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Teoria dos Privilgios: uma poltica da derrota21 de dezembro de 2014Categoria:Ideias & DebatesComentar|ImprimirA Teoria dos Privilgios floresce da inatividade das massas e dos oprimidos. Acaba no sendo uma teoria de luta, mas uma teoria do recuo. Ela falha no campo crucial: a luta real.Por WillNotas sobre a Teoria dos PrivilgiosIntroduo: o racismovive evidente que o racismo existe. Infiltra-se por todos os poros em nossa sociedade. Infecta todas as relaes sociais. E, obviamente, afeta o Occupy Wall Street (OWS).Todo mundo sabe que a diviso de riqueza, o nmero de encarcerados, a gentrificao, a defasagem na educao e tudo o mais so parte da opresso de classe e racial dos Estados Unidos. Tudo isso bvio. Uma questo mais politicamente controversa so as interaes sociais que so racializadas de forma negativa na nossa sociedade e especificamente no OWS. sempre doloroso porque, na melhor das hipteses, esperamos que os espaos do movimento sejam lugares onde as pessoas possam finalmente se relacionar em termos humanos, universais. No entanto, no uma surpresa que mesmo em espaos do movimento as pessoas experimentem o racismo. Nossa sociedade est saturada com ela, ento esperar relaes humanas no racializadas no movimento seria utpico.A combinao da opresso estrutural baseada em raa e classe, a histria do racismoe do capitalismo e como isso afeta as interaes das pessoas umas com as outras tm levado a uma escola de pensamento chamada de Teoria dos Privilgios. A Teoria dos Privilgios reconhece a opresso estrutural e histrica, mas mantm um foco exagerado sobre comportamentos e pensamentos individuais como a principal forma de abordar o racismo(e outras opresses, mas eu vou tender a me concentrar sobre o racismoe de classe). A Teoria dos Privilgios tem um conjunto de princpios bsicos:a)A Teoria dos Privilgios argumentaque os espaos do movimento devem ser seguros para todos os grupos oprimidos. Uma forma de tornar tais espaos seguros negociando as relaes entre uns e outros de formas no opressivas. Isto significa, por exemplo, que homens brancos heterossexuais deveriam falar menos ou pensar sobre seus privilgios quando se discute uma ao ou questo poltica.b)A Teoria dos Privilgios alega que a militncia e a sofisticao poltica so o domnio de uma elite privilegiada baseada em privilgios de classe, gnero e raa.c)A Teoria dos Privilgios atribui erros polticos e estratgicos aos privilgios pessoais que as pessoas carregam para dentro do movimento.d)A Teoria dos Privilgios busca lidar com essas questes primeiramente atravs da educao, com formaes e debates. Este artigo vai apontar falhas essenciais em todos os quatro princpios da Teoria dos Privilgios. Ele vai tentar apresentar algumas alternativas, mas reconhecendo que mais pesquisas e, sobretudo, mais lutas so necessrias para resolver alguns dos principais problemas com os quais se defronta o movimento.H certamente uma longa histria de pessoas de cor[1]enfrentando o racismodentro do movimento. No entanto, eles tm tendido a se concentrar ao redor de crticas organizacionais e programticas, reas onde as deficincias poderiam ser mais facilmente percebidas e enfrentadas. Por exemplo, se um grupo no se organiza em torno dos prisioneiros negros, isto pode ser enfrentado por meio de discusses polticas, mudando o programa do grupo e implementando uma diretiva de organizao voltada para os prisioneiros negros. Isto enfrentado pela Teoria dos Privilgios atravs da alegao de que o privilgio de uma pessoa cria um ponto cego para a realidade do encarceramento de homens negros.Outro aspecto da opresso que os tericos dos privilgios abordam so as interaes sociais. Contudo, torna-se muito difcil avaliar objetivamente se o olhar de um homem branco objetifica uma pessoa por causa da cor da sua pele; se um homem branco gritando com uma pessoa de cor deve-se raa ou se isto uma reao, desvinculada de raa e gnero, a diferenas polticas; ou se um homem branco est tomando muito espao devido aos seus privilgios ou porque ele precisa falar, porque ele simplesmente tem algo vlido/importante a dizer.No h dvida de que em qualquer organizao ou movimento onde isto um comportamento comum, as pessoas de corno vo participar ou vo sair depois de algum tempo. Mas, ao mesmo tempo, qualquer movimento/organizao que passe tempo demais discutindo isto no ser mais uma organizao/movimento de luta, e eventualmente as pessoas de corvo sair. Vai se tornar uma roda de conversa ou um coletivo de conscientizao. Numa poca em que o Departamento de Polcia de Nova York est