Transcript
Page 1: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

0

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA

CONTEMPORÂNEA

WULDSON MARCELO LEITE SOUZA

Uma Excursão Pelo Contemporâneo a Partir do Conceito de Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman

CUIABÁ-MT 2012

Page 2: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

1

WULDSON MARCELO LEITE SOUZA

Uma Excursão Pelo Contemporâneo a Partir do Conceito de Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Epistemes Contemporâneas

Orientador: Prof º Dr. José Carlos Leite

CUIABÁ-MT 2012

Page 3: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

FICHA CATALOGRÁFICA S729e Souza, Wuldson Marcelo Leite. Uma excursão pelo contemporâneo a partir do conceito de modernidade

líquida de Zygmunt Bauman / Wuldson Marcelo Leite Souza. – 2012.

112 f. Orientador: Prof. Dr. José Carlos Leite.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, Área de Concentração: Epistemes Contemporânea, 2012. Bibliografia: p. 108-111. 1. Civilização moderna. 2. Sociologia. 3. Ideologia. 4. Relações humanas. 5. Bauman, Zygmunt, 1925-. I. Título.

CDU – 316.75 Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931

Page 4: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

2

FOLHA DE APROVAÇÃO

WULDSON MARCELO LEITE SOUZA

Uma Excursão Pelo Contemporâneo a Partir do Conceito de Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman

Dissertação defendida e aprovada em: 19 de março de 2012.

Banca examinadora:

Orientador e Presidente da Banca

Prof. Dr. José Carlos Leite – UFMT

Examinador Externo

Prof. Dr. Antonio Vidal Nunes – UFES

Examinador Interno

Prof. Dr. Yuji Gushiken – UFMT

Page 5: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

3

AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeço à minha família. Meus pais, Joarlete e Benedito, por terem

feito da educação dos filhos um propósito de vida, e pelo apoio e compreensão no

momento mais difícil de minha vida. Aos meus mais que irmãos, Juliene e Wender, com

quem compartilho angústias, afinidades e alegrias. Sem eles a jornada ficaria

praticamente impossível.

Ao meu orientador, Dr. José Carlos Leite, pelo acompanhamento dedicado, por

proporcionar-me a liberdade de pesquisar sem pressões por demandas e por indicar

autores que se tornaram fundamentais na dissertação.

Ao Dr. Antônio Vidal Nunes por aceitar o convite para compor a banca e pela amizade.

Ao Dr. Yugi Gushiken pela arguição interna da dissertação e por contribuir para o

enriquecimento deste trabalho.

À minha grande amiga, Sara Juliana Pozzer da Silveira, que, como no tempo em que foi

minha orientadora na graduação em Filosofia, ajudou-me imensamente com seus

apontamentos sempre precisos. E por uma amizade que vai muito além da afinidade

intelectual. À Dra. Denize Dall’Bello, que colaborou com seus comentários pertinentes

e seu entusiasmo para que este texto fosse envolvido pela paixão necessária que um

pesquisador deve ter por seu objeto de estudo.

Ao Dr. Luís Alves Correa Filho com o qual nas conversas sobre Zygmunt Bauman

nasceu o tema para esta dissertação.

Às minhas amigas nesta caminhada no ECCO, Albília de Almeida, Cláudia Wanessa

Poletto Rocha e Karine Krewer (cuja trilha acadêmica percorremos juntos há anos),

pelas quais tenho grande estima. Ad infinitum.

Aos funcionários do ECCO, Diego e Évila, por atenderem a todos com delicadeza e,

muitas vezes, me informando das obrigações que eu acabava esquecendo.

Aos novos amigos Fabiana Martes, Jone Castilho, Cleber Rodrigues e, em especial,

Ariadne Marinho Machado com os quais compartilhei grandes momentos nesses

últimos dois anos de livros a festas.

À Elite Borges Lopes por sua amizade e palavras sempre preciosas. Uma mulher

maravilhosa de grande importância em minha vida.

E aos amigos, que mesmo distantes, estão sempre presentes em meu coração, Renata

Braga, Milka Borges, Maureci Moreira de Almeida e Amanda Jacqueline do Amaral.

Page 6: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

4

No meu entender, o otimista é aquele que acredita que este é o melhor dos mundos possíveis. E o pessimista é aquele que suspeita que o otimista tem razão... Nesse quadro, não me identifico nem com o otimista nem com o pessimista, pois acredito que o mundo possa ser melhorado e que essa mera crença é instrumental em torná-lo melhor... Zygmunt Bauman É fácil viver no mundo conforme a opinião das pessoas. É fácil, na solidão, viver do jeito que se quer. Mas o grande homem é aquele que, no meio da multidão, mantém com perfeita doçura a independência da solidão. Ralph Waldo Emerson

Page 7: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

5

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo a análise da contemporaneidade, segundo o

conceito de “modernidade líquida” defendida pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman.

Ao adotar essa designação, para os tempos atuais, procuramos entender o mundo fluído

e instável no qual ocorre uma constante implosão dos valores e padrões, que em outrora

(denominado por Bauman como “fase sólida da modernidade”) percebíamos como

rígido e incontestável e que era regido por uma racionalidade técnica e fundamentado

no fortalecimento do Estado e da ciência. O propósito é verificar certas instâncias

modeladoras da vida humana, como as ideologias políticas, as demarcações de

fronteiras (sejam elas geográficas, científicas, etc.), as relações pessoais e comunitárias,

confrontando-as com o estado transitório, transnacional, flexível e mutante de um

mundo globalizado, individualizado e consumista; um mundo que transmite uma

sensação de abandono e insatisfação, marcado, como aponta Bauman, pela incerteza,

insegurança e falta de garantias e proteção. As ideias do sociólogo polonês para o que

constitui a “modernidade líquida” nos proporciona o suporte teórico para uma

investigação acerca dos assuntos relacionados e para um diálogo com autores que

investigam (ou diagnosticaram) a vida contemporânea, como Gilles Deleuze, Félix

Guattari, Nestor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony Giddens

entre outros, intentando, desse modo, construir um texto interdisciplinar.

Palavras-chave: modernidade líquida; globalização; fronteira; ideologia; relações

humanas.

Page 8: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

6

RESUMÉ

Le présent travail vise à l’analyse de la contemporanéité, selon la thèse de “modernité

liquide” détenue par le sociologue polonais Zygmunt Bauman. En adoptant la

désignation, modernité liquide, pour l’époque actuelle, nous cherchons à comprendre le

monde fluide et instable où il n’y une régulière crise de valeurs morales et les normes,

qu’autrefois (Bauman appele de la phase “solide” de la modernité), nous avons compris

comment dur e incontesté et qui a été régi par une rationalité technique et basée sur le

renforcement de l’Etat et de la science. L’objectif est de vérifier certains thèmes

centrauxs de la vie humaine, comme les idéologies politiques, la démarcation des

frontières, les relations personnelles et communautaires, les confrontant avec l’état

transitoire, transnational, flexible et mutant d’un monde globalisé, individualisée e

consumériste; un monde qui exprime un sentiment d’abandon et de l’insatisfaction

marquée, comme Bauman nous dit, par l’incertitude, l’insécurite, le manque de

garanties et de protection. Les idées du sociologue polonais par ce qui constitue la

“modernité liquide” nous offre le soutien théorique une enquête sur les questions

relatives et pour un dialogue avec les auteurs qui enquêtent (ou diagnostique) la vie

contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton

Santos, Arjun Appadurai, Anthony Giddens, entre autres, avec l’intention donc

construire un texte interdisciplinaire.

Palavras-chave: modernité liquide; globalisation, frontière; idéologie; relations

humaines.

Page 9: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO --------------------------------------------------------------------------------- 8

CAPÍTULO I – Modernidade líquida: o contemporâneo – a novidade que se

modifica a cada passo ------------------------------------------------------------------------- 12

1.1. Modernidade sólida-modernidade líquida: passagem e não ruptura --------- 14

1.2. Leveza: a insustentabilidade dos pontos de parada ------------------------------ 23

1.3. A desforra dos nômades --------------------------------------------------------------- 32

1.4. A novidade que se expira em alta velocidade ------------------------------------- 39

CAPÍTULO II – Globalização: ruínas da ideologia e fronteiras friccionadas? --- 45

2.1. A globalização dos ricos versus a globalização para todos ----------------------- 49

2.2. Ideologia: quem cantará que precisa dela pra viver? ----------------------------- 61

2.3. A porosidade e o acirramento das fronteiras: um jogo de contradição ------ 71

CAPÍTULO III – A fragilidade dos laços humanos: da aparente felicidade ao vazio

contemporâneo --------------------------------------------------------------------------------- 79

3.1. Laços construídos, laços dissipados -------------------------------------------------- 83

3.2. Vivendo no abandono: implicações políticas --------------------------------------- 91

3.3. Consumo e identidade ------------------------------------------------------------------- 94

3.4. Fragmentos e episódios: a insustentável leveza do ser --------------------------- 100

CONSIDERAÇÕES FINAIS --------------------------------------------------------------- 104

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS --------------------------------------------------- 107

FILMOGRAFIA ----------------------------------------------------------------------------- 111

Page 10: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

8

INTRODUÇÃO

A discussão acerca da modernidade – se ela foi superada, se houve uma ruptura

cuja cisão gerou a pós-modernidade (originando questionamentos sobre a validade dos

constructos modernos) ou se ocorreu, realmente, a efetivação de todos os seus

pressupostos, o que determinaria que o projeto moderno está inacabado – causa

calorosas, e muitas vezes contraditórias, asseverações. Se a modernidade, como aponta

Bauman, era um projeto de “derretimentos” de noções e fundamentos que sustentavam

um mundo tido como obscuro, provinciano, hierárquico, sacro, a pós-modernidade é um

estágio também de desintegração, na verdade, um momento de liquefação (assim como

a modernidade) de certezas que creditavam a racionalidade científica a capacidade de

prever todos os eventos naturais e atenuar seus efeitos e que os direitos sancionados por

poderes mobilizados para serem fortes e proporcionar a todos condições de desenvolver

sua individualidade seriam irrevogáveis. O impulso moderno é um passo calculado,

criativo e destrutivo; as suas fundações são frágeis, apesar da solidez transmitida. O

Estado moderno exibe a bandeira do capitalismo, e para o capital voraz nem suas

próprias criações estão isentas de sua sede devastadora.

A modernidade com o intuito de ser um modelo universal do uso da razão, de

instituições atuantes (mas não tutoras) constituiu a ideia de saberes/disciplinas plenas,

puras nas quais cada uma delas era responsável por um ramo do conhecimento. Desse

modo, a razão fora consagrada como a maneira mais segura e nítida de acessar a

verdade. A sensibilidade e o instinto foram vistos como obstáculos para efetivação de

tal conhecimento baseado na racionalidade científica. Porém, a pós-modernidade (e

conceitos como pós-colonialismo, hibridação, teses como modernidade-mundo, segunda

modernidade, hipermodernidade, modernidade líquida) configurou-se como uma fase

que retira da racionalidade tecnocientífica o “cetro” de soberana da verdade e restitui ao

conhecimento intuitivo, ao senso comum, aos instintos, às sensações porções

consideráveis de crédito no que tange ao nosso entendimento sobre o mundo.

A epistemologia contemporânea pôs em andamento abordagens argutas e

incisivas para analisar esse panorama de contestação e observação a respeito da escala

moderna até os dias de hoje. A tese de Zygmunt Bauman de um mundo em processo de

liquefação (poder-se-ia afirmar liquefeito) – marcado por “quebradiços” laços afetivos,

pela incerteza, insegurança e falta de garantias – expõe com contundência as fraturas da

Page 11: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

9

modernidade. Para Bauman, a época atual é propícia para colocar a modernidade em

avaliação. É um tempo de reflexão na qual a credibilidade e a validade das conquistas e

falhas modernas podem ser debatidas, descartadas, revalidadas. Mas a era atual se

mostra fluída, leve; há pouco espaço (ou mesmo intenção) para estabelecer rotinas; os

poderes globais agem para desmantelar os laços afetivos/nacionais/sociais para

proporcionar um aumento de fluxo de pessoas (porém nem todas têm passagem pelas

fronteiras que separam a dura realidade do sonho de uma vida menos árdua) e capital

em circulação.

Contudo, a modernidade e a pós-modernidade terminam sendo descritas com

características semelhantes por alguns autores, mesmo que o propósito seja gerar grades

de diferenças que daria proeminência a uma em relação à outra. Para Marshall Berman

(2007), a modernidade é contraditória e paradoxal. Há um conflito, uma tensão entre

uma imposição burocrática para gerenciar a vida dos cidadãos, da comunidade e uma

luta contínua pela autoafirmação. Linda Hutcheon (1991) ao propor uma poética da pós-

modernidade argumenta que tal período distingue-se pela contradição e paradoxo. É um

tempo que exibe tons de autorreflexividade, ironia e paródia que deixam em colapso o

formalismo e a engessada história moderna.

Jürgen Habermas (1990) defende que o projeto moderno, na verdade, está

inacabado. O filósofo alemão acusa os pós-modernos de serem autoindulgentes e de

efetivarem uma transcendência que era própria da modernidade para autocompreensão,

além de alegar que os pensadores pós-modernos descuidaram da observação do curso da

história. O pensamento, desse modo, tornou a-histórico.

Para Zygmunt Bauman, o ponto precípuo do debate se assenta na passagem da

modernidade sólida (de modelos hegemônicos de conduta, instituições fortes,

individualização, fronteiras, territorialidade, formatação dos Estados-nação) para a fase

líquida da modernidade (de poderes fluídos, Estados desregulamentados, individuação

exacerbada, fronteiras dissipadas, desterritorialização, laços afetivos e nacionais

frágeis). Deste modo, não há uma ruptura, mas um processo agudo de esgarçamento dos

constructos modernos, sem, no entanto, gerar sua superação ou abolição.

A modernidade líquida tem latente uma indefinição sobre o futuro de homens e

mulheres. A globalização engendrou um mundo em descontrole no qual o capital é leve

e transita com assustadora facilidade. As pessoas assumem essas características, o que

Page 12: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

10

faz com que a incerteza seja mais pungente na atualidade, tornando o aprofundamento

nas relações que se constrói durante esses deslocamentos algo raro.

O olhar lançado para analisar o mundo contemporâneo deve ser interdisciplinar.

Não somente para pôr em prática uma tendência, mas para compreender um cenário

híbrido, no qual disciplinas dialogam para forjar algum aspecto inédito, insólito, mas

sincero e condizente, que sofre os atritos e convergências dos mais diversos agentes

sociais. Para tanto, a sociologia, a antropologia, a filosofia, a literatura e o cinema foram

cooptados como recursos discursivos para engendrar uma tentativa de compreensão do

nosso momento histórico sob a luz da modernidade líquida. A escolha da tese de

Bauman se deve não apenas à afinidade com as ideias do autor, mas, também, pela

maneira penetrante de enfrentar questões essenciais (com altas doses de temor e

maravilhamento) para a contemporaneidade, a saber, a dissolução das fronteiras, a

globalização, o fim das ideologias e a fragilidade dos laços humanos.

No primeiro capítulo, a passagem da modernidade sólida para a modernidade

líquida se coloca como um problema central para o entendimento das ocorrências que

proporcionaram o esfacelamento de construções que foram erguidas para ser perenes. A

convicção de que a ciência e a individuação, junto às noções de Estado, leis, família

manter-se-iam firmes e invioláveis a qualquer ataque, ruiu com o sobejo de novas

formas de compreender as mudanças (e a necessidade delas) que o mundo apresentava.

A racionalidade tecnocientífica, cuja suposição do totalitarismo, mostrou-se insuficiente

para abarcar e significar tais alterações na estrutura moderna. E a velocidade do mundo

atual e a exigência de deslocamento – por motivos diversos – levaram à

desterritorialização e também à extraterritorialidade de uma elite global coordenada pela

fluidez e leveza de um capital que ignora fronteiras e cria novidades (temporárias) a

todo instante.

O segundo capítulo trata de questões que se sintonizam de várias maneiras: a

globalização, o fim das ideologias e o esvanecimento das fronteiras. As implicações que

relacionam esses assuntos estão enlaçadas num mercado global de mercadorias que

fomenta o livre trânsito de produtos e serviços ao mesmo tempo em que, apesar da

extraterritorialidade atual, impõem barreiras para um fluxo sem constrangimentos às

pessoas. As fronteiras ainda permanecem vigilantes aos que são considerados personas

non gratas, àqueles de quem se suspeita não estarem aptos para o consumo. O fim das

ideologias se vincula com a ideia de que a economia de mercado por defender o livre

Page 13: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

11

comércio impunha uma definitiva prova que os embates políticos eram desnecessários

para um tempo em que a competição dizia respeito a como ser efetivo na luta pelo

mercado. No entanto, tal declaração de encerramento de debates ideológicos configura a

tomada do capitalismo e de uma competição injusta, desigual como base ideológica para

a movimentação desse mundo supostamente sem ideologia.

Por fim, o terceiro capítulo versa sobre a fragilidade dos laços humanos. Não ter

vínculo que nos prendam a algum lugar é uma exigência da modernidade líquida. O que

ocasiona um complexo estado de insegurança que adiciona a incerteza atual um desejo

de mobilidade assombrado por uma vontade de estreitar os laços tornando-os

duradouros com aqueles que nos cercam. O consumismo, a identidade, a flexibilidade

como características da modernidade fluída são questões que geram desconforto e

aumentam a sensação de angústia que acompanha inúmeros “candidatos” ao sucesso e à

felicidade na era líquida. Uma breve excursão pela vida episódica e fragmentária a partir

da obra do escritor tcheco Milan Kundera conclui o capítulo.

A modernidade líquida é um tempo de novidades e uniformização, de contrastes

e tentativas de consolidação de modos de vida. Por isso, a incerteza paira sobre ela

como algo sempre presente, e por vezes, parecemos inermes ao seu efeito. Zygmunt

Bauman nos auxilia na elucidação dos pontos obscuros e no entendimento dos

mecanismos do funcionamento da globalização e do por que do consumo ter tomado o

primeiro plano na vida de homens e mulheres ao redor do planeta. Tais interrogações

nos proporcionam a adoção de uma perspectiva epistemológica que abarca áreas

distintas do conhecimento para construir um painel interdisciplinar que contribui para a

compreensão de um mundo em desintegração que corresponda a superar a incerteza e se

alimentar dela.

Page 14: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

12

CAPÍTULO I

Modernidade líquida: o contemporâneo – a novidade que se modifica a cada passo

A frase do filósofo transcendentalista estadunidense do século XIX, Ralph

Waldo Emerson1, “Quando patinamos sobre gelo quebradiço, nossa segurança depende

de nossa velocidade”, apresenta neste incipiente século XXI uma atualidade

assombrosa. Essa máxima do (e no) século da industrialização oferece, além de uma

instrutiva ilustração visual, um conselho para o agir: em situações difíceis, busque a

resolução rapidamente, para não ser atingido implacavelmente pelos problemas que ela

virá a causar. Claro que as decisões tomadas devem observar uma conduta condizente

com a busca do eu interior e considerando o proceder moral augusto de um homem

independente do pensar de terceiros, que seja superior e que leve em conta a bondade

pela bondade, acima das expectativas de recompensas e retribuições. É preciso, acima

de tudo, como diz Emerson, ter confiança em si mesmo, esse é o segredo do sucesso.

Contudo, há no dito de Emerson, uma suspeita de perigo. Perigo, o qual o nosso ligeiro

poder de decisão poderá nos deixar a salvo da provável hipotermia.

No século XXI, o excelso dito de Ralph Waldo Emerson desloca-se do agir

moral, ou pelo menos da preocupação com os seus desdobramentos, para um “safar-se”

incólume da situação de escolha, de emergência na qual nos encontramos – e esse

estado mostra-se contínuo, sem grandes intervalos entre eles, como se tudo que ocorre

devesse ser considerado os decisivos da vida. Como o Chris Wilton, personagem de

Match Point (2005) de Woody Allen, que diante lances capitais transita entre oposições,

mas opta pelas ambições individuais, que incluem assassinatos e a subjugação da

consciência às escolhas irreversíveis.

Zygmunt Bauman usa a frase de Emerson como epígrafe na introdução de seu

livro Vida Líquida, publicado, em 2005, na Inglaterra. Vida líquida que é o tipo de vida

que se consolidou nas últimas décadas; a vida que se constitui em uma sociedade

1 Filósofo estadunidense (1803-1882) criador da escola transcendentalista. Buscou de forma lírica e lógica a independência espiritual do homem. Seu pensamento foi marcado por paradoxos brilhantes e por aforismos lacônicos e enérgicos. Fonte: LAROUSSE. Volume VII, 2ª edição revista e atualizada da Enciclopédie Larousse Méthodique. Texto original Bernard Fay. Tradução Heitor Fróes. Adaptação e atualização Paulo Rónai. – Rio de Janeiro: Delta, 1968.

Page 15: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

13

moderna líquida. Segundo Bauman, “‘Líquido-moderna’ é uma sociedade em que as

condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que

aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir”

(BAUMAN, 2007b: 07). O que Bauman declara como modernidade líquida é uma fase

que se contrapõe à modernidade sólida, aquela época que desenhou e consagrou-se com

o Iluminismo, mas que tem em seu lastro o Positivismo, a Revolução Industrial, o

Fordismo e incontáveis eventos e teorias que formularam um mundo

(predominantemente o lado ocidental do planeta) governado por uma racionalidade que

definiu um savoir-faire baseado na soberania da ciência, na lógica, no cálculo, na

eficácia do planejamento, na indústria, na constância, na fidelidade aos compromissos.

Enfim, caminhou em direção à certeza e à segurança. A modernidade líquida, ao

contrário, é leve, fluída, inconstante, exibe mobilidade, carrega consigo a ideia de

transitoriedade, ela é mutante e impõe a necessidade de movimento contínuo. Contudo

traz em seu bojo a incerteza, o sentimento de insegurança, de falta de garantias e

proteção e a exigência de liberdade num processo de individualidade exacerbado.

Voltemos à observação de Emerson, quando caminhamos sobre gelo quebradiço a nossa

velocidade é que nos mantém em segurança e que nos preserva no jogo da vida ensaiada

na modernidade líquida repleta de possibilidades à espera dos mais velozes. Ser frágil e

percorrer esta trajetória em passos lentos e reflexivos pode significar falta de habilidade

na disputa-mor: a da sobrevivência.

A velocidade, no entanto, não é propícia ao pensamento, pelo menos ao pensamento de longo prazo. O pensamento demanda pausa e descanso, “tomar seu tempo”, recapitular os passos já dados, examinar de perto o ponto alcançado e a sabedoria (ou imprudência, se for o caso) de o ter alcançado. Pensar tira nossa mente da tarefa em curso, que requer sempre a corrida e a manutenção da velocidade. E na falta do pensamento, o patinar sobre o gelo fino que é uma fatalidade para todos os indivíduos frágeis na realidade porosa pode ser equivocadamente tomado como seu destino (BAUMAN, 2001: 239).

Invocando Max Scheler, Bauman aponta para a importância em não se confundir

fatalidade com destino. Fatalismo é resultado de um erro de conjugação do juízo.

Portanto, os seus passos são artificiais (fruto do raciocínio – ou, muitas vezes de

motivação emocional) e compreensíveis. Significa que há maneiras de corrigi-los,

convertê-los, de encontrar saídas para os equívocos cometidos ou para as situações que,

Page 16: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

14

pelas mais diversas razões, nos envolvem. Destino é a ampla capacidade de procurar

saída para a fatalidade. “‘A imagem de nosso destino’ adverte Max Scheler, ‘só nos

abandona quando lhe damos as costas’” (BAUMAN, 2001: 240). Ou seja, quando

aceitamos que nada poderia ter sido diferente.

Se afirmarmos categoricamente que um acontecimento é irreversível caímos na

armadilha do fatalismo, passando a acreditar que é o destino que se consolida por sua

própria e irrecusável trama. Desse modo, não há espaço para perceber o que de fato

ocorreu. Nesse caso, anula-se a reflexão. E o destino deve ser encarado como reflexão.

Destino é uma construção erigida pelo pensamento, portanto, exige autorreflexão e

avaliação daquilo que nos circunda e das escolhas feitas. Dedicação que o mundo

líquido não permite. Por isso elucubrar sobre o fatalismo parece sem sentido. Parar

significa a instauração da insegurança. E a fatalidade significa responsabilizar o

indivíduo e deixá-lo abandonado à própria sorte, jogando-o, assim, direto para a crença

de um destino a ser aceito. A falta de tempo corrói a possibilidade de perceber o destino

como construção cotidiana. Por isso, o gelo fino consagrou-se como o solo que desafia

os aventureiros da vida na modernidade líquida.

1.1. Modernidade sólida - modernidade líquida: passagem, não ruptura

Em entrevista à revista Tempo Social, em 2004, Zygmunt Bauman aponta a

diferença central entre a sociedade anterior, que ele chama de “modernidade sólida” e a

vida contemporânea, na qual homens e mulheres estão enredados, a “modernidade

líquida”.

[...] a vida moderna foi desde o início “desenraizadora”, “derretia os sólidos e profanava os sagrados”, como os jovens Marx e Engels notaram. Mas enquanto no passado isso era feito para ser novamente “reinraizado”, agora todas as coisas – empregos, relacionamentos, know-hows, etc. – tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis. A nossa é uma era, portanto, que se caracteriza não tanto por quebrar as rotinas e subverter as tradições, mas por evitar que padrões de conduta se congelem em rotinas e tradições (BAUMAN, 2004b).

Page 17: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

15

O movimento contínuo: dinamismo e a falta de compromisso (que não pode ser

confundido com o não comprometimento com aquilo que se faz, pois se trata da não

criação de vínculos que nos prendam àquilo que fazemos no momento) marcam

indelevelmente esta época de mobilidade e mutações.

O “derretimento dos sólidos” foi a proposta de uma era que pretendia se livrar de

todos os resquícios da Idade Média e da moral de uma velha ordem que atava as mãos a

valores que impediam o desenvolvimento de pressupostos de conduta que coadunassem

com o uso irrestrito da razão. Deveres com a família, a Igreja, com os ideais locais

passaram a ser entendidos como empecilhos. As superstições, a convicção ilimitada na

Providência Divina para os negócios, as imposições comunitárias eram assaz defendidas

pelos partidários dos antigos estatutos que sustentavam a tradição e o poder feudais,

clericais, monárquicos, tidos como pouco esclarecidos pelos proponentes de uma visão

moderna do mundo. Apesar de a batalha prometer dificuldades, a hierarquia de outrora

estava em ruínas. A tarefa de “derreter os sólidos” se mostrava urgente.

Se o “espírito” era “moderno”, ele o era na medida em que estava determinado que a realidade deveria ser emancipada da “mão morta” de sua própria história - e isso só poderia ser feito derretendo os sólidos (isto é, por definição, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse infenso à sua passagem ou imune a seu fluxo). Essa intenção clamava, por sua vez, pela “profanação do sagrado”: pelo repúdio e destronamento do passado, e, antes e acima de tudo, da “tradição” – isto é, o sedimento do passado no presente; clamava pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenças e lealdades que permitiam que os sólidos resistissem à “liquefação” (BAUMAN, 2001: 09).

Enfim, derreter os sólidos para erigir outros mais rígidos e imunes às sedições do

fanatismo, abandonar os vestígios de irracionalidade de uma tradição em que a

autoridade estava alhures no Absoluto das crenças sagradas.

Bauman postula que o projeto da modernidade possuía como leitmotiv a

emancipação da razão dos grilhões de um mundo que se afundava em sua ignorância.

Era preciso fundamentar novos horizontes que possibilitassem uma visão mais acurada

de uma nascente vontade de independência do pensamento. A escapatória das nebulosas

configurações de um mundo pré-moderno se assentava na racionalização das relações

econômicas, políticas e sociais.

Page 18: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

16

[...] “Derreter os sólidos” significava, antes e acima de tudo, eliminar as obrigações “irrelevantes” que impediam a via de cálculo racional dos efeitos; [...] Por isso mesmo essa forma de “derreter os sólidos” deixava toda a complexa rede de relações sociais no ar – nua, desprotegida, desarmada e exposta, impotente para resistir às regras de ação e aos critérios de racionalidade inspirados pelos negócios, quanto mais para competir efetivamente com eles (BAUMAN, 2001: 10).

Tratava-se de destruir para criar, de substituir os deteriorados alicerces pré-

modernos por blocos resistentes que se manteriam firmes em sua posição, pouco

importando que tipo de exame ou desafio fosse-lhes impostos. A modernidade, para

pensadores como Marx e Engels, desejava efetivar todo tipo de ultrapassagem em

relação a um mundo tido como obscuro, provinciano, cativo de referenciais sacros.

Segundo George Balandier (1997: 157), “É o pensamento moderno que opera rupturas,

que afasta a tradição portadora de permanência e apreende tudo sob o aspecto do

movimento sendo deste, ao mesmo tempo, o instrumento e a expressão”. Nesse cenário,

a razão instrumental se consolidou como a forma mais segura de garantir o projeto

moderno. A razão instrumental e sua base científica livraria o ser humano do medo

tornando a Natureza sem mistérios, os poderes seculares mais transparentes e

concederia aos homens o privilégio de se declarar senhores do próprio entendimento.

De Francis Bacon (método indutivo) passando por Descartes (ceticismo metodológico,

geometria analítica), Galileu (heliocentrismo), Newton (lei da gravitação universal) até

a etapa onde o apelo à razão recrudesce, o Iluminismo.

Em Dialética do Esclarecimento, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno

discutem como a Ilustração converteu-se no mito que pretendia combater. Quando a

racionalidade se imiscui em todos os setores da vida relegou a sensibilidade, os

sentimentos, as sensações, a intuição, o senso comum, os saberes locais a extratos

inferiores do processo de conhecer. Assim a razão sempre alerta produziu monstros que

prometera eliminar com o soterramento do mito, das superstições, dos medos gerados

pela incompreensão da natureza dos tempos pré-modernos.

Do medo o homem presume estar livre quando não há nada mais de desconhecido. É isso que determina o trajeto da desmitologização e do

Page 19: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

17

esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim o mito identifica o inanimado ao animado (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 29).

