UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
O CAPITAL HEGEMON:
CRÍTICA À ECONOMIA APOLÍTICA.
André Rego Viana
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de
Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo sob
orientação do Prof. Dr. Francisco Maria Cavalcanti
de Oliveira.
São Paulo, dezembro de 2004.
VIANA, André Rego (2004) O Capital Hegemon: crítica à economia apolítica. Tese de Doutorado. Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 428 páginas.
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2
Resumo
Este trabalho parte da tese de que o capital, entendido como
relação social, deve ser estudado como um Sujeito histórico não
apenas no que tange às determinações econômicas do valor em
processo de valorização, mas também como processo de
construção e reconstrução das relações sociais que dão base à
reprodução material da sociedade, constituindo-se numa relação a
partir da qual se afirmam a cultura e a organização política da
sociedade capitalista. Para tanto, o autor apresenta a idéia de que
o capital, ao constituir-se como sujeito autônomo com relação a
seus suportes, como relação alienada, afirma-se como centro
hegemônico da elaboração da concepção de mundo desta
sociedade, propondo a partir disto a idéia de capital hegemon.
Como suporte ao argumento, o autor explora os impactos desta
formulação sobre a teoria do valor, desenvolvendo a idéia de
hegemonia econômica e o impacto desta na forma de
determinação dos preços de monopólio; a forma de organização
das empresas societárias, que surgem como forma jurídica do
capital que se apresenta como sujeito autônomo de direitos; e a
relação destas com o Estado, em particular com o fundo público
(transformado em pressuposto do processo de reprodução
ampliada do capital), apontando para a progressiva colonização
deste último pela lógica privada e a resultante supressão da
política.
Palavras chave: Capital, Hegemonia,Valor, Preços Monopolistas, Sociedades
Anônimas, Estado, Fundo Público.
3
VIANA, André Rego (2004) Capital Hegemon: Critique of Apolitical Economy. PhD. Thesis. Department of Sociology of the Philosophy, Literature and Languages, and Humanities of São Paulo. São Paulo, 428 pp.
Abstract
This work introduces the thesis that the capital, understood as a
social relation, should be studied as a historical Subject not only
with regard to the economic determination of value in the process
of valorisation, but also as a process of making and re-making of
social relations that underpin the material reproduction of society.
Capital is the relation in whose movement the culture and political
organization of capitalist society are (re)produced. For that
purpose, the author introduces the idea that as capital builds up as
autonomous subject before its props – or as an alienated relation
– it also stands as the hegemonic center of formulation of this
society’s conception of the world. Based on these ideas, the
concept of capital as the hegemon is proposed. In order to support
this argument, the author investigates the impacts of this idea on
the theory of value, developing the concept of economic hegemony
as well as its weight on the way of monopoly price determination;
the way of organization of corporations, which emerge as a legal
entity of the capital, arising like an autonomous subject of rights;
and the relation of both with the State, particularly with the public
funds (converted into premise of the amplified reproduction of the
capital), pointing to a progressive takeover of the latter by the
private logic and the resulting suppression of politics.
Key words: Capital, Hegemony, Value, Monopoly Prices, Corporations, State,
Public Fund.
4
“Si saber no es un derecho, seguro será un izquierdo”
Escaramujo, Silvio Rodríguez.
5
Agradecimentos
Este trabalho começou, ainda no nível do mestrado, como uma tentativa
de explicar porque as nações do cone-sul da América Latina haviam iniciado o
processo de criação de um mercado regional, o Mercosul, do qual os principais
beneficiários aparentes, segundo as estatísticas, eram as grandes corporações
multinacionais instaladas principalmente no Brasil e na Argentina. As
insuficiências da teoria econômica e da sociologia política para dar conta do
objeto, no entanto, nos levaram a uma expansão de nossos objetivos que
resultaram finalmente na elaboração da idéia do capital hegemon.
Ao longo deste processo de estudo nos deparamos com diversos desafios
teóricos que nos levaram, por vezes a “fazer ranger” os autores na busca de
novos usos para velhos conceitos, ou buscando recuperar aportes contidos nos
textos clássicos mas ainda não suficientemente explorados, sempre com o foco
no objetivo de explicar as novas configurações políticas e econômicas postas
pela realidade da virada do milênio. Em grande medida, este foi um trabalho
solitário de muitas horas gastas debruçado sobre textos teóricos, relatórios e
planilhas de computador.
Neste sentido o espaço da academia foi fundamental para o
estabelecimento do diálogo sempre necessário ao refinamento do argumento,
bem como na abertura de novas vertentes teóricas postas nos cursos e
seminários do programa de pós-graduação. Assim, há aqui muitos mestres e
colegas a agradecer, e desde já isentar de qualquer responsabilidade sobre o
resultado final.
Antes de todos (e invertendo o hábito de se deixar o orientador para o
final) devo agradecer mestre Chico de Oliveira que, desde que nos conhecemos,
ainda no CEBRAP em 1991 (para onde fui levado como auxiliar de pesquisa
pelas mãos de Élson Pires), tem sido um interlocutor raro, como professor e
amigo. O seu desprendimento e modéstia pessoais, expressos na forma como
aceita o debate e críticas a suas elaborações teóricas sempre nos lembrando que
a teoria é um produto coletivo, são encontrados em bem poucos intelectuais e
nos servem de exemplo de conduta. De outro lado, sua ousadia crítica (e a não
6
menor curiosidade) tão necessária para rompermos a mesmice, sempre me
inspirou a tentar a elaboração das idéias sem medo do fiasco. Além de servir
como referência teórica, seus aportes e críticas diretas a este trabalho não foram
poucos, apontando becos sem saída e luzes pelas quais guiar-me em passagens
escuras.
Ao Prof. Régis de Castro Andrade (in memoriam) devo agradecimentos
também vinculados a uma amizade de anos. Sem seu estímulo, ainda na
graduação, talvez não tivesse percebido plenamente o potencial da abordagem
combinada da hegemonia de Gramsci com os processos econômicos e me
bandeado de vez para as Ciências Sociais após minha graduação na Economia.
As disciplinas cursadas no programa de pós-graduação trouxeram
contribuições e representaram espaços de elaboração importantes para
discussões apresentadas neste trabalho. Assim, agradeço, à Profª. Maria Célia
Paoli pelas instigantes discussões sobre “Classes sociais, conflitos e cidadania”
onde surgiram os primeiros passos da idéia de colonização do Estado pela lógica
do Mercado; ao Prof. Glauco Arbix, cuja disciplina abriu o caminho para a
discussão sobre a evolução das Sociedades Anônimas como atores centrais do
sistema capitalista contemporâneo, pelas indicações bibliográficas e o debate
apaixonado; e, finalmente, ao Prof. Oliveiros Ferreira, cujo curso
transformamos numa grande e proveitosa conversa sobre a aplicabilidade do
conceito de hegemonia às relações econômicas, pelo incentivo apesar do
argumento ainda inacabado.
Também sou grato aos comentários, críticas e sugestões, além da
generosa acolhida, realizados pelos professores Paulo Arantes e Leda Paulani no
exame de qualificação. As sugestões de Paulo Arantes me fizeram reorganizar a
exposição e colocar as idéias do capital hegemon e da hegemonia econômica em
evidência logo no primeiro capítulo, além de abrir algumas novas linhas de
raciocínio e poupar-me de percorrer veredas já trilhadas por outros. As
sugestões de Leda Paulani foram de extrema valia, contribuindo não só para
melhorar a clareza de alguns argumentos como também desfazendo alguns
importantes nós que levaram ao capital hegemon.
Gostaria de aproveitar este espaço também para agradecer ao Prof. Sedi
Hirano, que coordenou os seminários de projetos, pelas críticas e pelo estímulo
7
a seguir pelos caminhos mais difíceis da pesquisa, e estender estes
agradecimentos aos colegas dos seminários e de disciplinas.
Alguns amigos não podem faltar neste momento, assim, devo agradecer a
Alex Weiss pelos bancos de dados e pelas conversas como economista, a Paulo
Cunha pelo socorro computacional (não escapei do clichê: o disco rígido de meu
computador queimou a setenta dias do prazo de entrega) e pelas muitas horas
de pesquisa na Internet, a Rodrigo Passos pelas muitas conversas ao longo
destes últimos anos sobre os seus, os meus e os nossos autores, and last, but not
least, à Flavinha de Paiva Brites Martins pelo ouvido atento da socióloga e pelo
abstract.
Como agradecer à Milena? Minha crítica mais dura e, ao mesmo tempo,
principal incentivadora. Companheira de todas as horas, revisora, comentadora
e socióloga ciosa de seu saber, que sempre contribui para que este economista
não se perca em devaneios, lembrando-lhe de tudo o que não sabe. Eu a amo, e
isto é mais do que tudo.
Finalmente, creio que preciso desculpar-me com o resto da família – em
particular com minha mãe, grande responsável por minha senda acadêmica e
que me presenteou com todas as versões de O Capital, começando pelos
quadrinhos ainda na adolescência. Eu sei que ando sumido, também sinto a
falta de todos vocês.
8
Sumário Página
Volume I
Prólogo – Ainda o capital. 9
Introdução e plano do trabalho 10
Capítulo 1 - As raízes da hegemonia do capital. 14
Parte I – O Mercado Imperfeito 60
Capítulo 2 - As rendas monopolistas do capital concentrado. 61
Capítulo 3 - O esquema tripartite de Marx. 90
Capítulo 4 - Royalties, marcas e outras rendas diferenciais. 114
Capítulo 5 – Aplicação da noção de hegemonia às relações de
mercado.
153
Volume II
Parte II – O Capital Social 185
Capítulo 6 - Os bancos e o sistema de crédito. 186
Capítulo 7 - Surgimento e evolução das sociedades anônimas. 214
Capítulo 8 - A forma da sociedade anônima e suas implicações
para o capital. 251
Parte III – O Estado. 304
Capítulo 9 - O equivalente geral fiduciário e sua relação com o
Estado.
305
Capítulo 10 - A Economia Política da Política Econômica 331
Capítulo 11 - O Estado global: as agências de regulação e a
exportação de instituições. 369
Epílogo – Os filhos de Ugolino. 398
Capitulo 12 – Os filhos de Ugolino: transmutações das classes
sociais no capitalismo contemporâneo. 399
Fontes 414
Prólogo - Ainda o Capital.
9
________________________________________________________________________________
Introdução e plano do trabalho.
Capítulo 1 - As raízes da hegemonia do capital.
1. Era uma vez...
2. Público x privado.
3. Concepção de mundo.
4. Hegemonia econômica x hegemonia política.
5. O Estado de Bem-estar e as grandes empresas como agentes na
disputa política.
6. Nacional x internacional.
10
Introdução e plano do trabalho.
Não fosse um trabalho de ciência social inscrito no campo marxista, e
portanto aspirando a uma visão destas como uma totalidade, este deveria ser
definido – seguindo a divisão da ciência de forma departamental - como um
trabalho interdisciplinar ou multidisciplinar. Pretendo aqui trazer contribuições
novas, particularmente no campo da análise das relações sociais de produção e
como estas criam diretamente as relações mais gerais de exercício do poder,
propriamente políticas, estabelecidas em sociedade, e integrá-las à sociologia
política, buscando manter a coerência da análise dentro do campo marxista. Por
outro lado, procurarei aplicar conceitos oriundos da sociologia política a
problemas econômicos, devolvendo este ramo da ciência social a sua origem,
como economia política - para o desespero da economia vulgar.
Há muitos anos, ainda nos bancos de graduação da FEA-USP, uma
pergunta típica de economistas que se acreditam sozinhos no mundo do
conhecimento, intrigou o autor: “onde está o elo perdido entre a economia e a
política?” O elo nunca esteve perdido. As relações de poder que animam a
economia, a política e a cultura e sua inter-relação são o objeto desta tese. Por
outro lado, embora junto às novas idéias discorramos sobre velhos conceitos na
busca de tornar claros nossos argumentos para um público não iniciado, e por
vezes nos estendamos em algumas áridas discussões e digressões teóricas, é
necessário deixar claro aqui que não é nosso intento estabelecer neste trabalho
um tratado sobre a economia ou a sociologia políticas. Antes, nosso objetivo é
lançar, a partir de uma perspectiva crítica, pedras que esbocem novos caminhos
para a compreensão dos fenômenos repostos pelo capital em sua reificação
diária.
11
Um alerta que se faz necessário aqui é o de que os grifos encontrados nas
citações, salvo referência em contrário, são dos próprios autores dos textos. As
citações de Marx (1984) se fazem indicando o tomo em números romanos,
seguido pelo número do volume e a página após dois pontos, p. ex. (II/5: 150),
enquanto Gramsci (2000) tem o volume indicado em números romanos seguido
pela página, p. ex. (III: 21). Finalmente, a tradução da bibliografia citada em
inglês e espanhol é sempre do autor.
Este trabalho está organizado em doze capítulos. Inicia-se por um
capítulo neste prólogo onde se anuncia a tese principal: a constituição do capital
como hegemon do sistema democrático burguês e sua ação como hegemon
também nas relações de mercado, elaboração à qual denominamos de
hegemonia econômica. A este prólogo se seguem três partes onde se realiza a
discussão dos diferentes impactos destas formulações sobre a teoria marxista.
Assim, a primeira parte é dedicada ao estudo dos impactos da formulação do
conceito de hegemonia econômica sobre o pólo privado, o mercado imperfeito
que resulta do exercício de força por parte dos agentes do capital concentrado.
Esta parte está dividida em quatro capítulos. O capítulo 2 é dedicado à
exposição dos mecanismos pelos quais se dá a transferência do valor através dos
mecanismos de preços entre os diferentes pólos de acumulação capitalista e os
impactos destes na distribuição dos lucros dentro da classe proprietária. No
capítulo terceiro, apresentamos a formulação marxiana sobre a renda da terra,
buscando demonstrar como esta serve de modelo à determinação de outros
preços de monopólio que serão discutidos no capítulo seguinte. Finalmente, no
quinto capítulo, buscamos explorar a relação do capital como hegemon dentro
da teoria do valor, ampliando a idéia de hegemonia econômica apresentada no
capítulo primeiro.
A segunda parte do trabalho é dedicada ao capital social. Nela
desenvolvemos o argumento de que a concentração de capital social no sistema
bancário possibilita a este exercer um poder diferenciado sobre o conjunto da
sociedade, incluindo o restante da classe capitalista, que leva a alterações nas
formas como se dão a transferência de valores e a apropriação do excedente.
Desta forma, o capítulo 6 é dedicado à discussão do papel do sistema bancário
dentro da teoria do valor e as especificidades da forma dos juros como categoria
12
de renda que encobre as demais rendas ao subsumi-las a sua forma.
Analisamos, no capítulo seguinte, o processo histórico no qual se deu a
formação das estruturas do grande capital concentrado, a forma de propriedade
socializada que corresponde às Sociedades Anônimas, que dotaram o capital,
enquanto sujeito histórico, de sua forma própria, aparentemente autônoma com
relação à ação de seus suportes. Finalmente, no oitavo capítulo, discutimos os
impactos da socialização da propriedade para a organização das empresas e da
classe capitalista.
Na terceira parte do trabalho, focamos o Estado como espaço de disputa
da definição dos limites entre público e privado e como espaço de luta e
administração do conflito entre as classes. Assim, o nono capítulo é dedicado à
discussão da administração do dinheiro e do crédito pelo Estado e como os
bancos, em particular, buscam disputar o controle sobre os mecanismos de
regulação da forma de reconhecimento da riqueza social. O décimo capítulo é
dedicado à análise das funções desempenhadas pelo fundo público no processo
de produção e reprodução da vida social mediada pelo organismo estatal. Fazem
parte desta discussão tanto o Estado como produtor de bens públicos, e
impulsionador da acumulação primitiva, quanto, como gestor da dívida pública
e consumidor de última instância, papel que vêm ganhando relevo nos últimos
tempos.
O último capítulo desta parte é dedicado à discussão das contradições e
tensões geradas pelo processo gradativo de colonização do Estado pela lógica
privada de mercado que resulta da ação das grandes empresas em nível
internacional. Destarte, discutiremos os limites da hegemonia e a tensão
apontada entre os processos de acumulação capitalistas e as estruturas estatais
calcadas no conceito de nação, com o surgimento e reforço de estruturas e
acordos internacionais que, de fato, retiram destes espaços públicos autonomia
decisória sem que necessariamente se constituam novos espaços de debate onde
se possam explicitar os conflitos de forma pública e democrática.
Finalmente, este livro é encerrado por um capítulo final, destacado como
epílogo, que é dedicado à discussão dos impactos das idéias apresentadas
anteriormente sobre a forma como se organizam as classes sociais e seus
conflitos no mundo contemporâneo. Isto se faz, entretanto, sem a pretensão de
esgotar este debate, apontando o processo de concentração da renda e da
13
negação de espaços de publicização das disputas entre as classes como os
principais efeitos das sucessivas vitórias do capital hegemon em suas lutas
travadas para submeter mais seres humanos de forma cada vez mais intensiva
ao domínio de uma relação que, a cada passo dado neste sentido, mais
aprofunda a miséria material e moral em meio a um universo de fartura
potencial.
14
Capítulo 1 - As raízes da hegemonia do capital.
1. Era uma vez...
A humanidade ao longo dos últimos séculos tem arrastado e se arrastado
sob uma relação com um fantasma. Fantasma este que é uma criação da própria
humanidade, uma relação humana que se autonomizou, superou seu caráter
humano e tornou-se Sujeito da história, eclipsando seus criadores no processo.
Como fantasma, sua apreensão é fugidia, obscura. Quando pensamos que o
vimos, ele já não está mais lá, tornou-se atributo de objetos e pessoas. Se
paralisado, nega-se. Se em movimento, empurra a todos na direção do
cumprimento de seu desígnio: sua própria reprodução ampliada.
Seus eleitos, os portadores do comando sobre a propriedade da
substância social que o representa esmeram-se por cumprir sua vontade única:
a acumulação desta substância com vistas à maior acumulação. O preço do
progresso comandado por este verdadeiro Deus, entretanto, é o conflito; a
submissão de outros homens ao comando de seus eleitos, que devem cumprir
sua missão sob a pena de serem descartados. Assim, mesmo os que se
beneficiam com suas dádivas também devem orar durante a noite e trabalhar
em suas tarefas de coordenação e cooptação da humanidade a seus desígnios
durante o dia.
As partículas deste Sujeito atraem-se mutuamente, criam e disputam
entre si, com uma voracidade inaudita, cada parcela da nova substância
socialmente criada e que pode vir a constituir uma nova parte de seu ser. Cada
parcela busca submeter à sua dinâmica de acumulação as outras parcelas que
constituem este ser como uma forma geral, abstrata, que domina a sociedade.
15
Esta disputa dota sua essência de outra face: seu próprio movimento gera a crise
que o nega.
A gênese deste “ser intangível”, desta relação alienada – porque
estranhada dos agentes que a alimentam -, se deu numa perspectiva histórica
nos processos de reprodução concreta da riqueza material humana, mas
rapidamente expandiu-se para além destes últimos, criando outras
determinações a partir de sua dinâmica própria de submissão ampliada da vida
a seu apetite acumulativo. Para tanto, seus proprietários necessitaram elaborar
justificativas para a reificação das relações sociais que dão base à reiteração
permanente do processo que constitui esta relação como Sujeito.
Esta elaboração se dá, num primeiro momento, a partir de agentes
isolados, já que, embora socialmente constituído como regra geral, seu ser não é
uno e os proprietários de suas diferentes porções enfrentam-se mutuamente e
disputam entre si a determinação da forma que melhor se adeqüe e mais bem
garanta a reprodução de sua parcela.
Apesar da esfera própria deste objeto semovente tornado Sujeito ser o
mercado, as dinâmicas que ele comanda não são meramente econômicas -
embora tenham sido estas as mais bem e profundamente estudadas ao longo do
último século e meio em que este vem disputando o domínio sobre o conjunto
das relações sociais. Desde sua constituição, o Sujeito revestiu-se de uma forma
de apresentar-se ao mundo como portador do “novo” – e de fato a inovação
constante é uma das características que permitem a aceleração de seu acúmulo
permanente -, e assim, seus portadores criam e abraçam seu credo como uma
ideologia – falsa consciência que se torna força social - a partir da qual
converter o mundo a sua forma particular de vida em sociedade.
Embora se apresente como forma de apreensão do mundo na esfera
política, a ideologia que constitui o mundo a partir deste Sujeito na verdade
busca negar o conflito na esfera pública e subsumi-lo a uma relação privada,
meramente econômica, com isto constituindo o sistema político em um
simulacro de democracia, um governo de fato exercido por seus representantes.
A esta altura, os leitores mais versados na teoria do valor já devem estar
se perguntando o porquê desta estratégia de apresentação da história do sistema
capitalista mundial. O objetivo aqui é o de apresentar uma primeira tese que
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perpassa a análise das relações capitalistas que faremos ao longo deste trabalho:
o processo de reprodução ampliada do capital – sempre entendido como o
valor em processo de valorização constituído em Sujeito social autônomo1, como
substância semovente do valor2 – não é um fenômeno redutível à esfera
econômica, e sua ação dentro do próprio mercado é marcada por ações que, se
ocorressem na esfera pública, seriam consideradas tipicamente políticas. Na
verdade a própria separação entre Estado e mercado é uma marca da forma
como o mundo é explicado a partir da constituição do capital como relação
social que se autonomiza de seus suportes e nega a característica coletiva, e
portanto social, do processo de reprodução da vida.
Assim, se “nas condições da economia capitalista, o processo produtivo
ganha também um duplo caráter: é processo de produção material e processo
de valorização do capital, ou seja, processo de produção de valores de uso e
processo de produção de valor” (Neto, 2002: 44). O que buscamos aqui é
entender o processo de produção material3 da vida humana, pois, o processo de
produção, enquanto momento de transformação da natureza pelo homem, é um
momento de relação entre homem e natureza, e entre homem e homem, e está
inscrito desta forma no campo de construção da cultura. É um momento de
prática cultural, de consubstanciação prática do discurso ideológico. É o próprio
momento de reificação da relação entre capital e trabalho, entre sujeito
semovente abstrato e homens concretos. É o próprio ato de construção da
hegemonia da relação capital sobre a humanidade, da afirmação do Sujeito
1 “Como mostra Fausto (1983), para Marx, no capitalismo, o homem não é sujeito
(rigorosamente falando é sujeito pressuposto), porque é mero suporte de relações sociais que tomam a forma de relações entre coisas, ou dizendo de outra forma, é simples predicado ontológico do verdadeiro sujeito que é o capital” (Paulani, 1991:60).
2 Partimos aqui da idéia que “a substância social que constitui o valor: ao tornar-se capital [...] adquire uma dinâmica própria, se transforma em substância semovente e sujeito automático” (Neto, 2002: 41). E que “o valor é uma ‘abstração’, mas não apenas é uma abstração real, como além disso se movimenta, e ao se movimentar subordina os sujeitos humanos ao seu movimento, torna-se ele próprio sujeito. Esta subordinação dos indivíduos ao resultado alienado das suas relações sociais constitui um novo desenvolvimento do fetichismo” (Neto, 2002: 43).
3 Marx expande o domínio da produção capitalista para o conjunto da sociedade quando considera que “é fácil ver a necessidade de que todo o movimento revolucionário encontra sua base, tanto empírica como teórica, no movimento da propriedade privada, na Economia. Esta propriedade privada material, imediatamente sensível, é a expressão material e sensível da vida humana alienada. Seu movimento – a produção e o consumo – é a manifestação sensível do movimento de toda a produção passada, ou seja, da realização ou realidade do homem. Religião, família, Estado, direito, moral, ciência, arte, etc., não são mais que formas especiais da produção e caem sob sua lei geral” (Marx, 1985: 144). Trata-se portanto de discutir como se dá este processo.
17
histórico sobre seus suportes. A hegemonia aqui se torna sinônimo de alienação
dos indivíduos com relação às decisões concretas que orientam a ação
teleológica de reprodução capitalista, sejam tais indivíduos trabalhadores ou
capitalistas. assunção da falsa consciência das relações como interpretação do
real. O capital ganha consistência como coisa externa aos indivíduos e se mostra
capaz de dirigir-lhes a vida ao ser visto como relação “natural”
Se saltarmos do micro ao macro, veremos que a expansão dos campos da
reprodução humana submetidos ao capital e a necessidade de elaboração de
ações estrategicamente orientadas e planejadas como políticas econômicas (na
medida em que visam a constituição de focos de poder dentro da esfera privada)
preparam o capital, particularmente o capital social concentrado nas Sociedades
Anônimas, para a realização de ações de submissão da esfera pública aos
propósitos privados. Este processo de submissão do público ao privado no limite
está encaminhando a sociedade para uma espécie de totalitarismo privado, ou
um totalitarismo de mercado, a subsunção das esferas de poder político (a
pública estatal e as instituições da Sociedade Civil) à primazia do mercado. Isto
implica na colonização da política pela lógica do mercado e a negação do espaço
da política como espaço da luta de classes. Em suma, a constituição do capital
como hegemon político do sistema leva a um tensionamento da sociedade que,
tendencialmente, pode negá-lo, não por uma superação em que se afirme o
caráter social do trabalho, mas num sentido negativo, através da absolutização
das relações privadas, da negação da sociedade através da supressão do espaço
público onde se opera o dissenso na acepção de Ranciére (1996).