matando negros e latinos com impunidade, escolas esto sendo fechadas em bairros de pessoas de cor, a propaganda anti-islmica imensa e imigrantes so deportados todos os dias, pouca gente vai se integrar a um grupo que foca somente nas relaes interpessoais. A chave entender as tenses e achar um balanceamento correto.Ao mesmo tempo, inegvel que muitas pessoas de coracreditam que esta seja uma forma sria de lidar com o racismo. Que muitos acreditam que um movimento pode ser construdo a partir das reivindicaes polticas e estratgicas da Teoria dos Privilgios. A Teoria dos Privilgios veio a se tornar a tendncia dominante a partir de circunstncias histricas especficas, que irei tratar brevemente. Acredito que seja uma falsa estratgia, que no final das contas no consegue resolver realmente os problemas que a prpria Teoria dos Privilgios se prope a enfrentar.Provavelmente toda pessoa de cor j experimentou algum tipo de interao como as descritas acima. Primeiro, vamos discutir as complexidades: quando isso acontece, mesmo entre pessoas de corexiste desacordo quanto percepo do que as interaes significaram. A compreenso da seriedade da acusao est ligada aos comportamentos anteriores e ao histrico do militante branco. As pessoas de cortambm vo trazendo consigo experincias prprias com o racismo. Isso certamente afeta a forma como enxergam as relaes sociais. Por ltimo, preciso chegar pelo menos a um entendimento comum de que, de modo geral, as pessoas que se integram ao movimento no so defensoras do racismo. Isso deveria ser um pressuposto fundamental, ou ento s nos restaria uma realidade ridcula e politicamente suicida na qual estaramos construindo um movimento com supremacistas brancos. Logo, isso nos permite lidar com a alienao racial ou com o chauvinismo branco ao lado de pessoas que reconhecemos ser contra o racismo.Isso parece ser um ponto crucial a ser reconhecido.Geralmente, as pessoas de cordesejam o reconhecimento de que algo muito errado aconteceu. verdade que geralmente a maior parte dos militantes brancos surta. Por um lado, os militantes brancos compreendem a seriedade da acusao, mas, por outro lado, em sua defesa, eles falham em atribuir reconhecimento ao modo como outra pessoa de cor percebeu um episdio. Os militantes brancos geralmente agem como se a teoria do racismoinfectando tudo paralisasse suas mentes e corpos quando eles so acusados de qualquer coisa. Isto compreensvel, na medida que nenhum militante srio deveria tomar tais acusaes gentilmente.Isso particularmente importante uma vez que as pessoas de cor, baseadas em toda a merda que lhes acontece, tendem a ver o mundo de forma diferente, e so obviamente mais sensveis a desrespeitos raciais. A falta de reconhecimento comumente intensifica a forma como essa pessoa sente a situao, uma vez que o que objetivamente verdade recua para a forma como o militante branco define a realidade. Nesse ponto, conversas produtivas geralmente se interrompem.Por ltimo, as coisas so mais complicadas hoje porque o racismoest muito mais codificado hoje em termos de linguagem e comportamento. Ningum no movimento vai chamar algum de preto[2]. Pessoas realmente faziam isso nos anos 1910, nos anos 20 e 30. Ningum vai dizer que uma pessoa de corno deveria falar por causa da sua cor de pele. As coisas no so to claras. Isto parcialmente um sinal de que as lutas das pessoas de corforaram a linguagem racista a tomar uma forma diferente. Contudo, o racismoainda existe. Na mdia, por exemplo, falar de crime ou pobreza a palavra-chave para negros ou latinos preguiosos que arrunam o paraso dos grandes cidados brancos trabalhadores da Amrica. Exatamente como o racismofunciona no movimento, codificado na lngua e no comportamento, algo que ainda precisa ser investigado.Enquanto as dificuldades em ser uma pessoa de cor militantenos movimentos so assombrosas, existem certos estranhos impasses em ser um militante branco no movimento. As pessoas de corentram no movimento esperando melhores relaes raciais. Isto certamente justo. Isto geralmente significa que espera-se que militantes brancos do sexo masculino tomem menos espao, falem menos etc. Toda interao pessoal, enquanto for influenciada pelo peso da historia, no pode ser julgada somente por essa dimenso isolada. Por exemplo, pessoas negras foram escravas nos EUA e especificamente servas para mestres brancos. Traspassaresse passado histrico para a interao social quando um homem negro ou uma mulher negra pegam um copo de gua para um amigo branco seria ridculo. Existem sempre agncia e liberdade nas aes de que participamos hoje