar nas rádios:
A: nois então loco pra canta em radio e não consegui né, então nois fomo La na Rádio Record daquele tempo o diretor era o Marcelo Tupinambá era o Cesar Ladeira era o Tiofilo de Andrade, de Andrade memo Tiofilo Vasconcelos ? / R: Acho que isso memo / A: Ai fomo lá falamo com o diretor o Cesar ladeira falo: Vamo ouvi então. / A: levo nois no estúdio, nois cantamo e eles gostaram bateram parma, todo mundo ria batia parma. / A: pensei oh, o pesoar ta gostando / A: então marcaro o nosso programa pra quinta feira, então quinta feira avisei a famiada toda pra fica ouvindo o programa né. / A: Chequei lá na quinta feira, eles até tinha esquecido combinado com ... , mais em todo caso o caseiro disse vamo que ta quase na hora, vamo que chegamo lá pegou um paper e leu lá vai estréia a dupla Alvarenga e Ranchinho nois cantamo meia hora apraudiram, anuciaram lá um anunciante que eu nem me lembro mais qual é. / A: Bom, Terminei nois fomo pra casa, cheguei em casa perguntei seis ouviram? / Família: ouviram o que? Nessa hora não tenha nada tinha outro programa. / R: Tava desligado o microfone / A, R: Re, Rê / A: essa foi a maior que a Rádio Record fez com a gente74
Alvarenga ao relatar a sua primeira experiência com o rádio deixa clara a
dificuldade que as duplas caipiras tinham em conseguir um espaço na
programação radiofônica antes de meados da década de 1930, sendo o rádio
um dos símbolos da modernidade técnico-industrial, dessa forma, a imagem do
caipira não correspondia a tal cenário. Pois, ainda existia uma resistência por
parte das elites letradas, donas dos meios de comunicação, que voltam as
74
Programa TV Cultura de 1973
47
atividades radiofônicas exclusivamente para os programas de cunho erudito, os
quais não atraiam a atenção da grande maioria da população e, desse modo,
também não seria cabível aos artistas populares obter um espaço junto às
programações pré-estabelecidas. Esse cenário começou a ser alterado com os
esforços dos modernistas da semana de 1922, como afirma Rosa Geni Duarte:
É significativa também a atenção que a atividade radiofônica recebeu de intelectuais ligados ao movimento modernista, preocupados simultaneamente com o equacionamento dos termos moderno e nacional, seja dentro das discussões de nacionalização da arte, superando os limites impostos pelas vinculações a vanguardas européias, ou na formulação e propagação de uma língua que se queria ao mesmo tempo brasileira e coloquial75.
Pode-se notar, a partir dessa afirmação, que o rádio passaria a ser
enquadrado como o mediador entre o moderno e nacional, ou seja, caberia a
radiofonia decidir o que seria usado para construir com o nacional, visto que o
moderno já estava estampado no imaginário urbano no período e irradiava do
Rio de Janeiro, capital administrativa e cultural da República no período. No
período que antecedera a década de 1930, o rádio era idealizado como uma
espécie de teatro burguês, com músicas clássicas, leituras de longos textos
literários, recitações poéticas e discursos políticos intermináveis, o que
demonstra que sua estrutura era precária e o conteúdo tedioso76.
Ao lado dos programas de cunho erudito destacou-se também a
programação educativa, tanto que em 1923, Roquette Pinto ao lado do
professor Henrique Morize77 e outros membros da Academia Brasileira de
Ciências, colocaram em prática seu plano de utilizar o rádio a serviço da
educação, fundando a primeira emissora brasileira de radiodifusão denominada
75 DUARTE. Rosa Geni. Múltiplas Vozes no Ar: o radio em São Paulo nos anos de 30 e 40.
São Paulo. {s.n} 2000. 76
SEVCENCO, Nicolau; NOVAIS, Fernando. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos no Rio.
In: Novais, Fernando (Coord); Sevcenco, Nicolau (Org) História da Vida Privada no Brasil: República: da Belle Époque à Era do Radio. São Paulo: Copanhia das Letras, 2004, p. 588.
77 Ambos eram idealizadores da radiofonia como ferramenta para educação dos brasileiros que
residiam em regiões mais longínquas
48
―Rádio Sociedade do Rio de Janeiro78‖. Entretanto, a emissora criou uma
antítese em torno de sua fundamentação, pois tendo como objetivo educar a
grande maioria da população analfabeta brasileira, que não tinha nenhum
acesso à cultura letrada, além de residir nos confins do interior do Brasil, lugar
em que é possível chegar somente por meio das ondas de rádio, não
perceberam que, nesse período, os aparelhos receptores das ondas
radiofônicas possuíam um alto valor o que excluía automaticamente a maioria
da população analfabeta de baixa renda que era maioria no Brasil. Portanto, a
radiofusão caminhou vagarosamente ao longo da década de 1920, somente
entre 1923 e 1926, com o barateamento dos receptores, que o acesso ao rádio
sofreu uma consolidação e ampliação, tanto que o número de aparelhos
receptores subiu de 536 para 30 mil unidades79. Assim sendo, foi da década de
1920 que o rádio inaugurou uma nova era, no que diz respeito à dinâmica
social e a formação do cotidiano, pois antes todas as pessoas tinham uma voz
incessante que lhes falava de dentro do corpo que construíam suas
representações e moldavam assim suas ações, essas vozes que os teólogos e
filósofos chamam de ―consciência‖ e que por sinal era grandemente severa e
‗sem graça‘, e com o advento do rádio, milagre dos milagres da tecnologia,
essa voz tétrica foi substituída pela voz das abençoadas, as irresistíveis, as
diabólicas irmãs Miranda80. A partir dessa época, o rádio começa a se
transformar em um bem de consumo indispensável, principalmente ao que
tange ao lazer do dia a dia dos ouvintes, conquistando, assim, definitivamente
seu espaço junto ao lar das famílias brasileiras.
A partir de 1932, com os esforços dos intelectuais modernistas, a
radiofonia no Brasil adquiriu uma nova dinâmica, nesse ano por meio do
decreto 21.111 de março de 1932, que completava o de número 20.047 de
maio de 1931, a propaganda comercial no rádio passa a ser permitida, o que
78
JORGE, Sônia. Rádio, Modernidade e Sociedade em Ribeirão Preto 1924 – 1937. Franca
{s.n} 2007.
