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  • 1UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    Ps-graduao Histria Social

    AS LUTAS ANTI-RACISTAS DE AFRO-DESCENDENTES

    SOB VIGILNCIA DO DEOPS/SP

    (1964-1983)

    Dissertao de mestrado entregue como parte da avaliao para obteno do ttulo de

    Mestre, sob orientao da Profa. Dra. Leila Maria Gonalves Leite Hernandez.

    Karin Sant Anna Kssling

    no USP: 3112661

    So Paulo, 2007

  • 2SUMRIO

    RESUMO

    AGRADECIMENTOS

    ABREVIAES

    INTRODUO

    I LUTAS ANTI-RACISTAS SOB O OLHAR DO DEOPS/SP1.1) Aspectos dos Aparatos Repressivos1.2) Represso e vigilncia aos movimentos negros brasileiros

    II OS DISCURSOS POLICIAL E MILITAR2.1) Os discursos sobre o negro: estigmas e esteretipos2.2) Os discursos sobre os movimentos de independncia africanos2.3) Os discursos sobre os movimentos negros dos Estados Unidos

    III - MOVIMENTOS NEGROS E SEUS PRINCIPAIS DEBATES3.1) Afro-marxismo3.2) Crticas as estruturas do regime militar3.3) Negritude e Pan-africanismo3.4) frica: o colonialismo e o racismo3.5) Os conflitos raciais nos Estados Unidos3.6) Construo do heri: Zumbi e o Dia da Conscincia Negra

    IV - CARACTERSTICAS DOS MOVIMENTOS NEGROS BRASILEIROS

    4.1) Dilogo com outros movimentos4.2) A viso do MUCDR e MNU4.3) Divergncias e Unidade4.4) Os partidos polticos e as comisses de negros

    V - CONSIDERAES FINAIS

    VI. Fontes

    VI. Bibliografia

    VIII. Anexos

  • 31

    Dedico essa dissertao a todos aqueles que sofreram perseguies polticas

    1 Xrox do cartaz do MNU de divulgao do seu III Congresso, de 1982. In Sumrio Semanal de Informaes do CODIN/COSEG, do perodo entre 26/3 a 1/4/1982, de 2/4/1982, fl. 14. Dossi 50-H-84- 5457. DEOPS/SP, DAESP.

  • 4RESUMO

    O tema principal desta dissertao a vigilncia e a represso do regime militar

    brasileiro as lutas anti-racistas no perodo de 1964 a 1983, por meio da documentao do

    DEOPS/SP. Buscamos compreender as lgicas por de trs da vigilncia policial,

    investigando, em especial, o preconceito e a persistncia de estigmas e esteretipos raciais

    no discurso sustentado pela polcia poltica.

    Ao mesmo tempo, ao pesquisar as noes e classificaes policiais sobre os

    movimentos negros tambm obtivemos parte dos discursos empregados pelos ativistas

    destes movimentos. Assim, visamos compreender as contraposies entre os discursos e

    aes sustentados pelos aparatos policiais envolvidos no regime militar e os apresentados

    pelas lutas anti-racistas dos afro-descendentes no Brasil.

    ABSTRACT

    The central theme of this dissertation is the vigilance and the repression from the

    brazilian military regime on the subject of the anti racist fights at the period of 1964 at

    1983, through the documentation from the DEOPS/SP. To embrace the logic behind the

    police alertness we inquired, particularly, the bias and the persistence of racial stigmas and

    stereotipies at the discourse supported by the policy police.

    At the same time, on seeking the police ideas and classifications about blacks

    movements as well we got some of the discourses employed by the militants of these

    movements. In this manner, we aim to understand the counterpoints among the discourses

    and the actions suffered by the police display involved at the military regime and the

    presented by the afro-descendants anti-racist fights in Brazil.

    PALAVRAS-CHAVES

    Movimento Negro, Regime Militar, Racismo, DEOPS, Polcia Poltica

  • 5AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, Ivan Padilha Kssling e Vera Terezinha Sant Anna Kssling, por todo

    suporte emocional, financeiro, estrutural, educacional, etc etc. Por tudo de bom que vocs

    proporcionaram na minha criao e que com muito orgulho formou e influenciou quem eu

    sou e que me possibilitou chegar at aqui.

    Aos professores de todos os nveis educacionais pelo qual eu passei, e com quem tive o

    prazer de aprender a gostar de aprender, ou seja, ter o gosto pelos estudos. Em uma poca

    que a docncia parece cada vez ter menor valor em nossa sociedade quero aqui reafirmar a

    importncia que cada professor teve em minha formao. Em especial, agradeo a duas

    importantes professoras que marcaram minha trajetria de pesquisadora: A Profa. Dra.

    Maria Luiza Tucci Carneiro, que me orientou na iniciao cientfica durante a graduao

    em Histria; e a Profa. Dra. Leila Maria Gonalves Leite Hernandez, que orientou a

    presente pesquisa sempre com muita generosidade, ateno e zelo.

    Aos meus queridos alunos que me ensinaram a ser professora. Aos colegas de

    magistrio que com seu companheirismo sempre apoiaram a realizao deste mestrado.

    Ao Marcos Aurlio Nogueira Loureno que durante a pesquisa me auxiliou com sua

    amizade e companheirismo. Alm de ouvir todas minhas angstias decorrentes do processo

    de pesquisa, ele esteve intimamente ligado a este e outros trabalhos lendo-os e fazendo

    gratuitamente a reviso.

    Ao Marcos Antonio Veiga Lopes por sua infinita amizade, um grande amigo e um

    grande exemplo de pesquisador e historiador. Colega de faculdade, de pesquisas, de

    dvidas, de angstias, de metodologias, teorias, etc.

    Ao Mrcio Macedo (Kibe) por sempre fornecer auxlio nessa minha jornada pelos

    movimentos negros, desde a graduao at o mestrado. Alm de ser um excepcional

    pesquisador sobre os movimentos negros, com dissertao de mestrado que trouxe uma

    grande contribuio no assunto.

    Aos diversos amigos e colegas que fizeram parte dessa dissertao, seja de forma direta

    ou indireta. Valeu pela compreenso das vrias vezes que tive que dizer no. Maya Tamie

    Nakahara, Vania Vaitieka, Kelly Jardim, rika Cunha, Leandro de Almeida, Karina Alves

    Teixeira, Dayane Nogueira e tantos outros.

  • 6Aos colegas do PROIN, projeto coordenado pelos professores Dr. Boris Kossoy Dra.

    Maria Luiza Tucci Carneiro, que fizeram presente nas minhas pesquisas desde a graduao.

    Aos colegas do grupo de alunos orientados pela Profa. Dra. Leila Maria Gonalves

    Leite Hernandez: Regiane, Gabriela, Joceley, Paulo Manoel, entre outros. Especialmente a

    Marly Spacadieri que sempre nos auxiliou na logstica desse processo.

    Aos funcionrios do Arquivo do Estado de So Paulo que auxiliaram a adentrar neste

    universo documental.

    Aos Profs. Dr. Antnio Srgio Alfredo Guimares e Dra. Maria Luiza Tucci Carneiro

    pelas contribuies de grande valia na qualificao deste trabalho.

    Ao CAPES pelo apoio financeiro, concedendo bolsa de estudos.

    E por fim a todas as entidades espirituais que me acompanham, estas afiaram minha

    intuio para a localizao dos documentos que compe essa pesquisa. A minha f nessas

    entidades tambm fez com que eu tivesse foras para enfrentar todos os obstculos que se

    apresentaram no processo. Salve!

  • 7ABREVIAES

    AI Ato Institucional

    ASI - Assessorias de Segurana e Informaes

    CEABAR Centro de Estudos Afro-brasileiro Andr Rebouas

    CENIMAR - Centro de Informaes da Marinha

    CIA Agncia de Inteligncia dos Estados Unidos

    CIDAC - Centro de Informao e Documentao Anti-colonial

    CIE - Centro de Informaes do Exrcito

    CISA - Centro de Informaes de Segurana da Aeronutica

    CN Cadernos Negros

    CODI - Centros de Operaes de Defesa Interna

    CS Convergncia Socialista

    DEOPS Departamento Estadual de Ordem Poltica e Social

    DGS - Direo Geral de Segurana

    DOI Destacamentos de Operaes de Informaes

    ESG Escola Superior de Guerra

    EsNI Escola Nacional de Informaes

    EUA Estados Unidos

    FBI Federal Bureau of Investigation - Polcia Federal dos Estados Unidos

    FGV Fundao Getlio Vargas

    FNLA Frente Nacional de Libertao de Angola

    FRELIMO Frente de Libertao de Moambique

    FRENAPO Frente Negra para a Ao Poltica de Oposio

    GRAE - Governo Revolucionrio de Angola no Exlio

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IPM Inqurito policial militar

    KGB Servio Secreto da Unio Sovitica

    LSN - Lei de Segurana Nacional

    MNUCDR Movimento Negro Unificado contra a Discriminao Racial

    MNU Movimento Negro Unificado

  • 8MUCDR- Movimento Unificado contra a Discriminao Racial

    MPLA - Movimento pela Libertao de Angola

    MR 8 Movimento Revolucionrio 8 de outubro

    OBAN Operao Bandeirante

    ONU Organizao das Naes Unidas

    OP Ordem Poltica

    OS Ordem Social

    PAIG - Partido Africano da Independncia de Guin e Cabo Verde

    PCB Partido Comunista Brasileiro

    PIDE Polcia poltica portuguesa

    PM Polcia Militar

    PT - Partido dos Trabalhadores

    PUC/SP Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    SACHAC Sociedade Habitacional de Carapicuba

    SNI Servio Nacional de Informao

    SISNI Sistema nacional de informaes

    SISSEGIN Sistema nacional de segurana

    SWAPO - Organizao do Povo do Sudoeste Africano

    UMES Unio Metropolitana dos Estudantes Secundaristas

    UNITA - Unio Nacional para a Independncia Total de Angola

    URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

    USP Universidade de So Paulo

  • 9INTRODUO

    bano (Luis Melodia)Canta Luis MelodiaMeu nome bano/ Venho te felicitar tua atitude/ Espero te encontrar com mais sade / Me chamam bano / O novo peregrino sbio dos enganos / Seu ato dura pouco tempo se estragando / Eu grito bano / O coro que cobre a carne no tem planos / A sombra da neurose te persegue h muitos anos / Do Rio de Janeiro estou te sacando / Do centro da cidade vou te assemelhando / No ncleo do seu crnio eu mostrei meu jogo / Tem a quem te amando / Pessoal passando / E s eu ficando 2

    O objetivo central dessa pesquisa de mestrado foi analisar como se desenvolveu a ao

    vigilante e repressiva aos movimentos negros pelo regime militar de 1964 a 1983,

    investigando o preconceito e a persistncia de estigmas raciais no discurso sustentado pela

    polcia poltica, o DEOPS/SP, rgo repressor do Estado que forma a principal fonte

    documental investigada.