em dia. Elas sempre so formatadas por raa, classe, gnero, sexualidade e histria; mas ns tambm no estamoscompletamente emboscadospelos crimes do passado. Seno, amizade, amor, camaradagem seriam impossveis. A prpria possibilidade de qualquer forma de relao humana seria destruda. Ns estaramos papagaiando o passado e dogmaticamente replicando ele no presente.Geralmente, depois do reconhecimento, as coisas podem ser deixadas assim. No entanto, s vezes questes organizacionais e polticas mais profundas vm tona. Especialmente se uma pessoa de cor diz existir um padro ou histrico de tal comportamento. Se for esse o caso, deveria ser lidado em termos organizacionais e polticos dinmicos. A limitao da Teoria dos Privilgios em lidar com tais situaes vai ser explicadadepois.Fanon, Liberao Negra e HumanidadeAs tradies mais sofisticadasda libertao negra lutaram para lidar com tais problemas. Revolucionrios como Frantz Fanon em Pele negra, mscaras brancasusaram ferramentas filosficas da fenomenologia para explorar a experincia da conscincia e a experincia vivida das pessoas de cor. Essa tradio no movimento est, infelizmente, morta. luz de suas investigaes sobre a fenomenologia, h fortes evidncias nos escritos de Fanon e em sua prtica em vida que demonstramque conversas no podem resolver tais experincias racializadas, somente a luta mais militante e violenta pode superar as relaes humanas racializadas. Os Estados Unidos no experimentaramnveis elevados de luta nos ltimos 50 anos. E os principais problemas se desenvolveram por causa da falta de luta militante no pais.Tambm Fanon deixa um legado enigmtico ao escrever Pele negra, mscaras brancas, que frequentemente usadopara justificar a Teoria dos Privilgios. No entanto, h dois problemas em tal abordagemao livro. O primeiro que esse livro era parte do desenvolvimento de Fanon; de suas formas de resolver os problemas que viu e viveu. Segundo, e mais importante: quase todos os idelogos dos privilgios ignoram a introduo e a concluso do livro. Isso estranho, considerando que esses dois captulos do o seu enquadramento terico. Nesses dois captulos, Fanon expressa igualdade com toda humanidade e se coloca contra quem pede reparao ou culpa por qualquer tipo de opresses histricas passadas. O que mais pode Fanon querer dizer com Eu no tenho o direito de permitir a mim mesmo ficar atolado no que o passado determinou. Eu no sou o escravo da escravido que desumanizou meus ancestrais. Eu, como um homem de cor, no tenho o direito de esperar que nos homens brancos exista uma cristalizao de culpa pelo passado de minha raa.Marcas de gnero na linguagem parte, isso mantm um forte contraste com a Teoria dos Privilgios.Fanon est tentando reconciliar as experincias de opresso com a necessidade de desenvolver relaes humanas e transform-las atravs da luta militante. No h dvida que a tentativa de Fanon de interagir com pessoas brancas recorrentemente entrou em choque com as interaes racializadas de pessoas brancas com ele. Em outras palavras, pessoas brancas conversam com negras de formas condescendentes, ignoram os negros e descartam seus assuntos, como se fossem secundrios etc. A questo como lidar quando isso ocorrer, e nesse campo que a Teoria dos Privilgios falha.A Teoria dos Privilgios pe peso demais na conscincia e na educao. Termina criando uma poltica de culpa por nascimento. Ao mesmo tempo, no h dvida de que necessrio mais educao sobre a histria do racismonos Estados Unidos e num nvel global. Alm disso, a relao entre o racismoe seus efeitos na conscincia um campo legtimo e vital da poltica e do questionamento filosfico. W.E.B. Du Bois, James Baldwin, Michelle Wallace, Frantz Fanon e outros todosfizeram contribuies vitais nos Estados Unidos referentes a esta tradio. Reenquadrar o debate junto a uma taltradio vital.Novas relaes sociais s podem ser construdas na luta coletiva damaior partedos indivduos militantes. No h quantidadede conversa e educao que possaformar novas relaes. somente o envolvimento massivo e a luta das pessoas oprimidas que pode, em ltima instncia, destruir o racismo, restabelecer a humanidade daspessoas de cor, e criar relaes sociais que sejam relaes entre humanos, ao invs de relaes entre racialmente oprimidos e brancos opressores.A falha da Teoria dos PrivilgiosA Teoria dos Privilgios busca corrigir e descrever as imensas desigualdades que material, psicolgica e socialmente existem na sociedade. Ao mesmo tempo em que frequentemente acurada na sua anlise sociolgica de tais desigualdades, ela falha no campo crucial: a luta real. A Teoria dos Privilgios acaba