UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE BELAS-ARTES
CORPO DO CONFLITO
Marta Filipa Marques de Almeida
MESTRADO EM PINTURA
2011
ii
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE BELAS-ARTES
CORPO DO CONFLITO
Marta Filipa Marques de Almeida
MESTRADO EM PINTURA
Tese orientada pelo Prof. Doutor João Paulo Queiroz e
co-orientada pela Professora Catedrática Isabel Sabino
2011
iii
Resumo
―Corpo do Conflito‖ é uma tese teórico-prática de pintura que explora o conflito no e
pelo corpo. Esta investigação contempla o cruzamento dos universos da Arte e da Droga.
Associa consumos descontrolados e abusivos de substâncias psico-activas a manifestações
individuais. Diálogos que muitas vezes são focos expressão artística.
Na parte escrita são revistos alguns estudos que abordam os artistas como um grupo
com características específicas do ponto de vista do uso, abuso e dependência de drogas e
álcool, reflectindo sobre o processo criativo nestas circunstâncias. Aprofundam-se estes
conceitos através de alguns exemplos chave revisitando os percursos dos pintores Jackson
Pollock e Frida Kahlo e relacionando o seu trabalho com as manifestações dos conflitos nas
suas vidas.
Na parte prática, conceitos como o ‗mundo de fora‘ e ‗mundo de dentro‘, ‗conflitos‘ e
‗feridas‘, ‗espelho‘ e ‗auto-retrato‘ são usados de forma metafórica, num registo pictórico.
Esta é usada como uma pele, como um corpo, onde estes temas são registados pela matéria
para que ‗os olhos toquem e as mão vejam‘.
É uma busca de entendimento da capacidade que a dualidade física e mental tem de
suportar os conflitos. Uma procura do que pode estar na sua raiz. Tenta-se compreender o que
sucede quando as estruturas desse corpo não são suficientes para a pacificação de conflitos
‗ruidosos‘.
Contacto do autor: [email protected]
Palavras-chave: Artista, Pintura, Álcool, Drogas, Auto-Retrato
iv
Abstract
―From the Conflicted Body‖ is a practice oriented research thesis on painting that
explores the conflict both inside and conveyed by the body. This practice oriented research
covers the worlds of Art and Drugs on their intersections. This research establishes links
between drug abuse and their personal effects. Such dialogues are often found as a focus for
artistic expressions.
The written part of this thesis focuses on the review of previous literature on drugs and
their relation to artists. This is a group with specific characteristics in terms of use, abuse and
addiction to drugs and alcohol. This part intends to single out some the main issues on
creative processes under that kind of circumstances. These questions then are dug deeply by
revisiting some key examples: such painters like Jackson Pollock and Frida Kahlo, relating
their art work with the conflicts in their lives.
In the practice part of the thesis, concepts as ‗outside world‘ and ‗inner world‘,
‗conflicts‘, ‗wounds‘, ‗mirror‘ and ‗self-portrait‘ are used metaphorically, in a pictorial record.
This is used as a skin, as a body, where these issues are recorded through painting materials
trying that ‗the eyes can touch and the ands can see‘.
It is a quest for understanding the ability of the physical and mental duality to support
conflicts. A search for what might well be on its roots. It‘s an attempt to understand what
happens when the body structures are not enough to pacify such ‗noisy‘ conflicts.
To e-mail the author: [email protected]
Keywords: Artist, Painting, Alcohol, Drugs, Self-Portrait
v
Índice
Capítulo 1
Introdução 1
Capítulo 2
CORPO DO CONFLITO
2.1. Introdução……………………………………………………………………….. 6
2.2. Conflitos da criatividade em contexto…………………………………………… 9
2.3. Da curiosidade à experiência……………………………………………………. 9
2.4. Ao encontro do ‗eu‘ ou evasão de si: caminhos para a dependência química…... 12
2.5. Os arredores do Homem e as drogas……………………………………………. 14
2.6. O Mundo de dentro e o Mundo de fora…………………………………………. 15
Capítulo 3
UM OLHAR SOBRE OS PERCURSOS DE JACKSON POLLOCK E FRIDA KAHLO
3.1.Jackson Pollock: dança com telas…………………………….………………….. 17
3.2.Frida Kahlo: retratos de dor……………………………………………………… 24
Capítulo 4
“Quando os Olhos tocam e as Mãos vêem”: discussão de resultados…………… 32
Bibliografia………………………………………………………………………….. 41
vi
Lista de figuras
Capítulo 3
Figura 1. Jackson Pollock. Sem titulo (Xamã a Dançar), 1939/40…………….……. 19
Figura 2. Jackson Pollock. Macho e Fêmea, 1942…………………………….…….. 20
Figura 3. Jackson Pollock. Mulher-Lua, 1942……………………………….……… 20
Figura 4. Jackson Pollock. Mulher-Lua corta o círculo……………………….….…. 20
Figura 5. Frida Kahlo. Pensando en la Muerte, 1943…………………………..…… 26
Figura 6. Frida Kahlo. Autoretrato dedicado al Dr.Eloesser…………………….…. 26
Figura 7. Frida Kahlo. Diego y yo, 1949……………………………………….……. 26
Figura 8. Frida Kahlo. Árbol de la esperanza, mantente firme, 1946………….……. 26
Figura 9. Frida Kahlo. Árbol de la esperanza, mantente firme……………….……… 26
Figura 10. Frida Kahlo. Recuerdo o El Corazón ,1937……………………………… 26
Figura 11. Frida Kahlo. Henry Ford Hospital o La cama volando, 1932…………… 29
Figura 12. Frida Kahlo. La columna rota, cerca de 1944………………………….. 29
Capítulo 4
Figura 13. Marta Marques. A Calma Do Caos, 2011……………………,,…………. 33
Figura 14. Detalhe da pintura A Calma do Caos ………………………,…………… 33
Figura 15. Detalhe da pintura A Calma do Caos ……………………….…………… 33
Figura 16. Detalhe da pintura Cicatrizes privadas ………………………...………… 34
Figura 17. Detalhe da pintura Cicatrizes privadas…………………………………… 34
Figura 18. Marta Marques. Cicatrizes privadas, 2011…………………,,…………… 35
Figura 19. Marta Marques. Presença Ausente, 2011………………………………… 36
Figura 20. Detalhe da pintura Presença Ausente ………………………,…………… 37
Figura 21. Detalhe da pintura Presença Ausente ………………………,…………… 37
Figura 22. Marta Marques. Tenho uma Estranha por Dentro, 2011………………… 38
Figura 23. Detalhe da pintura Tenho uma Estranha por Dentro ………….………… 39
Figura 24. Detalhe da pintura Tenho uma Estranha por Dentro ……………….…… 39
vii
Agradecimentos
Desde que tomei a decisão de abordar o assunto desta tese que soube quem desejava
que me orientasse. Apesar de não constar na lista dos orientadores a Pintura, o professor João
Paulo Queiroz aceitou acompanhar-me neste desafio. Esse seu gesto de acolhimento, que se
transformou no impulso para assumir uma temática à qual sou extremamente sensível, faz-me
sentir uma gratidão que penso nunca conseguir retribuir. Agradeço também a ajuda na busca
de respostas, a disponibilidade e o auxílio sempre rápido e pronto. O tempo que me dedicou.
As conversas ‗desenhadas‘ que guardarei sempre comigo.
À professora Isabel Sabino, por se aproximar de mim e me fazer questionar enquanto
pintora. Acreditando em mim fez com que me interrogasse, corporificando assim o meu acto
criativo. O seu olhar atento e exigente foi o responsável pela motivação ao meu gesto da
Pintura. O seu confronto ajudou a desconstruir as minhas ‗verdades absolutas‘,
transformando-as em caminhos por descobrir. Agradeço a sua paciência à leitura das minhas
pinturas que juntamente comigo foram crescendo, propiciando-me novas descobertas do meu
‗eu‘.
Ao meu bom amigo, o fotógrafo Luís Pais, que se disponibilizou a fotografar as
minhas pinturas e a acompanhar-me no meu trabalho. Sinto um profundo carinho pela forma
em como manifesta a sua empatia comigo, ajudando a ver-me como artista e a sentir-me uma
pessoa melhor. Sem as nossas conversas intermináveis não teria chegado às perguntas
necessárias.
A todos aqueles que caminham a meu lado e me fazem ver neles espelhos, ajudando-
me a conversar comigo e a ouvir o silêncio. A entender-me e a moldar-me, a encontrar os
meus pedaços. A todos os que me ensinaram a saber dar e receber.
Mas por trás de cada passo meu estão três mulheres; mãe, mana e Célia. A elas devo a
memória de que sou feita e a manter-me no presente, que é onde a vida acontece. Em especial
à minha mãe por me ter ensinado a descobrir a beleza de um mundo onde vale a pena viver.
A Pintura só me acontece porque vocês me acontecem.
viii
Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro acorda.
Carl Gustav Jung
1
Capítulo 1
Introdução
Corpo do Conflito surge como uma reflexão sobre a relação indirecta entre os
universos da arte e da droga, e da forma como em algumas situações estes universos se
cruzam.
Sem defender quaisquer ideologias com base no binómio arte e droga, nem das suas
possíveis associações, pretende-se retirar conteúdos pertinentes para a compreensão de certos
comportamentos adjacentes ao uso e abuso de substâncias psico-activas no mundo artístico.
O mundo das artes tem implícito um poder de comunicação ‗apurado‘, consequente do
avanço que a aquisição da linguagem trouxe à humanidade. Se as palavras constituem
símbolos inventados justamente para o fim da comunicação objectiva, como forma a
providenciar entendimento, a linguagem plástica surge da necessidade de promover um
entendimento mais íntimo, através de códigos subjectivos dos mundos interiores do artista,
únicos na sua expressão. É uma forma de comunicação, que ao proporcionar entendimento, se
pode traduzir metaforicamente em silêncio. Um ‗silêncio mental‘ sugerido pela quietude da
interacção harmoniosa entre os mundos interiores e exteriores do sujeito criativo.
Quando um artista olha para dentro de si e explora as suas zonas íntimas, menos
claras, mas de uma importância fulcral para o bom funcionamento das estruturas do seu
mundo interior e da sua interacção com o seu mundo exterior, procura na expressão artística
uma forma de libertação. Libertação das dúvidas, angustias, medos e ansiedades que a
caminhada pelas ruas da sua existência proporcionam.