O que proponho aqui para o estudo do capital com foco nos processos de
reprodução das relações de produção é uma ampliação do entendimento do
conceito de hegemonia como proposto por Gramsci (2000/III e 1991),
particularmente em Americanismo e Fordismo e em Maquiavel, o Príncipe e o
Estado Moderno. Assim, veremos como os processos de constituição da
“particular visão de mundo” que justifica a dominação dos muitos pelos poucos
na sociedade burguesa “nasce da fábrica” de uma forma radical, pois nasce da
18
própria relação que institui o capital como objeto. É uma relação privada que se
expressa na estrutura pública que garante seus pressupostos4.
2. Público x privado
A descrição da dinâmica do capital como Sujeito histórico toma por base
a separação ideal da vida humana em duas grandes esferas usualmente
contrapostas como excludentes: a esfera privada e a esfera pública. Esta
separação não é uma criação da ideologia burguesa, antes, trata-se de uma
apropriação do pensamento clássico por parte da teoria política e econômica
burguesas. O tema está longe de ser novo e não pretendemos esgotá-lo. A
contraposição entre oikos e polis, a casa e a cidade, a vida privada e a vida
pública, está na raiz do pensamento clássico grego como tratado numa
perspectiva republicana por Chauí (1992) ou numa perspectiva da autonomia
dos indivíduos, por Castoriadis (1992). Estes, por sua vez remontam seus
argumentos a Aristóteles e Platão. No entanto, o que nos interessa aqui é sua
forma tipicamente capitalista e assim, nos remeteremos fundamentalmente à
abordagem marxista, estabelecendo, a partir desta, nosso ponto de partida.
Segundo Marx, embora a propriedade exista já nas formas tribais
primitivas, esta só adquire a forma da propriedade privada, com a propriedade
mobiliária, de acordo com a lei relativa à propriedade do cidadão romano
completo (cf. Marx & Engels, 1986: 97)5. Deste modo devemos proceder à
discussão da constituição destes conceitos a partir de uma perspectiva histórica.
Podemos dizer que as noções de público e privado são pólos antitéticos
complementares: um não existe sem o outro, seu processo de fundação se dá
numa relação dialética6: o público é o não privado, mas o pressupõe; assim
4 Na expressão gramsciana trata-se de estudarmos a gênese das transformações
moleculares da sociedade. Para uma discussão mais ampla ver Werneck Vianna (1997), em particular o artigo “O ator e os fatos: a revolução passiva e o americanismo em Gramsci”.
5 Esta se desenvolveu até chegar à “propriedade privada pura, que se despojou de toda aparência de comunidade e que excluiu toda influência do Estado sobre o desenvolvimento da propriedade. A esta propriedade privada moderna corresponde o Estado moderno, o qual, comprado paulatinamente pelos proprietários privados através dos impostos, cai completamente sob o controle destes pelo sistema da dívida pública, e cuja existência, como é revelado pela alta e baixa dos valores do Estado na bolsa, tornou-se completamente dependente do crédito comercial concedido pelos proprietários privados, os burgueses” (Marx & Engels, 1986: 97). Esta tomada do Estado pelo capital será desenvolvida em maior detalhe na parte III.
6 Peço vênia a uma tentativa de exercitar a lógica a partir da leitura de Fausto, segundo o qual: “o ponto essencial no nível lógico é que [...] não pode haver compreensão da dialética, sem
19
como o privado é o não público, que se afirma pela negação do segundo. Em
ambos os casos a negação adquire um sentido de negação dialética, de supressão
– negação que conserva. A definição do que é publico e do que é privado está,
além disto, em constante disputa, em constante movimento7. E é próprio do
capital um movimento expansivo no qual busca não apenas seu crescimento
como volume de valor, mas também a submissão de novas parcelas da vida
social a sua lógica acumulativa. E isto se dá tanto de forma intensiva quanto
extensiva.
Tendo isto em vista, dizer que “a figura determinada em que se
enfrentam as partes de valor está pressuposta por que se reproduz
constantemente, e se reproduz constantemente por estar constantemente
pressuposta” (Marx, 1984: III/8, 1106) é o mesmo que dizer que a forma da
propriedade privada burguesa está pressuposta por que se reproduz
constantemente, e se reproduz constantemente por estar constantemente
pressuposta, e devemos ter claro aqui que ela é posta pelo consenso dominante
sobre está forma que é produzido na própria relação de reprodução, mas
substanciado na forma da lei, no espaço público estatal8.
Assim, o privado é o não público, mas por isto, tem que basear-se na
aceitação de sua existência pelo público, pelo coletivo. Ele só está posto para um
indivíduo se for pressuposto pela coletividade dos indivíduos. Assim, é a medida
comum do reconhecimento do que é privado que o constitui. Enquanto no
pensamento grego, “a autoridade despótica (a despotéia) define o governo
doméstico (a oikonomia) e, segundo Aristóteles [...] é uma autoridade derivada
ou logicamente posterior à politéia” (Chauí, 1992: 367), no pensamento
o movimento do que é exprimido (posto) e do que não é exprimido (pressuposto). O manejo rigoroso da distinção entre pressuposição (discurso implícito) e posição (discurso explícito) [...]. E [que] sem isso não há dialética” (Fausto, 1987: 19).
7 Quer-nos parecer que o objeto satisfaz deste modo a observação de Paulani, segundo a qual “... se o objeto é um universal concreto, o discurso dialético deve ser capaz de dizê-lo, e a generalidade que constitui o conceito não poderá ser pensada como separada da existência, revelando assim a adequação do discurso. Cabe alertar, porém, que não se trata aqui, evidentemente, de qualquer objeto; os objetos que têm a textura dos conceitos são objetos que têm um devir e um desenvolvimento, que implicam um movimento de passagem do não ser ao ser (e do ser ao não ser). Só esses podem ser trabalhados dialeticamente” (Paulani, 1991: 107).
8 Por outro lado, é a dissolução desta contradição entre público e privado que se faz necessária para a superação do sistema, pois “o trabalho, a essência subjetiva da propriedade privada como exclusão da propriedade, e o capital, o trabalho objetivo como exclusão do trabalho, são a propriedade privada como uma relação desenvolvida até a contradição e, por isto, uma relação de energias que tendem à dissolução” (Marx, 1985: 140).
20
burguês, que justifica o Estado capitalista, esta ordem causal se inverte. Embora
a propriedade particular tenha um “fim social”, é a iniciativa privada que é
apresentada como a portadora do meio para se atingir o bem estar coletivo - na
formulação smithiana da busca dos fins privados gerando o resultado ótimo
para a sociedade (cf. Smith, 1983, vol. 1). Assim, o público é visto como a
negação dos interesses privados que o compõe, e se afirma deste modo a partir
da pressuposição do privado – a propriedade privada vista como sagrada9 -,
como a resultante dos diferentes interesses privados tornados públicos como
medida comum. É este o sentido da organização social que exige o Estado
mínimo, tanto para o liberalismo como para o neoliberalismo. Por isto a
necessidade do Estado ser apresentado como contrato entre indivíduos
atomizados10.
É nesta separação ideal – porque realizada na ordem das idéias - que
surge o próprio conceito de Estado, como voltaremos a discutir à frente. E,
assim sendo, “a tarefa da esfera pública é [...] a de criar medidas, tendo como
pressupostos as diversas necessidades da reprodução social, em todos os
sentidos” (Oliveira, 1998: 40).
Se voltarmos a Marx, veremos que:
“(...) o processo capitalista de produção é uma forma historicamente
determinada do processo social de produção em geral. Este último é
tanto um processo de produção das condições materiais de existência
da vida humana como um processo que se operando em específicas
relações histórico-econômicas de produção, produz e reproduz estas
mesmas relações de produção e junto com ele aos portadores deste
processo, suas condições materiais de existência e suas relações
recíprocas, vale dizer sua formação sócio-econômica determinada, pois
9 “No direito privado, as relações de propriedade existentes são declaradas como sendo
resultado da vontade geral. O próprio jus utendi et abutendi exprime, de um lado, o fato de que a propriedade privada tornou-se completamente independente da comunidade e, de outro lado, a ilusão de que a própria propriedade privada repousa unicamente na vontade privada, na disposição arbitrária da coisa” (Marx & Engels, 1986: 99-100). Por outro lado, o direito positivo é o modo pelo qual se justifica a apropriação dos produtos criados com os fundos produtivos acumulados pelos proprietários do capital (cf. Marx, 1985: 68).
10 “A essência subjetiva da propriedade privada, a propriedade privada como atividade para si, como sujeito, como pessoa, é o trabalho. A economia política é um produto da energia e movimentos reais da propriedade privada” e, no rodapé “Ela é o movimento independente da propriedade privada que chegou a ser para si na consciência, a indústria moderna em pessoa” (Marx, 1985: 135).
21
a totalidade destas relações com a natureza e entre si em que se
encontram e nas quais produzem os portadores desta produção, essa
totalidade é justamente a sociedade, considerada segundo sua estrutura
econômica. Como todos seus predecessores, o processo capitalista de
produção opera sob determinadas condições que, entretanto, são ao
mesmo tempo portadoras de determinadas relações sociais que os
indivíduos contraem no processo de reprodução de sua vida. Aquelas
condições, como estas relações, são por um lado pressupostos, e por
outro resultados e criações do processo capitalista de produção, o qual as
produz e reproduz”(Marx, 1984: III/8, 1042-3, grifo nosso).
Dentro deste processo, a separação idealista entre a esfera pública e a
esfera privada corresponde à formulação de conceitos que descrevem num nível
abstrato os espaços concretos onde se dão as relações sociais, fronteiras estas
que são postas e repostas pelo processo de reprodução material da sociedade,
sendo objeto de disputa constante. Neste sentido, os loci concretos onde
ocorrem tais relações são instituições socialmente construídas ao longo do
processo histórico, o que quer dizer que não apenas são produtos de tais
relações, mas que também são modificados de acordo com as mudanças que
ocorrem nas relações de reprodução da vida social. Isto implica na idéia de que
um deslocamento da fronteira entre público e privado corresponda não apenas a
uma redefinição abstrata dos limites entre público e privado, mas que também
se consubstancie em novas formas organizacionais concretas dos espaços onde
se dão estas relações sociais, e em novas regras pactuadas sob as quais estas
relações se dão.
Do ponto de vista do espaço público estas relações se consubstanciam nas
instituições que formam o Estado, enquanto o espaço onde ocorrem as
interações privadas é denominado por Marx, seguindo Hegel, de Sociedade
Civil11. Nesta, o mercado surge como pólo antitético perfeito ao Estado, a
organização onde se dão idealmente as relações privadas em forma
pretensamente pura. Como nos lembra Coutinho, Para Marx, já nos
Manuscritos
11 Para um interessante estudo da evolução do conceito de Sociedade Civil ver Bobbio
(1987).
22
“O Estado deixa (...) de aparecer apenas como a encarnação formal e
alienada do suposto interesse universal, passando a ser visto como um
organismo que exerce uma função precisa: garantindo a propriedade
privada, o Estado assegura e reproduz a divisão da sociedade em classes
(ou seja, conserva a ‘sociedade civil’) e, desse modo, garante a dominação
dos proprietários dos meios de produção sobre os não proprietários,
sobre os trabalhadores diretos. O Estado, assim, é um Estado de classe:
não é a encarnação da razão universal, mas sim uma entidade particular
que, em nome de um suposto interesse geral, defende os interesses
comuns de uma classe particular” (Coutinho, 1994: 19).
Embora o liberalismo e o neoliberalismo apresentem o Mercado como
uma esfera autônoma e desregulada12, de fato esta desregulação é uma forma de
regulação, que deixa aos atores envolvidos – trabalhadores, pequenos e grandes
capitalistas - sujeitos às relações de força privadas em sua forma mais virulenta.
As organizações sociais do Estado13 e do Mercado, bem como outras
instituições das sociedades civil e política, são historicamente constituídas
variando no tempo e no espaço como resultado das forças sociais que se
encontram numa disputa constante pela nomeação do mundo no sentido dado
por Rancière (1996). Assim, a forma de constituição do espaço público, a forma
do debate e da instituição da política variará de feitio de acordo com as
especificidades das unidades estatais constituídas historicamente. De modo
similar, a organização das relações privadas se erigirão a partir de legislações
que buscarão regular a forma do exercício da produção e repartição do
12 “A formulação do movimento do livre-câmbio baseia-se num erro teórico cuja origem
prática não é difícil identificar, ou seja, baseia-se na distinção entre sociedade política e sociedade civil, que de distinção metodológica é transformada e apresentada como distinção orgânica. Assim, afirma-se que a atividade econômica é própria da sociedade civil e que o Estado não deve intervir em sua regulamentação. Mas, dado que a sociedade civil e o Estado se identificam na realidade dos fatos, deve-se estabelecer que também o liberalismo é uma ‘regulamentação’ de caráter estatal, introduzida e mantida por via legislativa e coercitiva: é um fato de vontade consciente dos próprios fins, e não a expressão espontânea, automática, do fato econômico. Portanto, o liberalismo é um programa político, destinado a modificar, quando triunfa, os dirigentes de um Estado e o programa econômico do próprio Estado, isto é, a modificar a distribuição da renda nacional” Gramsci (2000, III: 47, grifo nosso).
13 Coutinho (1994) propõe a tese de que Grasmci ampliaria a concepção de Estado, incluindo os mecanismos de “hegemonia privada” na constituição do Estado. Assim, a Sociedade Civil seria dividida em dois blocos, o mais básico relativo às atividades econômicas e um superior destinado à mediação política dentro da sociedade civil que reforçaria desta forma o caráter da dominação exercida na sociedade política propriamente dita representada pelo Estado. Também Bobbio (1987) aponta como próprio de Gramsci a inserção da Sociedade Civil no momento da superestrutura.
23
excedente no mercado. E neste, a forma particular de organização das empresas
ou firmas é a pedra angular a partir da qual se dá a reprodução ampliada do
capital14.
Segue disto que a relação entre a esfera pública e a esfera privada é
constantemente reposta pelo processo de produção capitalista – ou seja pela
reiteração da reprodução do capital. Embora seja posta pelo político, a esfera
pública pressupõe relações despóticas de comando sobre os indivíduos no
âmbito privado, enquanto no campo público, a democracia deve ser
(idealmente) o modo de encontrar-se a medida comum dos interesses da
sociedade, mas como o privado, o capital, é o pressuposto do sistema, esta
democracia é limitada pelo “direito sagrado” à propriedade privada, e o capital
não hesita em abrir mão dela quando ameaçada sua existência.
É interessante notar que, embora, a priori, a fábrica seja um terreno do
privado, e portanto, numa acepção clássica, o comando sobre o operário seja
despótico, não é este o discurso que encontraremos entre as modernas técnicas
de administração de pessoal. Antes, a necessidade do envolvimento dos
trabalhadores em decorrência de determinados métodos de trabalho, acarreta a
busca por sua cooptação e, portanto, a construção de um discurso e de uma
prática que visam o envolvimento de corações e mentes. Este processo inclui a
criação de instâncias de negociação do conflito de inspiração aparentemente
democráticas. Ou seja, embora em última instância o capital disponha do poder
de impor sua vontade, o desenvolvimento dos processos produtivos com vistas
sempre ao aumento dos lucros, acaba por empurrá-lo para uma situação onde
esta ampliação dos lucros passa a depender do envolvimento consciente dos
trabalhadores em tarefas que não podem ser automatizadas e que, portanto,
demandam comprometimento por parte destes trabalhadores. O mesmo
processo vale em certos casos na relação com fornecedores, como veremos.
14 “A forma econômica específica na qual se extrai o plus-trabalho não pago ao produtor
direto determina a relação de dominação e servidão, tal como esta surge diretamente da produção e por sua vez reage de forma determinante sobre ela. Mas nisto se funda toda configuração da entidade econômica comunitária, emanada das próprias relações de produção, e por fim, ao mesmo tempo, sua figura política específica. Em todos os casos é a relação direta entre os proprietários das condições de produção e os produtores diretos – relação esta cuja forma eventual sempre corresponde naturalmente a determinada fase de desenvolvimento do modo de trabalho e, por fim, a sua força produtiva social – onde encontraremos o segredo mais íntimo, o fundamento oculto de toda estrutura social, e por conseguinte também da forma política que apresenta a relação de soberania e dependência, em suma, da forma específica do Estado existente em cada caso” (Marx, 1984: III/8:1007).
24
Por outro lado, no âmbito do Estado há sempre uma tensão para a
redefinição do que é público e do que é privado, bem como das regras vigentes
em cada esfera. Há sempre a possibilidade de variações e matizes determinados
pela história local de cada povo, mas o eixo central está claro em Marx: a forma
de apropriação direta determina a forma institucional do Estado, que por sua
vez cristaliza a forma de dominação, assim,
“... sempre, para a parte dominante da sociedade é interessante sacrificar
o existente conferindo-lhe o caráter de lei e fixar como legais suas
barreiras, dadas pelo uso e pela tradição. Prescindindo de tudo mais, por
outro lado, isto se produz por si só apenas a reprodução constante da
base das condições imperantes da relação na que se baseia, assume com
o correr do tempo uma forma regulada e ordenada, e esta regra e esta
ordem são, de per si, um fator imprescindível de qualquer modo de
produção que pretenda assumir solidez social e independência do mero
azar ou da arbitrariedade. [...] Alcança esta forma, no caso de situações
de estancamento tanto do processo de produção como das relações
sociais correspondentes a ele, pela mera reprodução reiterada de si
mesmo” (Marx, 1984: III/8:1009).
Esta abordagem do problema não está restrita ao campo marxista,
também Keynes e Polanyi consideram o mercado como sendo um espaço
político por excelência, e como nos lembra Oliveira, “a política deve ser
entendida no sentido mais abrangente, como expressão do conflito de classes”
(1999: 7). Organicamente, portanto, as instituições do Estado e da Sociedade
Civil formam um todo inter-relacionado que pode ser metodologicamente
separado para estudo, mas que devem ser abordadas como parte de um todo sob
pena de produzirmos estranhamentos ao buscarmos o entendimento das partes.
Afirma-se aqui a impossibilidade de pensar-se a economia sem as relações
políticas e a política sem a base material de reprodução da sociedade.
Destarte, na medida em que é através da política que se determina a
forma (as regras) como se dão as relações privadas, é no espaço da política, e
portanto do Estado que se consubstancia a síntese dos conflitos entre as classes
e entre as respectivas frações que as compõe. Embora a luta de classes se
objetive no debate público, é na relação privada que surge a disputa pela
apropriação do excedente econômico que anima a ação da reprodução
25
capitalista. Assim, a ação política do capital é uma ação que visa a apropriação
privada do mundo pelo convencimento do público de sua justeza ou
naturalidade e, em decorrência, pela negação da própria política em qualquer
esfera que não seja a do Estado15. E, como veremos, uma vez asseguradas as
regras de garantia da propriedade e da reprodução do capital, trata mesmo de
negar a possibilidade de política inclusive na esfera estatal, reduzindo desta
forma as relações sociais apenas a seu conteúdo econômico privado.
No nosso entendimento as idéias chave para a análise deste processo, no
qual o político é posto como espaço de negociação limitado – já que o
pressuposto da propriedade privada não pode ser negado, sob a pena de sua
superação - são as noções gramscianas de concepção de mundo e hegemonia.
3. Concepção de mundo
O modo através do qual uma classe afirma sua particular forma de
organização das relações sociais e as justifica para o conjunto da sociedade é sua
concepção de mundo. Não se tratam necessariamente de verdades16, mas sim de
interpretações, ideologias, que justifiquem uma determinada forma de relação
entre os homens e estabeleçam uma hierarquia entre estes, organizando a vida e
as formas de apropriação das posses essenciais17 dos seres humanos. Além disto,
15 Com outra abordagem, B. Santos (1995) nos alerta que: o que ocorre com a criação de
uma supremacia do direito e da política na esfera do Estado, por um lado é a publicização do Estado, e por outro um acobertamento de outras formas de sociabilização antidemocráticas ocorrendo na esfera da economia:
“Creio que a dicotomia economia/política tornou estas duas imagens incomparáveis e incomensuráveis. Separou-as de tal forma que a configuração política das relações sociais, onde se condensava o progresso civilizacional, deixou de poder ser o modelo da configuração econômica das relações sociais. Confinado à esfera pública, o ideal democrático ficou neutralizado ou profundamente limitado no seu potencial emancipador. Convergentemente, a conversão da esfera pública na sede exclusiva do direito e da política desempenhou uma função legitimadora fundamental ao encobrir o fato de o direito e de a política do Estado democrático só poderem funcionar como parte duma configuração política e jurídica ampla, onde são incluídas outras formas antidemocráticas de direito e de política.” (B. Santos, 1995:109)
16 “... nas mentes dos agentes da produção e da circulação capitalistas devem formar-se idéias acerca das leis da produção que divirjam por completo destas leis, e que são só uma expressão consciente do movimento aparente. As idéias de um comerciante, de um especulador da bolsa, de um banqueiro, são necessariamente errôneas por completo” (Marx, 1984: III/6:400).
17 Segundo, Ferreira (1986) as posses essenciais do ser humano podem ser divididas em dois níveis: o afetivo e o deferencial. No nível afetivo encontram-se a posse das almas (normalmente religiosa) e a posse sexual. No nível deferencial, encontram-se a posse do excedente e a posse do poder. Assim, quando há mudança no campo afetivo, estas geram mudanças no campo deferencial, constituindo o caminho para introduzir-se mudanças na regulação do excedente e do poder e, em conseqüência, na concepção de mundo.
26
a ideologia dominante de uma sociedade que é expressa através “do poder do
Estado é fruto de um movimento contraditório, cujo vetor não está de modo
algum estabelecido a priori” (Coutinho, 1994: 40).
A elaboração da concepção de mundo se dá em dois níveis. Um nível
geral é o comumente estudado como o campo da ideologia strictu sensu, onde
jogam papel fundamental os intelectuais orgânicos18 da burguesia, como os
teóricos da democracia burguesa e mais radicalmente, os da pretensa “ciência
econômica”19. Mas esta ideologia, condensada num feixe de proposições, já é o
resultado de um longo processo no qual os indivíduos burgueses se reconhecem
como portadores de interesses comuns – o que lhes possibilita identificar-se e
constituir-se como classe – seu nível público.
Num segundo nível, esta “concepção de mundo” mais geral é refletida,
reelaborada e reificada na práxis da luta social, ali onde se concentram suas
relações mais básicas e onde o capital coloca-se como Sujeito do processo – o
espaço privado, onde se dá de fato o relacionamento direto entre os indivíduos
que lhe servem como suporte (os capitalistas e os trabalhadores) – a fábrica, ou
se considerarmos mais genericamente os processos de geração e apropriação do
valor para além das atividades produtivas strictu sensu, a empresa, a firma ou a
companhia, tomadas como sinônimos que descrevem as unidades de
reprodução do capital20. Afinal,
“[...] o capital não é uma coisa, mas sim determinada relação social de
produção pertencente a determinada formação histórico-social e que se
representa numa coisa e confere a esta um caráter especificamente social.
O capital não é a soma dos meios de produção materiais produzidos. O
capital são os meios de produção transformados em capital, meios que
em si distam tanto de ser capital como o ouro ou a prata em si de ser
dinheiro. São os meios de produção monopolizados por determinada
parte da sociedade, os produtos e as condições de atividade da força de
trabalho viva autonomizados precisamente frente a dita força de 18 Não é demais lembrarmos que Gramsci usa o termo intelectual orgânico para referir-
se a indivíduos cuja posição se vincula tanto às classes dominadas quanto às dominantes. 19 “De fato, a economia vulgar não faz outra coisa que interpretar, sistematizar e
apologizar doutrinariamente as idéias dos agentes da produção burguesa, prisioneiros das relações burguesas de produção” (Marx, 1984: III/8, 1041).
20 Como discutiremos no capítulo 3, a divisão do capital entre duas formas básicas a pequena empresa familiar concorrencial e o grande capital concentrado das Sociedades Anônimas é uma das marcas do capitalismo do século XX e é fundamental em nossa discussão.
27
trabalho, que se personificam no capital por obra deste antagonismo” [...]
“Ou seja, aqui temos determinada forma social, muito mística à primeira
vista, de um dos fatores dum processo social de produção historicamente
fabricado” (Marx, 1984: III/8, 1037-8).