sendo uma anlise sociolgica radical. Acaba no sendo uma teoria de luta, mas uma teoria do recuo. As maiores fraquezas da Teoria dos Privilgios so umatendncia aoreformismo, uma carnciade poltica, e umapoltica do recuo.ReformismoA Teoria dos Privilgios tende ao reformismo ou, na melhor das hipteses, para polticas radicais de um grupo de pessoas que procura agir por sobreos oprimidos. A ltima possibilidade especialmente importante. Ns vivemosum sculo no qual pessoas diziam representar as massas clamando polticas revolucionrias sobre elas: Hugo Chvez, Fidel Castro, Jawharlal Nehru, Weather Underground, Josip Broz Tito ou Julios Nyerere so s algumas figuras que caram nesta armadilha. Hoje em dia os nomes no so to grandiosos, mas as coisas no so to diferentes.No h dvida de que certos grupos sejam alvos mais provveis da polcia durante uma ao policial e que a represso que vo sofrer ser maior, sem falar na quantidade menor de recursos que podero chamar emsua defesa. Essas so realidades bem bvias do racismo. Tais fatores certamente dificultam lutas maiores. Em nenhum ponto devemos subestim-los. Ao mesmo tempo, esses fatores so exatamente as formas de opresso que buscamos derrotar. Os movimentos precisam encontrar formas de lidar com essas questes, poltica e organizativamente. Quem vai derrotar essas formas de opresso e como? Se a libertao das pessoas oprimidas deve ser feita pelas pessoas oprimidas, ento as tarefas da libertao ficam nas mos das pessoas que correm os maiores riscos. Se o racismos pode ser derrotado por uma luta de massas e pela ao militante, e no por legislaes ou pequenas reformas, ento o estilo de luta est tambm razoavelmente claro. Qual a resposta da Teoria dos Privilgios para essas duas premissas fundamentais? A Teoria dos Privilgios acaba em um beco sem sada.De acordo com os seus argumentos, os mais oprimidos no deveriam lutar atravs dos mtodos mais radicais porque eles no tm o acesso privilegiado ao pagamento de fianas, bons advogados, e sem falar no seu status racial que certamente garantir punio extra. Com isto, resta apenas um grupo de pessoas que tem possibilidade de resistir: aqueles com um conjunto de privilgios que tm acesso a advogados, tm tempo livre para lutar, etc.Isto est em alto contraste com a tradio revolucionria que defendeu que a derrota do capitalismo, do racismo, do patriarcado, da homofobia, do imperialismo etc. so responsabilidades de bilhes de pessoas oprimidas.Este exatamente o grupo de pessoas que a Teoria dos Privilgios geralmente alega ter muito a perder.Existem, sem dvida, disparidades de fala, escrita, confiana etc. entre ativistas de movimentos baseadas em raa, classe, e gnero. Os tericos dos Privilgios esto na vanguarda do reconhecimento desta realidade. Contudo, no momento de assegurar que todos no movimento tenham aproximadamente as mesmas habilidades, os tericos dos Privilgios so raramente claros sobre como chegar a isto, alm de lembrar os privilegiados dos seus privilgios. Os tericos dos Privilgios at agora no demonstraram como se pode lidar com isto.A Teoria dos Privilgios compreende, de uma forma parcialmente correta, que pessoas de corno participam em muitas aes militantes precisamente porque enfrentam maiores riscos de priso e punio. Mas, ao invs de buscar maneiras de contornar este problema, os tericos dos Privilgios fetichizam este problema numa prtica de desmobilizao e reformismo.Por ltimo, a Teoria dos Privilgios no tem respostas para a rica histria de pessoas oprimidas que lutaram no passado.Nas palavras da Teoria dos Privilgios, estesforam alguns dos humanos mais desprivilegiados e ainda assim suas teorias e aes estavam no front da militncia e da poltica revolucionria.O que faz a situao atual de algum modo diferente no est claro.Falta de polticaA Teoria dos Privilgios despolitiza os potenciais mais revolucionrios de qualquer discusso. A teoria dos privilgios no tem qualquer projeto poltico seno uma anlise sociolgica sobre quem corre mais risco de ser preso, baleado ou espancado em protestos, greves e rebelies.As lutas passadas se deram em tornodo comunismo, anarquismo, nacionalismo, maosmo, anticolonialismo, socialismo africano, etc. Essas lutas foram travadas para a derrota do capitalismo, do Estado, do patriarcado, do racismo, da homofobia (ou ao menos deveriam ter lutado para derrot-los, caso falhassem em conseguir fazer de fato). O ponto que as maiores lutas dos oprimidos giraram em torno de movimentos de massa, militncia e teoria revolucionria. A Teoria dos Privilgios tira a centralidade desses trs pontos.Nos Estados Unidos, as