Conhecer-se pode ser ameaçador e até por vezes doloroso, a fragilidade íntima dos
recantos da personalidade de cada um e a sua descoberta constituem um dos medos mais
profundos das pessoas.
A busca do auto-conhecimento faz-se por caminhos inquietantes e interrogativos mas
ao mesmo tempo produtores da descoberta do prazer de livremente pensar e agir, de ser e
sentir. No artista, essa busca, pode ser auxiliada pela sua forma particular de questionar e
comunicar pela linguagem plástica – rica pela sua diversidade e infinitas possibilidades.
Quando as pontes que ligam esses caminhos são expostas a obstáculos e ‗ruídos‘,
interferem no ‗silencio mental‘ que a criação artística pode propiciar. Surgem conflitos nos
‗estares‘ e ‗sentires‘ do indivíduo. Conflitos que podem ser traduzidos pelas perturbações que
2
surgem num dos mundos, o exterior e o interior, que logo são transportadas para o outro,
desequilibrando as suas interacções.
Explora-se nesta tese teórico-prática o corpo do conflito e o conflito no corpo. Intenta-
se compreender a capacidade do corpo, seja este o físico e/ou o mental de suportar os ‗ruídos‘
e o que pode estar na sua raiz, assim como o que acontece quando os seus próprios
mecanismos, sejam estes ou não os da libertação artística, não são suficientes para a
pacificação desses conflitos ‗ruidosos‘.
De que forma as substâncias químicas, exteriores ao corpo, surgem nessa tentativa de
pacificação, e o porquê da sua introdução no universo artístico, seriam boas perguntas para
começar.
Seus ‗adeptos‘, em muitos casos, artistas conhecidos com vidas e obras intensas,
terminam por encontrar nessas substâncias uma forma de conforto e fuga das suas
tempestades, tornando-se consumidores-problema e desenvolvendo adições ao longo dos seus
percursos.
Adições que terminam por se transformar num corpo tormentoso que se une às
tempestades das quais queriam fugir, e que traduzem a manifestação mais clara de conflitos
não resolvidos. Conflitos que por permanecerem escondidos em ‗sítios escuros‘, recalcados,
trazem novas zonas de desconforto e desencontro.
São artistas que terminam por ser julgados e apreciados pelo seu talento artístico, sem
normalmente se unir este ao uso que fazem das substâncias que os atraem, lhes dão alento,
silenciam os ‗ruídos‘ dos corpos conflituosos e os fazem jogar à morte com a própria vida.
Como o estudo do consumo de drogas e álcool e a sua incidência no processo criativo
é um tema muito amplio, foca-se nesta tese um período determinado, mirando casos práticos
de artistas plásticos de meados do século XX.
Algumas teorias e estudos deste período, são abordadas no segundo capítulo. Na
segunda metade do século XX surgem vários ensaios baseados na pedagogia da criatividade,
sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável, transmitindo a ideia
de que para ser-se criativo não é necessário ser fadado para as belas-artes.
Por esta altura o conceito de criatividade unida ao uso de drogas começou a ser
abordado despertando o interesse de muitos investigadores1.
1Gonzalez de Riviera, Creatividad y estados de conciencia; Morris I. Stein, Stimulating Creativity; Perera, Fenomenologia
paranormal en la inspiracíon artística; Pritzker, Alcohol and creativity
3
São experiências que fazem parte da nossa história mais recente e povoam muito do
universo da arte contemporânea, um período que conviveu com o uso de drogas de uma
maneira mais óbvia e ‗sincera‘ do que em séculos precedentes.
A todos nos é fácil assimilar a imagem do artista boémio, do artista maldito, do artista
solitário que se consolidou sobretudo a partir do século XIX. Tomemos como exemplos
Amedeo Modigliani (1884-1920), Charles Baudelaire (1821-1867), Vincent Van Gogh (1853-
1890), Henri Michaux (1899-1984) e Toulouse-Lautrec (1864-1901).
No terceiro capítulo revolvem-se estes conceitos, de forma mais aprofundada, com o
percurso dos pintores Jackson Pollock (1912-1956) e Frida Kahlo (1907-1954).
O primeiro, considerado uma forte influência na pintura moderna e uma das principais
figuras do Expressionismo Abstracto, pintor com um mundo interior bastante atormentado,
cuja vida e morte foram marcadas pelo consumo abusivo de álcool.
E Frida Kahlo, a artista mexicana que deixou marcas profundas na pintura do século
XX. Encontrou-se na pintura devido às vicissitudes dramáticas que o seu mundo de fora lhe
proporcionou, deixando muitas feridas no seu corpo e demasiadas cicatrizes no seu mundo de
dentro. Muitos conflitos, muita dor e sofrimento, que a uma dada altura tenta apaziguar com
álcool e barbitúricos. Um comportamento que se torna descontrolado e lhe cria dependências
que a acompanham até à sua morte.
Ao nível das sociedades em geral podemos falar de drogas e álcool como forma de
evasão, como busca de identidade, como encontro ou desencontro, como conforto, como
forma de fuga à dor e ao sofrimento que fazem parte da vida dos mundos de fora e de dentro.
Mas no universo das artes, podemos ainda falar de droga como uma forma de acalmar a
ansiedade que precede a criação, como forma a ultrapassar a angústia vital que no mundo
artístico se associa ao desejo de encontrar estímulos para a criatividade, assim como um
caminho para despertar ideias.
O facilitismo tentador que as drogas oferecem para substituir desprazer por prazer,
assenta numa ilusão de encontrar atalhos mais fáceis e rápidos para acalmar o ‗corpo do
conflito‘ da vida quotidiana. Também para abrir o espírito, elevando a consciência para níveis
mais difíceis de alcançar sem o seu uso, assim como acalmar o ‗ruidoso‘ que pode ser o
confronto com uma ―tela em branco‖.
No quarto capítulo expõe-se a série de pinturas ―Quando os Olhos tocam e as Mãos
Vêem‖: discussão de resultados, onde estas questões, de carácter não definitivo, são tomadas
como caminhos para novas explorações e indagações.
4
Parecem ser caminhos já muito explorados, percorridos uma e outra vez ao longo da
história da humanidade, mas ao mesmo tempo com tanto por questionar e por responder, com
muito por decifrar.
5
Capítulo 2
CORPO DO CONFLITO
Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral,
algum dia seja capaz de passar sem paraísos artificiais.
Aldous Huxley2
2.1. Introdução
Percorrendo as histórias de vida de alguns artistas que se cruzaram com o abuso de
substâncias psicoactivas, procura-se neste trabalho estabelecer pontos de afinidade e de
diferença dentro das suas ligações intermitentes com o real.
Tomaram-se as obras exemplares e paradigmáticas de Frida Kahlo e de Jackson
Pollock, contrapondo essa exemplaridade com as irregularidades dramáticas das suas
biografias. Destes contrastes espera-se suscitar uma inquietação capaz de aclarar um campo
de expansão criadora, zona de propostas de produção prática, neste projecto inserido no
programa de mestrado em Pintura da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.
Trata-se pois de uma reflexão sobre o uso de substâncias alteradoras do estado de
espírito na comunidade artística e de que forma estas podem influenciar o desempenho
criativo do sujeito, explorando contextos e situações que possam conduzir a esse processo.
Pode-se dizer que a criação artística se manifesta pelo indivíduo, provocando nele uma
espécie de estado alterado da consciência. Alterado no sentido em que ultrapassa a recepção
primária de estímulos ou a sua simples transmissão. Acontece pela sua forma de interagir com
o mundo, de se expor, de questionar, de criticar. Uma forma de comunicar que ultrapassa as
palavras, como se novas sinapses entre o seu universo interior e o mundo que o rodeia se
tratasse.
Aldous Huxley reflecte sobre essa forma única que o artista tem de comunicar e de
percepcionar o mundo, numa das suas expansões de consciência, através do consumo de
mescalina, ao escrever:
O que nós, outros, só vemos sob a influência da mescalina pode, a qualquer tempo, ser
visto pelo artista, graças à sua constituição congénita. A sua percepção não está limitada
ao que é biológica ou socialmente útil. Algo do saber inerente à Omnisciência flui
2Aldous Huxley, As Portas da Percepção, p.51.
6
através da válvula redutora do cérebro e do ego e atinge sua consciência. Isso dá-lhe um
conhecimento do valor intrínseco de tudo o que existe. Tanto para o artista como para
quem ingere mescalina, o tecido é um hieróglifo vivo que representa, de certo modo
singularmente expressivo, os insondáveis mistérios da existência.3
Segundo a comparação estabelecida por Huxley entre o artista e os ‗outros‘, a forma
como experimentam o conhecimento do valor intrínseco das coisas, assim como ‗a
consciência de si‘, distingue-se na maneira de ser assimilada e transmitida. Este conhecimento
parece acontecer de forma hipersensível, mediado por uma abertura de consciência que
transcende o que é social ou biologicamente declarado. No artista de forma inata e nos
‗outros‘ através da mescalina.
Se o que distingue o artista é a forma criativa e singular de comunicar e percepcionar,
interroga-se neste trabalho a necessidade que por vezes nele surge de ‗procurar-se‘ em
substâncias químicas. Interroga-se se essa ‗busca‘ funciona como um veículo para potenciar a
sua criatividade, provocar desinibição e atenuar inseguranças que possam surgir no
desempenho criativo, ou se será uma forma de silenciar os seus conflitos.
2.2. Conflitos da criatividade em contexto
Se pudesse definir criatividade diria intuitivamente que é um estado de espírito,
caracterizado por uma sensibilidade fora do comum capaz de produzir novas imagens,
objectos e contextos. Manifesta-se pelo (e no) indivíduo quando este após ‗ouvir‘ o que se
passa no seu mundo de dentro, introduz algum tipo de ‗nova realidade‘ à existência. É como
uma sucessão de ‗ruídos‘ ou até de ‗silêncios‘ que povoam o mundo mental do artista, e que
ele tenta transpor para o mundo material, através da sua forma única de comunicar. Um
‗estado‘ que passa pelo transportar do mundo interior do sujeito para a realidade exterior.
As produções artísticas parecem ser, de um modo geral, manifestações do intelecto do
artista, que apesar de se materializarem no mundo físico é no psiquismo do indivíduo que as
produz que são ‗fabricadas‘, assim como são experimentadas pelo mundo mental de quem as
observa.