Com isto, devemos, a partir da idéia gramsciana de que a “hegemonia
nasce da fábrica”, buscar entender os processos que constituem as empresas
como atores políticos num sentido amplo: como agentes que buscam não só a
reprodução ampliada do capital, mas também maximizar seu poder junto ao
conjunto da sociedade – tanto na esfera pública quanto na privada, ou seja,
tanto junto ao Estado (pensado em sentido amplo) quanto dentro do Mercado –
e como produtoras concretas de cultura.
Se considerarmos que “só os organizados podem dominar, e [que] para
organizar é preciso ter uma concepção de mundo que solde as experiências de
vida num projeto voltado a transformar o mundo ou a conservá-lo
aparentemente como tal” (Ferreira, 1986: 346), segue do anterior que a
capacidade que as grandes empresas e bancos têm demonstrado para manter a
dominação sobre o sistema capitalista mundial vem de sua percepção
estratégica dos fatos econômicos e políticos, estando dominação e percepção
estratégica umbilicalmente ligadas.
A ação destes capitais – socialmente constituídos e altamente
concentrados - molda o comportamento da estrutura econômica e das
instituições políticas, ainda que umas e outras não dependam necessariamente
da ação direta política ou econômica. A chantagem e a ameaça da pressão do
poder (seja a força física dos exércitos nacionais seja a violência possibilitada
pelo comando sobre volumes incomensuráveis de valor em estado líquido
consubstanciado nas grandes massas de capital especulativo), ou através de sua
ação política buscando convencer os diferentes conjuntos sociais de suas
prerrogativas dentro de um dado mercado, faz com que Estados e conjuntos
econômicos inteiros – formados por outras empresas e organismos sociais -
submetam-se à sua direção, ora pela coerção, ora pelo alegre consentimento dos
grupos e classes aliadas.
Em outras palavras, é a capacidade que as empresas têm de fazer política
– um fazer política entendido em sentido amplo -, direcionando a ação dos
aparelhos de Estado e de outros organismos da sociedade civil para a satisfação
28
de seus interesses, expressos por uma determinada forma de organização da
produção e, portanto, das relações entre homem e natureza e entre os seres
humanos, que funda sua forma específica de visão de mundo21.
Por exemplo, a introdução de sistemas de produção que envolvem o
controle de estoques como o Kan-Ban implicam em negociações (que emergem
de conflitos gerados por esta mesma inovação) tanto com os trabalhadores, e
seus sindicatos, quanto com fornecedores e distribuidores. Os trabalhadores
devem aderir a um novo tipo de linha de produção (o que implica em serem
educados e condicionados dentro de novas regras) e buscar sinalizar
corretamente suas necessidades de peças na cadeia produtiva. Os fornecedores
precisam ser convencidos a adequar seu sistema produtivo – assumindo os
custos de estocagem ou copiando o sistema e na verdade “empurrando” os
custos de estocagem à montante na cadeia produtiva. E finalmente os
distribuidores, em particular no caso da indústria automotiva, precisam ser
convencidos da adaptabilidade que o sistema pode gerar para suas vendas,
praticamente individualizando suas relações com a clientela. No conjunto,
todos devem ser convencidos da capacidade do novo sistema baratear seus
produtos e aumentar sua lucratividade ou seus salários (ou simplesmente
garantir sua sobrevivência frente à concorrência).
Em outros casos, empresas cuja ação depende de níveis de degradação
ambiental, ou que produzem elementos tóxicos, buscam a cooperação
governamental ou a constituição de legislações que lhe sejam benéficas (o que
envolve o convencimento da sociedade, ou pelo menos de seus representantes,
da justeza de suas reivindicações). No caso dos planos de saúde, o surgimento
da AIDS obrigou as empresas gestoras de Planos de Saúde a negociar com os
“consumidores” a inclusão dos custos da cobertura desta doença (dado o alcance
do problema, este se tornou público, obrigando à intervenção do Estado para a
regulação do mercado). Noutro exemplo, mais densamente explorado por
Oliveira (1998), a automação bancária levou os clientes a, de fato, trabalhar para 21 Hilferding já percebia o fenômeno das empresas e setores agindo como grupos
políticos ao falar de políticas protecionistas: “[...] suas taxas alfandegárias são fixadas levando em pouca conta as condições técnicas da produção de ramos individuais da indústria e representam freqüentemente o resultado de lutas políticas pelo poder por parte de camadas industriais isoladas; sua configuração depende, em definitivo, de sua influência sobre o aparelho de estado” (Hilferding, 1985: 294). Portanto, o resultado econômico é fruto de uma ação extra-econômica e totalmente política. É a capacidade de dobrar o Estado ao interesse específico, o público ao privado, o exercício do poder de forma hegemônica sobre o conjunto da nação.
29
os bancos, convencidos da “maior conveniência” de realizar suas transações via
Internet ou em caixas automáticos.
Deste modo, embora o conjunto das relações nas quais uma empresa
esteja envolvida constituam ações que correspondem a uma visão de mundo
necessariamente parcial – na medida em que se encontra limitada pela área de
atuação da empresa – ela pode acabar por ser levada a propor alterações (ou
servir de exemplo para alterações, por exemplo, na forma de relacionamento
entre empresas ou entre capital e trabalho22) na visão de mundo da classe
capitalista como um todo, constituindo assim, momentos “catárticos” de criação
política na acepção de Coutinho (1994).
Note-se que usamos a idéia de proposição, pois embora aja neste sentido,
esta particular visão de mundo (que corresponde ao interesse de uma parcela do
capital), não irá necessariamente consubstanciar-se numa visão de mundo
hegemônica – mais provavelmente irá compor o vetor hegemônico -, embora o
interesse da acumulação específica de um capital (ou um conjunto de capitais de
um determinado setor), levá-lo a buscar impor ou convencer, o conjunto da
classe capitalista e da sociedade da justeza de seu ponto de vista, uma vez que
isto se dá através de uma luta mais aberta ou velada de acordo com outros
condicionantes externos ao processo. É necessário ter claro assim, que a “visão
de mundo” empresarial, embora possa ser bastante abrangente, não é uma visão
de mundo completa, como a da classe social em seu conjunto. Antes, se trata de
um processo no qual uma é constituinte e, ao mesmo tempo, constituída pela
outra (estamos aqui diante dos processos moleculares que possibilitam a
constituição da nova forma para o corpo social).
Um exemplo deste processo é a disputa atual sobre as sementes
transgênicas. Como o uso destes produtos depende de autorização das
autoridades sanitárias dos diferentes Estados, a Monsanto, principal empresa
do setor, almeja por um lado atrair os produtores rurais em apoio a suas
políticas tentando demonstrar a “maior produtividade” de suas sementes, e de
outro, busca sensibilizar a opinião pública em apoio a seu esforço de “erradicar
a fome do mundo”. Esconde-se por trás deste discurso o interesse de vincular
22 A IBM jacta-se, por exemplo, de haver introduzido o princípio de “igual pagamento
para trabalho igual” entre homens e mulheres, em 15 de agosto de 1935, 28 anos antes disto se tornar lei nos EUA (IBM, 2002:4).
30
uma parcela crescente do mercado de sementes a suas mercadorias e, com isto,
impor o consumo também de seus defensivos agrícolas à fração capitalista de
produtores agrícolas (em seu relatório anual a empresa apresentasse como
“provedora de soluções” para os fazendeiros)23.
Não se trata de discutir aqui a verdade destas afirmações24, mas de por
em evidência como, com vistas a garantir sua lucratividade ou a expansão desta,
as empresas se vêem envolvidas em ações claramente políticas, tanto em
negociações com o Estado quanto de alteração da concepção de mundo
dominante no conjunto da sociedade sobre um determinado tema25.
Desta forma, as empresas não visam alcançar o poder político
diretamente, uma vez que tal poder é um meio para a garantia de seus lucros e
não um fim em si mesmo – embora no caso do acesso ao fundo público as
relações se tornem por vezes “mais carnais”. Contudo, as empresas exercem
pressão ou financiam campanhas para que indivíduos a elas ligados estejam nas
posições chave26, de forma a poder ter acesso à regulamentação estatal ou ao
23 Segundo o Relatório Anual 2003 da Monsanto, as sementes geneticamente
modificadas para resistirem aos herbicidas (não só de soja, incluem também milho, algodão e canola) já haviam se tornado seu primeiro item em termos de faturamento, e o Roundup, seu herbicida para a proteção de culturas de grãos mantinha a posição de herbicida mais vendido do mundo.
24 A ação da Monsanto tem sido bastante coberta pela imprensa. Entretanto, como em qualquer outro debate relacionado à imagem de uma empresa “anunciante”, a grande mídia no melhor dos casos evita tomar partido, como no caso da The Economist, apontando prós e contras. O fato é que, como aponta a revista Carta Capital em sua edição 249 de 16/7/2003, “na Argentina, nos EUA e no Canadá, a Monsanto cobra royalties mesmo de agricultores que dizem não plantar transgênicos mas que foram contaminados por campos vizinhos”.
25 Ainda em seu relatório anual a Monsanto se diz preocupada com as dificuldades de convencer as autoridades européias das vantagens de seus produtos e exalta as legislações dos EUA e Canadá, seus principais mercados consumidores – embora seja líder em vendas também nos mercados asiáticos e latino-americanos.
26 Com relação aos “representantes” das empresas na direção estatal basta estudar-se o Currículo Vitae dos últimos presidentes do Banco Central brasileiro (ver Gomes, 2000), ou as biografias do primeiro escalão do governo Bush Jr., descritas por Moore (2003) para se ter um “quadro geral” (Só para citar alguns dos menos conhecidos: Towmy Thompson, Secretário de Saúde e Serviços Humanos, é um antigo lobista da indústria do fumo, em particular da Philip Morris; Norman Y. Mineta, que recebeu contribuições quando em campanha para Deputado da Northwest Airlines, United Airlines, Greyhound, Boeing e Union Pacific, e que começou a trabalhar para a Lockheed Martin, é o Secretário de Transportes; e a Secretaria de Agricultura, Ann Veneman, foi funcionária da Calgene, que sendo uma das primeiras empresas a vender alimentos geneticamente modificados, foi vendida para a Monsanto, que por sua vez foi vendida para a Pharmacia).
Com relação ao financiamento de campanhas, ainda tomando como exemplo os EUA, basta lembrar que 35 CEOs (dentre as 100 maiores empresas americanas) estão entre os “cabos eleitorais” que arrecadaram mais que U$ 100.000,00 para a reeleição de Bush Jr. em 2004 - trata-se de arrecadação pois as doações individuais estão limitadas a U$ 2.000,00. Do lado do senador John Kerry apenas 3 CEOs atingiram esta marca, embora haja um número maior de
31
fundo público (Oliveira, 1998, 1999). Além disto, a capacidade de pressão sobre
os organismos estatais que regulam o direito, em particular os parlamentos27,
forma última de consubstanciação da concepção de mundo, na forma da
imposição legal, é importante como forma de possibilitar ou impossibilitar os
processos de concentração de capitais como veremos tanto na discussão sobre a
própria forma das sociedades anônimas na parte II, quanto na discussão sobre o
Estado e organismos multilaterais na parte III deste trabalho.
Neste sentido, a ação política exercida individualmente pelas empresas
normalmente é uma ação política “fraca”, que Gramsci chamaria de pequena
política28, assemelhando-se mais a uma tomada do butim estatal – ou visa a
expansão da parcela do mercado sob seu domínio - do que a uma reordenação
mais ampla da ordem jurídica a seu favor, como no caso da Monsanto.
No entanto, quando os interesses envolvidos são mais gerais e
correspondem ao interesse de parcelas maiores de capitais (como por exemplo a
fração financeira internacional), as ações promovidas, como a
desregulamentação financeira ocorrida em quase todos os países capitalistas do
mundo ou os processos de privatização ocorridos generalizadamente nos
últimos anos assemelham-se mais a ações de disputa hegemônica, de grande
política. Tais reformas implicam em alterações na forma com que a propriedade
financeira e/ou estatal é vista pelo conjunto da população, bem como alteram o
funcionamento do conjunto de instituições reguladoras da sociedade. E em
decorrência o equilíbrio de forças na disputa política dentro das sociedades
envolvidas, implicando em alterações políticas que geram tensões e crises que
põe no limite em xeque a própria organização do Estado-nação e a idéia de
hegemonia política como discutiremos nos capítulos 11 e 12.
Como já afirmamos, a ferramenta para a análise destas relações que
envolvem o exercício do poder e do convencimento através da elaboração de
Sociedades Anônimas que financiaram sua convenção – 29 contra 24 de Bush – além de 16 empresas que mantiveram os pés em ambos os barcos. (Anderson, S. et alli, 2004: 13-7).
27 Aqui vale voltarmos aos dados de Anderson, S. et alli (2004). Apenas 41 empresas declararam a doação de um total superior a U$ 44 mi em financiamentos de campanha para deputados nos EUA. A lista é encabeçada pela Goldman Sachs com doações de U$ 3,9 Mi, seguida pelo Morgan Stanley, Microsoft, Time Warner e Citygroup entre outros gigantes com doações milionárias.
28 A pequena política compreende as questões parciais cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política.
32
concepções alternativas incrementais29 do mundo é a noção de hegemonia
gramsciana “definida como a direção intelectual ou moral do processo, ou como
a supremacia de uma forma de unidade do pensamento e da vida que se
expressa em uma concepção de vida, ou de uma visão de mundo (Gramsci)”
(Ferreira: 1986: 16).
Neste sentido, se “a introdução do conceito de hegemonia na ciência
política responde exatamente à necessidade de diferenciar o momento da
violência daquele da aceitação ativa da concepção de mundo do dominante”
(Ferreira, 1986:10), então o mesmo pode ser considerado como válido para a
esfera econômica, uma vez que estamos diante, em ambos os casos, de relações
de poder culturalmente justificadas e socialmente reificadas. Não obstante,
nunca é demais lembrar que o conceito de propriedade privada30 aparece em
concepções de mundo anteriores à burguesa e é incorporada a esta de forma já
“naturalizada” como também a noção de mercado (ver Polanyi, 1980).
Além do exposto acima, outra idéia necessária para a explicação de como
se dá o processo de construção da hegemonia na ciência política é a busca
constante de um acúmulo de poder que propicia a “autonomia das condutas
individuais e dos valores coletivos que a lastreiam” (Ferreira, 1986:8). A forma
especificamente econômica deste acúmulo de poder é justamente o impulso a
entesourar do qual deriva a lógica de acumulação capitalista e dota de
movimento o capital31.
29 Por alteração incremental entendemos alterações na forma das relações moleculares
que acabam por desembocar no favorecimento de uma fração dos capitalistas em detrimento de outras sem que se ataque os fundamentos próprios do sistema. Isto inclui na formulação gramsciana não só a “pequena política”, mas também alterações em estruturas orgânicas sociais que implicam em “grande política”. O elemento central é que algumas destas alterações se dão sem “rompimentos bruscos” na ordem dominante, sendo apresentados como reformas “necessárias” para o conjunto da sociedade (podemos descrever estes processos como uma revolução passiva permanente, através da qual os diferentes grupos burgueses de forma isolada ou em alianças sempre mutáveis sucedem-se no controle do poder do Estado).Noutros casos, normalmente envolvendo o conjunto da sociedade e devido aos interesses contrariados serem de maior monta, o processo pode resultar em impasses que obrigam os atores a lançarem mão de autênticas revoluções, ou de golpes de Estado assim batizados, para impor sua direção, como foi o caso da Guerra de Secessão dos EUA ou, no segundo caso, as revoluções de 1930 e 1964 no Brasil, que grosso modo representaram disputas intestinas às burguesias que se apropriavam do excedente produzido nestes territórios econômicos, mas que tem impactos sobre outras classes sociais.
30 Assim, a concepção de mundo que se funda na propriedade privada burguesa é decorrência de uma apropriação primordial, “o roubo” de Proudhon (1997), que encobre e justifica os “roubos, furtos e pilhagens” (Dobb, 1983) próprios da acumulação primitiva de capital do sistema capitalista (Marx, 1984).
31 “O afã de entesouramento é ilimitado por natureza. Qualitativamente, ou por sua forma, o dinheiro carece de limites, vale dizer, é o representante geral da riqueza social porque
33
No caso do poder do capital estamos diante de um tipo específico de
poder, o poder econômico, e torna-se necessário aqui explicitar a noção
smithiana de valor, que é entendido em seu sentido original como o poder de
comando sobre outros homens e mercadorias. Como decorrência disto, a
propriedade privada acumulada possibilita ao capitalista comandar, dirigir,
homens e máquinas no intento de obter os resultados almejados pela empresa.
Assim, nos afastamos da concepção de poder da política quando, como Marx,
seguimos os passos de Smith:
“Riqueza é poder, como diz Hobbes. Mas a pessoa que adquire ou herda
uma grande fortuna não necessariamente adquire ou herda, com isso,
qualquer poder político, seja civil ou militar. Possivelmente sua fortuna
pode dar-lhe os meios para adquirir esses dois poderes, mas a simples
posse da fortuna não lhe assegurará nenhum desses dois poderes. O
poder que a posse dessa fortuna lhe assegura de forma imediata e direta,
é o poder de compra; um certo comando sobre o trabalho ou sobre todo o
produto do trabalho que está no mercado. Sua fortuna é maior ou menor,
exatamente na proporção da extensão desse poder; ou seja, de acordo
com a quantidade de trabalho alheio ou – o que é a mesma coisa – do
produto do trabalho alheio que esse poder lhe dá condições de comprar
ou comandar. O valor de troca de cada coisa será sempre exatamente
igual à extensão desse poder que essa coisa traz para o seu proprietário”
(Smith, 1983, I: 63-4).
De onde Marx conclui nos Manuscritos que
“O capital é, pois, o poder de governo sobre o trabalho e seus produtos. O
capitalista possui este poder não graças a suas propriedades pessoais e
humanas, mas enquanto é proprietário do capital. O poder aquisitivo de
seu capital, que nada pode contradizer, é seu poder” (Marx, 1985: 68-9).
E este poder só se exerce no movimento de reprodução do capital, em sua
existência como relação entre seres humanos. Assim, se a busca pela hegemonia
é uma busca de acúmulo de poder, o movimento do capital é em si um
pode ser convertido de maneira direta em qualquer mercadoria. Mas, por sua vez, toda soma real de dinheiro está limitada quantitativamente, e em decorrência, não é mais que um meio de compra de eficácia limitada. Esta contradição entre os limites quantitativos e a condição qualitativamente ilimitada do dinheiro, incita por sua vez ao entesourador a re-empreender este trabalho de Sísifo que é a acumulação. Ocorre-lhe como ao conquistador do mundo, que com cada novo país não faz mais do que conquistar uma nova fronteira” (Marx, 1984: I/1: 162).
34
movimento de reificação de uma prática cotidiana de assimilação do trabalho
vivo pelo trabalho morto que assegura o acúmulo de valor e, em conseqüência,
de poder econômico. O próprio movimento de reprodução ampliada do capital é
um movimento de reificação da conduta burguesa e de reposição da relação
capital-trabalho nos marcos do capitalismo32. A afirmação de Gramsci de que “a
hegemonia nasce da fábrica” deve ser lida de forma radical: o movimento de
(re)produção ampliada do capital (re)produz a hegemonia social burguesa em
termos culturais e políticos e não apenas econômicos. O capital, como Sujeito
semovente e relação autonomizada de seus suportes, é, ele mesmo, o hegemon
do sistema.
Tal concepção de poder, e a busca de acúmulo de poder, aplicadas no
âmbito econômico nos levam necessariamente à tendência de concentração e
centralização capitalistas clássicas expressas por Marx (1984) e enfatizada por
Lênin (1982). Uma vez que as empresas, ao buscar aumentar seu poder de
comando econômico defrontam-se com barreiras erguidas e asseguradas pelo
Estado (na medida em que os limites da propriedade privada são definidos no
âmbito público), estas passam a necessitar também de aumentar seu poder de
comando político e seu prestígio na sociedade, com o objetivo de mover estes
limites. Assim, torna-se necessário aproximarmos aqui a forma de disputa por
controle econômico da forma de disputa por controle político, tendo em vista
que as empresas são levadas, pelo próprio processo de reprodução ampliada do
capital, a transformar-se em atores políticos por excelência, contrariando a
visão tradicional difundida pelo liberalismo de que estas estariam limitadas
apenas à esfera produtiva da sociedade.
Devemos voltar assim à idéia de Sociedade Civil como exposta por Marx,
como o espaço das relações privadas de reprodução da vida na sociedade que se
contrapõe, em seu raciocínio, à Sociedade Política expressa na forma do Estado,
entendido aqui em sentido estrito como os aparelhos de dominação e coerção.
Embora Gramsci amplie o conceito de Estado, englobando neste as estruturas
da Sociedade Civil que compunham historicamente os aparelhos “privados” de
hegemonia (cf. Coutinho, 1994), também esta ampliação não nos parece mais
suficiente para dar conta do processo de interação entre o poder político e o
econômico. 32 Sobre o desenvolvimento das relações capital-trabalho ver Paulani (2001).
35
Como vimos, o próprio capital, como relação humana na qual o
trabalhador entrega sua força de trabalho em troca de um salário é uma relação
consentida – ainda que haja resistência – que reproduz a conduta da
reprodução social de acordo com a vontade, a direção, a hegemonia do capital.
Não são apenas os aparelhos privados de hegemonia que constroem o consenso
dominante. O próprio capital educa o trabalhador em sua faina diária e deve
justificar no próprio chão de fábrica seu “justo” poder de comando, seu direito
de direção “natural”. Assim, o processo de construção da hegemonia política,
que se manifesta nas estruturas do Estado, na verdade constitui-se como um
dos aspectos da própria relação de reprodução da vida social sob o capital.
Segue disto que as relações políticas próprias do capitalismo estão
contidas em germe na própria relação de reprodução social, isto é, do capital.
Desta forma, a descrição da Sociedade Civil como um terreno próprio das
relações privadas já é em si um reflexo da mistificação que justifica a
propriedade privada e o direito burguês de comandar outros indivíduos
negando o caráter coletivo das relações de reprodução da vida. Caráter este
limitado pela propriedade privada dos meios de produção. A construção do
consenso, portanto, passa por toda o conjunto das relações da Sociedade Civil,
inclusive sua base econômica onde se dá a reprodução do capital, sem que esta,
entretanto, constitua-se como parte do Estado.
O capital é ao mesmo tempo valor em processo de valorização e forma de
exteriorização do poder social que inscreve na sociedade sua concepção de
mundo e busca torná-la dominante. O valor em processo de valorização visto
como sujeito autônomo, constitui-se em hegemon, ao mesmo tempo em que a
concepção de mundo dominante na sociedade é a forma de exteriorização, como
ideologia, da alienação do capital no processo produtivo. O capital constitui-se
desta forma em agente hegemônico da sociedade, em Capital hegemon. Ao
estudar o objeto, entretanto, devemos abordá-lo ora como capital, valor em
processo de valorização, ora como hegemon, relação social que reproduz as
condições materiais da existência humana 33.
33 “Assim, se em cada momento só é possível reconhecer uma das determinações do
objeto, é preciso lembrar que esta determinação só se torna efetiva pelo ‘esquecimento’ das outras. Como a totalidade nunca está posta na percepção de um momento apenas, lembrá-la implica reconhecer esse momento posto em sua conexão contraditória com os demais. O esquecimento não é, pois, esquecimento absoluto, vulgar, mas esquecimento afetado pela
36
Por outro lado, a disputa entre os diversos capitais individuais adquire,
com o acirramento da competição e a concentração de capitais, novas formas
que socializam também num novo nível as relações estabelecidas pelo capital. É
neste sentido que as Sociedades Anônimas são desenvolvidas originalmente
pelos organismos estatais com vistas a ações coordenadas de investimentos em
infra-estrutura. Mas a forma encontrada para a articulação destes capitais é
uma forma pública e não privada. A necessidade de articulação de grandes
volumes de capitais obriga o desenvolvimento de uma forma mista que supera
em si seus componentes. A Sociedade Anônima é originalmente uma empresa
com caráter público – tanto por sua criação com base em cartas de licença
quanto pela forma de “prestação de contas” instituída pela legislação, que age,
entretanto, com vistas a objetivos privados, a acumulação de capital. A
capacidade destas empresas de deslocar os limites estabelecidos entre público e
privado, leva a um movimento no qual o acento no pólo privado da equação se
reconstitui como dominante e “expulsa” a regulação pública, criando uma figura
jurídica nova que, como veremos será a personificação do capital como sujeito
social autônomo por excelência.