Desvendar segredos, afastar o medo e dirimir os mistérios que envolviam a

natureza são propostas que se perpetuaram pelo trajeto da modernidade. De Francis

Bacon – e sua máxima, no Novum Organum (1620), de que para entendê-la (a Natureza)

era preciso obedecê-la para dominá-la – à exploração dos minérios e reservas naturais, a

técnica foi o ponto crucial das conquistas e vicissitudes modernas. A ideia de progresso

sem o aprimoramento da técnica não seria viável. Tanto o progresso imaginado quanto a

técnica consolidada são asseverações de um mundo no qual a ciência é a principal juíza

sobre a verdade das coisas. Cálculo, previsão, verificação são termos que acompanham

os acontecimentos naturais e os eventos promovidos pelos homens. Não há mais

ilusões, ou essa era a obsessão a ser perseguida. A razão vigilante quer sondar os mais

desafiadores enigmas da natureza. Na verdade, enigmas para ciência são criptogramas

que não resistem a uma inteligência curiosa e dotada de indefectíveis técnicas para

acessá-las. A relação que se estabelece é unilateral, fechada para o diálogo e inflexível.

“O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os

homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem da ciência

conhece as coisas na medida em que pode fazê-las” (ADORNO e HORKHEIMER,

1985: 24).

A ciência deveria libertar os homens e as mulheres, essa era a expectativa que

muitos visualizaram como alcançável, fazê-los senhores de sua autoafirmação. Libertá-

los para que produzissem tempo livre e conquistassem a emancipação intelectual e

imunidade em relação às intempéries da natureza. O ardil subjacente no penetrante

discurso do conhecimento total era a dominação que ocultava. Dominar a natureza

acarretou em dominar o ser humano. A promessa de felicidade malogrou-se em

obstáculos que tornaram a emancipação quimera. Os homens e mulheres modernos

sentiram o bafejo de uma vida confortável e de problemas externos relativamente

reduzidos. Entretanto, a técnica tornou-se uma exigente auxiliar dessa vida e depois

sócia majoritária para, em seguida, resplandecer como soberana. A dedicação total ao

trabalho foi incorporada às diretrizes econômicas e sociais que apontavam para o

progresso.

Page 20: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

18

A modernidade foi construída para não ser reflexo de nenhuma outra época da

história humana. Por isso, o “derretimento dos sólidos” imperou diante qualquer

intenção de restauração. A liquidação dos antigos “sólidos” pretendia engendrar

“sólidos” cuja fortaleza seria inabalável.

Bauman aponta que a sede moderna por autogerenciamento e autoafirmação

emana dos indivíduos uma autocrítica da realidade que está sempre se fazendo e nunca

satisfeita por completo. Por mais que nos agrade um lugar e nos acomodamos a ele, a

permanência é uma luta, pois aos homens e mulheres pertence a responsabilidade do

sucesso ou fracasso dessa empreitada. A afinidade com o liberalismo faz da “era dos

sólidos” o período em que os indivíduos dependiam de suas habilidades, capacidade de

fidelidade e persistência para triunfar. Como explica Norberto Bobbio (2006: 31),

“Como teoria do Estado, o liberalismo é moderno (...)”. O indivíduo moderno em seu

estado singular dependia de sua autonomia recém-conquistada. Mas o terreno era

acidentado. O liberalismo buscava efetivar a personalidade individual; mesmo que isso

significasse a não igualdade entre todos os postulantes à autodeterminação.

Max Horkheimer defende que os traços positivos da modernidade – ou pelo

menos seu intuito – de cunho racionalista (asseverado pela ideia de liberdade)

acarretaram o advento daquilo que ousavam enfrentar: a contradição, o dogmatismo, a

imprevisibilidade, as ações tuteladas, não autônomas.

Neste processo da história das ideias reflete-se o fato histórico de que todo o social de que faziam parte as tendências liberais, democráticas e progressistas da forma cultural dominante, continha também desde o início o seu contrário – servidão, acaso, e mero domínio da natureza – o qual, força da própria dinâmica do sistema, ameaça no fim destruir com certeza os traços positivos (HORKHEIMER, 1990: 140).

Para Isaiah Berlin, a liberdade proclamada (e em tese a ideia de que a autonomia

conduziria a uma liberdade em que os obstáculos eram dirimidos pela possibilidade

crescente de autogerência das escolhas) esbarrava nos limites impostos pelas opções de

ação. As teorias liberais associavam-se com a racionalização aguda do mundo. A

liberdade era concedida para se fazer aquilo que professava uma lógica racionalista. As

opções deveriam circular pela necessidade e pela contingência, e a definição exata da

conduta excelsa por esses termos era o acessado apenas pela razão crítica. Anulado o

Page 21: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

19

impulso irracional e certificado a obediência à lei, a individualidade perfazia-se

circunscrito ao racionalismo.

Algumas portas conduzem a outras portas abertas; outras, a portas fechadas; há uma liberdade real e há uma liberdade potencial – dependendo do grau de facilidade com que algumas portas fechadas podem ser abertas, dados os recursos existentes ou potenciais, físicos e mentais. (...) Mesmo que não se possa apresentar uma lei inflexível, ainda resta o fato de que a dimensão da liberdade de um homem ou de um grupo é, em grande medida, determinadas pela série de possibilidades que se acham à disposição de sua escolha (BERLIN, 2002: 151).

As regras do jogo, os procedimentos adequados para alcançar o cume das nossas

pretensões eram impostos de “fora”. Aonde chegar e como chegar poderiam ser sonhos,

mas para realizá-los os caminhos a se seguir já possuíam placas de sinalização, e as

escolhas reduzidas não permitiam lacunas para que outsiders reconfigurassem as rígidas

regras implantadas.

Era uma época que pretendia impor a razão à realidade por decreto, remanejar as estruturas de modo a estimular o comportamento racional e a elevar os custos de todo comportamento contrário à razão tão alto que os impedisse. Em razão do decreto, negligenciar os legisladores e as agências coercitivas não era, obviamente, uma opção. A questão da relação com o Estado, fosse cooperativa ou contestadora, era seu dilema de formação; de fato, uma questão de vida e morte (BAUMAN, 2001: 58).

A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt deu dimensão à necessidade de

preservar o espaço privado das interferências da esfera pública; aquilo que seria do

domínio humano fora invadido por uma instrumentalização da razão que elevou à

técnica a estatura de um destino irrecusável. Os seres humanos seriam manobrados

como objetos impotentes diante das condições sociais propostas. Uma sociedade

regulada surgiu no horizonte da modernidade trazendo tanto a semente da emancipação

quanto da destruição.

A teoria crítica acusava de duplicidade ou ineficiência aqueles que deveriam ter providenciado as condições adequadas para a autoafirmação: havia limitações demais à liberdade de escolha e havia tendência totalitária

Page 22: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

20

intrínseca ao modo como a sociedade fora estruturada e conduzida – tendência essa que ameaçava abolir a liberdade de uma vez, substituindo a liberdade de escolha pela tediosa homogeneidade, imposta ou sub-repticiamente introduzida (BAUMAN, 2001: 60).

O desenvolvimento tecnológico formou um liame com a ideia de progresso;

aliança que reforçava a penetração da razão instrumental nas decisões humanas.

Situação que obliterava o sonho de autoafirmação. A Teoria Crítica buscou, então,

produzir uma gama de defesa para impedir as prováveis restrições à plena liberdade dos

desiderativos humanos. O que precisava ser resguardado era o espaço privado dos

indícios de dominação pela esfera pública, ou seja, dos arbítrios de uma classe

dominante endossada pela força do Estado – de sua burocracia – e de um sistema

financeiro internacional – avassalador na implantação de regras favoráveis aos seus

interesses. A autonomia intelectual, de manifestação de desejos e de possibilidade de

geração de idiossincrasias contra os abusos da vida regular estavam em risco. A Teoria

Crítica fomentou o recurso de denúncia da intromissão do espírito instrumental nos

percursos de sobrevivência de homens e mulheres: do enfrentamento de Ulisses ao

canto das sereias aos variados e consolidados clichês fabricados pela indústria cultural,

a ideologia do progresso vaticinava uma sociedade espelhada pela eficácia da técnica.

Ao buscar apartar-se das imposições/armadilhas da Natureza, o ser humano produziu

uma emboscada para si mesmo: ao tentar fugir da necessidade gerou uma liberdade que

o encurralou na figura de um sujeito que pela linguagem, manipulação de ferramentas e

aplicação tecnológica conhece, controla e modifica a Natureza. Tal ideologia acabou

por anular os impulsos humanos e aprisionou o indivíduo a um processo de reificação

contínuo: produto e produtor, criador e criatura já de antemão estão afastados. A

mercadoria é a “suprema” criadora de si. O ser humano para vencer a Natureza reprimiu

seus instintos, deformou sua sensibilidade e aceitou, mesmo que tacitamente, o

tolhimento de sua criatividade. Para os pensadores frankfurtianos, a dominação da

natureza é o primeiro avanço para o domínio do homem pelo próprio homem.

A modernidade sólida elegeu seus bastiões: a racionalidade (instrumental), o

desenvolvimento tecnológico, a decodificação do mundo pela linguagem, o princípio de

identidade, a aposta no mercado mundial de comércio. Panorama propício para que tudo

ocorresse segundo a lógica do poder econômico amparado por um Estado que se

manifestava onipresente, impessoal e em conformidade com interesses de agentes

Page 23: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

21

privados que gozavam de influência na esfera pública – instituições bancárias, indústrias

metalúrgicas, de minérios, empresas de alimentos, comunicação entre outros. Era contra

esse lado oculto da política que a voz dos defensores da autonomia crítica se levantou.

Era algo que soava como uma emergência que exigia uma solução imediata favorável

ao “partido” da esfera privada.

No mundo atual, na modernidade líquida, os papéis foram trocados. O antigo

“invasor” tornou-se “candidato” a promotor de uma sublevação. O espaço público é

tomado pela esfera privada. Os problemas de caráter político ou social recebem, ao

invés de respostas concernentes ao auditório da vida pública, ou seja, próprias do

âmbito dos poderes constituídos e da ação comunitária, ajustes vindos de iniciativas

individuais. Poder-se-ia conjecturar que tal condição é a efetivação da matriz liberal da

modernidade. O neoliberalismo econômico em defesa da economia de mercado de livre

iniciativa contaminava a esfera pública conduzindo a sua privatização. Como postula

Norberto Bobbio (2006: 89), “Na formulação hoje mais corrente, o liberalismo é a

doutrina do ‘Estado mínimo’ (o minimal state dos anglo-saxões)”. No fim, o amparo e o

apelo às ferramentas institucionais acabavam reduzidos.

Zygmunt Bauman chama a atenção, utilizando frase de Ulrich Beck, para o fato

de que vivemos consoantes à ideia que o adequado parece ser buscar uma “solução

biográfica para as contradições sistêmicas”. A sociedade contemporânea propalada,

certa vez, como “sociedade do espetáculo”2, em outra ocasião como “sociedade do

medo”3, é também a “sociedade da culpa individual”, da responsabilidade pessoal pelos

erros, mesmos que eles sejam provenientes de falhas estruturais, de instituições

contaminadas indevidamente pelos préstimos da burocracia, sejam de ordem exterior ao

sujeito ou erros históricos.

No entanto, a modernidade líquida, pela distância que a separa do apogeu da

modernidade sólida, é uma era na qual as ferramentas críticas proporcionam uma

avaliação reflexiva dos constructos e feitos da antiga modernidade. Na modernidade 2 A influente obra “A sociedade do espetáculo” de Guy Debord, publicada em 1967, denuncia a sociedade

moderna capitalista como produtora de espetáculos. Espetáculos cotidianos gerados por imagens que despertam desejos, promovem tentativas de unidade social e acarretam na mercantilização do todo social. 3 Não somente uma “sociedade do medo”, mas uma “cultura do medo”. Sobre a insegurança do mundo

atual, ver Zygmunt Bauman, Tempos líquidos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

Page 24: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

22

líquida, como estamos cientes dos equívocos modernos, temos a chance de observar

detidamente e colocar em prática preceitos e objetivos que foram plantados no cerne das

intenções modernas, mas que descarrilaram em dúbios projetos de dominação de países

hegemônicos sobre populações devastadas por profundos problemas de ordem

sociopolítica e econômica. Democracia, justiça social, liberdade são conceitos atuais

que tiveram no Iluminismo seu nascimento, porém declinaram ao longo dos séculos e

foram submetidas a pacotes de ajuda para países em situação de risco como modo de

impor regras na maneira de dirigir suas instituições, geralmente, em detrimento das

expectativas do povo local, e, mais recentemente, como justificativa para intervenções

bélicas a outro território (a invasão da coalizão liderada pelos Estados Unidos ao Iraque,

iniciada em 20 de março de 2003, é um exemplo capital de tal absurdo recurso).

Bombardeia-se em nome da democracia e da liberdade: o supremo argumento falacioso.

A modernidade líquida assiste ao fim dos sonhos modernos de um telos que se

realizaria infalivelmente. A ética pós-moderna derrubou a ideia que o progresso anda

consoante a uma perfeição a ser atingida amanhã ou depois. Há o aqui e agora. Além de

considerar que há uma pluralidade de contextos, optar por uma delas é um exercício que

demanda tempo, e tempo é algo que escasseia rapidamente na vida líquida. E com a

desregulamentação e privatização das tarefas modernas, a razão humana perdeu os

espaços coletivos que favoreciam a integração dos sujeitos atuantes e a percepção desse

uso como propriedade coletiva fragmentou-se deixando esses sujeitos entregues aos

seus próprios recursos individuais e as idiossincrasias que possam criar.

Abandonados pelos blocos de amparo para o desenvolvimento da sua

compleição individual (pelo menos a ilusão desta), homens e mulheres da sociedade

moderna líquida são brindados com exemplos igualmente individuais de vencedores que

contrariam as expectativas de insucessos ligadas a uma condição de vida adversa.

Políticas públicas capazes de sanar tais deficiências permanecem no plano da retórica e

das promessas que inundam as campanhas eleitorais.

Fracassar não é um tópico aceitável na vida líquida. Há todo um investimento no

sucesso, objetivamente perseguido ou repentino, a ideia que os homens e mulheres

devem se fazer por si mesmo predomina, e ainda mais quando as cobranças por

oportunidades e geração de empregos surgem esporadicamente em reivindicações

sindicais ou nos meios de comunicação. Em tese, espera-se que a sociedade (com o

direito de administração outorgada ao Estado) garanta com os meios possíveis às

Page 25: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

23

chances a que todos aspiram. Com o passar do tempo – além das escolhas que já

estavam dispostas para ele – o proponente a uma vida melhor ficou a cargo de uma

dupla tarefa: a de saber lidar com as possibilidades existentes e de inventar recursos

para gerar suas próprias possibilidades quando tudo parecer nebuloso; tais recursos, sua

aplicabilidade, eficiência, desatinos e falhas, são de responsabilidade exclusiva do

sujeito. Há inúmeras possibilidades de triunfo, de escolhas e permissão para não se

apegar a nenhuma delas. O cenário que se apresenta é de incerteza, falta de segurança e

de instabilidade endêmica das opções dignas de seguir ou de exibir.

O que separa a atual agonia da escolha dos desconfortos que sempre atormentaram o Homo eligens, “o homem que escolhe”, é a descoberta ou suspeita de que não há regras preordenadas nem objetivos universalmente aprovados que se possam seguir inflexivelmente o que quer que aconteça, desse modo aliviando os que escolhem da responsabilidade pelas consequências adversas de suas opções. Ninguém impede que esses pontos de referência e essas pautas que hoje parecem fidedignas sejam amanhã (e retrospectivamente!) desmascarados e condenados como enganosos ou corruptos (BAUMAN, 2007b: 155).

Os sólidos modernos que foram edificados para suplantar os deteriorados sólidos

pré-modernos soçobraram diante do processo de “liquefação” contemporâneo, um novo

“derretimento dos sólidos” que fez eclodir uma era moderna líquida.

1.2. Leveza: a insustentabilidade dos pontos de parada

Instabilidade, inconstância, flexibilidade, vulnerabilidade e leveza são

características preponderantes da sociedade moderna líquida. Entre elas, a leveza

destaca-se por acoplar a sua definição o desapego à fidelidade e às emoções que

engendram vínculos que nos enraízam a algum lugar. Na verdade, o que se exige dos

homens e mulheres contemporâneos é a disponibilidade para se deslocar sem entraves

relacionados a compromissos de origem sentimental. A ideia de viver em trânsito, se

locomovendo e ter pouca bagagem, viajar leve, parece atraente por eliminar

consequências que a permanência nos lugares pode criar. A velocidade desse

deslocamento pressupõe a não continuidade dos laços. Isso significa que quanto mais

leve estamos, mais rápido percorreremos e mais longe alcançaremos.

Page 26: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

24

Como os compromissos de hoje são obstáculos para as oportunidades de amanhã, quanto mais leves e superficiais eles forem, menor o risco de prejuízo. “Agora” é a palavra-chave da estratégia de vida, ao que quer que essa estratégia se aplique e independente do que mais possa sugerir. Num mundo inseguro e imprevisível, o viajante esperto fará o possível para imitar os felizes herdeiros da elite global que viajam leves; e não derramarão muitas lágrimas ao se livrar de qualquer coisa que atrapalhe os movimentos (BAUMAN, 2001: 187).

Planos em longo prazo são impedimentos quase que imperdoáveis. A proposta já

deve ser conhecida de antemão: viver leve para facilitar a flexibilidade, mesmo que isso

acarrete em vulnerabilidade, pois a incerteza e a insegurança são desafios a serem

vencidos, não motivos para recusar a instabilidade do mundo atual. Esse entrelaçamento

das características da modernidade líquida gera um sentimento de abandono com o qual

é preciso aprender a viver. A geração dos nascidos no final da década de 70 e início dos

anos 80 do século XX, chamada pelos sociólogos de “Geração Y”, que foi incentivada a

ambicionar em demasia e não se contentar com as conquistas e sair atrás de horizontes

sempre mais promissores se equilibra na fina espessura da corda que sustenta as cadeias

de comando e as diretrizes empresariais do mundo contemporâneo.

Ser leve é condição sine qua non para atenuar as mudanças constantes. Mas elas

ocorrem com velocidade tal que afastar a insegurança mostra-se tarefa desgastante. O

tempo para mitigar esse conflito reduz-se assim que reconhecido. No entanto, o mal-

estar permanece como uma sensação mal digerida.

Impotência, inadequação: esses são os nomes da doença da modernidade tardia, da pós-modernidade – o mal estar da pós-modernidade. Não o temor da não conformidade, mas a impossibilidade de se conformar. Não o horror da transgressão, mas o terror do infinito. Não demandas que transcendem nosso poder de atuar, mas atos esporádicos numa busca vã por um itinerário estável e contínuo (BAUMAN, 2008a: 60).

A estabilidade é ainda desejável, já que está associada à concepção de

“progresso” na vida. Nutrimos a expectativa de um sucesso levar a outro e, assim,

consolidar nossos sonhos de ascensão e conquistas. Entretanto, o atual estado de coisas

Page 27: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

25

não é o cenário ideal para projetos além do presente e comemorações prolongadas. Há

escolhas a serem feitas; inúmeras possibilidades de escolhas. A liberdade para

experimentar as opções que se multiplicam a nossa frente não encontra as restrições

com a qual se deparava na modernidade sólida. E elas não eram excessivas. Porém, em

ambos os períodos, a escolha deveria/deve ser feita. Em outrora a escolha precisava

conter a semente da continuidade. Trabalhar em uma fábrica de automóveis poderia ser

garantia de futuro: estabilidade, promoção, dedicação à função, aposentadoria. Na

modernidade líquida cada escolha carrega consigo uma ambivalência: é livre e

necessária. A amplidão das escolhas não suscita segurança. Pode ser a aposta certa ou

errada. É um risco que devemos optar correr, “a incerteza está destinada a ser para

sempre a desagradável mosca na sopa da livre escolha” (BAUMAN, 2001: 103). E a

cada dia a confirmação dessa escolha nos persegue. Provavelmente, chegar à conclusão

de que tomamos o caminho mais inadequado naquele momento não significa estar fora

do jogo. Mas teremos que lidar com a frustração, aceitar que o erro é nosso, e apenas a

nós cabe criar saídas para a situação desventurosa. O preço cobrado pelas alternativas

dispostas à seleção da maioria é arcar com os custos dos fracassos. Será que a nossa

escolha não passava de “sombra”? Prometia aquilo que não teria condições de efetivar?

Bauman nos lembra de que no mundo líquido deve-se ter em mente no que tange às

escolhas que “nem todas são realistas; e a proporção de escolhas realistas não é função

do número de itens à disposição, mas do volume de recursos à disposição de quem

escolhe” (Idem).

Para serem bem sucedidos no tráfego louco das escolhas, os que têm recursos

financeiros e intelectuais estão em vantagem. Adquirem mobilidade e privilégios que

garantem dianteira. O risco e a insegurança são adendos à perspectivas de conquista, de

saciar o desejo. Porém, o desejo em si não é mais o objetivo. O que acaba por mover os

aventureiros é o desejar que não se satisfaça por ultrapassar a linha de chegada, mas em

procurar encontrar uma nova corrida, mesmo que o percurso seja idêntico.

Na modernidade líquida trabalho e aquisição de bens materiais são vistos e

vividos da mesma forma. O modo de vida que se sobressai tem afinidade estrita com o

consumo. E no consumo o processo de “individualização” da era da liquidez contribui

para que homens e mulheres se enredem mais na incerteza e insegurança. Por sua vez,

na modernidade sólida, uma sociedade de produtores, a estabilidade, a durabilidade, a

pretensão de que algo se fixasse eram respostas às intempéries da vida e às catástrofes

Page 28: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

26

naturais. O indivíduo (conceito moderno) concentrava-se na produção tendo a aquisição

e o acúmulo como metas derivadas do labor. A ideia de indestrutibilidade daquilo que

se realizava era cara às intenções modernas. A aposta concentrava-se na prudência e na

durabilidade. O indivíduo moderno, com a realidade herdada já se desmoronando, ou

seja, em vias de “derretimento”, tinha que ter em mente que seria indispensável ver-se

como cidadão dali para frente; uno, mas pertencente a uma sociedade, com deveres com

as instituições que sustentavam o poder ao qual estava atrelado e não aprisionado: o

Estado. O importante era distinguir que a sociedade civil, formação de indivíduos livres

e capazes, representava a preservação desse poder. As instituições davam crédito à

esperança de manter a certeza e a confiança no centro da relação. Nos últimos séculos,

as instituições que garantiam a eficiência dessas prescrições sofreram desgastes que

abalaram sua credibilidade, quase como doenças crônicas que cedo ou tarde hão de

deixar a situação irreversível.

A racionalidade caminhava sobre areia movediça. Guerras, a persistência da

fome e da miséria, regimes políticos totalitários, uma ciência que fabricava a morte,

desemprego, infelicidade, enfim, a irracionalidade parecia estar mais presente que

anteriormente, ou se convertera, como na denúncia da Escola de Frankfurt, em algo

centralizadora que subjugou todas as outras formas do conhecer humano, projetando

sombras em vez de luz. Porém, afirmar que a modernidade líquida é uma reação

espontânea e necessária às falhas, às negligências e bestialidades ocorridas em

decorrência do uso incomensurável da razão instrumental seria incorrer em equívoco e

em declaração forçada. No entanto, as distorções aproximam-se de uma interpretação de

promessas não realizadas, ou de vigilância constante que resultaram em horrores

inimagináveis. Um mundo melhor, mais justo, mais seguro, mas transparente em

relação ao complexo jogo de poder não despontou no horizonte da idade

contemporânea.

Vivemos atualmente num tonel de incertezas. Como é preciso ser leve torna-se

impossível saber se o que deixamos para trás realmente estava obsoleto. Apesar de tudo

já conter em sua fabricação a novidade e a obsolescência, alguma coisa, talvez, tenha a

qualidade de render para além do dia do seu abandono. A incerteza não nos permite

pagar para ver. Hoje não vislumbramos mais instâncias coletivas que nos sirvam de

suporte para as nossas decisões; no processo de “individualização” da vida líquida

Page 29: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

27

consumimos, acumulamos e descartamos sozinhos. Somos responsáveis pelo luxo e

pelo lixo de nossa sobrevivência.

Verdadeira novidade não é a necessidade de agir em condições de incerteza parcial ou mesmo total, mas a pressão contínua para desmantelar as defesas trabalhosamente construídas – para abolir as instituições que visam limitar o grau de incerteza e a extensão dos danos que a incerteza desenfreada causou e para evitar ou sufocar esforços de construção de novas medidas coletivas destinadas a manter a incerteza dentro de limites (BAUMAN, 2000: 35).

A vida na sociedade líquida de consumidores apresenta-se repleta de armadilhas,

busca expert em adotar contradições e mantê-las em um arriscado jogo de equilíbrio e

desordem. Viver no limite de um paroxismo, entre a solução e o erro, entre a sentença

de falência e a possibilidade de recuperação. É preciso entrar no jogo, comportar-se

como um jogador que intui (ou sabe) que o universo da ordem é uma pálida lembrança

da rigidez e dos cálculos que vislumbravam a subida lenta, a longo prazo até a

realização dos objetivos. Hoje abraçar as contradições reflete a disposição de um

jogador que reconhece que todo o movimento deve levar em conta a rapidez nas

escolhas/ações, ou seja, a querer os resultados a curto-prazo. É preciso aceitar as

inconveniências da incerteza e desejar o que Sartre (2006) considerou o grande feito da

burguesia: o sonho da ascensão social. A ideologia de uma “classe ascendente” que

instaurou a ideia que vencer na vida era o princípio básico da existência. A felicidade

criou vínculos com um projeto de vida ostentada pelo desejo de acúmulo de bens. E,

atualmente, é substituído, sem cerimônias, pelo capital leve e fluído.

O instantâneo e o imediato são propriedades da leveza do ser. Homens e

mulheres em trânsito, deslocando-se, assim como o capital, para paragens mais

promissoras. A velocidade na tomada de decisões, o não conformismo que cria a

impressão que se estabelecer em um lugar é estagnar-se, é a retirada voluntária e

incompreensível da vida corrente dos proponentes ao sucesso. O cenário descrito é árido

para pensar sobre identidade. Se tudo muda tão rápido nada se fixa. Ainda mais se

considerarmos a individualização profunda com a qual lidamos na modernidade líquida.

A identidade é o “calcanhar de Aquiles” de um mundo que fez da desterritorialização,

da disponibilidade e do deslocamento seus atributos fundamentais, “fixar-se muito

fortemente, sobrecarregando os laços com compromissos mutuamente vinculantes, pode

ser positivamente prejudicial, dadas as novas oportunidades que surgem em outros

Page 30: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

28

lugares” (BAUMAN, 2001: 21). Contudo, o desejo de pertencimento a um solo ou a um

grupo permanece no espaço das volições humanas, mesmo que seja no inconsciente de

homens e mulheres, tal desejo está em confronto com o corte incondicional de todos os

vínculos. É a ambiguidade depositada no âmago da contemporaneidade.

Num ambiente de vida líquido-moderna, as identidades talvez sejam as encarnações mais comuns, mais aguçadas, mais profundamente sentidas e perturbadas da ambivalência. É por isso, diria eu, que estão firmemente assentadas no cerne da atenção dos indivíduos líquido-modernos e colocadas no topo de seus debates existenciais (BAUMAN, 2005a: 38).

Constituir uma identidade pode ser problemático, mas também é visto como

forma de resistência, como no caso de nacionalismos que buscam enfrentar o poder

avassalador da globalização ou a identidade de grupo, uma maneira de vencer a solidão,

angústia ou mero tédio da rotina. Apesar que tais tentativas geraram o atual clima de

tensão assistidos na Europa e em outros lugares do mundo: um ambiente carregado de

revolta, xenofobia e fascismo. Uma tensão cravada no cerne da disputa entre a

territorialidade e o poder abstrato extraterritorial. A vida líquida incorpora essa

ambivalência e administra a tensão dessa oposição sem, no entanto, extinguir a chama

do ardor pela padronização. Mas a identidade (não considerando o propósito de

resistência) pode ser um entrave para a compreensão de um mundo que se hibridiza,

entrecruza modos de viver, de criar, de habitar diversos; uma multiplicidade que emerge

na construção de mestiçagens que se encontram e mobilizam novos conflitos e afetos.

Esse impulso identitário pode apresentar-se como solução para aplacar a insegurança

moderna líquida dos riscos ou ser o colapso de um mundo que começa a perceber a

mutação dos modos de vida como processo de convívio com as diferenças. Essa é a

ambivalência derradeira com a qual o mundo contemporâneo terá de lidar. Por outro

lado, as diferenças são tratadas pelo capitalismo como mercadorias no jogo estratégico

do consumo ao ponto de atingir a indiferenciação dos seus locais de origem.

A hibridização isola o híbrido de toda e qualquer linha de parentesco monozigótico. Nenhuma linhagem pode alegar direitos exclusivos de propriedade do produto, nenhum grupo de parentesco pode exercer um controle meticuloso e nocivo sobre a observância de padrões, e nenhum se

Page 31: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

29

sente obrigado a jurar lealdade a sua doutrina hereditária (BAUMAN, 2007b: 42).

Bauman nos recorda que a hibridização acaba por ser autônoma, consolidando

uma prática que não a torna independente, mas um negócio associada a uma legitimação

da extraterritorialidade. É uma nova luta e um antigo percalço que desafia a elite global

ao mesmo tempo em que serve a ela.

De qualquer modo, parece conveniente lembrar que, para o antropólogo indiano

Homi K. Bhabha, o hibridismo se assenta na chance de por em prática uma tradução que

codifique os contatos culturais atrelados à dinâmica, apropriações, conflitos que tais

encontros geram. Há, na verdade, uma zona fronteiriça pulsante na qual cultura

hegemônica e cultura subalterna, colonizador e colonizado se friccionam aguardando

uma tradução.

Se o hibridismo é heresia, blasfemar e sonhar. Sonhar não com o passado ou o presente, e nem com o presente contínuo; não é o sonho nostálgico da tradição nem o sonho utópico do progresso moderno; é o sonho da tradução, como sur-vivre, como “sobrevivência”, como Derrida traduz o “tempo” do conceito benjaminiano da sobrevida da tradução, o ato de viver nas fronteiras (BHABHA, 1998: 311).

O antropólogo Robert Young, concordando com Bhabha, defende que o

hibridismo se posta num setor intersticial, é uma produção inquieta. Young ressalta que

o combate contra a hibridação é o resultado de uma política implícita da

heterossexualidade, ou seja, uma batalha contra a heterogeneidade para manter uma

uniformização (assim como o binarismo) das produções culturais/sociais/afetivas.

