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Page 1: Teoria Melanie Klein

Teoria Melanie KleinIntroduçâo 

O conceito de fantasia inconsciente, como observa Anna Segal,[1] é essencial para a compreensão da teoria kleiniana sobre o desenvolvimento mental. De fato, “a natureza dessas fantasias inconscientes e o modo como elas estão relacionadas com a realidade externa” determinam o funcionamento psíquico do indivíduo.[2] No entanto, esta teoria gerou uma ampla polêmica no âmbito do pensamento psicanalítico, pois parecia ser contrária a alguns postulados da teoria freudiana. A polêmica acabou vertendo sobre o papel da fantasia em relação à inibição da sexualidade e à formação do caráter, contrapondo a visão mais ortodoxa de Anna Freud àquela de M. Klein.[3] Na realidade, por trás desta discussão está o fato do termo fantasia ser usado em sentido diferente. M. Klein elaborou o conceito de fantasia inconsciente (phantasia) constatando que, no funcionamento psíquico, as relações com os objetos externos são mediadas pelas fantasias inconscientes que dão origem aos objetos internos. Portanto, “relações e objetos, ou situações externas, não devem ser simplesmente traduzidas em relações internas”, [4] pois o objeto interno tem vida própria e não coincide com a realidade externa, apesar de estar com ela inter-relacionado. 

Anna Freud, se referindo às fantasias conscientes, afirmava que as mesmas são conseqüência da inibição da sexualidade, concebendo o fantasia como uma atividade ligada a um funcionamento psíquico já estruturado em torno do Complexo de Édipo, ao passo que M. Klein, por relacionar a fantasia a processos psíquicos mais primitivos, anteriores à estruturação edípica, afirmava que a sua atividade causa a inibição da sexualidade.[5] A concepção kleiniana de fantasia, de fato, “pressupõe – desde os primeiros anos de vida – uma organização do ego muito maior do que o que foi usualmente postulado por Freud”.[6] A própria Melanie Klein afirma claramente: que “o ego existe e opera desde o nascimento e (...) tem uma importante tarefa de defender-se contra a ansiedade suscitada pela luta interna”.[7] Esta situação conflitual, presente desde o nascimento, desencadeia uma série de processos psíquicos, entre eles a introjeção, a projeção e a cisão. Pela introjeção “o mundo externo, seu impacto, as situações que o bebê atravessa e os objetos que ele encontra não são vivenciados apenas como externos, mas são levados para dentro, vindo a fazer parte de sua vida interior”.[8] A projeção, por sua vez, consiste na capacidade da criança “de atribuir a outras pessoas à sua volta sentimentos de diverso tipo, predominantemente o amor e o ódio”,[9] sentimentos que na realidade são dela, pois derivam da projeção de suas emoções nos outros, principalmente na mãe. Tais processos, afirma M. Klein, fazem parte das fantasias do bebê,[10] e levam á formação de um mundo interno que é parcialmente um reflexo do mundo externo. Neste sentido, os processos de introjeção e projeção contribuem para “a interação entre fatores internos e externos” e devem ser considerados como fantasias inconscientes.[11] 

As observações clínicas na análise de crianças levam M. Klein a conceber um ego que, a partir do nascimento, é capaz de formar relações de objeto na fantasia e na realidade.[12] “Para Melanie Klein, os precursores do superego (que ela chamou ‘camadas mais profundas do inconsciente’) estavam sendo organizados desde o nascimento”.[13] Como ela mesmo afirma, nessas camadas, “o objeto não seria sentido como parte da mente, no sentido que aprendemos do superego, como a voz dos pais dentro da mente da pessoa. Este conceito de superego só seria encontrado nas camadas mais superficiais do inconsciente. No entanto, em camadas mais profundas o objeto interno é sentido como um ser físico, ou ainda uma multidão de seres, que com todas suas atividades amistosas e hostis, abriga[m]-se dentro do corpo da pessoa”.[14] Nesta perspectiva, o bebê passa a lidar com o impacto da realidade a partir do próprio momento do nascimento.[15] 