    Nesse sentido, o recorte cronolgico de 1964 a 1983, tem seu incio com o Golpe de

    1964 e se encerra com o desativamento oficial do DEOPS/SP, em 1983. Esta instituio

    tinha como dever atribudo pelo Estado coibir o crime poltico, tornando-se um sistema de

    represso que procurou controlar a disseminao de idias contestatrias e reprimir a

    atuao poltica da sociedade. A preocupao em manter o controle social levou os

    militares a organizarem vrios rgos, formando um complexo aparato repressivo por meio

    da atuao do Servio Nacional de Informao, das Sees das Foras Armadas, dos

    COI/CODI e dos DOPS estaduais que integravam a comunidade de informaes e

    segurana.

    preciso ressaltar que a vigilncia aos movimentos negros por parte do DEOPS/SP no

    foi iniciada com o regime militar. Desde a dcada de 1930, em geral, ocorreu uma atuao

    repressiva s associaes afro-descendentes, sustentada por uma viso policial que

    classificava essas associaes como introdutoras da questo racial no Brasil e, por

    conseqncia, geradora de conflitos que poderiam desestabilizar a democracia racial

    brasileira.3 Haroldo Costa, em sua obra Fala Crioulo alerta que: cada vez que h um

    2 Dossi 50-Z-138- 806. DEOPS/SP, DAESP.3 Estudo realizado por mim em Iniciao Cientfica, financiado pela FAPESP e orientado pela Profa. Dra. Maria Luiza Tucci Carneiro, com a documentao do DEOPS: Movimentos Negros: Identidade tnica, Identidade poltica (1924-1950). A ser publicado na Srie Inventrios do Arquivo do Estado de So Paulo.

  • 10

    endurecimento, um fechamento poltico, o negro atingido diretamente porque todas as

    suas reivindicaes particulares, a exposio de suas nsias, a valorizao de sua histria,

    desde que no sejam feitas segundo os ditames oficiais, cheiram contestao

    subversiva.4 Esta constante vigilncia e represso aos movimentos negros ao longo do

    sculo XX, sobretudo entre 1964-1983, o principal eixo deste trabalho.

    Historicamente esta represso se traduz em violncias e mecanismos de legitimao do

    uso da fora contra os inimigos. Importante salientar que a violncia no se limita a uma

    simples oposio pacificao de um mundo equilibrado e homogneo, que pressupe uma

    ordem social. Violncia uma palavra carregada de contedos negativos. Na linguagem

    ordinria, jornalstica ou jurdica, a qualificao de um ato como sendo violento comporta

    uma condenao. 5 No entanto, a pacificao no um processo unidirecional e muito

    menos a paz um valor absoluto, a paz tambm se impe pela fora, estados de paz so, em

    geral, temporrios e frgeis. Assim, a violncia a utilizao da fora fsica na regulao

    das relaes sociais e, violncia poltica o uso da fora em situaes pblicas, em relaes

    sociais compreendidas pelos agentes sociais como prprio do mundo da poltica. 6 Desta

    forma, o uso da fora situa-se no tempo e no espao social e relativo a posies e pontos

    de vista, de forma que o que legtimo ou justo em um momento ou para um grupo social,

    em outro momento ou para outro grupo pode no o ser.

    Sob essa perspectiva, investigamos o projeto poltico envolvido na construo do

    pensamento autoritrio do regime militar acerca da identificao e da perseguio dos

    adjetivados como inimigos do regime. Nesse sentido, visamos compreender as condies

    sociais e os motivos que levaram os militares a legitimar o uso da fora para fazer poltica e

    impor seus ideais de sociedade. Priorizamos os consensos presentes nos projetos polticos

    dos militares no poder. No entanto, essa poltica no pode ser pensada como um bloco

    monoltico, uma vez que apresentou especificidades nas suas lutas e em seus embates, o

    consenso sobre determina e impede a existncia de dissenso.

    O perodo histrico que estudamos possibilitava espao para que certos setores sociais

    fossem classificados como aliados ou inimigos pelos grupos de poder. O golpe militar de

    4 COSTA, Haroldo. Fala Crioulo. Rio de Janeiro: Record, 1982, s/ n. pg.5 NEIBURG, F. O naciocentrismo das cincias sociais e as formas de conceituar a violncia poltica e os processos de politizao da vida social In NEIBURG, F. [et al]e WAIZBORT, L. (org) Dossi Nobert Elias. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1999, p. 41.6 NEIBURG, F. Op. Cit., p. 44.

  • 11

    1964, gnese do regime militar no Brasil marcou a construo de um projeto poltico dos

    militares. Assim, no primeiro captulo tratamos das dimenses histricas das instituies

    envolvidas na vigilncia e na represso da sociedade, salientando a atuao da comunidade

    de informaes e de segurana, na qual o DEOPS/SP se inseriu e que estava a cargo de por

    em prtica o projeto poltico de controle social.

    No segundo captulo, buscamos compreender a prtica dos aparatos repressivos em

    relao aos movimentos negros. O material privilegiado para apreenso deste tema foram

    os discursos produzidos pela comunidade de informaes e segurana. Para transcender

    uma anlise puramente interna e formal desses discursos, tornou-se importante articul-los

    s prticas sociais desenvolvidas pelos aparatos repressivos. Em outros termos, as relaes

    entre idias e aes polticas s podem ser recuperadas se estabelecida uma relao de

    oposio complexa entre ambas em um contexto histrico determinado. Assim, os sistemas

    de pensamento so processos dinmicos nos quais as experincias concretas so

    integradas ordem dos conceitos e discursos. 7 O discurso uma leitura da realidade

    social, mas que no nasce por si s, exprimindo tambm uma relao com outros discursos.

    com o dilogo e o confronto de idias que se estabelecem novos discursos. Nesta

    abordagem, a tradio tambm importante no caso especfico deste trabalho de pesquisa,

    notamos essa questo ao identificar relaes intrnsecas entre os discursos da polcia

    poltica sobre os movimentos negros no perodo do regime militar e a tradio construda

    pelo DEOPS/SP ao longo do sculo XX. Nesse sentido, as publicaes da teoria policial,

    por exemplo, a Revista Arquivos produzida pela polcia civil paulista e de circulao

    interna policial, constituram parte importante da documentao para compreenso dos

    pensamentos envolvidos na prtica policial.

    Nesta pesquisa de mestrado buscamos mais especificamente compreender o

    pensamento policial acerca dos movimentos anti-racistas de afro-descendentes no Brasil e

    por qu foram classificados como subversivos, sendo dignos de vigilncia da sua atuao.

    Para tal, documentos do DEOPS/SP, publicaes militares e policiais tornaram possvel

    identificar e compreender quais eram as idias, as noes, os estigmas8, os esteretipos9 e

    7 BARBOSA, L. e SILVA, P. O pensamento negro em educao no Brasil. So Carlos: Editora da UFSCar, 1997, p. 10.8 Estigma qualquer marca ou sinal fsico que considerado indigno e desonroso. In HOUAISS, A. Dicionrio Houaiss de Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001. (verso eletrnica)

  • 12

    as formulaes sobre os afro-descendentes e sobre as suas mobilizaes scio-polticas.

    necessrio destacar que as informaes contidas na documentao do Fundo DEOPS/SP

    configuraram uma rede intertextual produtora de eficazes efeitos de sentido e de

    convico.10 Desta forma, procurou-se recuperar o campo do confronto poltico do qual

    emergiram os discursos e projetos polticos presentes nas instituies de represso do

    regime militar. Essa ao policial esteve envolvida em termos relacionados ao campo do

    preconceito, discriminao e racismo. Importante compreendermos as diferenas desses

    termos: Preconceito uma idia, uma opinio ou um sentimento desfavorvel formado a

    priori, sem maior conhecimento, ponderao ou razo sobre um grupo social. O racismo

    conjunto de teorias e crenas que estabelecem uma hierarquia entre as raas, entre as etnias.

    Enquanto a discriminao um ato de separar, segregar, pr parte algum por causa de

    caractersticas pessoais. 11

    Por sua vez, o terceiro captulo buscou compreender quais as idias em circulao nos

    movimentos negros e o quarto captulo, apresentar algumas caractersticas marcantes dessa

    mobilizao. As prticas polticas apresentaram-se multifacetadas, voltando-se para

    organizar e disciplinar de forma burocrtica as massas, alm de promover a despolitizao

    da sociedade civil. 12 Ainda assim, alguns segmentos sociais reagiram, buscando combater

    o regime de feies ditatoriais, um deles foram os movimentos negros, que formularam

    estratgias de luta, que buscamos ressaltar nestes dois captulos.

    Enquanto movimentos sociais, os movimentos negros constituem um processo

    coletivo e comunicativo de protesto, conduzido por indivduos, contra relaes sociais

    existentes, e que afetam a um grande nmero de pessoas (que no precisam estar

    necessariamente organizadas). 13 Assim sendo, apresentam um conjunto de valores, que

    9 Esteretipo algo que se adequa a um padro fixo ou geral, esse prprio padro, formado de idias preconcebidas e alimentado pela falta de conhecimento real sobre o assunto ou pessoas em questo. Ou seja, idia ou convico classificatria preconcebida sobre algum ou algo, resultante de expectativa, hbitos de julgamento ou falsas generalizaes. In HOUAISS, A. Op. Cit.O uso de esteretipos contribui para o que apresentado como uma distino precisa entre os indivduos classificados, aos quais atribuda uma srie de caractersticas positivas e negativas que dependem da raa. In GUIBERNAU, M. Nacionalismos: o estado nacional e o nacionalismo no sculo XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 97.10 FICO, C. Como eles agiam. Os subterrneos da Ditadura Militar: espionagem e polcia poltica. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 21.11 HOUAISS, A. Idem.12 ARENT, H. Origens do totalitarismo. So Paulo: Cia das Letras, 1989.13 KRNER, Hartmut. Movimentos sociais: revoluo no cotidiano. In WARREN, I. e KRISCHKE, P. Uma Revoluo no Cotidiano? So Paulo: Brasiliense, 1987, p.24.

  • 13

    permeiam seus objetivos e projetos para definir formas de ao social voltados para

    transformar a sociedade, questionando parcial ou totalmente as estruturas de dominao.14

    Alm disso, a atuao poltica dos movimentos negros desenvolveu-se no s ao questionar

    os detentores do poder de governo buscando influir nos processos decisrios, mas tambm

    na prtica cotidiana de sua ao social transformadora junto a sua comunidade, como parte

    de uma sociedade civil que se movimentava num momento em que parecia submersa numa

    normatividade tecnocrtica e repressora que despolitizava e privatizava a vida social. 15

    14 BOBBIO, N. e MATTEUCCI, N. e PASQUINO, G. Dicionrio de Poltica. Braslia: UnB, 1999, p. 787.CAMACHO, Daniel. Movimentos sociais: algumas discusses conceituais In WARREN, I. e KRISCHKE, P. Uma Revoluo no Cotidiano? So Paulo: Brasiliense, 1987, p. 216.15 TELLES, Vera da Silva. Movimentos sociais: reflexes sobre a experincia dos anos 70 In WARREN, I. e KRISCHKE, P. Op. Cit., p. 55.

  • 14

    I LUTAS ANTI-RACISTAS SOB O OLHAR DO DEOPS/SP

    1.1) Aspectos dos Aparatos Repressivos

    Desde a dcada de 1940 os movimentos negros16 foram sistematicamente vigiados e

    reprimidos pelo DEOPS, uma vez que a polcia poltica entendia esses movimentos como

    subversivos e que levariam a uma crise que poderia gerar conflitos raciais a democracia

    racial brasileira. O que levou a proibio de ao de algumas das associaes afro-

    brasileiras, por exemplo, a Organizao de Cultura e Beneficncia "Jabaquara" na dcada

    de 1940. 17 No entanto, as anlises dos movimentos de resistncia a ditadura no costumam

    analisar os movimentos negros que tambm sofreram com a represso e a censura dos

    anos de chumbo. Decorre da uma lacuna historiogrfica sobre a resistncia dos afro-

    brasileiros no s em relao ao regime militar, mas ao longo de todo o sculo XX.