79
JORGE, Sonia. Rádio, Modernidade e Sociedade em Ribeirão Preto 1924 – 1937, Franca
{s.n} 2007 p 51 80
SEVCENCO, Nicolau; NOVAIS, Fernando. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos no Rio.
In: Novais, Fernando (Coord); Sevcenco, Nicolau (Org) História da Vida Privada no Brasil: República: da Belle Époque à Era do Radio. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. P 586
49
era proibido até então, pois até esse momento as emissoras eram mantidas
através das contribuições de sócios e apaixonados pelo novo artefato. A partir
do início da década de 1930 já havia mais de 29 emissoras em todo o Brasil,
isso ocorreu devido ao fato de que, com o avanço do número de emissoras de
rádio e com a ampliação da cobertura do sinal do mesmo pelo interior do país,
a mídia radiofônica passou a olhar a grande parcela da população que ainda
não tinha acesso ao aparelho devido ao seu preço exorbitante, o que o
restringia a um grupo seleto de ouvintes justificando assim, a grande
quantidade de programas voltados para temática erudita que existia até essa
época.
Devido a esse novo cenário, as relações entre radiofonia e mercado
passam a se estreitar, ao mesmo tempo em que ocorre uma inversão no
quadro social, pois a população de maioria rural estava migrando em direção
aos centros urbanos em decorrência da crise do café e da ampliação do parque
industrial, conseqüente dos investimentos do poder público, o que proporcionou
uma nova dinâmica ao mercado interno81.
Com o aumento populacional urbano e a ascensão da radiodifusão junto
ao mercado brasileiro, torna-se necessário fazer com que o rádio fosse algo
indispensável para todos os níveis sociais, ou seja, a partir desse novo
contexto em que a sociedade brasileira encontrava-se, fez-se imprescindível
criar uma grade de programações que despertasse o interesse nos mais
variados indivíduos, além de tornar o aparelho receptor acessível à grande
parcela da população. Dessa maneira, nota se um crescente espaço dos
programas humorísticos que estavam sempre vinculados ao anúncio de algum
produto, visto que o humorista deveria divulgá-lo, especialmente quando se
tratava de algum produto de difícil veiculação, como purgantes, roupas íntimas,
reguladores menstruais entre outros82. Nesse tocante, entre os anos de 1939 a
1946 cerca de 40% dos programas da Rádio nacional do Rio de Janeiro que
iam ao ar eram humorísticos83.
81 Ibidem, p. 11. 82
SALIBA. Elias Thomé. Raízes do Riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros Tempos do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 P 223
83 Ibidem, p. 289.
50
Sob essa perspectiva, é interessante notar que, nesse período,
principalmente a figura do caipira foi extremamente explorada pela radiofonia,
uma vez que o riso surge de uma ruptura, ou seja, algo que não se remete a
realidade, ―como no famoso exemplo de uma velha já decrépita que se cobre
de maquiagem, veste-se como uma moça e pinta os cabelos84‖. Esta velha
senhora da anedota se torna motivo de risos porque ela não representa uma
respeitável senhora, gerado uma ruptura das expectativas de quem a observa
o que é motivo de risos [que está acompanhado de um sentimento de
superioridade85.] Nesse aspecto. Alvarenga e Ranchinho pautam suas
apresentações na criação dessa ruptura, principalmente ao falar errado e ao
utilizar a indumentária caipira com o chapéu de palha, as camisas xadrez e as
botinas, que não correspondiam com o vestuário do homem moderno, desse
modo, surge o sentimento de superioridade que acompanha a ruptura das
expectativas originando o riso. Assim sendo, a dupla incorpora em si a
representação do caipira criada nos centros urbanos e, deste modo, utiliza o
humor como principal ferramenta para a desconstrução dos estereótipos que
envolvem a cultura caipira, pois como afirma Elias Thomé Saliba ―o humor
também foi utilizado, na maioria das vezes, para destruir, modificar e
desmistificar tipos e estereótipos86‖.
Devido a isso, a dupla Alvarenga e Ranchinho conquistam
definitivamente seu espaço no rádio e passam a engrossar a lista de
programas humorísticos da Rádio Nacional do Rio de Janeiro de 1947 a 1948,
o que permitiu que através das piadas, anedotas e sátiras que em sua grande
maioria eram de cunho humorístico, permite dessa forma, que se entenda
como modificavam e desmistificavam os estereótipos através do riso como nota
– se na exemplificação de Elias Thomé Saliba.
Partindo das premissas salientadas acima torna – se imprescindível
compreender essa desconstrução do estereotipo caipira através do viés
político, que fundamentou a atuação de Alvarenga e Ranchinho principalmente
em relação a Getulio Vargas que foi constante alvo das criticas da dupla,
84
Ibidem, p. 24. 85
Ibidem 86
SALIBA. Elias Thomé. Raízes do Riso: a representação humorística na história
brasileira: da Belle Époque aos primeiros Tempos do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 32.
51
evidenciando a representação do caipira a respeito dos aspectos políticos,
econômicos entre outros.