Apesar de não ser a área base desta investigação, a psicanálise pode enriquecer os seus
conteúdos e auxiliar na compreensão das questões levantadas. É neste campo que se
encontram muitos dos estudos que relacionam a criatividade, substâncias químicas e estados
de consciência.
3Aldous Huxley, As Portas da Percepção, p.27.
7
Por exemplo, Stein4 relacionou a sensibilidade com a criatividade, concluindo que um
sujeito criativo acede com mais facilidade ao seu inconsciente nos seus processos de
percepção e pensamento, que outro menos criativo. Reflectiu sobre o uso de drogas neste
contexto e a forma em como essa prática pode ajudar o artista a ‗vender ideias‘ e a lidar com o
stress que ocorre antes da produção artística.
Segundo o autor a criatividade desenvolve-se no processo de construção do
pensamento, no mundo das ideias. O indivíduo criativo parece utilizar o inconsciente e os
instintos em maior número que um sujeito não criativo. Parece ser essa movimentação que
singulariza as caminhadas pelo mundo interior e exterior do sujeito criativo.
Outro autor que se debruçou sobre estas questões foi Pritzker5. Focando
especificamente o álcool, analisou a maneira como este é por vezes usado de forma a reduzir a
ansiedade e fugir da dor, aludindo a testemunhos de pessoas onde afirmam que o álcool as
ajudou nos seus trabalhos.
Segundo Pritzker existe uma relação romantizada entre álcool e criatividade, aludindo
também à desinibição que este provoca, para justificar o consumo como uma prática
recorrente na vida desses artistas.
Contudo o álcool é também um depressor do sistema nervoso central. Tem os seus
efeitos compreendidos em dois períodos, um que estimula e outro que deprime. Num primeiro
momento ocorre euforia e desinibição, que na continuação do consumo é seguido de
descontrolo, falta de coordenação motora e sonolência.
Pritzker fez um levantamento das situações que poderiam fazer, com que no meio
artístico, o álcool surgisse como um ‗aliado‘.
Refere num primeiro ponto a ‗oportunidade‘, que surge pelo tipo de trabalho, solitário,
normalmente desempenhado pelos artistas.
Num segundo ponto refere a ‗dificuldade no trabalho‘ artístico, pela sua incerteza de
resultados, que apelam ao desejo de sucesso.
Num terceiro ponto refere o stress, pois ―os criadores sentem muitas vezes que o que
se espera deles é superar a sua própria originalidade, corresponder a expectativas criadas é um
factor de stress. Ao mesmo tempo que o álcool alivia a tensão provocada pelo stress, pode
providenciar a desculpa perfeita para o falhanço.‖6
Abordou ainda pontos como; ‗razões sociais‘, ‗depressão‘ e a ‗adição‘, referindo que a
relação que se estabelece entre álcool e criatividade é intrigante e complexa. 4Morris I. Stein, Stimulating Creativity. 5Pritzker, Alcohol and creativity. 6Idem, Ibidem, p.56.
8
Este autor conclui que ―o uso prolongado e abusivo do álcool é um factor de
decadência das faculdades criativas e do indivíduo no seu total, sendo um factor directo ou
indirecto de morte.‖7
Outro autor que pensou estas temáticas no campo da psicanálise foi Riviera8. Este
estabelece associações pertinentes entre criatividade, estados de consciência e substâncias
psicoactivas, analisando a procura de alguns artistas nas drogas de um despertar na sua
criatividade. Prática que numa primeira instância poderá ‗elevar‘ o espírito artístico a níveis
que seriam mais difíceis de alcançar sem o uso dessas substâncias, concluindo contudo que o
seu consumo habitual provoca a deterioração progressiva das faculdades.
Analisa também a tensão interior, intrínseca à criatividade, como sendo a percepção
subjectiva do processo criador:
―La sensación de pensar o saber algo nuevo se acompaña de una tensión interior para
expresarlo y llevarlo a la práctica. Esta tensión es precisamente la percepción subjetiva del
proceso creador.‖9. Verificando que a dificuldade em lidar com esta tensão pode também ser
um dos factores da procura de substâncias psicoactivas.
Riviera afirma que:
La realidad puede contener una infinita cantidad de aspectos, todos ellos en continua
variación, pero nuestro cerebro es capaz de entresacar de ese caos una pauta, un
esquema estable que nos permita dar un alto grado de constancia y predictibilidad a esa
realidad. (…) Este es, precisamente, el primer requisito del acto creador: una
remodelación de la realidad interior, una nueva forma de ver las cosas, un cambio a
veces brusco, de nuestros esquemas conceptuales. Desde el punto de vista práctico, un
alto grado de plasticidad de los constructos y la existencia de ricos nexos entre ellos,
parece ser una de las bases importantes en la constitución de la mentalidad creativa,
tanto en el terreno artístico como en el científico.10
Segundo o autor, pode-se então definir criatividade como uma transformação da
realidade interior que origina novas perspectivas e uma mudança das tramas conceptuais. Para
haver criatividade é necessário um alto grau de plasticidade e um grande número de
interligações nas construções mentais.
É a maneira como o sujeito se relaciona com a realidade, a forma como este lida com o
seu mundo interior e o remodela, que faz com que a sua criatividade seja ou não potenciada.
Neste contexto não parece ser essencial que o indivíduo esteja relacionado com o mundo das
artes. Pode ser-se criativo na maneira de viver o mundo intra-psíquico e extra-psíquico, assim
7Pritzker, Alcohol and creativity, p.57. 8Gonzalez de Riviera, Creatividad y estados de conciencia. 9Idem, ibidem, p.1. 10Idem, Ibidem, p. 2.
9
como na forma de lidar com os conflitos. Estes normalmente surgem quando algo perturba um
desses mundos e consequentemente afecta o outro.
Contudo no artista parece haver um marco comum, que é a maneira singular e
complexa de construir pontes entre o seu mundo de dentro e o seu mundo de fora, denunciada
por uma forma criativa de comunicar.
Riviera centrou algumas das suas investigações numa população de pintores e
escritores, que ao longo dos seus percursos associaram a sua criatividade ao consumo de
drogas. Defendeu que essa população possuía uma predisposição a estados inabituais de
consciência.
Se a essa predisposição se juntarem certos tipos de condições propícias para a
utilização de substâncias psicoactivas, como o hedonismo, o individualismo, a solidão (o
próprio desempenho artístico que é por si só uma actividade solitária), certas situações sociais
assim como uma crescente necessidade de ser transportado para um outro mundo, podem
conduzir o artista a uma situação de dependência química.
Complementando estas investigações outro psicanalista, Perera11
, num estudo sobre a
fenomenologia da inspiração artística, mostra como um grande número de artistas, escritores e
cientistas recebem as suas ―inspirações‖ em estados alterados de consciência. Conclui que não
existe um estado de consciência específico para a criatividade e que a mera vivência de um
estado de consciência inabitual, não é suficiente para desenvolver a criatividade.
Este estudo sugere que a criatividade pode ser fruto de diversos estados de
consciência, assim como pode ser produtora dessa diversidade.
2.3. Da curiosidade à experiência
Esta temática há cerca de meio século começou a estimular a curiosidade dos
investigadores que iniciaram vários estudos, como os que aconteceram com grupos de
controlo, na década de 60, numa tentativa de verificar a influência de drogas psicadélicas no
comportamento criativo.
Por exemplo foi administrado LSD a 50 reconhecidos artistas no Instituto Max Planck
Institute em Munique12
, cujos resultados acabaram por ser inconclusivos devido às variantes
do estudo; desde as quantidades das substâncias, aos tempos do efeito devido às diferenças de
indivíduo para indivíduo, assim como o carácter abstracto do significado de ―criatividade‖.
11Perera, Fenomenologia paranormal en la inspiracíon artística. 12Pluker & Dana, ―Drugs and Creativity‖, in Enyclopedia of creativity, p.60.
10
Contudo os artistas validaram a experiência e os trabalhos executados sob esses efeitos
foram expostos numa galeria de Frankfurt.
O consumo de drogas nos anos sessenta esteve vinculado a uma reacção à cultura
instituída na época e representava uma via de acesso a um ‗novo mundo‘. ―Esse desejo de
transformações sociais era compartilhado colectivamente pelo ideal da contracultura e a droga
tornou-se um símbolo de contestação, partindo inicialmente de Walter Benjamin e Aldous
Huxley e depois acompanhado por Erns Jünger, Robert Graves, Antonin Artaud e Henri
Michaux.‖13
Aldous Huxley (1894-1963) ensaísta e romancista inglês, mostra-se inconformado
com as limitações do corpo humano, e em 1954 escreve As Portas da Percepção, onde revela
as suas experiências com a mescalina e reflecte sobre as suas implicações éticas e mentais.
A mescalina (principio activo do cacto Peyote) é um alucinogénio forte que se instala
nos receptores cerebrais provocando alterações de consciência e percepção, principalmente a
nível visual.
Huxley comprova essas alterações:
A mente preocupava-se, mais do que tudo, não com medidas e lugares, e sim com a
existência e o significado.
Essa minha experiência tinha sido, e ainda era, de duração indefinida, também
podendo ser considerada um perpétuo presente, criado por um apocalipse em
contínua transformação (…) O outro mundo ao qual a mescalina me conduzira não
era o mundo das visões; ele existia naquilo que eu podia ver com meus olhos abertos.
A grande transformação dava-se no reino dos factos objectivos. O que tinha
acontecido ao meu universo subjectivo era coisa que relativamente, pouco
importava.14
Outro exemplo prático é Henri Michaux (1899-1984) cujo uso de drogas psicadélicas,
impulsionou a sua filosofia como poeta e como pintor. A uma dada altura da sua vida também
usou propositadamente a mescalina, de forma a munir os seus universos líricos e imagéticos
de fantasia, magia e encantamentos, fruto da alteração da consciência do tempo, sinestesia e
alucinações que esta droga proporciona.
Michaux fez um filme sobre a mescalina intitulado ―Miserable Miracle‖ (1956) onde
descreve a sua experiência, quase como um estudo de causa-efeito, e se mostra mais
perturbado do que agradado com o consumo desta droga que considera poderosa.
13Katia Varela Gomes, Dependência Química em Mulheres; figurações de um sintoma partilhado, p.35. 14Aldous Huxley, As Portas da Percepção, p.17.
11
No século XIX Charles Baudelaire (1821-1867) relata em ―Os Paraísos Artificiais‖
experiências com o haxixe, o ópio e o vinho.