Além disto, a importância do fundo público e das regulamentações
estatais para as necessidades da luta oligopolista contemporânea empurram o
capital consubstanciado nas grandes empresas de capital associado a uma
situação limite, onde ou tornam-se atores políticos ou devem renunciar às
vantagens competitivas proporcionadas por fazer parte de um grupo associado a
um determinado Estado ou a um conjunto de empresas como um keiretsu
japonês.
Também este desenvolvimento insere por si mesmo as empresas no
campo das instituições da Sociedade Civil que correspondem a mais que a mera
reprodução do capital, a uma ação como “instrumentos privados de
hegemonia”, embora neste caso as relações não sejam mais consentidas, como
no caso das instituições “privadas” de hegemonia.
Mais que isto, ao relacionar a ação de acumulação capitalista a
concessões públicas – inicialmente a canais, ferrovias e bancos, mas hoje
abrangendo uma ampla gama de serviços públicos ou regulados pelo Estado –
memória, supressão de uma determinação para posição de outra. Trata-se de uma memória feita de esquecimentos e de esquecimentos que memorizam” (Paulani, 1991: 168).
37
instaura-se uma relação direta do processo de acumulação capitalista com a
negociação política.
Este caráter “político” não aparece apenas nas relações entre as empresas
e o Estado. Do ponto de vista interno às estruturas das Sociedades Anônimas, a
aparência dos conselhos de acionistas, é a de uma estrutura “democrática”
(mesmo que limitada aos acionistas e que o poder seja exercido pelo número de
ações) e, portanto, aparentemente pública - na medida em que é social e coletiva
- de negociação da apropriação privada do excedente produzido por aquela
empresa particular34.
É importante lembrarmos aqui, que o capital social é formado pela soma
dos diferentes capitais e que neste sentido,
“Cada capital singular, entretanto, não constitui mais que uma fração
autonomizada – dotada de vida individual, por assim dizer, do capital
social global, assim como cada capitalista singular não é mais que um
elemento individual da classe capitalista. O movimento do capital social
se compõe da totalidade dos movimentos descritos por suas frações
autonomizadas, das rotações dos capitais individuais” (Marx, 1984: II/5,
430).
Desta forma, ao mesmo tempo em que o capital se reproduz de forma
social, o que se observa na prática é a ação individual de cada parcela restrita do
capital buscando sua própria acumulação de forma atomizada e, portanto,
contraposta aos interesses coletivos. Ou seja, embora os capitalistas se
reconheçam como classe, sua ação no nível do mercado é em princípio
individual35 – embora, como veremos, ocorram alianças – e é também como
34 Trata-se de aparência, pois como já descrevia Galbraith (1982) em 1956, com a
pulverização das ações, as reuniões de acionistas tornaram-se apenas um ritual no qual as diretorias fingem ouvir as sugestões dos acionistas.
35 “A própria burguesia só se desenvolve paulatinamente dentro de suas condições; ramifica-se, por sua vez, em diferentes frações, de acordo com a divisão do trabalho, e acaba por absorver em si todas as classes possuidoras preexistentes [observação marginal de Marx: ela absorve inicialmente os ramos de trabalho diretamente pertencentes ao Estado e, depois todas as profissões mais ou menos ideológicas] (ao mesmo tempo em que transforma numa nova classe – o proletariado – a maioria da classe não-possuidora que existia anteriormente e uma parte das classes até então possuidoras), na medida em que toda a propriedade existente é transformada em capital comercial ou industrial. Os indivíduos isolados apenas formam uma classe na medida em que têm que manter uma luta comum contra outra classe; no restante, eles mesmos defrontam-se uns com os outros na concorrência. Por outro lado, a classe autonomiza-se em face dos indivíduos, de sorte que estes últimos encontram suas condições de vida pré-estabelecidas e têm, assim, sua posição na vida e seu desenvolvimento pessoal determinados pela classe; tornam-se subsumidos a ela. Trata-se do mesmo fenômeno que o da
38
sujeitos dotados de uma ação individual estratégica visando a auto-acumulação,
que os capitais devem ser analisados em suas relações, tanto no mercado quanto
na esfera pública estatal e nas instituições da sociedade civil, ou seja, numa
permanente tensão entre os interesses individuais e coletivos, que se manifesta
em níveis diferentes de conflito, indo da “unidade e luta de contrários”, própria
das alianças oligopolistas, à luta aberta, quer seja pelo mercado, quer seja pela
reorganização do Estado.
Além disto, dada a intervenção estatal na estrutura econômica e o papel
predominante que o Estado passa a desempenhar como ativador de setores
econômicos inteiros, parece bastante claro que a necessidade de poder político
torna-se um imperativo para a sobrevivência das empresas que atuam nestes
setores. A busca pela participação da destinação de parcela do fundo público
passa a motivar setores econômicos distintos como a indústria militar e os
grandes grupos financeiros. Os subsídios a tais setores passam a constituir
parcela necessária à reprodução ampliada do capital de forma generalizada
como apontado por Oliveira (1998).
O elo entre a economia e a política, que aparece como perdido para os
economistas do mainstream, é necessariamente ocultado no próprio processo
de construção das concepções de mundo burguesas. Sendo estas visões de
mundo concepções ideológicas calcadas na propriedade privada dos meios de
produção, necessitam negar o caráter coletivo e social, e portanto público e
político, dos processos de reprodução social com vistas a poder exercer a
absorção do excedente de forma privada.
Assim, a separação formal da esfera política da esfera econômica - a
separação do comando sobre a repressão física (o monopólio da força), do
comando sobre os homens e as coisas (o monopólio sobre a propriedade) - nega
a capacidade de reprodução social autônoma dos seres humanos sem a
mediação do capital36. O elo entre economia e política não está perdido, antes
subsunção dos indivíduos isolados à divisão do trabalho, e tal fenômeno não pode ser suprimido se não se supera a propriedade privada e o próprio trabalho” (Marx & Engels, 1986: 83-4, grifo nosso).
36 Neste sentido, a idéia de capital monopolista é uma tautologia. O capital em si é uma potência social – desde que mantido em movimento – que se afirma com base no monopólio por parte de um indivíduo, o capitalista, ou de um conjunto de indivíduos, a classe capitalista, sobre a massa de trabalho pretérito socialmente gerada, ou seja, o capital. Sua tendência intrínseca é a concentração e centralização na forma de empresas que se tornaram, com o advento das sociedades anônimas, poderes sociais autônomos aos indivíduos que lhes servem de suporte
39
ele necessita desesperadamente ser ocultado pelo capital, já que o próprio
capital ao constituir-se, se torna uma relação que afirma uma dada organização
política da sociedade, ainda que tenha por objetivo, também, sua reprodução na
esfera econômica.
Esta natureza dúplice do processo de reprodução social na qual a
reprodução do modo de produção depende da reprodução do consenso social
sobre as regras que o regulam, e por outro, a natureza política da garantia da
propriedade privada que fundamenta este modo de produção nos leva, a partir
da análise da ação concreta das empresas a propor a ampliação do uso da noção
gramsciana de hegemonia para as relações tipicamente “privadas”, ditas de
mercado.
4. Hegemonia econômica x hegemonia política
Gramsci faz uso da noção de hegemonia no exame de dois contextos
distintos: 1) a análise tradicional das relações entre Estados; 2) a apreciação do
processo de construção da hegemonia política por parte dos grupos políticos
internos aos Estados, pois
“Toda inovação orgânica na estrutura modifica organicamente as
relações absolutas e relativas no campo internacional, através de suas
expressões técnico-militares” [...] “De resto, as relações internacionais
reagem passiva e ativamente sobre as relações políticas (de hegemonia
dos partidos). Quanto mais a vida econômica imediata de uma nação se
subordina às relações internacionais, tanto mais um determinado partido
representa esta situação e a explora para impedir o predomínio dos
partidos adversários...” Gramsci (2000, III: 20).
Contudo, em nosso entendimento, a noção de hegemonia deve ser
utilizada inclusive na análise das relações mais básicas que constroem a própria
idéia de classe, e também de fração de classe. Esta é a disputa do que chamamos
de hegemonia econômica ou hegemonia de mercado, que configura a disputa
restrita ao conjunto de empresas que formam uma indústria, onde joga papel
central a discussão que procedemos. Assim como é da fábrica que surge a
(tanto trabalhadores quanto os capitalistas monetários que pretensamente são seus proprietários).
40
hegemonia da classe capitalista sobre as demais classes, também é da menor
unidade econômica do sistema, a empresa, que surgem as formas técnicas e
culturais que configuram as relações de poder e convencimento dentro da classe
capitalista e que contrapõem as diversas frações – e átomos - da burguesia. O
processo econômico tende a concentrar o poder nas mãos de determinados
grupos. Esta concentração, todavia, gera as forças centrífugas, e os componentes
das disputas que acabam por irromper como crises econômicas. Estas podem
criar desequilíbrios tanto na disputa interna à burguesia como gerar pressões
oriundas do restante da sociedade que acabam por eclodir como crises ou
disputas no campo político.
A análise desenvolvida aqui com base na noção de hegemonia trata de
explicar porque os Estados agem de acordo com o consenso resultante da
disputa não só entre as classes, mas dentro das classes, em particular dentro da
classe dominante burguesa, isto é proprietária, e como se forma o bloco
histórico dirigente a partir da disputa entre os diferentes capitais, entendidos
como fração do capital social global. E, se temos claro que esta disputa se dá de
forma interna aos países e que sua expressão dentro da burguesia em seu
conjunto se dá através da ação dos capitalistas, então poderemos demonstrar
como sua base material será encontrada, entre outros elementos, na forma
como se dá esta disputa no próprio mercado: em particular no modo como as
empresas impõem, através de relações de força econômica, mas também e cada
vez mais, de convencimento político, a parceiros e aliados, sua particular visão
de mundo, e os submetem a seus próprios processos de acumulação de capital.
Neste sentido, as grandes empresas irão operar em dois níveis: um
primeiro, o nível do mercado, no qual buscam alterar a percepção de
consumidores e impor sua vontade a fornecedores e distribuidores, exercendo
sobre estes pressões no sentido de transferir para si parcelas da mais-valia
extraída no processo produtivo por estas frações de capital a elas ligados. Ao
mesmo tempo, a partir de políticas de “relacionamento” – para usar o linguajar
administrativo -, buscarão mostrar como estão “garantindo” a sobrevivência
destes mesmos capitais (que se tornam seus subordinados) frente à
41
“competição” do mercado. E um segundo nível, no qual enfrentam as relações
com o Estado e a sociedade civil como um todo37.
A forma como a unidade de acumulação capitalista relaciona-se com o
meio, com o sistema como um todo é uma forma concreta, objetiva, que pode ou
não se tornar forma generalizada desta relação, mas que configura, na prática,
hierarquias entre capitais e formas de direção que podem ser descritas como
hegemônicas, e onde se exerce uma particular combinação de força38 e
consentimento – ainda que restritas em termos de espaço e tempo. Nas palavras
de M. Santos (2000):
“... graças ao casamento entre as técnicas normativas e a normalização
técnica e política da ação correspondente, a própria política acaba por
instalar-se em todos os interstícios do corpo social, seja como
necessidade para o exercício das ações dominantes, seja como reação a
essas mesmas ações. Mas não é propriamente de política que se trata,
mas de simples acúmulo de normatizações particularísticas, conduzidas
por atores privados que ignoram o interesse social ou que o tratam de
modo residual” (M. Santos, 2000:36)
Na medida em que a empresa, enquanto corporificação jurídica do
capital, sua forma corpórea propriamente social, age no sentido de estabelecer
uma hierarquia ou um vínculo estratégico entre seu processo de criação de valor
e o de outros atores, representados por outras empresas ou pelos trabalhadores,
estabelece-se uma relação que supera a competição capitalista clássica. Este
novo patamar de competição, longe de tender ao modelo de concorrência
perfeita preconizado pela economia política, visa a constituição de barreiras
monopolistas e alianças buscando justamente escapar da tendência de
equalização da taxa de lucros no mercado. Assim sendo, este processo de
construção de relações assimétricas e suas conseqüências tanto em termos
políticos como com relação à teoria do valor necessita ser estudado (como
faremos na parte I). 37 Discutiremos como as relações de mercado se tornam relações tipicamente políticas e
as implicações disto ao longo das duas primeiras partes desta tese. Na parte III discutiremos as implicações destas alterações no nível público Estatal.
38 A força aqui está relacionada a constrangimentos tipicamente econômicos, como a chantagem que leva um fornecedor a rebaixar o preço de venda de uma mercadoria em nome de “manter o cliente”, ou a arbitragem de juros por parte de instituições financeiras contra empresas particularmente debilitadas. Estas relações não são fundamentalmente diferentes da relação capital-trabalho que pressupõe o “trabalhador livre” para ser explorado.
42
No volume III de O Capital, Marx analisa a constituição do processo que
em linguagem gramsciana comporia a constituição da hegemonia social da
forma capital, ou do modo de produção capitalista. Nesta ação, iniciada pelo
capital mercantil, “o capital pode formar-se no processo de circulação, e deve
formar-se nele antes de aprender a dominar seus extremos, as diversas esferas
da produção entre as quais media a circulação” (Marx, 1984: III/6:419).
Naquele momento histórico, Marx está preocupado em mostrar como
originalmente, o capital comercial se apoderava da produção pela simples lógica
do comprar barato e vender caro, sendo assim, “no começo, o capital comercial
é só o movimento intermediário entre extremos os quais não domina, e entre
pressupostos que não cria” (Marx, 1984: III/6:422), mas ao transformar-se em
pressuposto e ao subordinar a produção à lógica da acumulação, o capital que
adonou-se do processo produtivo passa a subordinar a dinâmica do capital
comercial e, de forma análoga, converte os banqueiros num tipo especial de
capitalista encarregado da gestão do capital monetário, como discutiremos no
capítulo 6.
Além disto, o processo de concentração de capitais ocorrido a partir de
fins do século XIX recoloca no centro da cena as estratégias das formas
pretéritas de funcionamento do capital, nos trazendo questões que afastaram a
validade da predominância da indústria sobre o capital comercial e financeiro.
Tanto o capital comercial começa, a partir de núcleos altamente concentrados e
centralizados, a impor punções sobre a mais-valia industrial, como também, e
principalmente, o capital bancário passa a impor condições cada vez mais
draconianas, tanto às empresas industriais, quanto ao conjunto dos Estados que
fazem parte da economia mundial, que necessitam da obtenção do capital
monetário na forma do crédito. As grandes corporações passam a exibir braços
financeiros que desafiam o poder dos Estados menores – quando não o de
alguns centrais. O desenvolvimento e extrapolação das proposições de Marx se
tornam, desta forma, uma tarefa necessária para a compreensão desta nova
realidade.
Neste sentido e tendo em vista que o objetivo das empresas é a busca de
acumulação constante de capitais, podemos propor como princípio estratégico
da ação empresarial uma espécie de “ocupação do mercado”, o estabelecimento
de relações que permitam o controle de massas crescentes de capital e das
43
relações que garantem sua reprodução ampliada. O objetivo das empresas se
torna assim, o controle da produção e das cadeias de distribuição e
financiamento, no âmbito privado e, no âmbito público, o controle sobre a
normatização estatal sobre o grau de concentração do setor, ou os contratos
públicos, ou ainda o acesso aos fundos públicos, na acepção de Oliveira (1998).
As grandes empresas de capital acionário passam a ser organizações tão
complexas como os partidos ou o Estado. E tais empresas, a exemplo dos
partidos e outras organizações da sociedade civil, buscam manter uma
continuidade na organização, comunicações regulares entre o centro de
comando e a periferia (subsidiárias), centralização de decisões nas mãos dos
líderes, inclusive quando se trata de exercer influência sobre a sociedade, e um
trabalho consistente de relações públicas no sentido tanto de ganhar simpatia
por suas marcas como o respeito das comunidades que os cercam.
Em suma, as empresas tomam parte da sociedade civil e buscam
diretamente expressão na sociedade política, no Estado, uma vez que são fonte e
instrumento de dominação e controle social, além de campo de contato entre
intelectuais orgânicos e tradicionais39. Tais ações políticas dão-se
principalmente através da ação de seus gerentes, lobistas e prepostos nos
organismos de Estado, bem como através das associações de classe e de setores
industriais (mais um tipo de organismo onde fica patente a estrutura de
cooperação e conflito própria das estruturas oligopolizadas).
Deste modo, a generalização da forma Sociedade Anônima, de padrões
tecnológicos, ou da utilização do ouro como padrão de lastro para operações
monetárias são exemplos de desenvolvimentos sócio-históricos que acabaram
por determinar a trajetória de desenvolvimento da sociedade capitalista
contemporânea40. Também encontraremos em Gramsci (1991, 2000) a idéia de
39 Este contato se torna particularmente relevante se observarmos as tendências
recentes de Pesquisa & Desenvolvimento (Chesnais, 1996) e das políticas de Planejamento Estratégico (Porter, 1986, 1993).
40 A escola de Economia das Instituições (Chandler (1997), North (1990) et alli.) propõe a interpretação destes arranjos como “funções de trajetória” (path dependence), que explicariam o “caminho virtuoso” de algumas nações em detrimento de outras, ou influenciando/condicionando o desenvolvimento de outras. Vemos um exemplo disto na argumentação de Eichengreen, ao falar sobre como “o Sistema Monetário Internacional será função trajetória,[pois] um evento casual como a adoção ‘acidental’ do padrão-ouro pela Grã-Bretanha no séc. XVIII pôde colocar o sistema numa trajetória na qual praticamente o mundo inteiro veio a adotar este mesmo padrão em 150 anos” (Eichengreen, 2000: 28). Se há algo de acidental é o fato de que “em 1717, quando Sir Isaac Newton, como responsável pela casa da moeda, fixou para a prata um preço em ouro excessivamente baixo, fazendo com que,
44
que as potências econômicas, em suas relações de poder com outras nações irão
exercer uma “ação pedagógica”, levando as nações seguidoras a adotar
comportamentos e instituições que copiem as suas. Desta forma, tanto a adoção
do padrão ouro quanto a da Sociedade Anônima como forma de propriedade
capitalista, podem ser explicadas como resultado do poder hegemônico do
capitalismo britânico no período – ainda que o primeiro se dê como adequação
e a segunda como resposta na busca de alternativas de competição. Segue disto
que arranjos institucionais como o das sociedades anônimas são resultado de
experimentos de organização social, no âmbito da sociedade civil, que se fazem
com o desenvolvimento histórico e resultam em alterações gradativas na
forma de organização das empresas, em particular nos setores onde os capitais
necessitam acelerar o processo de concentração, e que darão origem aos
modernos oligopólios globais como veremos nos capítulos 7 e 8.
O importante a reter aqui é que tais alterações nas instituições são causas
e condicionantes do desenvolvimento da forma de expansão do capitalismo
contemporâneo. As empresas, ao mesmo tempo em que são obrigadas a cumprir
a lei, a escrevem41. O que se observa aqui é uma tensão entre a ação do capital
como “piloto automático” do capitalismo e o papel desempenhado pelos homens
na constituição desta dinâmica. Não pode existir o “piloto automático” se este
não se apoiar na ação de homens concretos, ao mesmo tempo em que estes
agem de acordo com condicionantes impostos pelo conjunto das relações
capitalistas que os produzem a partir de uma lógica abstrata determinada. O
resultado é que a ação dos suportes do capital acaba por reforçar a aparência de
heteronomia de suas ações quando estes buscam justificá-las a partir do jogo de
inadvertidamente, desaparecessem de circulação todas moedas de prata” (Eichengreen, 2000: 29), fora isto, todos os demais países buscavam estabelecer sistemas de conversão de suas moedas.
A idéia de função trajetória dos institucionalistas, bem como a idéia de “efeito mimético” proposta por Roy (1997) para explicar a adoção do sistema de sociedades por ações nos EUA do século XIX, são aproximações “heterodoxas” que a teoria econômica e a sociologia política de raízes burguesas tem tentado estabelecer como forma de explicar os processos de vinculação do desenvolvimento econômico ao desenvolvimento das instituições políticas sem, entretanto, obter a construção de teorias que dêem conta do problema de forma mais geral. Voltaremos a este tema nos próximos capítulos.
41 Ou pagam Bush Jr. para que o faça, como demonstram as reportagens sobre as benesses que as empresas apoiadoras esperam após sua reeleição à presidência dos EUA. As alterações esperadas vão desde o relaxamento de procedimentos jurídicos até a privatização da previdência social, passando por legislações ainda mais permissivas com relação ao consumo de energia e ao meio-ambiente. (cf. FSP 07/11/04) “Empresas esperam caminho livre com Bush”, matéria transcrita do Financial Times.
45
forças reinante, em particular a partir dos processos de globalização, como
veremos ao longo deste trabalho.
A criação das instituições é, ela mesma, a resultante de uma disputa de
poder entre as classes e frações de classes que compõe sucessivamente os blocos
hegemônicos das diferentes sociedades. Neste sentido, a grande empresa
multinacional moderna modela a política e a cultura de diferentes países ao agir
visando seu processo de acumulação capitalista. Não nos referimos aqui às
velhas denúncias de “compadrio” entre servidores públicos e empresas privadas,
mas a algo mais profundo, o processo histórico de construção e reconstrução
das relações sociais dentro do modo de produção capitalista. Por exemplo, do
ponto de vista da criação de cultura, os sistemas de treinamento utilizados para
o convencimento do operário ganham a rua na forma da re-elaboração das
relações trabalhistas como “parcerias”, na construção da auto-imagem dos
trabalhadores como “colaboradores” da empresa, na eliminação dos
antagonismos visíveis entre as classes sociais42, reduzidas a consumidores.
As máquinas de propaganda, representadas pelos grandes grupos de
comunicação, aparecem como ponta de lança do processo de disseminação para
o público em geral da concepção de mundo burguesa. A produção destes
veículos de cultura se dá como grandes grupos e em função de interesses de
outros grandes grupos43. Há quem diga que a manutenção da imprensa privada
pode ser vista como uma “externalidade positiva”, um resultado virtuoso não
intencional, dos gastos com publicidade. Ora, é justamente este esquema de
manutenção da imprensa privada que torna a política dos monopólios
absolutamente dominante na sociedade: “não há almoço grátis!” na tradicional
fórmula norte-americana44.
42 Ver Antunes, 1999, e Bendazzoli, 2003. 43 Ianni chega mesmo a sugerir que a mídia é a elaboradora da concepção de mundo
dominante quando diz que “tomada como intelectual orgânico da globalização, em condições de construir hegemonias de alcance mundial, a mídia revela-se uma nova figuração do ‘príncipe’ de quem falaram Maquiavel e Gramsci” [...] “Ao lado do líder e do partido, ou acima e além deles, coloca-se a mídia, entendida como o emblema de um intelectual coletivo de amplas proporções, espalhado pelo mundo, influenciando mentes e corações. A metáfora revive de modo inesperado quando a mídia assume a figura da estranha e surpreendente figura de príncipe da modernidade-mundo” (Ianni, 1996: 106-7). Cremos, entretanto, que aqui há uma certa confusão entre o meio de exercício da pregação cultural que se torna hegemônica com a produção da ideologia propriamente dita. É muito Maquiavel para pouco Murdoch, muito Gramsci para pouco Berlusconi.
44 A denúncia de dois produtores de documentários de uma rede pública associada ao canal FOX (da News Corporation) sobre como seu programa foi censurado, é apresentada no
46
Além disto, nas relações com a sociedade, a empresa busca tornar-se
“cidadã”, “pró-ativa” com respeito à comunidade que a cerca. A filantropia
empresarial a apresenta como alternativa à “ineficiência” do Estado45. Nos
veículos de comunicação, a auto-intitulada “classe produtiva” busca convencer a
todos que “joga para o desenvolvimento nacional” gerando empregos. A
contradição do discurso com o processo de acumulação privado e os processos
resultantes de pauperização, degradação ambiental, redução dos empregos nos
países centrais em busca da mão de obra barata na periferia, e a remessa de
lucros da periferia para o centro sistêmico, não importa. O que vale, como dizia
Goebbels, é a versão dos fatos.
Assim, como veremos, a indução ao consumo, marca de qualquer
campanha publicitária, e a idéia de “realização” pessoal através deste, é o
principal aspecto da cultura capitalista produzida pela concorrência oligopolista
e com isto, a reprodução do modelo ganha contornos mais do que naturalizados,
no sentido de Polanyi (1980). A concepção de mundo irradiada a partir do
processo de hegemonia calcado no mercado é individualista, têm um efeito
atomizante sobre os indivíduos que compõe a sociedade, negando por si a
necessidade de ação política na esfera do Estado. O consenso passa a ser
balizado pelo individual e não pelo coletivo, o burguês se sobrepõe ao cidadão, o
consumo individual ao direito coletivo.
As considerações de Marx sobre a reprodução social do modelo devem
ser entendidas num sentido amplo, e as empresas entendidas como
elaboradoras/reforçadoras de seus aspectos físicos e ideológicos.