Ao abordar os aspectos políticos representados na visão da dupla
caipira Alvarenga e Ranchinho cabe lembrar que o programa ao qual se aborda
é apresentado após o fim da ditadura de Getulio Vargas algo que não significa
que ao longo da ditadura de Vargas a dupla foi mais aprazível para com a
figura do ditador, como pode – se citar as inúmeras músicas críticas que foram
destinadas a Getulio e seu corpo administrativo que fizeram Alvarenga e
Ranchinho pernoitar várias noites na cadeia, perseguidos pelo Departamento
de Imprensa e Propaganda (D.I.P) responsável pela censura dirigido por
Benjamin Vargas irmão do presidente Getulio Vargas, nesse tocante pode – se
citar em especial duas músicas, Liga dos Bichos gravada em 1936 sendo um
dos primeiros discos da dupla ao qual compara o corpo administrativo do
governo Vargas a animais, na música Racionamento de Gasolina gravada em
1942 que o próprio nome diz refere – se a falta de gasolina contrapondo
novamente o contraste entre arcaico e moderno87. No que se refere à sátira, a
dupla transborda criatividade realizado, verdadeiras crônicas sociais ao
descrever as esferas econômicas, políticas e culturais que compõe o cenário
nacional. Assim nas sátiras elencadas abaixo, pode – se notar alguns dos
elementos que passaram a compor a realidade política e econômica do Brasil
após o fim da ditadura de Getulio Vargas na representação da dupla, mais uma
vez demonstrando que o caipira não se coloca em momento algum estranho
aos aspectos políticos:
Salada Política Quem não conhece esse baixinho / tão gordinho / que agora ta quetinho / já morou La no Catete quinze ano / hoje ta só urubuservando / já fez baruio e decreto indiscreto / no tempo que ele reinou / fez promessa pra São Borja foi eleito / e São Paulo lhe ajudou / e na assembléia sentado da boas gargaiada / de ver a confusão de tanta paiaçada / Marcondes com a força da traquéia esse Barreto pinto avacai com a assembléia / todo mundo diz que sofre, sofre, sofre nesse mundo mais o Luiz Carlos Preste sofre mais / quando que faze comício é com autorização / e bem tristonho ele canta essa canção: Eu vou / eu vou / eu vou / eu vou até Moscou / tão jodiando de mim / vou me queixa ao Stalin
87
As letras das canções se encontram nos anexos desse trabalho.
52
Será / será / será o Benedito / será esse o meu fim oi será / cantando uma varsa anssim / Ó Minas Gerais / Ó Minas Gerais / outra mamata não pego jamais / O Minas Gerais O brigadeiro agora canta assim / adeus amigos companheiros de campanha / o Mangabeira / Oswaldo Aranha / o que eu mais sinto foi o que me fizero / por ser sincero veja só o que eu perdi / so Brigadeiro e nunca falei e marmitero / isso é invenção do Hugo Borghi / eu vou me imbora tristonho e derrota / mais deixo um grande abacaxi88
Pirata da Perna de Pau Eu sou Getulio já fui ditador / com voto dos troxa / eu sou senador / Eu sou Getulio já fui ditador / com voto dos troxa / eu sou senador / minha galera em quinze ano de navegação / trouxe a miséria / o cambio negro / e a inflação / por isso eu sou pai dos pobre / mão dos ricos e dos tubarões / ao Borghi eu dei muita ropa / ropa / de argudão89.
Nas duas parodias citada acima encontra – se a descrição bem humorada do
cenário político pôs – Getulio segundo a representação de Alvarenga e
Ranchinho, onde iniciam a sua sátira fazendo uma descrição caricata de
Vargas acentuando suas características físicas, e resumem a medidas
tomadas por Vargas ao longo de 15 anos de governo como ―já fez decreto
indiscreto no tempo em que ele reinou‖, ou seja, acentuam o caráter autoritário
ao referir – se ao governo como reinado e as medidas que fogem a esfera
publica interferindo na privada. Dessa forma, continuam sua sátira referindo –
se as eleições de 1946 onde Getulio Vargas é eleito deputado em 10 estados e
senador em dois, onde ressalta –se que apesar de o ex – ditador ter feito sua
promessa a São Borja que lhe ajudou mesmo foi São Paulo, mais não o santo
e sim o estado ao qual foi eleito senador. Em seguida, Alvarenga e Ranchinho
fazem referência a atuação de Getulio na Assembléia, e descrevem tal atuação
da seguinte forma, “na assembléia sentado da boas gargaiada, de ver a
confusão de tanta paiaçada”, ou seja, ao se utilizarem o termo ―na assembléia
sentado‖ demonstram a imobilidade de Vargas a passividade e o desinteresse
para com o novo cargo ao qual apenas se divertia mediante as tramas
políticas, em especial o caso de Barreto Pinto que na sátira de Alvarenga e
Ranchinho ―avacaia com a assembléia‖, pois Edmundo Barreto Pinto eleito pelo
PTB no Rio de Janeiro, sendo o primeiro deputado a ser caçado no Brasil por
88 Trecho do Programa do dia 04/03/1947. 89
Trecho do programa exibido dia 24/12/1948.
53
falta de decoro parlamentar, Barreto Pinto almejava a fama, ficar conhecido em
todo o Brasil, algo que seria extremamente difícil no que dependesse de sua
atuação política, pois sempre se manteve apático as atividades da assembléia.
Para isso, ele procurou a dupla de repórteres mais requisitados da época.
David Nasser e Jean Manzon marcaram época no jornalismo brasileiro, com
reportagens que fizeram da revista O Cruzeiro um sucesso editorial. A
reportagem seria algo simples: apresentar um deputado que circulava com
desenvoltura pela alta sociedade carioca. Para criar um clima de glamour, os
jornalistas sugeriram que o deputado posasse de casaca, o que foi
prontamente aceito. Mas David Nasser também fez uma outra sugestão a
Barreto Pinto, como estava um dia de muito calor no Rio de Janeiro, então o
próprio repórter e o fotógrafo disseram ―nós só vamos fotografar o senhor no
plano americano, da cintura pra cima. Se quiser não precisa vestir a calça não,
está muito calor‖. E ingenuamente, o Barreto Pinto aceitou. Eles queriam
mesmo uma coisa ridícula e fotografaram o Barreto Pinto de casaca da cintura
pra cima, com gravatinha branca e tudo, mas de cueca90 (imagem 07). Dessa
maneira, Alvarenga e Ranchinho direcionam sua sátira se referindo a Luiz
Carlos Prestes, que no período já havia sido libertado pela anistia com o fim do
Estado Nova mais ainda estava longe de alcançar a Revolução almejada por
ele e pelos outros integrantes da Intentona Comunista, movimento que o levo
para prisão em 1934, e que devido à perseguição mesmo após o fim da
ditadura de Getulio Vargas, fechou seu partido novamente e agora só lhe
restava se queixar ao Stalin como ironiza Alvarenga e Ranchinho.