Tanta a hibridização como a crioulização envolvem fusão, a criação de uma forma nova, que possa então ser colocada contra a forma antiga, da qual a nova fora parcialmente criada (...) uma heterogeneidade, uma descontinuidade radical, a revolução permanente das formas (YOUNG, 2005: 30-31).

.

Page 32: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

30

Entretanto, Bauman detecta que a “cultura híbrida” – global – tem um escopo

extracultural. Assim carece de uma crítica das formas de apropriação e vivência, que

significa que ela não se compromete e consome tudo o que lhe oferecem sem entender

os conflitos dos cruzamentos culturais. “Permitam-me repetir: a imagem da ‘cultura

híbrida’ é um verniz ideológico sobre extraterritorialidade alcançada ou programada”

(BAUMAN, 2007: 46). A elite global se desloca com a leveza como “insígnia” sem na

realidade promover um intercâmbio cultural.

Mas, em outro sentido, podemos considerar o deslocar-se, leve ou não, uma

aspiração a ser livre, um estímulo à criatividade que remove barreiras do tipo que as

obrigações com as raízes culturais ou as regras de identidade impõem. Mas apenas a

elite extraterritorial desfruta com tranquilidade (agora com a ameaça do terrorismo a

assombrar o seu fluxo) e prazer de tal deslocamento. Bauman percebe na literatura um

dos referenciais mais evidentes do esvaecimento das fronteiras. Ou da possibilidade de

uma abertura legítima para as diferenças existentes, por não se restringir a um único

universo linguístico, por buscar em distintas disciplinas sociais base para o enredo, para

a investigação da condição humana, além de lançar mão de recursos vistos com

desconfiança pelo meio acadêmico, como a intuição, a imaginação, a especulação dos

efeitos de uma causa. O que gera no meio acadêmico a padronização de diretrizes que

visa mais a competição pelos recursos financeiros e uma vigilância sobre a criatividade

que incentivos aos projetos que contestam e enfrentam esse estado de coisas.

Bauman vê em escritores como Beckett, Derrida, Borges entre outros, posturas

que não se prendem a preconceitos e que articulam relações que na vida corrente estão

interditas.

George Steiner, um crítico cultural contundente e altamente perspicaz, apontou Samuel Beckett, Jorge Luis Borges e Vladimir Nabokov como os mais importantes escritores contemporâneos. O que unia, a seu ver esses autores em tudo mais distintos, colocando-os acima dos demais, era o fato de todos eles serem capazes de se movimentar com facilidade em vários universos linguísticos diferentes. Essa contínua transgressão de fronteiras lhe permitia espiar a inventividade e a engenhosidade humanas por trás das sólidas e solenes fachadas de credos aparentemente atemporais e instransponíveis, dando-lhes assim a coragem necessária para se incorporar intencionalmente à criação cultural, conscientes dos riscos e armadilhas que sabidamente cercam todas as expansões ilimitadas (BAUMAN, 2005a: 21).

Page 33: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

31

É certo que a literatura tem um alcance modesto (ao menos a “alta literatura” ou

a literatura que não esteja voltada para o mercado editorial). Sua influência ocorre

menos de elaborados planos de divulgação que de um encontro fortuito entre leitor e

texto. No entanto, ela aponta um caminho que evita precipitações no que concerne a

valores morais, culturais e artísticos, como nos revela Bauman a respeito de suas

inspirações sociológicas suscitadas pela literatura.

Eu, por exemplo, me lembro de ganhar de Tolstoi, Balzac, Dickens, Dostoievski, Kafka ou Thomas More muitos mais insight sobre a substância das experiências humanas do que de centenas de relatórios de pesquisa sociológica. Acima de tudo, aprendi a não perguntar de onde determinada ideia vem, mas somente como ela ajuda a iluminar as respostas humanas à sua condição – assunto tanto da sociologia como das belles-lettres (BAUMAN, 2004b).

A identidade pode ser uma insídia se for vivida como uma couraça que

impossibilite experimentações e o livre curso de permutas culturais. Aí reside o perigo

da defesa enfática da identidade. Assim como não observar a dilaceração dela neste

tempo líquido. Um movimento marcado pela contradição se estabelece: a identidade

garante a liberdade de definir quem nós somos ou por causa desta mesma definição

pode ser a catalisadora de conflitos que expugnem genuínas possibilidades de conhecer

modos de vida distintos.

Ser leve é uma qualidade primaz da atualidade. Na qual a identidade parece ser o

excesso de bagagem. Movimentar-se em aceleração máxima sendo que o destino

inventado para os homens e mulheres põe em xeque o propósito da autodefinição e a

associação a objetivos compartilhados, “A fragilidade e a condição eternamente

provisória da identidade não podem mais ser ocultadas. O segredo foi revelado. Mas

esse é um fato novo, muito recente” (BAUMAN, 2004b). O que está se articulando com

a exigência de leveza do nosso deslocamento e a porosidade das fronteiras é um mundo

que vende a novidade como sua meta central, que se apresenta como mutante, no qual

antigas ferramentas que alimentavam o nosso processo cognitivo pouco contribuirão

para a sua compreensão.

1.3. A desforra dos nômades

Page 34: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

32

Fronteiras vigiadas, fortificadas, alfândegas reforçadas para barrar o indesejável.

A modernidade assistiu ao crescimento do controle pelos Estados-nação do seu

território constituído. O medo do “estranho”, do forasteiro que acompanhou a Idade

Média, e é um temor humano desde o princípio de sua trajetória, recebeu uma prática de

policiamento consoante à ascensão da técnica. Linhas limítrofes imaginadas ganharam

pontos de vigilância estratégicos, foram demarcadas para separar o solo ambicionado

como próprio dos Outros, os diferentes e possíveis invasores, talvez, ainda inimigos não

declarados; somente aqueles com os quais temos identidade deveriam ter autorização

para ultrapassá-lo. “Como o propósito da separação territorial é a homogeneidade do

bairro, a ‘etnicidade’ é mais adequada que qualquer outra ‘identidade’ imaginada”

(BAUMAN, 2001: 124). A identidade e a “etnicidade” postulavam condições para criar

um "nicho seguro” que deveria ser inviolável para estranhos e protegidos contra

distúrbios que colocassem em dúvida a constituição do território.

A modernidade sólida, época da expansão na qual o tamanho, o volume, a

densidade eram atributos de qualidade (desde que, obviamente, tivessem sua eficácia

certificada), procurou conquistar o espaço até então fragmentado, distante, indomável.

A questão do território não fugiu a essa obsessão. Inúmeros países que formam o mapa

mundi atual, há um século, viviam divididos em regiões, principados, ilhas, mas o

impulso agregador de forjar uma identidade – ou a justificativa para a dominação

política por um grupo – buscou integrar locais ímpares que sustentavam culturas, leis,

modos de vida distintos em um único bloco que modificaria o quadro geopolítico.

Assim foi com a Itália4, a Alemanha5, e, mais tarde, o caso emblemático da Iugoslávia6.

Oposições marcadas pelas diferenças étnicas eram reprimidas em nome de uma unidade

nacional baseada na partilha do poder com maior ou menor grau de concentração nas

mãos de uma etnia do que de outra, o que ocasionou, já na pós-modernidade ou segunda

modernidade, ou na nomenclatura que se queira assumir, a eclosão dessas diferenças e

os intensos banhos de sangue vistos em Ruanda, Bósnia, Timor Leste, etc.

4 Até o ano de 1860, a Itália passou por vários conflitos regionais e com países europeus, como a França, na tentativa de constituir um território que integrasse todos os reinos, Lombardia, Piemonte, Sicília etc. Em 1861, o Parlamento proclamou formalmente o reino da Itália. 5 A Alemanha, após séculos de embate, perda e anexação de territórios, tem em janeiro de 1871, pelo Rei Guilherme I da Prússia, sua fundação, constituído por 25 estados. 6 A Ex-República Socialista Federativa da Iugoslávia dissolveu-se mergulhada numa guerra civil étnica a partir do ano de 1990. As várias etnias que a compunha (croatas, sérvios, bósnios, macedônios, montenegrinos, eslovenos e albaneses) entraram em choque com a crise do socialismo e reviveram velhas feridas que eclodiram em cenas de brutalidade indescritíveis.

Page 35: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

33

O território estava entre as mais agudas obsessões modernas e sua aquisição, entre suas urgências mais prementes – enquanto a manutenção das fronteiras se tornava um de seus vícios mais ubíquos, resistentes e inexoráveis. A modernidade pesada foi a era da conquista territorial. A riqueza e o poder estavam firmemente enraizadas ou depositadas dentro da terra. [...] Os impérios se espalhavam, preenchendo todas as fissuras do globo: apenas outros impérios de força igual ou superior punham limite à sua expansão. (BAUMAN, 2001: 132).

Para tornar a meta da conquista do espaço algo plausível fez-se necessário tomar

posse, explorar, enfim, fixar-se, ocupar o território e assegurar o seu desenvolvimento,

segundo a vontade de seus “desbravadores”. Assentar-se no local era a estratégia para a

colonização, corporificação, invenção de uma entidade nacional entre dominador e

dominado. Para concretizar tais propósitos extinguir o nomadismo como modus vivendi

era o passo seguinte e mais trabalhoso. O sedentarismo provocava uma cisão na ideia

nômade de movimento, descoberta e congregação, de algo novo a cada deslocamento.

Alquebrar o espírito nômade submetendo-o à inclinação da modernidade: a

exploração de recursos (naturais, minerais, humanos), estabelecer instituições

arraigadas, postos de comando e vigilância eram manobras postas em prática com

relativo grau de sucesso. Os Estados-nação cumpriam essa função de legitimar a

existência de determinado espaço com um oficial sentimento de engajamento nacional.

O nômade, que não possui o charme do aventureiro, do desbravador de novas terras, de

espaços vazios, se viu preso, desse modo, a uma ordenação que obstruiu seu livre

trânsito, pois tal atuação pertencia às missões especiais do Estado (se bem que a

literatura exaltava os homens que zingravam os mares em busca do extraordinário, do

incomum). Sintoma de pré-modernidade, estigma de selvageria, de incivilidade, não

culto, o nômade fora relegado aos confins do imaginário exótico e do atraso científico.

A contestação a respeito dos valores da modernidade e da proposta de uso

irrestrito e “imaculado” de uma lógica racional – e se eles haviam redundado num

fracasso cujos efeitos denunciavam seu caráter autoritário e de preocupação evidente

com a técnica e não com o social – coincidiram ou fomentaram o descalabro do

sedentarismo é uma questão que precisa levar em consideração fatos que envolvem o

quanto os poderes atuais são realmente nômades e se o nomadismo passou a ser prática

regular entre todas as populações ou se apenas a representação econômica, seus líderes,

Page 36: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

34

planejadores e sócios, enfim, uma elite global, aproveitam sem perturbações as

possibilidades de deslocamentos.

A economia mundial explorava o potencial transnacional do sistema financeiro

dirigido pelo espírito liberal de pouca intromissão estatal e mercado livre de comércio.

As multinacionais começaram a se expandir pelo globo terrestre reconfigurando

cenários políticos, modificando as regras locais de gerir os negócios. As fronteiras

territoriais esvaíram-se, assim que o capital, cujo poder é abstrato, iniciou o circuito sem

deixar deter-se pelo brado das instituições sedentárias.

Neste cenário, a recalcitrância do nomadismo, que sempre esteve presente ao

longo da modernidade sólida, tornou-se manifesta. A modernidade líquida compreende

uma versão do estilo de vida nômade, que passou a caracterizar, na verdade, a

extraterritorialidade de uma elite (que incorporou o não sedentarismo de tribos de

outrora. A elite global evita o assentamento, mas não se apropria – culturalmente – dos

locais por onde passa a ponto de mudar seu modus vivendi).

A nova estrutura de poder global é operada pelas oposições entre mobilidade e sedentarismo, contingência e rotina, rarefação e densidade de imposições. É como se o longo trecho da história que começou com o triunfo dos sedentários sobre os nômades estivesse chegando ao final. A globalização pode ser definida de muitas formas, e essa da “vingança dos nômades”, é tão boa quanto as outras, se não melhor (BAUMAN. 2008a: 49).

O exercício do poder na fase sólida da modernidade exigia a presença constante

e maciça em solo da representação desse poder com suas regras severas que

sustentassem seu direito de arbítrio sobre os comandados. Tal poder deveria ser

corporificado para atuar com mais precisão. Ocupar o espaço e viver o confronto in loco

faziam parte do “pacote” da dominação. Ambos os lados estavam atrelados e imersos

nessa interdependência. Na vida líquida da sociedade moderna líquida o poder viaja

leve, preza a mobilidade, não se prende a “regulamentos normativos”, se desloca,

investe em uma região, depois a abandona por outra mais convidativa e menos

intransigente. O poder que se desloca tão peremptoriamente neste tempo líquido,

dispensou as regras que visavam normatizar as relações de mercado, políticas e

culturais, pois sendo o poder atual abstrato, a sua dependência das representações locais

passa por um processo de abolição (que para alguns já está efetivado).

Page 37: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

35

A nova hierarquia do poder está marcada, no topo, pela capacidade de se mover com rapidez e sem aviso, e na base, pela incapacidade de diminuir a velocidade desses movimentos, que dirá pará-los, associada à sua própria imobilidade. Fuga e evasão, leveza e volatilidade, estas características substituíram a presença pesada e ameaçadora como técnica principal de dominação (BAUMAN, 2008a: 49).

A deterioração dos sólidos proporcionou a ascensão de uma nova elite que

rompe obstáculos relacionados às fronteiras com a mesma facilidade que o capital

flexível e móvel. Nesse último caso, cortesia da tecnologia que possibilita com um

simples toque de tecla a transferência de milhões de dólares, marcos alemães, libras

esterlinas, reais de um extremo do mundo a outro.

A elite extraterritorial tem a sua disposição a evasão, o deslocamento contínuo, a

aceleração, e assim, dita a velocidade das ocorrências econômicas, culturais, políticas ao

redor do planeta. Os demais, que não desfrutam da liberdade consagrada à elite, são

prisioneiros do espaço ou vivem o sonho de uma existência menos dura lançando-se no

fluxo migratório. As fronteiras, para esses, permanecem como barreiras instransponíveis

que se reforçam cada vez mais e se empenham em conter o aumento do êxodo ilegal e

da ameaça de “profanação” da identidade. Uma dupla ação de policiamento e promoção

de humilhações.

Gilles Deleuze e Félix Guattari dedicarem-se a um amplo e original estudo sobre

a relação entre o sedentarismo e a vida nômade. Estes demarcaram a partir dessa relação

conflituosa pontos de oposição entre o instituído e o não reconhecido; o tradicional e o

marginal; a totalidade e o fragmento; o espaço estriado e o espaço liso. Esse jogo

complexo e tenso é a disputa entre a ciência sedentária, representada pelo Estado, e a

ciência nômade, uma máquina de guerra, que se localiza no polo oposto do aparelho

estatal, “[...] essa ciência nômade não para de ser ‘barrada’, inibida ou proibida pelas

exigências e condições da ciência de Estado” (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 20).

Porém, essa ligação estabelece atritos que acarretam resistência, perseguição,

incorporação, modificação e posterior reinício do ciclo. O nômade segue seu curso,

experimenta e como máquina de guerra prossegue forjando, trilhando caminhos que

revelem fórmulas, que não consagrem paragens seguras. O nomadismo é um estar-em-

Page 38: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

36

direção daquilo que não se conclui. É um processo de descoberta enquanto não engessa

a descoberta em padrões que o definam. É uma fuga dos métodos de reprodução do

sedentarismo.

Reproduzir implica a permanência de um ponto de vista fixo, exterior ao reproduzido: ver fluir, estando na margem. Mas seguir é coisa diferente do ideal de reprodução. Não melhor, porém outra coisa. Somos de fato forçados a seguir quando estamos à procura das “singularidades” de uma matéria ou, de preferência, de um material, e não tentando descobrir uma forma; quando escapamos a força gravitacional para entrar num campo de celeridade; quando paramos de contemplar o escoamento de um fluxo laminar com direção determinada, e somos arrastados por um fluxo turbilhonar; quando nos engajamos na variação contínua das variáveis, em vez de extrair delas constantes, etc. E não é em absoluto o mesmo sentido da Terra: segundo o modelo legal, não paramos de reterritorializar num ponto de vista, num domínio, segundo um conjunto de relações constantes; mas, segundo o modelo ambulante, é o processo de desterritorialização que constitui e estende o próprio território (DELEUEZE e GUATTARI, 1997: 33).

O deslocamento nômade perpetua o traço de composição do território. A evasão,

não sendo fuga, mas o avanço constante, o estupor pelas variáveis, desterritorializa

sucessivamente, cunhando um espaço liso que é a porosidade das fronteiras, seja o caso

das fronteiras geográficas ou das fronteiras entre as ciências.

Para Deleuze e Guattari, a vida nômade é um intermezzo. Um estar simultâneo:

desterritorializado em vias de reterritorializar; num espaço liso que acaba por encontrar

o estriado do aparelho estatal evadindo-se em paragens. Intervalos que, no entanto, não

o define. O nômade movimenta-se num espaço aberto, ao contrário do sedentário, capaz

de atuar apenas num espaço fechado obstruindo significantemente as passagens de um

lado para o outro. “O espaço sedentário é estriado, por muros, cercados e caminhos

entre os cercados, enquanto o espaço nômade é liso marcado apenas por ‘traços’ que se

apagam e se deslocam contra o trajeto” (Ibidem: 43).

O nômade assusta o sedentário por ser sua antítese, seu reflexo distorcido no

espelho, enfim, seu pesadelo, apesar de ser seu complemento necessário. Capaz de

perturbar a ordem, o nômade não é um desordeiro, mas a escapatória de um mundo

petrificado em trâmites burocráticos e legitimado por formulários e hierarquias

monolíticas.

O sedentário constituído pelas obsessões modernas refugiava-se no

assentamento de um espaço fechado. O nômade de outrora, observado pelos filósofos

Page 39: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

37

franceses, se movimentava de modo intensivo. O nomadismo líquido moderno, própria

de uma elite extraterritorial, como aponta Bauman, tem como atributo central a

velocidade e a velocidade é extensiva. O nômade que transita no espaço aberto adota a

pausa como processo. No mundo líquido pausas são proibidas, são erros crassos ou

manifestação da nossa fragilidade latente.

Na sociedade moderna líquida a desterritorialização é vivenciada como aval para

romper fronteiras. Aval para revalidar a imagem de homens e mulheres sem

ancoradouros emocionais, sem problemas futuros para escapar as dissoluções dos

empecilhos que poderão impedir um deslocamento porvir; o nomadismo da sociedade

líquida se diferencia assim do nomadismo do espaço liso porque, em verdade, não

planta a semente da transgressão em coisa alguma. A elite global viaja e não se enraíza

por motivos que são mais econômicos que culturais ou identitários. Como defende o

sociólogo Renato Ortiz, no mundo contemporâneo os ritos de deslocamentos são

invocados com frequência, o que reatualiza os objetos e as imagens de um mundo

transnacional cujo vazio do tempo envolve seus viajantes.

A desterritorialização prolonga o presente nos espaços mundializados. Ao nos movimentarmos percebemos que nos encontramos no “mesmo lugar”. Neste sentido, a ideia de viagem/saída de um mundo determinado encontra-se comprometida. Desde que o viajante, nos seus deslocamentos, privilegie os espaços da modernidade-mundo, no “exterior” ele carrega consigo seu cotidiano. Ao se deparar com um universo conhecido, sua vida “se repete”, confirmando a ordem das coisas que o envolvem (ORTIZ, 1994: 133).

A elite global suplanta o nomadismo, pois para ela, por se definir como

extraterritorial, qualquer local pode ser um lar, pelo motivo de tudo descaracterizar e

dar-lhe “face” comum, que é de seu agrado, lembrando a casa que deixou ou um lugar

admirável pelo exotismo. Assim, negando ao nômade a desterritorialização descrita por

Gilles Deleuze e Félix Guattari.

Para o nômade, ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização. É a terra que se desterritorializa ela mesma, de modo que o nômade aí encontra um território. [...] A terra não se desterritorializa em seu movimento global e

Page 40: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

38

relativo, mas em lugares precisos, ali mesmo onde a floresta recua, e onde a estepe e o deserto se propagam (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 44).

O cinema do alemão de origem turca Fatih Akin7 emana atualmente esse

sentimento de desterritorialização com criatividade e densidade no que tange as relações

socioculturais. Por mais que se fale, nesse caso, em migração e não propriamente em

nomadismo. O importante aqui é o deslocamento de um ponto para o outro. Um fluxo

que retorna ao mesmo no intuito de se encontrar, assim, engendrando o novo.

Especialmente em Contra a Parede (Gegen die Wend, 2004) e Do Outro Lado (Aud der

Anderen Seite, 2007). Em ambos os filmes, as personagens centrais são cidadãos turcos

ou de descendência do antigo Império Otomano vivendo na Alemanha. Pensamos em

diferenças culturais, choque de civilizações e relações humanas. Porém, o que emerge

com mais densidade é a sensação de zona intermediária que os protagonistas se

encontram. Nem turcos nem alemães. A identidade é rarefeita, suspensa, impedida pela

aridez da convivência entre a tradição e a permissividade que desejamos extrair do

novo. Desterritorializados é na recalcitrância que encontram a possibilidade de efetivar

o trânsito que proporcionarão a eles algo próximo a um lugar no mundo. Contra a

Parede nos fala do encontro que se dá por meio de um acordo e que levará dois seres

desterritorializados a se reterritorializar para fugir da fúria que está à espreita. Do Outro

Lado trata de não encontros nos quais a desterritorialização está implicada fortemente

nas relações que são traçadas e no modus vivendi que aparece como um algoz

incontornável.

São filmes que nos provocam instigando perguntas sobre a fluidez

contemporânea, o exílio íntimo e a dissolução das fronteiras que não apagam

necessariamente os conflitos entre as culturas mesmo que eles não sejam declarados.

O nomadismo é a constância do sentimento de desterritorialização que comporta

a pausa e o movimento, que cria para instituir o que não para de se constituir em um

espaço aberto. “A determinação primária do nômade, com efeito, é que ele ocupa e

7 Críticas a respeito dos filmes de Fatih Akin podem ser lidas no site

http://www.madamelumiere.com.br/2010/01/contra-parede-gegen-die-wand-2004.html; http://www.criticos.com.br/new/artigos/critica_interna.asp?secoes=&artigo=1532

Page 41: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

39

mantém um espaço liso: e sob este aspecto que é determinado como nômade (essência)”

(DELEUZE e GUATTARI, 1997: 80).

A modernidade líquida assume características nômades, mas as vivências que

engendra não se constituem em um espaço aberto, criativo de confronto, de inserções

benevolentes em defesa de um trânsito igualitário e sem a rispidez da vigilância

especializada em fronteiras. A modernidade líquida ainda sustenta e parece renovar pré-

conceitos contra o fluxo migratório. A sociedade moderna líquida aproxima-se, no final

das contas, da esquizofrenia. Sendo que o capitalismo que a motivou, empreendeu um

circuito de emigração que é contínua, no qual o êxodo é promessa de dias mais felizes e,

ao mesmo tempo, permite a imposição de barreiras para esse fluxo. O suposto

nomadismo atual não é uma via de mão dupla.

Enquanto a elite extraterritorial aproveita a mobilidade adquirida, as

populações da Terra ficam a disposição da vontade dessa elite de investir, gerar lucro e

firmar compromisso em seus territórios. A tarefa das populações que não possuem o

passaporte exclusivo para o deslocamento sem desconfiança é a de encontrar formas de

subsistir conforme os contornos de funcionamento das empreitadas contemporâneas

como fazem os “descolados” nesta modernidade leve. Como escreve Lúcia Santaella

(2007: 135), “Isso é possível porque existir em culturas líquidas, tal como em um jogo

performático, é aprender a se multiplicar em identidades deslizantes”.

É preciso conviver com o paradoxo e a contradição que parecem ser o estado de

todas as coisas na contemporaneidade.

1.4. A novidade que se expira em alta velocidade

Na modernidade líquida, a velocidade é essencial para a obtenção do destaque

cobiçado. Para ser exato, a extensão dessa velocidade que a elite extraterritorial usufrui

para fazer da mobilidade seu recurso “proeminente”. Quanto mais amplo for seu

resultado, mais competitiva será, e mais facilmente se logrará a dianteira obtida sobre a

concorrência, conforme dita as regras do atual poder abstrato. É imperativo, nesse jogo

que descarta os indecisos – e os que têm inúmeros obstáculos para efetivar seu

Page 42: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

40

deslocamento –, sobressair-se pela mobilidade. “O sedentarismo, em particular, o

sedentarismo sem escolha está rapidamente deixando de ser uma vantagem para se

transformar num risco” (BAUMAN, 2008a: 58). Estar fixado, arraigado num local na

“cultura da aceleração” permite que prejuízos sejam acumulados no fim do expediente.

“É um sinal de privilégio viajar levemente e evitar apego duradouro a possessões; é um

sinal de privação estar carregado de coisas que sobreviveram ao seu uso previsto e ser

incapaz de separa-se delas” (Idem). Na modernidade líquida, privilégio e privação

carregam as marcas de uma vida pródiga ou de uma existência de dificuldade, segundo

a aptidão de viver de acordo com a flexibilidade e a incerteza, “qualidade” e

consequências principais, respectivamente, da fase líquida da modernidade.

A vida líquida, dessa maneira, tem afinidade estrita com o consumo. Ser leve

tem como propriedade a aquisição em grande quantidade, mas, também, a rapidez em

descartá-las. “Do princípio ao fim recai em esquecer, apagar, desistir e substituir”

(BAUMAN, 2007b: 9). Um modo aparentemente contraproducente de viver registra

milhares de adeptos ao redor do globo terrestre: acumular e descartar são os atos

controversos que dão sustentação ao discurso de que comprar é o supremo referendo à

ascensão social conquistada.

A sociedade moderna líquida é chamada por Bauman de “indústria de

eliminação de resíduos”. Quanto mais rápido os produtos colocados à disposição de

clientes ávidos caem em desuso, melhor é para os responsáveis por alimentar essa

fábrica de desejos. As mercadorias tornadas desperdícios são removidas e substituídas,

sua eliminação exige depósitos adequados (um dos grandes problemas contemporâneos

está justamente em que destino dar a esses resíduos). A sociedade contemporânea

rubrica, dessa forma, seu status de produtora incomensurável de detritos não totalmente

danificados.

Em uma sociedade na qual as novidades expiram em alta velocidade a pesquisa

tecnológica estará sempre em voga e com isso a criatividade e a originalidade.

Notebooks, MP4, Tablets: a técnica consagra a miniaturização dos objetos. Na vida

líquida, a leveza e a velocidade são hipervalorizadas. Por isso, pensar em termos de

fragmentos faz a diferença. O grosso dessa adição fica por conta do lucro dos que

movimentam o capital. As riquezas vultosas existem, resistem e aumentarão com o

passar dos anos. Não há nada no horizonte dos que muitos consideram como era pós-

moderna que indique o contrário.

Page 43: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

41

Na sociedade moderna líquida, o consumo é a pedra de toque dos que aspiram à

integração. O poder de compra equipara-se em relevância a luta por direitos básicos

como educação e saúde. O poder aquisitivo é fator de distinção social. Valemos pelo

que compramos e não pelo que somos. Num tom cínico há quem defina, “Somos o que

compramos”. Talvez comprar não tenha o mesmo naipe da influência política, mas dá

acesso a portas que se manteriam fechadas ou nos deixariam perdidos. O consumo em

alta voltagem tem o dom da elevação, não moral, se não aquela das relações pautadas no

que se possui – a mera impressão de felicidade, “[...] o comprar compulsivo é também

um ritual feito à luz do dia para exorcizar as horrendas aparições da incerteza e da

insegurança que assombram a noite” (BAUMAN, 2001: 96).

O ritual continua diariamente. O jogo não pode parar: novos impulsos, novas

aquisições, novos desperdícios. Permanecer na linha não aplaca a tríade tentacular da

vida líquida, a incerteza, a insegurança e a falta de proteção. Vivemos no abandono e o

consumo é o sucedâneo do prazer que não encontramos nas outras atividades humanas:

as laborais, as sentimentais, os lazeres. Apesar de perseguirmos, mesmo que seja no

inconsciente, um aceno de realização duradoura, não nos deparamos com essa sensação

no consumo.

Qualquer interação dos atores os afastaria das ações em que estão

individualmente envolvidos e constituiria prejuízo, e não vantagem, para eles. Não

acrescentaria nada aos prazeres de comprar e desviaria corpo e mente da tarefa.

A tarefa é o consumo, e o consumo é um passatempo absoluta e exclusivamente individual, uma série de sensações que só podem ser experimentadas – vividas – subjetivamente. As multidões que enchem os interiores dos “templos do consumo” de George Ritzer são ajuntamentos, não congregações; conjuntos, não totalidades. Por mais cheios que possam estar os lugares de consumo coletivo não têm nada de “coletivo”. Para utilizar a memorável expressão de Althusser, quem quer que entre em tais espaços é “interpelado” enquanto indivíduo, chamado a suspender ou romper laços e descartar as lealdades (BAUMAN, 2001: 114).

Esbarramos com conhecidos, encontramos amigos, mas o interlúdio entre os atos

de compra precisa ser interrompido. Mesmo esses encontros que suspendem

temporariamente a aquisição de mercadorias nos mantém em contato com o consumo,

pois os usufruímos nas praças de alimentação dos shoppings centers ou nos espaços de

Page 44: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

42

recreação infantil. No templo do consumo até a distração tem relação com a compra de

material ou serviço.

O flâneur que percorria a cidade e a conhecia em seus mais recônditos segredos

fora substituído pelo consumidor. O que era um passeio sem propósito definido

transforma-se em obrigação de comprar. O andar a esmo tornou-se uma visita

concentrada, localizada. O lugar exato na hora conveniente para saciar um novo desejo

de aquisição. Ou quase. Na verdade, resvala em algo semelhante à satisfação, mas que

nem chega a ser um simulacro. No entanto, tal satisfação tem que ser imediata e não

aceita adiamento. E caminhamos à procura desse prazer que se esvai assim que

alcançado. Bauman nos lembra de que a vida cercada pelo consumo na qual estamos “é

orientada pela sedução, por desejos sempre crescentes e quereres voláteis – não mais

por regulação normativa” (BAUMAN, 2001: 90). Olhamos a tela do aparelho televisor,

os outdoors, as vitrines, as imagens que navegam na Internet e se fixam em nosso

monitor, somos seduzidos por uma profusão de tentações imagéticas, imagens que têm a

missão de nos capturar, de realizar um encontro com o nosso afã de possuir. Juremir

Machado Silva nos recorda que se o propósito de nos seduzir das agências de promoção

do consumo é bem sucedido, isto ocorre porque estamos dispostos a embarcar nesta

sedução.