Se Estado e mercado são as formas sociais de consubstanciação do
público e do privado (os espaços ideais de intermediação e síntese do que seriam
documentário canadense The Corporation. Este, e outros casos, deixam poucas dúvidas sobre o processo como as “pautas” do debate público televisivo e radiofônico são elaboradas. O programa tratava sobre os impactos do POSILAC (o hormônio artificial da Monsanto para o aumento da produção de leite) que estavam sendo avaliados de forma negativa pelas autoridades canadenses, enquanto nos EUA a Federal Drugs Administration havia liberado o produto para consumo humano indireto após os testes em treze ratinhos. Após um fax para a FOX vindo da direção da Monsanto, em que esta ameaçava o corte dos anúncios de seus produtos e dos de empresas a ela relacionadas, a direção da emissora tentou primeiro intimidar os repórteres, depois comprá-los. No fim usou outra equipe para alterar o texto do programa e demitiu os “criadores de caso”. Um interessante trabalho sobre o compadrio e as promiscuidades entre a mídia e seus patrocinadores, incluindo relações diretamente políticas é o de Halimi (1998).
45 Para duas interessantes reflexões sobre o assunto, que retomaremos no último capítulo, ver Paoli (2002) e o artigo “Esquerda e Direita no Espelho das ONGs” em Arantes (2004).
47
as relações públicas e as relações privadas), os desenvolvimentos das
instituições privadas na forma societária geram distorções que começam a
atrofiar a possibilidade de ação estatal. Assim se “a democracia representativa é
o espaço institucional no qual, além das classes e grupos diretamente
interessados, intervêm outras classes e grupos, constituindo o terreno do
público, do que está acima do privado” (Oliveira, 1998: 41), a hipertrofia das
grandes corporações faz com que o Estado, que surge da afirmação do espaço
público como negação dos privatismos, paulatinamente, com a mercantilização
total da sociedade, seja desmontado como espaço público e colonizado pelo
mercado e por sua lógica. Ou seja, os espaços onde se daria a afirmação do
público, do político, e que deveriam corresponder à síntese da luta de classes são
transformados em seu contrário. A exemplo do Estado teológico que suprime o
político em nome da ideologia religiosa, a colonização do Estado pela lógica de
mercado parece nos encaminhar para uma supressão da política pela lógica do
capital.
Não se trata apenas dos aparelhos de Estado. Também as organizações
da Sociedade Civil são encarregadas de executar a “política” dominante e
colonizadas pela lógica privada, apresentam-se como um sucedâneo do Estado
que trata os problemas sociais como filantropia, a mítica imagem do Terceiro
Setor como redenção social tão bem estilhaçada por Arantes (2004). A
sociabilidade é reduzida às relações monetárias, e o Estado ao provedor da
medida das relações privadas ao exercer o papel de fiel da moeda. A democracia
perde seu conteúdo e transforma-se em pura forma – sistema eleitoral com
representação universal para o sustento do sistema de leis, desde que não se
mude nada que ameace a “governabilidade”46.
Este processo de negação da política, entretanto, iniciou-se com um
movimento em sentido contrário.
5. O Estado de Bem-estar e as grandes empresas como agentes na disputa política
Um dos resultados da intervenção governamental de inspiração
keynesiana nas economias dos Estados centrais foi que, uma vez que o fundo
46 Ver Borón (2000).
48
público tornou-se pressuposto para a acumulação ampliada de capital (Oliveira,
1998), substituindo a regulação privada do crédito, as empresas viram-se
obrigadas a participar do jogo político sob a pena de ver-se excluídas da
possibilidade de acesso aos fundos necessários à sua reprodução. Isto acabou
agravando e acelerando, desta forma, a privatização dos organismos estatais. Ou
seja, embora originalmente o Estado, mesmo em sua versão burguesa, não seja
um reflexo direto da dinâmica do capital mas sim um espaço de conflito e
síntese da luta de classes, as ações desempenhadas pelo grande capital têm,
cada vez mais, transformado a política dos diferentes Estados em seu espectro.
Ainda que, como vimos, esta não seja necessariamente uma disputa pela
hegemonia política plena, ou seja, que as empresas possam não pretender
operar abertamente como irradiadoras de uma concepção de mundo com o
intuito de torná-la dominante na sociedade como um todo (embora
freqüentemente o façam47), a ação política torna-se necessária, embora neste
sentido seja fraca, ou nos termos de Gramsci “pequena política”. A ação
individual das companhias, entretanto, gerará uma resultante para o conjunto
do sistema que produzirá o efeito de grande política, consubstanciada na
ideologia neoliberal que, embora na tradição de Hayek, se faça em defesa de um
Estado mínimo, na prática tem significado o desmonte do Estado de Bem-Estar
sem a redução dos gastos estatais, que são de fato redirecionados para o
processo de acumulação privada (cf. Anderson, P., 1995).
A ação dos grandes grupos buscará tanto a ação política objetivando o
controle do Estado para a apoderação de parcelas do fundo público, quanto a
regulação do mercado na forma que melhor venha a facilitar sua hegemonia
econômica. Tal construção acabará por impor condicionantes políticos ao
processo. O acesso do setor bancário e dos demais setores financeirizados à
grande massa de juros pagos pelos diferentes Estados nacionais será, por
exemplo, delimitado pela conformação dos bancos centrais. Veremos nos
próximos capítulos como os bancos centrais autônomos correspondem a um 47 Fica clara na leitura dos balanços das grandes corporações a pretensão das empresas
como criadoras de cultura. Por exemplo a IBM, ao falar de seu fundador Tom Watson, Sr., diz que “ele cultivou uma cultura única, um conjunto de valores progressistas e a aspiração de fazer a diferença no mundo” (Relatório Anual da IBM 2002). Ford também tinha bem claro quais os valores que pretendia incutir nas mentes de seus empregados. E apenas como último exemplo, a empresa de “relações públicas” encarregada da campanha contra as leis antitabagistas pelo oligopólio do fumo nos EUA, a Burson-Marsteller, anuncia em seus prospectos que seu objetivo é “mudar o modo de vida das pessoas e a forma como vêem o mundo”.
49
novo tipo de instituição de regulação do mundo produtivo, em que o Estado e o
fundo público são subordinados ao interesse da acumulação capitalista mais
geral centrada no mercado financeiro off shore do dólar.
A hipertrofia das grandes corporações passa a possibilitar-lhes desafiar as
próprias organizações estatais na disputa pelo poder, como podemos constatar a
partir de estudos da UNCTAD (2002): se procedermos a uma comparação entre
o volume de vendas das empresas e os PIBs dos países, as vendas das 200
maiores firmas perfaziam 27,5% do PIB mundial em 1999 (Anderson, S. &
Cavanagh, 2000). Seguindo o critério de vendas totais, em comparação com o
PIB, das 50 maiores “economias”, 14 eram empresas transnacionais e 36 países,
das 100 maiores, 49 eram empresas (Unctad, 2002: 90).
Embora não se possa falar em PIB das grandes empresas - já que o
produto destas contém também toda a produção anterior, e seu produto entra
na composição do produto de outras empresas, ou seja, não há a desagregação
do produto segundo as regras da Contabilidade Social48 - podemos grosso modo
medir o valor adicionado pelas empresas, ou seja a diferença entre os valores
pagos por matérias primas e seu faturamento, onde estão somados os salários
pagos e os lucros e rendas auferidos. Seguindo este critério, segundo o World
Investiment Report 2002 (Unctad, 2002:85-95), o valor adicionado pelas 100
maiores corporações transnacionais não financeiras correspondia a 4,3% do
Produto Mundial Bruto no ano de 2000. As 10 maiores respondiam sozinhas
por 0,9% do valor adicionado em todo o mundo. As vendas totais das 500
maiores empresas triplicou entre 1990 e 2000, cabendo às 100 maiores
transnacionais um aumento de U$ 3,2 Tri para U$ 4,8 Tri.
Uma comparação entre o valor adicionado pelas maiores empresas e o
PIB dos países colocaria a Exxon Mobil como a 45ª “economia” do mundo, entre
o Chile e o Paquistão. A GM ocuparia o 47º lugar entre o Paquistão e o Peru. A
Ford Motors e Daimler Chrisler, 55ª e 56ª, estariam colocadas entre a Hungria e
a Nigéria. Assim, mesmo dentro deste critério mais restrito, entre as 100
maiores economias do mundo teríamos 29 empresas, e a soma de seus valores
adicionados as colocariam como a oitava economia mundial com um total de U$
794 bi. Devemos destacar aqui dois fatos: 1) tratam-se apenas das empresas não
financeiras, e 2) este critério subestima a capacidade de subordinação dos 48 Ver Paulani & Braga (2000).
50
processos produtivos dos fornecedores à dinâmica destas empresas, da mesma
forma que o primeiro critério (do valor das vendas) as superestima.
Além disto, as “operações complexas”49 montadas por estas grandes
corporações, necessitam de uma organização e operadores aptos a realizá-las.
Assim a organização administrativa das empresas torna-se neste sentido um
espaço de construção de políticas econômicas, de cultura, dentro dos quais se dá
uma clara disputa pelo poder50.
Segue disto que, se a classe social é um fato do mundo econômico,
definida pela função que ocupa no processo produtivo e a dispersão territorial,
além da estrutura demográfica, contribui para o estabelecimento dos limites do
grupo social (cf. Ferreira, 1986: 114), então é fundamental entendermos o papel
desempenhado pela concentração de poder econômico e político num
determinado setor ou fração desta que passa a influir num número crescente de
conjuntos nacionais. No nosso caso, o objeto será a classe capitalista organizada
nas grandes corporações.
Resta-nos ainda algumas considerações nesta introdução sobre dois
temas que se entrelaçam: a questão nacional e a concepção da estratégia
empresarial como nova forma das empresas pensarem e planejarem ações que
visam a obtenção de poder sobre os adversários.
6. Nacional x internacional
As empresas multinacionais do núcleo oligopolista não apenas fazem
política como também legislam constantemente, ao estabelecer normas e
participar de comissões extraordinárias de especialistas. Um caso em que isto
fica claro, são os processos de normatização antecipada de padrões tecnológicos
49 Este é o termo pelo qual Chesnais (1996) se refere à montagem de operações de
engenharia financeira e negociações políticas envolvendo grandes empresas e Estados, normalmente envolvendo o acesso a parcelas do fundo público
50 “Dentro da grande companhia, as relações são diretas, hierárquicas, burocráticas. Predomina nela o planejamento autêntico, vindo da cúpula as instruções, e havendo uma responsabilidade dos escalões menores para com os maiores. Para o sistema como um todo, porém, tais relações não existem. Nem mesmo as maiores empresas produzem mais do que uma fração muito pequena da produção total da sociedade” (Baran & Sweezy, 1974: 61). Baran e Sweezy percebem a construção das relações internas às empresas mas não captam a capacidade que estas passam a ter de subordinar a seus interesses o processo de acumulação capitalista de toda a rede de produção – dos fornecedores de matérias primas aos vendedores finais – em diversos setores da economia. As empresas de ponta atualmente buscam organizar-se em redes, gerando também no campo organizacional sinergias de novo tipo, como descrito por Chesnais (1996).
51
nos setores de comunicações (sistemas de cabos de fibra ótica, modens, etc.) e
de mídia eletrônica (VHS, DVD, etc.) que permitem a cooperação dentro do
conflito em mercados específicos dominados por poucos parceiros oligopolistas
e onde, por vezes, os Estados não são sequer consultados. Um caso em que a
consulta é obrigatória é o que envolve tecnologia de “uso duplo”, civil e militar,
temas sensíveis à matriz norte-americana.
A forma – talvez a mais antiga - que toma este tipo de influência sobre o
Estado é a constituição de barreiras alfandegárias51, ou de sistemas de cotas,
como forma de restringir o acesso de outros capitais ao mercado de um
determinado país. Embora classicamente esta seja uma manobra denunciada
como imperialista por uns e protecionista da burguesia nacional por outros, não
raro beneficiou empresas estrangeiras dentro de um território em que estas
foram capazes de construir sua hegemonia econômica (o caso brasileiro do setor
automotivo é um exemplo clássico).
O processo de globalização da economia deixa clara a tensão provocada
pela tendência de internacionalização que levaria, nas palavras de Marx, à
transformação do mundo à imagem e semelhança das burguesias européias. As
políticas de corte protecionista revelam uma evolução dicotômica por parte do
capital: enquanto alguns capitais que se beneficiaram da proteção,
estabelecendo monopólios internos a seus mercados nacionais de origem
recusam-se à abertura comercial, outras parcelas de capital – normalmente
mais concentrados e com maior poder de articulação – forçam o rompimento
destas barreiras52 e o estabelecimento de legislações favoráveis a suas ações,
como no caso das políticas de proteção a investimentos contidas no tratado do
NAFTA e que as empresas norte-americanas buscam garantir como norma nas
negociações da ALCA, que lhes permite processar os Estados nacionais por
51 “A concorrência logo obrigou todo país que quisesse conservar seu papel histórico a
proteger suas manufaturas por meio de novas medidas alfandegárias (as antigas eram já insuficientes em face da grande indústria), e logo depois a introduzir a grande industria sob tributos protecionistas” (Marx & Engels, 1986: 94). Esta concorrência estabeleceu o mercado mundial, ainda que as diferentes burguesias buscassem estabelecer seus enquistamentos nacionais, sua dinâmica era idêntica em cada nação. Assim, a grande burguesia desembaraçou-se do mundo antigo reconstruindo o sistema ideológico que sustentava o edifício estatal de cada nação.
52 Nada impede, evidentemente, que uma determinada empresa faça as duas pressões: procure proteger um mercado na qual é dominante e pressione pela abertura de outro.
52
lucros cessantes motivados, por exemplo, por legislações ambientais mais
rígidas que as norte-americanas53.
As lutas imperialistas do século XX, nas palavras de Lênin, foram
expressão desta contradição entre a necessidade de expansão crescente do
mercado e da concentração de capitais e os limites impostos pela estratégia de
acumulação adotada com base nas estruturas dos Estados nacionais. A
constituição dos grupos dirigentes e interesses construídos com base no Estado-
nação limitaram a capacidade de expansão dos capitais em termos do mercado
global. Deste modo, a hegemonia burguesa construída dentro dos limites do
Estado-nação levou ao conflito armado.
A forma moderna de expansão do sistema via Investimento Externo
Direto (IED), constituindo-se em “propriedade extraterritorial” de um capital de
origem numa nação central foi uma forma raramente adotada pelo capitalismo
inglês, cujos atores preferiam aplicar o dinheiro em empréstimos aos governos
que se encarregavam dos investimentos. Na verdade, como voltaremos a
discutir no capítulo 11, os precursores da forma moderna do IED são os capitais
norte-americanos, secundados por suecos e suíços entre fins do século XIX e o
início do século XX. Assim, a força dos interesses que foram prejudicados pelos
conflitos militares que se sucederam ainda não se consubstanciava num poder
que pudesse obstá-los.
A hegemonia norte-americana após a II Grande Guerra não representa
apenas a troca do país que exercia as funções hegemônicas54 – aqui entendido
no sentido mais geral usado na literatura de ciência política inspirada em
Gramsci sobre a posição do Estado-nação central ao sistema – mas na mudança
da forma dominante de como se dão as relações nucleares da economia e da
política como um todo. Embora não se possa falar de cópia automática, ou
mimetismo das instituições, a forma de organização do capital norte-americano
passa a servir como modelo a ser superado por outros capitais, tanto no núcleo
central como da periferia sistêmica.
Esta nova hegemonia – e o desafio socialista soviético - repõe o conflito
num novo nível. Torna-se necessária a organização da cooperação capitalista
contra o inimigo visível e a promoção de uma política de bem estar social que
53 Ver S. Anderson (2003). 54 Declínio da Grã-Bretanha e ascensão dos EUA.
53
sirva como anteparo às tendências de sublevação das classes subalternas. Trata-
se portanto da reorganização do mercado global e de cada mercado em
particular55 – ou antes da estratificação dos mercados nacionais e regionais com
base numa hierarquia gerida por organismos multilaterais – e da reorganização
das frações hegemônicas capitalistas das diferentes nações aliadas de acordo
com os interesses do núcleo dirigente ocidental, em particular o norte-
americano.
A constituição e o desenvolvimento deste processo foram amplamente
descritos e discutidos por Arrighi (1996)56 e Guimarães (2002), sendo que
ambos enfatizam o desenvolvimento das instituições multilaterais e da
descolonização e criação de Estados formalmente independentes nos antigos
territórios coloniais, por isso não nos alongaremos aqui em sua descrição. O que
importa é ressaltar que este processo é marcado por um novo tipo de ação por
parte das grandes corporações transnacionais, que as transformam, nas
palavras de Stopford e Strange (1991) em novos atores de uma diplomacia
tornada trilateral57.
55 Visto de outro ponto de vista “os territórios tendem a uma compartimentalização
generalizada, onde se associam e se chocam o movimento geral da sociedade planetária e o movimento particular de cada fração, regional ou local da sociedade nacional. Esses movimentos são paralelos a um processo de fragmentação que rouba às coletividades o comando de seu destino, enquanto os novos atores também não dispõem de instrumentos de regulação que interessem à sociedade em seu conjunto. [...] O dinheiro usurpa em seu favor as perspectivas de fluidez do território, buscando conformar sob seu comando as outras atividades” (M. Santos, 2000:79-80).
56 Embora façamos uso do livro de Arrighi como fonte de dados históricos, ficará claro ao longo deste trabalho que nossa análise se afasta completamente da proposta por este autor, inscrita em nosso entendimento num tipo de ecletismo teórico que pouco ou nada contribui para o entendimento do processo histórico mais geral. Nos parece que Arrighi, embora bem intencionado, faz uma leitura equivocada do conceito gramsciano de hegemonia, ao definir o Estado como uma estrutura de maximização de poder, o que é absolutamente contraditório com a definição de Estado como estrutura idealista, ou seja como campo de construção do consenso no nível das idéias, e expressão da luta de classes, idéia basilar da concepção marxista seguida por Gramsci. A concepção adotada por Arrighi vê o Estado como algo externo às relações sociais, fruto de uma necessidade genérica de ordem, e não como a ordem estabelecida a partir da hegemonia de um grupo social. Na mesma tecla Arrighi atribui ao Estado o papel de produzir a concepção de mundo que se torna hegemônica, e não vê o processo anterior, enfatizado por Gramsci, no qual as classes sociais hegemônicas na sociedade expressam sua concepção de mundo através do Estado. Uma crítica completa do trabalho de Arrighi, entretanto, foge ao escopo deste trabalho.
57 “Os estados não podem mais negociar apenas entre si, agora eles precisam negociar também – se não como suplicantes então certamente como um noivo buscando um casamento arranjado – com empresas estrangeiras. Além disto, as próprias empresas multinacionais estão crescentemente tendo que se tornar ‘estadistas’ na medida em que buscam alianças corporativas, permanentes, parciais ou temporárias, reforçando suas capacidades combinadas para competir com outras por fatias do mercado mundial. A interação de todas as três dimensões, numa ‘diplomacia triangular’, clama por novas habilidades na administração e governança que desafiam a velha ordem” (Stopford & Strange, 1991: 2). Embora ilustrativo, de
54
Pari passu a este desenvolvimento na forma de ação das empresas,
constata-se um novo impulso no sentido da financeirização das estratégias de
acumulação dos grandes grupos capitalistas. Assim, os capitais monetários que
se acumularam no mundo representam valores superiores aos PIBs de seus
países de origem, impondo ou buscando impor suas regras de funcionamento
aos mercados “globais”. A posse do poder econômico dos grandes fundos
mútuos, fundos de pensões, seguradoras e bancos, na forma de reservas de
capital monetário e fictício (ações e dívidas públicas) torna-se assim,
claramente, mandatária com relação à posse do poder pelos Estados nacionais,
que se vêem (ou se dizem) reféns da “globalização” dos mercados (ou, na
expressão de Marx citada acima, “foram comprados pelos capitalistas”)58. A
apropriação de parcelas dos fundos públicos dos diferentes países do mundo
passa a fazer parte da estratégia de acumulação dos grandes grupos financeiros
que demonstram claramente seu poder de impor sua participação na
distribuição do excedente mundial através da manutenção das altas taxas de
juros pagas sobre as dívidas públicas da maior parte dos países do mundo
(embora no caso norte-americano as taxas tendam a ser mais baixas, o volume
de dinheiro alocado sob esta rubrica no total do orçamento público dos EUA
também tem crescido).
Neste sentido, ainda que levemos em conta a argumentação de Hirst e
Thompson (1998) sobre a participação predominante dos fundos de pensão em
investimentos ligados aos seus próprios países de origem – o que costuma ser
previsto em leis que visam garantir a segurança atuarial de suas operações -, o
volume de recursos de capital especulativo representado pelo “resíduo”
internacionalizado (cerca de U$ 1 Trilhão em 1995 apenas na carteira de divisas
de investidores europeus e norte-americanos) demonstra claramente que ocorre
forma geral o restante do texto de Stopford & Strange sugere que as alterações no comportamento das empresas ocorreram ditadas, como indicado por Piore & Sabel (1984), por mudanças na tecnologia e não como conseqüência de alterações políticas gestadas globalmente pelas empresas.
58 O capital monetário, na forma do dinheiro, esconde, dentro do capitalismo, o verdadeiro sujeito das relações, o capital. Assim, “o capital é, pois, um movimento que se expressa e fala por meio de um objeto e é em função disso que o dinheiro ‘vela ao invés de revelar’, não só o caráter social dos trabalhos privados, como lembra Marx, mas vela o sistema como um todo. O fetiche do dinheiro é, por isso, impenetrável. Como ele não age por si mas parece agir por si mesmo, provoca toda sorte de ilusões” (Paulani, 1991: 170).
55
uma transferência brutal de recursos do terceiro para o primeiro mundo, e dos
Estados para os mercados, ou seja, da esfera pública para a esfera privada59.
Como conseqüência, a ausência de regras internacionais emanadas dos
Estados sobre a movimentação especulativa coloca praticamente todos os países
sob a regra do mercado desregulado e anula, ou torna difíceis, as iniciativas
políticas nacionais, em particular as dos Estados periféricos. Ao
internacionalizar-se, o processo de reprodução ampliada do capital dissolve
parte dos interesses nacionais antagônicos das diferentes burguesias, e
engendra processos onde esta classe – ou uma fração dela - torna-se universal,
global, em consonância com a universalização do capital, e se dessolidariza com
o restante das distintas classes que compõem as sociedades nacionais que lhes
deram origem e sustento
Esta constatação nos levará, em nosso último capítulo, à proposição de
que a luta pelas mudanças nos mecanismos sociais que sustentam as posses
essenciais deve dar-se cada vez mais no âmbito internacional e na perspectiva
de uma recriação do espaço público, na medida em que o existente foi
colonizado pelas forças de mercado, pois, embora os Estados não percam força,
no sentido de continuarem a expansão de sua participação no volume total do
produto anual, estes perdem a capacidade de representar o conjunto dos
interesses nacionais, na medida em que são acorrentados pela dinâmica da
internacionalização do capital. Ou seja, os Estados aparentemente perdem força
como representantes políticos do conjunto da sociedade ao terem suas
dinâmicas subordinadas ao processo de acumulação dos capitais monopolistas.
Finalmente, não deve parecer estranho para os estudiosos que o campo
da estratégia, historicamente restrito à ação militar e política tenha sido tomado
de assalto pelos autores do management. Os administradores, como
prenunciava Galbraith e que a partir de Porter (1986), passam a compreender a
ação das empresas como algo mais do que a extração de mais-valia para garantir
a maximização dos lucros, buscando entender as novas dimensões colocadas em
seu horizonte de ação e como estas dimensões multiplicaram as possibilidades
de política econômica, criando novas possibilidades de ganho, tanto para
59 O anúncio de Bush Jr. após reeleito de sua intenção de privatizar a previdência social
norte-americana aponta para mais uma grande operação de privatização da riqueza social no principal país do sistema capitalista.
56
Estados como para firmas, encontram nos estudos sobre a estratégia um novo
(na verdade muito velho) guia para a ação.
A tomada de consciência por parte dos agentes do capital da necessidade
do conhecimento estratégico60, entretanto, no nosso entendimento, é reflexo
das novas condições colocadas para o processo de acumulação do capital, que
obrigam seus representantes à elaboração ativa da forma como pretendem
organizar as cada vez mais complexas relações de produção e reprodução
humanas. O que já vinha sendo executado de forma empírica nas negociações
entre empresas, e entre empresas e Estados, passa a ser também planejado.
Trata-se mesmo de uma nova necessidade do grande capital em termos de
formação de seus gestores, a de que sua ação não se restrinja ao horizonte
limitado do mercado nem ao curto prazo e que deve ser planejada como a de um
sujeito com objetivos que, sempre visando a acumulação de valor, a
transcendem e passam a influir – de forma cada vez mais direta - na forma de
relacionamento entre os seres humanos a ele submetidos.