Na última estrofe da sátira a dupla volta se referir a Getulio Vargas, onde
se despede saudosamente tanto dos aliados como da oposição que são
representados por João Mangabeira ferrenho opositor ao governo Vargas e
Oswald Aranha aliado de Getulio desde o golpe de 1930, por fim Alvarenga e
Ranchinho terminam sua crônica social descrevendo os acordos políticos
realizados por Getulio Vargas no fim do seu mandato, onde expressa se a
insatisfação do ex – ditador nos acordos mediados por Hugo Borghi que o
convenceu a apoiar para presidência da República Eurico Gaspar Dutra e não
o Brigadeiro Eduardo Gomes ao afirma em um discurso no Teatro Municipal do
90
http://www.camara.gov.br/internet/radiocamara/?selecao=MAT&Materia=28633 acesso em
13/07/2011
54
Rio de Janeiro que ―Não necessito dos votos dessa malta de desocupados que
apoia o ditador para eleger-me presidente da república!”. No entanto, tal
discurso foi logo manipulado por Hugo Borghi que divulgou nas midias que o
Brigadeiro afirmava que ―Não precisava dos votos dos Marmiteiros‖, o que
contribuiu para a derrocada do Brigadeiro nas urnas. Com isso, Getulio encerra
seu mandato deixando um grande abacaxi que seria o seu sucessor o
Presidente então Eleito Eurico Gaspar Dutra.
Em seguida na música Pirata da Perna de Pau a dupla faz uma breve
critica aos aspectos econômicos da administração de Vargas, demonstrando
mais uma vez a interação do caipira com o ambiente urbano moderno,
principalmente ao destacar aspectos como o cambio negro e a inflação e a
relação de Getulio Vargas como pai dos pobres e mãe dos tubarões,
ressaltando assim, a política que caracterizou o governo de Vargas. Dessa
forma, pode – se notar partindo das analises das duas parodias citadas acima
a tamanha interação que a dupla possui com o cenário político, social e
econômico que são representadas nas estruturas de suas sátiras e parodias,
permitindo contrapor alguns estereótipos existentes em torno do caipira.
Seguindo as apresentações de algumas sátiras do programa
Radiofônico de Alvarenga e Ranchinho transmitido pela Rádio Nacional,
elencamos duas crônicas abaixo um que aborda a opressão do estado novo
em relação a produção cultural e o outro descreve alguns artigos da nova
constituição ambos dotados de um forte critica e bom humor como pode – se
ver abaixo:
Nos outros que trabaiamo tanto para paga tanto imposto sem pode reclama Olha no rancho grande onde nois dois vivia / (...) / era maravia sem trabaia cumia de noite nois bebia / o que manito ? Whiskiii / esta noche eu me emboracho me mamo de mama pra no pensar/ no amor / amor/ amor / amordaçado amortecido amortaiado / amor, amor, amor. Beijamim beijamin Vargasmente / Beijamin constitucionalicimamente / beijamim escutia a minha venga / no esta gente / que tempo bom foi aquele de antigamente91
Na sátira salientada acima Alvarenga e Ranchinho a apresentam em um
portunhol, transmitindo a idéia que o fato que estão narrando não se refere a
realidade nacional, mas em contra partida ao apresentar tal performance
91
Trecho do Programa de 04/03/1947
55
marcam sua narrativa em portunhol com um forte sotaque caipira, atribuindo
dessa maneira, um caráter cômico a sua performance. No entanto, nota – se a
referência a opressão e os abusos do estado já no primeiro parágrafo, onde o
individuo tem que aumentar seu ritmo de trabalho devido a carga tributaria que
consome com parte de seus ganhos, em contra partida o cidadão deve se
manter em silêncio para evitar problemas com os órgãos de repressão do
estado.
Em seguida, com um ritmo semelhante à música rancheira mexicana Alvarenga
e Ranchinho cantam a saudade do sertão, onde não era necessário trabalhar
nem para comer e ainda a noite era possível se embriagar com Uísque, bebida
ao qual em sua narrativa ele se utilizará para esquecer-se do amor, mas não
do amor sentimental, pois na narrativa ele usa a palavra amor na sua forma
primitiva para exemplificar algumas praticas do governo Vargas como o
amordaçamento, ou seja, a ausência da liberdade de expressão ao qual na sua
metáfora ele se considera amortalhado como um cadáver perante a sociedade.
Assim na última parte de sua sátira a dupla volta suas atenções novamente
para a figura de Benjamin Vargas irmão de Getulio e chefe do Departamento
de Imprensa e Propaganda órgão responsável pela censura no Estado Novo,
nessa última parte a dupla se refere ao nome de Benjamim como um amante
apaixonado que pede um beijo da amada, satirizando assim, a relação entre a
dupla e o Departamento de Imprensa e Propaganda que tendia a se tornar um
romance permeado de brigas e desavença, mas ao qual um não vivia sem o
outro.
Por fim cabe ressaltar a abertura que os ouvintes possuíam no programa
de Alvarenga e Ranchinho, onde a dupla criava concursos de parodias e
sátiras e a vencedora recebia uma premiação em dinheiro e era apresentada
por eles no programa, como pode – se ver abaixo, ao qual a dupla apresenta
uma parodia enviada por um ouvinte, paródia que se aproveita da estrutura da
da música ―As Três Lagrimas‖ de autoria de Ari Baroso:
A: Aqui nois vai canta uma parodia que mandou seu Aureliano / J Aureliano / rua Odorido Mendes, 489, Campo Grande – Recife / oia cumpadi é de Recife / R: Recife longe em cumpadi / A: parodia da Música do Ari Barroso ―As Três Lagrimas‖ / R: è/ A: essa é bonita chorosa / R: chorosa / A: vamo lá então / R: sorta as lagrimas ai cumpadi
56
A: Eu chorei / R: choro uai, choro / A: déia eu chora cumpadi
num ataia não que a parodia é de chora memo / A: Eu chorei a primeira vez na minha vida / quando Getulio me trancafiou / e me deixou mofando muitos anos / cheio de pancada e desengano / lembro – me bem que a cela era tão fria e o guarda com bons olhos não me via e uma lagrima dos meus olhos escorria / R: eu chorei / A: há choro também / R: a tem que dá minha choradinha / R: Eu chorei pela segunda vez na minha vida / quando o armistício me sortó / eu era o cavaleiro da esperança / e tratei logo de me arancha com a ignorança / eu fiz comício e me fizeram senado / pra depois me chama de traído e outra lagrima dos meus olho rolo / A: pode chora cumpadi ? / R: então chora / A: Eu chorei pela terceira vez na minha vida / quando meu partido se fechou / e agora o que será de mim o que que eu vou dizer pro Stalin / quando me lembro que a coisa esta mudando / penso no xadrez que ta me esperando / e uma lagrima do meu zoio vai rolando92.