O percurso teórico freudiano tem como pano de fundo uma rica experiência clínica, a partir da qual toda a construção da teoria psicanalítica vem se articulando num entrelaçar-se contínuo de novas questões. É basicamente a partir do estudo de pacientes neuróticos adultos, que Freud vai elaborando sua teoria do desenvolvimento psíquico, remontando até as fases iniciais da infância. Uma das teorias centrais do pensamento freudiano, o Complexo de Édipo, não foge deste percurso hermenêutico. Nesta perspectiva, “o complexo de Édipo revela sua importância como o fenômeno central do período sexual da primeira infância. Após isso, se efetua sua dissolução, ele sucumbe à regressão (...) e é seguido pelo período de latência”.[16] A maneira como esta fase fundamental da infância é vivida, em torno dos quatro cinco anos de idade, na perspectiva freudiana, torna-se estruturante para o funcionamento do psiquismo em suas fases sucessivas do desenvolvimento. No quadro do desenvolvimento freudiano, crianças pequenas não são analisáveis, pois seu psiquismo estaria ainda numa fase narcísica. Só mais tarde, a estruturação edípica possibilitaria a entrada na fase da latência e possibilitaria a seguir o desenvolvimento de relações de objeto, inclusive com o analista, numa interação adaptativa com o mundo externo, que adquire na fase genital seu pleno desenvolvimento.[17] 

A teoria kleiniana parte da constatação que crianças, muito antes dos quatro ou cinco anos de idade, sofrem de fobias.[18] A criança desde os primeiros meses de vida demonstra estar à mercê de ansiedades persecutórias,[19] que encontram expressão nas fobias arcaicas.[20] 

Isto supõe uma situação conflitual que antecipa o Complexo de Édipo para fases muito mais primitivas do desenvolvimento. Sem o Complexo de Édipo, de fato, não é possível nenhuma patologia estrutural, pois não haveria nada que impediria ao Id de se tornar consciente. Para M. Klein o que “proíbe” a manifestação do id é algo que pertence ao próprio impulso, algo que ela relaciona com um funcionamento psíquico interno ligado à pulsão de morte. É em busca de um representante psíquico inconsciente que possibilite as relações de objeto, que Klein acaba formulando a teoria das fantasias inconscientes. 

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A questão metodológica 

Diante do contexto polêmico em que estas teorias surgem, Susan Isaacs tenta esclarecer as teses kleinianas sobre a natureza e a função da fantasia no contexto dos processos mentais estudados pela Psicanálise e mostrar sua coerência no âmbito geral do pensamento freudiano.[21] Neste sentido, o tom do artigo é bastante peremptório. Para Isaacs, o trabalho clínico mostra com clareza que existem certos fenômenos mentais que implicam na atividade de fantasias inconscientes, desde os primeiros anos de vida, embora seja difícil estabelecer o conteúdo de tais fantasias. Isto supõe numa ampliação do conceito de fantasia, que pode ser esclarecido remontando às primeiras fases do desenvolvimento humano, durante os primeiro três anos de vida. 

Diante do ceticismo quanto à possibilidade de compreender a vida psíquica nesta fase, a autora considera que o método da inferência permite o estudo desses fenômenos a partir da convergência de três fatores: 

a) Relações entre fatos e teorias conhecidos do pensamento psicanalítico; 

b) Evidências clínicas a partir da análise de adultos e crianças; 

c) Observação não analítica do comportamento infantil. 

Sabendo que está diante de questões polêmicas no contexto da Psicanálise, a autora dedica um atento exame à questão do método. 

a) Recorrendo aos métodos de observação desenvolvidos na área comportamental, Isaacs considera que três técnicas possam ser aplicadas à clínica analítica: 

a. Atenção aos pormenores, ou seja a observação minuciosa do comportamento do bebê e de suas reações, comparando os dados assim obtidos. 

b. Observação do contexto que consiste em notar e registrar o contexto emocional e social dos dados observados no que diz respeito á manifestação de sintomas de ansiedade, júbilo, triunfo, afeição, aflição, etc. (cf. o exemplo do “fort / da”, observado por Freud na brincadeira de um bebê quando a mãe se afasta). 