geraes de militantes, desde as derrotas de 1968 at o presente, desenvolveram pouca teoria e organizao revolucionria, e menos ainda experincias de movimentos de massa. Isso significou polticas extremamente pouco desenvolvidas. E o setor universitrio, onde residea teorizao poltica, foi em geral dominado por tendncias reformistas e acadmicas de classe mdia. H pouca reflexo sobre essa dinmica no movimento. E o pior, se faz uma associao desleixada entre qualquer teoria mesmo a teoria revolucionria com a academia, o que apenas destri a tradio histrica dos oprimidos que lutaram to bravamente para ter liberdade para ler, teorizar estratgias de luta e libertao em termos revolucionrios.A Teoria dos Privilgios est completamente divorciada da tradio revolucionria. Ainda estou para conhecer tericos dosPrivilgios que construam uma luta revolucionria com pessoas desempregadas, com desistentes do ensino superior, com imigrantes sem documentos etc. A suposio fundamental da Teoria dos Privilgios expe o fundo de classe de seus proponentes quando defende que o conhecimento terico-poltico para pessoas com origens privilegiadas. Isso s verdade se o nico lugar que desenvolve conhecimento for as universidades. Tericos dos Privilgios no construram as escolas que o Partido Comunista construiuem 1930 ou os Panteras Negras construramno final de 1960. No eram universidades oficiais, mas instituies educacionais desenvolvidas pelos oprimidos para os oprimidos.Eles dizem que agir de maneira militante ou teorizar constitui um luxo dos privilegiados. Isso no deixa nenhuma soluo para a liberdade dos oprimidos. A teoria que diz que os oprimidos no podem teorizar ou militar a teoria de uma elite que v os oprimidos como desamparados e estpidos. So os oprimidos que precisam teorizar e eventualmente derrubar o capitalismo. So eles que de fato tm o poder.Os erros polticos, do ponto de vista da Teoria dos Privilgios, tem razes nos privilgios que uma pessoa tem. Geralmente, a pessoa chamada a verificar seus privilgios como uma forma de perceber qualquer erro poltico. Isto obscurece dilogos organizacionais e polticos, e, no lugar disso, desvia a conversa para maneiras imensurveis de se lidar com a poltica. Como podemos saber se esta pessoa checou seus privilgios? Por que meios polticos e organizacionais podemos afirmar se podemos contar com esta pessoa?As questesmais importantes so: qual o programa poltico? Qual a construo organizativa que o grupo realmente faz?E se os negros (ou qualquer outro grupo oprimido) se desenvolvem como revolucionrios e se pelo desenvolvimento eles tambm so lderes do grupo/movimento.Uma poltica do recuoA Teoria dos Privilgios s veio a dominar o movimento nos ltimos vinte anos, se muito. Nos EUA, o perodo dos ltimos quarenta anos foi de um recuo massivo na militncia e poltica revolucionrias. A ascenso da Teoria dos Privilgios no pode ser dissociada da devastao dos movimentos de massa. Foi nesse contexto que a Teoria dos Privilgios cresceu.Os tericos dos Privilgios so de uma gerao que nunca conheceu as lutas e a militncia de massa. So de uma gerao que nunca viu as massas como aquelas que Frantz Fanon descreve em Em defesa da Revoluo Africana. Eles nunca viram gente oprimida que simplesmente decidiu: ou vivo como um ser humano ou morro em combate. Eu no sei se eles estiveram nas rebelies em que vrios oprimidos preferiram enfrentar a polcia e outros opressores, arriscando-se priso ou at coisas piores. Eles viram essas pessoas? H alguma dvida de que s uma pessoaque est disposta a ir to longe tm alguma chance de vencer o racismo?A Teoria dos Privilgios floresce da inatividade das massas e dos oprimidos. Ela deseja apenas lembrar as massas de suas fraquezas. Ao invs de imortalizar heris cados, s lamenta a tragdia dos mortos. Talvez seja melhor apanhar e morrer em luta do que morrer de joelhos como muitos fizeram durante os ltimos 50 anos. Quem no vive ajoelhado hoje? Humilhao pela polcia, humilhaes pelo patro, humilhao em qualquer lugar que se for.Ironicamente, esses tericos dos Privilgios clamam ser os representantes simblicos dos desprivilegiados e trivializam as lutas do passado. Citam as lutas passadas somente para dizer que as condies so diferentes hoje. No conseguem admitir que o velho argumento de que as condies no so favorveis para luta existe h centenas de anos, lembrando constantemente os oprimidos a adiarem a revoluo e a luta de massas. Quem est disposto a dizer aos oprimidos o sistema v voc como um cachorro. S quando voc lutar entre a vida e a morte voc vai alcanar a humanidade?Todo lutador no passado