Assim, o sujeito semovente autonomizado de seus suportes ganha forma
física nas empresas societárias e busca expandir seu império, submetendo o
conjunto da humanidade a seu imperativo de auto-acumulação. O próprio
capital torna-se cada vez mais abertamente o hegemon do sistema.
Uma vez exposto o princípio que dirigiu nossa pesquisa, devemos voltar e
refazer o caminho no qual construímos esta conceituação e discutir os processos
que entrelaçam valor e poder e que constituem o cerne da hegemonia do capital
– e seu fetiche - em sua forma contemporânea, apontando para o processo de
colonização da política pela lógica do mercado como o debate central para o
capitalismo contemporâneo. Assim, passamos à discussão sobre os impactos da
concentração de capitais na estrutura do mercado.
60 A proliferação de manuais de administração com títulos grandiosos como “Marketing
de Guerra” I e II (Ries, 1989) ou “Sun Tzu e a Arte dos Negócios” (McNeilly, 1999), além da recente incorporação de Musashi (1992) e Sun Tzu (1982) à lista de livros de cabeceira dos jovens executivos estão longe de indicar uma escalada belicista entre os pólos da tríade, mas parecem apontar uma mudança no comportamento dos homens de negócio e uma tomada de consciência do conteúdo político e estratégico de suas ações. Durante o exame de qualificação desta tese, o Prof. Paulo Arantes chamou a atenção para o caráter darwinista do processo de concorrência que se contrapõe ao planejamento estratégico das grandes empresas como um planejamento consciente da seleção, parecer indicar que a cultura empresarial se sobrepõe às novas formas da guerra. A sugestão para o aprofundamento da discussão da analogia entre estratégia militar e estratégia econômica acabou nos parecendo escapar ao centro de nosso argumento, assim a idéia fica registrada, mas para um artigo posterior.
57
Parte I – O mercado imperfeito. ________________________________________________________________________________
Capítulo 2 - As rendas monopolistas do capital concentrado.
1. Teorias sobre lucros monopolistas.
2. Concorrência capitalista e transferência de mais-valia via preços.
3. Preços de monopólio e de mercadorias “sem valor”.
Capítulo 3 - O esquema tripartite de Marx.
1. A renda da terra
2. Refutação à crítica
3 Renda diferencial I e II. Renda Absoluta.
Capítulo 4 - Royalties, marcas e outras rendas.
1. A mais-valia extra ou superlucro como renda diferencial.
1.1. Patentes de produtos e tecnologia produtiva.Os royalties.
1.2. Propaganda e marcas.
2. Os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D).
Capítulo 5 - Aplicação da noção de hegemonia às relações de mercado.
1. A política do capital segundo os managers
2 A “punção oligopsônica/oligopólica” e a “punção financeira”. O “lucro
comercial” e a usura como rendas diferenciais relacionais.
3. Desenvolvimentos do esquema tripartite. Os preços de monopólio.
4. A exploração de incluídos e excluídos.
58
Capítulo 2 - As rendas monopolistas do capital concentrado.
Uma marca característica do capitalismo no século XX, que permanece
no início do XXI, é a concentração e a centralização de capitais que
conformaram empresas gigantescas. A própria existência de tais empresas
alterou a organização dos mercados nos quais elas se inserem, eliminando a
livre concorrência, e com ela o princípio do equilíbrio que levaria à formação de
uma taxa de lucros média, subjacente à economia clássica. A primeira noção que
devemos discutir aqui, portanto, é a de oligopólio61. Embora os autores da
tradição marxista como Lênin (1982), Hilferding (1985), Bukharin (1984) e
Baran e Sweezy (1974) utilizem a noção de capitalismo monopolista, esta não é,
no nosso entendimento, a forma mais adequada de denominação da
organização de mercado dominante no sistema. Estamos aqui diante de dois
problemas semânticos gerados pela obscuridade do objeto estudado. Dizer que o
capital é monopolista, é uma tautologia, uma vez que o capital pressupõe a
propriedade privada, e portanto o monopólio sobre um determinado volume de
trabalho pretérito. Por sua vez, entender, como veremos, que os oligopólios
sejam formados pela junção de monopólios parciais – embora paradoxalmente
concorrentes - num mesmo mercado, nos coloca diante da contradição expressa
61 Segundo os manuais de economia neoclássica, o oligopólio é uma forma de
concorrência imperfeita, em que uma indústria (ou mercado) é dominada por poucas empresas (Ver Samuelson e Nordhaus, 1999). Trata-se de uma forma intermediária entre o monopólio – estrutura onde uma única empresa fornece o bem ou serviço e o mercado ideal atomizado da concorrência perfeita. O grau de concentração dos diferentes mercados é medido tradicionalmente pela participação das quatro maiores empresas no total do produto daquele segmento. Normalmente chega-se a esta estrutura de mercado devido a barreiras constituídas pela escala de produção, pelo tamanho dos mercados ou por imposição legal, ou seja, pela força garantida pelo Estado.
59
na idéia de concorrência monopolista. Preferimos assim, na descrição da
estrutura de mercado a idéia de oligopólio que denomina a organização de um
mercado vigente numa dada indústria onde a concorrência se dá entre empresas
monopolistas (o que pressupõe a idéia de que não há um monopólio único, mas
sim diversos monopólios parciais).
Em seu livro sobre A Vantagem Competitiva das Nações, Porter (1993)
sequer nomeia a existência de monopólios ou oligopólios. A unidade utilizada
para o estudo, em sua nomenclatura, é “a indústria” (que neste caso substitui o
“mercado” ou o “segmento de mercado”), formada pelo conjunto de empresas
que concorrem na produção de um determinado produto ou serviço. A idéia de
que o monopólio absoluto é contrário aos interesses gerais permanece como
dogma das regulamentações comerciais dos países centrais (e em particular nos
EUA), embora, por vezes, esta seja a situação concreta encontrada no mercado,
particularmente em setores idealmente sob controle estatal – por exemplo com
relação ao fornecimento doméstico de energia. Assim, a indústria é definida
como as diferentes segmentações do mercado onde ocorrem a competição entre
capitais em torno da produção de um determinado produto ou conjunto de
produtos relacionados. A estrutura da indústria, sua maior concentração ou
pulverização, reflete as condições de produção daquele determinado produto
(tecnologia, escala, distribuição, etc.). Com isto, nem todas as indústrias podem
ser caracterizadas como concentradas ou difusas, e algumas ainda, apresentam
um pólo concentrado que convive com uma fralda produtiva difusa.
Diante desta situação, François Chesnais define “o oligopólio mundial
como um ‘espaço de rivalidade’, delimitado pelas relações de dependência
mútua de mercado, que interligam o pequeno número de grandes grupos que,
numa dada indústria (ou num conjunto de indústrias de tecnologia genérica
comum), chegam a adquirir e conservar a posição de concorrente efetivo no
plano mundial” (Chesnais, 1996: 93). As barreiras erguidas à entrada de
concorrentes nas diversas indústrias só permitem que grandes empresas
participem deste nível de competição que, além disto, se encontra cada vez mais
internacionalizado. Assim, embora o conceito de “competição monopolista”
pareça um contra-senso, devemos entender o oligopólio mundial como a forma
de competição própria aos capitais concentrados, uma competição entre
monopolistas. Esta particular competição se dá no sentido de estabelecer a
60
manutenção de posições de monopólio com relação aos diversos elementos que
permitam à empresa subtrair-se do processo de nivelação da taxa de lucro
atuante no mercado62. Ou seja, trata-se de uma competição pelo monopólio
sobre uma dada força social ou natural (ainda que muitas vezes este seja
relativo, parcial e com tempo para expirar).
O efeito resultante deste processo será o estabelecimento de duas modas
na distribuição das taxas de lucro que remuneram os distintos capitais, sejam
eles concorrenciais ou monopolistas, como veremos adiante.
O processo de separação dos capitais entre um setor monopolista
concentrado e um setor concorrencial e difuso é encoberto pela competição
capitalista, que parece igualar o processo no qual pequenos e grandes capitais se
enfrentam. Isto se dá na medida em que, do ponto de vista da aparência do
processo, os capitalistas não enxergam a taxa de lucro como a mais-valia
extraída dos trabalhadores63. Antes, ao encontrar-se diante do processo de
circulação das mercadorias, estes tenderão a ver no processo de realização uma
oportunidade para aumentar seus lucros (ou de perder parte deles) vinculando
esta situação à sua habilidade ou a de seus compradores e vendedores (cf. Marx,
1984: III/6:173-4). No processo prático, portanto, o lucro é visto a partir da
apuração de resultados, onde os lucros aparecem como a diferença entre as
vendas realizadas e os custos de produção.
Para complicar tal situação,
“as oscilações na taxa de lucro, independentemente de mudanças nos
componentes orgânicos do capital ou da magnitude absoluta do capital,
resultam possíveis pela circunstância de que o valor do capital adiantado,
qualquer que seja a forma na qual exista – fixo ou circulante -, aumenta
ou diminui como conseqüência do aumento ou diminuição;
independente do capital já existente, do tempo de trabalho necessário
62 “A indústria é a arena na qual a vantagem competitiva é ganha ou perdida. As
empresas, através da estratégia competitiva, buscam definir e estabelecer uma abordagem para a competição em suas indústrias que seja, ao mesmo tempo, lucrativa e sustentável. Não existe estratégia competitiva universal, única, e apenas têm êxito estratégias adequadas à indústria específica e aos conhecimentos e patrimônio social de uma determinada empresa” (Porter, 1993: 44).
63 Embora o capitalista não se abstraia do processo de produção buscando sempre reduzir os salários, estes serão vistos como custos, juntamente com as matérias primas e bens de produção.
61
para sua reprodução. O valor de cada mercadoria – e em conseqüência
também das mercadorias nas quais consiste o capital – está
condicionado não pelo tempo de trabalho necessário contido nela
mesma, mas pelo tempo de trabalho socialmente necessário que se
requer para sua reprodução” (Marx, 1984: III/6:176-7).
Ou seja, variações do valor afetam as diferentes partes componentes do
capital64, gerando processos de desnivelação entre os próprios capitais
produtivos, engendrando o que Marx denominou de obsolescência moral do
capital fixo. Além disto, dada a natureza da competição oligopolista, não é
improvável que grande parte do capital difuso se reproduza de forma simples
(como, por exemplo, a padaria da esquina), ou seja, sem ser capaz de gerar por
sua própria dinâmica um processo de acumulação. Nesta situação, a reprodução
ampliada estaria restrita aos setores onde ocorre uma diferenciação produtiva
que se consolida em preços monopolistas e que, como veremos, através dos
mecanismos de preços, retira uma parcela da mais-valia do processo de
nivelação geral pela média. Desta forma, os setores de realização não
concentrados (o pequeno comércio em particular) estão sempre tendo seus
lucros achatados pela pressão combinada de produtores e financiadores.
Devemos ter em mente que o cálculo empírico da taxa média de lucro
com base na rotação dos capitais resulta impossível para quem não for o
contador de todas as empresas, já que
“as taxas de lucro de diversas esferas da produção coexistentes serão
diferentes se, mantendo-se constantes as circunstâncias restantes, o
tempo de rotação dos capitais empregados é diferente, ou se o é a relação
de valor entre os componentes orgânicos destes capitais nos diversos
ramos de produção” (Marx, 1984: III/6:181).
“Porções de igual magnitude do capital global nas diversas esferas da
produção compreendem fontes de mais-valia de magnitudes diferentes e
a única fonte de mais-valia é constituída pelo trabalho vivo” (Marx, 1984:
III/6:188).
Marx busca estabelecer, assim, a premissa de uma taxa média de lucro
que remuneraria o capital de forma equânime com a exceção de flutuações
64 A moeda fiduciária tem impactos próprios que serão discutidos na parte III.
62
fortuitas65. Entretanto, os oligopólios não são fortuitos e estabelecem de fato
uma desnivelação desta taxa média a seu favor. Na prática, Marx descreve a
formação de preços como uma prática do que viria modernamente a ser
denominado de markup66, pois,
“o preço de produção de uma mercadoria é igual a seu preço de custo
mais o lucro que lhe foi percentualmente agregado, em correspondência
com a taxa geral de lucro, ou é igual a seu preço de custo mais o lucro
médio” (Marx, 1984: III/6:199).
Logo, na formulação encontrada em Marx, o preço de produção, ou seja,
o preço ao qual efetivamente a empresa procurará vender seus produtos, será
dado pela soma do preço de custo com o lucro médio67 vigente. Em outras
palavras, o método normal de formação dos preços ao consumidor será a
aplicação de uma taxa média de lucros sobre os custos. E Marx conclui:
“portanto, se um capitalista vende sua mercadoria a seu preço de
produção, retira dinheiro em proporção à magnitude do valor de capital
que consumiu na produção, e extrai lucro em proporção do capital que
adiantou enquanto mera parte alíquota do capital social global” (Marx,
1984: III/6:201).
O problema que nos é colocado, portanto, é como, dentro das estruturas
de oligopólio ou oligopsônio, uma empresa capitalista impõe à outra uma taxa
de lucro menor para garantir para si a maior fatia da mais-valia global. Marx
não restringe sua análise às estruturas do capitalismo concorrencial apontando
como parâmetros para o estabelecimento da taxa geral de lucros a composição
orgânica do capital nas diferentes esferas da produção e a distribuição do capital
social nestas diferentes esferas, mas também desenvolve na forma da renda da
terra uma teoria de preços de monopólio.
65 “Não cabe dúvida alguma de que, na realidade, fazendo abstração de diferenças
irrelevantes, fortuitas e que se compensam, a diferença entre as taxas médias de lucro para os diversos ramos da indústria não existe nem poderia existir sem abolir todo o sistema capitalista” (Marx, 1984: III/6:193). É esta constatação de Marx que leva Lênin (1982) a considerar a “fase monopolista” do sistema capitalista, como uma “fase superior” do capitalismo, e a nomeá-la de Imperialismo, em consonância com a política externa exercida pelas potências dominantes.
66 Que é a prática descrita por Labini (1986) como corrente entre as empresas. 67 “... as taxas de lucro que imperam nos diferentes ramos da produção são
originariamente muito diferentes. Essas diferentes taxas de lucro resultam niveladas pela competição numa taxa geral de lucro, que constitui a média de todas estas diferentes taxas de lucro. O lucro que com respeito a esta taxa geral de lucro, corresponde a um capital de magnitude dada, qualquer que seja sua composição orgânica, se denomina lucro médio” (Marx, 1984: III/6:199).
63
O fato de grandes concentrações de capital gerarem um desequilíbrio no
mercado não se constitui na preocupação central de Marx em O Capital. O
capitalismo clássico ainda não havia se transformado em Imperialismo.
Todavia, Marx percebe como os setores de composição orgânica de capital mais
alto (mais capital constante com relação ao capital variável explorado, ou seja,
os setores intensivos em capital) engolem a lucratividade dos setores de
composição orgânica de capital mais baixa (os setores intensivos em mão-de-
obra) ao aplicar o cálculo de média. Assim, partindo de uma mesma taxa de
mais-valia, Marx demonstra como os setores com maior investimento em
capital constante parecem engolir a mais-valia gerada nos demais setores
através da diferença entre preços de produção e valores, como discutiremos
adiante. Todavia, este processo apenas compensa a produtividade do capital
investido e garante a nivelação pela média da remuneração do capital social
global68. Entretanto, é necessário irmos além da composição orgânica do capital
para explicarmos como a lucratividade dos setores de capital concentrado se
elevam acima da média social.
É pressuposto do modelo de nivelação dos lucros, contido em Marx, a
idéia de que: “nenhum monopólio natural ou artificial possibilite que alguma
das partes contratantes venda por cima do valor, ou lhe obrigue a desfazer-se da
mercadoria a qualquer preço” (Marx, 1984: III/6:225). E é este pressuposto que
é eliminado na prática pela forma de competição imposta pelo grande ao
pequeno capital.
Do ponto de vista da teoria econômica marxista, são as próprias forças do
mercado, com o objetivo de escapar ao rebaixamento da taxa de lucros, que
provocam a concentração e a centralização de capitais que levam à eliminação
da concorrência em sua forma clássica69. As empresas aceitam participar de
trustes abrindo mão de parcela de sua autonomia em nome de garantir sua
parcela de lucratividade. Assim, historicamente, agem as tendências de
concentração e centralização de capitais, conformando grandes massas de
capital que obtém, desta forma, a possibilidade de alcançar ganhos de escala e
68 De qualquer forma, esta média já seria suficiente, pelo menos na aparência, para
explicar a baixa rentabilidade média das padarias. 69 Embora Marx não trate diretamente sobre este tema, em particular de seus efeitos, as
idéias centrais estão contidas em O Capital e foram desenvolvidas por um grande número de autores, onde se destacam Hilferding (1985), Bukharin (1984) e Lênin (1982).
64
controle sobre seus mercados específicos. Isto lhes permite atuar contra a
tendência histórica de queda da taxa de lucros, por um lado através da fixação
de preços monopolistas, e por outro, como veremos, através da submissão dos
interesses dos capitais difusos a seu movimento de acumulação.
Entretanto, a tendência à oligopolização crescente dos setores industriais,
em si, não explica o modo como a tendência de queda da taxa de lucros é
contrariada, nem como o grande capital submete cadeias industriais em massa a
seu comando. O monopólio de produção de alfinetes, poderia ser realizado por
uma única fábrica no mundo sem que isto introduzisse desequilíbrios
econômicos fortes o suficiente para gerar alterações no modo de produção de
outros setores e, em decorrência, alterações institucionais e culturais na
sociedade. O mesmo, no entanto e por exemplo, não é válido quando tratamos
de sistemas operacionais para computadores. A Microsoft molda a percepção
que as pessoas tem do mundo de acordo com a forma como concebe seus
programas ao dominar uma parcela majoritária do mercado de software para
computadores pessoais70. No entanto, devemos entender como isto é feito, mais
do que apenas constatá-lo.
Desta forma, o grande volume de capitais investidos em determinados
setores da economia, embora também gere importantes distorções devido a seu
gigantismo, não implica necessariamente em capacidade de subordinação de
outros setores econômicos a sua dinâmica. Observem-se, por exemplo, alguns
setores de insumos, que não obstante sejam altamente imobilizadores de capital
acabam por ver-se em situações subordinadas à vontade de seus compradores.
Ainda que seja comum encontrar-se o equilíbrio em situações de oligopólio
bilateral (poucos produtores vendendo para poucos compradores), a situação
oligopsônica71 acaba por ser mais comum em empresas de máquinas e
equipamentos e de bens duráveis de consumo.
Todas estas são situações descritas por Marx como de luta direta entre
compradores e vendedores, e remetem à formulação marxiana sobre a renda
70 Não há aqui nenhum tipo de “teoria da conspiração”, tal “formatação”, para usarmos
um termo computacional, se dá na relação do homem com a nova ferramenta, o software, onde se cria uma nova cultura. A influência está na escolha dos significados e na dependência do fabricante para a manutenção ou upgrade do código.
71 O oligopsônio é a situação na qual um mercado encontra-se dominado por poucos compradores que ditam por sua demanda concentrada os preços do mercado.
65
absoluta.72que trataremos mais adiante neste capítulo. Isto fica particularmente
claro nos Manuscritos, quando Marx afirma que “a renda da terra é estabelecida
mediante a luta entre arrendatário e latifundiário. Na economia política
constantemente encontramos como fundamento da organização social a hostil
oposição de interesses, a luta, a guerra” (Marx, 1985: 89).
Embora devamos voltar a este argumento, podemos concluir por ora, que
a concentração de capitais, própria de setores altamente oligopolizados, é
condição necessária mas não condição suficiente para determinar o poder de
comando das indústrias sobre as diversas cadeias produtivas devendo ser
aduzida de mais dois elementos condicionantes, a capacidade de inovação –
tanto organizacional quanto tecnológica73 - e a posição estratégica na cadeia
produtiva74. A capacidade de inovação representa a capacidade de geração de
rendas diferencias, enquanto a ação estratégica permite à empresa tirar máximo
proveito destas, buscando consolidá-las na forma de rendas absolutas.
A capacidade de inovação que historicamente brotava de forma
espontânea como resposta a ampliações do tamanho do mercado (Smith, 1983),
como forma de contornar a tendência decrescente da taxa de lucros (Marx,
1984), ou ainda, como ondas inovadoras com o objetivo de apropriação dos
lucros industriais segundo sua conceituação schumpeteriana (Schumpeter,
1982), tende, com o desenvolvimento contemporâneo das grandes corporações
multinacionais75, a ser endogenizada pelas empresas.
72 Embora a renda absoluta tenha como base material para sua justificação perante o
conjunto da sociedade uma renda diferencial (no caso da renda da terra a diferença de produtividade de dois terrenos), o valor destas rendas acaba por ser determinado através de uma luta direta entre compradores e vendedores.
73 “As possibilidades de novas maneiras de competir surgem geralmente de alguma descontinuidade ou mudança na estrutura da indústria. Por vezes essas mudanças apresentaram por muito tempo uma oportunidade que passou despercebida. As causas mais típicas das inovações que influem na vantagem competitiva são as seguintes: 1) novas tecnologias; 2) necessidades novas ou renovadas do comprador; 3) aparecimento de novo segmento de indústria; 4) custos ou disponibilidade oscilante de insumos; e 5) mudanças nos regulamentos governamentais.” (Porter, 1993: 57-8).
74 Também Porter, destaca como sendo chave para a estratégia competitiva tanto a estrutura da indústria quanto a posição da empresa dentro da indústria. “A posição competitiva reflete uma batalha interminável entre competidores. A atração da indústria e a posição competitiva podem ser, ambas, condicionadas pela empresa. As empresas bem-sucedidas não só reagem ao seu ambiente, como também procuram influenciá-lo a seu favor” (Porter, 1993: 44).
75 Hirst e Thompson (1998) buscam estabelecer uma clara diferenciação entre Empresas Multinacionais e Empresas Transnacionais devido à importância da base nacional de origem para as empresas do primeiro tipo e afirmam que o segundo nome é o que deve ser utilizado para caracterizar as empresas líderes do processo de globalização. Como do nosso ponto de vista o que importa nestas empresas é o papel desempenhado como pólo aglutinador e coordenador
66
O posicionamento estratégico nas cadeias produtivas, por sua vez, deriva
da criação de relações complexas e da gestão planejada dos empreendimentos
que extrapola os condicionantes econômicos – se entendidos como estritamente
vinculados à produção - e faz parte das “funções políticas” das empresas,
próprias aos processos de concorrência do capital concentrado76. Num primeiro
momento, como simplificação, partimos do pressuposto de que a unidade de
operação do oligopólio é um mercado nacional, delimitado por um Estado-
nação, onde opera uma única moeda que funciona plenamente como
equivalente geral para, nos capítulos seguintes introduzirmos os elementos mais
complexos eliminando estas simplificações.
Discutiremos neste capítulo como ocorre o processo de transferência da
renda de oligopólio dos setores menos concentrados para os mais concentrados
da economia, apresentando o esquema tripartite de Marx e propondo
finalmente uma atualização deste para dar conta do processo contemporâneo.
Buscaremos também, ao longo do capítulo apontar algumas tensões geradas por
esta configuração sistêmica para o conjunto da sociedade.
1. Teorias sobre lucros monopolistas.
Já afirmamos que o que Marx considerava um lucro excepcional
(possibilitado pela inovação tecnológica ou por novas fontes de matérias primas,
ou ainda novas formas de organização da produção), passa a fazer parte do
próprio movimento dos pólos dinâmicos de acumulação do capital, as empresas
altamente concentradas que surgem da fusão de ramos inteiros das economias
centrais na virada do século XIX para o XX e que comandam os processos de
inovação tecnológica. A caracterização deste lucro será diferente de acordo com
da acumulação capitalista, esta diferenciação na nomenclatura é um dado menos relevante, conquanto concordemos com a tendência apontada por estes autores, não nos preocupamos ao longo do texto em ressaltar tal distinção. Devemos ter claro, contudo, que embora os diversos países da tríade sejam importantes para a articulação dos grupos capitalistas, a realização dos lucros torna-se cada vez mais uma estratégia internacionalizada, focada pela estratégia de crescimento empresarial e, muitas vezes, envolve atividades em paraísos fiscais e outras ações cada vez mais desvinculadas com os países onde as atividades empresariais tiveram origem.
76 “A vantagem competitiva é, cada vez mais, função da competência com que uma empresa pode administrar todo esse sistema. As ligações não só conectam as atividades dentro de uma companhia, como também criam interdependências entre uma empresa e os seus fornecedores e canais. Uma companhia pode criar uma vantagem competitiva otimizando ou coordenando melhor essas ligações com o lado de fora” (Porter, 1993: 53-4).