O ópio é destas três substâncias o mais retardador do organismo. É um opiáceo muito
forte, que tem como principal componente activo a morfina e cria habituação muito
rapidamente.
Baudelaire refere-se ao ópio como um ‗bálsamo suavizante‘ dos sentidos ― (…) para as
feridas que não cicatrizarão jamais e paras as angústias que induzem o espírito em rebelião,
levas um bálsamo suavizante: eloquente ópio!‖15
Fala também da dependência que este cria, no capitulo ―As Torturas do Ópio‖, descrita
em frases como:
A fascinação operou-se; a vontade está domada; a lembrança do prazer exercerá a sua
eterna tirania. (…) Adeus aos sorrisos e aos risos, adeus à paz de espírito, adeus à
esperança e aos sonhos tranquilos (…) chegou às torturas do ópio.16
Em relação ao vinho fala do seu carácter imprevisível quando afirma que:
O vinho é semelhante ao homem: não se saberá nunca até que ponto se poderá estimá-lo
e desprezá-lo, amá-lo e odiá-lo, nem de quantas acções sublimes ou de que perversidades
monstruosas é capaz.17
Walter Benjamin (1892-1940), um pouco à semelhança dos autores anteriormente
referidos, recorre a substâncias como o haxixe e a mescalina, retratando uma ‗outra realidade‘
em suas obras de crítica de arte. Reflecte sobre o uso de narcóticos no desenvolvimento da
literatura que analisava, fazendo apreciações como:
Quem percebeu que as obras desse círculo não lidam apenas com a literatura, e sim com
outra coisa, [...] sabe também que são experiências que estão aqui em jogo, não teorias,
e muito menos fantasmas. E essas experiências não se limitam de modo algum ao sonho,
ao haxixe e ao ópio. É um grande erro supor que só podemos conhecer das ‗experiências
surrealistas‘ os êxtases religiosos ou os êxtases produzidos pelas drogas. [...] A
superação autêntica e criadora da iluminação religiosa não se dá através do narcótico.
Ela dá-se numa iluminação profana, de inspiração materialista e antropológica18
Já antes Baudelaire mostrara uma concordância com esta suposição quando cita
Barbereau:
15Charles Baudelaire, Os Paraísos Artificiais, p.67. 16Idem, ibidem, p.114. 17Idem, ibidem, p.184. 18Walter Benjamin, Sobre o Haxixe e outras drogas.
12
Não compreendo porque o homem racional e espiritual se serve de meios artificiais
para chegar à beatitude poética, uma vez que o entusiasmo e a vontade bastam para
elevá-lo a uma existência supra natural. Os grandes poetas, os filósofos, os profetas
são seres que pelo puro e livre exercício da vontade chegam a um estado em que são ao
mesmo tempo causa e efeito, sujeito e objecto, magnetizador e sonâmbulo - penso
exactamente como ele.19
2.4. Ao encontro do „eu‟ ou evasão de si: caminhos para a dependência química
O uso de drogas está associado a experiências de prazer e desprazer. Procura-se nas
drogas um apaziguamento do sofrimento, um amortecimento ou aumento do campo sensorial,
seja este físico ou mental. Pode ainda representar uma forma de evasão de si ou da realidade
que não se deseja percepcionar. Traduz-se num desejo de fuga também descrito por Huxley
quando afirma que ―O impulso para fugir a nós mesmos e ao que nos rodeia está presente em
cada um de nós, quase todo o tempo. (…) é inevitável que perdure, apesar de tudo, a
necessidade de frequentes excursões químicas para longe da intolerável personalidade e dos
repulsivos arredores de cada um‖.20
Elementos conjugados simultaneamente pelo prazer ou desprazer, pela relação do
sujeito com a realidade ou com ele próprio. São elementos que ao serem encaixados na
memória podem produzir estímulos de repetição, e posteriormente transformados numa
necessidade exterior às condições primordiais do homem.
Caminhos apontados por Baudelaire quando afirma:
Com efeito é proibido ao homem, sob pena de decadência e de morte intelectual,
desordenar as condições primordiais de sua existência e quebrar o equilíbrio das suas
faculdades com os meios em que elas estão destinadas a mover-se, numa palavra,
desordenar o seu destino para o substituir por uma fatalidade de novo género.21
E reflecte sobre a ruptura do equilíbrio das faculdades, com o uso do haxixe, expondo
o seguinte pensamento:
E se, embora à custa da sua dignidade, da sua honestidade e do seu livre arbítrio, o
homem pudesse extrair do haxixe grandes benefícios espirituais, fazer dele uma espécie
de máquina de pensar, um instrumento fecundo?22
19Charles Baudelaire, Os Paraísos Artificiais, p.207. 20Aldous Huxley, As Portas da Percepção, p.53. 21Charles Baudelaire, Op.Cit., p.64. 22Idem, Ibidem.
13
Na sequência deste pensamento afirma ainda:
Esta esperança é um ciclo vicioso: admitindo por um instante que o haxixe dá ou pelo
menos aumenta o génio, esquecem que é da natureza do haxixe diminuir a vontade, e que
assim concede por um lado o que retira por outro, isto é a imaginação sem a faculdade
de a aproveitar.23
E por fim conclui: ―Aquele que recorre a um veneno para pensar não tardará a não
poder pensar sem veneno.‖24
Parece tratar-se de uma ruptura com a dimensão do sensível ao mesmo tempo que uma
impossibilidade de ser-se racional o tempo todo. O ser humano vive também de seus estados
emocionais, que apesar de muitas vezes serem impulsionados por estímulos exteriores, é no
seu mundo interior que essa informação é processada.
Sendo cada indivíduo um universo muito próprio de experiências, sendo ele o centro
de toda a sua existência, uma entidade que recebe e dá ao mundo, também com ele existe uma
necessidade de olhar para o seu mundo interior.
Em Céu e Inferno (1956), Aldous Huxley faz uma espécie de levantamento das
implicações éticas e mentais do uso de substâncias psicoactivas através da sua experiência
com a mescalina. Constata que o êxtase da ‗abertura espiritual‘ que os efeitos dessa substância
provocam, pode levar o indivíduo à auto-aniquilação sempre que esse meio se transforme
num destino.
Huxley acrescenta:
A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e
tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os
anseios para superar-se, ainda por uns breves momentos, estão e têm estado sempre
entre os principais apetites da alma.25
Estes ‗apetites da alma‘ podem estar na origem dos comportamentos relacionados com
a adição a drogas. Uma das características desta adição é o deslocamento da actividade
pensante do indivíduo para o objecto de refúgio; a droga, seja ela qual for.
Admite-se que sendo a vida energia, ela tem que ter pólos positivos e negativos.
Assume-se também que ninguém gosta de sentir o negativo da sua existência, nem de olhar
verdadeiramente para o seu lado ‗feio‘.
Interroga-se o porquê dessas ‗excursões para longe da intolerável personalidade de
cada um‘ acontecerem através dos químicos disponíveis.
23Charles Baudelaire, Os Paraísos Artificiais, p.64. 24Idem, ibidem. 25Aldous Huxley, Op.Cit., p.51.
14
2.5. Os arredores do Homem e as drogas
Apesar do conceito de dependência química e adição serem definições do nosso
tempo, o uso de substâncias psicoactivas é um fenómeno tão antigo quanto a própria
humanidade.
Substâncias psicoactivas são o que denominamos por drogas. Estas, uma vez em
contacto com o organismo, modificam as suas funções, sensações, emoções, o humor e o
comportamento. Podem ser naturais (oriundas de plantas, animais ou minerais) ou sintéticas
(fabricadas em laboratórios).
Os seus efeitos no organismo podem ser estimulantes (que aceleram as funções do
organismo), depressores (que retardam o funcionamento do organismo), perturbadores
(perturbam o funcionamento do sistema nervoso central), psicotrópicos (possuem tropismo,
alteram as actividades psíquicas e o comportamento)26
.
Existem registos de há 5 mil anos de folhas de coca serem utilizadas. Data de 3000
a.C. o uso de derivados de opiáceos e o consumo de cânhamo remonta à Antiguidade. No
século XIX, os princípios activos de certas plantas foram isolados para se produzir fármacos
―como a morfina (1806), a codeína (1832), a cafeína (1860), a heroína (1883), a mescalina
(1896) e os barbitúricos (1903) ‖27
, marcando uma revolução na indústria farmacêutica.
Nessa época substâncias como a cocaína e a morfina começam a ser usados fora dos
circuitos da medicina, cumprindo ‗caprichos hedonistas‘ com fins relacionados ―com o valor
absoluto da Idade Moderna – o indivíduo e os ditames do seu foro interior. Artistas
embarcavam no uso de ópio e haxixe para aventuras interiores, para a transformação dos
sentidos e dos pensamentos, usando como tema de inspiração para suas criações.‖28
No século XX com prolongamento no século XXI aumenta o que os especialistas
chamam de ―mania ocidental por pílulas‖29
que é um abuso do uso de medicamentos, muitas
vezes de forma exagerada e auto-suficiente.
Apesar do álcool ter uma historiografia distinta, ele é hoje considerado pelos
especialistas como uma droga, devido aos fins com que muitas vezes é usado, suas causas e
consequências relativamente ao sujeito.
A produção e os efeitos do álcool são conhecidos desde os tempos mais remotos da
humanidade. ―No período Neolítico, a cerveja e o seu fabrico já eram do conhecimento do
Homem. Egípcios, gregos e romanos são exemplo de povos que conheceram e desenvolveram
26Maria C. D‘Arcádia Novo, Drogas: Fora da Lei e Dentro do Usuário, p. 87. 27Katia Varela Gomes, Dependência Química em Mulheres; figurações de um sintoma partilhado, p. 33. 28Idem, Ibidem, pp. 33-4. 29Maria C. D‘Arcádia Novo, Op.Cit.
15
as artes do fabrico de bebidas alcoólicas, assim como os efeitos do seu uso pelo Homem.‖30
A prática do consumo abusivo de álcool e a dependência que esse comportamento
produz, fez com que na segunda metade do século XIX fosse conotado o alcoolismo como
uma doença que afecta o alcoólico em todos os aspectos da sua vida31
.
Embora esteja hoje já afastada, pela maioria dos autores, a hipótese de uma
personalidade pré-alcoólica típica, admite-se que certas características da personalidade
possam estar na base da procura do efeito psicofarmacológico do álcool.