    A documentao do DEOPS/SP uma fonte riqussima para a reconstruo desse

    quadro. Porm, como qualquer outra fonte, apresenta limites. Uma caracterstica peculiar

    dessa fonte que ela narra uma estria construda pelos policiais e militares envolvidos

    nos rgos produtores dos diversos documentos presentes nos pronturios e dossis por

    meio da reunio de provas do crime, relatrios, informaes, entre outros documentos.

    Faz-se necessrio levar em conta a finalidade por trs dos documentos, que certamente no

    nosso caso tiveram como objetivo maior a de identificar crimes polticos, o qual era

    classificado como um crime contra o Estado. 18. Ou seja, um crime contra a ordem vigente.

    Esse tipo de crime comeou a ser definido a partir de 1935, quando surgiu a 1 lei, como

    uma legislao especial para regular o crime poltico, que definia os crimes contra a ordem

    poltica e social. Assim, a forma pela qual o enredo contado se relaciona

    perfeitamente com o mesmo. Forma e contedo fazem parte de um mesmo conjunto

    16 Constatamos que o movimento negro representado por um conjunto de organizaes que formulam discursos anti-racistas, com avaliaes nem sempre coincidentes sobre o lugar da questo racial na sociedade brasileira In MENDONA, L. Movimento Negro: Da Marca da Inferioridade Racial a Construo da Identidade tnica. Dissertao de Mestrado. So Paulo: FFLCH/USP, 1996, p.2. Essa constatao nos fez adotar a categoria movimentos negros, por assim abarcar a multiplicidade de projetos poltico-ideolgicos envolvidos na luta anti-racista e suas diversas estratgias.17 Dossi 50-J-46-8. DEOPS/SP, DAESP.18 In MARTINS, R. Segurana Nacional. So Paulo: Brasiliense, 1986, p. 59.

  • 15

    inseparvel de intenes.19 No caso da polcia poltica era recolher o mximo de

    informaes dos que eram classificados como subversivos.

    Estas informaes eram resguardadas de forma sigilosa: a srie dossis foi organizada

    pelo Arquivo Geral do DEOPS/SP com cdigos alfa-numrico, num esforo criptogrfico,

    que tinha por certo o objetivo de limitar ou impedir o acesso s informaes

    armazenadas e ao conhecimento pleno das atividades do rgo, por pessoas estranhas ao

    quadro. 20 Como parte de valorizao da informao enquanto ponto estratgico, o

    armazenamento era sigiloso a pessoas estranhas ao servio do DEOPS. Ao mesmo tempo,

    em que era acessvel s autoridades policiais com intuito de fornecer subsdios e

    informaes sobre o maior nmero de pessoas, segundo a lgica de que todos eram

    suspeitos a priori.

    Praticamente toda a documentao consultada no Fundo DEOPS/SP possua carimbos

    de confidencial, reservado e secreto, mas a maior parte da documentao foi

    classificada como confidencial, sendo raros os documentos da comunidade de

    informaes e de segurana no classificados. A norma geral era classificar os documentos,

    no mnimo, como confidencial. 21 A difuso da informao era deciso importante e da

    competncia do comandante, uma vez que: O ato de informar acarreta inarredvel

    parcela de responsabilidade quanto aos graus de confiabilidade e credibilidade. 22

    A srie dossis compe a maior parte do corpus documental desta pesquisa.

    necessrio ressaltar que os relatrios de agentes infiltrados so o produto-base gerador

    da srie Dossis, que se caracteriza por armazenar o material produzido pelo Servio

    Secreto (data da dcada de 40), posteriormente denominado Servio de Informaes (final

    dos anos 60 e incio da dcada de 70) e, finalmente, Diviso de Informaes (a partir de

    1975 at o trmino do rgo em 1983). Esses organismos, dentro do DEOPS/SP,

    produzem, prioritariamente, esses relatrios, com base na vigilncia exercida por seus

    agentes. Evidentemente, encontram-se muitos outros materiais dentro da srie Dossis que,

    19 AQUINO, M. A. Um certo olhar In TELES, Janana. (org) Mortos de desaparecidos polticos: reparao ou impunidade? So Paulo: Humanitas/ FFLCH-USP, 2001, p. 239.20 LEITO, A. Estudo sobre os cdigos da srie Dossis do Fundo DEOPS-SP In Informativo Associao dos Arquivistas de So Paulo. So Paulo: Arquivo do Estado, junho de 2000, n. 2, p. 7.21 FICO, C. Como eles agiam. Os subterrneos da Ditadura Militar: espionagem e polcia poltica. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 27.22 Memria de Gustavo Moraes Rego Reis In D ARAJO, M. e SOARES, G. e CASTRO, C.. Os anos de chumbo: a memria militar sobre a represso. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994, p. 163.

  • 16

    alis, caracteriza-se pelo armazenamento de material diverso. 23 Nesse sentido, a

    produo da maior parte dos documentos, base dessa pesquisa, derivaram das espionagens

    realizadas pelos agentes do DEOPS/SP, com o objetivo de desvendar as idias e aes dos

    movimentos negros.

    Com o regime militar, desde 1964, as investigaes [dos dossis] tornaram-se mais

    amplas e detalhadas, e os dossis passaram a conter extensos relatrios sobre vrios

    segmentos sociais e assuntos. 24 De modo geral, observam-se mudanas na organizao da

    informao nos documentos do Fundo DEOPS/SP ps-golpe de 1964, sendo que a

    informao passa a ser cada vez mais privilegiada, alimentando os aparatos repressivos

    regionais e nacionais. 25 Documentos sobre investigaes de polticos, estudantes,

    trabalhadores e diversas manifestaes sociais de oposio ao governo movimentos

    negro, feminista, estudantil, sindical, de luta pela anistia, etc. -, antes dispostos em vrios

    dossis especficos e individuais, passaram a ser arquivados num mesmo dossi.26

    Espalhados por diversas pastas organizadas por fichas remissivas que se referiam aos temas

    e pessoas investigadas. O trabalho do arquivo policial foi caracterizado por um grande

    volume de documentao. A obsesso por informaes demandava que o arquivo

    apresentasse o maior nmero possvel de dados aos investigadores ou analistas que

    consultassem o seu acervo.

    Regime Militar

    Durante 21 anos do regime militar, o Brasil passou pelo controle poltico das Foras

    Armadas, respaldado em um aparato de informaes e segurana, que compe nossa

    principal fonte documental. Com o golpe de 1964, houve uma interveno militar indita

    no pas, ao lado da manuteno de algumas instituies consagradas como democrticas,

    ainda que dentro de limites estabelecidos, o que permite considerar a: especificidade do

    regime militar brasileiro no que tange ao seu aspecto ambguo de construo de um

    23 AQUINO, M. e MORAES, M. e MATTOS, M. e SWENSSON JR., W. (orgs). O Dissecar da estrutura administrativa do DEOPS/SP o Anticomunismo: Doena do aparato repressivo brasileiro. So Paulo: Arquivo do Estado, 2002, p. 15.24 AQUINO, M. e MORAES, M. e MATTOS, M. e SWENSSON JR., W. (orgs). A constncia do olhar vigilante: a preocupao com o crime poltico. So Paulo: Arquivo do Estado, 2002, p. 55.25 AQUINO, M. e LESITER FILHO, A. e MATTOS, M. e SWENSSON JR., W. (orgs). A Alimentao do Leviat nos planos regional e nacional: mudanas no DEOPS/SP no ps-1964. So Paulo: Arquivo do Estado, 2002, p. 17.26 AQUINO, M. e MORAES, M. e MATTOS, M. e SWENSSON JR., W. (orgs). A constncia do olhar vigilante: a preocupao com o crime poltico. So Paulo: Arquivo do Estado, 2002, p. 56.

  • 17

    regime autoritrio, sempre caracterizado, por seus dirigentes em suas proclamaes

    pblicas, como dotado de carter democrtico. 27

    Tambm nota-se como particular ao regime militar brasileiro de 1964 a 1983: a

    longevidade do regime; um processo de abertura longa (entre 1974, com o incio do

    governo Geisel a 1990, ano de eleio direta para presidente da Repblica); atos

    institucionais que legislavam o regime; o congresso funcionando a maior parte do tempo,

    apesar de 3 fechamentos (1964, 1968 e 1976), ou seja, com limitaes s suas competncias

    e liberdade de palavra de seus membros; o rodzio de poder entre os militares, escolhidos

    de forma indireta por um Colgio Eleitoral; a manuteno de 2 partidos, um de situao e

    outro de oposio; e o funcionamento de uma justia militar que tinha tambm a

    atribuio de julgar o crime poltico. Alm disso, houve a manuteno de um calendrio

    eleitoral, ainda que restrito, pois no era possvel a escolha direta para presidente,

    governadores, prefeitos das capitais e reas de segurana nacional. Desse modo, evidencia-

    se um regime hbrido se revestido de liberalismo sob uma aparncia de legalidade28, ao

    mesmo tempo em que exercia uma prtica autoritria.29 Todos os governantes do regime

    militar abriram e fecharam seus governos com discursos falando em nome da

    democracia. 30, assim, a democracia tornava-se um ideal retrico, como observamos nas

    memrias de alguns militares: No movimento de 64, a ideologia poltica foi puramente a

    de preservar o regime democrtico. Essa foi a grande mola que conduziu o movimento. 31

    Mas, de qual democracia tratamos aqui? 32

    A legislao federal, de 1965, revela de qual democracia os militares estavam

    tratando: Democracia supe liberdade, mas no exclui responsabilidade nem importa em

    licena para contrariar a prpria vocao poltica da Nao. No se pode desconstituir a

    27 AQUINO, M. A especificidade do regime militar brasileiro: abordagem terica e exerccio emprico In REIS FILHO, D. A.(org) Intelectuais, Histria e Poltica (sculo XIX e XX) Rio de Janeiro: 7Letras, 2000, p. 272.28 Na linguagem poltica, entende-se por Legalidade um atributo e um requisito do poder, da dizer-se que um poder legal ou age legalmente ou tem o timbre da Legalidade quando exercido no mbito ou de conformidade com leis estabelecidas ou pelo menos aceita. In BOBBIO, N. e MATTEUCCI, N. e PASQUINO, G. Dicionrio de Poltica. Braslia: UnB, 1999, p. 674.29 SOARES, G. e D ARAJO, M. 21 anos de regime militar: balanos e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora da Fundao Getulio Vargas, 1994, p. 128.30 AQUINO, M. e LONGHI, C. e MATTOS, M. e SWENSSON JR., W. (orgs). O DEOPS/SP Em busca do crime poltico. So Paulo: Arquivo do Estado, 2002, p. 53.31 Memria de Antonio Bandeira In D ARAJO, M. e SOARES, G. e CASTRO, C. (orgs). Vises do golpe: a memria militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994, p. 225.32 Aluso ao ttulo do trabalho: WEFFORT, F. Qual Democracia? So Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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    Revoluo, implantada para restabelecer a paz, promover o bem-estar do povo e preservar

    a honra nacional. 33 Percebe-se que o pensamento militar conferia um carter

    instrumental democracia, restringindo-a a vocao poltica da nao e a revoluo de

    1964. A democracia como elemento discursivo, no contexto da Guerra Fria, apresentou-se

    como oposto ao comunismo. Nesse ambiente, para o mundo ocidental, os conceitos

    democracia e comunismo foram carregados de significados opostos. 34 Ao falar em nome

    da democracia, tratava-se de uma afirmao de busca de legitimidade 35, e do prprio

    combate aos comunistas, principal propsito do aparato repressor que aqui analisamos.