Ao longo da parodia elencada acima nota – se que o autor escreveu
uma breve biografia de Luiz Carlos Preste, iniciando com a tomada do poder
por Getulio Vargas na revolução de 1930, onde Luiz Carlos Preste como
membro atuante da oposição participando do PCB e da Aliança Nacional
Libertadora, dirige o que ficou conhecido como ―Intentona Comunista‖
movimento que tinha como intuito a derrubada do governo Vargas e a
instalação do comunismo no Brasil. Dessa maneira, tal movimento foi debelado
por Vargas, perseguindo e torturando os membros tanto do PCB como da ANL
o que leva Luiz Carlos Presta a ser trancafiado por nove anos.
Seguindo a biografia cantada por Alvarenga e Ranchinho em um
segundo momento a dupla refere – se ao fim do Estado Novo onde ―O
Cavaleiro da Esperança‖ como era conhecido Luiz Carlos Preste foi anistiado e
como se refere à dupla tratou logo fazer comício e se aliar com a ignorância, ou
seja, participar novamente da política, onde foi eleito senador atuando entre os
anos de 1946 a 1948, episódio ao qual foi considerado traidor por membros de
seu partido devido a sua atuação no senado que não correspondia com a
imagem de revolucionário sustentada pelo seu discurso.
Em um último momento ressalta – se ao fechamento do Partido
Comunista Brasileiro em 7 de janeiro de 1948 por determinação do governo
Dutra, onde são cassados os mandatos de todos os seus representantes e o
92
Trecho do Programa de 17/12/1948
57
partido jogado na ilegalidade novamente, ato que é satirizado pelo autor ao se
referir ao receio de Prestes a contar tal fato a Stalin, e através dessa medida
adotada por Dutra o autor da paródia prevê a futura prisão de Prestes na frase
―quando me lembro que as coisas esta mudando, penso no xadrez que esta me
esperando‖. Dessa forma, ao relacionar tal frase ao corpo da parodio o autor
atribui o caráter cômico a sua obra.
Como pode – se notar nas sátiras, parodias e anedotas citadas acima a
sua grande parte se dirigia para os aspectos políticos brasileiros em especial
ao governo Vargas, algo que se torna curioso que mesmo apesar da acidez
contida nas interpretações de Alvarenga e Ranchinho em 1939, a dupla foi
convidada por Alzira Vargas filha de Getulio para apresentar-se para o
Presidente Vargas no Palácio do Catete. Getúlio Vargas gostou tanto das
músicas e parodias da dupla que mandou suspender a perseguição a suas
composições políticas.
58
Considerações Finais
Alvarenga e Ranchinho se caracterizaram como uma das duplas de
maior relevância para a fundamentação da música caipira ou sertaneja raiz
como afirma o pesquisador Lucas Antonio Araujo93, nesse tocante Elias Thomé
Saliba94 também salienta a importância da dupla na configuração do rádio na
década de 1930 e 1940, seguindo a mesma perspectiva de Elias Thomé Saliba
a pesquisadora Rosa Geni Duarte95 que referencia a importância da dupla para
a conquista de espaço da musica caipira no rádio e por fim cabe citar Romildo
Sant‘Anna96 que em sua obra lembra a irreverência e o bom humor da dupla
com suas composições. Como pode – se notar com as referências acima
citadas a importância que a dupla Alvarenga e Ranchinho alcançaram nas
décadas de 1930 e 1940 para a formação da música brasileira.
Como pode se ver ao longo deste trabalho o Caipira em muitos aspectos
não correspondeu as aspirações descritas por Monteiro Lobato em ―Urupês‖,
pois ao analisar a trajetória artística representada por Alvarenga e Ranchinho
encontramos a antítese do caipira estereotipado pela sociedade urbana
moderna. Ao analisarmos as suas sátiras, parodias, músicas e anedotas que
se constituem em verdadeiras crônicas sociais, demonstram um caipira filho de
seu tempo atento aos anseios de seu meio.
No entanto, ao que se refere à relação do caipira com a modernidade
tanto defendida e desejada pelo meio urbano, nota – se que o caipira em
momento alguns esta alheio a seus aspectos e anseios, pois ele apenas se
coloca resistente a tal proposta como pode se ver na música ―O divorcio vem
Aí‖ em que tal padrão social não se encaixaria ao nível de sociabilidade
tradicional da cultura caipira, por se arregimentar em valores religiosos que
fundamentam sua cultura. 93 ARAUJO, Lucas Antonio de. A Representação do Sertão na Metrópole a Construção de
um Gênero Musical (1929 – 1940) Franca {s.n} 2007 94
SALIBA. Elias Thomé. Raízes do Riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros Tempos do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
95DUARTE. Rosa Geni. Múltiplas Vozes no Ar: o radio em São Paulo nos anos de 30 e 40. São Paulo. {s.n} 2000
96SANT‘ANNA. Romildo. Moda é viola: Ensaios do cantar caipira, 2 ed São Paulo : Arte e
Ciência. 2009
59
Dessa maneira, como contrapomos ao longo do trabalho pode – se
justificar a suposta preguiça e falta de providência elencada por Monteiro
Lobato, por se tratar de um sujeito ainda não inserido no modo de produção
capitalista não tendo aspirações para a grande produção de excedente, mas
apenas para o consumo próprio, ainda longe da carestia descrita por Lobato,
como pode – se notar ao dialogar com as outras obras citadas no primeiro
capitulo desta pesquisa.