67
o enfoque teórico dado. E é sua reposição dentro da teoria do valor o que
faremos ao fim do capítulo.
Podemos afirmar que o eixo central da competição oligopolista é a
obtenção de superlucros através da distorção dos mecanismos de mercado que
levariam à nivelação dos lucros pela média. Se ao tempo de Marx estas eram as
exceções, poucos anos depois o modelo já estava transfigurado nos principais
países desenvolvidos como nos demonstraram Hilferding (1985), Bukharin
(1984) e Lênin (1982). Todavia, estes autores da tradição marxista não propõem
uma solução satisfatória para o problema colocado por tais modificações em
termos da teoria do valor.
O elemento central que se encontra aqui em discussão é a possibilidade
da própria transferência de parcelas da mais-valia, realizada dentro dos cânones
da economia concorrencial ter se tornado objeto da disputa econômica no
mercado, e o processo através do qual isto acontece. Marx (1984) não escreve
uma teoria das formas de mercado77 embora constate a existência de
monopólios (naturais ou não) como formas de expressão do capital. A relação
entre estes capitais monopolistas e os setores concorrenciais só é desenvolvida
em O capital com relação à renda da terra.
Em autores posteriores como Lênin e Hilferding esta análise fica limitada
a uma denúncia de caráter geral sobre o desequilíbrio introduzido pelos
monopólios sem que se desenvolvam os desdobramentos na teoria do valor que
dêem conta das implicações de tal situação. Em Lênin (1982), o principal traço
da análise diz respeito a como a competição monopolista, calcada nos Estados
nacionais, havia encaminhado o mundo para a crise que culminou na primeira
guerra mundial, sendo o centro de sua preocupação a denúncia do caráter
parasitário dos setores monopolistas, e o caráter belicista do uso feito dos
Estados nacionais pelas diferentes burguesias.
Os trabalhos de Hilferding e Lênin, além disto, concentram-se no papel
do setor financeiro na articulação do investimento capitalista, em particular na
ação de organização das então novas combinações de capital que caracterizavam
as Sociedades Anônimas, sem, entretanto, demonstrar como se dá a
transformação dos lucros em juros nesta nova combinação concentrada de
capitais. Em termos teóricos eles apenas se respaldam nos capítulos de Marx 77 O próprio Marx remete esta tarefa a um projeto futuro em Marx, 1984: III/8:971.
68
organizados por Engels sobre a extração de mais-valia78, não indo além de
constatar as mudanças aparentes da forma de extração desta. Lênin ressalta a
“concentração e centralização” dos capitais como uma marca tendencial do
sistema, mas também este argumento já podia ser encontrado em Marx (1984).
Para nos aproximarmos deste problema, portanto, foi necessário
voltarmos um pouco atrás e definir como se dá em primeiro lugar a
transferência de parcelas da mais-valia, ou seja da substância do valor, dos
setores concorrenciais para os monopolistas. A partir deste processo
demonstraremos como mesmo dentro dos setores oligopolizados iremos
encontrar diferentes rentabilidades do capital refletindo o nível e o poder de
monopólio real exercido sobre um determinado setor da produção, para no
próximo capítulo extrapolarmos tais dinâmicas para o funcionamento do
sistema em relação ao setor financeiro.
Antes disto, porém, faremos nas próximas páginas uma rápida discussão
de como aparecem os lucros monopolistas na literatura e apontar os limites das
soluções encontradas.
Hilferding (1985) chega a identificar a “punção oligopólica”79 sobre a taxa
média de lucro, e a tendência de formação de duas modas na distribuição, mas
não desenvolve uma teoria que explique este processo de forma satisfatória.
Segundo ele,
“teoricamente, o preço do cartel deve ser, em definitivo, igual ao preço de
produção mais a taxa média de lucro. Mas esta mesma mudou. Ela é
diferente para a grande indústria cartelizada e para as áreas da pequena
indústria caídas na sua dependência, de cujos capitalistas despoja uma
parte da mais-valia, limitando-os a um simples salário” (Hilferding,
1985: 224).
E são as bases desta mudança que discutiremos ao longo deste capítulo.
Apesar de partir do princípio, a nosso ver correto, de que o aumento dos lucros
78 Hilferding ainda ensaia uma interpretação da relação entre o capital societário e a
forma que assume o capital fictício, como discutiremos no próximo capítulo. 79 Na expressão de Chesnais (1996).
69
em um setor deva ser compensado pela redução dos lucros em outro80, não fica
claro em seu texto como se dá o processo de transformação dos valores em
preços de produção81. Destarte, apesar do bom diagnóstico inicial, Hilferding
acaba por cometer algumas impropriedades em sua elaboração posterior. Por
exemplo, ao constatar que:
“Enquanto existam sociedades anônimas nas indústrias não cartelizadas,
o preço não pode cair aquém de pc+j, preço de custo mais juros, porque
senão não seria possível investimento algum de capital, portanto, o
aumento de preço de cartel encontra seu limite na possibilidade de
redução da taxa de lucro nas indústrias não cartelizadas” (Hilferding,
1985: 224).
Ao discutir os limites desta transferência, Hilferding confunde aspectos
do problema que deveriam ser tratados em separado. A forma das Sociedades
Anônimas que é assumida pelos cartéis não se limita contudo a estes, não sendo,
portanto, atribuível diretamente às Sociedades Anônimas um limite de preços.
Por outro lado, este limite não é por si diretamente determinável, na medida em
que o poder relativo do oligopólio, como veremos, pode levar a que se transfira o
volume total dos lucros e não apenas a parte relativa aos juros (ou seja, a parcela
da mais-valia que excede o lucro empresarial) para o setor monopolista.
É necessário que fique claro que este processo não se dá internamente ao
setor ou à indústria (onde podem existir empresas cartelizadas e não
cartelizadas), mas sim com relação ao capital social global, ou seja, para o
conjunto do mercado. Logo, o rendimento do capital concorrencial (não
cartelizado) pode ser reduzido apenas à reprodução simples. Isto seria dado por
uma situação na qual o lucro da empresa fosse rebaixado a ponto de
corresponder apenas à parcela denominada por Marx de lucro empresarial (le),
o “provento do ‘administrador’ do negócio” – que como remuneração pelo
trabalho acaba por poder ser achatado até o valor de um salário. E este continua
muitas vezes aparecendo como remuneração dos gerentes ou mesmo do
proprietário no caso de pequenas empresas, como o próprio Hilferding
80 “A taxa de lucro cai para as indústrias que estão fora da cartelização. O preço do cartel
aumentará acima do preço de produção das indústrias cartelizadas no mesmo montante em que caiu abaixo de seu preço de produção das não cartelizadas” (Hilferding, 1985: 224).
81 Hilferding tenta estabelecer um exercício numérico descritivo nas páginas 224-5 de seu livro que, entretanto, confundem ainda mais o problema ao invés de apontar para uma solução.
70
destaca82. Aparentemente, o lucro empresarial representaria, assim, a
remuneração (e, portanto, o consumo) do capitalista.
Ao buscar estabelecer o limite da transferência de rendas, Hilferding o faz
decompondo os preços em preço de custo mais juros (pc+j), e não em preço de
custo mais juros mais lucro empresarial (pc+j+le). Isto se dá em conseqüência
da interpretação, a nosso ver equivocada, dada anteriormente pelo autor à
parcela dos lucros que segundo ele são capitalizados na forma dos rendimentos
do lucro de fundação. Tal lucro de fundação é o nome dado à diferença obtida
entre o valor do capital concreto das Sociedades Anônimas e seu preço de
mercado e que se justificaria segundo este pela capitalização do lucro
empresarial83. Mas isto é contraditório com o próprio Hilferding, segundo o
qual, os grandes acionistas com participação no conselho embolsam uma
“participação nos lucros”. E aí temos onde vai parar o lucro empresarial de
Marx e o porque deste último igualar os dividendos aos juros. Em decorrência
deste quid pro quod, fica por explicar a base material do lucro de fundação
proposto por Hilferding.
Ao observarmos mais de perto a contabilidade das grandes corporações
notaremos que na verdade, a divisão dos lucros se fará em três fatias. As duas
primeiras, a remuneração das gerências e diretorias (que não se limitam aos
lucros empresariais do setor concorrencial), e os dividendos distribuídos,
compõem grosso modo a divisão dos lucros entre lucros empresariais e juros (Le
+ j), mas além destas há um terceiro componente, os lucros retidos para
financiar novos investimentos (e aqui estamos diante tanto de inovações
produtivas como de estratégias de crescimento empresarial) com vistas a dotar a
empresa de uma base própria de reprodução ampliada.
Assim sendo, a simplificação proposta por Marx pela qual o lucro é a
soma do lucro empresarial mais o juro “habitual” (L=le + j), não pode ser levada
ao pé da letra ao discutir-se o que se constata na prática das grandes
corporações. Devemos ter claro, como discutiremos de forma mais aprofundada
no próximo capítulo, que as taxas de juros são determinadas pela disputa entre
o capital monetário e o capital atuante. Portanto, tais empresas distribuem uma
82 Não por acaso uma forma comum de referência ao pequeno empresário nos dias de
hoje é “patrão de si mesmo”. 83 Isto será melhor discutido no próximo capítulo quando analisarmos a forma
Sociedade Anônima.
71
parcela de seus lucros na forma de dividendos – que de fato para efeitos do
capital fictício corporificado nas ações são um juro – e retém, garantindo desta
forma sua reprodução ampliada, uma parcela substancial dos lucros auferidos.
Além disto, os lucros destas empresas não estão limitados à taxa de lucros
habitual, sendo compostos também por lucros monopolistas, como veremos
adiante84.
Como complicador para a observação destes processos, as empresas
pagarão e receberão juros sobre capitais monetários necessários ao giro do
capital, constituindo, desta forma, um resultado financeiro autônomo, em
termos contábeis, com relação ao resultado produtivo, o que dificulta
sobremodo o estudo dos exemplos concretos dados pelos relatórios anuais das
empresas.
Outro elemento desconsiderado por Hilferding é que as Sociedades
Anônimas, ao dissociar a propriedade do comando do capital podem operar em
alguns períodos mesmo apresentando prejuízos, rebaixando o preço a ponto de
eliminar a concorrência. Há assim, a possibilidade destas empresas forçarem a
própria reprodução simples do capital durante determinados períodos de
tempo, de forma a, num segundo momento, tornar a estabelecer os preços em
níveis de monopólio85.
Como decorrência de não haver solucionado o problema da
transformação do valor em preços, e da específica forma tomada por este
processo com a introdução dos monopólios, a confusão conceitual de Hilferding
chega a seu limite quando afirma, referindo-se aos lucros de monopólio, que:
“Esse lucro extra já não é oriundo da mais-valia, produzida pelos
operários empregados pelo cartel; tampouco é uma dedução do lucro de
outras indústrias não cartelizadas, mas é um tributo impingido a toda a
classe consumidora interna” (Hilferding, 1985: 289-90).
84 Hilferding identifica os royalties como um “lucro extra” que entra no rateio dos
dividendos, e identifica sua origem como “um monopólio legal, funcionando como apoio ao monopólio econômico, garante às associações monopolistas a posse de patentes. Então, devido a seu grande poder de capital, as associações também estão em melhores condições do que os concorrentes individuais de adquirir novas patentes e fortalecer dessa forma sua posição monopolista” (Hilferding, 1985: 198). Mas não mostra como se dá este processo em termos da teoria do valor.
85 Do ponto de vista de uma empresa societária não oligopolista, a redução da lucratividade implicará na redução do preço do capital fictício (o preço da empresa na bolsa), não havendo portanto como fixar tal limite inferior do preço do produto como pretendido por Hilferding na citação acima.
72
Infelizmente, este erro de leitura se repete na literatura marxista. Tal tese
é defendida também por Sweezy (1988) e Baran e Sweezy (1974), a partir da
idéia de que o preço de monopólio é sumamente indeterminável e ilimitado, e
influencia outros autores que tratam do capital monopolista. A mesma idéia é
encontrada em Harvey (1982, capítulo 6) que afirma que o capitalismo
monopolista liquida com os pressupostos básicos da teoria do valor. No nosso
entendimento, tal formulação parte de uma leitura restrita, e em decorrência
equivocada, da discussão feita por Marx sobre a determinação do preço dos
vinhos, e ignora o princípio de que a mais-valia total, e portanto o valor
disponível para a realização das trocas, é uma grandeza estabelecida de forma
prévia à distribuição.
Tomemos como referência desta leitura Sweezy (1988), que num dos
manuais mais divulgados de teoria marxista86, segue o erro de leitura de
Hilferding sobre o texto de Marx e busca alicerçar na leitura de O Capital o
argumento em que afirma ser impossível a elaboração de uma teoria de preço de
monopólio. O trecho citado de Marx para a sustentação do argumento de
Sweezy é
“‘Quando falamos de preço de monopólio’, escreveu Marx, ‘significamos
em geral um preço determinado apenas pela ansiedade dos compradores
em adquirir, e pela sua solvência, independentemente do preço
determinado pelo preço geral da produção e pelo valor dos produtos’”
(Sweezy, 1983: 209)87.
Tal citação, todavia, insere-se originalmente numa discussão sobre o
efeito renda que introduz a discussão da gênese da renda da terra. A
preocupação de Marx ali é mostrar justamente a diferença entre a forma como
aparece a renda para seu possuidor e o que ela é na verdade. Um clássico
exercício de aparência x essência, dos quais “O Capital” se encontra repleto.
Neste caso, o preço de monopólio aparece como uma característica do produto,
por este excluir de seu consumo os demais membros da raça humana; mas tal
característica deriva da propriedade específica da terra (no exemplo citado por
Marx, vinhos), cuja posse possibilita a extração de um sobre-lucro que constitui
86 No caso brasileiro em particular por ter escapado à censura do regime militar. 87 A citação é da página 900 do volume III da edição americana (Charles Kerr & Co.,
Chicago, 1933). O texto é encontrado na edição que utilizamos (Siglo Veintiuno Editores, III/8: 986) no capítulo XLVI Renda de Edificações. Renda Mineira. Preço da Terra.
73
em verdade a renda da terra. Desta forma, o preço de um produto onde está
contida uma parcela relativa a um monopólio, como o da renda da terra será
dado por
p = Kc + Kv + g + Rtr
Onde, p é o preço de produção, Kc é o capital constante, Kv é o capital
variável, g é o lucro médio, e Rtr é a renda da terra, uma renda de natureza
monopolista. O problema é que, neste caso, a renda diferencial (Rtr) que se
encarna no preço do vinho combina a raridade do solo (base material da renda
da terra propriamente dita), uma casta nobre de uvas, técnicas de produção
secretas (que neste caso prescindem do patenteamento), tradição da casa
vinícola, e outros efeitos de ordem subjetiva que discutiremos adiante a respeito
das marcas, que fazem com que as rendas monopolistas componham a maior
parte do preço do produto e que, em decorrência disto, este preço pareça
completamente desvinculado de qualquer base material. Ou seja, embora Marx
já houvesse dado uma pista para a solução do problema dos preços de
monopólio na forma da renda da terra, esta não foi suficientemente explorada
na literatura e, pior ainda, como o exemplo envolvia outros tipos de monopólio
que não apenas o da terra, este exemplo foi repetidamente usado como
argumento contra a possibilidade de se estabelecer uma teoria para os preços de
monopólio.
A base para a solução do problema, que discutiremos no próximo item
deste trabalho, está no fato de que a transferência de mais-valia se processa dos
setores concorrenciais para os monopolistas via preços, e os preços não
correspondem, nem podem corresponder, aos valores objetivados nas
mercadorias. Uma vez que não há como fazer com que as mercadorias valham
mais do que o trabalho socialmente necessário à produção de sua massa total
(grandeza prévia determinada no processo de produção), a fixação de preços de
monopólio (acima de seu valor social médio) precisa encontrar como
compensação a redução dos preços de outras mercadorias (abaixo de seu valor
social médio) para que o valor agregado total da economia se mantenha como
grandeza dada (já que de outra forma a alteração dos valores seria
simplesmente inflacionária).
É este o sentido da idéia de que estamos diante de uma luta pela “captura
de mais-valia”. Ainda que se possa ter a impressão de que a mais-valia se
74
encontra no ar, ela não está no ar, ela está em disputa constante no mercado
através de trocas desiguais através das quais se transfere a substância social do
valor entre as partes envolvidas. Assim, ao invés de perceber que existe uma
tendência de desnivelação das taxas de lucro (uma no setor concorrencial, e
outra composta por uma renda monopolista que se agrega à primeira, mas cuja
grandeza é indeterminável), o argumento encontrado por Hilferding, e grosso
modo pelo “marxismo ocidental”, é o de que o capital concentrado “dinamita” a
própria teoria do valor. Temos assim mais um caso histórico no qual a lógica foi
posta de ponta cabeça.
Como a transferência da substância do valor pode se dar inclusive através
do preço da mão de obra, ou seja, dos salários, quando a renda monopolista
compõe a cesta de produtos necessária à subsistência dos trabalhadores, tal
renda toma a aparência de um “tributo sobre toda a classe consumidora”. Julgar
que isto extrapola o processo de produção de mais-valia é tomar a aparência
pela essência e, portanto, desprezar o papel teórico da economia política.
A explicação encontrada por Harvey de que o impacto da “estrutura
societária multidivisional e descentralizada [que] generalizou-se pelo mundo
nos anos 1960”88 (Harvey, 1982: 148), permitiria uma equalização interna das
taxas de lucros (e que seria superior ao sistema de equalização realizado pelo
mercado vigente entre as pequenas empresas que operavam anteriormente em
concorrência perfeita) sequer encontra base material para sua sustentação. Esta
falta de base se constata na medida em que seguem existindo n tipos de
estruturas entre as Sociedades Anônimas e, mais importante, segue também
existindo uma fralda produtiva gigantesca organizada nos moldes
concorrenciais. Assim, a tese de que a centralização de capital, teria como
contra-tendência a descentralização administrativa (outra argumento
contestável pela verificação empírica das diferentes formas de organização
adotadas pelas grandes empresas), e que esta traria para o interior das empresas
o processo regulatório da taxa de lucros média, recuperando a validade da teoria
do valor no entendimento de Harvey, nos parece um malabarismo
desnecessário - para não dizer um falseamento – para a solução do problema,
na medida em que não explica as diferentes taxas de lucros que continuam
sendo observadas no sistema e em particular, entre as grandes empresas. 88 Tendência esta que é explicada por Harvey seguindo o argumento de Chandler (1977).
75
Fora da tradição marxista, encontramos em Schumpeter (1982) uma das
mais criativas descrições do desenvolvimento capitalista centrada nos processos
de alternância do ciclo econômico. O lucro diferencial, ou superlucro, gerado
pela inovação econômica é central para o estudo dos ciclos. Assim, Schumpeter
propõe em sua “Teoria do Desenvolvimento Econômico” que o processo de
decolagem dos ciclos econômicos será dirigido pelas novas combinações
produtivas realizadas buscando a obtenção deste superlucro que, entretanto,
desaparecerá na medida em que a dinâmica do ciclo se esgota e as inovações que
geraram tal superlucro se difundem para a economia como um todo.
O limite desta interpretação, como o próprio Schumpeter discute em obra
posterior89, é que os mecanismos de patenteamento e as economias de escala
paulatinamente impedem a disseminação destas inovações pela economia,
cristalizando as posições diferenciadas entre as empresas e tornando tal
superlucro uma parcela normal, ou permanentemente reposta, da rentabilidade
das empresas de capital concentrado90.
Este superlucro, depois alcunhado de lucro schumpeteriano, é visto por
Marx como causa contrarrestante de curto prazo à tendência de queda da taxa
de lucro, mas sua cristalização num preço de monopólio, muda seu caráter como
veremos adiante.
Finalmente, outro autor importante nesta discussão é Michael Kalecki,
que propõe um esquema para a fixação de preços por firmas individuais,
segundo o qual o preço seria dado por:
P = um + np, onde
P = preço da firma individual
u = custos diretos de produção
p = preço médio do produto ponderado
m e n = coeficientes de monopólio positivos, n<1, sendo que m/1-n indica
um grau mais elevado de monopólio de acordo com seu aumento direto.
89 Schumpeter (1984), “Capitalismo, socialismo e democracia”. 90 Porter (1993) aponta como preocupação estratégica das empresas a manutenção desta
liderança.
76
A saída de Kalecki é elegante mas esta modelagem matemática não nos
auxilia em muito. O central a reter aqui é a idéia de que se poderia estimar um
coeficiente de monopólio para diferenciar a rentabilidade de tais empresas
frente às demais. Ou seja, a idéia de que a taxa de lucro das empresas nos
setores oligopolistas se distanciam da média do setor concorrencial e também
apresentam lucros diferentes entre si.
Kalecki foge da discussão sobre a determinação de preços que ele
denomina de “formados pela demanda” onde estão incluídos os preços agrícolas
e de outras matérias-primas, que permitiriam um “ganho especulativo”
motivado pela “inelasticidade” da oferta. Ou seja, Kalecki não trata em seu
modelo do caso clássico de preço de monopólio representado pela renda da
terra.
Nos casos dos preços industriais – que o autor chama de preços
“deterrminados pelos custos” - as causas de modificação do grau de monopólio
segundo Kalecki seriam: concentração (economias de escala e acordos entre
grandes empresas), publicidade (a segmentação é explicada como substituição
de uma concorrência de preços por uma “através de campanhas de
publicidade”), a influência das modificações no nível dos custos indiretos com
relação aos custos diretos sobre o grau de monopolização e o poderio dos
sindicatos (cf. Kalecki, 1983: 11-2).
Embora introduza a publicidade e perceba a importância desta no
processo de formação de preços, Kalecki não a entende como um produto
cultural. Se seguirmos seu raciocínio ao pé da letra, as campanhas publicitárias
agregariam “valor” ao produto (os custos de realização incorporados
diretamente como custos de produção e não como dedução da mais-valia)91.
Independentemente da correção do enfoque sobre seus efeitos, Kalecki percebe
que o marketing em si torna-se um custo indireto necessário às condições de
concorrência oligopolista e torna-se uma marca do estágio de desenvolvimento
da comercialização. Se em 1800 não houvesse o caixeiro viajante o capital não se
realizava. Agora é a vez das agências publicitárias. Voltaremos a este debate
mais à frente.
91 Como veremos, na verdade a propaganda altera a percepção dos indivíduos sobre o
“valor de uso” das mercadorias frente às mercadorias concorrentes, mas ainda permanecem como um custo indireto que permite a obtenção de uma renda diferencial representada pelo monopólio da marca e dos processos de distribuição relacionados.
77
Independentemente do acerto das interpretações sobre a formulação dos
preços de monopólio há um ponto focal para o qual todas as interpretações
citadas convergem: o que anima a ação das empresas no sentido da criação dos
oligopólios é a busca de evitar a tendência geral de queda da taxa de lucros como
enunciada por Marx92. Portanto, quanto maiores os investimentos realizados e
quando maior a composição orgânica do capital, menores, proporcionalmente,
serão os lucros e maior a necessidade de proteção da lucratividade do capital. A
forma como se consolida esta proteção nos EUA, uma vez proibida a
cartelização93, é a fusão das empresas em grandes monopólios nacionais através
da forma holding, que traz consigo uma série de implicações sociais para a
forma da apresentação do capital como Sujeito do processo de acumulação,
como discutiremos no próximo capítulo.
Neste capítulo entretanto, daremos um passo atrás e nos concentraremos
ainda na discussão de como a tendência ao oligopólio contraria a competição
clássica e submete os setores não concentrados à transferência de parcela de
seus lucros (ou, no limite, a uma reação de caráter inflacionário) para o caixa
das empresas do grande capital concentrado. Deste modo, devemos voltar a
Marx para discutirmos como aparecem as rendas de monopólio na teoria do
valor e o papel desempenhado pelo capital na transformação da forma como os
seres humanos vêem o mundo e agem com relação a ele. Isto é necessário na
medida em que a instituição dos monopólios sobre as forças sociais
representadas pela tecnologia e marcas, entre outras bases materiais das rendas
monopolistas, equivalem à construção de um consenso social sobre a forma
92 “Com a progressiva diminuição relativa do capital variável com respeito ao capital
constante, a produção capitalista gera uma composição orgânica crescentemente mais alta do capital global, cuja conseqüência direta é que a taxa de mais-valia, mantendo-se constante o grau de exploração do trabalho e inclusive se este aumenta, se expressa numa taxa de lucro constantemente decrescente. [...] A tendência progressiva da taxa geral de lucro à baixa só é, portanto, uma expressão, peculiar ao modo capitalista de produção, do desenvolvimento progressivo da força produtiva social do trabalho” (Marx, 1984: III/6, 270).