    As pesquisas realizadas pelos integrantes do Centro de Pesquisa e Documentao da

    Fundao Getlio Vargas (CPDOC) apresentaram como razes para o golpe, segundo a

    anlise dos depoimentos dos militares36, destacando: o anti-comunismo; e a percepo de

    caos, a baderna e a desordem37 presentes na sociedade brasileira; fatores do contexto

    poltico externo e fatores da crise econmica no pas. Necessrio levar em conta que o

    pensamento autoritrio, presente no regime militar, teme o novo e o indito e esfora-se

    para retra-los at s fronteiras do j sabido. Incapaz de pensar a diferena, tanto no

    espao quanto no tempo, precisa sentir-se autorizado antes de impor-se; vive sob o signo

    da repetio.38

    A ordem era o ponto central do projeto social e poltico dos militares: A desordem , o

    caos e a anarquia, em contraposio ordem, estabilidade, segurana e

    tranqilidade, ocupam posio central nas anlises da situao poltica feitas por

    33 Legislao Federal n. 1523 de 1965 Apud VECCHIO, A. Impasses do Regime Militar Brasileiro: Construo de Potncia, Institucionalizao e Estabilizao Poltica (1964-1979). Tese de doutorado. So Paulo: FFLCH/USP, 1998, p. 97.34 REZNIK, L. Democracia e Segurana Nacional. A Polcia Poltica no ps-guerra. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 19.35 REZENDE, M. A ditadura militar no Brasil: represso e pretenso de legitimidade (1964-1984). Tese de Doutorado. So Paulo: FFLCH/USP, 1996, p. 6.36 D ARAJO, M. e SOARES, G. e CASTRO, C. (orgs). Vises do golpe: a memria militar sobre 1964.Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994; Os anos de chumbo: a memria militar sobre a represso. Rio deJaneiro: Relume Dumar, 1994 e A volta aos quartis: a memria militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1995.37 Faz-se necessrio lembrar que Desordem, em verdade, apenas um nome: o nome dado ordem no desejada, no querida, no procurada. Ou o nome dado ordem que no deve ser desejada, nem querida, nem procurada. o nome da ordem que desagrada, desgosta, decepciona, prejudica, infelicita, desola. s vezes, o nome da ordem que causa arrependimento. Mas a desordem sempre uma ordem... TELLES JNIOR, G. Meditaes sobre a desordem In Revista Imaginrio, n. 3. So Paulo: LABI-NIME, 2002. (In http://www.imaginario.com.br/artigo/a0031_a0060/a0049.shtml).38 CHAU, M. Ideologia e mobilizao popular. So Paulo: Paz e Terra: Cedec, 1978, p. 38.

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    militares. 39 Os militares apresentavam uma oposio maniquesta entre ordem e

    desordem, avaliando que a desordem geraria o caos, a guerra e a convulso social. Em

    sntese: O caos, real ou percebido, um conceito politicamente relevante, sobretudo para

    entender a participao poltica dos militares, que so particularmente sensveis

    desordem. Alm de um bem em si, os responsveis pelo regime militar consideravam a

    ordem um pr-requisito para o crescimento econmico. A ampliao e a elaborao da

    ordem levaram ao conceito de segurana nacional, que integra o binmio doutrinrio que

    regeu boa parte da poltica ps-64 desenvolvimento e segurana. 40 Nesse pensamento,

    entendia-se que o subdesenvolvimento brasileiro ameaaria o pas e, o prprio Ocidente,

    uma vez que os tornaria vulnerveis ao comunismo. 41

    Os militares valorizavam a ordem como um elemento fundamental para organizao da

    sociedade, conforme nota-se no manual da ESG: Manifestao essencial da cultura

    poltica a Ordem, por ela gerada, e que corresponde a um modelo de organizao social

    decorrente do respeito a obedincia a normas que se estabelecem naturalmente medida

    que os participantes do grupo adotam os valores culturais e admitem como obrigatrios os

    usos e costumes vigentes. A Ordem apresenta-se como um complexo de normas e constitui

    o substrato essencial e bsico de toda atividade social. Ela especfica os grupos humanos,

    distinguindo-os uns nos outros. 42 Tratava-se do valor da ordem sob a perspectiva da

    obedincia plena das normas sociais que o regime buscava implementar e salvaguardar

    seus valores. Assim, a contestao dos movimentos negros democracia racial, tornava-

    se desordem sob a perspectiva do regime militar.

    Durante o regime militar houve a sustentao de um discurso tico-moral que deita

    razes na larga tradio do pensamento autoritrio brasileiro. 43 Percebemos que alguns

    aspectos autoritrios na sociedade brasileira tem razes histricas: No podemos esquecer

    que o Brasil um pas que conviveu trs sculos com a escravido. Ora, um pas que

    39 SOARES, Glucio Ary Dillon e D ARAJO, Maria Celina. 21 anos de regime militar: balanos e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora da Fundao Getulio Vargas, 1994, p. 23.40 SOARES, Glucio Ary Dillon e D ARAJO, Maria Celina. Op. Cit., p. 24.41 SILVA, G. Conjuntura Nacional - O Poder Executivo. Geopoltica do Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1981, p. 247. 42 Manual ESG, Seo I Expresso poltica do poder nacional (poder poltico), 3- Fatores ApudROCHA, M. A Evoluo dos conceitos da doutrina da Escola Superior de Guerra nos anos 70. Dissertao de Mestrado. So Paulo: FFLH/USP, 1996. ANEXO 12, p. 119/120.43 FICO, C. Como eles agiam. Os subterrneos da Ditadura Militar: espionagem e polcia poltica. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 112.

  • 20

    aceitou que um povo, por diferena de cor, fosse escravizado, tem uma herana muito forte

    da presena do autoritarismo. Esta apenas uma marca, e aos poucos outras marcas vo

    sendo acumuladas. 44 O autoritarismo decorre do princpio de ordem social, caracterizado

    pelo busca por obedincia, empregado por meios coercitivos.

    O regime militar visando formar uma conscincia nacional pretendia propagar uma

    idia de nao, permeada de valores moralistas e autoritrios, como ordem, disciplina e

    hierarquia. Formulada pela ESG, a idia de nao 45 como termo intercambivel de Ptria46, numa concepo desta como um todo homogneo sem dissensos. Dessa idia decorriam

    os objetivos nacionais, definidos pelo Conselho de Segurana Nacional.

    Os militares se auto-atribuam representantes da vontade da nao, como consta no AI-

    1: A revoluo se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se

    traduz, no o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nao. 47

    Nesta perspectiva, o Estado era concebido como uma entidade supostamente capaz de

    representar os interesses da nao como um todo, cuja vontade se supe nica e

    unificada. 48 Quanto s Foras Armadas se propunham a fortalecer o Estado, a

    neutralizar as tenses sociais, a suprimir o dissenso poltico e a alcanar um elevado

    crescimento econmico. 49 Este conjunto de atribuies prprias dos militares requeriam

    alto grau de patriotismo, de conhecimento da realidade brasileira e uma retido moral

    inquestionvel. Construiu-se, assim a utopia autoritria, projeto poltico-social dos

    militares para o Brasil. 50

    44 AQUINO, M. Histria e Autoritarismo. Entrevista In Informe: edio especial 1999-2001. So Paulo: SDI/FFLCH/USP, 2002, pp. 105-107, p. 106.45 Segundo dicionrio etimolgico nao seria um agrupamento de seres, geralmente fixos num territrio, ligados por origem, tradies, costumes comuns e, em geral, por uma lngua. In CUNHA, A. Dicionrio etimolgico. Nova Fronteira da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. (2 edio, 1986), p. 543.46 MARTINS, R. Segurana Nacional. So Paulo: Brasiliense, 1986, p. 32.47 Ato Institucional Apud FICO, C. Alm do golpe: a tomada do poder em 31 de maro de 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 339.48 LEITE, R. A dupla face do nacionalismo no Brasil: Kubitschek e Mdici. Dissertao de Mestrado. Recife: CFCH/UFPE, 1992, p. 164.49 DREIFUSS, R. e DULCI, O. As foras armadas e a poltica In SORJ, B. e ALMEIDA, M. (orgs) Sociedade e poltica no Brasil ps-64. So Paulo: Brasiliense, 1984, p. 96.50 D ARAJO, M e SOARES, G e CASTRO, C. (orgs). Vises do golpe: a memria militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994, p. 9.

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    Policiais e militares sustentavam um discurso no qual defendiam uma cruzada em

    defesa da democracia51 e de instituies nacionais, defendendo a ordem e o

    progresso. Para tanto consideravam necessrio conter o comunismo internacional que

    agiria no pas por meio do aliciamento de militantes que se contrapunham s instituies

    nacionais, como os movimentos negros que contestavam a harmonia racial, considerada

    pelo regime militar.

    O general Carlos de Meira Mattos, em 1969, descreveu serem os objetivos

    nacionais52: a independncia, a soberania, a integridade territorial, o prestgio

    internacional, a integrao nacional, a democracia, a preservao dos valores morais

    e espirituais da nacionalidade e a paz social. Ainda segundo Mattos, esses objetivos, que

    poderiam ser resumidos em integrao e prosperidade nacional, deveriam ser

    conquistados a todo custo e a curto prazo. 53 Nesta perspectiva, os movimentos negros

    que nesse perodo articulavam protestos contra o racismo tornar-se-iam obstculos

    integrao nacional e ameaariam a paz social, ao desnudar a desintegrao da

    sociedade brasileira.

    Na Lei de Segurana de 29/09/1969, que considerava crime ofender moralmente

    quem exera autoridade, por motivos de faccionismo ou inconformismo poltico-social,

    ofender a honra e a dignidade do Presidente da Repblica, do vice-presidente e outros

    dignitrios; incitar guerra, subverso, desobedincia s leis coletivas, animosidade

    entre as Foras Armadas ou entre estas e as classes sociais ou instituies civis; luta de

    classes, paralisao de servios ou atividades essenciais, ao dio ou discriminao

    51 A idia de democracia era em moldes bem limitados. Segundo o dicionrio Aurlio, define, por meio da cincia poltica, a idia de uma democracia autoritria como um Sistema de governo surgido aps a 1 Guerra Mundial, em geral anticomunista, firmado na supremacia do poder executivo em relao aos demais poderes. In FERREIRA, A. Dicionrio Aurlio Sculo XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Lexikon, 1999. CD-ROM.52 Os objetivos nacionais exprimem os desejos da Nao; entre eles, os Objetivos Nacionais Permanentes constituem a expresso dos anseios duradouros da nacionalidade. In Manual ESG, Seo II, 5 Objetivos Nacionais Permanentes Brasileiros Apud ROCHA, M. A Evoluo dos conceitos da doutrina da Escola Superior de Guerra nos anos 70. Dissertao de Mestrado. So Paulo: FFLH/USP, 1996. ANEXO 8, p. 57. Nessa tica, a nao deve manter os seus valores tradicionais, gerando conservao, equilbrio e ordem, segundo o conceito de segurana. In Manual ESG, Objetivo Nacionais, 2- Interesses, Aspiraes e Objetivos Apud ROCHA, M. Op. Cit. ANEXO 9, p. 29.53 MATTOS, C. Ensaio sobre a Doutrina Poltica da Revoluo In ASSESSORIA ESPECIAL DE RELAES PBLICAS. O Processo Revolucionrio Brasileiro. Braslia, 1969. Apud LEITE, R. A dupla face do nacionalismo no Brasil: Kubitschek e Mdici. Dissertao de Mestrado. Recife: CFCH/UFPE, 1992, p. 163.