Seguindo tal perspectiva cabe salientar a trajetória artística do caipira
tanto nas emissoras de Radio como nos cinemas ao qual foi muito bem
defendida pela dupla Alvarenga e Ranchinho chegando a representar eles
mesmo como na película ―Fazendo Fita‖ de 1935 como foi citada acima, tais
atuações permite compreender a tamanha interação do caipira com
modernidade, pois mesmo a encarando com resistência não significava que
estava completamente alheio, pois o cinema e o rádio se caracterizava como o
ápice da modernidade e da sociabilidade urbana, assim o caipira não era
apático a modernidade como um todo, mas sim a apenas alguns aspectos que
divergiam de sua cultura.
As atuações artísticas da dupla Alvarenga e Ranchinho se destacam de
grande relevância para a construção do cenário da música caipira no Brasil,
devido ao pioneirismo e o espaço que a dupla conquistou frente aos meios de
comunicação principalmente o rádio e o cinema o que permitiu que uma
infinidade de duplas trilhasse o mesmo caminho. Como foi citado ao longo
desta pesquisa Alvarenga e Ranchinho inicia sua carreira interpretando Valsas
e Boleiros, devido a pouca espaço existente nos meios de comunicação para
os interpretes da música caipira, isso mesmo após o apoio do movimento
modernista de 1922 e o sucesso dos discos de Cornélio Pires. Mas ao
realizarem sua performance a dicção da dupla despertava risos na platéia
decorrente do sotaque caipira vindo do som anasalado o que faz com que a
dupla insira algumas piadas a exemplo de Jararaca e Ratinho e posteriormente
passe a interpretar a música caipira e incorpore o figurino caipira como pode –
se notar nas imagens 1 e 2.
Alvarenga e Ranchinho ao incorporarem definitivamente a indumentária
caipira passam a desconstruir inúmeros estereótipos existentes em torno da
figura do caipira. Dessa forma, a presente pesquisa seguiu ao longo de seu
60
desenvolvimento para apresentar alguns aspectos das performances da dupla
que salientasse e que se contrapôs aos estereótipos criados em torno do
caipira.
Desse modo, a presente pesquisa não teve por intuito apresentar
respostas e soluções, mas sim problematizar e apresentar novas perspectivas
aos aspectos que tangem o universo da cultura e da música caipira que ainda
possuem uma produção acadêmica extremamente modesta, mas
qualitativamente importantes.
61
FONTES E BIBLIOGRAFICA
DISCOGAFIA SELECIONADA:
Alvarenga, Ranchinho. Itália e Abissínia/Liga das nações (1936) Odeon 78
__________________Lição de geografia/A moda do beijo (1936) Odeon 78
__________________Você não é o meu tipo/Você não era assim (1936) Odeon 78
__________________Repartindo um boi/A baixa do café (1936) Odeon 78
__________________Circuito da Gávea/Liga dos bichos (1936) Victor 78
__________________Vida de um condenado/Chalé furtado (1937) Victor 78
__________________Boi amarelinho/Moda dos meses (1937) Victor 78
__________________Italianinha/Violeiro triste (1937) Victor 78
__________________Devo e não nego (1937) Victor 78
__________________Semana de caboclo/A mulher e o telefone (1937) Victor 78
__________________Caboclo viajado/Adoração (1937) Odeon 78
__________________Balão/Roda na fogueira (1937) Odeon 78
__________________Moda do solteirão./Desafio (1937) Odeon 78
__________________Papagaiada/Seu Macário (1937) Odeon 78
__________________Calango/Rancho abandonado (1937) Odeon 78
__________________Seu condutor/Sereia (1937) Odeon 78
__________________Que horas são?/Linda Veneza (1938) Odeon 78
__________________Mandamentos de caboclo/Carnaval carioca (1938) Odeon 78
__________________Moda da moeda/Moda da carta (1938) Odeon 78
__________________Loja americana/Tudo em "p" (1938) Odeon 78
__________________Numa noite de luar/Paquetá (1938) Odeon 78
__________________Bombeiro/Oh! Bela! (1938) Odeon 78
__________________É de colher/Quando a saudade vem (1939) Odeon 78
__________________O mundo é das muié/Superstição (1939) Odeon 78
__________________Saudades de Ouro Preto/Adeus paioça (1939) Odeon 78
__________________Os presidentes/Chapéu de paia (1939) Odeon 78
62
____________________Psicologia dos nomes/Caboclo triste (1939) Odeon 78
____________________O divórcio vem aí/Nois e Buenos Aires (1939) Odeon 78
____________________Moda de guerra/Alegria do carreiro (1939) Odeon 78
____________________Musga estrangeira/Nois no Rio (1939) Odeon 78
____________________Quem quer meu papagaio?/Ferdinando (1939) Odeon 78
____________________Lá vem o trem/Marcha dos bairros (1940) Odeon 78
____________________Cai fora pato/Intão, inté (1940) Odeon 78
____________________Seresta/Gaúcho de lei (1940) Odeon 78
____________________Minas Gerais/Dona felicidade (1940) Odeon 78
____________________Sindicato das galinhas/Moda dos poetas (1940) Odeon 78
____________________Desafio de São João/Tempinho bão (1940) Odeon 78
____________________Carta da namorada/Tenderê (1940) Odeon 78
____________________Brasileiro apaixonado/Leonor (1940) Odeon 78
____________________Bala-lá-i-cá/Dinheiro novo (1940) Odeon 78
____________________Moda dos ispique/Lencinho paulista (1940) Odeon 78
____________________Suzana/Melhorou muito (1940) Odeon 78
____________________Ó minha mãe/Pode sê ou tá difício? (1941) Odeon 78
____________________Ó que coisa horrível/Caveira (1941) Odeon 78
____________________Tragédia de uma careca/Pega o pitp (1941) Odeon 78
____________________Moda dos cantores/Minha toada (1941) Odeon 78
____________________Bandeira do Brasil/A mulher e a carta (1941) Odeon 78
____________________Solta busca-pé/A fogueira tá queimando (1941) Odeon 78
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ANEXOS