Entre as correntes psicológicas explicativas da criação da dependência no indivíduo,
destacamos duas. A primeira fundamentada na ‗organização e funcionamento do
indivíduo‘ a procura do álcool. Este desempenha para o indivíduo o ‗objecto substituto‘
privilegiado, num histórico evolutivo de uma personalidade pré-mórbida oral e
narcisista. O alcoolismo é assim para os psicanalistas, um sintoma, uma manifestação de
um conflito não resolvido. A segunda de natureza comportamental, defende que o
alcoolismo deixa de ter o significado de sintoma para constituir ele próprio a doença,
sinónimo de comportamento inadaptado e mal aprendido e, por conseguinte, patológico.
Pela sua acção ansiolítica, o álcool, tornado agente habitual de redução de tensão e
ansiedade, de produção de alívio e bem-estar, constitui reforço para a persistência e
repetição do comportamento alcoólico.32
Segundo estas definições, parece ser que a adição, ao álcool ou a qualquer outro tipo
de drogas, reflecte um desequilíbrio comportamental. Um comportamento aditivo transparece
um sintoma de algo que não corre bem nos mundos do sujeito, contudo ao tornar-se doença
transforma-se ele próprio num sintoma, numa manifestação de conflitos não resolvidos.
Um outro psicanalista que reflectiu sobre as desordens comportamentais foi o
português Jaime Milheiro. Este chama ‗cicatrizes do foro privado‘ aos sofrimentos, feridas,
marcas e crises que acontecem nos mundos do indivíduo e que:
Formam uma armadura, uma outra forma de pele, onde sintomas, doenças,
psicopatologias se instalam e de que em boa parte o portador depende. (…) Cicatrizes do
foro privado que quando insuportáveis convertem-se em doenças físicas, anormalidades,
fugas comportamentais.33
2.6. Mundo de dentro e Mundo de fora
Ao longo deste trabalho várias vezes se refere o conceito do ‗mundo de dentro‘ e
‗mundo de fora‘, ou de ‗realidade intra-psíquica‘ e ‗realidade extra-psíquica‘, ou de ‗mundo
30MªLucília M. Mello e Outros, OMS: Álcool e problemas ligados ao álcool em Portugal, p.11. 31Idem, ibidem. 32Idem, ibidem, pp. 20-1. 33Jaime Milheiro, Loucos são os Outros, p.117.
16
subjectivo‘ e ‗mundo objectivo‘, ou ainda de ‗realidade abstracta‘ e ‗realidade concreta‘, como
dois aspectos de uma mesma existência, duas faces da mesma experiência.
A palavra ‗mundo‘ surge neste contexto metaforicamente. Estes mundos pertencem a
uma só existência, mas tendo em conta que cada indivíduo percepciona a realidade à sua
maneira, então pode-se afirmar, ainda que metaforicamente, que cada sujeito tem a sua
própria percepção do mundo que o rodeia e consequentemente do seu mundo interior.
São as experiências inerentes à interacção do ‗mundo de fora‘ do sujeito, que
estimulam o ‗mundo de dentro‘ e vice-versa. Experiências que apesar de serem muitas vezes
partilhadas, não são passíveis de serem percepcionadas por cada indivíduo de forma idêntica.
Um sujeito, como o artista, com apetências natas para se expressar além da linguagem
verbal, tem uma vantagem acrescida de processar as informações desses dois mundos e de
certa forma equilibrar melhor a sua existência física e psíquica. Talvez não seja ‗vantagem‘ a
palavra certa, mas sim ‗necessidade‘, uma necessidade resultante da performatividade e
constante interrogação desse sujeito.
Parece ser na maneira como se interroga, como se suportam dúvidas, na maneira como
se lida com o corpo do conflito assim como com o conflito no corpo, que se distingue o
carácter do sujeito e a personalidade criativa.
17
Capitulo 3
UM OLHAR SOBRE OS PERCURSOS DE JACKSON POLLOCK E
FRIDA KAHLO
3.1.Jackson Pollock: danças com tinta
Jackson Pollock, nasceu no ano de 1912 em Cody, Wyoming, Estados Unidos da
América. Exerceu uma forte influência na pintura contemporânea sendo considerado uma das
figuras principais do Expressionismo Abstracto, movimento artístico ‗anunciado‘ por
H.Rosenberg para designar um ―automatismo pictórico, incluindo a força de expressão
criativa e concepção livre de formas imaginárias que se insinuou entre artistas da geração
intermédia residente em Nova York‖34
. Neste movimento Pollock marcou a diferença pela
técnica a que chamaram de ‗dripping‘, efectuada através de uma pintura de acção onde o
gesto fica implicitamente denunciado na tela por essa ‗dança‘ que Pollock tinha com as tintas
respingadas.
Pollock iniciou os seus estudos em Los Angeles, onde tem um primeiro contacto com
a escultura e o desenho na escola Manual Arts High School. Por esta altura Jackson começa a
manifestar a sua inquietação por tornar-se um artista.
Descontente com o seu rumo inicial escreve ao seu irmão Charles:
Os meus desenhos, digo-te com franqueza, são francamente péssimos, parece que não
têm qualquer liberdade nem ritmo, frios e sem vida, não valem os selos para o envio. (…)
Embora eu sinta que venha a ser algum tipo de artista, nunca provei nem a mim nem a
ninguém que o tenho dentro de mim.35
Em 1930 Jackson Pollock muda-se para Nova York onde frequenta as aulas de Thomas
Hart Benton36
, com quem aprende noções importantes de composição e tem contacto com os
trabalhos dos muralistas mexicanos; Diego Riviera, José Clemente Orozco e David Alfaro
Siqueiros que o impressionaram pela grande escala representativa de cenas revolucionárias.
Siqueiros foi o que mais o marcou pelos materiais invulgares que usava, como a tinta
de esmalte que Pollock viria também a usar.
34Mel Gooding, Movimentos de Arte Contemporânea: Arte Abstracta, p. 68. 35Jackson Pollock cit. por Leonhard Emmeling, Jackson Pollock, p. 11. 36Leonhard Emmeling, Op. cit., p. 12.
18
Pollock foi construindo uma forma ‗intuitiva‘ de pintar, como se impulsos o movessem
a projectar tinta nas telas. Essa forma de trabalhar poderá ter sido influenciada pelo seu
alcoolismo assim como toda a sua existência.
A adição ao álcool teve um papel principal nos seus problemas psicológicos, levando-
o inclusive a diversas estadias em clínicas psiquiátricas.
Em 1937 esteve internado quatro meses num hospital psiquiátrico e em Janeiro inicia
com L.Henderson um caminho em busca de respostas, ao seu comportamento, na terapia
psicanalítica37
.
Henderson era um seguidor da doutrina de Carl Gustav Jung (1875-1961). Jung
introduz a ideia de ‗consciência colectiva‘ e deixou uma herança na psicanálise relacionada
com a pesquisa de imagens visuais arquetípicas comuns a toda a humanidade.
Este fundo de interacção clínica de influência Junguiana terá sido muito útil a Pollock
que levava para as sessões de terapia desenhos dos seus diários gráficos. Esses esboços
facilitavam-lhe a comunicação com o terapeuta devido à dificuldade que tinha em expressar a
sua condição através da linguagem verbal.
Pollock viu aumentado o seu interesse por Jung devido a um certo fascínio que a
relação anímica entre homem e animal exercia sobre ele. A associação dos povos indígenas
americanos à figura do Xamã também levantava questões a Jackson.
A teoria Junguiana segundo a qual o Xamã “passava por um ou mais ciclos de
nascimento, morte e renascimento, foi um dos aspectos da psicologia Junguiana que se sabe
Pollock ter discutido com os seus terapeutas.‖38
As definições do Xamã como um mediador entre os reinos animal e humano,
permitiam a Pollock experimentar uma sabedoria que o impressionava e estimulava.
Observe-se a este respeito, na reprodução da figura 1, um dos desenhos de Pollock,
representativo de um Xamã a dançar.
37Leonhard Emmeling, Jackson Pollock, p.10. 38Idem, ibidem, p.23.
19
Figura 1. Jackson Pollock. Sem titulo (Xamã a Dançar), 1939/40.
Lápis de cor sobre papel, 38x29cm. Colecção particular.
Em 1943 manifestou numa entrevista
Sempre me impressionei muito com as características plásticas da arte dos índios
americanos. Os índios têm uma verdadeira abordagem de pintor, nas suas capacidades
de se apropriarem das imagens e no seu discernimento do que é tema de pintura (…)
algumas pessoas encontram referências à arte e caligrafia dos índios americanos em
partes do meu trabalho. Não foi intencional; foi provavelmente o resultado de antigas
memórias e entusiasmos. (…) A arte e a mitologia arcaicas contêm símbolos eternos (…)
dos medos e motivações primitivos do homem.‖39
Relativamente aos ‗desenhos psicanalíticos‘ de Jackson, questiona-se a sua relação
consciente da psicologia Junguiana, mas pode-se presumir que o pintor estivesse em contacto
com ela.
Os conceitos de animus e anima, de fêmea e macho, estão unidos à filosofia de Jung e
neste contexto a obra ―Macho e Fêmea‖ (Figura 2) aproxima Pollock da doutrina Junguiana.
39Jackson Pollock cit. por Emmeling, Jackson Pollock, p.18.
20
Figura 2. Jackson Pollock. Macho e Fêmea, 1942.
Óleo sobre tela, 186x124cm.
Philadelphias Museum of Art.
Outra indicação desta associação verifica-se em simbologias talvez mais psicanalíticas
do que estéticas, como o caso das obras; ―Mulher-Lua‖ (Figura 3), ―Mulher-Lua Louca‖,
―Mulher-Lua corta o círculo‖ (Figura 4).
Figura 3. Jackson Pollock. Mulher-Lua, 1942. Óleo sobre tela, 175x109cm. Colecção particular..
Figura 4. Jackson Pollock. Mulher-Lua corta o círculo, 1943. Óleo sobre tela, 110x104cm. Centre Georges Pompidou.
21
Segundo Pollock, nada do que pintava era ao acaso. O acaso nas suas obras era algo
completamente negado pelo pintor. Estas funcionavam como ‗narrações‘ com princípio, meio
e fim onde o acaso não tinha lugar.