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    racial. 54 Assim, a questo racial integrava as temticas consideradas como crimes

    pela legislao do regime militar. 55

    O regime militar pautou-se numa fundamentao terica bsica: a doutrina de

    Segurana Nacional56, elaborada na ESG57, tinha como objetivo projetar o fortalecimento

    do poder nacional e planejar o desenvolvimento econmico-social do pas. Ou ainda, por

    outras palavras, a Doutrina de Segurana Nacional era uma doutrina de guerra.58 Em

    tempos de um mundo bipolarizado e em constante tenso gerada pela Guerra Fria, o projeto

    de Segurana Nacional visava, nas palavras de Golbery de Couto e Silva (o mais

    importante idelogo do regime), salvaguardar a consecuo dos objetivos vitais

    permanentes da Nao, contra quaisquer antagonismos tanto externos quanto internos, de

    modo a evitar a guerra se possvel for e empreend-la, caso necessrio, com as maiores

    probabilidades de xito. 59

    A ESG sustentou o aporte terico para a poltica de segurana nacional do regime

    militar, contribuindo a formao do pensamento da polcia civil paulista no combate

    subverso, como podemos observar no artigo O poder de polcia, o desenvolvimento e a

    segurana nacional, na Revista Arquivos da Polcia Civil de So Paulo. 60 Desta forma, a

    ESG consolidou, assim, uma rede militar-civil que institucionalizou e disseminou a

    Doutrina de Segurana Nacional e Desenvolvimento. Esta rede, organizada na Associao

    dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG61), promovia conferncias,

    54 ALVES, M. H. Estado e Oposio no Brasil (1964-1984). Petrpolis: Vozes, 1985, pp. 158/159.55 Esta questo ser retomada no captulo II.56 O termo segurana nacional remonta a dcada de 1930, e ao longo da dcada de 1950 foi sendo re-elaborada na ESG. Em outubro de 1954, Golbery proferiu a conferncia: "Planejamento e a Segurana Nacional", em que desenvolveu os conceitos de "guerra subversiva" e "guerra total", desenvolvendo as principais idias de uma poltica de Segurana Nacional que por fim levou a formulao da Doutrina de Segurana Nacional. In GASPARI, E. A ditadura derrotada. O sacerdote e o feiticeiro. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 135.57 A Escola Superior de Guerra (ESG), fundada em 1949, com a assistncia de consultores franceses e norte-americanos, visou treinamento de pessoal para a direo e planejamento da segurana nacional. In ALVES, M. H. Op. Cit., p 24.58 MIYAMOTO, S. e GONALVES, W. A Poltica Externa Brasileira e o Regime Militar: 1964-1984.Campinas: IFCH/ UNICAMP, 1991, p. 12.59 SILVA, G. Planejamento Estratgico. Braslia: UNB, 1981, p. 22. Apud MIYAMOTO, S. e GONALVES, W. Op. Cit., p. 12.60 MEIRELLES, H. O poder de polcia, o desenvolvimento e a segurana nacional In Arquivos, vol. XXVII. So Paulo: Polcia Civil de So Paulo, 1 semestre 1976, pp. 27-37.61 A ADESG foi organizada por ex-alunos da ESG, a partir de 1951, sua tarefa era a de promover cursos e atividades com o objetivo de discutir problemas de cada Estado ou regio e difundir a Doutrina de Segurana Nacional. In ROCHA, M. A Evoluo dos conceitos da doutrina da Escola Superior de Guerra nos anos 70. Dissertao de Mestrado. So Paulo: FFLH/USP, 1996, p. 39.

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    seminrios, debates e cursos por todo o pas, levando os princpios e doutrinas da ESG a

    outros protagonistas polticos civis e militares. 62 As idias gestadas pela ESG foram

    importantes para a formao da mentalidade do regime militar. 63 Uma mentalidade que no

    se formou a partir do golpe de 1964, mas que foi sendo desenvolvida desde as leis de

    Segurana Nacional do governo Vargas (1930 a 1945) e, posteriormente com a fundao da

    ESG, em 1949, que foram compondo um universo de conteno social ao longo do sculo

    XX. 64

    O pensamento sobre a segurana nacional esteve atrelado ao anti-comunismo e as

    idias de geopoltica em voga no perodo, como Brasil Potncia, em que o Brasil teria

    uma vocao para ser uma grande potncia pela a sua localizao geogrfica privilegiada

    e um porte continental. Calcado no binmio segurana e desenvolvimento, cuja

    viabilidade no se relacionava direta e to somente com os militares no poder, constituiu

    um pensamento que integrava um projeto para o Brasil. 65 A ESG pautou-se,

    principalmente, na geopoltica, desenvolvendo um conjunto de definies e formulaes,

    como os Objetivos Nacionais Atuais e Permanentes, o Poder Nacional e a Segurana

    Nacional, formulando uma Doutrina de Segurana Nacional, que visava reger as polticas

    interna e externa do Brasil. Nota-se que as noes desenvolvidas pelo discurso esguiano

    ganharam uma forma marcadamente circular e maniquesta, cujo ponto de partida e de

    chegada fundamentam-se em critrios prprios, permitindo a distino entre falso e

    verdadeiro, natureza e cultura, ordem e subverso, bices e Aspiraes Nacionais, sempre

    em nome dos legtimos anseios da Nao. 66

    Dessa forma, a idia de segurana nacional era compreendida como garantia da

    consecuo dos objetivos nacionais contra os antagonismos internos e externos. 67

    Segurana e desenvolvimento formavam o binmio da Lei de Segurana Nacional (LSN),

    62 ALVES, M. H. Idem., p 34.63 Vale ressaltar a definio do conceito de mentalidade: conjunto de idias, crenas, valores, nem sempre conscientes, subjacentes aos costumes, prticas, hbitos de uma sociedade ou grupo social, caracterizando sua maneira de agir, seus sentimentos, sua produo cultural. In JAPIASSU, H. e MARCONDES, D. Dicionrio Bsico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989, p. 164.64 A Lei de Segurana Nacional do governo Vargas data de 1935, que definiu pela primeira vez o crime poltico por meio de uma lei nacional. Alm disso, houve no mesmo ano a criao do Tribunal de Segurana Nacional (TSN), um tribunal de exceo.65 ROCHA, M. S. A Evoluo dos conceitos da doutrina da Escola Superior de Guerra nos anos 70. Dissertao de Mestrado. So Paulo: FFLH/USP, 1996, p. 54.66 ROCHA, M. S. Op. Cit., p. 52.67 AQUINO, M. Mudanas e permanncias: ambigidades do Estado Autoritrio brasileiro ps-64, p. 25.

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    na qual o lema Ordem e Progresso, caro aos positivistas que ajudaram a fundar a

    Repblica, atualizava-se na idia de Segurana e Desenvolvimento. 68.

    Segundo os pesquisadores do CPDOC, o regime militar sustentava a idia de que

    via controle policial e militar, a sociedade poderia ser moldada de uma forma esttica e

    desideologizada. 69 Procurava-se, dessa forma, o saneamento ideolgico, como se fosse

    possvel haver uma nica e verdadeira forma de entender o mundo. Assim, consideravam

    que era essencial reprimir. No posso discutir o mtodo de represso, se foi adequado, se

    foi o melhor que se podia adotar. O fato que a subverso acabou. 70 Essa foi a

    mentalidade fortemente ideolgica que esteve presente ao longo dos 21 anos de regime

    militar brasileiro sustentando e justificando a constituio e o funcionamento de todo um

    aparato repressivo, adjetivado como soldado de guerra.

    A comunidade de informaes e segurana

    A principal fonte desta pesquisa constitui-se do Fundo DEOPS/SP, que possui uma

    documentao no s produzida por esse rgo como tambm por outras instituies

    pertencentes comunidade de informaes e segurana. Rene o conjunto de rgos

    encarregados de fazer espionagem e reprimir os brasileiros considerados subversivos.71

    Esse corpus documental extremamente rico com origem diversa, de comunicao com os

    outros rgos ou de materiais pertencentes aos investigados que foram anexados s pastas

    policiais.

    O Departamento Estadual de Ordem Poltica e Social (DEOPS) foi criado em 1924,

    pela lei n. 2034, e extinto em 30/12/1983, pelo decreto n. 20728. 72 rgo de identificao,

    vigilncia e represso73, foi criado com o objetivo de afastar o perigo para o regime

    representado pela proliferao das chamadas idias estrangeiras (o Anarquismo e o

    Comunismo num primeiro momento, e o Nazismo e o fascismo, posteriormente) e tambm

    68 DREIFUSS, R. e DULCI, O. As foras armadas e a poltica In SORJ, B. e ALMEIDA, M. (orgs) Sociedade e poltica no Brasil ps-64. So Paulo: Brasiliense, 1984, p. 91.69 ARAJO, M. e SOARES, G. e CASTRO, C. Os anos de chumbo: a memria militar sobre a represso. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994, p. 24.70 ARAJO, M. e CASTRO, C. (orgs) Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997, p. 223-4.71 FICO, C. Como eles agiam. Os subterrneos da Ditadura Militar: espionagem e polcia poltica. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 18.72 AQUINO, M. e MORAES, M. e MATTOS, M. e SWENSSON JR., W. (orgs). O Dissecar da estrutura administrativa do DEOPS/SP o Anticomunismo: Doena do aparato repressivo brasileiro. So Paulo: Arquivo do Estado, 2002, p. 20.73 AQUINO, M. e LONGHI, C. e MATTOS, M. e SWENSSON JR., W. (orgs). O DEOPS/SP Em busca do crime poltico. So Paulo: Arquivo do Estado, 2002, p. 15.