soube disso. Os tericos dos Privilgios tm medo de aceitar de onde vem a liberdade humana.Toda luta por liberdade carrega os riscos de morte impostos pelo opressor aos oprimidos. Isso uma realidade universal. Houve um dia em que Harriet Tubman simplesmente disse isso a todos escravos. Ironicamente, ela celebrada hoje, mas sua vida e sabedoria no tm nenhum ensinamento poltico prtico para os revolucionrios alm da transformao em smbolo dessa corajosa mulher negra.Eu simplesmente disse: aqueles que falam de privilgios so reformistas. Sua nica tarefa lembrar as pessoas oprimidas do que no podem fazer e do que tm a perder. Os tericos dos Privilgios no viveram um perodo de rebelies e revolues. Esto bem longe dos dias em que negros e pardos, trabalhadores e desempregados, sacudiram 1968. Esses tericos dos Privilgios cobrem seus prprios rastros ao se esconderem atrs dos riscos que o proletariado precisa correr. Sem dvidas, deportao, priso e certamente morte esto em jogo. O preo da liberdade e o reconhecimento humano poderia ser diferente?Quando qualquer ao ou poltica militante proposta em uma reunio, os tericos dos Privilgios so os primeiros a levantar e lembrar as pessoas na reunio que somente aqueles com tais e tais privilgios podem participar em tal e tal ao militante; que os oprimidos no podem se dar ao luxo de participar dessas aes.Foram-se os dias em que revolucionrios como Harriet Tubman simplesmente disseram que a vida humana foi feita para ser em liberdade, ou no ser. Aquela proclamao existencial de humanidade perdeu para o medo e a degenerao poltica. Isso o que est em jogo. No se pode negar que a militncia e a revoluo so um grande risco para os oprimidos. As lutas do passado trazem uma pilha de corpos e vidas destrudas.Se o capitalismo, o patriarcado, o racismo, o imperialismo, o capacitismo, a homo e a transfobia s podem ser destrudos pelos meios mais violentos, mais militantes e revolucionrios, queoutra opo tm ento os oprimidos seno a luta total? O que dizem os tericos dos Privilgios? Existe outra estratgia? Votar nos Democratas?Minha experincia nos espaos da POCO Grupo de TrabalhoPeople of Color(POC) no Occupy Wall Street em Nova York foi certamente um campo de teste para a efetividade da Teoria dos Privilgios. Uma das questes mais polmicas foi a questo da poltica paraQueers[3], quando alguns membros do grupo de trabalho argumentaram que serQueerno tinha nada a ver com ser uma pessoa de cor. Esse debate tendeu a se dispersar com pessoas dizendo que aqueles membros no reconheciam seus privilgios de homens hteros. Foi ignorada a realidade de que nem todos os homens negros hteros concordaram em levar adiante a poltica anti-Queers, mas, mais importante, que deveria ter havido uma discusso de programa e organizao.Em relao ao programa, o Grupo de Trabalho poderia ter lutado para aprovar um documento que afirmasse uma posio contra polticas anti-Queers. Parece simples o bastante. E realmente, se bem me lembro, isso eventualmente foi feito. No entanto, sempre preciso que as polticas sejam realizadas, caso contrrio sero simplesmente palavras vazias em um texto bacana.Isso nos leva s dimenses organizacionais do tema que, pelo que percebo, nunca foram discutidas. Uma vez que um grupo de pessoas concordou com alguma coisa, quais eram as repercusses quando algum violava esse acordo? Essa uma questo sem solues fceis. Em uma organizao baseada em afinidade, a pessoa poderia ser expulsa. Mas o OWS tinha uma estrutura organizacional muito aberta e fluda. Inferno, aquilo no podia nem ser chamado de uma organizao, se seguirmos um critrio mais sensvel. Isso coloca srios problemas. Ao mesmo tempo parece que o OWS pode banir pessoas dos espaos, como foi visto nas discusses sobre o Conselho de Falas e na deciso de banir as pessoas violentas.Outro problema no Grupo de Trabalho POC foi que, se havia algum, eram poucos os que tinham uma pedagogia revolucionria para ensinar outras pessoas sobre a relao da opressoQueercom a opresso negra. As tentativas de lidar com a questo foram deixadas s acusaes de que algumas pessoas no estavam reconhecendo seu privilgio como cisgnero, ou discusses informais com pouco debate histrico ou terico das questes. Simplesmente no era o suficiente transpor as diferenas polticas. A inabilidade de se chegar a termos com essas questes parece ter afastado vrias pessoas, agravando qualquer possibilidade de unidade no Grupo de Trabalho das POC.Um exemplo concreto e uma alternativa possvelSem dvidas que seria disparatado que estudantes da Columbia ou da Universidade de Nova York propusessem aos