It seems to be possible to control the flow of the paint, to a great extent, and I don‘t use
the accident – cause I deny the accident.40
Essas ‗narrações‘ formadas camada sobre camada, através de uma espécie de
‗dança‘com a tinta, com ritmos estabelecidos por Pollock onde ―o resultado é que interessa e
não faz muita diferença como a pintura é posta desde que alguma coisa seja dita. A técnica é
apenas um meio para chegar a uma afirmação.‖41
A sua técnica aperfeiçoa-se quando ele a e sua mulher Lee Krasner, também pintora,
se mudam em 1945 para uma pequena fazenda em Long Island.
É neste contexto de certa acalmia, fora das grandes cidades, que as suas obras se
tornam cada vez mais catárticas e elaboradas, proporcionando a que Pollock entre no auge da
sua consagração por volta de 1949.
Nesta fase Pollock descreve o seu contacto com a pintura como um ‗dar e receber‘
harmonioso
…porque a pintura tem uma vida própria. Tento deixá-la revelar-se. É apenas quando
perco o contacto com a pintura que o resultado é uma confusão. Caso contrario há pura
harmonia, um dar e receber fácil.42
Um pouco antes Peggy Guggenheim começara a preparar a primeira exposição
individual de Jackson, que inaugurou a 9 de Novembro de 1943 no Art of This Century. No
catálogo da mostra, Sweeney refere-se ao trabalho do pintor como sendo
Vulcânico. Tem fogo. É imprevisível. É indisciplinado (...) O que precisamos é de mais
jovens a pintar a partir de impulsos interiores sem dar ouvidos ao que pensam os
espectadores e os críticos – pintores que arrisquem estragar uma tela para dizer alguma
coisa à sua maneira. Jackson Pollock é um deles43
Lee Krasner teve um papel importante na vida Pollock, apaixonada pelo homem e sua
obra, Lee é quem acompanha e dá suporte psicológico e emocional ao pintor, e o auxilia com
os seus problemas.
40Jackson Pollock entrevistado por William Wrigth, em Pepe Karmel e Kirk Varnedoe (1999) ―Jackson Pollock: Interviews,
Articles, and Reviews.‖ In Jasmine Moorhead (ED.) Jackson Pollock. 41Leonhard Emmeling, Op. cit., p. 69. 42Jackson Pollock cit. por Emmeling, Op. Cit, p. 65. 43Sweeney cit. por Emmeling, Op. cit, p. 46.
22
Lee afirmou numa entrevista com Francine du Plessix e Cleve Gray44
feita em 1967,
que Jackson enfrentava os seus problemas, que tinha plena consciência da sua relação com o
álcool e que tentou tudo o que havia disponível para parar de beber, desde tratamentos
médicos a psicanalistas.
Logrou estar abstémio de 1948 a 1950 com a ajuda do Dr. Edwin Heller e da
medicação que este lhe receitara. Estes dois anos de sobriedade ficaram impressos no que
seriam provavelmente as pinturas mais significativas da sua carreira.
Algumas relações pouco exploradas, quiçá na génese do seu alcoolismo, foram as
conturbadas ligações que Pollock tinha com a sua família, principalmente com a sua mãe a
quem se referia como ―um velho útero com túmulo incorporado‖45
.
A confirmar esta ideia, seu irmão Sande escreve ao seu outro irmão Charles uma carta
onde descreve as desordens psicológicas de Pollock, atribuindo-as à sua relação com a mãe,
pelas seguintes palavras: ―Jackson sofre de uma neurose. Voltar à normalidade e auto-
dependência depende de muitos factores subtis e alguns óbvios. Uma vez que parte deste
problema recai sobre as suas relações em criança com a mãe em particular, e com a família
em geral.‖46
Muitos dos efeitos devastadores da adição ao álcool e como esse processo se manifesta
em comportamentos auto-destrutivos, podem assim ter tido origem neste conflito não
resolvido com a sua mãe.
Conta-nos Lee Krasner na mesma entrevista referida anteriormente, que Jackson
bebeu durante dias a fio, desaparecendo na noite anterior ao dia em que tinham um jantar
marcado com sua mãe, para que esta e Lee se conhecessem. Acabaram por o encontrar no
Bellevue hospital num estado deplorável.
Outros episódios de comportamentos descontrolados manifestaram-se ao longo da
vida do pintor. Um dos mais conhecidos aconteceu no dia de Acção de Graças quando Pollock
deitou ao chão a mesa do convívio, expulsando de sua casa em Long Island os colegas e
admiradores que se tinham juntado nesse dia.47
Outro igualmente conhecido aconteceu no dia
em que urinou na lareira de Peggy Guggenheim durante uma festa.48
Estes comportamentos apresentam uma aparente ‗zanga‘, acompanhada da perca de
controlo característica de um alcoólico. Mas a sua companheira que dividia com ele os seus
dias, não o considerava violento. 44Lee Krasner entrevistada por Francine du Plessix e Cleve Gray, ―Who Was J.P.?‖ Art in America. 45Leonhard Emmeling, Op.Cit, p. 13. 46Idem, ibidem. 47Jeremy Lewinson, Interpreting Pollock. 48Idem, ibidem.
23
If I conjure the gentle part of Jackson, that was one part. But there was the other part, the
other extreme, the angry man. Both of them existed in extremes. He was not violent.
Angry, yes. Bitter, yes. Impatient, yes. Not violent.49
Pela sua personalidade conturbada e frágil Pollock foi o primeiro artista americano a
enquadrar-se no estigma do artiste maudit50
, ressurgido da imagem do génio atormentado.
Tormentos do seu mundo de dentro que transportava para o seu mundo de fora. Falando
também dele, expressou numa entrevista em 1950:
The modern artist, it seems to me, is working and expressing an inner world, in other
words expressing the energy, the motion, and other inner forces (…) is working whit
space and time, and expressing his feelings rather than illustrating.51
Era a partir do seu mundo interior que Jackson pintava; ―Trabalho de dentro para fora,
como a natureza.‖52
. Afirmação que traduz um sentimento de pertença ao cosmo, contudo
num mundo atormentado com todo o caos inerente ao consumo abusivo de um depressor do
sistema nervoso central como é o álcool.
Nos anos que se seguem a 1951 começa a ser evidente a degradação de Pollock, a
vários níveis. Acidentes, a que sobreviveu, quando conduzia embriagado eram sinónimo de
um desgoverno absoluto. A sua produção artística entra em declínio, evidenciando uma
degradação das suas capacidades criativas e ausência de motivação. A sua união com Lee
Krasner ficara comprometida com a deterioração do casamento a ponto de Pollock começar a
procurar outras mulheres.
A consequência mais grave e irreversível do seu consumo excessivo de álcool foi a sua
morte, quando a 11 de Agosto de 1956 sofre, embriagado, um acidente de viação.
49
Lee Krasner entrevistada por Francine du Plessix e Cleve Gray. ―Who Was J.P.?‖ Art in America 50Emmeling, Op.Cit., p.86 51Jackson Pollock entrevistado por William Wrigth, em Pepe Karmel e Kirk Varnedoe (1999) ―Jackson Pollock: Interviews,
Articles, and Reviews.‖ In Jasmine Moorhead (ED.) Jackson Pollock. 52Jackson Pollock cit. por Emmeling, Op.Cit., p.48
24
3.2. Frida Kahlo: retratos de dor
Voy a alimentar la tesis sobre el sufrimiento como elemento determinante del arte.
Todavía hay mucho que decir sobre eso. (...) No tengo miedo a la muerte, pero quiero
vivir. El dolor sí que no lo soporto.53
Nestas palavras de Frida está o que mais caracterizou a sua existência: dor, sofrimento
e arte.
Os precedentes da infância de Frida Kahlo não indicam uma pré-disposição para o
desenvolvimento de adições. Sem conflitos familiares, Frida apenas detecta nesta fase
dificuldades de natureza social: "A minha infância foi maravilhosa porque embora o meu pai
fosse doente (tinha vertigens a cada mês e meio) era um exemplo notável de ternura e de
trabalho (fotógrafo e também pintor) e sobretudo de compreensão para com os meus
problemas, que desde os meus quatro anos já eram de natureza social."54
Sobre a procura de apoio psicológico por Frida Kahlo, sabe-se por uma referência de
Martha Zamora que ela foi talvez a primeira mulher no México a fazer psicanálise55
, o que
demonstra a abertura de Frida enquanto mulher de meados do século XX, com sede de
entendimento dos seus comportamentos: ―Frida era una muchacha extraordinariamente
inquieta y de una inteligencia muy particular en el médio de aquel entonces‖56
Seria talvez esta sua inquietação unida às circunstâncias dramáticas que enquadram a
sua vida que promovem em Frida a busca do entendimento de si.
O acidente de autocarro que sofreu aos 18 anos e a imobilizou durante um longo
período57
trouxe-lhe problemas de saúde para sempre. Este prenúncio de morte provocou o
confronto quotidiano com o absurdo da existência, movendo a sua demanda de se encontrar.
Frida ausenta-se da própria vida para se tornar presente.
Contudo este acidente, a que se juntara uma poliomielite aos seis anos, feriu-lhe o
corpo e o espírito deixando-lhe cicatrizes profundas, acompanhadas de muita angústia e
sofrimento.
Um espelho colocado por sua mãe, na parte superior da cama que a acolheu durante
esse longo período de convalescença após o acidente de autocarro, vai obrigá-la a olhar-se
incessantemente:
El espejo! Verdugo de mis días, de mis noches. Imagen tan traumatizante como los
propios traumatismos. Todo el tiempo esa impresión de ser señalada con el dedo. ‗Frida,
53Frida Kahlo cit. por Rauda Jamis, Frida Kahlo: autoretrato de una mujer. 54Frida Kahlo cit. por Urania Peres, Frida Kahlo: Dor e Arte. 55Martha Zamora, Frida Kahlo: the brush of anguish, p. 118. 56Alejandro Gómez Arias cit. por Rauda Jamis, Frida Kahlo: autoretrato de una mujer, p. 40. 57Andrea Kettenmann, Frida Kahlo, 1907-1954: dor e paixão, p. 17.
25
mírate‘. ‗Frida, contémplate‘. Ya no hay sombra de verdad dónde esconderse, ni cueva
dónde retirarse, entregada al dolor, para llorar en silencio sin marcas en la piel.
Comprendí que cada lágrima traza un surco en la cara, por joven y tersa que sea. Cada
lágrima es una fragmentación de vida.