A sedução como a paixão, alimenta-se da fome. Vive do excesso de falta. Nutre-se da vertigem pelo nada. Alimenta-se de si mesma numa espiral de gasto inútil e sem retorno. A manipulação, a persuasão e a sugestão publicitária servem sempre a uma ordem prévia, a um poder controlador e disciplinador. A sedução é inexoravelmente subversiva (SILVA, 2006: 27-28).

As imagens prorrompem um universo que dialoga com o imaginário e que se

corporifica no ato de consumo. Homens e mulheres contemporâneos são movidos por

desejos, se confundem com os objetos que cobiçam, “Na vida líquida, a distinção entre

consumidores e objetos de consumo é, com muita frequência, momentânea e efêmera, e

sempre condicional” (BAUMAN, 2007b: 18). E esses desejos estão destinados a tornar-

se prazer nos shoppings centers, que são, como Bauman constata, lugares de ação e não

de interação. Uma tentativa de preencher um vazio existencial. Mesmo que tal sensação,

não seja, propriamente, diagnosticada e racionalizada.

Page 45: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

43

As novidades oferecidas com seu apelo sedutor, traduzido em imagens,

engendram escolhas às quais não temos escapatórias, a não ser enlaçando a opção que

desfila a nossa frente insinuantemente, apresentada como forma de obter felicidade.

Podemos adquirir inúmeras mercadorias, pois, afinal há maneiras de facilitar as

oportunidades de correr o risco aos recorrermos ao empréstimo bancário ou as ofertas

das lojas, das agências de viagens, das imobiliárias. Escolher mediante tantas opções é

um exercício trabalhoso de contemplação. Mas de uma reflexão que mesmo que

ponderada deve ser rápida. O que descartar como não mais necessário em determinado

momento, parece ser uma dúvida brutal. A inquietação causada pela variedade logo se

dissipa com a aquisição do produto eleito. A mercadoria preterida pode ser, quem sabe,

o novo objeto de cobiça em uma próxima rodada que não tarda a chegar. O desprezado

tem uma chance desde que não seja repetição. E, caso seja, tem que aparentar ser uma

cópia requintada. As novidades são tantas que logo que escolhemos uma delas o seu

poder de encantamento se transforma em monotonia.

Estes têm uma limitada expectativa de vida útil e, uma vez que tal limite é

ultrapassado, se tornam impróprios para o consumo; já que "ser adequado para o consumo" é a única característica que define sua função. Eles são totalmente impróprios e inúteis. Por serem impróprios, devem ser removidos do espaço da vida de consumo (destinados à biodegradação, incinerados ou transferidos aos cuidados das empresas de remoção de lixo) a fim de abrir caminho para outros objetos de consumo, ainda não utilizados (BAUMAN, 2007b: 17).

Até as “vedetes” da indústria do entretenimento, como as nomeou Edgar Morin,

tem prazo de validade para se extinguir, caso sua aparição esteja sedimentada na

notoriedade e não no sucesso originado de algum talento ou compleição para

autopromoção. Sina de muitos participantes do Big Brother Brasil que desaparecem

com o fim do confinamento, após a eliminação supostamente conduzida pela audiência

do programa. Novos desejos se promulgam em novas necessidades ou ganham tal

status. O que se pode apreender com nítida certeza é que a sociedade de produtores de

antanho converteu-se na sociedade de consumidores, cuja preocupação se estende entre

avaliar ofertas e um “comprar” compulsivo; uma sociedade moderna líquida de

consumidores. Nela as novidades se expiram antes que o seu real valor se realize por

Page 46: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

44

completo. Dessa forma, nem a incerteza nem a insegurança podem deixar o palco da

vida contemporânea.

CAPÍTULO II

Globalização: ruínas da ideologia e fronteiras friccionadas?

Page 47: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

45

Para o eminente geógrafo brasileiro Milton Santos, no que concerne a

globalização, há três mundos num só, “O primeiro seria o mundo tal como nos fazem

vê-lo: a globalização como fábula; o segundo seria o mundo tal como é: a globalização

como perversidade; e o terceiro mundo como ele pode ser: uma outra globalização”

(SANTOS, 2006: 18). Entre estes três aspectos de um mundo compreendido como

universal está à distância que vai dos processos de dominação amparados por fantasias

que constituem um fluxo livre de mercadorias aos dos sonhos de inclusão e justiça

social proveniente da igualdade entre nações.

Milton Santos dedicou a vida a descortinar os eventos dos poderes monopolistas

ou oligárquicos que se respaldaram no capitalismo abstrato para difundir sua ideologia

de quanto mais atenção à economia maior a possibilidade de advir políticas de

igualdade. O pensador brasileiro denuncia esse sistema ideológico do capital que está

sempre à procura de paragens mais convidativas, ou seja, onde haja menos controle

estatal, mais isenção de impostos e falta de rigor na remessa de dinheiro para o exterior.

E a globalização não pode conter a crise gerada por essa ideologia, pois ela é o motivo

dessa crise, que mais se agudiza conforme novas metas são planejadas para garantir o

aumento do lucro e a circulação do dinheiro. A única crise que a globalização deseja

evitar é a financeira; crise que justamente incide preocupação aos grandes agentes

econômicos – banqueiros, empresários, negociantes de toda espécies –, aos baluartes

das políticas de ajuste fiscal e aos especuladores que ao prever qualquer contratempo

transferem dinheiro de um investimento para outro, de um banco para outro, de um

continente para outro num simples clique no mouse. E assim o prejuízo fica com o país

que abrigava anteriormente aquele montante que, dessa forma, não passa de espectro a

assombrar os bancos centrais do planeta.

No documentário “Encontros com Milton Santos ou o Mundo Global Visto de

Cá” (2003) de Silvio Tendler, o geógrafo expõe as fraturas do mundo tal como nos

fazem crer (a globalização como fábula) e o que vem à tona é a globalização como

perversidade. A ideologia do capitalismo abstrato faz supor um mundo global sem

fronteiras, no qual as barreiras que impediam a demanda de pessoas que saiam de seu

território em busca de uma vida mais promissoras estavam com os dias contados. No

entanto, esclarece Milton Santos, o que se assistiu foram à livre circulação de

Page 48: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

46

mercadorias, serviços, produtos tecnológicos e do próprio capital graças à conexão do

sistema financeiro. Mas permanece proibido à entrada de refugiados, os espoliados da

globalização e da barbárie, sejam elas guerras civis ou confronto entre nações. O livre

tráfego dos indivíduos encontra resistência e as leis cada vez mais rigorosas contra a

emigração validam as preocupações de Milton Santos. A Europa do século XXI é um

continente que precisa lidar com o avanço da extrema direita que combate ferozmente à

entrada de estrangeiros vindos de países tidos como periféricos e com a proporção

assustadora do crescimento da xenofobia nos grandes centros urbanos europeus; cidades

que, em outrora, consagraram-se como cosmopolitas.

Lembrar-se das ideias de Milton Santos nos faz estabelecer uma linha de

pensamento que procura objetar os efeitos da globalização. Não apenas inquirir seus

prós e contras, mas observar as tentativas de concretização de uma mundialização da

cultura, dos direitos, das agendas políticas, do comércio de mercadorias. Mas essas

práticas abalaram o que, até então, parecia ser o suporte de uma integração entre países:

os Estados-nação. O território passou a ser um problema. O capitalismo por exigir o

dinamismo, a leveza, o deslocamento, ultrapassou a ideia de espaço, ou pelo menos,

transferiu o poder de administrar localmente (mantendo representação de feição local)

para determinação a longa distância as formas de esse poder proceder. O território

passou a ser um peso cuja mão-de-obra obstrui a velocidade das decisões, e se situar no

território ocupado tornou-se um custo dispendioso.

O jogo da dominação na era da modernidade líquida não é mais jogado entre o “maior” e o “menor”, mais entre o mais rápido e o mais lento. Dominam os que são capazes de acelerar além da velocidade de seus opositores. Quando a velocidade significa dominação, a “apropriação, utilização e povoamento” do território se torna uma desvantagem – um risco e não um recurso. Assumir algo sob nossa própria jurisdição e anexar a terra alheia implicam as tarefas caras, embaraçosas e não-lucrativas de administração e policiamento, responsabilidade e compromissos – e acima de tudo limitações consideráveis à nossa futura liberdade de movimento (BAUMAN, 2001: 215).

Zygmunt Bauman ao examinar a disposição do poder contemporâneo constata

que se sobrecarregar com o ônus de gerenciar e administrar localmente os lugares

conquistados traz consequências que se configuram como atraso: investir na

reconstrução, sustentar o poder, expandi-lo, além de sufocar prováveis sublevações.

Page 49: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

47

O poderio da elite global reside em sua capacidade de escapar aos compromissos locais, e a globalização se destina a evitar tais necessidades, a dividir tarefas e funções de modo a ocupar as autoridades locais, e somente elas, com o papel de guardiões da lei e da ordem (local) (BAUMAN, 2001: 215).

Dessa forma, Bauman e Milton Santos percebem que a globalização vivida

como fábula não obtém êxito em subsumir com a percepção dela como perversa, em ser

vista tal com é.

Um dos pontos ideológicos em defesa da globalização pode ser encontrado nos

prognósticos que assinalam uma livre concorrência no mercado mundial de comércio.

No entanto, as grandes marcas, bancos, indústrias possuem subvenções e incentivos de

toda espécie para se instalar em algum território economicamente próspero devido à

demanda de consumo de seus habitantes/potenciais clientes de estável poder aquisitivo

ou pela mão-de-obra barata.

O discurso sobre igualdade elaborado com requinte e vernizado com a ideia de

facilidade de crédito para investir na exportação de seus produtos ludibriam os pequenos

empresários que entram em desvantagens no jogo, pois não recebem os subsídios com

os quais as multinacionais são contempladas. A livre competição é uma feroz disputa

vencida nos bastidores pelos agentes da elite extraterritorial.

Produtos do Pantanal mato-grossense podem conseguir espaço no mercado

internacional desde que estejam subscritos pela “classificação” de exótico e estejam

adornados pelos clichês que conferem aos estereótipos que cingem o artesanato, a arte

ou a manifestação cultural à “prateleira” dos produtos regionais. A competição que se

estabelece (ou as competições) diz respeito à luta contra a descaracterização que o

mercado prega. Apesar disso, é o olhar estrangeiro responsável pelo certificado de

qualidade de produtos regionais. A descoberta de nichos produtivos em lugares

recônditos alimenta um público consumidor taxado hoje de “diferenciado”. A diferença

escapa da margem e se desloca para o centro do cenário. Porém, uma nova contradição

contemporânea nasce: a diferença se incorpora aos padrões de mercado. A diferença

está acoplada a uma espécie de universalização que reduz tudo a uma fórmula. Como

escrevem Adorno e Horkheimer (1985: 139), “Apesar de todo o progresso da técnica e

Page 50: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

48

da representação, das regras e das especialidades, apesar de toda a atividade trepidante,

o pão com qual a indústria cultural alimenta os homens continua a ser a pedra da

estereotipia”. Além disso, a concorrência desleal das grandes redes comerciais. O

capitalismo abstrato prevê a competição, mas não regula de forma igualitária as normas

desses embates; se considerarmos possível falar em normas, em plena fase líquida da

modernidade.

O trânsito de mercadorias demarca a vantagem do capital sobre os homens e as

mulheres. Estes, quando filhos do infortúnio, tentam fazer do deslocamento um modus

vivendi. Mas a vida no nomadismo não é tão receptiva para com eles como é para a elite

global. Eles se lançam num fluxo migratório que pode se deparar, ainda no meio da

jornada, com o desespero e a humilhação de uma deportação. O reforço na vigilância de

fronteiras e o maior rigor nos aeroportos e nas alfândegas geram clandestinidade e

ilegalidade. O que produz, devido à crise econômica nas nações ricas, a queda na oferta

de empregos ou a um sentimento embutido na formação nacional de temor ao

“forasteiro”, um grave aumento da xenofobia e da perseguição aos estrangeiros. Esse é,

porém, um dos aspectos da globalização. O outro são os empregos regulares que

fornecem bons salários e green card aos trabalhadores dos mais diversos países, seja

nas nações do G-7 ou em territórios dos estados emergentes.8 Porém, o cenário

preenchido com a legalidade, não atenua o crescimento dos movimentos de contestação

desse fluxo. O que inclui no processo de globalização elementos como contradição,

disparidade, efeito dominó, atitude contraproducente.

A globalização é a razão do ressurgimento de identidades culturais locais em várias partes do mundo. Se alguma pergunta, por exemplo, por que os escoceses querem mais independência no Reino Unido, ou por que há um forte sentimento separatista em Quebec, não poderá encontrar a resposta apenas na história cultural deles. Nacionalismos locais brotam como uma resposta a tendências globalizantes, à medida que o domínio de estados nacionais mais antigos enfraquece (GIDDENS, 2007: 23).

8 Sobre a relação imigração, xenofobia e globalização ler o pequeno texto do geógrafo Ricardo Silva no

endereço http://educacao.uol.com.br/geografia/migracoes-e-xenofobia-motivacao-politica-e-economica.jhtm

Page 51: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

49

A globalização se traduz por um processo complexo que ativa antagonismos ao

tempo que reduz a distância entre espaços geográficos e esboça trocas culturais

legítimas.

Entretanto, será que nesse panorama de acontecimentos intermitentes, de

condução acelerada, líquida, não se pode mais falar em ideologias e as fronteiras como

as conhecemos na era sólida da modernidade já são coisas do passado? Muitos autores

se ressentem em fazer uma defesa enfática da permanência de ideologias nos assuntos

que dizem respeito à globalização (por exemplo, Cláudio Lomnitz Adler, que não

percebe uma ideologia de comunidade, mas crê que suas condições são históricas, fruto

de um processo que abarcou inúmeros momentos dos países economicamente

hegemônicos). E, tantos outros, conclamam a dissipação das fronteiras geográficas

(como Paul Virilio e Renato Ortiz) ou de qualquer outra: científica, econômica, artística,

etc.

Neste tempo líquido são essas questões que se apresentam como fundamentais

para se tentar compreender as engrenagens que a fazem se movimentar e desvanecer

com tanta velocidade.

2.1. A globalização dos ricos versus a globalização para todos

Apesar dos inúmeros discursos de saudação em relação às particularidades

benemerentes da globalização, a escala dos rechaços ao fluxo migratório aumenta no

mundo, cujo tempo de viagem de um lugar ao seu destino está se encurtando a “olhos

vistos”. O surto de ataques a estrangeiros, do antes chamado Terceiro Mundo, na

Europa parece ser sinal de um conflito entre “o trabalho que preciso” e “o trabalho que

não quero”. Defasagem e política dos empregadores em pagar salários mais baixos sem

recompensas pelo labor insalubre levaram os nativos a uma revolta “surda” e uma fúria

“cega” contra os forasteiros. Mas as ofertas de trabalho especializado e de alta

capacidade em tecnologia conduzem milhares de pessoas a aceitar transladar para países

mais prósperos financeiramente em busca das oportunidades para desenvolver seu

potencial em produção.

Page 52: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

50

Na globalização vivida na modernidade líquida, o trabalho parece ser seu motor

movente. Mas é um trabalho não mais baseado na estabilidade, na segurança de um

contrato entre firma e funcionário e na aspiração a promoções que elevam o empregado

na empresa. Hoje, o que conta é a disposição em correr riscos. Abraçar o trabalho como

algo que exige dinamismo, desprendimento e flexibilidade. Bauman chama a atenção

para o fato de que a presença constante de um desemprego que é estrutural deixa

obviamente todos em estado de alerta. As empresas passam por fase de

“redirecionamento”, “racionalização”, nas redações de revistas e jornais a publicação

sofre uma “repaginada”. As mudanças ocorrem intempestivamente no mínimo sinal de

fracasso que surja. Os empregos não são duráveis.

“Flexibilidade” é a palavra do dia. Ela anuncia empregos sem segurança, compromissos ou direitos, que oferecem apenas contratos a prazo fixo ou renováveis, demissão sem aviso prévio e nenhum direito a compensação. Ninguém pode, portanto, sentir-se insubstituível – nem os já demitidos nem os que ambicionam o emprego de demitir os outros. Mesmo a posição mais privilegiada pode acabar sendo apenas temporária e “até disposição em contrário” (BAUMAN, 2001: 185).

O mundo atual exige esse tipo de adequação: estar pronto para dissolução dos

laços que nos une a atividade que devemos desenvolver. Insegurança e vida precária. A

falta de segurança gera a vontade de que tudo ocorra o mais rápido possível. A

flexibilidade na globalização é um modelo comportamental. Uma capacidade instigada

prevendo a mobilidade a qual todos devem se lançar.

Apesar de dar vários passos rumo à compactação da distância entre um rincão

em Butão e um canto recôndito na Dinamarca, a globalização permanece restritiva

quando o assunto se trata da permissão para o deslocamento. A nova elite extraterritorial

aproveitando a liberdade proporcionada por todas as revoluções econômicas e

tecnológicas transformou o estar em trânsito em rotina. A questão, no fundo, não se

trata daquilo que se almeja: se é trabalho ou prazer. A demarcação de fronteiras

evaporou-se para um grupo seleto de pessoas. Não é um obstáculo que impõe

resistência para os “premiados” pelo capitalismo abstrato. Seja o espaço territorial, ou

mesmo o cibernético, esses que se movem tão velozmente são consumidores certeiros e

obstinados. Suas credenciais no mundo moderno líquido de consumo já se constituem

Page 53: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

51

um aval para romper as fronteiras que barram os mais diversos tipos de viajante,

migrante, clandestino, andarilho, nômade.

Em 2011, na ilha de Lampedusa, assistimos recentes choques entre a polícia

italiana e refugiados da crise política na Líbia e na Tunísia9. Tal deferência passou da

indiferença, logo após a recepção dessas vítimas da intolerância política, para o

sufocamento de manifestações legítimas por um tratamento digno fazendo uso da força

repressiva institucional para contê-los. A antiga diáspora se reduz a guetos vistos com

desconfiança pela população local e foco de problemas para as autoridades. É certo que

cidades cosmopolitas, como Nova York, parecem equilibrar o êxodo migratório

forjando lugares que se estabelecem como pontos de cultura de algum país, como, para

citar algumas, a cubana, a chinesa e a brasileira. As diásporas atuais produzem nos

enfraquecidos Estados-nação constrangimentos, pois seu poder parece se restringir a

uma dupla função, a da manutenção da ordem e da estabilidade econômica. A crise

financeira de 2008 pareceu um campo fértil para os Estados, pois possibilitou a sua

interferência no jogo financeiro internacional para estancar a “sangria” ocorrida, assim,

pondo em xeque ou revertendo a sentença dos analistas sociais que determinavam o

Estado como algo desregulado e privatizado. No entanto, a bolha econômica que

estourou e abateu à Europa e aos Estados Unidos, em 2011, expôs novamente a

fragilidade dos Estados diante da especulação financeira e a facilidade que investidores

têm de transferir dinheiro de um país para outro, de comprar ou vender títulos de um

Estado, etc.10 Os Estados manobraram pela recuperação do controle econômico, mas

permanecem incapazes de proporcionar “segurança existencial” a seus cidadãos.

Ganhar essa segurança existencial – conseguir e manter em lugar legítimo e digno na sociedade humana e evitar a ameaça de exclusão – é uma tarefa deixada às habilidades e aos recursos de cada indivíduo, por sua conta. (...) O medo que o Estado prometeu extirpar retornou com uma vingança. A maioria de nós, da base ao topo da pirâmide social, hoje, teme a ameaça, embora vaga, de ser excluído, de se provar inadequado para os desafios, de ser desprezado, de ter sua dignidade negada e humilhada (BAUMAN, 2010: 89).

9 Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/09/110921_lampedusa_rp.shtml

10 Para saber mais sobre as manobras dos Estados, sintomáticas a partir de 2008, para retomar o controle

da economia ler trechos do artigo "Quand les Etats investissent la finance", (Alternatives Economiques n°262, Outubro de 2007) de Christian Chavagneux, traduzido em português, no site da Revista on line

“Carta Maior” http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15418#

Page 54: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

52

A migração resultou numa das grandes contradições para a globalização e

interrogação no que tange ao quanto os Estados-nação estão dispostos a ceder para

abraçar a abertura apregoada pelos defensores da mundialização do comércio de

mercadorias e serviços. Num mundo de possibilidades, as figuras do miserável e do

forasteiro (esse segundo visto, agora, como potencial terrorista) inculcam mais

acusações e suspeitas que o desejo de compartilhar todas as comodidades garantidas por

uma comunidade estável. Hoje, o nomadismo é característica da elite extraterritorial. Os

nômades de antanho não circulam mais com a facilidade de outrora. E os migrantes são

responsabilizados pela queda do poder aquisitivo, pelo aumento do desemprego e pela

crescente violência nas nações ricas. Assim, a emigração que não resulta no

fornecimento de atividades que proporcionem prazer, por meio do consumo destacado

como exceção e requinte, se junta aos desvalidos sociais que residem em periferias,

favelas, bairros longínquos ou acoplados aos centros urbanos, sendo taxados como

ameaça à segurança.

[...] para alguns residentes da cidade moderna – seguros em suas casas à prova de roubo em subúrbios arborizados, em seus escritórios fortificados, nos altamente policiados centros de negócios, com carros cheios de engenhocas de segurança para levá-los de suas casas para seus escritórios – o “estranho” é tão atraente como as ondas da praia, e nada ameaçador. Os estrangeiros dirigem restaurantes que prometem experiências incomuns e estimulantes para os amigos da boa mesa, vendem objetos misteriosos e de aparência curiosa, adequados para serem os tópicos das conversas da próxima festa, oferecem serviço que outras pessoas não se rebaixariam ou não se dignariam a oferecer, acenando com pedaços de sabedoria refrescantemente diversos dos rotineiros e tediosos (BAUMAN, 2008a: 119).

A palavra experiência ressoa como atributo essencial para a aceitação do

estrangeiro. A cidade contemporânea não é angustiante para uma elite que circula com o

direito de mover-se de um lado para o outro. Faz parte do pacote de escolhas. Escolher

compõe o alicerce que fundamenta a hibridação do cenário urbano. Assim como ignorar

e selecionar quem manter fora do frutífero crescimento da “exotização” das ofertas de

consumo.

A relação que se estabelece com os estrangeiros se restringe à troca comercial: o

serviço pelo prazer. Assim que o desejo encontra sua satisfação e o prazer deixa de ser

substancial, a relação não tem porque perdurar. É um convívio profissional com tempo

Page 55: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

53

de validade. “Os estrangeiros são fornecedores de prazeres. A presença deles é uma

quebra do tédio” (Ibidem: 120).

A pergunta que não quer calar é proveniente dos motivos de tanto espalhafato

contra a presença de “estranhos” em determinado território. Fora do âmbito político, que

fomentado por oportunismos, busca nas preocupações de uma sociedade rodeada por

perdas que fogem ao seu controle formas de tornar o “intruso” potencialmente perigoso

para a economia e valores comunitários, os apelos à rejeição a presença dos forasteiros

partem daqueles que não podem escolher, não possuem o certificado para selecionar os

serviços e muito menos interromper o vínculo quando desejar.

Não nos enganemos, o alvoroço vem de outras áreas da cidade, que os consumidores em busca de prazeres nunca visitam. Essas áreas são habitadas por pessoas incapazes de escolher quem elas encontrarão e por quanto tempo, impossibilitadas de pagar para ter suas escolhas respeitadas; por pessoas sem poder, que experimentam o mundo como uma armadilha e não como um parque de aventuras; que estão encarceradas num território no qual não existe saída para eles, mas onde os outros podem entrar e sair à vontade. O dinheiro, o único cacife para assegurar a liberdade de escolha, moeda legal na sociedade de consumo, está escasso ou é diretamente negado a eles (BAUMAN, 2008a: 120).

No filme estadunidense, “Faça a Coisa Certa” (Do the Right Thing, 1989), de

Spike Lee, temos uma das melhores exposições sobre a explosão de sentimentos

represados pelos deserdados do capitalismo abstrato. Ódio, humilhação, impotência,

preconceito, medo, angústia, tudo conduz à tragédia a partir do calor escaldante nova

iorquino e dos estranhamentos culturais e da sensação de exclusão. O fato de uma

pizzaria italiana estabelecida em um bairro de maioria afro-americana não exibir fotos

de personalidades negras gera indignação e revolta, e depois a violência policial leva à

morte de um protestante, o que vai resultar na eclosão de um distúrbio que acaba com a

destruição da pizzaria. No meio, há pessoas que querem depredar a quitanda de um

casal sul coreano amparando-se na ideia que esses lá estão para roubar seus lugares (ou

seja, o emprego e o direito ao sonho americano de riqueza) e explorá-los. Mas são

impedidos por quem percebe o jogo das classes dominantes (prioritariamente a política)

que os confina e fomenta o ódio mútuo.

Page 56: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

54

Em busca da solução para o seu inconformismo e das perguntas que planam sem

respostas, os sedentários contemporâneos despejam sua incompreensão num dos elos

frágeis (ele é o outro) com toda aparência de forte, o estrangeiro.

Seus inimigos – os intrusos estrangeiros – parecem tão potentes e poderosos graças à própria fraqueza incapacitantes deles; a ostensiva engenhosidade e má vontade dos estrangeiros é reflexo da própria falta de poder, que se cristaliza em seus olhos como o impressionante poderio dos estrangeiros. O fraco encontra e confronta outro fraco; mas ambos se sentem como Davi lutando contra Golias (BAUMAN, 2008a: 120).

Enquanto cada um luta para fazer do seu “pedaço” um lar seguro, a elite global

sustenta várias empresas de segurança que mantêm vigilância constante sobre seu

patrimônio e a polícia barra o trânsito dos indesejados nas zonas classe A das cidades. A

globalização ainda não reduziu o grau de exclusão e os fatores de proibição para o livre

trânsito de todos pela cidade. Mesmo numa metrópole, parece possível falar em

fronteiras fortificadas. Os residenciais no coração das cidades, ou afastados delas, são o

retrato da separação entre a vida dos que podem recorrer à segurança privada e dos que

não possuem o recurso financeiro para tal. Estes creem atirados no “olho do furacão”. E

assim segue a rotina nos grandes centros urbanos.

A globalização gerou pequenos empresários bem-sucedidos, locais para turismo

distantes e deslumbrantes, conexões entre ONGs e defensores dos direitos humanos

espelhados pelos continentes. Por outro lado, triplicou fortunas, fez com que crises

econômicas afetassem o maior número de países possíveis, aumentou a competição

desleal promovida pelas multinacionais, etc.

Anthony Giddens aponta para a necessidade de perceber a globalização não

como efeito de transformações que sejam fugazes e reféns dos elementos atuais, tanto

políticos quanto econômicos. A globalização é o modus vivendi contemporâneo com

suas conquistas e suas mazelas. Giddens defende a importância de suprir as instituições

com novos suportes de proteção à vida das pessoas; não reduzir as mudanças do

presente a avanços do sistema financeiro. Ele constata que os Estados-nação já não

possuem a mesma eficiência para conduzir e controlar sua política econômica. Num

mundo, cujo clique no mouse pode transferir milhões de dólares ou euros de um banco

Page 57: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

55

para outro do globo terrestre, pensar de maneira restritiva ao próprio território denota

perda de capacidade para gerir as mudanças aceleradas que ocorrem a cada instante. É

preciso ver tais eventos como mundiais e coligir que os riscos e perigos que ocorrem

hoje dizem menos respeito à beligerância de vizinhos que aos problemas associados à

forma de homens e mulheres lidarem com o fluxo de mudanças que atingem o cotidiano

e as instituições. Vivemos, segundo Giddens, em uma sociedade cosmopolita global.

Porém, ele diz que essa ligação não segue um imperativo coletivo sintonizado com a

vontade de todos, mas resulta da mistura de influências que é casual e não “arquitetada”.

Ela não é firme nem segura, mas repleta de ansiedades, bem como marcada por profundas divisões. Muito de nós nos sentimos presos às garras de forças sobre as quais não temos poder. [...] A impotência que experimentamos não é um sinal de deficiências individuais. Mas reflete a incapacidade de nossas instituições. Precisamos reconstruir as que temos, ou criar novas. Pois a globalização não é um acidente em nossas vidas hoje. É uma mudança de nossas próprias circunstâncias de vida. É o modo como vivemos agora (GIDDENS, 2007: 29).

O comentário de Giddens mostra-se arguto e prudente ao observar que a

globalização não é apenas sintoma da desestruturação do mundo moderno, mas uma

nova forma de pensá-lo, conhecê-lo com o auxílio das tecnologias de comunicação e

dividindo problemas comuns, como o perigo do desastre ambiental.

Bauman analisando a globalização mira em seu desequilíbrio latente. Faz notar

as consequências humanas de um mundo, supostamente, interligado em alta escala. Um

mundo em movimento que não poupa os atrasados e os sedentários. Numa sociedade

individualizada é preciso manter o impulso por seguir sempre em bom estado de ânimo.

O pathos da contemporaneidade se faz presente, também, na forja da vontade de

avançar em aceleração. O personagem Larry, do romance “O Fio da Navalha” (1944),

do britânico W. Sommerset Maugham, após ser ferido durante a Primeira Guerra

Mundial, parte à procura de um sentido para a vida: transcendência e fuga das

aspirações classistas de uma elite enfadonha absorta em seu próprio mundo. A certa

altura, o narrador, que é um escritor, diz a socialite apaixonada por Larry, e que ainda

sonha em reencontrá-lo e reconquistar o seu amor, que os Estados Unidos de ambos são

Page 58: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

56

diferentes. Não se esbarram por estarem separados por um fosso: um abismo social e de

visão de mundo. O que Larry faz ao cortar laços com a América da socialite é recusar a

sociedade moderna do triunfo capitalista. Impõe resistência às convenções da produção

industrial, da propriedade e do acúmulo de bens. Larry opta pela pausa, e, em seguida,

pela completa aniquilação dos ditames de uma ideologia que coloca a frivolidade do

luxo acima das necessidades das pessoas. Atitude condenável na modernidade sólida,

que na líquida assemelha-se a sentença de morte.