c. Estudo da continuidade genética, a partir do pressuposto que o desenvolvimento é um processo, embora não uniforme pois existem crises definidas de crescimento. Neste sentido, os processos mentais não podem ser considerados como fatos sui generis, mas como “itens numa série evolutiva ou seqüência”. Isto leva a crer que as fantasias sejam ativas com os impulsos de que elas surgiram. 

b) O Método da Psicanálise 

Os três aspectos acima citados, aplicáveis á observação do comportamento, representam para Isaacs aspectos essenciais do trabalho psicanalítico. A análise do contexto e a observação dos pormenores estão, no trabalho analítico intimamente ligados. O analista deve observar atentamente: repetições e omissões na fala, a ênfase dada aos diferentes momentos da fala, o contexto afetivo e associativo, o estilo verbal, a seleção de fatos, a maneira como o paciente entra e sai da análise, como se comporta no divã (tom de voz, cadência da fala, etc.), estados de humor e sintomas de afeição. O terceiro princípio está estritamente ligado á maneira como Freud descreve as sucessivas fases do desenvolvimento. Klein, observa Isaacs, transportou o mesmo método para o seu trabalho analítico com crianças, usando atividades lúdicas com objetos materiais como base de observação. “Nas relações da criança com o analista, tal como acontece com os adultos, as fantasias que se manifestaram em situações anteriores da vida são repetidas e representadas (...) com uma riqueza de vívidos pormenores”.[22] 

A autora observa que é “especialmente na relação emocional do paciente com o analista que o estudo do contexto, dos pormenores e da continuidade do desenvolvimento demonstra ser fértil para a compreensão da fantasia”,[23] pois os pacientes repetem com o analista situações envolvendo afetos, impulsos e processos mentais de que tiveram experiência anteriormente em suas relações de objeto. A situação transferencial modifica-se de acordo com a personalidade, atitudes, intenções e até com as características externas e o sexo do analista e de acordo com as modificações da vida interior do paciente. Conclui portanto a autora que a “relação do paciente com o seu analista é quase inteiramente de fantasia inconsciente”.[24] Através da repetição e da representação é possível remontar a sentimentos, impulsos e atitudes dos primeiros meses de vida e adquirir assim “um sólido conhecimento do que realmente se passou na mente do analisando quando era criança pequena”.[25] 

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O método acima exposto usado para pacientes acima dos dois anos de vida permite, na opinião de Isaacs, inferir as fantasias mais remotas de crianças com menos de dois anos de vida, com um considerável grau de probabilidade, aplicando ao comportamento do bebê, os princípios de observação acima expostos e a compreensão obtida através da análise de adultos. 

Natureza e função da fantasia 

No contexto psicanalítico interessam especialmente as fantasias inconscientes. Isaacs observa que o fato de o termo fantasia ser usado, na linguagem comum, em contrapartida ao termo realidade, pode levar a negar a realidade objetiva da fantasia inconsciente como fato mental. O fato da fantasia não estar em sintonia com a realidade externa não quer dizer que ela não tenha uma realidade psíquica. Como frisa Segal, “a fantasia não é simplesmente uma fuga da realidade, mas um constante e inevitável acompanhamento de experiências reais, com as quais está em constante interação”.[26] O fato das fantasias inconscientes poder determinar o tipo de “seqüência casual atribuída aos acontecimentos”, demonstra que elas estão constantemente influenciando e alterando a percepção ou a interpretação da realidade, mas, por outro lado não podemos ignorar que também a realidade exerce o seu impacto sobre as fantasias inconscientes.[27] Para Segal o inter-relacionamento entre fantasia inconsciente e realidade externa é muito importante, pois permite avaliar a importância do ambiente no desenvolvimento da criança, uma tese que será sucessivamente desenvolvida com maior profundidade por Winnicot. Mas, ao mesmo tempo frisa algo que é típico da visão kleiniana, o fato da fantasia ter vida própria: “O ambiente tem (...) efeitos extremamente importantes na tenra infância e na infância posterior, mas daí não se conclui que, sem um ambiente mau, não existiriam fantasias e ansiedades agressivas e persecutórias”. [28] Isaacs observa ainda que, embora seja no contexto da patologia neurótica que a fantasia inconsciente revela todas sua força, ela não atua apenas neste contexto. Para Isaacs, o que define a normalidade é a maneira como a fantasia é tratada, trabalhada pelo processo mental e o grau de adaptação ao mundo externo. 