trabalhadores de um McDonalds que entrassem em greve para o prximo ato de 1 de Maio. Os estudantes de graduao dessas duas instituies tm uma imensa autonomia. Se eles tivessem aulas no 1 de Maio, faltar na faculdade traria pouca, ou at nenhuma, consequncia. Se eles fossem professores, cancelar as aulas seria tambm uma opo com muito menos consequncias do que organizar uma paralisao. Est absolutamente correto que os parmetros so diferentes para quem trabalha em um McDonalds. Na melhor das hipteses, eles podem conseguir um dia de folga, mas isso est longe do esprito de uma greve de um dia. Se eles no forem trabalhar nesse dia e estiverem na lista, ento correm o risco de perder seu emprego que j precarizado.Os tericos dos Privilgios iriam se focar no privilgio que os estudantes de graduao tm, o que bloquearia uma anlise dos problemas polticos e organizacionais. como se os tericos dos privilgios estivessem divorciados da reflexo concreta sobre as questes de organizao poltica necessrias, em ltima instncia, para que acontea uma greve geral dos trabalhadores do McDonalds. Afinal, esse o ponto em organizar, no ? Ento, sim, os riscos para os trabalhadores do McDonalds em uma greve geral seriam imensos. Mas como podemos fazer com que eles consigam pr em ao sua fora de classe contra o patro e a companhia? Isso algo que voc nunca vai ouvir os tericos do Privilgios discutirem.No sou um expert no crescimento da Teoria dos Privilgios na academia. Mas podemos nos perguntar se pessoas como Peggy McIntosh ou Tim Wise j tiveram que se organizar alguma vez. Obviamente muitos organizadores so hoje os principais tericos dos Privilgios. Porm, ao invs de encontrar solues polticas e militantes para os problemas dos mais oprimidos, vejo apontarem realidades sociolgicas como as que mencionei anteriormente. Infelizmente, organizao no uma aula da faculdade de sociologia. Organizao significa luta de classes com todas as suas diferentes subjetividades e revoluo.ConclusoAs implicaes da Teoria dos Privilgios vo bem mais a fundo do que o que foi discutido neste ensaio. Embora no sejam direcionadas, algumas das melhores leituras sobre isso so os trabalhos de Frantz Fanon. Ele discutiu de maneira profunda a questo de ser um ser humano sob a luz da cor de sua pele, em relao com a luta anticolonial e o desejo de forjar laos humanos comuns.O propsito deste ensaio foi questionar o fundamento da Teoria dos Privilgios. Essa teoria falha em servir como uma teoria de luta e emancipao real das pessoas oprimidas. Na verdade, ela prende pessoas s mesmas categorias em que o capitalismo as designa, ao focar somente na sua categoria oprimida: seja negro, mulher,Queer, trabalhador ou estudante. Ela falha em desenvolver qualquer poltica, organizao ou estratgia de libertao real, porque nunca pretendeu faz-lo. A Teoria dos Privilgios a expresso poltica de uma sociologia radical pretendendo lutar.A Teoria dos Privilgios joga fora as discusses srias sobre polticas, organizao e estratgia revolucionrias. As formas de opresso obviamente significam riscos diferentes dependendo de quem voc , mas que solues a Teoria dos Privilgios oferece? Somente a tradio revolucionria oferece um meio para que as pessoas oprimidas, atravs de sua prpria militncia e ao poltica, possam destruir todas as coisas que as oprimem.ApndiceNossa gerao tem poucos revolucionrios com quem aprender. Seus saberes esto sendo amplamente esquecidos conforme eles se vo. Por esse propsito, parafraseio uma conversa que tive recentemente com um(a) ex-Pantera Negra. Eu sublinhei o ponto bsico deste artigo e as respostas foram as seguintes. Elas so breves, porm acredito que reforce algumas questes sobre as quais revolucionrios da nossa gerao deveriam pensar. s vezes so partes contraditrias de um conselho, mas mesmo assim teis.Primeiro, esse(a) Pantera era contra a poltica da culpa. O(a) Pantera sentia que a Teoria dos Privilgios criava essa situao, e pessoas que se sentem culpadas no so boas revolucionrias. Tambm apontou de prontido que a poltica da culpa o pilar fundamental da Igreja Catlica.Segundo, o(a) Pantera disse que voc deve simplesmente mandar que eles se fodam quando problemas raciais acontecerem. Tem a ver com lembrar que pessoas que te fazem sentir assim no merecem seu respeito e ateno ento que se fodam eles. Isso tambm pode ser lido como simplesmente ter casca grossa.Terceiro, o(a) Pantera disse que ningum deveria se focar em coisas pequenas. O objetivo da poltica conseguir coisas grandes: greves gerais, acabar com o Estado, se livrar da polcia, acabar com o patriarcado etc. Talvez