Esses mundos aos quais Larry obsta seu significado de vida, Bauman percebe

como dividido entre “turistas” e “vagabundos”. Um planeta de viajantes por escolha e

de andarilhos que são empurrados para essa condição. Pode-se movimentar pela Web

(receber e enviar mensagens para o mundo todo) ou em casa diante da TV, pois faz

sentido falar em “percorrer um percurso” sendo que as transmissões ocorrem graças ao

uso de satélites e cabos. O mundo nos chega mesmo sem o deslocamento físico. Mas,

quando se trata de corpos – de materialidade que se põe em movimento pelo afã de estar

em trânsito – há uma diferença básica que está depositada no recurso financeiro para tal

empreendimento. O rompimento do espaço seguramente pertence aos anais das

conquistas modernas. Com o aperfeiçoamento do avião, o tempo de translação diminuiu

substancialmente.

E, com as tecnologias da comunicação, o planeta inteiro está conectado. Basta

possuir um celular, notebook ou um tablet. Mil funções em um único aparelho no qual

cabe uma escandalosa porcentagem da vida de uma pessoa. O espaço se pulverizou a

olhos vistos.

No mundo que habitamos, a distância não parece importar muito. Às vezes

parece que só existe para ser anulada, como se o espaço não passasse de um convite

contínuo. O espaço deixou de ser um obstáculo.

Não há mais “fronteiras naturais” nem lugares óbvios a ocupar. Onde quer que estejamos em determinado momento, não podemos evitar de saber que poderíamos estar em outra parte, de modo que há cada vez menos razão para ficar em algum lugar específico (e por isso muitas vezes sentimos uma ânsia premente de encontrar – de inventar – uma razão). (BAUMAN, 1999: 85).

Page 59: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

57

Assim viajamos, seja real ou virtualmente, física ou espiritualmente. A condição

nômade parece atingir até os espectadores de TV que pulam compulsivamente de uma

emissora para outra à procura de um programa que esteja de acordo com seu gosto. O

mundo atual condena a imobilidade. E o fato de se fixar já atrai razões para justificar

censuras a alguém. No mundo contemporâneo da aceleração, cobra-se até mesmo da

imaginação que se tenha mais dinamismo, alternância de cores e que evite o repouso.

“Um mundo com pontos de referência sobre rodas, os quais têm o irritante hábito de

sumir de vista antes que se possa ler toda a sua instrução, examiná-la e agir de acordo”

(Ibidem: 86). A era global institui o efêmero como mote para a produção de bens,

mercadorias e ofertas de serviços. A duração tem que ser conveniente com o impulso de

desejar, consumir e descartar. Os empregos também se submetem a era global da

aceleração. Vive-se na precariedade, pois o trabalho sendo medido pela experiência –

temporária – exige a flexibilidade independente do valor da pecúnia pelo trabalho que

se realiza. O trabalho exibe o “prazo de validade” de forma inequívoca. E, dessa

maneira, se sustenta a sociedade líquida.

Sociedade líquida de consumo (que em 1997, Bauman referindo-se a ela como

pós-modernidade, já suscitava um mal-estar preponderante), que, exigindo o

deslocamento como um dos seus pontos-mor, gerou dois tipos de condições ao que

concerne a vida contemporânea: a do turista e a do vagabundo.

Os turistas estão sempre se empenhando para manter-se em movimento. Tem

nesse desejo seu estado sine qua non. Independente de viajarem a trabalho ou prazer,

precisam da sensação de trânsito, de se verem longe de casa.

Os turistas tornam-se andarilhos e colocam os sonhos agridoces da saudade acima dos confortos do lar – porque assim o querem ou porque consideram essa a estratégia de vida mais racional “nas circunstâncias” ou porque foram seduzidos pelos prazeres reais ou imaginários de uma vida hedonística (BAUMAN, 1999: 100).

O turista vive como o frequentador de shopping center. Todos parecem

confortavelmente iguais. Qualquer diferença só faz acentuar a semelhança. Faz parte da

sedução contemporânea introduzir um elemento que distingue o lugar. Porém, que não o

desfigure a ponto de torná-lo irreconhecível para seus aventureiros.

Page 60: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

58

O lar do turista pode estar em qualquer lugar, ou melhor, ele faz dos locais de

estada um lar, pois com o espaço descomposto, a situação de inconstância passa a ser

uma vantagem. Um lar fixo, permanente, seria um empecilho para se ajustar aos padrões

cambiantes do mundo líquido.

O extremo do “deleite” do turista se apresenta na figura do vagabundo. O

vagabundo se desloca não por prazer ou por sentir sua morada como insuportável, o faz

por falta de opção. Talvez, se tivesse escolha, fosse possível recusar o movimento

forçado. Mesmo que os vagabundos não sejam partidários da vida nômade, essa é a vida

na qual os lançaram.

Se estão se movendo é porque “ficar em casa” num mundo feito sob medida para o turista parece humilhante e enfadonho e, de qualquer modo, a longo prazo não parece uma proposta factível. Estão se movendo porque foram empurrados – tendo primeiro sido desenraizados do lugar sem perspectivas por uma força sedutora ou propulsora poderosa demais e muitas vezes misteriosa demais para resistir. Para eles, essa angustiante situação é tudo, menos liberdade. Esses são os vagabundos, escuras luas errantes que refletem o brilho luminoso do sol dos turistas e seguindo placidamente a órbita dos planetas: são os mutantes da evolução pós-moderna, os rejeitados monstruosos da admirável espécie nova. Os vagabundos são o refugo de um mundo que se dedica ao serviço do turista (BAUMAN, 1999: 100-101).

O vagabundo capta os sinais de mudanças exigidos pela recente configuração do

mundo, mas não tem acesso aos seus códigos. Anda a esmo, esmagado pela

impossibilidade de seguir a passagem dos afortunados da sociedade líquida moderna. A

sua vida espelha um cárcere que impõe muitas restrições. Desterritorializado parte à

procura de um atalho que o conduza a interrupção da sedução que surge como tentação,

com a aparência de ser mais cruel que a promessa de felicidade.

Se os turistas são navegantes que escolhem a direção a tomar, os vagabundos são

obrigados a se moverem, pois, muitas vezes, o assentamento parece improvável por

serem taxados de personas non grata nos lugares em que a vida à deriva os leva. “Os

turistas se movem porque acham o mundo a seu alcance (global) irresistivelmente

atraente. Os vagabundos se movem porque acham o mundo a seu alcance (local)

insuportavelmente inóspito” (Ibidem: 101). Mas ambos lidam com dificuldades latentes.

O turista tem como espécie de quintessência a liberdade de escolha. No entanto, sem a

impressão desse direito, ele se veria atônito. O turista necessita da aparência de um

Page 61: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

59

mundo que esteja em seu ápice e a imagem dele globalizado, onde se constrói

oportunidades tão atraentes, não pode ser desprezada. As excursões, os hotéis luxuosos,

os aeroportos, os planos de viagens, tudo isso faz parte de um pacote deslumbrante.

Entretanto, o encanto está cingido pela inebriante ideia de escolha.

O vagabundo é o efeito colateral dos desejos e sonhos do turista. Ele acaba como

vítima do constante trânsito do turista que acredita ser irrefreável. Ao vagabundo não é

permitido parar nem permanecer. O seu deslocamento é simultaneamente busca e fuga.

Ambos estão atrelados a uma relação de atração-repulsão. O vagabundo é o alter

ego do turista. A imagem de sucesso que o vagabundo tem em seu mundo insalubre é a

do turista. Para o turista, o vagabundo se assemelha mais a um preguiçoso e a situação

dele aos seus olhos é insuportável. “A simples visão do vagabundo faz o turista tremer –

não pelo que o vagabundo é mas pelo que o turista pode vir a ser” (Ibidem: 106). No

entanto, nos dois casos, há outsiders e resignados. O turista outsider faz do próprio

trânsito uma maneira alternativa de vida, que não segue o roteiro padrão das viagens e

programas que o turista líquido moderno trilha obedientemente. A sua existência toca a

vagabundagem. E o vagabundo que não admira o turista como um exemplo de vida a

rastrear, faz mais que evitar ter um guru, recusa a gritaria geral que aponta o nomadismo

e o consumo como únicas felicidades desejáveis.

Tanto o turista quanto o vagabundo precisam evitar a frustração no mundo

moderno de consumidores. O vagabundo a encontra diariamente pelo motivo que

consumir o luxo (e mesmo sua imitação) passa ao largo de suas expectativas reais e de

seu orçamento. Já para o turista a frustração reside na incerteza embutida em cada

escolha, na sequência de aventuras a qual precisa se atirar. Mas uma vida distinta dessa

o assombra esporadicamente: a noção, não totalmente vaga, que a felicidade, talvez, se

encontre em um tipo de existência diferente dessa. Porém, a imagem do vagabundo é

um pesadelo que o acompanha, o tão temido “fracassado”. As aspirações de uma vida

outra são escamoteadas e guardadas no “porão”, isoladas para não mais incomodar. O

vagabundo, assim, é fabricado como um indesejado necessário, um lembrete de que se

ausentar pode ser fatal.

E assim, paradoxalmente, a vida do turista é tanto mais suportável, mesmo agradável, por ser assombrada por uma alternativa uniforme de pesadelo: a da existência do vagabundo. Num sentido igualmente paradoxal, os turistas têm interesse em tornar essa alternativa a mais terrível e execrável possível. Quanto menos atraente for o destino do vagabundo, mais saborosas serão as peregrinações do turista. Quanto pior a angústia dos vagabundos, melhor será a sensação experimentada pelo turista. Se não houvesse vagabundos, os

Page 62: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

60

turistas teriam que inventá-los... O mundo dos viajantes precisa de uns e de outros, e juntos, presos num nó górdio que ninguém parece saber (ou querer) como desatar ou cortar (BAUMAN, 1999: 107).

As imagens poéticas e desoladoras de “Paris, Texas” (1984), de Wim Wenders,

são o constrangimento da vida a ser evitada a todo custo pelo turista (ainda mais porque

ele não saberia extrair beleza e melancolia dela), mas é o cenário no qual o vagabundo

(ou o turista alternativo) desempenha sua jornada.

A globalização derrubou barreiras, até então instransponíveis, com a sofisticação

aguda das tecnologias de comunicação e com a compactação do espaço físico pela

valorização no investimento de transportes que reduziram o tempo de viagem. A elite

nômade, melhor dizendo, extraterritorial, implodiu o confinamento espacial e vive

conforme as novas regras do capitalismo abstrato. Uma desterritorialização programada

que converte a vida dos nômades de outrora e dos refugiados de sempre em pálidas

lembranças de uma existência árdua, mas necessária.

Apesar da espontaneidade, que parece soberana na contemporaneidade, falar em

ideologia, talvez, não acarrete em anacronismo. Por que se o capitalismo abstrato gera a

impressão de uniformidade nas aspirações, no modo de vida ou mesmo num

culturalismo que adentra em cantos antes inacessíveis a ele, o que nos leva a crer que as

ideologias foram abandonadas em prol de uma configuração de mundo que atenda um

ajuste que respeite as diferenças e os apelos por um planeta mais justo, menos

conflituoso? Ou será que nenhuma ideologia foi capaz de se equiparar com as vantagens

do capitalismo? Será que refutar a existência de uma ideologia dominante e sentenciar

que a era das ideologias ficou para trás, já não significa a aceitação dessa ideologia

dominante?

2.2. Ideologia: quem cantará que precisa dela para viver?

Page 63: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

61

“Que aquele garoto que ia mudar o mundo, mudar o mundo/ Frequenta agora as

festas do “Grande Monde”/ Meus heróis morreram de overdose/ Meus inimigos estão

no poder/ Ideologia, eu quero uma pra viver”.11

Cazuza, em autoria com Roberto Frejat, anunciava em 1988, um ano antes da

queda do muro de Berlin, a percepção de que a nossa crença nas ideologias vivia uma

época de dissabor total. O que significava carregar preceitos ideológicos como

expressão segura de um modo de vida? Ou seja, ter em mente uma concepção de vida

que amarrava todos os pontos desde política à religião. Ainda mais num momento de

livre mercado acentuado que tornava Wall Street o coração financeiro do mundo e o

yuppie, um modelo a ser copiado.

Em 1989, um mundo dividido em capitalismo democrático e socialismo

comunista (agonizante) chegava ao fim; o comunismo, uma das ideologias mais

penetrantes do século XX, e motivos de controvérsias ferozes, encontrava seu

derradeiro funeral. A possibilidade de reverter esse panorama era uma pergunta que

ficava no ar. E o fim da União Soviética, alguns anos depois, praticamente,

inviabilizava contestações mais enérgicas. O triunfo do capitalismo causava em muitos

uma desilusão asfixiante.

Nas últimas décadas, um discurso recorrente é de que não há mais ideologias.

Daniel Bell postula que o fim da ideologia era o encerramento de uma era traduzida

pelas fórmulas fáceis sugeridas pela “esquerda” e, em decorrência, o fim da retórica

(ideia com afinidade liberal).

A ideologia faz com que as pessoas deixam de enfrentar problemas específicos, e de examiná-los à luz dos méritos individuais. As respostas estão prontas, e são aceitas sem reflexão; e quando as crenças são apoiadas pelo fervor apocalíptico, as ideias se transformam em armas, com resultados espantosos (BELL, 1980: 327-328).

Muitos analistas do mundo contemporâneo (políticos, economistas, jornalistas

entre outros) apontam que o livre mercado – competitivo – encerrou o confronto

ideológico. Como se no capitalismo abstrato (que engendra a globalização econômica

11

Ideologia. Autoria de Cazuza e Roberto Frejat do Álbum “O Tempo Não Para”. Cazuza ao Vivo.

Universal/1988.

Page 64: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

62

apoiada no livre mercado) não houvesse necessidade de embates de ideias e que tal

condição fosse algo salutar, uma vez que se evitaria que os ferrenhos defensores de um

mundo que está em conflito (mesmo que não dual) fizessem emergir a pluralidade como

disputa necessária para observar se o que colocamos em prática como forma de

condução política e das relações comerciais seja realmente benéfica para todos.

A pergunta de Néstor García Canclini (1995) sobre a quem interessa apregoar o

fim das ideologias ressoa como um desafio a nossa percepção. Canclini declara que a

consolidação desse discurso importa a quem está no poder.

E nas posições de poder se aceita quem se mostrar confiável a um mercado de

diretrizes indicadas por um capitalismo preponderante e abstrato. Logo é um poder sem

face que está acima de um poder cuja face pouco relevância faz que “feição” tenha.

Como aponta Pierre Bordieu, a dominação é exercida a partir de uma complexa conexão

entre diversos agentes, sendo que é a relação entre eles que efetiva tal dominação.

A dominação não é efeito direto e simples da ação exercida por um conjunto de agentes (“a classe dominante”) investidos de poderes de coerção, mas o efeito indireto de um conjunto complexo de ações que se engendram na rede cruzada de limitações que cada um dos dominantes, dominado assim pela estrutura do campo através do qual se exerce a dominação, sofre de parte de todos os outros (BOURDIEU, 1996: 52).

No mundo globalizado, no qual o Ocidente dita as regras do jogo comercial, a

democracia é o sistema político que atua na maioria dos territórios (apesar da China, um

dos atuais líderes econômicos do planeta, ter o regime comunista como vetor político).

Pela democracia, os direitos civis consagraram-se como forma de homens e mulheres

poderem lutar e serem atendidos nas pugnas contra a força esmagadora das instituições

e entidades privadas. Mas a democracia, com o passar do tempo, demonstrou uma

incapacidade penosa de conter a sanha das empresas multinacionais e a ambição de seus

próprios políticos. As frequentes violações de leis nacionais somente aumentam a noção

do esvanecimento do poder dos Estados no que tange ao avanço global de uma

ideologia de mercado. Segundo o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos

(2007: 90), “O problema está em compreender que a democracia é parte do problema, e

temos de reinventá-la se quisermos que seja parte da solução”. E a solução passa pela

compreensão que é preciso criar idiossincrasias que levem a uma democracia não

Page 65: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

63

apenas representativa, mas uma abertura no processo político que comporte o diálogo

constante com os cidadãos, a decisão conjunta sobre investimentos públicos, prestação

de contas transparentes, etc., ou seja, uma relação estreita com a democracia

participativa, que Santos vem chamando de democracia de alta intensidade. Esta forma

de democracia poderá criar condições para que se estabeleça o que o sociólogo

português denomina de solução contra hegemônica.

Todavia, as democracias estão longe de buscar esse aperfeiçoamento.

Infelizmente, com as corriqueiras crises econômicas parece evidente que para o sistema

ideológico que sustenta a globalização a única crise que causa alarde, e que deve ser

contida, é a crise financeira, conforme depoimento de Milton Santos no documentário

de Silvio Tendler. O que deixa problemas urgentes relegados a segundo plano ou como

fonte de votos em pleitos eleitorais – um exemplo está na produção e distribuição de

alimentos que ajudaria a atenuar a fome que assola o planeta.

Um dos problemas relacionados à ideologia, talvez, pertença à ideia do que

podemos fazer coletivamente. Se na democracia a obsessão se refere à garantia dos

direitos individuais, a nossa composição com os outros na busca de preocupações

comuns parece esbarrar na impotência. Bauman observa que nossas crenças não

precisam se ajustar para tecer coerências. Ao falar da questão da liberdade no Ocidente,

ele aponta que as pessoas acreditam não precisar tomar as ruas em protesto e exigência

por mais liberdade, pois, de um modo geral, sustentam a ideia de que possuem liberdade

para se expressarem da maneira que lhes aprouver; mas, por outro lado, acreditamos que

poucos podemos ousar, mudar o estado de coisas como nos apresenta, seja individual,

em grupo ou coletivamente. E que, quiçá, modificá-las seria irracional e despropositado.

Bauman conclui que, “as duas crenças não combinam, mas cultivar ambas não é sinal de

inépcia lógica” (BAUMAN, 2000: 09).

Bauman declara que na modernidade líquida o nível de individuação atingiu tal

ponto que a atuação pública do cidadão ficou comprometida. Há uma “comunicação

esporádica entre os lados privado e público”, mas que sua limitação prejudica

desdobramentos mais incisivos. “Únicas queixas ventiladas em público são um punhado

de agonias e ansiedades pessoais que não se tornam questões públicas apenas por

estarem em exibição pública” (Ibidem: 10). Os eventos de caráter coletivo costumam ser

Page 66: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

64

“os festivais de compaixão e caridade” (Ibidem: 11) e, no exemplo mais drástico, a

explosão de fúria contra um inimigo tornado público.

Hoje percebemos no Ocidente a mobilização pelos mais diversos tipos de

reivindicações, com o auxílio providencial das redes sociais e demais produtos das

novas tecnologias da comunicação, e no Oriente Médio assistimos às lutas para derrubar

os regimes ditatoriais baseados na força militar e na religião que empobrece a população

(impedida de expressar opinião e exigir abertura política) e enriquece governos

despóticos e seus aliados.12 No entanto, não parece ainda evidente que essas situações

gerem uma mudança concreta e paradigmática na relação liberdade individual/força

coletiva. Talvez estejamos num período de transição. Bauman nos lembra de que na

modernidade recente, essas questões depois da agitação se aquietam, e as pessoas

voltam a se dedicar a assuntos rotineiros e as coisas retomam seu estado inicial.

Em outrora o liberalismo era uma ideologia desafiadora e impudente “de grande salto a sua frente”. Hoje é auto apologia da rendição, se reduz ao mero credo de que “não há alternativa”. Esta política louva e promove o conformismo (razão da crescente apatia política) (BAUMAN, 2000: 12).

Zygmunt Bauman discute que a arte da política, algo que a democracia procura,

reside nas formas de desobstruir a passagem que leve a liberdade dos cidadãos, ou seja,

limites que traíssem preceitos convenientes à prática dessa liberdade. Mas, essa mesma

arte, previa a autolimitação, que na verdade, era a limitação do indivíduo gerida pelo

poder.

[...] para capacitá-los a traçar individual e coletivamente, seus próprios limites individuais e coletivos. Esta segunda característica foi praticamente perdida. Todos os limites estão fora dos limites. Qualquer tentativa de autolimitação é considerada o primeiro passo no caminho que leva direto ao gulag, como se não houvesse nada além entre a ditadura do mercado e a do governo sobre as nossas necessidades – como se não houvesse lugar para a cidadania fora do consumismo (BAUMAN, 2000: 12).

12

Sobre A Primavera Árabe, iniciada em 2011, levante popular deflagrado em vários países do Oriente

Médio contra os regimes ditatoriais, ver Dossiê Mundo Árabe, in Revista Cult, n. 156, ano 14, abril 2011, São Paulo: Editora Bragantini, p.p. 20-45.

Page 67: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

65

A noção errônea de suprema liberdade, ou que a liberdade individual agencie

todas as nossas ações, se encaixa perfeitamente na pretensão de uma ideologia de

mercado, pois resvala no conformismo que deveria ser evitado. Bauman defende que a

democracia ronda uma perigosa chance de resultar em conflitos pessoais absurdos se

uma visão de bem comum que proponha soluções coletivas para problemas referentes à

cidadania não for acionada. Se paga um preço elevado quando o cidadão ignora essa sua

função intransferível e permanece cultivando aversão a autolimitação, o conformismo

generalizado e a percepção da política como insignificante. O preço é o da má política,

que, inevitavelmente, resulta no sofrimento humano. “Sofrimento que decorre de

malfeitos políticos e que constitui o supremo obstáculo à sanidade política” (Ibidem:

13).

A maneira mais eficaz de dirimir esse sofrimento é recuperar a ágora, o local de

debate no chamado espaço público. É recriá-lo para discutir a desregulamentação e

privatização do Estado, a insegurança, a incerteza e a falta de proteção e garantias que

formam os principais incômodos da modernidade líquida. E é preciso fazê-lo juntos,

pois como afirma Bauman, “[...] a liberdade individual só pode ser produto do trabalho

coletivo (só pode ser assegurada e garantida coletivamente)” (Ibidem: 15). É o desafio

que se apresenta aos pleiteantes da democratização da democracia.

A tarefa se avulta gigantesca. E pelo simples motivo que manter a vida na

incerteza e definir a nossa posição no mundo como precária mantém a flexibilidade, a

competição, a desregulamentação como bases do mercado. Mas é a incerteza seu

alimento mais nutritivo.

Longe de ser veto à racionalidade do mercado, a incerteza é sua condição indispensável e seu inevitável produto. A única igualdade que o mercado promove é a provação igual ou quase igual da incerteza existencial, partilhada igualmente por vencedores (sempre, por definição, vencedores, “até segunda ordem”) e vencidos (BAUMAN, 2000: 38).

Esse cenário (prodigioso em sua “costura”) promove a separação entre

expectativa de sucesso e a felicidade. O que, de certa maneira, inviabiliza (ou, de algum

modo, contribui) a comunicação concernente à retomada do espaço público. As

Page 68: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

66

angústias e metas da vida de cada um absorvem e limitam as forças que poderiam ser

convertidas para algo além da individualidade. “O mundo contemporâneo é um

recipiente cheio até a borda de medo e frustração flutuantes desesperadamente em busca

de alguma extravasão que um sofredor possa razoavelmente esperar dividir com outros”

(Ibidem: 62), Mas são esses eventos psicológicos e as tentativas de amenizá-los, de dar

conteúdo, revolta ou soluções alternativas que preenchem o foro de exposição pública.

As celebridades, os contraventores, os participantes de reality shows, as pessoas comuns

que vencem tragédias ou escapam da miséria são assuntos dos debates que acabam

dizendo respeito a todos. Eles dão o exemplo para problemas de ordem social,

proporcionam respostas e são lumes para os desesperados. A vida privada invade o

cenário público corroendo os laços entre tribuna e política. Atitudes particulares são

colocadas em discussão e uma moral social, que descreveria os valores de uma

comunidade, perde lugar para as “soluções biográficas”, como lamenta Ulrich Beck. A

política, dessa forma, fica relegada a um intuito escapista de eleger alguém para nos

representar e nos eximir de responsabilidades sobre as decisões que eles tomam.

Um dos grandes estudiosos da cultura, o britânico Terry Eagleton observa como

moralidade e política estão em descompasso atualmente. O que conduz a

problematização da ética, pois ao deixarmos a política de lado até nossa conduta moral

no cotidiano é atingida. “Poder viver uma vida moral, o que significa dizer uma vida

satisfatória, de um tipo adequado para ser humano, depende, em última instância, da

política. Essa é uma das razões de Aristóteles não fazer distinção rigorosa entre ética e

política” (EAGLETON, 2005: 177).

Com a ética posta de lado, a extrapolação do comportamento individual

compulsivo torna-se preocupante. Bauman chama atenção para a inversão do Panóptico

de Jeremy Bentham, que Michel Foucault consagrou como o método de controle da

modernidade no qual poucos vigiam muitos, assim controlando e constrangendo a

atuação das pessoas no espaço privado, o que resultou na disciplina dos corpos e na

efetivação da administração do Estado do que antes dependia da capacidade natural

humana para autovigilância e autorregulação. Porém, essa metáfora sofre uma inversão

na modernidade líquida. Seguindo Thomas Mathïesen13, Zygmunt Bauman aponta que

13

Thomas Mathïesen (1933) é doutor em Filosofia e professor de Sociologia do Direito da Universidade

de Oslo. É considerado o mais notável pensador europeu na área do abolicionismo penal.

Page 69: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

67

hoje muitos vigiam poucos. Agora o novo estágio reflete o Sinóptico. A vida pessoal

virou a obsessão do público. Paparazzis, revistas de fofocas, reality shows. O dito de

Andy Warhol, “que todos têm direito aos seus quinze minutos de fama”, extrapolou-se e

ganhou terreno como aspiração essencial na vida de muitos. Não desejar a fama e não

ter ambição alguma, pelo menos a de um tipo que conta, pode ser fatal. E esse é mais

um desafio para qualquer intenção de resgate relacionado à política com “P” maiúsculo.

[...] com as fontes de virtudes públicas quase inexistentes, só se pode procurar uma razão para os esforços vitais nos exemplos disponíveis de bravura pessoal e recompensas para tal bravura. De modo que vigia de boa vontade, com gosto, e pede em alto e bom som mais coisas para vigiar. Ocultar a vida pessoal à vigilância já não é do “interesse público”. [...] o sinóptico reflete o ato de desaparecimento do público, a invasão da esfera pública pela privada, sua conquista, ocupação e paulatina mas inexorável colonização. Inverteram-se as pressões sobre a linha de divisão/conexão entre o publico e o privado (BAUMAN, 2000: 77).

Uma das perguntas válidas que se pode fazer na atualidade é se as instituições

políticas ainda cumpre seu papel (ou se sofreram uma vertiginosa queda a respeito dele)

de criadores de códigos e agenda. Ou, ainda, se o capitalismo abstrato, que

supostamente devastou a necessidade de ideologias, garante ao mercado o direito de

elaborá-los. Mas é uma situação que pode ser revertida? Talvez com o espaço público

voltando a ser um lugar de engajamento? Bauman acredita que sim e não. Para o

sociólogo não deveríamos pensar o espaço público relacionando-o tão somente às

atribuições das instituições representativas do Estado-nação, pois a sua capacidade para

lidar com as mudanças ocorridas da modernidade para cá com o surgimento de

complexos jogos de poder, milhares de novos personagens e espectadores e exigências

mostram-se insuficientes por permanecerem modelados pelo âmbito local. Avaliando

apenas esse aspecto, a resposta seria não. O drama contemporâneo tem proporções

globais e um espaço público genuíno para lidar com todos os “senões” dessa

globalização precisa engendrar uma política planetária. Deste modo, a resposta seria

sim. Um palco que considerasse que vivemos uma época na qual compartilhamos o

planeta mais do que em qualquer tempo no passado. É preciso reconhecer a

Page 70: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

68

codependência em relação as nossas ações e que elas afetam a todos e que um “palácio

privado” para escapar dessa conexão, apenas adia o cumprimento dessa jornada pela

partilha dos nossos deveres e direitos.

A lógica da responsabilidade planetária visa a, ao menos em princípio, confrontar os problemas gerados globalmente de maneira direita – no seu nível. Parte do pressuposto de que soluções permanentes e verdadeiramente eficazes para os problemas de âmbito planetário só podem ser encontradas e funcionar por meio da renegociação e reforma das redes de interdependências e interações globais (BAUMAN, 2007b: 197).

Tudo o que resultar dessa iniciativa em escala global, que anula a exigência de

soluções locais (abandonadas assim a própria sorte) para problemas gerados pela

economia global, seria uma novidade, um aprendizado, mas uma conduta solidária que

confrontaria a ideia que há “efeitos colaterais aceitáveis” no jogo do livre mercado.

Num mundo híbrido é essencial recuperar o prestígio da política. Ainda mais

para sermos capazes de entender as novas configurações e criações no que tange a essa

hibridação cultural que ocorre. A sua aceitação, combate ou desprezo é de cunho

ideológico. Para o capitalismo tanto faz absorvê-lo ou não. Sempre há formas de lucrar

com ambas as posições. A luta pela convivência entre as culturas, suas rebeliões,

conquistas, já são previstas e adaptadas pelo capitalismo. Como escreve Gilberto Dupas

(2006: 169), “O capitalismo aproveita até os espasmos de rebelião para sua

acumulação”. O capitalismo abstrato nunca perde o que faz com que, invariavelmente,

as pessoas estejam decepcionadas. Seus esforços geram lucro para o sistema que abraça

aquilo que os oprime. A ideia de progresso fornece um elemento decisivo para

fundamentar a adesão à competição instituída pelo capital.

O progresso, assim como hoje é caracterizado nos discursos hegemônicos de parte dominante das elites, não é muito mais que um mito renovado por um aparato ideológico interessado em nos convencer que a história tem um destino certo – e glorioso – que dependeria mais da omissão embevecida das multidões do que de sua vigorosa ação e da crítica de seus intelectuais (DUPAS, 2006: 290).