No âmbito da teoria kleiniana, a fantasia é o conteúdo primário dos processos mentais inconscientes. Os processos mentais nascem do inconsciente, a partir das necessidades instintuais. As fantasias são portanto expressões mentais dos instintos, uma representação psíquica dos instintos libidinais e destrutivos. A atividade do fantasiar, como observa a própria M. Klein, tem suas raízes nas pulsões, da qual é um corolário.[29] 

Interessante é a relação que Isaacs estabelece entre a alucinação e a fantasia inconsciente. A alucinação não apenas consiste em elaborar uma imagem interna do objeto desejado, mas em simular a obtenção do objeto desejado (em situações de tensão libidinal atenuada); neste sentido é um verdadeiro acting out (atuação) da fantasia. Com o aumento da tensão a alucinação tende a desaparecer, a intensidade do desejo aumenta com a dor da frustração e o objeto do desejo é introjetado mediante uma fantasia onipotente (incorporação do seio). Com o aumento da frustração a tensão instintiva já não pode mais ser negada. O objeto desejado assume um caráter persecutório e a agressividade se manifesta. 

As fantasias têm um papel importante no desenvolvimento inicial. As dificuldades do bebê na alimentação e na excreção, ou as fobias, de fato, têm sua origem em fantasias inconscientes. O dor mental sempre implica uma fantasia. Quando a mãe some o bebê acha que foi destruída por sua agressividade e voracidade, numa atitude onipotente em que prevalece a interpretação subjetiva. 

Inicialmente as fantasias relacionadas aos impulsos de desejo mais arcaicos são determinadas pela lógica da emoção, num período sucessivo de desenvolvimento, porém, podem ser expressas em palavras. No entanto, observa Isaacs, “na infância e na vida adulta (...) fantasiamos e atuamos muito além dos nossos significados verbais”.[30] “As palavras são meio de referência à experiência real ou fantasiada, mas não são idênticas e ela, nem a substituem”,[31] pois pertencem à atividade consciente. A prova mais convincente disso são os sintomas de conversão na histeria, em que fantasias (desejos e emoções, crenças) arcaicas se manifestam sob forma de uma regressão pré-verbal, através de sintomas físicos (sensações, posturas, gestos e processos viscerais). Embora a atividade simbólica consciente possa ter como base a fantasia, ela não se identifica com a fantasia e uma criança terá fantasias muito antes que possa expressá-las em palavras. 

Para compreender o verdadeiro sentido da fantasia inconsciente kleiniana é importante retomar a relação entre fantasia e experiência sensorial. A primeira realização fantasiada de um desejo está vinculada à sensação. “As primeiras fantasias promanam de impulsos físicos e estão interligadas com sensações e afetos físicos”.[32] Isaacs frisa que as fantasias expressam inicialmente uma realidade interna e subjetiva, mas estão vinculadas com uma realidade concreta (objetiva). Na fase da amamentação, o bebê sente angústia por causa de estímulos internos (corporais, viscerais) e, em decorrência disto, pode sentir satisfação e afetos agradáveis, ou sentir uma frustração do seu desejo, sob forma de sensações e afetos desagradáveis e persecutórios, como se estivesse sendo agredido pelo objeto desejado. As primeiras experiências corporais estimulam as primeiras recordações e introjeções de realidades externas sob forma de fantasias. No entanto, as fantasias não têm origem no mundo externo, sua origem é essencialmente interna, nos impulsos instintivos. Portanto, não é necessário que a criança tenha visto objetos externos destruídos para