Escrutaba mi rostro, mi mínimo gesto, los dobleces de la sábana, su relieve, las
perspectivas de los objetos dispersos a mi alrededor. Durante horas, me sentia
observada. Me veía. Frida adentro, Frida afuera, Frida en todas partes, Frida hasta al
infinito.58
Frida inicia uma viagem, em frente ao espelho, sem sair do lugar. Uma pausa forçada
onde o único movimento era o da procura do Eu por detrás de si, diante do espelho.
Existe um conto de Guimarães Rosa que, sem intenção, se cruza com esta experiência
da pintora, chamado precisamente ―O Espelho‖. Neste conto, mais do que uma viagem pelas
imagens que aí se desdobram, irrompe a magia do conhecimento de si. Um exemplo dessa
experiencia, pelas palavras do autor:
Comecei a procurar-me — ao eu por detrás de mim — à tona dos espelhos, em sua lisa,
funda lâmina, em seu lume frio (…) Quem se olha ao espelho, fá-lo partindo dum
preconceito afectivo (…) O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um
modelo subjectivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas
capas de ilusão.‖59
O que poderia Frida contemplar? Nessa quase impossibilidade do seu corpo interagir
com o mundo exterior, começa uma viagem através do seu universo interior. Traça linhas,
constrói formas que despertaram o sentimento de si.
Nesta recomposição começam os auto-retratos de Frida.
Com efeito até à data Frida não pensava em dedicar-se à pintura, ―queria estudar
ciências naturais, em especial biologia, zoologia e anatomia e esperava vir a ser médica‖60
,
mas a vida levou-a para caminhos diferentes acabando por redefinir a sua identidade na
pintura.
A grande maioria das obras que nos deixou a pintora são auto-retratos, onde o seu
corpo funciona como o centro do encontro consigo. Observem-se como exemplos as obras:
―Pensando en la Muerte‖ (Figura 5), ―Autoretrato dedicado al Dr. Elosser‖ (Figura 6), ―Diego
y yo‖ (Figura 7), ―Árbol de la esperanza, mantente firme‖ (Figura 8), ―Las dos Fridas‖
(Figura 9) e ―Recuerdo o El Corazón‖ (Figura 10).
58Frida Kahlo cit. por Rauda Jamis, Op.Cit., p. 75. 59Cit por. Tania Rivera, Guimarães Rosa e a Psicanálise: ensaios sobre a imagem e a escrita, p. 14. 60Andrea Kettenmann, Op.Cit., p..11.
26
Figura 5. Frida Kahlo. Pensando en la
Muerte, 1943. Óleo sobre tela,
45x36cm.
Colecção particular.
Figura 6. Frida Kahlo. Autoretrato
dedicado al Dr.Eloesser, 1940.
Óleo sobre masonite, 60x40cm.
Colecção particular.
Figura 7. Frida Kahlo. Diego y yo,
1949. Óleo sobre tela, 28x22cm.
Colecção Sam e Carol Williams.
Mais que uma autobiografia, os seus auto-retratos revelam imagens de uma ‗viagem
ao interior‘ de uma entidade, em busca da consciência de si.
Pinto mucho, sin parar: ese es mi viaje. . . hacia las tierras del interior.61
Figura 8. Frida Kahlo. Árbol de la
esperanza, mantente firme, 1946.
Lápis sobre papel, 56x41cm.
Colecção Dolores Olmedo.
Figura 9. Frida Kahlo. Las dos Fridas, 1939.
Óleo sobre tela, 174x173cm. Museo de Arte
Moderno, Cidade do México.
Figura 10. Frida Kahlo. Recuerdo
o El Corazón ,1937. Óleo sobre
metal, 40x28cm. Colecção Michel
Petitjean.
61Cit. por Rauda Jamis, Op.Cit., p.75
27
É a partir do corpo que muito do mundo se nos apresenta como algo que ‗está aí‘. É
nessa relação entre o mundo e o corpo que se manifesta muita de experiência e do desejo do
‗acto de sentir‘.
Frente ao vazio deixado pela perca de parte de si, parte do seu corpo, surge na pintura
um modo de evasão dessa realidade e ao mesmo tempo um modo reconstrutor de olhar para
dentro, uma possibilidade de sustentação, um ganho.
A maneira como Frida (re-) conhecia o seu corpo, e como este era simbólico na sua
pintura, foi referida num artigo de Marta Zarzycka:
This interchange of inside and outside is visible in Kahlo‘s paintings: her body either
contains her pain or projects it outwards. (…) Frida Kahlo‘s art has its basis in her body.
Kahlo knew her body not only through her sexuality and elaborate costumes, but also
through operations, doctors‘ diagnoses, medical textbooks, the metal apparatuses her
deformed foot, and her plaster or metal corsets. She knew it through miscarriages and
abortions, and her addiction to alcohol and drugs.62
A sua união com Diego Riviera foi também um factor muito significativo na vida da
pintora. Casaram-se duas vezes; a primeira em 1929, ela com 22 anos e ele com 42.
Seria mais uma forma de se definir, mas ao mesmo tempo um grande foco de
sofrimento. A própria Frida viria a referir-se ao seu encontro com Diego como o segundo
acidente da sua vida.63
O amor que entregava a Diego manifestava-se através de uma co-dependência. A sua
intensidade e desespero, faziam-se sentir em cartas que lhe escrevia, ou em notas no seu
diário, como esta:
Diego:
Nada se compara às tuas mãos e nada é igual ao ouro-verde dos teus olhos.
Meu corpo enche-se de ti por dias e dias, és o espelho da noite, a luz violenta do
relâmpago, a humidade da terra.
O côncavo das tuas axilas é o meu refúgio, as pontas dos meus dedos tocam teu sangue.
Toda minha alegria é sentir a vida brotar de tua fonte-flor que a minha guarda para
encher todos os caminhos dos meus nervos que são os teus.64
A notoriedade do muralista mexicano sem dúvida a ajudou a integrar-se no mundo da
pintura. Mas o amor que entregava a Diego era o mesmo que fazia com que Frida procurasse
a sua plenitude através de ―um sentimento violento, imperioso, intransigente que, por sua vez,
62Marta Zarzycka, ―Now I live on a Painful Planet‖ Frida Kahlo Revisited, p. 78. 63Urania Peres, Frida Kahlo: Dor e Arte, p. 15. 64Idem, ibidem, p. 14.
28
é toda a sua força e toda a sua fraqueza, e que faz com que se dedique de corpo e alma ao
homem que escolheu‖65
.
O sofrimento chega a Frida também por Diego e pelas suas inúmeras traições: ―O
amor que ela sente por Diego não é um luxo, mas uma necessidade, e ama-o como só as
mulheres sabem fazê-lo, mais que a ela mesma, mais que a seu amor-próprio‖66
Acabam por divorciar-se em 1939, após mais uma das traições de Diego, desta feita
com a irmã de Frida, Cristina.
Este acontecimento somado aos sucessivos abortos, devidos às suas limitações físicas,
fizeram-na entrar num estado de desespero que tornava a sua vida insuportável, como declara
numa carta escrita a António Rodriguez:
Não tenho palavras para descrever-te o que tenho sofrido. Tu sabes quanto amo a Diego
e compreenderás que esses problemas nunca desaparecerão de minha vida. Depois da
última briga que tive com ele (por telefone, pois não o vejo há quase um mês) dei-me
conta que abandonar-me foi o melhor para ele (...). Agora sinto-me tão mal e só que não
creio que pessoa alguma no mundo haja sofrido como eu, mas certamente será diferente
dentro de alguns meses.67
As suas mazelas físicas unidas ao sofrimento a que Frida se permitia abraçar perante a
relação que desenvolvia com Diego, faziam-na entrar numa espiral de dor da qual não
conseguia sair:
―Sufría. Y además me sentía culpable de sufrir, porque ese sufrimiento era indigno de
alguien que pretendía tener ideas liberales. Era un círculo vicioso del que no podía salir.‖68
Toda essa amálgama de dor quase se toca nas suas pinturas, como se pode observar
nas figuras 11 e 12.
65Le Clézio, Diego et Frida, p.110: ―Un sentiment violent, impérieux, intransigeant, qui est à la fois toute sa force et tout sa faiblesse, et qui la fait se consacrer corps et âme à l'homme qu'elle a choisi". 66Idem, ibidem, p.202: "L'amour qu'elle ressent pour Diego n'est pas un luxe, mais une nécessité, et qu'elle l'aime comme
seules les femmes savent le faire, plus qu'elle-même, plus que son amour-propre". 67Frida Kahlo cit. Por Urania Peres, Op.Cit., p.15. 68Frida Kahlo cit. por Rauda Jamis, Op.Cit..
29
Figura 11. Frida Kahlo. Henry Ford Hospital o La cama volando,
1932. Óleo sobre metal, 31x35cm .
Colecção Dolores Olmedo.
Figura 12. Frida Kahlo. La columna rota, cerca de
1944. Óleo sobre molde de gesso com correias.
Museu Frida Kahlo
Buscava formas de fuga à dor, e a pintura completava-a: ―La pintura me completó la
vida. Perdi trés hijos y otra serie de cosas que hubieran llenado mi vida horrible‖69
, mas o
álcool começa a acompanhá-la de uma forma preocupante, como Henriette Begun escreveu
num dos seus relatórios médicos: ―O desespero dela está a levá-la a beber muito‖70
.
Há registos que escondia bebida em frascos de perfume, que transportava consigo na
tentativa de beber sem ser notada71
, mas viria depois a assumir esse comportamento de forma
aberta:
Bebía mucho, salvo cuando estuve en el hospital, por los colibacilos. Mucho: nunca rodé
por el suelo y tampoco conté las copas. Pero sin duda eso no quiere decir nada: el
alcohol marca de modo diferente los cuerpos y los espriritus (…) bebí para olvidar
algunas cosas y agudizar otras en mí.72
No entanto não apreciava beber enquanto pintava: ―Nunca he pintado bien cuando
bebo. Nunca he pintado la ebriedad.‖73
Tentava por vezes abrandar o consumo de álcool como manifestou numa carta dirigida
a Ella Wolf, uma amiga:
Puedes decirle a Boit que ya me estoy portando bien, en el sentido de que ya no bebo
tantas ‗copiosas‘…lágrimas de coñac, tequilla, etc., eso lo considero como otro adelanto
69Frida Kahlo cit. por Raquel Tibol, Frida Kahlo: Una vida abierta. 70Cit. por Andrea Kettenmann, Op. cit., p. 52. 71Urania Peres, Frida Kahlo:Dor e Arte. 72Rauda Jamis, Frida Kahlo: autoretrato de una mujer. 73Idem, ibidem.