Page 71: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

69

O progresso foi uma ideia prodigiosa que sancionou a espetacular corrida para

fazer parte dos privilegiados que são “abençoados” com o reconhecimento de seu valor

para a “máquina capitalista”. Então acatamos certas determinações que ocorrem e suas

contradições, contrassenso em nome da unidade que nos conforte. E o capitalismo (leia-

se sociedade) se sustenta com sua capacidade de gerenciar os conflitos em prol dessa

unidade. Slavoj Zizek argumentando sobre a noção de fantasia (exemplificada com a

figura do judeu) e ideologia nos lembra de que há uma visão corporativista da sociedade

que desemboca na consagração da sociedade como um Todo orgânico que representa a

atenuação de antagonismos como consequências reais da sociedade e que embute o

mascaramento de uma perversidade.

[...] “não existe relações de classe”, a sociedade é sempre atravessada por uma clivagem antagônica que não pode ser integrada na ordem simbólica. E o que está em jogo na fantasia ideológica-social é construir uma visão da sociedade que exista, de uma sociedade que não seja antagonicamente dividida, uma sociedade em que a relação entre suas diferentes partes seja orgânica e complementar. [...] um corpo social em que as diferentes classes são assemelháveis a extremidades, cada membro contribuindo para o Todo conforme sua função poderíamos dizer que “a sociedade como corpo constituído” é a fantasia ideológica fundamental (ZIZEK, 1992: 123).

O mundo contemporâneo precisa lidar com essas armadilhas. Ou melhor, precisa

gerar idiossincrasias para percebê-las, combatê-las e classificá-las, para, então, mudá-

las. Mas é uma questão complexa. Os percursos confiáveis de outrora sofreram abalos

consideráveis e os recursos infalíveis já não existem. “Num mundo como este, o

conhecimento é destinado a perseguir eternamente objetos sempre fugidios que, como

se não bastasse, começam a se dissolver no momento em que são apreendidos”

(BAUMAN, 2010a: 45).

A busca do conhecimento se efetiva como uma “luz no fim do túnel” para

compreender esses mecanismos do funcionamento da lógica do capital, para tentar

desobstruir a noção de capital e mercado manter uma parceira que almeja uma

dominação duradoura.

As políticas do Estado capitalista, ‘ditatorial’ ou ‘democrático’, são construídas e conduzidas no interesse e não contra o interesse dos mercados;

Page 72: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

70

seu efeito principal (e intencional, embora não abertamente declarado) é avaliar/permitir/garantir a segurança e a longevidade do domínio do mercado (BAUMAN, 2010a: 31).

“As Invasões Bárbaras” (2003), do cineasta canadense Denys Arcand, retratou a

decepção com o fracasso das ideologias que prometiam um mundo mais justo,

principalmente, depois de Maio de 1968, mas que culminaram na revelação de aspectos

totalitários ou contaminados pela burocratização dos arranjos institucionais. Velhos

amigos se reúnem para acompanhar os últimos dias da vida de Rémy, um intelectual

socialista, que, além de viver a derrocada das ideologias, ainda, lida com as fragilidades

dos laços afetivos constituídos com o filho, que trabalha no coração do capitalismo

londrino. O filme nos apresenta como uma estrutura política apodrecida corrompe todas

as esferas sociais. A ineficiência das instituições facilita o devoramento pelo capital das

instâncias que deveriam preservar a ética. Assim como das próprias pessoas. O

resultado é a hipostasiação das relações triviais e de suspensão da ética em nome do

triunfo do capital. “As Invasões Bárbaras” efetua uma tocante denuncia dos problemas

contemporâneos: a falta de perspectiva política, corrupção, a insuficiência do Estado, o

colapso das ideologias, a incomunicabilidade etc. Arcand deixa para o final uma

inspirada fomentação de uma “utopia” que é depositada na aquisição de conhecimento.

Na figura de Nathalie (filha de uma amiga de Rémy), que tenta se livrar do vício em

drogas, Arcand planta a semente de que nos livros e nos que eles nos revelam pode estar

a saída para iniciar a resistência ao capital e as angústias modernas, mesmo que, em

princípio, particular. Como escreve Bauman (2007b: 167), “Precisamos da educação ao

longo da vida para termos escolhas. Mas precisamos delas ainda mais para preservar as

condições que tornam essa escolha possível e a colocam ao nosso alcance”.

2.3. A porosidade e o acirramento das fronteiras: um jogo de contradições

Page 73: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

71

Uma das obsessões da sociedade moderna líquida se baseia na redução do

espaço, e reduzi-lo significa ultrapassar de um ponto a outro o mais rápido possível. Se

a modernidade sólida praticava a defesa do território acima de todas as conjugações

efetivas de poder constituindo uma lógica do “dentro” e do “fora” para instaurar uma

rigorosa vigilância sobre as fronteiras, além de conciliar tamanho e eficiência,

justificando, desse modo, seu caráter expansionista, sua versão líquida demoliu a noção

de espaços instransponíveis. O tempo pulverizou-se com o advento do capitalismo

“leve” tornando o espaço frágil.

A mudança em questão é a nova irrelevância do espaço, disfarçada de aniquilação. No universo de software da viagem à velocidade da luz, o espaço pode ser atravessado, literalmente, em “tempo nenhum”; cancela-se a diferença entre “longe” e “aqui”. O espaço não impõe mais limites à ação e seus efeitos, e conta pouco, ou nem conta (BAUMAN, 2001: 136).

O tempo se equipara a instantaneidade. Senão realmente, ao menos na aparência.

Podemos nos encontrar a milhares de quilômetros de casa, mas uma ligação de celular

ou uma conversa pela webcan nos coloca próximos dos que estão distantes. Se, nesse

caso, a falta de “presencialidade” não é rompida, a tecnologia de fibra óptica nos dá a

oportunidade de viver uma vida nômade sem deixar de aplacar a saudade sempre que

possível. “O tempo não é mais o ‘desvio na busca’, e assim não mais confere valor ao

espaço. A quase instantaneidade do tempo do software anuncia a desvalorização do

espaço” (Ibidem: 137).

O tempo retrátil e o espaço depreciado favorecem a circulação de mercadorias e

oferece tanto uma padronização dos bens culturais quanto uma hibridização dos gostos e

desejos dos consumidores espalhados pelo planeta.

Canclini pondera que há demasiado produtos em oferta. Tudo segue o sistema

hegemônico do capital. Aquilo com que nos deparamos na rua é o que a televisão

reproduz espelhando a publicidade comercial e os lemas políticos. Estabelece-se uma

forte relação na qual um traduz o “eco” da outra.

O mercado reorganiza o mundo público como palco do consumo e dramatização dos signos de status. As ruas tornam-se saturadas de carros, de pessoas apressadas para cumprir obrigações profissionais ou para desfrutar uma diversão programada, quase sempre conforme a renda econômica (CANCLINI, 2003: 288).

Page 74: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

72

Devemos recuperar a fala de Milton Santos de que as fronteiras se compactuam

e se “postam” como permeáveis quando se trata do trânsito de mercadorias e serviços.

Para o capitalismo abstrato, a resistência das fronteiras em relação à produção mercantil

e o bloqueio ao avanço da tecnologia de comunicação não é um negócio interessante. É

mais fácil o capitalismo punir países recalcitrantes que os Estados obterem vantagens ao

burlar ou contestar regras estipuladas pelo livre mercado. Milton Santos aponta que o

sistema ideológico que sustenta a globalização não se interpõe às barreiras brutais que

são colocadas para bloquear o fluxo de pessoas que se lançam em busca de veredas mais

promissoras que àquelas que habitam; e até espera que os Estados ajam de forma

enérgica para coibir esse tipo de trânsito. Segundo Renato Ortiz (2006), a violência na

ordem do século XXI não se expressa no monopólio territorial, mas numa diluição das

fronteiras que atingiu até os Estados Unidos pós 11 de setembro de 2001.

A globalização corresponde ao que comumente chamamos (usando uma figura

de linguagem) de “faca de dois gumes”. Ao mesmo tempo em que as fraturas da miséria

ficam mais expostas a um movimento nacionalista, justificada no suposto aumento do

desemprego e da criminalidade que a migração traz aos países que recebem o êxodo

humano que atravessa os continentes, temos uma maior abertura para a aceitação de

modos de vida distintos do regular. A tradição sofre fissuras e acomoda reivindicações

de liberdade de expressão, de manifestação religiosa, de opção sexual e os encontros

culturais e absorções de elementos de uma cultura por outra engendram a hibridação

que se tornou perceptível em um mundo em transformação. Tais mudanças geram

reações de todo tipo. Anthony Giddens discute a relação entre influência e a emergência

de novos costumes. O que ocasiona uma disputa discursiva que resulta em ações

pontuais entre um comportamento cosmopolita e um posicionamento fundamentalista.

No primeiro, a abertura para um provável estágio híbrido da humanidade, de identidades

flutuantes e, no segundo, uma defesa enfática da tradição. Ocorre um choque que instiga

a discussão acerca da porosidade das fronteiras.

A luta entre dependência e autonomia está num polo da globalização. No outro está o embate entre uma perspectiva cosmopolita e o fundamentalismo. Poderíamos pensar que o fundamentalismo sempre existiu. Isso não é verdade – ele surgiu em reposta às influências globalizantes que vemos por todos os lados à nossa volta.

Page 75: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

73

[...] O fundamentalismo é um filho da globalização, e reage contra ela ao mesmo tempo em que a utiliza. Em quase toda a parte os grupos fundamentalistas fizeram um amplo uso das tecnologias de comunicação (GIDDENS, 2007: 56-59).

Pode-se notar que no mundo globalizado as formas de agir estão imbricadas com

as estratégias do adversário ou daqueles que se quer convencer. Esse é um aspecto

inusitado da globalização e que resvala num entendimento de que sustentar noções

muito rígidas é correr o risco de ser contraproducente.

No entanto, a premissa de que a abolição de fronteiras concernente ao livre

mercado e a competição favorecerá, em longo prazo, a redução às restrições ao tráfego

de livre de homens e mulheres enseja um engodo, pois encobre que a tecnologia, a

especialização do trabalho, a exigência de sofisticação educacional individual acarretará

num aumento do desemprego, no encolhimento do mercado de trabalho ou, pelo menos,

em número de pessoas qualificadas para ele. Além dos postos de trabalho que serão

fechados pela automatização do serviço. É preciso ter em pauta políticas públicas que

amenizem os impactos dessa escalada de contrariedades, o que supõe, como mal maior,

o acirramento da vigilância nas fronteiras. Bauman alerta que no mundo atual os ricos

parecem não necessitar dos pobres. Se antes uma “reserva de mão-de-obra” era ponto

pacífico, hoje uma massa de excluídos vaga em busca de assistência. As fortunas da

modernidade líquida se fazem virtualmente, dispensando populações inteiras que se

estigmatizam como “redundantes”.

A mentira da promessa do livre comércio é bem encoberta; a conexão entre a crescente miséria e desespero dos muitos “imobilizados” e as novas liberdades dos poucos com mobilidade é difícil de perceber nos informes sobre as regiões lançadas na ponta sofredora da “glocalização” (BAUMAN, 1999: 80).

Bauman nos lembra que o enriquecimento da elite extraterritorial e sua

mobilidade têm implicação direta com o empobrecimento dos miseráveis, e no seu

sedentarismo, privados de liberdade para se mover. A globalização, até o momento, não

resolveu esse desajuste, e está longe de uma solução quando assistimos ao Sudão, à

Somália e a Bangladesh enfrentarem antigas e novas mazelas. E vítimas neófitas

Page 76: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

74

também se encontram na classe média mundial, que ao apelar a empréstimos e ao

crédito bancário facilitado se afogam nos juros e na especulação praticada pelos grandes

financistas (crise econômica estadunidense de 2008).

Esse cenário desolador exige que raciocinemos a respeito de que condições nos

trouxeram a esse ponto iluminado e sombrio, repleto de possibilidades e escassos em

saídas coletivas, belo e brutal, ou seja, que incorpora paradoxos sem ao menos

intencionar elucidar suas evidentes oposições.

É preciso observar a qualidade dos jogadores, não apenas no mercado, mas as

atitudes das pessoas no cotidiano e fazê-las notar que suas decisões e seus gestos afetam

a regra do jogo. E, nos revela Eduardo Giannetti, condiciona a economia e seu humor, o

que produz um resultado político que não pode ser ignorado.

Tanto a constituição econômica vigente quanto o exercício da cidadania na vida prática dependem de um processo de formação de crenças e sentimentos morais sobre o qual muito pouco se sabe de um ponto de vista científico. Uma coisa, no entanto, parece certa: negligenciar esse processo e as variações a que ele está sujeito é perder de vista um dos fatores decisivos na explicação das causas da riqueza e da pobreza das nações (GIANNETTI, 2007: 199).

Quando o que parece imperar é um enriquecimento vertiginoso de poucos e o

agravamento da situação de penúria de homens e mulheres sacrificados à miséria pelo

capitalismo abstrato, que não participa de um processo de formação de crenças e

sentimentos, como falar em fronteiras e em justiça social? A elite extraterritorial

provavelmente não se torna melancólica por causa dessa questão. Seu espírito nômade

está concentrado nos planos de viagem.

A modernidade líquida constitui-se como uma era que define o fluxo como

característica primordial. A garantia de um correr incessante é uma espécie de afã

contaminado pela incerteza. Para os migrantes do mundo líquido, seguir tal promessa

não é apenas uma aposta arriscada, mas, também, um “tiro no escuro” que pode se

deparar com a prisão, com a xenofobia, com condições de moradia precária e uma vida

subalterna. Para esses, as fronteiras não parecem deslizantes e nem o discurso das

oportunidades que resplandecem alhures tem voz tranquilizadora.

A película “Babel” (2006), coprodução Estados Unidos e México, dirigida por

Alejandro Gonzáles Iñarritu, é a obra da cinematografia atual mais instigante no que se

Page 77: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

75

refere aos problemas contemporâneos. Babel pode ser alusão à imensa torre construída

pelos homens para atingir o céu e que foi sumariamente destruída por Deus que, em

seguida, dividiu a comunicação oral de homens e mulheres em diferentes línguas.

“Babel” explora não somente a incompreensão linguística decorrente dessa

comunicação necessária, mas as tentativas de superá-las. Contudo, o ponto crucial de

“Babel” está na discussão acerca das diversas fronteiras que se estabelecem a partir das

criações humanas e da aceitação ou da recusa do diálogo. “Babel” explora os conflitos

concernentes às fronteiras geográficas, às fronteiras da relação entre o comportamento

controverso e os preceitos da religião, às fronteiras entre a raiva e a busca da paz de

espírito, às fronteiras entre o dever e a felicidade, às fronteiras entre o preconceito e o

temor da abertura ao diferente, às fronteiras da relação entre o turista e o nativo, às

fronteiras entre política de segurança e a vida humana.

“Babel” confere vitalidade e uma contundente crítica às fronteiras globais que

não diminui o atrito comunicacional, pois o desprendimento necessário de nossos

valores que enviaria sinais para o outro de nossa disposição em efetivar uma troca de

experiência não ocorre. Fica evidente que as tecnologias de comunicação promoveram

uma sensível “independência” do tempo e reduziram o espaço para que uma fotografia

seja enviada do Marrocos para o Japão para auxiliar no esclarecimento de um grave

caso de ferimento à bala. Mas a questão das fronteiras geográficas permanece um

grande tabu e motivo de orgulho para uns (devendo ser defendida contra invasores) e

revolta para tantos outros (e também de esperança para os postulantes a uma vida

melhor).

A babá mexicana que se vê obrigada a levar os filhos dos patrões estadunidenses

para Tijuana, a fim de assistir ao casamento do filho, conhecerá o tratamento distinto

que recebe quem sai dos Estados Unidos para o México daquele que faz o caminho

inverso, do México para os Estados Unidos (mas, lembrando que em ambos os casos, o

que conta é a suspeita que lançam sobre quem está próximo a romper a fronteira). A

experiência cultural vivida pelas crianças no México se transforma em trauma perante o

fato de se encontrarem perseguidos, perdidos e vitimados pela insolação no deserto do

Arizona. A revista necessária na guarita de segurança, no retorno aos Estados Unidos,

reflete o preconceito e a desconfiança já instaurada no procedimento policial. A ida ao

México fora durante o dia, à volta na alta madrugada. O que faz aumentar o grau de

suspeita. Se algo parece suspeito, deve ser como é. Esse parece o lema que ecoa. O sinal

Page 78: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

76

lançado pode ser “não atravesse se não tem permissão”, além do mais com duas

crianças brancas no banco traseiro do automóvel. E outras coisas que podem cair na

ilegalidade. Um duro ensinamento aprendido a base da censura constante e da não

concessão de perdão. “É a proibição de movimento, mais do que a frustração de um

efetivo desejo de mudar, que torna essa situação especialmente ofensiva. Estar proibido

de mover-se é um símbolo poderosíssimo de impotência, de incapacidade e dor”

(BAUMAN, 1999: 130).

“Babel” nos atinge com o efeito dominó da globalização, como um caso

ocorrido no Marrocos, envolvendo cidadãos estadunidenses, causa alterações na vida de

homens e mulheres em quatro países que estão localizados em continentes diferentes

(América, Ásia e África). A fronteira se compacta a ponto de forçar a relação direta ou

indireta entre as pessoas. No entanto, não se trata de fronteiras porosas, são barreiras

que sinalizam contradições, que encolhem, mas comprimem.

“Babel” é a síntese de um “caldeirão” de referenciais e paradoxos que caminha

em seu estágio de integração, discursos e ações que rebatem ou reiteram tais afirmações.

Um mundo, ainda de incompreensões linguísticas, cujas fronteiras se friccionam

expondo danos não solucionados do capitalismo voraz e da incerteza.

A antropologia foi uma das primeiras ciências a transpassar o conceito de

fronteira. Um duplo movimento de “violação”: o olhar in loco (rompendo o espaço)

lançado para as culturas por meio da investigação que ousou fugir do gabinete e do

etnocentrismo e a aplicação de outras disciplinas no método de apreensão desses

mundos, praticamente abolindo o fosso entre elas. As viagens de Bronislaw Malinowski

e do estruturalista Claude Lévi-Strauss e a engenhosidade de Fernando Ortiz foram

iniciais tomadas de posição que confluíram para um esboço de compreensão que tentava

fugir da unilateralidade e dos julgamentos apressados quando do contato cultural. A

antropologia se esmerou para traduzir as mudanças e os atritos dos fluxos culturais

globais que pareciam alterar a configuração de um mundo aferrado as suas identidades

locais e a defesa de suas qualidades nacionais ou comunitárias. A emergência de um

mundo híbrido que se moldava num transnacionalismo conduziu a um estudo e

cunhagem de termos que abarcassem esses eventos seminais. Ulf Hannerz admite o

caráter provisório de tais concepções e aponta a necessidade de depurar suas

proposições.

Page 79: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

77

As palavras-chave da antropologia transnacional nas quais concentrei meus comentários são “fluxos”, “limites” e “híbridos”. [...] essas noções são metafóricas, de certo modo provisórias, talvez um pouco imprecisas e ambíguas, e por isso mesmo sujeitas a contestações. Tais palavras chamam a atenção quando examinamos com novos olhares o mundo que nos cerca, porque parecem proporcionar uma percepção imediata de alguma qualidade essencial do que quer que esteja tratando. É possível que as metáforas não tenham muito a ver com um “ponto de vista nativo” (embora alguns nativos possam gostar delas quando as encontram, outros não) (HANNERZ, 1997).

Hannerz aponta, ainda, a importância de detectar as ambiguidades desse

processo, mas que a mistura, a hibridação está contida (na) e contém a globalização.

Mas nos lembra de que o mundo não se harmoniza numa igualdade reconhecida.

Examina que há um luta que comporta um jogo. E que, no mundo que se hibridiza em

seus “fluxos” constantes, muitas pessoas pensam na defesa de seus modos de vida e na

pureza de suas relações culturais. O que sustenta focos de conflitos e aberturas na

modernidade atual.

Canclini nos recorda que os movimentos antiglobalização pautados em temas

que procuram unir temas comuns que celebrem a diferença, como a ecologia, a defesa

das minorias, a defesa das produções locais, a crítica às leis de mercado que prejudicam

os países pobres, a luta pela igualdade sexual, ensaiam a aliança entre essas diferenças

culturais ou religiosas, e partem do pressuposto de que tal alteridade é a garantia de um

futuro prodigioso. Por outro lado, Canclini observa que essas manifestações que

procuram o nascimento da alteridade, “mais que resolver põe em evidência as

dificuldades que persistem quando se quer articular diferenças, desigualdades,

procedimentos de inclusão-exclusão e as formas atuais de exploração” (CANCLINI,

2005: 53).

Arjun Appadurai, em seu ensaio sobre a geografia da raiva, nos revela que um

dos problemas que está relacionado à fronteira que sofre distensão, e favorece a

migração legal ou não, é o horror que a maioria nutre as formas como as minorias

podem se infiltrar na cultura hegemônica e modificá-la. Um temor ilógico que tenta

justificar-se pela defesa dos valores nacionais. Uma conduta que está na extremidade a

um posicionamento referente à globalização que a percebe como possibilidade de

integrar agendas comuns, aspirações a um mundo mais justo e transnacional no qual a

Page 80: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

78

hibridação cultural é a aposta que se depara com os riscos, as contradições e os

obstáculos a serem enfrentados.

Os novos ativismos transnacionais têm mais espaço para construir solidariedade a partir de pequenas convergências de interesses e, embora possam também invocar grandes categorias, como os “pobres urbanos”, para construir seus programas, constroem suas verdadeiras solidariedades de modo mais específico, lógico e sensível ao contexto. Eles estão, assim, desenvolvendo uma nova dinâmica em que as redes globais são postas a serviço de entendimentos locais de poder (APPUDARAI, 2009: 100).

Na modernidade líquida, esse panorama de conflito entre nacionalismos

dogmáticos e alteridades emergentes está longe de encontrar uma resolução que atenue

a tensão. Diferentes das disciplinas científicas que já comportam uma interrelação mais

significativa, as fronteiras geográficas são palcos de disputas que o capitalismo abstrato

não pretende considerar nem por em debate. Bauman nos faz recordar que tal recusa

para perceber a intensificação desses confrontos, concernentes a mais ou menos

vigilância nas fronteiras, ocasiona não o fortalecimento dos laços, mas sua dissolução.

Um inimigo ardiloso que fomenta acréscimos à incerteza da sociedade moderna líquida.

CAPÍTULO III

A fragilidade dos laços humanos: da aparente felicidade ao vazio contemporâneo

Page 81: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

79

O sociólogo britânico Norbert Elias, ao discutir a relação indivíduo-sociedade,

nota que uma das pré-condições que separa o homem dos outros animais, no que se

refere aos vínculos que os liga aos da espécie, é a sua capacidade de maleabilidade e

adaptabilidade e que tal habilidade faz parte de uma “historicidade fundamental da

sociedade humana” (ELIAS, 1994: 37), denotando, dessa forma, que o indivíduo

contribui para constituir a sociedade a qual pertence ao mesmo tempo em que se adapta

ao ambiente em que vive. Estabelece-se uma relação de “reciprocidade”. Zygmunt

Bauman examina o mérito de Elias em escapar da tradição alicerçada por Thomas

Hobbes, que passa por Stuart Mill, entre outros, de contrapor o indivíduo à sociedade. A

relação de oposição ou de sobrevivência recebe de Elias um tratamento de mutualidade,

cuja permuta se mostra fundamental.

[...] Elias substitui o “e” e o “versus” pelo “de” e, assim, deslocou o discurso do imaginário das duas forças, travadas numa batalha mortal mas infindável entre liberdade e dominação, para uma “concepção recíproca”: a sociedade dando a forma à individualidade de seus membros, e os indivíduos formando a sociedade a partir de suas ações da vida, enquanto seguem estratégias plausíveis e factíveis na rede socialmente tecida de suas dependências (BAUMAN, 2001: 39).

A modernidade foi a fase que engendrou a noção que o conjunto de habitantes

que formavam uma comunidade (cuja ideia se afigurava universal) era composta por

indivíduos. Uma relação bilateral diária de encenação contínua na qual o indivíduo se

libertou dos severos constrangimentos de exercer uma vida estritamente dependente dos

preceitos comunitários e deve, por outro lado, zelar pela consolidação de todo aparato

constituinte da sociedade. A autonomia pessoal gerava atritos com as obrigações sociais

dispostas para ser obedecidas. Nasce uma ambivalência significativa no “parto” da

modernidade. Um choque entremeado pelos desejos de sujeitos unos e as concessões

necessárias para o convívio social. Mas, o indivíduo na modernidade sólida somente era

caracterizado e entendido como tal no seio da sociedade. E o projeto moderno,

justamente, era pôr fim a ambivalência fazendo com que uma postura racional fosse

implantada e reconhecida como preponderante. E o sujeito livre não estava fora dessa

Page 82: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

80

equação. Por mais que essa “relação bilateral” precisasse de uma encenação

intermitente, o que se visava era a estabilidade, a possibilidade de erigir certa

previsibilidade que tornasse evidente e efetivo a ordenação racional das sociedades.

Regulamentação e ações coletivas (um Estado forte responsável por essas medidas) da

racionalidade para fomentar a eliminação de qualquer dubiedade a respeito da aplicação

do projeto modernizador.

Mas a estruturação e a manutenção da ordem – a estruturação da condição humana – eram, agora, depois do colapso da rotina auto-representativa pré-moderna, uma dessas questões que clamavam pelo controle humano. A ideia de “estrutura” se refere à manipulação de probabilidades; um cenário é “estruturado” se determinados eventos são mais prováveis do que outros, se alguns outros são muito improváveis e se a hierarquia de probabilidades permanece relativamente constante. Por fim, manter a ordem nas questões humanas se reduz a aumentar a probabilidade de um tipo de comportamento e diminuir ou eliminar a probabilidade de outros tipos de comportamento. Se esse é bem-sucedido, o decorrer dos eventos pode se tornar previsível, e as consequências das ações, calculáveis; pode se tornar possível, em outras palavras moldar o futuro de antemão (BAUMAN, 2008a: 86-87).

A pretensão não estava depositada na antecipação de acontecimentos, mas pelo

cálculo construir os fatos que gerariam o futuro racional, o que propiciou um alto

investimento na ciência. Para isso, a individualização que se implantava precisava da

esfera pública como palco de sua corroboração e expressão. A regulamentação previa o

controle desse espaço público que, assim como os eventos, deveria se tornar previsível.

Desse modo, soma-se às descobertas científicas e ao desenvolvimento tecnológico uma

ordenação e estabilidade social. A individualização acarretou um esforço para se

encaixar no novo padrão de comportamento alardeado como civilizado. O rompimento

com as tradições religiosas, aos menos com os dogmas mais arraigados que viam toda

ocorrência natural e feitos humanos como manifestação da Providência Divina, e com

as superstições próprias da pré-modernidade, jogavam o período anterior inteiramente

na condição de incivilizado e irracional.

A individualização surgia como um destino. Um estado irrecusável, de

constituição irrefutável que se erguia sobre os decadentes “sólidos” pré-modernos novos

“sólidos” cunhados pela asseveração de conceitos indestrutíveis. Era um mundo ditado

por regras rigorosas, inescapáveis apenas pelo uso da própria racionalidade que enredara

Page 83: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

81

a todos em sua “teia”. O uso instrumental da razão se sobrepõe aos outros usos

potenciais. Nesse cenário, a individualidade ficara a mercê de uma propensão coletiva

das necessidades humanas.

As privações “se somaram”, por assim dizer, e se congelaram em “interesses comuns” – e foram vistas como tratáveis apenas por um remédio coletivo: “o coletivismo” foi uma estratégia atraente para aqueles que estavam do lado receptor da individualização, mas que se viam incapazes de se autoafirmar como indivíduos por meio de seus próprios e escassos recursos (BAUMAN, 2008a: 64).

Esse mesmo cenário não solapou a ideia de autoafirmação. A ambivalência que

deveria ser afastada se instalou no cerne da modernidade, proliferando a visão de uma

fenda entre o individual e o coletivo, uma comissura entre os mencionados desejos de

sujeitos unos e as concessões que todos precisavam ceder em nome da harmonia

racional do convívio social. O conflito estava instaurado. Como nos lembra Allan

Mocellim, em seu artigo “Simmel e Bauman: modernidade e individualização”, “O

grande problema da modernidade foi, para Bauman, a suposição de que a ação política –

e técnica – racionalmente orientada poderia eliminar toda a contradição do mundo. No

entanto a incerteza e a contradição são constitutivas de toda ação” (MOCELLIM, 2007:

116).

A ambivalência que seria combatida objetivamente redundou em dúvidas e

paradoxos que foram sentidos de maneira subjetiva, apesar de uma sensação que se

generalizou afetando a estrutura de um mundo supostamente estável.

A condição moderna sólida de marcha para um destino seguro de progresso das

instituições, criações e vida humana (um das ideias centrais da modernidade) estava

abalada. A individualização tornou-se cada vez mais aguda. A sonhada autonomia de

homens e mulheres atingiu um ponto em que extrapolou a ideia de emancipação

intelectual efetivada em prol da sedimentação das necessidades sociais. A prioridade

passou a ser a autoafirmação individual. As circunstâncias do mundo abarcavam a

desregulamentação e a privatização do espaço público, insegurança e instabilidade em

relação às construções racionais de um Estado provedor das necessidades de seus

membros, de instituições seguras e projetos de vida infalíveis. O mundo se expandia,

comprimiam-se as distâncias entre um ponto e outro do mapa mundi e se assistia ao

Page 84: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

82

poder torna-se abstrato. A individualização pareceu um propósito impossível de se

desviar.

Não nos enganemos: agora, como antes, a individualização é um destino, não uma escolha: na terra da liberdade individual de escolha, a opção de escapar à individualização e de se negar a participar no jogo individualizante não faz parte, de maneira alguma da agenda. O fato de homens e mulheres não terem ninguém para culpar por suas frustrações e problemas não significa, agora mais do que no passado, que eles possam se proteger contra a frustração usando suas próprias utilidades domésticas, ou furtar-se dos problemas, como o Barão de Munchhausen, puxando-se pelas alças das botas (BAUMAN, 2008a: 64).