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que surja a fantasia de poder destruir o seio materno. Fantasias são inicialmente uma percepção primária dos impulsos derivados da pulsão de vida e de morte. Um exemplo disso são as fantasias ligadas às dificuldades no controle do esfíncter e na enurese. As fezes e a urina podem ser expressão de coisas boas que a criança quer dar á mãe como expressão de seu amor, algo que a mãe supostamente quer. Esta fantasia encontra um eco na realidade externa, quando a mãe as recebe positivamente. Mas as fezes podem também ser uma forma de agressão, relacionadas à fantasia de afogar, queimar na urina a mãe má (instintos de morte). A urina que queima é expressão da raiva impotente do bebê, de acordo com suas intenções no momento de evacuar, intenções que podem ser fixadas pela maneira agressiva de como a mãe as recebe. Estas fantasias estão ligadas às fantasias sexuais infantis, descritas por Freud, sobre a origem dos bebês e sobre a cena primária (o pai introduz na mãe comida ou fezes, boas ou más, conforme a ocasião e a natureza da fantasia interna da criança). As fantasias exprimem desejos e paixões, utilizando-se dos impulsos corporais do bebê como seu material de expressão.[33] 

Isaacs faz notar a relação entre a fantasia inicial e o processo primário. As fantasias como interpretações afetivas das sensações corporais são caracterizadas pelas qualidades que Freud atribuiu ao processo primário: falta de coordenação, falta do sentido do tempo, de negação e de contradição, ou seja, elas ocorrem sem que haja discriminação da realidade externa (daí o prevalecer nesta fase da posição esquizo-paranóide). A mãe percebida como objeto interno mau, não implica num raciocínio, mas numa identificação entre a dor sentida e a mãe. A relação entre sensação interna e realidade externa começa a ser feita só mais tarde, perto dos 6 meses. Inicialmente, trata-se portanto de uma experiência “absoluta”, sem contato com a realidade externa. No entanto, este processo primário não domina “toda” a vida mental do bebê, pois, desde o nascimento, ocorrem adaptações ao meio externo e interações que modificam sua vida mental, num processo de integração que supõe memória e previsão. O brincar passa assim a ser uma forma adaptativa do bebê à realidade externa e um meio de expressão de suas fantasias. 

Isaacs faz notar a relação entre a fantasia inicial e o processo primário. As fantasias como interpretações afetivas das sensações corporais são caracterizadas pelas qualidades que Freud atribuiu ao processo primário: falta de coordenação, falta do sentido do tempo, de negação e de contradição, ou seja, elas ocorrem sem que haja discriminação da realidade externa (daí o prevalecer nesta fase da posição esquizo-paranóide). A mãe percebida como objeto interno mau, não implica num raciocínio, mas numa identificação entre a dor sentida e a mãe. A relação entre sensação interna e realidade externa começa a ser feita só mais tarde, perto dos 6 meses. Inicialmente, trata-se portanto de uma experiência “absoluta”, sem contato com a realidade externa. No entanto, este processo primário não domina “toda” a vida mental do bebê, pois, desde o nascimento, ocorrem adaptações ao meio externo e interações que modificam sua vida mental, num processo de integração que supõe memória e previsão. O brincar passa assim a ser uma forma adaptativa do bebê à realidade externa e um meio de expressão de suas fantasias. 

Instintos, fantasia e mecanismos psíquicos (introjeção e projeção) 