67
IMAGENS
97 Imagem 01
97 NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: 34 1999. P 292
68
98
imagem 02
98
http://www.culturabrasil.com.br/midia/image/originais/alvarengaeranchinho_01_1278627238.jp
g ACESSO EM 23/05/2011
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99 imagem 03
99 NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: 34 1999. 292
70
100 Imagem 04
100
Disponível em http://www.google.com.br/imgres?q=corn%C3%A9lio+pires&hl=ptBR&as
=G&gbv=2&tbm=isch&tbnid=iO4N9l5lGRTDaM:&imgrefurl=http://apaginadavida.blogspot.com
/2010/07/corneliopiresomestreetnografoda.html&docid=mp2gMw7pQs93iM&w=550&h=540&e
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w=227&tx=113&ty=160&page=1&tbnh=109&tbnw=111&start=0&ndsp=20&ved=1t:429,r:8,s:0
&biw=1024&bih=567 acesso em 05 – 10 – 2011
71
101
101
Disponível em : http://bks1.books.google.es/books?id=rk2BO6sDiSQC&pg=PA36&img=1&zoom=1&s ig=ACfU3U0NKgsh52wQjN3Wc3NeCQo1d5OX8A acesso em 29/10/2009
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102 Imagem 06
102 Disponível em http://www.google.com.br/imgres?q=jararaca+e+ratinho&hl=ptBR&
gbv=2&tbm=isch&tbnid=mB1kR2oloY828M:&imgrefurl=http://www.forroemvinil.com/jararacae
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zoom=1&iact=hc&vpx=95&vpy=112&dur=2843&hovh=213&hovw=237&tx=155&ty=74&page=
1&tbnh=149&tbnw=151&start=0&ndsp=10&ved=1t:429,r:0,s:0&biw=1024&bih=567 acesso
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73
103
Imagem 07
103
http://www.almanaquedacomunicacao.com.br/noticias/649.html acesso em 15/07/2011
74
Músicas:
Racionamento de Gasolina
(Alvarenga e Ranchinho)
A crise da gasolina
Já tem dado o que falar
Vou dizer argumas coisa
Que eu já pude obeservar
Quem andava de ortomóver
A gastar a gasolina
Pra mode o racionamento
Hoje vai é na botina
Com a farta da gasolina
Muita gente virou atreta
Hoje tão fazendo força
Andando de bicicreta
Quem tinha barriga gorda
Hoje tem barriga fina
Os cuitado tem sofrido
Com a crise da gasolina
Nosso povo é bem ordeiro
Vai se colocar na fila
Leve o tempo que levar
Güenta firme, não estrila
Eu também entrei na fila
Esperei um dia inteiro
Pois perciso gasolina
Pra ponhá no meu isqueiro
Os chofer que são casado
E namora nas esquina
Chega em casa atrasado
Diz que farto gasolina
75
Pra esses moço grã-fino
Perseguido de muié
Chegou a vez de dizer
Eu quero ver é à pé
Eu tô queimando as pestanas
Estudando um novo invento
O artomóve-jangada
Que será tocado a vento
Eu peguei arco motô
E ponhei no calhambeque
Ele saiu cambaleando
Ficou num baita pileque
Eu num ligo pra essa crise
Deixa os outros que se amole
Pois invês de automóve
Eu vô é andá de trole
Bem diz que o brasileiro
É povo que tem engenho
Em lugar da gasolina
Inventaro o gasogênio
76
História de um Palhaço
(Alvarenga e Ranchinho)
Tendo o sordado perdido a parada
Tendo o sordado perdido a parada
Pegou logo na pena e escreveu para o anspeçada
Pegou logo na pena e escreveu para o anspeçada
O anspeçada que é homem do diabo
O anspeçada que é homem do diabo
Pegou logo na pena e escreveu para o seu cabo
Pegou logo na pena e escreveu para o seu cabo
O seu cabo que é homem do momento
O seu cabo que é homem do momento
Pegou logo na pena e escreveu para o sargento
Pegou logo na pena e escreveu para o sargento
O sargento que é homem renitente
O sargento que é homem renitente
Pegou logo na pena e escreveu para o tenente
Pegou logo na pena e escreveu para o tenente
O tenente que é homem valentão
O tenente que é homem valentão
Pegou logo na pena e escreveu pro capitão
Pegou logo na pena e escreveu pro capitão
O capitão do Estado-Maior
O capitão do Estado-Maior
Pegou logo na pena e escreveu para o major
Pegou logo na pena e escreveu para o major
O major que é amargo como fér
O major que é amargo como fér
Pegou logo na pena e escreveu pro coronér
Pegou logo na pena e escreveu pro coronér
77
O coronér que é homem geniár
O coronér que é homem geniár
Pegou logo na pena e escreveu pro generár
Pegou logo na pena e escreveu pro generár
O generár que é homem de tino
O generár que é homem de tino
Pegou logo na pena e escreveu pro Juscelino
Pegou logo na pena e escreveu pro Juscelino
O Juscelino que é homem ativo
O Juscelino que é homem ativo
Pegou na papelada e mandou para o arquivo
Pegou na papelada e mandou para o arquivo
78
Tudo Tá Subindo
(Alvarenga e Ranchinho)
Do jeito que nós vai indo
Com as coisa tudo subindo
Eu num sei como há de ser
Pra falar a verdade, moço
Essa vida tá um osso
Bem duro da gente roer
Sobe arroz, sobe o feijão,
A batata e o macarrão
Dum jeito que não se atura
Tudo sobe inté a taxa
No entanto só o que baixa
Defunto na sepultura
Sobe o óleo sobe a banha
Os tubarão se assanha
Se rindo, pintando o sete
Se recorre à greve, então
Veja a compensação
Baixa logo o cassetete
Sobe o preço da bagagem
Também sobe as passage
O pober que aguente a cruz
Desse bis se destarracha
No entanto só o baixa
É a vortage da luz
Farta chuva no nordeste
Farta tudo que é uma peste
Deixando a coisa crítica
Engraçado no Brasil
79
Fartando tudo aos mil
O que não farta é política
Mas querem saber de uma
Queixa num dianta nenhuma
Num dianta fazer futrica
Mió ditado escuitá
É bom deixa como está
Pra ver como é que fica
80
O Divórcio Vem Aí
(Alvarenga e Ranchinho)
Falado:
"Êta mundo véio, hein, cumpadre?
É...
Violinha boa, essa, hein?