  • 25

    pelas manifestaes sociais contrrias ordem vigente. 74 Tinha por dever coibir o crime

    poltico, um crime essencialmente ligado s idias e s prticas polticas. Um dos

    principais objetivos deste rgo parte integrante do projeto poltico do Estado era o de

    bloquear a heterogeneidade de pensamento procurando silenciar aqueles que eram

    considerados como potencialmente perigosos. 75 O DEOPS visava o controle de idias,

    baseado num pensamento de que quem maneja e comanda os foguetes so as idias. 76

    Por sua vez, as polcias polticas estaduais, os DEOPS, integraram o sistema de

    segurana e informao do regime militar, aproveitando a experincia da atuao repressiva

    dos delegados e investigadores da polcia civil. 77 O sistema aproveitou essas estruturas que

    j estavam montadas para desenvolver medidas polticas saneadoras da sociedade

    brasileira. Neste sistema, a ordem poltico-social a razo de ser de uma Nao 78, e a

    polcia poltica teria por funo a profilaxia social, purificando as coletividades e

    livrando-as do vrus nefasto dos agentes de toda a espcie, que pretendem a subverso da

    ordem pblica. [...] os fins da Polcia Poltica devem ser amplos, dentro do principio da

    garantia e da salvaguarda das instituies. 79 Desta forma, foram centrais no conjunto da

    organizao policial, sendo que seus quadros e colaboradores eram considerados

    sentinelas avanadas da ordem pblica. Suas misses, conquanto rduas, so como um

    ideal a realizar e seus efeitos se concentram no equilbrio social. 80

    Segundo o Manual de Polcia Poltica e Social, a polcia poltica seria a Polcia do

    Estado, que tem por finalidade mxima exercer atividades preventivas, indagando e

    combatendo os fatores da desordem social, a bem da ordem. Visa ela, especialmente, os

    movimentos polticos e sociais de carter internacionalista. [...] Dentro do Pas zela pela

    manuteno da ordem poltico-social, pela segurana das instituies, da forma de

    governo e da segurana da autoridade, prevenindo e reprimindo as greves, atentados,

    74 LEITO, A. Estudo sobre os cdigos da srie Dossis do Fundo DEOPS-SP In Informativo Associao dos Arquivistas de So Paulo. So Paulo: Arquivo do Estado, junho de 2000, n. 2, p. 6.75 CARNEIRO, M. L. T. Os arquivos da Polcia Poltica Brasileira- uma alternativa para os estudos de Histria do Brasil Contemporneo Comunicao apresentada no II Congresso Internacional Historia a Debate. Santiago de Compostella, Espanha, julho de 1999, p. 2.76 BAFFA, A. Nos pores do SNI. O retrato do monstro de cabea oca. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1989, p. 55.77 FICO, C. Como eles agiam. Os subterrneos da Ditadura Militar: espionagem e polcia poltica. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 128.78 TERRA, S. e CORD, P. Polcia, lei e cultura. Rio de Janeiro: Grfica Guarany, 1939, p. 139.79 TERRA, S. e CORD, P. Op. Cit., p. 139. 80 TERRA, S. e CORD, P. Idem, p. 140.

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    agitaes, conspiraes, conjuraes, revolues, a propaganda e a disseminao das

    ideologias subversivas e dissolventes. 81 Os rgos de informao e segurana buscavam o

    maior conhecimento possvel do grande inimigo, que ao longo do sculo XX foi o

    comunista. 82 Mas, o manual tambm enumerava como crime contra a ordem poltica e

    social definido pela lei nmero 1802, de 5 de janeiro de 1953: Fazer publicamente

    propaganda [...] de dio de raa, de religio ou de classe. 83 Ao definir quais as

    propagandas criminosas, o inimigo nmero um era apresentado com facetas que

    ampliavam a noo de subversivo. Assim, ao tornar pblico o dio de raa, de religio ou

    de classe apresentava-se como ameaas harmonia da nao. O regime militar, ainda

    que de forma difusa, deixava entrever as diferenas e desigualdades sociais, objetivando

    evitar conflitos de qualquer ordem mascarava essas diferenas e desigualdades.

    Com o regime militar, houve um aperfeioamento do aparato repressivo resultante

    da aplicao da Doutrina de Segurana Nacional, desenvolvida pela Escola Superior de

    Guerra (ESG), que, aps o golpe de 1964, passou a ditar as normas da atuao da polcia

    poltica.84 O sistema repressivo ampliou-se e ganhou maior complexidade com novos

    rgos, a reformulao dos j existentes e, sua posterior integrao, reforando a atuao

    voltada para a vigilncia, controle e represso aos que se engajaram em qualquer forma de

    oposio ao regime. 85 A grande novidade do sistema de represso organizado no regime

    militar foi o envolvimento direto das Foras Armadas na represso poltica.

    O exrcito comprometido com a segurana interna foi a fora principal a coordenar

    as aes. A represso poltica no atingiu apenas a luta armada, como a Guerrilha do

    Araguaia, na dcada de 1970, mas tambm alguns dos militantes e lideranas polticas que

    operavam em estruturas legalmente constitudas, como os ativistas afro-descendentes. O

    sistema, a comunidade de informaes fazem parte de um bem articulado plano que

    81 APOLLONIO, L. Manual de polcia poltica e social. So Paulo: Escola de Polcia de So Paulo, 1963. (3 Edio), p. 318.82 Dessa forma, diversos livros, artigos de revistas policiais e militares buscavam traar o perfil do comunismo. Como exemplo temos CARVALHO, F. Por que devemos lutar contra o comunismo e POZZOBON, Z. Guerrilha Urbana In A Defesa Nacional, Ano 59, n. 647. Rio de Janeiro: Ministrio da Guerra, jan/fev 1973. e SALMON, H. O fascismo de hoje, o comunismo de ontem In Arquivos, vol. XXVIII. So Paulo: Polcia Civil de So Paulo, 1976, pp. 69-83.83 APOLLONIO, L. Op. Cit., p. 319.84 AQUINO, M. e MORAES, M. e MATTOS, M. e SWENSSON JR., W. (orgs). A constncia do olhar vigilante: a preocupao com o crime poltico. So Paulo: Arquivo do Estado, 2002, p. 56.85 AQUINO, M. e MATTOS, M. e SWENSSON JR., W. (orgs); ARAJO, L. e NETO, O . (co-orgs). No corao das trevas: o DEOPS/SP visto por dentro. So Paulo: Arquivo do Estado, 2001, p. 24.

  • 27

    procurou no s controlar a oposio armada mas tambm controlar e direcionar a

    prpria sociedade. 86 Desse modo, o regime militar para alm da represso a setores

    sociais especficos realizou uma ampla campanha de intimidao da sociedade civil, como

    um todo. 87

    O poder de polcia foi tema de Manual da ESG, ressaltando que em prol do

    combate a subverso deveriam ser utilizados todos os aparatos possveis e, sobretudo, o

    pensamento e a experincia, da polcia que, ao longo do sculo XX, combatiam o crime

    poltico. 88 O poder de polcia se exerce tendo por finalidade assegurar a liberdade

    individual e promover o bem-estar da coletividade. 89 notrio que o pensamento policial

    tratou, por meio da expresso poder de polcia, de legitimar o emprego da fora, como

    mecanismo de limitao social necessria ao convvio coletivo. 90 No desempenho de sua

    relevante misso de preservar a ordem e segurana pblica, a polcia necessita, com

    freqncia, de exercer um poder discricionrio sobre as pessoas e coisas, poder esse

    especial, cujos limites no podem ser geralmente estabelecidos em lei, pois so

    imprevisveis. 91 O discurso apresentado pelo pensamento policial apresentava aspectos

    que podiam levar a um abuso de poder como apresentado na citao anterior que justificava

    um poder policial acima da lei.

    No debate em torno do poder de polcia esteve presente tambm a questo da

    Segurana Nacional. No artigo O poder de polcia, o desenvolvimento e a segurana

    nacional, da Revista Arquivos, o poder de polcia foi definido como a faculdade de que

    dispe a Administrao Pblica para condicionar e restringir o uso e gozo de bens,

    atividades e direitos individuais, em benefcio da coletividade ou do prprio Estado. 92

    86 ARAJO, M. e SOARES, G. e CASTRO, C. Os anos de chumbo: a memria militar sobre a represso. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994, p. 18.87 MATTOS, M. Em nome da segurana nacional: os processos da Justia Militar contra a Ao Libertadora Nacional (ALN), 1969-1979. Dissertao de Mestrado. So Paulo: FFLCH/USP, 2002, p. 23.88 Manual ESG, Seo I Expresso Poltica do Poder Nacional (Poder Poltico), 5- rgos e Funes no sub-item 5.1.1- Poder de Polcia Apud ROCHA, M. A Evoluo dos conceitos da doutrina da Escola Superior de Guerra nos anos 70. Dissertao de Mestrado. So Paulo: FFLH/USP, 1996. ANEXO 12, p. 128.89 ALONSO, A. Poder de Polcia, 1954, p. 6.90 Ver tambm PESTANA, J. Manual de Organizao Policial do Estado de So Paulo. (2 edio). So Paulo: Escola de Polcia de So Paulo, 1957, pp. 45- 50. e ALVES, L. Poder de polcia In Arquivos, vol. XXVI. So Paulo: Polcia Civil de So Paulo, 2 semestre 1975, pp. 171-178. e SILVA, O. Poder de Polcia In Arquivos, vol. 42. So Paulo: Polcia Civil de So Paulo, 2 semestre de 1984, pp. 41-43.91 PESTANA, J. Op. Cit., p. 46.92 MEIRELLES, H. O poder de polcia, o desenvolvimento e a segurana nacional In Arquivos, vol. XXVII. So Paulo: Polcia Civil de So Paulo, 1 semestre 1976, pp. 27-37, p. 28.

  • 28

    Assim sendo, o poder de polcia trata de mecanismos de conteno da Administrao

    Pblica da restrio do direito individual que se revelasse contrrio, nocivo ou

    inconveniente ao bem-estar social, ao desenvolvimento e a segurana nacional, ameaando

    a ordem estabelecida. 93 O referido artigo demonstra uma total integrao com a Doutrina

    de Segurana Nacional e Desenvolvimento, chegando a citar o Manual Bsico da ESG, e

    concluiu que O desenvolvimento requer, pois, segurana. 94

    Era responsabilidade da Segurana Nacional naquela conjuntura histrica utilizar

    todos os quadros policiais e militares, incluindo tambm os rgos policiais comuns

    civis e militares que prestam colaborao em todos os assuntos e aes de interesse da

    Segurana Nacional, em decorrncia de suas atribuies gerais de polcia. 95 Desta

    forma, poder de polcia abrangeria desde a proteo moral e aos bons costumes, a

    preservao da sade pblica, a censura de filmes e espetculos pblicos, o controle de

    publicaes, a segurana das construes e dos transportes, at a segurana nacional em

    particular. 96 Neste quadro, segurana nacional era importante para a consecuo dos

    objetivos do cidado e da Nao em geral. 97 Na esteira desse pensamento, a polcia

    visava evitar: eventuais desequilbrios, desagregao ou desajustamentos possam

    empecer o desenvolvimento do Estado, naqueles objetivos visados no interesse da

    coletividade nacional. 98 Ou seja, a ao da vigilncia e a penalidade teriam como

    finalidade impor moral e materialmente o poder da norma. 99

    Para efetivar a impertinente restrio individual e proteger a coletividade, o Estado se

    utilizava do poder discricionrio, o que constituiria o poder de polcia, argumentando que

    Existem, sempre, os inconformismos. As normas so violadas, praticam-se atos que no

    correspondem ao padro ocorrem atos ilcitos praticam-se crimes. Da a necessidade de se

    93 MEIRELLES, H. Op. Cit., p. 28.94 MEIRELLES, H. Idem, pp. 34-35.95 MEIRELLES, H. Ibdem, p. 35.96 MEIRELLES, H. Idem, Ibdem, p. 30.97 MEIRELLES, H. Ibdem., p. 31.98 ALVES, L. Poder de polcia In Arquivos, vol. XXVI. So Paulo: Polcia Civil de So Paulo, 2 semestre 1975, pp. 171-178, p. 174.99 CHTELET, F., DUHAMEL, O. e PISIER-KOUCHNER, E. Histria das Idias Polticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982, p. 376.