Para esclarecer ainda mais o conceito de fantasia, Isaacs, estabelece uma relação entre instinto, fantasia e mecanismo, em particular entre as fantasias de incorporação e os mecanismos de introjeção. Projeção e introjeção são mecanismos mentais, ou seja “modos particulares de operação da vida mental, como um meio para enfrentar tensões e conflitos internos”.[34] Através desses mecanismos, idéias, impressões e influências penetram no ego e passam a integrá-lo, ou então, elementos do ego, deixam de ser reconhecidos como seus e são projetados no mundo externo. Tais mecanismos são relacionados com fantasias de incorporação de objetos amados e odiados. Para Isaacs “a fantasia é o vínculo operante entre o instinto e o mecanismo do ego”.[35] O instinto é caracterizado por um impulso motório dirigido para um objeto externo concreto, Seu representante mental é a fantasia. É através da fantasia (daquilo que preenche nossas necessidades) que o impulso instintivo pode se concretizar na realidade externa. “Embora sejam fenômenos psíquicos, as fantasias são, primariamente (...), dores e prazeres corporais, dirigidas a objetos”.[36] A fantasia, portanto, ”é uma invenção, uma vez que não pode ser tocada, agarrada ou vista; contudo, é real na experiência do sujeito”.[37] Nisto reside o paradoxo, a fantasia é uma função puramente mental e, no entanto, tem efeitos reais, com repercussões tanto internas como externas. Resumindo podemos dizer que os Instintos são: processos psicossomáticos dirigidos para objetos externos. As fantasias: são representantes psicossomáticos dos instintos (“expressão mental” de um instinto, como diria Freud). Elas permitem concretizar no mundo externo nossas necessidades instintivas mediante a “representação” fantasiada daquilo que preenche nossas necessidades. São uma invenção da mente, mas para o indivíduo representam uma experiência real subjetiva. Elas produzem no ego efeitos reais, emoções, comportamentos concretos em relação a outras pessoas; com repercussões no mundo externo, provocando mudanças que afetam o caráter e a personalidade, gerando sintomas, inibições, capacidades. 

No mecanismo de introjeção a fantasia elabora uma imago interna de um objeto externo. Os dois passam a ser percebidos como distintos num lento processo de desenvolvimento, que Isaacs sintetiza nas seguintes fases: 

a) Em seu estádio primitivo, as fantasias remetem a impulsos orais e motórios ligados à experiência de introduzir coisas. 

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b) Tais fantasias representam inicialmente uma experiência corporal pouco suscetível de ser relacionada com o objeto externo. Isto confere á fantasia uma qualidade concreta corporal (sentida no corpo, não distinguível de sensações externas). 

c) Pouco a pouco, a separação entre mundo interno e esterno se torna mais clara. Nesta fase os impulsos corporais e sua expressão mental (fantasias) sofrem repressão. Os objetos externos são convertidos em imagens mentais de objetos externos percebidos com tais. 

d) Tais imagens mentais, porém, podem passar a afetar a mente por estar nela, na medida em que se relacionam com as imagens internas (fantasias), suas associadas somáticas reprimidas e inconscientes, que constituem o elo com o id e que permitem “sentir” o objeto associado como incorporado. 

Isaacs chama a atenção na distinção entre imago e imagem. A primeira refere-se a uma imagem inconsciente, a segunda à imagem mental de objetos externos. Na imagem os elementos somáticos e emocionais estão em grande parte reprimidos, ao passo que estão presentes na imago. Já os mecanismos estão relacionados com fantasias específicas e, portanto, são sempre experimentados como fantasias. Eles derivam “dos instintos e reações inatas de ordem corporal”.[38] 

Fantasias, imagens da memória e realidade 

As fantasias participam do desenvolvimento inicial do ego em sua relação com a realidade. Elas impulsionam em direção à realidade externa, que por sua vez fornece material para a fantasia e a memória. Mais tarde, as percepções externas começam a influenciar os processos mentais. “No começo, a psique lida com a maioria dos estímulos externos (...) por meio dos mecanismos primitivos de introjeção e projeção”.[39] Na medida em que a realidade externa frustra o bebê, ela é odiada e rejeitada. Desta forma, pode ser investida pela libido e sucessivamente amada, compreendida e aprendida. Portanto, o desapontamento da satisfação alucinatória é o primeiro estímulo para a aceitação adaptativa da realidade. Contudo o adiamento da satisfação e a expectativa só podem ser suportados quando a realidade propicia uma satisfação dos impulsos instintivos. Tanto o pensamento de fantasia como o pensamento de realidade são modos distintos de obter satisfação, que supõem desejo, curiosidade e medo. No entanto, “o pensamento de realidade não pode operar sem a concorrência e apoio de fantasias inconscientes”.[40] Objetos que o bebê agarra e manipula estão investidos de libido oral. Se ele fosse inteiramente auto-erótico, como sustentava Freud nunca aprenderia coisa alguma, pois a preensão satisfaz desejos orais frustrados pelo seu objeto original. 