Ah...
Especiar memo, hein
Especiar de boa, cumpadre
Ô cumpadre,
Ahn?
Sabe de uma notícia?
Ahn?
Tão dizendo que o divórcio vem aí...
Uai, o que é divórcio, cumpadre?
Num sabe o que é divórcio, rapaz?
Não!
Divórcio é ansim mais ou menos, né, pre exempre
Vancê casa cuma mulher, mais vancê vai,
num gosta dessa mulher, né, então vancê larga dela
e casa co outra, depois então vancê pre exempre num gostô mais dessa outra,
vancê larga dessa e casa co outra
E ansim por endiante
Ansim que é divórcio, é?
O divórcio é ansim
Ô, que coisa, né cumpadre
Tá torto, hein, cumpadre?
Tá torto!
Ô cumpadre, falando em divórcio
Eu tenho uma letra que eu inventei dessa negócio do divórcio vem aí
É?
Cê qué fazê um duete aí?
81
Ora, cumpadre, vambora
Então duete aí
Eita violinha boa, hein, cumpadre? Dá inté vontade de dançá
Vamo lá, cumpadre"
Quando eu vorto do trabaio
Minha muié garra-se ri
Vem logo com baruieira
Fala arto preu ouvir
Deixe estar que eu fico livre
O divórcio vem aí
"Êta mundo
Violinha especiar de boa!"
E eu vou lhe respondendo
Não percisa lastimar
Se o divórcio vem aí
Tomara que venha já
Tem muita mulher no mundo
Que tão doida pra casar
"Êta!"
Minha cunhada Costina
Que é mulher do seu Hercílio
Foi logo mirá no espeio
Escolher um bom vestido
E começou a treinar
Pra arranjar novo marido
"Tá doida, excumungada, hein?
Puxa na viola, cumpadre"
O divórcio vem aí
Vem tirar os desengano
Conheço muita mulher
Que já anda suspirando
É divórcio toda hora
É marido todo ano
82
"Muda de marido como quem muda de camisa, hein?
Tá torto!
Vamo otro, cumpadre"
Quando o divórcio vier
Vai ficar mulher de sobra
Eu vô me divorciar
Me livrar de duas cobras
Cascaver da minha mulher
Jaracuçu da minha sogra
83
Romance de Uma Caveira
(Alvarenga e Ranchinho)
Eram duas caveiras que se amavam
E à meia-noite se encontravam
Pelo cemitério os dois passeavam
E juras de amor então trocavam.
Sentados os dois em riba da lousa fria
A caveira apaixonada assim dizia
Que pelo caveiro de amor morria
E ele de amores por ela vivia.
Ao longe uma coruja cantava alegre
Ao ver os dois caveiros assim felizes
E quando os dois se davam beijos funebres
A coruja batendo as asas, pedia bis
Mas um dia chegou de pé junto
Um cadáver novo de um defunto
E a caveira pr'ele se apaixonou
E o caveiro antigo abandonou.
O caveiro tomou uma bebedeira
E matou-se de um modo romanesco
Por causa dessa ingrata caveira
Que trocou ele por um defunto fresco.
84
O Drama de Angelica
(Alvarenga e Ranchinho)
Ouve meu cântico quase sem ritmo
Que a voz de um tísico magro esquelético...
Poesia épica em forma esdrúxula
Feita sem métrica com rima rápida...
Amei Angélica mulher anêmica
De cores pálidas e gestos tímidos...
Era maligna e tinha ímpetos
De fazer cócegas no meu esôfago...
Em noite frígida fomos ao Lírico
Ouvir o músico pianista célebre...
Soprava o zéfiro ventinho úmido
Então Angélica ficou asmática...
Fomos ao médico de muita clínica
Com muita prática e preço módico...
Depois do inquérito descobre o clínico
O mal atávico mal sifilítico...
Mandou-me célere comprar noz vômica
E ácido cítrico para o seu fígado...
O farmacêutico mocinho estúpido
Errou na fórmula ez despropósito...
Não tendo escrúpulo deu-me sem rótulo
Ácido fênico e ácido prússico...
Corri mui lépido mais de um quilômetro
Num bonde elétrico de força múltipla...
O dia cálido deixou-me tépido
Achei Angélica já toda trêmula...
A terapêutica dose alopática
Lhe dei em xícara de ferro ágate...
Tomou num folego triste e bucólica
Esta estrambólica droga fatídica...
85
Caiu no esôfago deixou-a lívida
Dando-lhe cólica e morte trágica...
O pai de Angélica chefe do tráfego
Homem carnívoro ficou perplexo...
Por ser estrábico usava óculos:
Um vidro côncavo o outro convexo...
Morreu Angélica de um modo lúgubre
Moléstia crônica levou-a ao túmulo...
Foi feita a autópsia todos os médicos
Foram unânimes no diagnóstico...
Fiz-lhe um sarcófago assaz artístico
Todo de mármore da cor do ébano...
E sobre o túmulo uma estatística
Coisa metódica como Os Lusíadas...
E numa lápide paralelepípedo
Pus esse dístico terno e simbólico:
"Cá jaz Angélica
Moça hiperbólica
Beleza Helênica
Morreu de cólica!"
86
Liga Dos Bichos
(Alvarenga/Ranchinho e Ariovaldo Pires)
Já formaro a sociedade
Protetor dos animais
Enquanto os bichos forgueti
A gente anda pa trás
Esse mundo tá virado
Tem coisa que não se atura
A gente passa apertado
E os bicho passa fartura
Os bicho tem sociedade
A donde tem protetor
Na família do seu Galo
Tem muito Pinto doutor
Já vi Leitão professor
Vi Aranha de talento
Mas o que me deixou besta
Foi ver Cavalo Sargento
Também vi Coeio fardado
Oficiar de longo curso
E na crasse dos artistas
Tenho visto muito Urso
Pra chegar a capitão
A gente quase se mata
E os bicho sobe na vida
Tem até major Barata
Da maneira que vai indo
Tô vendo que não demora
Os burro monta na gente
E ainda chama na espora
Vou se embora pro sertão
87
Não vorto aqui nunca mais
Que lá num tem sociedade
Protetor dos animais