  • 29

    estabelecer a coero social, os padres inerentes ao Dever Ser se tornam obrigatrios,

    so impostos pela autoridade. 100

    Sob essa tica, a polcia acreditava estar zelando com ardor patritico, como do seu

    dever, os tesouros morais que as geraes transmitem umas s outras. 101 Assim, por trs

    dessas formulaes, havia uma viso de que o criminoso, seja l qual fosse o crime, era um

    desajustado, o que bastava para identific-lo como inimigo no como algum que

    tinha outros planos para seu pas, mas como um desajustado, incapaz de perceber os

    benefcios da nova era. 102 Esta era mais uma faceta do pensamento autoritrio utilizado

    como justificativa da ao repressora e saneadora, na qual a representao do desajustado

    refora o poder do Estado para regular a sociedade segundo um modelo de ordem social

    fundado na paz, na harmonia e no desenvolvimento.

    No intuito de munir todos os aparatos de segurana (policiais e militares), garantindo

    sintonia entre eles, as idias bsicas do pensamento da polcia civil, como a valorizao de

    aes preventivas, a produo e o controle da informao, tambm integravam o

    pensamento militar. O esforo policial esteve concentrado de modo prioritrio na represso

    dissidncia poltica 103 e apesar da existncia de uma oposio consentida no perodo do

    regime militar, o Movimento Democrtico Brasileiro (MDB), este encontrava sua atuao

    limitada, circunscrita e sob fiscalizao dos aparatos de represso. As polcias, ao longo do

    sculo XX, tm sido tambm o brao armado das foras sociais hegemnicas na defesa

    do seu status quo, o que no Brasil se traduziu na lgica do inimigo interno e no uso

    indiscriminado da violncia contra a populao.104 Portanto, as aes policial e militar

    mesclaram preveno e punio, ou seja, o inimigo seria neutralizado, ou pela segunda

    forma de ao, ele seria eliminado.

    100 Manual ESG, Seo I Expresso Poltica do Poder Nacional (Poder Poltico), 3- Fatores ApudROCHA, M. A Evoluo dos conceitos da doutrina da Escola Superior de Guerra nos anos 70. Dissertao de Mestrado. So Paulo: FFLH/USP, 1996. ANEXO 12, p. 120.101 DIAS, B. O dia da polcia In Arquivos, vol. XXIX. So Paulo: Polcia Civil de So Paulo, 1 semestre de 1977, pp. 7-12, p. 7.102 FICO, C. Reinventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginrio social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundao Getulio Vargas, 1997, p. 125.103 NEVES, P. (org) Polcia e Democracia: desafios educao em direitos humanos. Recife: Edies Bagao, 2002, p. 9.104 NEVES, P. (org) Op. Cit., p. 14.

  • 30

    1.2) Represso e vigilncia aos movimentos negros brasileiros

    Apurar e apresentar a verdade, essncia do trabalho policial 105

    Parte da cpula de poder do regime militar acreditava que: o problema da represso

    contra os movimentos sediciosos, que eram principalmente da rea comunista das

    diferentes faces da rea comunista -, tinha diminudo depois da eliminao daquela

    operao Xambio, da guerrilha em Xambio, a atividade subversiva da esquerda tinha

    diminudo sensivelmente. 106 No entanto, foi justamente a partir da dcada de 1970,

    quando a luta armada j estava aniquilada, que os rgos de represso passaram a

    dispensar uma maior vigilncia aos movimentos negros. No Governo Geisel (1974-1978), a

    represso voltou-se para os grupos de oposio, reais ou imaginados. A represso no

    alcanou somente a luta armada e aos que almejavam lutar pelas revolues nacional e

    social, mas tambm atingiu a todos os que articulavam reivindicaes sociais ou que apenas

    faziam oposio poltica, como os diversos movimentos anti-racistas no Brasil.

    A prpria historiografia, em geral, aponta como alvos do regime militar os

    comunistas, isto , os estudantes, os operrios, os polticos e uma parte dos padres da Igreja

    Catlica. Os limites da tolerncia geralmente foram demarcados pela averso ao

    comunismo e ao que ele poderia significar entre os movimentos sociais e polticos. 107

    Mas necessrio ressaltar que muitos outros setores foram alvos de vigilncia e represso

    pelos sistemas de segurana e informao, embora caream ser estudados. 108 Os

    movimentos negros fazem parte de temas pouco estudados pela historiografia especializada

    do perodo. Como, ao longo do sculo XX, o principal inimigo dos rgos de represso

    poltica foi o comunismo, outras frentes de possvel instabilidade, como a questo racial

    brasileira e as lutas anti-racistas, acabou encoberta.

    105 Informao da Diviso de Informao do DEOPS sobre IBEA. Dossi 50-Z-0- 14617. DEOPS/SP, DAESP.106 Memria de Ernesto Geisel In COUTO, R. Memria viva do regime militar Brasil: 1964-1985. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 208.107 REZNIK, L. Democracia e Segurana Nacional. A Polcia Poltica no ps-guerra. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 25.108 O guia bibliogrfico a respeito do regime militar apresentado por Carlos Fico em sua obra Alm do Golpe, no item Movimento operrio e movimentos sociais urbanos, apresenta entre 59 artigos, livros, teses e dissertaes apenas um artigo que faz meno aos movimentos negros: MOORE, Z. Out of the shadown: black and brown struggles for recognition and dignity in Brazil, 1964-1985. Journal of Black Studies, v. 19, n. 4, pp. 394-410. In FICO, C. Alm do golpe: a tomada do poder em 31 de maro de 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, pp. 149-153.

  • 31

    A vigilncia se dava a quaisquer segmentos que ameaassem ou se opusessem ordem

    instaurada, segundo determinados critrios. Assim, tentaremos nesse captulo identificar

    questes que levaram vigilncia e represso dos movimentos negros.

    O processo de abertura, entre 1979 a 1985, proporcionou uma progressiva mobilizao

    de vrios segmentos sociais que foram organizados em uma grande frente de oposio. Por

    outro lado, o perodo do governo Geisel caracterizou-se pela contradio entre a poltica

    oficial de liberalizao do projeto de abertura e a ao contnua dos aparatos da represso

    poltica. Por um lado, a poltica oficial de distenso deu aos setores de oposio mais

    espao para se organizar e maior possibilidade de xito. Por outro, as presses

    coordenadas por melhoria das condies de vida, fim da censura imprensa e revogao

    da legislao repressiva intensificaram os temores dos setores mais estreitamente

    identificados com a Doutrina de Segurana Interna. A medida que se fortalecia o

    movimento de defesa dos direitos humanos, aumentavam no Estado de Segurana Nacional

    as presses e contradies internas com respeito s polticas de represso. 109

    Com o governo de Joo Baptista Figueiredo (1979-1985) houve a revogao em 1979

    do AI-5 e da Legislao de Segurana Nacional. Com o clima de abertura poltica, houve

    novas possibilidades legais para os movimentos sociais e polticos o que, sem dvida, foi

    aproveitado tambm pelos movimentos negros que intensificaram suas campanhas. Alm

    disso, tambm em 1979, o governo Figueiredo promoveu a volta do pluripartidarismo e a

    reforma partidria, o que tornou acessvel novos canais de luta, inclusive a anti-racista, por

    exemplo, a constituio das comisses de negros nos recm inaugurados partidos, PT e

    PDT. Foi justamente na abertura poltica, em que as lutas anti-racistas ganharam maior

    ao com o Movimento Negro Contra a Discriminao Racial (MNCDR) e, em seguida,

    com o Movimento Negro Unificado (MNU). Ao mesmo tempo, houve uma maior

    vigilncia da comunidade de informaes e segurana do regime militar voltado para o

    controle dos movimentos negros.

    Esse processo de abertura deu ensejo a intensas negociaes entre os militares e as

    oposies. 110 Porm havia uma corrente mais conservadora entre os militares que

    acreditava que era necessrio conter a oposio para dirigir a abertura, tendo a sob

    109 ALVES, M. H. Estado e Oposio no Brasil (1964-1984). Petrpolis: Vozes, 1985, p. 200.110 MATTOS, M. Em nome da segurana nacional: os processos da Justia Militar contra a Ao Libertadora Nacional (ALN), 1969-1979. Dissertao de Mestrado. So Paulo: FFLCH/USP, 2002, p. 31.

  • 32

    controle. Afinal, o regime buscou, ao longo de sua existncia, aniquilar qualquer

    manifestao que lhe fosse contrria, buscando uma sociedade sem conflitos. O que explica

    a intensificao da vigilncia aos movimentos sociais.

    Assim, no perodo da abertura poltica o foco da represso ampliou sua atuao,

    tornando o inimigo interno todo e qualquer grupo que desviasse do projeto poltico-social

    que os militares almejavam para o pas. Tornando um perodo contraditrio para os

    movimentos negros, que viam na perspectiva da abertura um contexto que possibilitasse

    uma atuao poltica, ao mesmo tempo em que a comunidade de informaes e segurana

    voltava sua vigilncia de forma mais efetiva para esses setores sociais.

    Anti-comunismo

    Como sabido, parte do pensamento militar esteve fundamentado em um iderio

    fortemente anti-comunista. O anti-comunismo inseriu-se no contexto internacional da

    guerra fria, que perdurou de 1947 a 1989. Nele, o golpe de 1964 foi considerado pelo

    regime militar como mais um episdio da guerra ideolgica entre o comunismo e o

    capitalismo. Desse modo, 1964 foi apresentado por alguns militares como um contra-

    golpe ao potencial golpe dos comunistas. 111 Interessante notar que o mesmo evento, o

    golpe de 1964, foi tratado com denominaes diferentes, nomeado por seus agentes sociais

    como contra-golpe ou como uma revoluo. Essas denominaes aparecem,

    dependendo do destaque que se pretende dar ao evento. Para enfatizar a ao anti-

    comunista utilizou-se a denominao contra-golpe, enquanto para ressaltar uma nova

    rearticulao entre Estado e Nao foi utilizado o termo revoluo. Com freqncia, o

    golpe de 1964 apresentava-se na documentao do DEOPS/SP, estampada com carimbo a

    frase: A Revoluo de 64 irreversvel e consolidar a Democracia no Brasil. 112

    111 D ARAJO, M. e SOARES, G. e CASTRO, C. (orgs). Vises do golpe: a memria militar sobre 1964.Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994, p. 12.112 A documentao produzida ou recebida pelo DEOPS/SP no perodo do regime militar apresenta estampada por diversos carimbos com frases de efeito que louvavam o prprio regime. Nota-se que foi necessrio para o regime reafirmar e glorificar a revoluo ao longo de seus governos, at mesmo para os funcionrios da represso. A documentao policial que apresentava esse carimbo se revertia a comunicao interna, edemarcava a revoluo como um mito fundador do regime e, visava relatar o primrdio, a criao, o comeou: Os mitos de criao e a elaborao da memria histrica constituem os rudimentos de legitimao, reafirmao do destino comum de uma nao. In MIR, L. Guerra Civil: estado e trauma. SoPaulo: Gerao Editorial, 2004, p. 69.Ao mesmo tempo, se faz necessrio ressaltar que a remisso ao termo revoluo passou a ser um aspecto que codificava objetivos do prprio Estado. Por isso mesmo, os servidores pblicos, civis e militares, deveriam conduzir sua atividade de acordo com os objetivos da Revoluo In VECCHIO, A. Impasses do

  • 33

    Violncias fsica e simblica combinaram-se no regime militar contra os seus

    inimigos, em especial, o comunismo. O anti-comunismo deu origem constituio de um

    imaginrio composto de imagens dedicadas a representar o comunismo e os

    comunistas.