M. Klein recorre ao conceito de identificação primária, definido por Ferenczi como o esforço do bebê para redescobrir em todos os objetos os seus próprios órgãos e seu funcionamento. Da mesma forma compartilha a opinião de E. Jones, para quem é o princípio de prazer que torna possível equacionar dois objetos separados, estabelecendo um vínculo afetivo. A função simbólica habilita a fantasia a ser elaborada pelo ego e permite às sublimações de se desenvolverem. É o processo de formação de símbolos que em grande parte libidiniza o mundo externo. São as fantasias que sustentam e promovem o interesse pelo mundo externo, facilitam a aprendizagem e fornecem a energia para organizar os conhecimentos. Tudo isto a partir de um processo que envolve controle, inibição e satisfação dos impulsos instintivos. 

[1] A. SEGAL, Introdução à obra de Melanie Klein, Imago, Rio de Janeiro, 1975, p.22. 

[2] Id, Ibid, p. 23. 

[3] Cf. o interessante artigo de R. D. HINSHELWOOD, “O indefinível conceito de ‘objetos internos’, seu papel na formação do grupo kleiniano” in Livro anual de Psicanálise (1997), XIII, pp.205-224. 

[4] Trata-se de uma anotação da própria M. Klein, citada em Id., Ibid., p. 213. 

[5] O uso da atividade do fantasiar como parte de uma atividade egóica mais desenvolvida é assim descrita por Klein: “Quando a ansiedade e a culpa diminuem e o amor e o ódio podem ser mais bem [sic] sintetizados, os processos de cisão (...), bem como as repressões atenuam-se, enquanto o ego ganha em força e coesão; a clivagem entre objetos idealizados e persecutórios diminui; os aspectos fantasiosos dos objetos enfraquecem. Tudo isso implica que a vida de fantasia inconsciente (...) pode ser mais bem [sic] utilizada em atividades do ego, tendo como conseqüência um enriquecimento geral da personalidade” (Cf. “Nosso mundo adulto e suas raízes na infância “ in Inveja e Gratidão e outros trabalhos, Imago, Rio de Janeiro, 1991, p 79). 

[6]A. SEGAL, Op. Cit., p 24. 

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[7] M. KLEIN, “Nosso mundo adulto e suas raízes na infância” in Op. Cit., Imago, Rio de Janeiro, 1991, p 283. 

[8] Id., ibid., p. 284. 

[9] Id., ibid., p. 284. 

[10] Id., ibid., p. 284. 

[11] Id., ibid., p. 284. 

[12] A. SEGAL, Op. Cit., p 24. 

[13] R. D. HINSHELWOOD, Op. Cit, p. 213. 

[14]Citado em Id., Ibid., p. 212. 

[15] Ou ante antes do nascimento, a partir da própria vida intra-uterina, como algumas teorias recentes parecem sugerir. 

[16] S. FREUD, “A dissolução do Complexo de Édipo” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIX, Imago, Rio de Janeiro, 1996, pp 193. 

[17] “As catexias de objeto são abandonadas e substituídas por identificações. A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no ego e aí forma o núcleo do superego, que assume a severidade do pai e perpetua a proibição deste contra o incesto, defendendo assim o ego do retorno da catexia libidinal. As tendências libidinais pertencentes ao complexo de Édipo são em parte dessexualizadas e sublimadas (coisa que provavelmente acontece com toda transformação em uma identificação) e em parte são inibidas em seu objetivo e transformadas em impulsos de afeição” (Cf. Id, Ibid, pp 196). 

[18] Afirma Klein: “Sustento (...) que ansiedades persecutórias e depressivas excessivas em bebês pequenos são de importância crucial na psicogênese das perturbações mentais” (Cf. o capítulo “Sobre a observação do comportamento de bebês” in Op. Cit., pp. 120-148). 

[19] “Eu sugeriria que as fobias que surgem durante os primeiros meses de vida são causadas pela ansiedade persecutória, que perturba a relação com a mãe internalizada e com a externa” (M. KLEIN, “Algumas conclusões teóricas relativas à vida emocional do bebê” in Op. Cit., p. 130). 


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