O peso dos fracassos e erros, das resoluções que tendiam a encontrar o porto

seguro do êxito, mas que acabaram em frustração, o problema de saúde, a falta de forma

física, a estafa mental, o ataque de nervos são considerados produtos da inabilidade de

homens e mulheres para colocar em prática e de maneira efetiva seu direito individual

de escolha. Essa, ao menos, se tornou a crença da modernidade líquida. O número de

opções a disposição resultou na individualização dos acertos e falhas. O indivíduo toma

o primeiro plano. A responsabilidade é sua, assim como lidar com as consequências fica

a seu cargo: a incerteza, a insegurança e a falta de garantias. Como nos aponta Bauman,

citando Ulrich Beck, “a forma como se vive se torna uma solução biográfica para as

contradições sistêmicas”. Toda a produção social de riscos e contradições que nos afeta,

com a construção de um mundo sustentado pela adaptação à flexibilidade, à dinâmica

das exigências de mercado, à incerteza devem (parece nos convencer os agentes do

mundo em descontrole) ser resolvida pelo próprio indivíduo, é o seu dever encontrar

saídas para as encruzilhadas que surgem no percurso.

A modernidade líquida contempla em seu arcabouço uma série de conflitos,

divergências e questões que estão no cerne das angústias contemporâneas. Alguns temas

que poderiam, anteriormente, causar (ou carregar uma semente) de esperança, hoje, são

periclitantes. O consumo como prática de formação identitária revela um problema em

relação à identidade que está além dos problemas de fronteira e aceitação em grupos de

identificação; a política-vida (aquilo que as pessoas devem fazer por si mesmas, cada

uma por si, já que há a desregulamentação e privatização das instituições aos quais elas

Page 85: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

83

poderiam recorrer) substituindo a política da organização social (a política com “P”

maiúsculo); a individualização crescente que esbarra na necessidade de pensar o mundo

global como não separado de cada ação humana. Esses são apenas uma série de

problemas que denotam a fragilidade dos laços humanos, um amor líquido, que afeta os

homens e mulheres no seu cotidiano gerando ansiedade, deslumbramento ou

indiferença, mas, obviamente, aumentando a incerteza da vida em constante movimento.

3.1. Laços construídos, laços dissipados

A modernidade líquida enseja uma sucessão de escolhas que obstrui qualquer

pretensão de solidificação, seja de enraizamento numa comunidade ou a estabilidade no

local de trabalho. Não que as pessoas sejam obrigadas a seguir o curso de uma vida na

qual serão punidas se acaso se firmarem em algum lugar, mas são estimuladas a se

movimentar à procura de sucesso e promessas de uma felicidade que está sempre à

frente à espera no próximo ponto.

O sociólogo Richard Sennett aponta que as relações pessoais e familiares são

afetadas pela dinâmica exigida no trabalho pelo novo capitalismo. Compromissos,

convicções e lealdade são prescrições de um mundo que precisa de tempo para propagar

tais virtudes. Elas pertencem à esfera das coisas que necessitam de prazo para serem

efetivadas. Mas na contemporaneidade esse aspecto foi dirimido e o curto prazo passou

a ser uma exigência, um sintoma da fragilidade dos laços construídos, juntamente com

ideais como o de família, de comunidade, de ascensão no emprego etc.

No mundo atual, os atributos cobrados no trabalho desassociam-se da constância

e da reciprocidade dos compromissos que acompanham (ou deveriam/poderiam) a

família. A inconstância, a perda da razoabilidade no que concerne aos compromissos

mútuos e de uma pretensa afetividade àquilo a que nos encarregamos e denominados

como profissão adentrou os lares, tornando-os locais de transição, de pousada, onde a

relação pais e filhos sofre a consequência da falta de tempo, da falta de prática no

contato humano, do dinamismo voraz que prega a velocidade e a leveza como itens

centrais a ascensão na sociedade moderna.

Page 86: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

84

Esse conflito entre família e trabalho impõe algumas questões sobre a própria experiência adulta. Como se podem buscar objetivos do longo prazo num sociedade de curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos? As condições da nova economia alimentam, ao contrário, a experiência com a deriva do tempo, de lugar em lugar, de emprego em emprego (SENNETT, 2009: 27).

O mundo contemporâneo gera a impressão de uma encruzilhada. Parece

engendrar dicotomias ou oposições que não podem ser críveis de uma dialética que as

apazigue: sucesso versus afetividade, objetivo versus reflexão, dinamismo versus

compromisso. O capitalismo, como sugere Sennett, resulta em uma corrosão do caráter.

Instala uma preocupante contradição entre os desafios do trabalho atual e o desejo de

pertença comunitária e dos laços familiares.

Sennett, em A corrosão do caráter: consequências pessoais do novo

capitalismo, cita o caso de Rico, um dos entrevistados de sua pesquisa, sobre o

comportamento flexível pregado no recente capitalismo. Rico alimenta a vontade de

consolidar relações sociais perenes e de ser um pai mais presente, que eduque aos filhos

transmitindo a importância da solidez dos objetivos, do compromisso, da ética e do

afeto. Mas a competição que se estabelece no cotidiano do trabalho, no qual assumir

risco recebe tópicos específicos de alegação de urgência e comportamento flexível,

dilapida aos poucos qualquer possibilidade de um liame pleno entre o trabalho e a

aspiração a fixar-se nele e deformando o vínculo que poderia ser afável entre casa e o

trabalho que se exerce. No mundo atual instituir valores que formatem uma unidade

entre os âmbitos nos quais circulamos (casa, residências de amigos, eventos sociais, de

lazer etc.) e entre nossas experiências (de trabalho) tornou-se uma tarefa árdua, que

diante da dificuldade esbarra na obsessão ou na indiferença. Por mais que se deseje um

ordenamento em relação às coisas que nos cercam (família, comunidade, trabalho, lazer,

sonhos) criar idiossincrasias para efetivá-lo pareceria contraproducente na competição

para pertencer ao grupo dos bem-sucedidos. Sennett, ao falar de Rico, constata o drama

em se executar parâmetros de atuação que concilie valores que agregam uma vida

familiar/comunitária e a luta por espaço no mercado de trabalho.

Page 87: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

85

Todos os valores específicos (...) são regras fixas: o pai diz não; a comunidade exige trabalho; a dependência é um mal. As incertezas das circunstâncias estão excluídas dessas regras éticas – afinal, é das incertezas aleatórias que Rico quer se defender. Mas é difícil pôr em prática essas regras atemporais (SENNETT, 2009: 29).

A incerteza passa a ser uma sensação avassaladora e que pode, se não houver

resistência a ela, desembocar na corrosão do caráter. “O que é singular hoje é que ela

existe sem qualquer desastre histórico iminente; ao contrário, está entremeada nas

práticas cotidianas de um vigoroso capitalismo” (Ibidem: 33).

A produção cinematográfica “Tempestade de Gelo” (1997), dirigida por Ang

Lee, adaptação do romance homônimo do estadunidense Rick Moody, publicado em

1994, foca atenção sobre famílias residentes em New Canaan, no Estado de

Connecticut, nos anos 70 do século XX. A película aborda através das relações

familiares, no Dia de Ação de Graças, o desmoronamento das tradições que amarram

família, casa e laços comunitários; desmoronamento este propiciado pela revolução de

comportamento advinda da contracultura do final da década de 60. No entanto, o sonho

hippie de liberação sexual se choca com a emergência dos yuppies que abarca o desejo

de conquista social com um latente vazio existencial. Numa das famílias, a Carver, há o

pai ausente do convívio familiar por decorrência das viagens de trabalho que o obriga a

se deslocar constantemente para outras cidades. A sua relação com os filhos sofre de

uma incomunicabilidade lacerante. Não existe diálogo, nenhum feixe penetra a barreira

do descontentamento, expiado apenas em respostas monossilábicas referentes às

perguntas banais. A transmissão de valores perde-se diante de uma ausência que não

encontra elementos para ser superada.

Vistas de fora as famílias retratadas em “Tempestade de Gelo” poderiam ser

definidas como felizes: belas casas, filhos na escola, trabalhos que remuneram bem.

Mas o verniz da fachada não resiste ao leve toque dos dedos. Zygmunt Bauman nos

lembra de que coisas desagradáveis nos ocorrem e, geralmente, são imprevisíveis,

ocasionalmente nos pegam despreparados e a aparência de felicidade ganha contornos

incômodos.

Mesmo as vidas das pessoas mais felizes (ou, segundo a opinião comum e um tanto contaminada pela inveja dos infelizes, as mais sortudas) estão longe de

Page 88: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

86

serem livres de problemas. Pouco de nós estão prontos a declarar que tudo na vida funciona como gostaríamos que funcionasse – e até esses poucos têm momentos de dúvida (BAUMAN, 2007a: 99).

“Tempestade de Gelo” expõe a fratura entre uma espécie de aparência de

felicidade e da felicidade em agonia. Os valores foram solapados pela fragilidade da

autoridade no seio dos convívios interpessoais. O combate no mercado de trabalho –

severo, rasteiro, cuja observação da ética fica relegada a segundo plano devido à

importância dada à eficiência que reduz o tempo dos empregados nos lares e a cobrança

por resultados instantâneos – deflagrou a imperícia nas relações cotidianas. O que restou

foi evitar a consequência da derrota. Ou de tudo que lembre sua aproximação. Bauman

aponta que para muitos manter-se na caça parece uma solução. Não parar nunca. Uma

válvula de escape para fugir da reflexão.

O que resta para suas preocupações e esforços, e que deve atrair parte de suas atenções e energias, é a luta contra a derrota: tente ao menos permanecer entre os caçadores, já que a única alternativa é se ver entre os caçados. Para que seja desempenhada adequadamente e com chance de sucesso, a luta contra a derrota vai exigir sua plena e total atenção, vigilância 24 horas por dia, sete dias por semana, e acima de tudo manter-se em movimento – tão rápido quanto puder... (BAUMAN, 2007a: 109).

Em “Tempestade de Gelo” há um fio tênue entre potência e melancolia. Poder-

se-ia falar em uma “letargia efervescente”. Na sociedade estadunidense dos anos 70, que

influenciou a cultura e o comportamento no mundo ocidental, as soluções das

personagens para esconder as fraturas, as cisões, as tensões foram o relacionamento

extraconjugal marcado pela incomunicabilidade e a frieza, a cleptomania, os jogos

sexuais promovidos por adolescentes etc. Todas são soluções individuais que nem

arranham a “armadura” dos problemas estruturais que empalideceram a autoridade

moral e preencheram as expectativas com doses de desespero.

O esforço para fugir da sensação de desconforto do mundo atual se traduz na

ideia de comunidade. Busca-se empreender (no sentido de construção, com ênfase em

um negócio comercial) veredas protegidas das atribulações e perigos diários da vida

moderna líquida. A comunidade se apresenta como um oásis diante do deserto de

Page 89: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

87

brutalidade que se entende ser generalizado. Deseja-se pertencer a um grupo distinto,

exclusivo, deste modo, tornar-se extraterritorial dentro da própria cidade. Na verdade,

residir em uma fortaleza que afaste os indesejados, os que não são bem-sucedidos e que

não compartilham das mesmas ideias, aspirações, estilo de vida. A redoma de vidro

pertence ao processo de “individuação” contemporânea que nos destaca dos outros, nos

personaliza e nos integra aos que são iguais a nós. Esse é um êxito aristocrático que a

elite contemporânea arrogou para si. Porém tal distinção não forma laços entre os

membros dessa comunidade. Terrenos são adquiridos, casas (castelos ou mansões) são

erguidas e o afastamento – sintoma de status quo – é efetivado. Mas na realidade, a

ideia de comunidade já é negada de antemão. A comunidade molda e transparece a

segurança comprada e o status almejado. No entanto, não traz em seu cerne termos

como solidariedade, compreensão e abnegação. Uma questão imprescindível refere-se

ao fato que a fortaleza erguida nem é o local no qual tal elite pode ser encontrada sem

dificuldade. Sendo extraterritorial a elite está sempre em movimento. Tal inconstância

não contribui para as relações comunitárias.

O mundo habitado pela nova elite não é porém definido por seu “endereço permanente” (no antigo sentido físico e topográfico). Seu mundo não tem outro “endereço permanente” que não o e-mail e o número do telefone celular. A nova elite não é definida por qualquer localidade: é em verdade e plenamente extraterritorial. Só a extraterritorialidade é garantida contra a comunidade, e a nova “elite global” que, exceto pela companhia inevitável (e às vezes agradável) dos maîtres, arrumadeiras e garçons, é sua única e quer que assim seja (BAUMAN, 2003: 53).

Se não podemos “estacionar”, tornar o movimento insignificante, como fazer

então para ecoar um sentido real a palavra comunidade? Esse mundo deslumbrante da

“elite global” não privilegia associações e experiências de engrandecimento espiritual

mútuo. Deste modo, como nos recorda Bauman, “É singularmente inadequado para o

papel de ‘cultura global’: o modelo não pode ser espalhado, disseminado, compartilhado

universalmente, usado como padrão a imitar numa missão de proselitismo e conversão”

(Ibidem: 54). O deslocamento não concede instantaneamente a atribuição de troca

cultural ou de um multiculturalismo vivenciado. A “elite global” carrega consigo

caracteres que impedem a mistura e a absorção de novas culturas. Além do preconceito

social, há uma clara deferência a seu “lugar no mundo”, que qualquer possibilidade de

Page 90: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

88

interpretação está afastada. Bauman adverte que o estilo de vida da elite extraterritorial

não deve ser adotado pelas massas.

O que esse estilo de vida celebra é a irrelevância do lugar, uma condição inteiramente fora do alcance das pessoas comuns, dos “nativos” estreitamente presos ao chão e que (caso decidam desconsiderar os grilhões) vão encontrar no “amplo mundo lá fora” funcionários da imigração pouco amigáveis e severos em lugar dos sorridentes recepcionistas dos hotéis. A mensagem do modo “cosmopolita” de ser é curta e grossa: não importa onde estamos, o que importa é que nós estamos lá (BAUMAN, 2003: 54-55).

O cosmopolitismo não é viável para os deserdados do mundo ou para os que não

detêm as ferramentas (principalmente a financeira) que favoreçam a

extraterritorialidade. Entretanto, a viagem da “elite global” não guarda vínculos com as

viagens de descoberta. Ela não consagra o hibridismo. Observa-se a uniformização dos

lugares frequentados, das acomodações, do roteiro turístico. Enfim, de uma rigorosa

padronização. Mais uma vez estamos num mundo seletivo. Ou se adequa a ele ou se

está automaticamente excluído (ou atirado para o ostracismo). Não há uma experiência

estrangeira, o contato possui grau zero de risco em causar abalo neste mundo de

privilegiados. E este tal mundo permanece no campo da individualidade, tanto no

estrangeiro quanto na comunidade tudo permanece ocasional, sem envolvimento, sem

alterações profundas na base que a sustenta: inviabilizando a possibilidade de fuga. Os

problemas relacionados à incerteza são concretos. A dúvida, a indiferença e a falta de

confiança se completam e se anulam. Queremos algo do mundo, pode ser amor,

sucesso, dinheiro ou o respeito dos outros. Muitos desses desejos nos condicionam na

modernidade sólida e seus efeitos persistem na modernidade líquida (ou pós-

modernidade). Queremos ter absoluta certeza das nossas escolhas, de que cada decisão

tomada nos pertence, nasce da disposição que possuímos para efetivar nossas vontades.

“E o controle sobre o presente, a confiança de estar no controle de seu próprio destino, é

o que falta às pessoas que vivem em nossa sociedade” (BAUMAN, 2008a: 189). O peso

da aleatoriedade das coisas nos persegue. As soluções pertencem ao reino das iniciativas

que nos parecem ser necessárias, logo biográficas, sejam suas causas coletivas ou não.

Algo que permanece em prejuízo nessa equação de viver com os outros e buscar a

individualidade é a intimidade. Richard Sennett propôs um estudo sobre a intimidade na

era moderna. A ideia de relações íntimas projetou-se em um período de transição

Page 91: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

89

(declínio) do homem público para a vida privada. O que está circunscrito a nossa vida

particular, as coisas que se passam no interior da família, tomam o primeiro plano,

ganham destaque em local público. “A intimidade é um terreno de visão e uma

expectativa de relações humanas. É a localização da experiência humana, de tal modo

que aquilo que está próximo às circunstâncias imediatas da vida se torna dominante”

(SENNETT, 1988: 142).

A vida privada se torna tão abrangente que a vida passa a ser apenas a vida a ser

contada de modo individual. A vida íntima se transforma em uma espécie de

curiosidade pública. Mas o que ocorre na esfera privada é justamente o contrário dessa

exposição. Os relatos intrínsecos a cada um são jogados para fora das residências, mas o

desejo soberano é evitar a abertura para que o íntimo seja sondado. Há um temor, uma

tensão que perpassa a vida privada. “Quanto mais chegadas são as pessoas, menos

sociáveis, mais dolorosas, mais fraticidas serão suas relações” (Ibidem: 412). A vida

interna devassada pelo olhar do outro causa horror. Um medo plausível que não tem

vínculos somente com segredos que se deseja ocultar, mas com a dificuldade de ser

objeto de curiosidade alheia, a invasão e indiscrição que procuram e distorcem sonhos e

obsessões.

Creio que a frustração que o contato íntimo provoca na sociabilidade é, antes, o resultado de um longo processo histórico, um processo em que os próprios termos da natureza humana foram transformados num fenômeno individual, instável e autoabsorvido, que chamamos “personalidade” (SENNETT, 1988: 412).

O coletivo desponta como um emaranhado de obrigações, coerções e ditames

que cingem as opções pela vida que queremos construir. A minha “personalidade” só se

torna possível no âmbito da liberdade. Apenas como indivíduo posso me realizar. A

intimidade corrói esse terreno da liberdade, pois ela inclui a vigilância e a justificação

constante. Se homens e mulheres têm a capacidade e volições que os conduzem a se

agregarem a grupos, como lidar com a necessidade de “individuação” e se satisfazer em

relações que exigem intimidade? Em muitos casos evitar os compromissos de laços e

afinidades e apenas associar-se a alguém para ver aonde isso irá levar parece ser a

solução ideal na sociedade líquida moderna.

Page 92: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

90

“Viver juntos” também está acoplado à modalidade pós-moderna de risco.

Escolhas entre nossas asseverações e as concessões que devemos fazer. Mas viver

juntos, condição que se desvia do contrato de casamento, é uma aposta que tende a não

se basear na afinidade. Algo que precise ser revalidado diariamente. A afinidade quando

posta à disposição constante de votos de confiança ganha contornos de parentesco. As

características dos laços sanguíneos contaminam as escolhas: irrevogabilidade,

incondicionalidade, etc.

A afinidade nasce da escolha, e nunca se corta esse cordão umbilical. A menos que a escolha seja reafirmada diariamente e novas ações continuem a ser empreendidas para confirma-la, a afinidade vai definhando, murchando e se deteriorando até se desintegrar. A intenção de manter a afinidade viva e saudável prevê uma luta diária e não promete sossego à vigilância. Para nós, os habitantes deste líquido mundo moderno que detesta tudo o que é sólido e durável, tudo que não se ajusta ao uso instantâneo nem permite que se ponha fim ao esforço, tal perspectiva pode ser mais do que aquilo que estamos dispostos a exigir numa barganha. Estabelecer um vínculo de afinidade proclama a intenção de tornar esse vínculo semelhante ao parentesco – mas também a presteza em pagar o preço pelo avatar na moeda corrente da labuta diária e enfadonha. Quando não há disposição (ou, dado o treinamento oferecido e recebido, solvência de ativos), fica-se inclinado a pensar duas vezes antes de agir para concretizar a intenção (BAUMAN, 2004a: 46).

Viver juntos não demanda expectativas por trajetos seguros e metodicamente

planejados. Afinidades pressupõe aliança. Bauman aponta que a afinidade tem relação

com parentesco, pois é uma ponte que aproxima um do outro. Nelas há a afetação da

ideia do insolúvel, não pode haver insinuação de subterfúgio. Em teoria, consagra-se a

segurança dos laços indissociáveis, das semelhanças que unem e refletem as escolhas.

Viver juntos qualifica a incerteza como indispensável, na verdade, não que ela seja

preponderante no relacionamento, mas é evidenciada, posta de lado e sobrevive, até

quem sabe, ser responsável pelo término da relação. Viver juntos é uma aventura, é a

síntese dos relacionamentos modernos.

Não há como saber, pelo menos com antecedência, se viver juntos acabará se revelando uma via de tráfego intenso ou um beco sem saída. A questão é atravessar os dias como se essa diferença não contasse, e portanto de uma forma que torna irrelevante o problema de “colocar os pingos nos Is” (BAUMAN, 2004a: 47)

Page 93: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

91

No entanto, a fragilidade contemporânea conduz, apesar do temor e da

dissolução dos vínculos parentais (daquilo que nos faz lembrar deles como grilhões), a

certa sutileza e desejo de proteção. Como tudo perde valor com a mesma velocidade de

um clique no mouse querer conservar vestígios delas parece apropriado para recordar

dias melhores ou promessas futuras.

3.2. Vivendo no abandono: implicações políticas

Indivíduo é um conceito moderno. Para a modernidade o indivíduo era

concebido em um âmbito social. Pensar em um ser Uno sem direitos e deveres era

abstraí-lo da sociedade e, certamente, prejudicial a solidificação/racionalização da vida

recém-saída do “obscurantismo” do período medieval. No projeto moderno, a

autodeterminação surge como prognóstico e exigência de um livre exercício racional

por parte de seres autônomos.

Para constituir instituições indestrutíveis, à prova de manifestações da

irracionalidade, era preciso implodir antigos pressupostos provincianos, pastorais e

intuitivos. A modernidade fora impulsionada pela destruição tida como criativa. Para a

destruição a se empreender foi necessária gerar seres produtivos, ousados e capazes da

revolução acalentada como saída para a racionalidade científica que se planeja priorizar.

Para a era produtiva e criativa que se configurava, o indivíduo deveria reunir em si a

inclinação de questionar, descobrir e conhecer. A contínua cisão/complementação

indivíduo-sociedade emergia na aurora chamada “busca da verdade”

O indivíduo como sujeito livre em uma sociedade indicava a importância da

cidadania. Mas, indivíduo e cidadão acabam por soar como contradições. O indivíduo

de jure (falso, aquele que não domina, e tão pouco conhece, os processos de atuação,

que, desse modo, não tem ninguém a quem culpar ou cobrar pelas humilhações diárias,

ou seja, homens e mulheres que não encontraram condições para autonomia e

autodeterminação) mesmo que ocupe o espaço público não exercerá sua cidadania. O

Page 94: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

92

esvaziamento da esfera da cidadania ocorre pelo desejo de tornar os cenários privados

atraentes aos olhos de todos. O indivíduo é o foco de atenção, não o cidadão.

Gilberto Dupas percebe no confronto indivíduo-cidadão o nascimento de uma

anomia que causou a desconsideração do espaço público como lugar para o debate

político e propício para busca de adições sociais que visassem o bem comum.

(...) o indivíduo é inimigo do cidadão; e a verdadeira política só é viável com base na ideia de cidadania. Quando os indivíduos se imaginam únicos ocupantes do espaço público, acabou o bem comum; portanto, acabou a política. O público se torna escravizado pelo privado. O interesse público fica limitado à curiosidade pela vida privada das figuras públicas (DUPAS, 2006: 274-275).

O indivíduo segrega o cidadão justamente por negar-lhe voz ou campo de

atuação. A referida falta de seriedade na elevação dos nomes, e não das ideias, no

campo de batalha pela visibilidade e pelos corações e mentes da audiência, dá a

entender que o fim da política está próximo. Uma sociedade autônoma não é aquela que

opta em abandonar a política, mas a que a tem como dispositivo central em seu

cotidiano.

O indivíduo de jure não pode se tornar indivíduo de facto sem antes tornar-se cidadão. Não há indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma, e a autonomia da sociedade requer uma autoconstituição deliberada e perpétua, algo que só pode ser uma realização compartilhada de seus membros (BAUMAN, 2001: 50).

O indivíduo de facto (aquele capaz de se autodeterminar, que possui o controle

de seu destino e lida com as escolhas a se fazer com autonomia) precisa da sociedade e

do espaço público para sua formação. A independência de pensamento estaria ameaçada

com a completa ausência de assuntos públicos discutidos em cenários públicos. Na

modernidade fluída, a possibilidade do indivíduo de jure conquistar o status de

indivíduo de facto declina diante do esmorecimento da política com P maiúsculo, a

política do espaço público.

Page 95: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

93

Bauman postula que uma política-vida vem ocupando, na modernidade líquida,

o lugar destinado à política que afere aos cidadãos atuantes de um Estado ou grupo

social.

Quando a política abandona suas funções e a “política-vida” assume, os problemas enfrentados pelos indivíduos de jure em seus esforços para se tornar indivíduos de facto passam a ser não-aditivos e não-cumulativos, destituindo assim a esfera pública de toda substância que não seja a do lugar em que as aflições individuais são confessadas e expostas publicamente (BAUMAN, 2001: 63).

Recuperando o axioma de Ralph Waldo Emerson, “Quando se patina sobre gelo

fino, a segurança está na nossa velocidade”, pode-se entrever uma regra da política-

vida, ou ainda, uma saída para o enfraquecimento das ações coletivas (de ordem

política, institucional) para as demandas de “interesses comuns”, seja saúde, trabalho

etc. O processo enfático de individualização da recente etapa da modernidade infligiu

aos membros de cada sociedade (ocidental) o jugo do “cuide de sua própria vida”. Um

equilíbrio forçado se faz necessário na corda-bamba dos eventos coletivos que

encontram olhares incrédulos, soluções improvisadas ou repostas automáticas de

homens e mulheres que devem corresponder a tais eventos. Porém, a afirmação (e seria

uma triste constatação) de que uma política-vida, ou a responsabilidade total e

inapelável de todos os nossos erros e acertos, é o estágio final de autonomia moderna

seria um grande equívoco. A individualidade, como intenção modernizadora de homens

e mulheres, previa a autodeterminação e a capacidade de respostas convincentes e

independentes dos sujeitos, entretanto não o desamparo institucional e a invasão da

esfera pública pela intimidade de cada um (leiam-se celebridades, políticos, psicopatas

ou os afortunados com “quinze minutos” de fama). O indivíduo deve procurar meios

para se beneficiar como os louros dos seus sucessos e arcar com as consequências dos

erros. Não há atalhos proporcionados por entidades originários de uma política com P

maiúsculo. Para Bauman, “Como tarefa, a individualidade é o produto final de uma

transformação societária disfarçada de descoberta pessoal” (BAUMAN, 2007b: 31). A

individualidade (a luta para sua efetivação) se assinala como um perigo para os vínculos

sociais. O esmorecimento gradativo dos laços que uniam uma pessoa a cada membro da

sua comunidade, ao mesmo tempo em que atribuía a ela (evidentemente aos

Page 96: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

94

componentes aptos desse conjunto) a liderança das decisões coletivas, desperta uma

crise, uma contradição, esta última incorporada plenamente à comunidade ou a se

destacar das centenas de vozes que a formam. No entanto, o poder coletivo deteriorou-

se diante da exacerbação da individualidade. Contudo esse panorama não traduz uma

liberdade irrestrita perante as escolhas que temos ou devemos fazer.

Embora o destino e o dever da livre escolha sejam premissas tácitas ou reconhecidas da individualidade, não são suficientes para assegurar que o direito a esta possa ser usado. Portanto, a prática da individualidade não necessariamente ao padrão imposto pelo dever da livre escolha. Na maior parte do tempo, ou em alguma ou em várias situações, muitos homens e mulheres consideram a prática da livre escolha fora de alcance (BAUMAN, 2007b: 33).

Corre-se atrás do “pote de ouro”. A imagem de uma ilha de desesperados na qual

querer não é poder, definitivamente, seria um exagero, mas a dificuldade da

individualidade de jure concretizar sua passagem para uma individualidade de facto

provoca angústia e um tipo de aflição não salutar.

A reconquista do espaço público é uma tarefa que exige a anuência de todos os

partícipes do coletivo que assistem à perda desse referencial da partilha do bem comum.

Tal proposta denota um risco incomensurável. Risco que os habitantes da

sociedade moderna líquida correm simultaneamente à incerteza que cada passo

transporta.

3.3. Consumo e identidade

A modernidade líquida exibe a marca de uma sociedade de consumidores.

Compra e venda em ritmo frenético. A busca por uma satisfação que deve permanecer

irrealizável, eis o pressuposto meticuloso dos “engenheiros” deste maquinário. Na

verdade, a desconfiança de que é assim que funciona a engenhosa rede voraz de

acúmulo e descarte, serve ao propósito de alimentar os desejos e impulsos e levar esse

sistema para frente. “A não-satisfação dos desejos e a crença firme e eterna de que cada

Page 97: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

95

ato visando a satisfazê-los deixa muito a desejar e pode ser aperfeiçoado – são esses os

volantes da economia que tem por alvo o consumidor” (BAUMAN, 2007b: 106). A

insatisfação é quem dá continuidade ao jogo. É certo que é preciso vontade, aguçar o

desejo, cobiçar ardentemente. Porém, a insatisfação garante o ciclo de aquisição,

despesa e produção de entulhos.

Bauman refere-se a uma síndrome consumista que norteia a sociedade de

consumidores. Parece aceitável alegar que o problema não esteja no consumo, mas na

organização social que dá relevo aos atos da compra e venda, de presença em eventos,

de qualquer ação social independente do ambiente como parte constitutiva de um ritual

de status e de prazeres supostamente necessários. A síndrome consumista impregna os

contatos sociais, a política-vida sofre desse contágio, o que conduz ao beco sem saída de

integrar-se ou aguentar as consequências de não saber quais são as novidades da última

hora.

A sociedade de consumidores se ressentiria se não houvesse novidades a todo o

momento. A novidade, sempre fresca e inédita, funciona como suprimento desta

indústria. “Na hierarquia herdada dos valores reconhecidos, a síndrome consumista

degradou a duração e promoveu a transitoriedade. Colocou o valor da novidade acima

do valor de permanência” (Ibidem: 110). A aquisição e o descarte, o querer e o possuir

toda a distância entre eles foi pulverizada. As coisas surgem e desaparecem. O prazer

realizado já é negado no princípio da volição pelo objeto. O desejo nasce sacrificado

pela velocidade em que será exaurido. No fundo, não como uma mácula da vontade,

mas como uma marca de seu nascimento, está a certeza de que logo o fim do objeto

acalentado como essencial chegará. “Entre os objetos do desejo humano colocou a

apropriação, rapidamente seguida pela remoção de dejetos, no lugar de bens e prazeres

duradouros” (Idem).