30
hacia la liberación de las clases oprimidas. Bebía porque quería ahogar mis penas, pero
las malvadas aprendieron a nadar y ahora me abruma la decencia y el buen
comportamiento!74
Neste período da separação de Diego, Frida estava muito deprimida e Diego também
sentia a sua falta. Este afirma: ―A nossa separação estava a ter um efeito prejudicial aos
dois‖75
e voltaram mesmo a casar-se em 1940, com mudanças significativas na vida do casal.
Foram viver para a ‗Casa Azul‘ e aproximou-se um período mais calmo e de maior
maturidade para Frida. Contudo o seu estado de saúde continuava a degradar-se. Várias vezes
a encontraram quase inanimada, várias vezes a escutavam pronunciar ―Un tiempo para
morir‖76
, um tempo para escapar dos seus sofrimentos, da dor, de Deigo, da vida, de si.
Por volta de 1950 a pintora tinha cada vez menos esperanças de melhoras na sua
saúde. As operações à coluna, as promessas dos médicos, a amputação de uma perna, fizeram
Frida entrar num circuito de desespero. Por esta altura Diego afirmou que ―ela tinha perdido a
vontade viver‖77
A 11 de Fevereiro de 1954 escreve no seu diário:
Me amputaron la pierna hace seis meses; me han hecho sufrir siglos de tortura y en
momentos casi perdí la «razón». Sigo queriendo matarme. Diego es el que me detiene,
por mi vanidad que me hace pensar que le hago falta. Me lo ha dicho, y le creo, pero
nunca en la vida he sufrido más. . . esperaré un tiempo. . .78
Muita dor que só acalmava com grandes doses de morfina que um corpo esgotado
tolerava com dificuldade. No fim da sua vida o Demerol juntamente com a bebida,
neutralizava as suas dores físicas e as da alma, criando-lhe uma dependência que a acompanha
até ao fim dos seus dias: ―Bebia demasiado, coñac, brandy, tequilla, kahlúa, o todo mezclado.
Sabía que se hacía daño, pero su desesperación era demasiado grande y ya no quería detener
su engranaje. A las mezclas de alcoholes fuertes sumaba las pastillas, todas las medicinas de
que podía disponer. Y no lo hacía inocentemente: prefería terminar antes que seguir así.‖79
Frida estava rendida, cansada de lutar, sem forças e o que lhe restava de vida era
destruído com o consumo de álcool e drogas depressoras. Não fazia caso de recomendações,
já não tinha vontade de lutar.
74Cit. por Herrera, 2001, p. 171. 75Cit. por Andrea Kettenmann, Op. cit., p.56. 76Cit. por Rauda Jamis, Op.Cit. 77Cit. por Andrea Kettenmann, Op.cit., p. 84. 78Idem, ibidem, p. 204. 79Rauda Jamis, Op. cit.
31
Sí, bebo mucho. Para que mi cabeza flote un poco, y los pensamientos por encima de
ella. El resto de mi cuerpo se impregna de todos los medicamentos posibles para sentirse
menos dolorido. No dejan de recordarme que este tipo de coctel es terriblemente
peligroso. Ya no me interesa la vida, ahora, sólo porque el hilo de mi pensamiento me ata
a ella todavía. Apta solamente para el sufrimiento físico —el que escapa,
desdichadamente, de todo análisis—, el resto ya no me sigue. Entonces, ¿qué importa, a
esta altura, una copa, una pastilla, o que la mezcla de ambas cosas sea demasiado?80
A verdade é que essas substâncias lhe tornavam a existência um pouco mais
suportável. Existência que finda a 13 de Julho de 1954, quando Frida Kahlo foi encontrada
morta na sua cama.
O seu último diagnóstico foi uma embolia pulmonar, ainda que com algumas dúvidas.
A última entrada registada em seu diário: ―Espero a partida com alegria…e espero
nunca mais voltar.‖81
80Cit. por Rauda Jamis, Op.Cit. 81Cit. por Andrea Kettenmann, Op.Cit., p. 84.
32
Capítulo 4
Quando os Olhos tocam e as Mãos vêem”:
discussão de resultados
A escolha de abordar Jackson Pollock e Frida Kahlo nesta investigação não foi
aleatória. Existe uma identificação com certos aspectos da vida e obra de ambos que
estimulou o nascimento e desenvolvimento da série de auto-retratos intitulada ―quando os
Olhos tocam e as Mãos vêem‖, que acompanham a dissertação desta tese teórico-prática. O
nome da série também não foi aleatório. Sugere uma mistura dos sentidos do tacto e da visão
numa busca de entendimento através da contemplação do corpo físico, que se vai
transformando numa interrogação do mundo interior a esse corpo.
A dificuldade que por vezes surge em habitar a realidade é apaziguada através das
ligações que unem o mundo interior ao exterior e ao corpo. Ligações que vivem também na
comunicação libertadora da pintura. O intento de compreensão do Eu por trás do espelho, e
toda a angústia inerente a perguntas sem resposta harmoniza-se nesta forma da comunicação,
com base na aceitação. Esta série de auto-retratos procura uma aceitação da condição do
corpo e do seu lugar no mundo. Pacificando assim o desequilíbrio que por vezes acontece
quando ‗ruídos‘ interferem nas pontes que ligam os dois mundos, e estas ficam interrompidas.
O espelho é um elemento possível para a primeira fase da contemplação. Um diálogo íntimo
com o espelho permite um ponto de partida para um entendimento do corpo físico. Ao mesmo
tempo o espelho permite a pausa necessária para um consequente entendimento do corpo
mental, harmonizando as perturbações que possam surgir no desentendimento de qualquer um
dos corpos e seus universos.
Quando surge alguma resposta pacificadora, cristaliza-se o momento através de
linguagem intencionalmente simbólica. O ‗mundo de fora‘ e o ‗mundo de dentro‘ são
abordados de forma metafórica, num registo pictórico onde a tela é usada como uma pele,
como um corpo, que deixa visíveis as suas feridas e cicatrizes. Elementos aparentemente
vegetalistas surgem em altos-relevos feitos de ‗artérias‘, observe-se como exemplo a
reprodução da pintura ―A Calma do Caos‖ (Figura13) e os detalhes da mesma (Figuras 14 e
15).
33
Figura 13. Marta Marques. A Calma do Caos, 2011.
Técnica mista sobre tela, 150x150cm.
Figura 14. Detalhe da pintura A Calma do Caos (Fig. 13).
Figura 15. Detalhe da pintura A Calma do Caos (Fig. 13).
34
Os olhos e as mãos são importantes na história que se pretende contar. As janelas e
portas simbolizam as prisões que por vezes surgem nos bloqueios da passagem entre o
‗mundo de fora‘ e o ‗mundo de dentro‘. Observem-se como exemplos as reproduções das
pinturas ―Cicatrizes Privadas‖ (Figura18) e ―Presença Ausente‖ (Figura19). E ainda os
respectivos detalhes (Figuras 16, 17 e 20, 21).
Figura 16. Detalhe da pintura Cicatrizes Privadas
(Fig. 18).
Figura 17. Detalhe da pintura Cicatrizes Privadas
(Fig. 18).
35
Figura 18.
Marta Marques. Cicatrizes Privadas, 2011.
Técnica mista sobre tela, 175x80cm.
36
Figura 19.
Marta Marques. Presença Ausente, 2011. Técnica mista sobre tela, 175x80cm.
37
Figura 20. Detalhe da pintura Presença Ausente
(Fig. 19).
Figura 21. Detalhe da pintura Presença Ausente
(Fig. 19).
O corpo é o elemento central das histórias que a pele das telas conta. É a afirmação
desse ‗estar aí‘, desse desejo de sentir. As mãos percorrem o corpo das telas, como num
acarinhamento. As pinturas resultam muito matéricas, com baixos e altos-relevos que
permitem ao toque identificar as formas. Há vazios preenchidos e vazios por preencher num
jogo entre a bidimensionalidade e a tridimensionalidade com a intenção de permitir ao tacto
uma identificação singular e individual da visão. Veja-se a reprodução da pintura ―Tenho uma
Estranha por Dentro‖ (Figura 22) e seus detalhes (Figuras 23 e 24)
38
Figura 22. Marta Marques. Tenho uma Estranha por Dentro, 2011.
Técnica mista sobre tela, 175x80cm
39
Figura 23.
Detalhe da pintura Tenho uma Estranha por Dentro (Fig. 10).
Figura 24.
Detalhe da pintura Tenho uma Estranha por Dentro (Fig. 10).
Esta série funciona como um processo e não como um produto acabado, ainda que
nesse processo existam unidades separadas que se podem considerar acabadas. É um
caminho, um percurso, onde a única meta é uma busca de entendimento das interferências que
habitam os dois palcos, o interno e o externo, do mesmo teatro que neste contexto representa a
existência do corpo.
É uma meta sem destino nem fim, traduzida por um impulso de assimilar as
experiências exteriores para o mundo interior, e ao mesmo tempo transpor as imagens que
surgem do interior para o mundo material, o palco que se conhece como ‗realidade concreta‘.
Nunca poderá ter fim pois a busca de entendimento vive no indivíduo e caminha a seu lado,
juntamente com a Pintura, sempre e quando este viver em ambos os mundos. É como uma
troca onde prevalece o sentido de subjectividade do mundo interior, mas ao mesmo tempo
tenta alcançar uma objectividade harmoniosa para o mundo tal como nos é apresentado.
40
Sendo o corpo o centro de toda essa busca, dessa experiência do ‗sentir‘, desse ‗estar no
mudo‘ e interagir com ele.
É nesta forma de ‗alívio‘ no auto-conhecimento que esta série de auto-retratos se
identifica com os trabalhos de Pollock e Frida. Ambos ‗conversaram‘ com telas e tintas,
ambos se perderam e se (re) encontraram na pintura, ambos procuraram alívio da dor, da
confusão, do desespero em coisas exteriores a eles. Ambos olharam para dentro: a Frida mais
objectiva, direccionado o observador para o que queria ‗gritar‘ e Pollock mais abstracto e
movimentado, dispersando o olhar do observador permitindo-lhe criar as suas próprias
histórias.
O comum? Ambos pintaram de dentro para fora.
41
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