o(a) Pantera estivesse tambm dizendo para organizar essas pessoas. Torneas pequenas coisasirrelevantes por suas habilidades organizacionais.Quarto, o(a) Pantera disse que tem havido uma guinada direita em todos os aspectos nos EUA nesses ltimos 30 anos. Tais interaes [racializadas] esto fadadasa acontecer. As pessoas so parte dessa sociedade.Por ltimo, o(a) Pantera seguiu explicando sobre a importncia de manter sua dignidade. No ficou claro o porqu do(a) Pantera ter trazido esse ponto. O(a) Pantera disse que, se algum est te ignorando por causa do seu gnero, classe ou raa, limpe sua garganta, ou v diretamente para a pessoa, e diga: me desculpe, mas eu acho que temos as seguintes coisas para conversar. Mas manter a dignidade pareceu importante.As seguintes obras influenciaram a escrita deste artigoPeles negras e mscaras brancasde Frantz FanonEm defesa da Revoluo Africanade Frantz FanonCondenados da terrade Frantz FanonA Dying Colonialismde Frantz FanonFrantz Fanonde David MaceyFrantz Fanon and the Psychology of Oppressionde Hussein Abdilahi BulhanFanon In Search of the African Revolutionde L. Adele JinaduFrantz Fanon Colonialism and Alienationde Renate ZaharExistentia Africanade Lewis GordonFanon and the Crisis of European Mande Lewis GordonFanons Dialectic of Experiencede Ato Sekyi-OtoHegel, Haiti, and Universal Historyde Susan Buck-MorssCalibans Reason Introducing Afro-Caribbean Philosophyde Paget HenryNuseade Jean-Paul SartreOrfeu Negrode Jean-Paul SartreA questo judaicade Jean-Paul SartreThe Colonizer and the Colonizedde Albert MemmiDiscourse on Colonialismde Aime CesaireI am a Martinican Woman and the White Negressde Mayotte CapeciaWhite Man, Listende Richard WrightBlack Boyde Richard WrightRichard Wrightde Hazel RowleyStirrings in the Jugde Adolph Reed Jr.Notes of Native Sonde James BaldwinBaldwins Collected Essaysde James BaldwinA Ideologia Alemde Karl MarxGrundrissede Karl MarxNotas da traduo[1]No original: people of color.Embora o termo pessoas de cor seja pejorativo no Brasil, o mesmo no ocorre nos Estados Unidos. Pelo contrrio, os termos negro ou nigger entre outros que so encarados pejorativamente nos Estados Unidos, o que no se d no Brasil. Quando utilizado por militantes nos Estados Unidos, o termo pessoas de cor serve para incluir e unificar todas as minorias no brancas, no apenas as pessoas negras. Ele foi introduzido nos Estados Unidos entre o final da dcada de 1970 e o incio da dcada de 1980 por ativistas influenciados por Frantz Fanon.[2]No original: nigger.[3]Para uma definio deQueer, conferir, por exemplo, estelink.Sobre o artigo, o autor e a traduoEste artigo foi originalmente publicado em ingls por um coletivo dos Estados Unidos chamado Black Orchidem maro de 2012(aqui). O autor, Will, apresentado como um camarada prximo de muitos membros do coletivo. A traduo para o portugus foi feita peloPassa Palavra.Etiquetas:Racismo,Reflexes,Represso_e_liberdadesComentrios3 Comentrios on "Teoria dos Privilgios: uma poltica da derrota"Mariana Dos Santos Parra em 21 de dezembro de 2014 21:42

Valeu por terem traduzido esse texto, uma prola e acho que essencial para a realidade brasileira hoje, simplesmente essencial, espero que repercuta muito e gere muito debate!Talvez meu nico ponto de discordncia: na verdade no apndice, discordo frontalmente do conselho do ex-Pantera negra de que coisas pequenas devem ser ignoradas, de que preciso focar nos objetivos grandes. De forma nenhuma! se queremos derrotar a opresso, a violncia, se queremos construir uma outra sociedade, preciso SIM lutar e prestar ateno aos detalhes, eles constroem e mantm privilgios e opresses, eles cotidianamente diminuem, minam o espao dos oprimidos, calam suas vozes. a microfsica da opresso, que deve sim ser cotidianamente combatidaA revoluo deve ser permanente, contnua, e o caminho fundamental, no somente o ponto de chegada.Lucas em 22 de dezembro de 2014 23:50

Eu acho que voc no entendeu nada do textoManoloem 25 de dezembro de 2014 21:15

Lembro de um dos episdios mais comentados da vida de Malcolm X. Ainda em sua fase de liderana da Nao do Isl, uma jovem branca universitria o procurou, ansiosa por saber como poderia ajudar na luta, se havia algum meio de contribuir. A resposta de Malcolm X foi seca: no, voc no pode ajudar. Ele ainda considerava que brancos no poderiam contribuir em nada com a luta dos negros. Anos depois, tocado pela convivncia com muulmanos de vrias procedncias em sua peregrinao a Meca, Malcolm X se diria arrependido de no ter acolhido aquela jovem, de no ter transformado aquele desejo em ao.