    O imaginrio opera atravs de sries de oposies que estruturam as foras afetivas

    que agem sobre a vida coletiva, unindo-as, por meio de uma rede de significaes, s

    dimenses intelectuais dessa vida coletiva: legitimar/invalidar; justificar/acusar;

    tranqilizar/perturbar; mobilizar/desencorajar; incluir/excluir. 113 Essas oposies

    maniquestas apresentaram-se entre os detratores do comunismo, que o entendiam como

    a representao do mal, do caos e da desordem. Nesse sentido, representaes

    mentais114 integram o processo de construo de idias, signos ou imagens por meio das

    quais as pessoas interpretam e conferem sentidos realidade. As representaes baseiam-se

    em fatos sociais, ainda que sejam construes que possam, por vezes, produzir verses

    caricaturais e at mesmo deformadas do real 115, as representaes se utilizam dos fatos

    e alegam que so fatos; os fatos so reconhecidos e organizados de acordo com as

    Regime Militar Brasileiro: Construo de Potncia, Institucionalizao e Estabilizao Poltica (1964-1979).Tese de doutorado. So Paulo: FFLCH/USP, 1998, p. 99.A comunidade de informaes e segurana como a voz autorizada do regime militar se situava como aguardi dos fundamentos da Revoluo. A frentica troca de papis secretos que empreendia tinha por objetivo no apenas municiar as autoridades de informaes, mas constituir uma espcie de narrativa legitimadora dos atos repressivos. In FICO, C. Alm do golpe: a tomada do poder em 31 de maro de 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, pp. 92-93.Da mesma forma, em um discurso legitimador da revoluo de 1964, o artigo intitulado Contra-informao, diferenciando golpe e revoluo, afirmava o carter revolucionrio de maro de 1964. In NASCIMENTO, F. Contra-informao In Arquivos, vol. XXXI. So Paulo: Polcia Civil de So Paulo, 1 e 2 semestre de 1978, pp. 57-62. A noo de revoluo, com representaes positivas sobre a atuao do regime militar a partir do golpe, visava obter legitimidade. A fim de impregnar as mentalidades com novos valores e fortalecer a sua legitimidade, o poder tem designadamente de institucionalizar um simbolismo e um ritual novos. In BACZKO, B. Imaginao Social In Enciclopdia Einaud, vol 5. Lisboa: Imprensa Nacional e Casa da Moeda, 1985, p. 302.113 BACZKO, B. Op. Cit., p. 312.114 Segundo Chartier as representaes se referem as classificaes, divises e delimitaes que organizam a apreenso do mundo social como categorias fundamentais de percepo e de apreciao do real.CHARTIER, R. A Histria Cultural. Entre prticas e representaes. Lisboa: Difel, 1990, p. 17.115 MOTTA, R. Em guarda contra o perigo vermelho. O anti-comunismo no Brasil (1917-1964). So Paulo: Editora Perspectiva, 2002, p. XXV.

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    representaes; tanto fatos quanto representaes convergem na subjetividade dos seres

    humanos e so envoltos em sua linguagem. 116

    As representaes se apresentam de forma bastante intensificada em momentos de

    crise. A prpria noo de crise torna-se elemento mobilizador, servindo para opor uma

    ordem ideal a uma desordem emprica; ou seja, a crise e o desvio pressupem um

    dever-ser contrariado pelo acontecer, mas que poder ser restaurado justamente porque

    um dever ser. A idia de crise trs um sentimento de perigo que aglutina a sociedade em

    torno da superao da crise. A crise serve, assim, para dissolver todas as diferenas e

    contradies, empenhando todos os agentes sociais na tarefa da reorganizao da

    Nao.117

    Desde a Revoluo Russa de 1917, at a crise do socialismo real, por volta de 1989, o

    comunismo foi o centro das atenes de diferentes governos brasileiros. Assim, O

    comunismo despertou paixes intensas e opostas: de um lado, o dos defensores,

    encaravam-no como revoluo libertadora e humanitria, que abriria acesso ao progresso

    econmico e social; de outro, o dos detratores, que o encaravam como uma desgraa total,

    se acreditava que ele traria a destruio da boa sociedade e a emergncia do caos social e

    do terror poltico.118

    Com o contexto de bipolaridade na Guerra Fria, o mundo encontrava-se diante da

    disputa entre os blocos comandados pelas duas superpotncias os Estados Unidos e a Unio

    Sovitica. A idia de superpotncia est associada ao fato de emergncia de Estados que

    se tornam referncias para os demais, a partir do conceito de rea de influncia e da sua

    capacitao para a ao militar. A hegemonia como projeto, e a mediao pelo poderio

    blico so expresses das superpotncias. 119 O Brasil diante desse quadro se posicionou

    alinhado ao bloco capitalista.

    No Brasil, o anti-comunista foi marcado por imagens, que povoaram o imaginrio

    sobre prticas conspiratrias externas, com a presena de agentes estrangeiros enviados por

    Moscou (URSS), como o que teria acontecido na Intentona Comunista, de 1935, ou

    116 PORTELLI, A. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito, poltica, luto e senso comum In FERREIRA, M. e AMADO, J. (coords.) Usos e abusos da histria oral. Rio de Janeiro: Fundao Getulio Vargas, 1996, p. 111.117 CHAU, M. Ideologia e mobilizao popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra: Cedec, 1978, p. 130.118 MOTTA, R. Op. Cit., p. XX. 119 RIBEIRO, W. Guerra e geopoltica aps a Segunda Guerra Mundial In COGGIOLA, O. (org.) Segunda Guerra Mundial: um balano histrico. So Paulo: Xam e FFLCH/USP, 1995, p. 457.

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    mesmo o Plano Cohen, em 1936. 120 H uma slida tradio anti-comunista na

    sociedade brasileira, reproduzida ao longo das dcadas seguintes atravs da ao do

    Estado, de organismos sociais e mesmo de indivduos, cujo zelo militante levou

    constituio de um conjunto de representaes sobre o comunismo, um verdadeiro

    imaginrio anti-comunista. 121 Esse imaginrio fundamentou prticas polticas de

    segurana nacional contra a ameaa comunista, que culminaram com golpes polticos

    tanto em 1937 quanto em 1964. A documentao do DEOPS/SP revela que, desde sua

    fundao em 1924, esse rgo esteve engajado na empreitada da identificao, vigilncia e

    represso do crime poltico representado, principalmente, pelo comunismo.

    As representaes sobre os comunistas estiveram associadas imagem do mal,

    com uma gama de adjetivos que atribua a estes qualidades negativas. A ao dos

    comunistas traria como conseqncia, segundo esse imaginrio, a fome, a misria, a

    violncia e o pecado, entre outros males prprios da ao do demnio. Tambm ganhava

    um carter polissmico, quando associado a agentes patolgicos e a doenas, dando nfase

    a uma infiltrao que destri um organismo por dentro. A ameaa estrangeira como uma

    doena ou um corpo estranho, levaria ao crime, corrupo, e para atos imorais ou

    amorais. As representaes anti-comunistas mantiveram a tradio de divulgar uma

    imagem deformada dos revolucionrios, apresentados como seres violentos e imorais, em

    uma palavra malignos.122

    No regime militar certamente houve especificidades e novos elementos do anti-

    comunismo, prprios daquela conjuntura histrica, referentes a produo ideolgica da

    Doutrina de Segurana e Desenvolvimento. Mas, nota-se uma forte tendncia

    regularidade, ou seja, permanncia ao longo do tempo de imagens, idias, mitos etc.

    Muitas das representaes sobre o inimigo comunista foram reproduzidas durante

    dcadas, repetindo temas elaborados no primrdios. Diversos elementos do imaginrio

    anti-comunista construdo entre as dcadas de 1920 e 1930 ainda eram utilizados na

    dcada de 1980, por exemplo. 123

    120 CARNEIRO, M. L. T. Fora, Medo, Liberdade: algumas coisas no combinam entre si... in Cidadania, Verso e Reverso (vrios autores). So Paulo: Imprensa Oficial, 1997/1998, p. 59.121 MOTTA, R. Em guarda contra o perigo vermelho. O anti-comunismo no Brasil (1917-1964). So Paulo: Editora Perspectiva, 2002, p. XXII.122 MOTTA, R. Op. Cit., p. 276.123 MOTTA, R. Idem, p. XXVI.

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    Essa regularidade decorra da caracterstica prpria do pensamento autoritrio, que

    tem a peculiaridade de precisar recorrer a certezas decretadas antes do pensamento e

    fora dele para que possa entrar em atividade. Seria ilusrio supor que o pensamento

    autoritrio desemboque numa exigncia de obedincia, pois esta seu prprio ponto de

    partida: precisa de certezas prvias para poder efetuar-se e vai busc-las tanto em fatos

    quanto em teorias. 124

    A Revista Arquivos da Polcia Civil do Estado de So Paulo ressaltava o perigo do

    comunismo em um de seus artigos: Porque, ento, o Comunismo se torna perigoso?

    Talvez, e justamente, por ser uma doutrina, para a maior parte dos seus adeptos.

    Doutrina que promete mudanas e que as explica, o que as torna, aparentemente, de fcil

    execuo. 125 A mudana apresenta-se como algo inesperado e causa temor, pois o novo

    uma incgnita, dando ensejo para que aparecesse e se desenvolviam medos coletivos, dos

    quais para o regime militar, o comunismo era, sem equvocos, o maior de todos.

    O imaginrio anti-comunista alimentado por diversos preconceitos construiu, no

    regime militar, um arcabouo discursivo para legitimar aes cada vez mais belicistas no

    combate dos inimigos comunistas 126 De tal modo,se definiu, de maneira geral, como

    sendo comunismo todas manifestaes de oposio ao regime militar e de livre

    pensamento.127 Assim, os movimentos negros, independente das estratgias adotadas,

    eram compreendidos como mais um elemento da ao comunista no pas.

    Utilizando-se de um medo que se demonstrou to ou mais mobilizador do que suas

    convices polticas.. 128 Formulando a idia de que: Ainda que oculto ou mesmo

    desconhecido, o inimigo citado cotidianamente como sempre pronto a atacar. A

    linguagem empregada para design-lo (perigoso, fantico, terrorista, etc.) desperta, por

    sua vez, sentimentos paranicos na sociedade, o que provoca em muitos a disposio

    violncia. 129 Portanto, na esteira desse pensamento no se tratava de um problema apenas

    de ordem poltica, mas, essencialmente moral: no campo moral e espiritual que reside 124 CHAU, M. Ideologia e mobilizao popular. So Paulo: Paz e Terra: Cedec, 1978, p. 37.125 SALMON, H. O fascismo de hoje, o comunismo de ontem In Arquivos, vol. XXVIII. So Paulo: Polcia Civil de So Paulo, 1976, pp. 69-83, p. 78.126 ARAJO, M. e SOARES, G. e CASTRO, C. Os anos de chumbo: a memria militar sobre a represso. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994, p. 20.127 ARAJO, M. e SOARES, G. e CASTRO, C. Op. Cit., p. 30.128 MAGALHES, M. A lgica da suspeio: sobre os aparelhos repressivos poca da ditadura milit


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