As novidades movimentam um mercado global onde o consumo torna-se um

imperativo. Como sentencia o historiador estadunidense Eric Hobsbawn (2000, p. 78),

“Para os profetas de um mercado livre e global, tudo o que importa é a soma de riqueza

e o crescimento econômico sem qualquer referência ao modo como tal riqueza é

distribuída”. Esse sistema aperfeiçoa a ideia de que possuir/apropriar é fruto de um

desejo espontâneo e não uma necessidade criada. Sem entrar no mérito de uma séria

questão, a do papel da publicidade, a disputa entre espontaneidade e estímulo tem pouca

relevância diante da procura em atender a vontade de comprar. É preciso ter reservas

Page 98: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

96

para assegurar defesas contra a imprevisibilidade dos acontecimentos. Não é mera

questão de status ou compulsão. Há toda uma “parafernália” que estimula os impulsos e

preocupações, as quais a síndrome consumista já espalhou como forma de aumentar a

receita. Porém, nada desse jogo de sedução e declaração de necessidades inadiáveis

aproxima-se da felicidade prometida.

E assim, permitam-me repetir, a sociedade de consumo não é nada além de uma sociedade do excesso e da fartura – e portanto da redundância e do lixo farto. Quanto mais fluido o ambiente de suas vidas, mais os atores precisam de objetos potenciais de consumo para proteger suas apostas e garantir suas ações em relação aos caprichos do destino (rebatizados na linguagem sociológica de “consequências imprevistas”). O excesso, contudo, aumenta a incerteza das escolhas que se esperava que eliminasse, ou pelo menos aliviasse ou reduzisse – e assim o excesso nunca é suficientemente excessivo. A vida dos consumidores é uma infinita sucessão de tentativas e erros. É uma experimentação contínua – mas não de um experimentum crucis capaz de conduzi-los a uma terra de certezas mapeadas e sinalizadas de modo fidedigno (BAUMAN, 2007b: 111).

O mundo do consumo pode ser descrito como um cenário em ebulição. É um

cenário no qual os clientes devem circular sem obstáculos, sem desperdício de tempo.

O mercado de consumo fomenta o modo imediato de se ter aquilo que se deseja. O não-

desperdício de tempo passa a ser o desperdício de objetos que estão na moda e que

depois se tornam refugos, cujo destino é ao lado de entulhos em algum depósito de

lixo.

Para não desperdiçar o tempo de seus clientes, nem prejudicar ou impedir suas futuras mas imprevisíveis alegrias, o mercado de consumo oferece produtos destinados ao consumo imediato, de preferência para um único uso, seguido de rápida remoção e substituição, de modo que os espaços de vida não fiquem congestionados quando os confusos pelo turbilhão da moda, pela atordoante variedade de ofertas e o ritmo vertiginoso de sua mudança, não podem mais recorrer à capacidade de aprender e gravar – e assim precisam (e o fazem com gratidão) aceitar as garantias de que o produto atualmente em oferta é a “coisa”, “a coisa mais quente”, o “must”, aquilo “(com/em) que devem ser vistos” (BAUMAN, 2005b: 46).

A modernidade fluída carrega inúmeros signos que estão espalhados em vitrines,

outdoors, nos catálogos de loja e sites. As imagens têm um ímpeto voraz. Elas nos

Page 99: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

97

devoram, assim como as devoramos. A moda as multiplica, cinge nossas opções, define

o que é in ou out ou ainda qualquer termo que sirva para decretar o que ainda pode ser

usado ou o que está ultrapassado. As imagens e a voracidade explícita com que são

geradas captam e engendram desejos. Praticamente, não há como evitá-las. Elas

invadem/estão no real e no virtual. Exigem nossa atenção e se exibem como ofertas de

prazer. Parece que não há nada a ser desvelado, tudo é flagrante. Como nos explica

Baudrillard (2002: 133), “A virtualidade aproxima-se da felicidade somente por

eliminar sub-repticiamente a referência às coisas. Dá tudo, mas sutilmente. Ao mesmo

tempo tudo esconde”. É um jogo desgastante, porém envolto pelo prazer. No entanto, a

satisfação nunca é plena, é alçada para o próximo alvo de nossa volúpia. “O sujeito

realiza-se perfeitamente aí, mas quando está perfeitamente realizado, torna-se, de modo

automático, objeto; instala-se o pânico” (Idem).

A sociedade global apresenta-se como o epicentro dessas demandas por

imagens. Contudo, não há como determinar o seu ponto culminante. Algo como uma

nascente ou o ponto final não existe. A sua geografia é ampla. Ela abarca dicotomias

(Ocidente-Oriente) divisões (centro- periferia) e as mais singelas e maniqueístas formas

de dualidades. Segundo Renato Ortiz (2005: 146), “A globalização das sociedades e a

mundialização da cultura fazem parte de um processo que atravessa as sociedades

nacionais. Ela corresponde, portanto, à formação de outro tipo de singularidade social (a

“sociedade global”)”. Para Ortiz, o declínio da sociedade nacional decorre da formação

da própria modernidade-mundo que atinge todos os países. A globalização não é

entendida como uma ameaça externa.

Um mercado global de objetos e imagens que condiciona modos de vida os cria

e os sustenta. Uma plataforma, uma enxurrada de objetos e imagens distintos, que

ressalta a diferença, mas encaixa a todos em uma uniformização que torna o estar

“longe de casa”, a viagem há tanto tempo planejada, em uma contínua imersão no

cotidiano. Hotéis, roupas, aeroportos, shoppings: o idêntico salta aos olhos como

novidade. Tecnologia 3D, best-sellers, música pop, concursos de beleza, cassinos. A

diversão é embalada com o atendimento Vip. E, entretanto, somos mais um no “mar de

gente” talhada para ser especial.

Há maneiras menos apocalípticas de tratar o volume de imagens que nos chegam

minuto a minuto. E o “verniz” de novidade que isso implica. Maffesoli fala de um

equilíbrio que se constrói ao curso da origem ao do desaparecimento da imagem. Um

Page 100: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

98

momento em que ela se despe de sua agressividade e se integra as nossas relações como

aquilo que está presente nas coisas que nos cerca.

O medo da imagem, tal como uma serpente marinha, ressurge regularmente, quando uma maneira de estar-junto dá lugar, progressivamente, a uma outra, com a inquietude que não deixa suscitar. Há um momento de pânico diante da coisa nova, e por isso misteriosa, que ainda não se domina bem, e que progressivamente irá encontrar seu equilíbrio: a imagem em sua manutenção, em seu declínio ou em seu nascimento (MAFFESOLI, 1995: 96).

Gilles Lipovetsky, em entrevista coordenada por Bertrand Richard, aponta que

graças “a individualização do social e o enfraquecimento dos modelos culturais (...) e

por fim, o acesso amplo à informação proporcionado pela mídia e pela internet” (2007:

75) os consumidores têm para si a vantagem da escolha, de uma liberdade antes negada.

Há uma autonomia que possibilita o enfrentamento dos ditames do mercado.

O antropólogo Massimo Canevacci considera o Shopping Center um local de

produção de valor. Em uma metrópole comunicacional, repleta de imagens (que gritam,

regurgitam, engendram outras imagens), a identidade pós-moderna desemboca no

templo do consumo. Se há décadas atrás, a fábrica detinha a função de formadora dos

códigos sociais, hoje o shopping agrega os signos, confirma, refuta, converge às

convenções sociais.

O shopping é o contexto onde o consumo se torna produtor de valores e não apêndice à produção. É o herdeiro da fábrica e, neste sentido, certamente há aqui uma continuidade com as passagens estudadas por Benjamin, há aqui também uma descontinuidade ainda mais significativa. O espaço do consumo também é agora diretamente produtor de valores (CANEVACCI, 2008: 97).

Admitimos que o tema consumo provoca uma tempestuosa controvérsia. Falar

em consumo, de qualquer modo, exige observar com cuidado a relação de um mundo

forjado por volições referentes à aquisição e a identidade que se configura a partir destes

milhares de estímulos que brotam de diferentes fontes.

Antes pertencer a um grupo, um exclusivo grupo, contava muito sobre quem

éramos. Formávamos laços, sejam elos com o núcleo familiar, com a nação, com a

Page 101: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

99

“turma” com a qual tínhamos afinidades e nos acolhia. Seleção, fidelidade, honra eram

palavras que ressoavam no compromisso afiançado entre os membros. Tais laços ou

vínculos pretendia-se que fossem indissolúveis. Contudo, na modernidade líquida, a

fidelidade não consta como principal elemento da relação entre os associados. Pode-se

pertencer a quantos grupos se desejar. Basta conhecer os itens que sustentam cada um:

desde a história a ser adepto do vestuário. A realidade se mostra cambiante. Distintos

modos de vida se interpenetram. As coisas mudam com rapidez. Uma mixórdia que se

ampara na velocidade das trocas revela um consumo que afeta a identidade assim como

os relacionamentos.

O território da construção e da reconstrução da identidade não é a única conquista da síndrome do consumo, além do reino das ruas luxuosas e dos shoppings centers. De forma gradual mas incansável, toma conta das relações e dos vínculos entre os seres humanos. Por que os relacionamentos seriam uma exceção ao restante da vida? (BAUMAN, 2007b: 115).

Em um mundo no qual a flexibilidade é uma característica primordial, as

relações sofrem com o dinamismo e a falta de “liga” que as faça candidatas a resistir por

longo período. A fragilidade desses laços decorre também da condição de ambivalência

que marca a modernidade fluída. Como sustentar o que se quer, se logo somos

impelidos a desejar algo diferente? De certo modo, a identidade parece ser, como na

frase de Romeu, da peça clássica shakespeariana “Romeu e Julieta”, “um joguete do

destino”. Mas na realidade há opções. Escolhemos entre elas; são acessos que estão

dispostos à nossa frente, e quem sabe, nos levem a uma vida distinta (engrandecedora).

“A ambiguidade do contexto de vida, se me permitem utilizar essa noção

espalhafatosamente modernista, é ‘funcional’ para a condição pós-moderna”

(BAUMAN, 2008a: 92).

A identidade pressupõe vínculos, pois a afirmação “Todo homem é uma ilha”

parece não ter sentido numa complexa rede de relações e encontros que a vida em

sociedade produz. Mas a dissolução dos laços obstruiu uma alteridade possível. A

flexibilidade e a leveza exigidas no mercado de trabalho resplandecem no horizonte das

relações interpessoais. Na modernidade líquida nos deparamos com seres humanos

Page 102: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

100

“sem vínculos”, um amor líquido que pouco ou nada retém de um impulso de

preservação das uniões ocasionais/casuais.

O desvanecimento das habilidades de sociabilidade é reforçado e acelerado pela tendência inspirada no estilo de vida consumista dominante, a tratar os outros seres humanos como objetos de consumo e a julgá-los, segundo o padrão desses objetos, pelo volume de prazer que provavelmente oferecem e em termos de seu “valor monetário” (BAUMAN, 2004a: 96).

O “Outro” não é reconhecido a partir de sua alteridade, mas num restrito espaço

dedicado aos parceiros no tour pelos prazeres do consumo. A solidariedade precisa ser

resgatada e vivida com mais transparência. Na verdade, ela permanece como um

sentimento indispensável seja em nome da manutenção da chama da amizade, ou seja,

da identidade que comprove que não vivemos no abandono.

Quando a identidade perde as âncoras sociais que faziam parecer “natural”, predeterminada e inegociável, a “identificação” se torna cada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um “nós” a que possam pedir acesso (BAUMAN, 2005a: 30).

3.4. Fragmentos e episódios: a insustentável leveza do ser

A vida líquida moderna permite a difusão de parceiros sexuais. Os frágeis laços

da modernidade fluída não podem proporcionar o certificado de durabilidade das

incursões amorosas como ainda permanece desejável para muitos. Este é um dos

aspectos que envolvem a nossa vida em companhia dos outros. O amor líquido é o

sentimento que permeia as relações que sucumbiram as dissoluções dos vínculos

humanos. Desse modo, não contamos na vida com o que podemos reter

sequencialmente. A vida moderna líquida se mostra fragmentária e episódica.

Reconstruir passagens dela é uma tarefa colossal, de esforço geralmente ingrato.

Page 103: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

101

(...) a vida fragmentária pós-moderna é vivida num tempo episódico e, uma vez que os eventos se tornam episódios, só podem ser colocados em uma narrativa histórica coesa postumamente; enquanto está sendo vivido, cada episódio tem apenas a si mesmo para fornecer todo o sentido e objetivo de que precisa ou que é capaz de reunir para manter-se no rumo e termina-lo (BAUMAN, 2008a: 163).

A educação pós-moderna, ou os processos educacionais, foi abalada pela perda

do sentido histórico e da compreensão imediata de um mundo afeito a fugacidade e

predisposto a evitar a rotina. As relações sofreram os eflúvios de uma sociedade que aos

poucos (mas gradativamente) não premiava mais a constância como elemento chave. No

mundo fragmentário, a insegurança é um agente de mobilização das ações, o que torna

tudo precário. Aí um fragmento constitui por si mesmo uma situação plena na qual não

é possível emendar os “nós” que ligam um fato a outro.

O escritor tcheco Milan Kundera é um dos principais autores a observar o

mundo contemporâneo fragmentário e episódico. Situações repletas de incidentes e

relações iniciadas sob a égide da incerteza transitam em suas tramas que abarcam desde

estudos de comportamento a obsessões, da burocracia ao fim da esperança na sociedade

moderna.

No conto de Kundera “O jogo da carona”, do livro Risíveis Amores (1985b), um

casal de namorados em viagem, após uma parada num posto de gasolina, decide iniciar

um jogo no qual ele é um desconhecido e ela uma jovem que pede carona. Durante a

encenação do passatempo angústias afloram e o amor pensado como um sutil

entrelaçamento entre corpo e alma é rompido, quando o corpo, no caso da moça, é

desejado e oferecido como o de uma prostituta. As personalidades fingidas anulam as

reais fazendo com que a sensibilidade, que era entendida como base da união dos jovens

amantes, não resistisse ao jogo. Desse modo, o corpo cobiçado e possuído com um

prazer inimaginável anteriormente, impede que a história do amor surja e impeça que

aquele fragmento da vida se torne toda a verdade. Bauman assinala que “Como apontou

Milan Kundera em Les Testaments Trahis, o ambiente de nossas vidas está envolto em

neblina, não na escuridão total, na qual não veríamos qualquer coisa nem

conseguiríamos mover (...)” (BAUMAN, 2008b: 19).

Viver na neblina é uma condição que requer atenção, na qual os perigos estão à

espreita ou a nossa frente, devemos nos resguardar. A “certeza” procura artimanhas para

Page 104: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

102

mover as precauções efetivas contra os perigos. Mas, por mais que estejamos

concentrados e municionados, não há como se antecipar à imprevisibilidade dos

acontecimentos. Kundera expressa o quanto as relações sofrem com os contornos

surpreendentes que cada ação ganha. Como o bilhete enviado por Ludvik a

namoradinha Marketa que se encontrava em um estágio de formação do Partido

comunista, no romance A Brincadeira. Os dizeres, “O otimismo é o ópio do gênero

humano! O espírito sadio fede a imbecilidade. Viva Trótski!” (KUNDERA, s/d: 39),

encerra uma vida de perseguição ao jovem: de expulsão do Partido ao campo de

trabalho forçado. Contudo, nesse romance de 1967, há uma armadilha da memória. A

marca do passado carrega no presente e no futuro, que o horizonte aponta, um desejo de

vingança. A vingança destitui o presente do encadeamento de uma história possível.

Cada ação presente esgota-se no esforço da encenação. É um episódio, trecho de uma

peça teatral. No fim, o passado parece não determinar o presente, é apenas um

fragmento lançado no tempo.

A vida fragmentada tende a ser vivida em episódios, numa série de eventos desconectados. A insegurança é o ponto em que existir se desmorona em fragmentos, e a vida em episódios. A não ser que algo seja feito em relação ao rodante espectro da insegurança, a restauração da fé nos valores estáveis e duráveis tem pouca chance de ocorrer (BAUMAN, 2008a: 202).

A insegurança insurge contra o amor. É uma sensação contumaz que inibe a

irrupção de um envolvimento sem arestas e desconfiança. A grande obra de Kundera

sobre a insegurança é A Insustentável Leveza do Ser (1985a). A existência se revela

pontuada por absurdos. Se a vida nos expõe à indefinição, à constante dúvida sobre se

as coisas são inéditas e irreproduzíveis ou se são frutos da repetição num eterno retorno

que nos coloca diante do mesmo fato. Os casais Teresa-Thomas e Sabina-Franz estão

imersos nesses problemas numa Praga marcada pela invasão russa em 1968. Para a vida

fragmentada-episódica, Kundera acrescenta a leveza. A leveza do ser está na existência

sem fardo. Ela contém a negação da responsabilidade pelos eventos, pelos sentimentos,

pelo que há de fortuito na vida. Quando se vive a dimensão das coisas, a carga do viver

torna-se insuportável; porém essa carga pode num determinado momento, quando

assumida pela vontade, representar a razão da existência.

Page 105: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

103

Italo Calvino, em sua formidável conferência sobre a leveza, postula que “A

Insustentável Leveza do Ser” revela a dilacerante condição humana do irresistível peso

de viver. Peso esse contido nas mais diversas formas de opressão, “(...) a intricada rede

de constrições públicas e privadas acaba por aprisionar cada existência em suas malhas

cada vez mais cerradas” (CALVINO, 1990: 19). Como sugere Calvino, as nossas

escolhas direcionam-se para a leveza que as coisas aparentam, no entanto, o seu peso

insustentável acaba por sobrevir.

Homens e mulheres tentam nesta modernidade fluída conservar a leveza nos

gestos e fazer com que da relação se possa extrair tudo que ela pode proporcionar. Deste

modo, ela será fugaz, sem significado e um apelo a um estreitamento já vitimado pela

frouxidão. Bauman (2004a: 70) deduz que, “Em si, a união sexual é de curta duração –

na vida dos parceiros, é um episódio”. Citando Kundera, Bauman observa que o

episódio não se origina da ação anterior e nem produzirá efeito no que está por vir.

Porém, nada indica que um episódio não possa principiar uma ligação entre o ato

precedente e o posterior. Um episódio pode gerar uma estranha modificação. As dúvidas

estarão pairando sobre os contatos em princípios casuais. A incerteza e a insegurança

permanecerão como tormentos e características da vida líquida moderna.

Observando a constatação de Bauman em “A Arte da Vida”, podemos intuir pelo

menos a linha de fuga da condição de refém da incerteza: enquanto estivermos em atrito

com a incerteza já estaremos costurando uma felicidade possível.

A incerteza é o habitat natural da vida humana – ainda que a esperança de escapar da incerteza seja o motor das atividades humanas. Escapar da incerteza é um ingrediente fundamental, menos que apenas tacitamente presumido, de todas e quaisquer imagens compósitas de felicidade (BAUMAN, 2009: 31-32).

Page 106: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

104

Considerações Finais

O mundo da modernidade líquida tem como marca indelével de seu percurso a

transição da sociedade de produtores para sociedade de consumidores. Na modernidade

sólida, a produção cumpria as funções contraditórias de distinção e aprisionamento do

indivíduo ao sistema. Na sociedade líquida moderna, o consumo passa a conceder o

direito à incorporação na esfera da cidadania. O consumo e a cidadania tornam-se

antíteses que consagram uma vida líquida, fragmentária e episódica. Somente pode ser

considerado cidadão aquele que consome. Porém, como as instituições em condição de

degradação, os Estados-nação desregulamentados e privatizados e os vínculos sociais

fragilizados, o termo cidadania sofre certo esvaziamento. Sem a garantia das instituições

criadas para assegurar a efetivação da individualidade e defender a comunidade dos

desmandos de um poder centralizado e dos desrespeitos às leis, houve um considerável

aumento no descrédito ao Estado-nação. O capital abstrato, que viaja leve e sem

dificuldade para romper fronteiras, se tornou na modernidade líquida muito mais fluído

e independente. O trânsito do capital, assim como das mercadorias e dos serviços, não

encontra (a não ser quando esbarra em políticas protecionistas) impedimento para

travessar fronteiras. Nesses casos, não há vigilância. Porém, quando se trata de pessoas

– emigrantes, viajantes do “Terceiro Mundo” – as fronteiras permanecem fortificadas e

as políticas de migração correspondem a uma prioridade do capital: entra quem tiver

condições de consumir. Um fato recente (2012) elucida este ponto. O governo

estadunidense decidiu facilitar a entrada de brasileiros no país, pois estes ocupam os

primeiros lugares entre os que mais gastam, fazendo girar uma economia combalida por

ter sido seriamente afetada pela crise financeira de 2008.

A globalização ainda divide o grande contingente humano em dois. Para

Bauman entre turistas e vagabundos, entre aqueles que têm crédito e aqueles que não

têm permissão para se deslocar (ou caso o faça não encontra o conforto do primeiro

grupo – os dos turistas). É um mundo cingido que possui aspectos devastadores. Há

uma elite extraterritorial e há grupos que vivem um estado de desterritorialização

contínuo. Esta tensão afeta as formações identitárias, que são muito menos claras neste

tempo líquido. Fato que não pode ser considerado excelente nem desprezível.

Instabilidade e mutação que são peculiaridades do mundo líquido.

Page 107: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

105

A incerteza, a insegurança e a falta de proteção caracterizam a modernidade

líquida e estão presente nas mais diversas esferas de atuação humana. Se a descrença na

racionalidade tecno-científica liberou o pensamento e deu as sensações e outras formas

de conhecer um espaço para especular e gerar novas verdades, também fomentou a

incerteza em relação aos nossos parâmetros cotidianos. A moral pós-moderna é

atravessada por dúvidas, o que de certa maneira, facilita a exigência de leveza que o

capital impõe aos seus postulantes ao sucesso (assumir responsabilidades com a

empresa e não se comprometer com coisas extras ao trabalho, contudo nem esse

compromisso com a empresa deve ser indissolúvel), da falta de laços que nos segure a

algum lugar. Os deslocamentos são cada vez mais velozes. E a velocidade nestes

tempos líquidos é a qualidade mais estimada.

As certezas edificadas pela lógica racional moderna de um mundo onde a ciência

proporcionaria o fim das mazelas humanas ruíram com os altos índices de violência e

guerras tornadas mais sangrentas pelo apoio da tecnologia, com a não erradicação da

fome, com o sentimento de desamparo em relação ao Estado. A modernidade líquida

poderia ser descrita como uma época da frustração. No entanto, para Bauman, ela deve

– ou deveria – ser reflexiva e de resistência, de desvelamento dos poderes que

massacram as esperanças de milhares. É um tempo que não produz respostas, mas que

favorece perguntas que precisam ser lançadas como sementes para germinar. A

reconstrução do espaço público e o estabelecimento de uma democracia que seja global

são fundamentais para qualquer projeto que pretenda engendrar mudanças na

insegurança geral a respeito dos dispositivos legais que possuímos para efetivar tais

mudanças.

Se o cenário é aparentemente desesperador, também é oportuno para fazer as

perguntas essenciais para um mundo interdependente no qual a indiferença e o lucro

voraz já causaram muitos danos. Apesar de não haver uma fórmula mágica, há ao

menos a vontade de construir uma agenda comum para a humanidade determinada pelo

respeito às diferenças.

Os desafios contemporâneos estão lançados, sejam eles políticos, sociais,

culturais ou econômicos, e a geração atual vive a contradição do individualismo versus

o sentimento comunitário e a visão do que irá ocorrer está envolto em neblina. A

incerteza como fator constitutivo da vida demanda a ousadia para evitar o medo e a

inércia, mas as maneiras de enfrentá-los parecem sem efeito no momento. A união de

Page 108: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

106

milhões pelas redes sociais gera a esperança a um tempo perdido, contudo seus

resultados até o presente são inócuos, pois pouco altera a política dos donos do capital e

dos Estados que protegem esse capital. Um mundo de incerteza (e injustiças) que

precisa com urgência das contestações que farão da autorreflexão parte essencial da

agenda diária da humanidade.

Page 109: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

107

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento:

fragmentos filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1985.

APPADURAI, Arjun. O medo ao pequeno número: ensaio sobre a geografia da raiva.

Tradução Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2009.

BALANDIER, Georges. A desordem: o elogio do movimento. Tradução Suzana

Martins. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

BAUDRILLARD, Jean. Tela total: mito-ironia da era do virtual e da imagem.

Tradução Juremir Machado da Silva. 3ª ed. – Porto Alegre: Sulina, 2002.

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução

Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004a.

_________. A arte da vida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro. Jorge

Zahar Ed., 2009.

_________. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Tradução

José Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008a.

_________. Capitalismo Parasitário: e outros temas contemporâneos. Tradução Eliane

Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010a.

_________. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Tradução Plínio

Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

_________. Em busca da política. Tradução Marcus Penchel. – Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 2000.

_________. Globalização: as consequências humanas. Tradução Marcus Penchel. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

_________. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução Carlos Alberto

Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005a.

_________. Medo líquido. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar

Ed., 2008b.

_________. Modernidade Líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar,

2001.

_________. Tempos líquidos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Zahar, 2007a.

Page 110: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

108

_________. Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-Madrazo. Tradução

Alexandre Werneck. Rio de Janeiro, 2010b.

_________. Vidas desperdiçadas. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Zahar Ed., 2005b.

_________. Vida líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 2007b.

_________. Zygmunt Bauman. Revista Tempo Social, São Paulo, v. 16, n. 1, jul.

2004b. Entrevista a Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Disponível em:

�http://www.scielo.php?pid=S0103-20702004000100015&script=sci_arttext�. Acesso

em: 17 nov. 2010.

BELL, Daniel. O fim da ideologia. Tradução Sérgio Bath. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 1980.

BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. Editado por

Henry Hardy e Roger Hausheer; prefácio de Noel Annan e introdução de Roger

Hausheer. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da

modernidade. Tradução Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila, Eliana Lourenço de

Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira.

São Paulo: Brasilense, 2006.

BOURDIE, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus,

1996.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas.

Tradução Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CANEVACCI, Massimo. Fetichismos visuais: corpos erópticos e metrópole

comunicacional. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008. (Coleção Azul de Comunicação).

CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais. Rio de

Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

__________. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.

Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. São Paulo: Universidade de São

Paulo, 2003.

Page 111: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

109

__________. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade.

Tradução Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol.

5. Tradução Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1997.

DUPAS, Gilberto. O mito do progresso: ou o progresso como ideologia. São Paulo:

Editora UNESP, 2006.

EAGLETON, Terry. Depois da teoria: um olhar sobre os estudos culturais e o pós-

modernismo. Tradução Maria Lúcia Oliveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2005.

ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Organizado por Michael Schröter;

Tradução Vera Ribeiro: revisão técnicas e notas, Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed., 1994.

GIANNETTI, Eduardo. Vícios privados, benéficos públicos?: a ética na riqueza das

nações. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges.

– 6ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2007.

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Tradução Ana Maria

Bernardo, José Rui Meirelles Pereira, Manuel José Simões Loureiro [et al.]. Lisboa:

Publicações Dom Quixote, 1990.

HANNERZ, Ulf. Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia

transnacional. In: Revista Maná, p. 7-39, 1997.

HOBSBAWM, Eric. O novo século: entrevista a Antonio Polito. Tradução do italiano

para o inglês Allan Cameron; tradução do inglês para o português e cotejo a edição

italiana Cláudio Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica: uma documentação. Tradução Hilde Cohn. São

Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1990.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Tradução

Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.

KUNDERA, Milan. A brincadeira. Tradução Teresa B. Carvalho, Anna Lucia Moojen

de Andrada. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.

__________. A insustentável leveza do ser. Tradução Teresa B. Carvalho da Fonseca.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985a.

Page 112: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

110

__________. Risíveis amores. Tradução Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1985b.

LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade da decepção. Tradução Armando Braio Ara.

Barueri, SP: Manole, 2007.

MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. Tradução Francisco F. Settineri.

Porto Alegre: Artes e Ofícios Editora, 1995.

MAUGHAM, W. Sommerset. O fio da navalha. Tradução Lígia Junqueira Smith. São

Paulo: Círculo do Livro, 1973.

MOCELLIM, Alan. Simmel e Bauman: modernidade e individualização. Revista Tese,

UFSC, v. 4, n. 1 (1), agosto-dezembro, 2007.

ORTIZ, Renato. Mundialização: saberes e crenças. São Paulo: Brasiliense, 2006.

______. Mundialização e cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

______. Um outro território: ensaio sobre a mundialização. São Paulo: Olho d’Água,

2005.

SANTAELLA, Lúcia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus,

2007. – Comunicação

SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a

emancipação social. Tradução Mouzar Benedito. São Paulo: Boitempo, 2007.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência

universal. – 19ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2010.

SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Tradução Carlos Felipe Moisés. São Paulo:

Ática, 2006.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no

novo capitalismo. Tradução Marcos Santarrita. – 14ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2009.

_________. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Tradução Lygia

Araujo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

SILVA, Juremir Machado. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: 2ª Edição,

Sulina, 2006.

YOUNG, Robert J. C. Desejo colonial. Tradução Sergio Medeiros. São Paulo:

Perspectiva, 2005. – (Estudos; 216/ dirigida por J. Guinsburg).

ZIZEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Tradução

Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

Page 113: Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

111

FILMOGRAFIA

As Invasões Bárbaras (Les Invasion Barbares, Canadá/França, 2003). Direção: Denys

Arcand. Duração 99 min.

Babel (Babel, EUA, 2006). Direção: Alejandro González Iñárritu. Duração 142.

Contra a Parede (Gegen Die Wand, Alemanha/Turquia, 2004). Direção: Fatih Akin.

Duração 123 min.

Do Outro Lado (Auf Der Anderen Seite, Alemanha/Turquia, 2007). Direção: Fatih

Akin. Duração 122 min.

Encontros com Milton Santos ou o Mundo Global Visto do Lado de Cá (Brasil, 2006).

Direção: Silvio Tendler. Duração 89 min.

Faça a Coisa Certa (Do The Right Thing, EUA, 1989). Direção: Spike Lee. Duração

120 min.

Match Point (Match Point, EUA/Reino Unido, 2005). Direção: Woody Allen. Duração:

93 min.

Paris, Texas (Paris, Texas, Alemanha/França/EUA, 1984). Direção: Wim Wenders.

Duração 150 min.

Tempestade de Gelo (The Ice Storm, EUA, 1997). Direção: Ang Lee. Duração 113 min.


Recommended