93 O termo truste designa nos EUA um tipo específico de combinação, proibido por lei: “No truste, os donos de uma maioria de ações de várias sociedades anônimas independentes passam suas ações para um grupo de depositários em troca de um certificado de depósito. Os depositários administram as companhias e os portadores dos certificados recebem os dividendos. Dessa forma, a unificação completa de políticas das companhias é realizada, ao passo que a identidade legal e comercial dos seus constituintes não é prejudicada, como no cartel” (Sweezy, 1983: 204).
78
como se reproduz a vida humana que, por sua vez, reflete a posição do capital
como hegemon da sociedade.
2. Concorrência capitalista e transferência de mais-valia via preços.
Para entendermos o processo no qual se dá a transferência de valores
entre as empresas do setor concorrencial para as do setor de capital concentrado
é necessário voltarmos à discussão de como se estabelece na obra de Marx o
processo no qual os capitais são remunerados segundo uma taxa de lucro média.
Para tanto, usaremos como referência a tese de doutorado de João Machado
Borges Neto (2002), onde este expõe de forma clara o modo como a
transferência da substância do valor (o trabalho abstrato) pode se dar na
circulação de mercadorias como resultado do desvio entre preços e valores de
produção.
Ao discutirmos este tema partimos do princípio de que o capital é o
trabalho humano abstrato consubstanciado numa forma social, o valor, que se
encontra em processo de valorização. A produção capitalista é um movimento,
uma sucessão de relações humanas, sociais, nas quais o capital se amplia através
da extração de mais-valia, o trabalho não pago, dos trabalhadores envolvidos na
produção. Assim, nas palavras de Neto:
“Marx define o capital como uma substância social – o valor – que
encontra uma existência autônoma no dinheiro e se movimenta,
mudando de forma, para se valorizar. O capital só poder ser entendido
portanto como um movimento; e a idéia de que muda continuamente de
forma é essencial para que possa ser compreendido” (Neto, 2002: 59).
Também se pressupõe, assim, que as relações estabelecidas no mercado
se dão com base num equivalente geral com validade universal, ou seja,
reconhecimento social geral, e que se expressa como encarnação da substância
social que constitui o valor – o trabalho humano, já devidamente reduzido a sua
forma abstrata simples e normalizado -, ou seja o dinheiro, entendido como “...
79
equivalente geral, corpo geral do valor, concretização geral material do
trabalho humano”’ (Marx, 1984: I/3: 998)94.
A remuneração destes capitais quando se encontram num sistema
concorrencial tende a nivelar-se, estabelecendo-se uma média que normalize o
rendimento em função da massa de capital constante e da velocidade de sua
circulação. Esta é uma média que é socialmente estabelecida através do
mercado, pois, como Neto chama a atenção, para Marx não só pode como deve
haver incongruências entre o valor e o preço das distintas mercadorias95, pois
estas não são necessariamente trocadas pelo trabalho diretamente incorporado
a elas, mas por seu valor social médio – o que justifica, por exemplo,
mercadorias produzidas por trabalhos de diferentes produtividades terem o
mesmo preço no mercado96.
Segundo Neto,
“... quando o valor se expressa como preço, perde-se em ‘fidedignidade’
do valor – pois o preço expressa o valor como algo diferente dele próprio,
e entre ambos pode haver portanto uma diferença. Que acontece, então,
quando o valor se expressa em um preço que difere dele
quantitativamente? Simplesmente: se uma mercadoria é alienada por um
preço distinto de seu valor, faz-se uma transferência de valor entre o
94 “É importante salientar qual é o conceito de dinheiro a que se chegou. Em toda a
análise da forma do valor, o que se explicita é a substância social que constitui o valor encontra uma forma adequada de expressão no dinheiro. Assim, o dinheiro é: ”’a encarnação visível, a crisálida social geral de todo trabalho humano’ [O capital I-I, p. 67; El Capital I-I, p. 82]; ‘(...) forma adequada de manifestação do valor ou materialização do trabalho humano abstrato’ [O capital I-I, p. 83; El Capital I-I, p. 109]
“O dinheiro é a forma adequada e necessária da representação do valor das mercadorias; no entanto, expressa o valor de modo imperfeito: seu próprio valor é variável. Como Marx explicitou na análise da determinação quantitativa da forma relativa do valor. Ainda no quadro da forma simples – mas o que é dito vale igualmente quando o dinheiro está na forma equivalente” (Neto, 2002: 21).
95 “... embora os preços sejam expressão do valor – e portanto de quantidades de trabalho abstrato – em dinheiro, faz parte da sua lógica poder expressar o valor com um desvio; esta é, mesmo, uma das razões que tornam impossível, numa economia mercantil, substituir o dinheiro por ‘recibos de tempo de trabalho’” (Neto, 2002: 137).
96 Neto cita a seguinte passagem de Marx para justificar seu argumento: “A grandeza de valor da mercadoria expressa, assim, uma relação necessária e imanente a seu processo de formação com o tempo de trabalho social. Com a transformação da grandeza do valor em preço, essa relação necessária aparece como a relação de troca de uma mercadoria com a mercadoria monetária, que existe fora dela. Mas nesta relação pode expressar-se tato a grandeza de valor da mercadoria como o mais ou o menos em que, sob dadas circunstâncias, ela é alienável. A possibilidade de uma incongruência quantitativa entre o preço e a grandeza de valor é, portanto, inerente à forma preço. Isto não é um defeito desta forma, mas torna-a, ao contrário, a forma adequada a um modo de produção em que a regra somente pode impor-se como lei cega da média à falta de qualquer regra” (Marx, 1986: I/1:124-5) apud (Neto, 2002: 33).
80
comprador e o vendedor. Nesse caso, ocorre o que se pode chamar de
troca desigual, isto é, troca + transferência de valor na circulação. A lei
do valor significa que não pode haver criação de valor sem trabalho
produtivo, e que portanto não pode haver criação de valor na circulação.
Mas não impede que haja desvios entre preços e valores, transferências
de valor na circulação” (Neto, 2002: 33-4).
Assim sendo, a idéia de troca desigual é necessária e central para
entendermos o processo pelo qual uma empresa se apropria do tempo de
trabalho despendido pelo empregado de outra empresa e que possibilita, desta
forma, a remuneração dos capitais por uma média social, já que, dada a
composição orgânica e as diferentes velocidades de circulação dos capitais esta
não seria possível se calculada de forma direta. Da mesma forma seria
impossível entendermos a participação “das demais classes proprietárias
(capitalistas comerciais, capitalistas prestamistas, proprietários de terras) na
distribuição da mais-valia que só pode ser explicada através da distinção entre
preço e valor” (Neto, 2002: 89).
Pressuposta a situação de concorrência, as condições de oferta e
demanda podem vir a gerar situações nas quais as mercadorias sejam sub ou
sobre avaliadas, pois:
“O único princípio de conservação realmente defendido por Marx é o de
que a troca enquanto tal não cria ou destrói valor (embora possa ser
desigual e, portanto, realizar uma transferência de valor). Esta
concepção tem de fato implicações fundamentais para a transformação
de valores em preços de produção. Mas além de a produção criar valor e
o consumo destruí-lo, reavaliações a partir de mudanças tecnológicas
também podem aumentá-lo ou reduzi-lo” (Neto, 2002:156).
O problema colocado para a teoria do valor, e em particular para sua
expressão em linguagem matemática, era a demonstração da possibilidade de
compatibilizar a teoria do valor com a tendência das taxas de lucro se igualarem.
Este debate ficou conhecido como o problema da transformação, sendo que o
centro da polêmica girava sobre o fato de que
“transformar valores em preços de produção significa definir preços que
se desviam dos valores de modo a redistribuir o valor já produzido,
levando à igualação das taxas de lucro. [...] Conserva-se o quantum da
81
substância de valor, que não pode ser alterado na circulação. A mudança
que ele introduz, e que se justifica diante da necessidade de passar a
tratar dos muitos capitais, e não mais do capital em geral, é considerar
que os preços (de mercado) flutuam sim em torno dos valores, mas com
um viés: suas médias não são dadas pelos valores, mas pelos preços de
produção” (Neto, 2002:162).
Neto resolve o problema partindo da idéia de que a “soma dos valores 97
soma dos preços de produção, e a soma das mais-valias soma dos lucros”
(Neto, 2002:163) e que “só existe uma taxa média de lucro, que é calculada em
valores, e usada em seguida para calcular os preços de produção.
Conseqüentemente, a taxa média de lucro em preços de produção é a mesma”
(Neto, 2002:163)98.
Neste sentido, fica demonstrado que:
“...a transformação [...] é um movimento em que, após a produção, o
valor é redistribuído de modo a que a venda das mercadorias possa se
fazer igualando as taxas de lucro. Um movimento a partir do qual os
capitalistas não se apropriam da mais-valia produzida pelos ‘seus’
próprios trabalhadores, mas da fração da mais-valia que corresponde ao
97 É idêntica a. 98 “As equações que expressam esta transformação são:
iM (valor das mercadorias produzidas por um capital) = ic
+ iv + im
(capital
constante consumido, capital variável e mais-valia de cada capital).
iC (capital adiantado por um capitalista) = ia
(capital constante adiantado) + iv
ik(preço de custo das mercadorias produzidas por um capital) = ic
+ iv
l’ (taxa geral – ou média – de lucro) =
i
i
Cm
il (lucro médio apropriado por um capitalista) = l’ iC
iP = ik
+ il
“A partir destas equações, é fácil demonstrar que PM e que lm
são
duas identidades. Isto decorre diretamente do fato de a transformação dos valores em preços de
produção ser uma redistribuição na circulação de parte do valor já definido na produção” (Neto,
2002:164).
82
volume (e ao tempo de rotação) de seu capital. Transformar os valores
em preços de produção é uma forma tendencial de redistribuir o valor,
que ocorre normalmente na economia capitalista” (Neto, 2002:179).
Até aqui seguimos a argumentação de Neto, que discute o sistema a partir
de uma perspectiva de “concorrência perfeita”, ou da concorrência clássica,
como a economia estudada pela tradição Smith-Ricardo-Marx. Cabe-nos agora
discutir a validade deste argumento para a situação onde a luta do capital
concentrado se dá justamente no sentido de evitar este movimento de nivelação
e incorporar, também através do sistema de troca desigual, um volume maior
de mais-valia a seus rendimentos do que o esperado pela aplicação do princípio
de nivelação operado pelo mercado quando existe a situação de concorrência. A
soma das mais-valias segue idêntica à soma dos lucros, mas estes devem ser
decompostos numa parcela que é rateada igualmente entre os distintos capitais
e em outra parcela apropriada de forma desigual.
Como também nos lembra Neto, o mesmo raciocínio, sobre como
funciona a transferência da substância social do valor entre dois capitais (não
importando os setores em que operam) é válido para o capital variável, ou seja,
para os salários. Pois,
“se os capitalistas pagam pela força de trabalho segundo o preço de
produção dos meios de consumo necessários aos trabalhadores, é desta
forma que o valor do capital variável deve ser considerado; é desta forma
que os meios de consumo estabelecem sua equivalência ao dinheiro”
(Neto, 2002:189).
E é por este processo, através de trocas desiguais, quer sejam realizadas
diretamente entre as empresas capitalistas, quer sejam mediadas por outros
atores, que se dá a transferência de mais-valia para setores operando com
preços de monopólio. Por exemplo, no caso da renda da terra: o raciocínio é
válido tanto com relação ao aluguel pago pelo uso do espaço da unidade de
produção fabril quanto no caso do aluguel pago por um trabalhador, caso em
que o preço de monopólio faz parte das necessidades de reprodução da força de
trabalho. A ampliação do poder e da renda do monopolista depende de uma
disputa, que se dá de forma direta, com o capitalista, ou indireta, através da
expansão do salário do empregado. Do ponto de vista da prática do sistema,
83
“o valor do capital variável corresponde ao valor da força de trabalho,
que é dado pelo valor do dinheiro pago aos trabalhadores (dos
salários), que equivale ao preço de produção dos meios de consumo
necessários aos trabalhadores. Este valor pode estar acima ou abaixo do
valor destes meios de consumo” (Neto, 2002:190).
Assim, o salário (entendido como o preço da mão-de-obra) é definido não
pelo valor do custo de reprodução da força de trabalho, mas pelo preço de
produção dos bens necessários a esta reprodução e que lhe são equivalentes. A
mais-valia deve ser vista desta forma como a diferença (a quantidade de
dinheiro) entre os preços pagos pela mão de obra e o valor adicionado no
processo produtivo. Deste modo, “a taxa de lucro só pode ser entendida como a
razão (em determinado período de tempo) entre a mais-valia (no sentido
exposto acima) e o capital adiantado, calculado em termos monetários” (Neto,
2002:191). O que aproxima a explicação muito mais da forma concreta como os
agentes vêem as operações nas quais estão envolvidos.
Ao final de seu trabalho, Neto ressalta que
“igualmente importante para a coerência da teoria de Marx é o fato de
que só há uma taxa média de lucro no sistema (pois) não há diferença
entre uma ‘taxa média de lucro em valor’ e uma ‘taxa média de lucro em
preços de produção’” (Neto, 2002: 204).
Como veremos, a existência de mais de uma taxa de lucro, que decorre da
introdução de diferenciais que permitem uma parcela do capital fugir à
concorrência, e à nivelação da taxa de lucros, é igualmente consistente com o
sistema na medida em que consideremos a idéia de que a somatória total da
massa de mais-valia segue sendo dividida entre os diferentes setores de forma
desigual. Continua existindo uma média no sistema, mas esta deixa de ser
também sua moda. Antes, aparecem tendencialmente duas modas calculadas
com relação ao valor e aos preços de produção, mas como veremos, com taxas
de lucro diferenciadas pela prática e reiteradas pela diferença de poder entre os
capitais concorrenciais e os capitais oligopolistas.
Segue válido também, o raciocínio segundo o qual o estabelecimento de
uma taxa média de lucros irreal por parte dos capitalistas simplesmente resulta
em inflação. Na situação de concorrência, “a troca ou venda das mercadorias por
seu valor é o racional, a lei natural de seu equilíbrio; a partir dela podem
84
explicar-se as divergências, e não ao contrário, a lei a partir destas” (Marx, 1984:
III/6:237). Assim, o problema está em se discutir como, a partir de um sistema
que tende a uma média, se verificam consistentemente situações que se afastam
desta.
3. Preços de monopólio e de mercadorias “sem valor”.
A introdução da idéia de que mercadorias podem ser trocadas por preços
diferentes de seus valores não é suficiente para entendermos as relações
estabelecidas no mercado, pois também encontraremos o comércio de falsas
mercadorias, coisas que de fato não foram produzidas mas que, por serem
monopolizáveis e alienáveis, tornam-se precificáveis. Segundo Marx:
“A forma do preço, entretanto, não só admite a possibilidade de uma
incongruência quantitativa entre magnitude de valor e preço, ou seja,
entre a magnitude do valor e a sua própria expressão em dinheiro, como
também pode abrigar uma contradição qualitativa, de tal modo que
ainda que o dinheiro só seja a forma de valor que revestem as
mercadorias, o preço deixe de ser em geral a expressão do valor. Coisas
que em si e para si não são mercadorias, como por exemplo a
consciência, a honra, etc., podem ser postas à venda por seus
possuidores, adotando assim, graças a seu preço, a forma mercantil. É
possível, pois, que uma coisa tenha formalmente preço sem ter valor. A
expressão em dinheiro torna-se aqui imaginária, como em certas
magnitudes matemáticas. Por outro lado, a forma imaginária do preço –
como por exemplo o preço da terra não cultivada, que não tem valor
nenhum por que nela não se objetivou nenhum trabalho humano pode
conter uma relação efetiva de valor ou uma relação derivada desta”
(Marx, 1984: I/1, 125).
Ou seja, na fórmula clássica de Marx, basta que uma coisa seja
monopolizável e alienável99 para que possa receber um preço e ser transformada
99 Como apontava Marx, “ao considerar as formas em que se manifesta a renda da terra,
isto é o arrendamento pago ao latifundiário sob o título de renda em troca da utilização do solo, seja com fins produtivos ou de consumo, vale sustentar que o preço daquelas coisas que não tem valor intrínseco, isto é que não são produtos do trabalho, como a terra, ou que pelo menos não podem ser reproduzíveis mediante o trabalho, com as antiguidades, as obras de arte de determinados mestres, etc. pode ser determinado por combinações sumamente fortuitas. Para
85
aparentemente em mercadoria, receba a forma mercantil. Isto implica numa
transferência de valor entre o comprador e o vendedor desta mercadoria, uma
troca desigual entre valores produzidos na forma mercadoria por não-valores
que não foram produzidos e que, portanto não agregaram valor à somatória
total que precede a distribuição das diferentes rendas100.
Veremos adiante como Marx desenvolve o preço do monopólio sobre a
terra a partir da idéia de renda diferencial e como este modelo é generalizável
para outros tipos de rendas monopolistas.
vender uma coisa, tudo quanto faz falta é que a mesma seja monopolizável e alienável” (Marx, 1984: III/8:815).
100 “O capital em geral contrapõem-se aos muitos capitais e à concorrência; é neste nível que Marx trata da produção de mais-valia ‘em geral’, isto é, como algo logicamente anterior à sua distribuição em várias formas (lucro industrial, lucro comercial, juro, renda da terra) e entre os vários agentes. Marx considerava este tratamento da mais-valia em geral como um dos maiores méritos de sua teoria, ao lado do duplo caráter do trabalho produtor de mercadorias” (Neto, 2002: 96).
86
Capítulo 3 - O esquema tripartite de Marx.
A última seção de O Capital, a sétima do livro III, é dedicada ao
Rendimento e suas fontes. Foi aí que Engels reuniu os textos de Marx sobre o
tema. A fórmula trina da renda é apresentada de forma sucinta: “capital - lucro
(lucro empresarial + juros), solo – renda da terra, trabalho – salário; esta é a
fórmula trinitária que compreende todos os mistérios do processo social de
produção” (Marx, 1984: III/8, 1037)101.
Num primeiro momento procuraremos expor a forma como o esquema
aparece em O Capital para depois discutirmos algumas atualizações que
julgamos necessárias, buscando demonstrar como o mesmo raciocínio de Marx
sobre a renda da terra vale para formas modernas de apropriação da mais-valia,
como o pagamento de royalties e licenças sobre marcas e patentes102.
Hoje em dia não é só a propriedade sobre a terra, mas também a
propriedade sobre as marcas e as patentes tecnológicas que exigem seu tributo
ao serem utilizados no processo produtivo. Por outro lado, o dinheiro dos
empréstimos ao setor público, irmana-se às demais formas de capital fictício,
em particular as ações, e confunde sob a forma dos juros, as diferentes fontes
constitutivas das rendas pagas ao capital monetário. Ao analisar o processo
produtivo de seu tempo, Marx fixa sua atenção na renda da terra como forma de
renda de monopólio pois não pode adivinhar como se dará o desenvolvimento
101 Ou “para os agentes da produção o capital, a propriedade da terra e o trabalho se
apresentam como três fontes diferentes e independentes que, enquanto tais, se originam três componentes diferentes do valor produzido anualmente – e por fim do produto em que este existe-,...” (Marx, 1984: III/8, 1047).
102 Sem falar nos tributos pagos ao Estado como veremos no capítulo 10.
87
das demais formas que constituirão o “rentismo” da fase seguinte do
capitalismo103.
“Renda, lucro, salário, parecem brotar assim do papel que desempenham
a terra, os meios de produção produzidos e o trabalho no processo
laboral simples, inclusive na medida em que consideramos que este
processo de trabalho ocorre meramente entre o homem e a natureza, à
margem de toda determinação histórica” (Marx, 1984: III/8, 1051).
Ao tratar especificamente da forma como aparecem as rendas, Marx
realiza uma inversão da ótica pela qual aborda seu objeto. Sem esquecer as
determinações conceituais que precederam a análise da forma como é criado o
valor, ele aproxima-se da forma concreta pela qual este valor é repartido entre
as diferentes classes que compõe a sociedade, o que ocorre de uma “forma
invertida”, que vela o processo e, em decorrência, distorce as concepções dos
atores nela envolvidos104.
As distorções geradas pela forma como os agentes vêem o processo
suscitam uma série de problemas. O primeiro elemento deriva do fato que a
aparência que brota da competição é que a propriedade do trabalho, do capital e
da terra dão direito a uma determinada remuneração, como por exemplo no
seguinte trecho:
“Mas o valor não surge de uma transformação em crédito, mas deve
existir antes que possa se transformar em crédito e assumir esta figura. A
aparência inversa se consolida com tanta maior necessidade porquanto a
determinação da magnitude relativa dessas três partes obedece a leis
heterogêneas entre si, cuja conexão com o valor das mercadorias mesmas
e cuja limitação por dito valor não se mostra de modo algum na
superfície” (Marx, 1984: III/8, 1101, grifo nosso).
Um segundo problema é que alterações, como aumentos nos salários,
podem gerar mudanças nos preços, de forma que o conflito distributivo, por 103 Embora identifiquem o fenômeno, os autores que analisam o imperialismo e o capital
monopolista não realizam nos marcos da teoria do valor um desenvolvimento teórico que dê conta satisfatoriamente do problema, como demonstraremos adiante.
104 “A decomposição dos valores das mercadorias, uma vez deduzidos os valores dos meios de produção consumidos em sua produção; a decomposição dessa massa dada de valor – determinada pela quantidade de trabalho objetivada no produto mercantil – em três componentes, que como salário, lucro e renda da terra assumem a figura de formas creditícias autônomas e mutuamente independentes; essa decomposição, dizíamos, se apresenta invertida na superfície da produção capitalista e, por fim, nas concepções dos agentes imersos nela” (Marx, 1984: III/8, 1100).
88
vezes leve à anulação de um ganho ou perda por uma das partes. Disto decorre
que,
“portanto, estas partes em que se decompõe a mais-valia, ao estar dadas
como elementos do preço de custo para o capitalista individual, se
manifestam ao contrário como formadoras de mais-valia; formadoras de
uma porção do preço das mercadorias, tal qual o salário forma a porção
restante. O segredo de porque esses produtos da decomposição do valor
mercantil se manifestam sempre como os pressupostos da própria
formação do valor é, simplesmente, que o modo capitalista de produção,
como qualquer outro, não só reproduz constantemente o produto
material, mas também as relações sócio-econômicas, as determinações
econômicas formais sob as quais se forma este produto”105 (Marx, 1984:
III/8, 1105-6, grifo nosso).
Isto é decorrência, como vimos na discussão de Neto (2002), da
substituição dos valores pelos preços de produção ser a forma como os agentes
percebem o processo prático de reprodução das relações de troca capitalistas. O
fato de que, como vimos, a transferência da substância social do valor poder se
dar através dos preços dos produtos necessários à reprodução da classe
trabalhadora confunde ainda mais a aparência do processo.
Além disto, outro problema provocado pela confusão de se tomar a
aparência do processo como sua essência é que “a venda ou não das mercadorias
por seus valores, ou seja, a própria determinação do valor, é algo que não
interessa nada ao capitalista individual” (Marx, 1984: III/8, 1107). O capitalista
individual está interessado nos preços de produção, “... prescindindo da parte
constante do capital, o salário, o juro e a renda se manifestam como os
elementos determinantes limitativos, e por fim criadores, do preço das
mercadorias” (Marx, 1984: III/8, 1108). (Devemos incluir aqui os impostos, que
aparecem como algo exterior à produção, do ponto de vista do capitalista, já que
este não enxerga o fundo público como algo necessário para sua relação direta
de exploração. Pelo contrário, será sempre o primeiro a denunciá-lo como
105 É interessante termos em mente que o modo de produção reproduz as relações
produzidas pelo próprio capital, entendido como sujeito autônomo, o que vela a participação do capital como centro diretivo do processo que aparece para seus suportes como uma reprodução automática.
89
componente castrador das “classes produtivas” como quer sua auto-imagem106).
Finalmente, também a manutenção das crianças e dos velhos está colocada
dentro do valor do salário para Marx107.
Assim, se a forma do lucro e dos salários já havia sido discutida ao longo
de O capital, Marx necessitava juntar a estas a forma específica pela qual o
monopólio historicamente constituído sobre a superfície do planeta ganhava sua
forma especificamente capitalista, como preço de um bem que não é
mercadoria, mas é monopolizável e alienável.
1. A Renda da terra.
Não é senão na sexta seção (Transformação da Mais-Valia em Renda da
Terra) do tomo III de O Capital que Marx trata da organização pela qual se
distribui o produto do trabalho entre os diferentes agentes da produção. Marx
supõe que a agricultura está dominada pelo modo capitalista de produção a
exemplo da indústria e que aqueles que exploram a agricultura só se distinguem
dos demais capitalistas devido à natureza do elemento no qual estão investidos
seus capitais e o trabalho movido por este capital108.
É necessário portanto estudar o que há de específico nesta relação:
“a propriedade da terra pressupõe o monopólio de certas pessoas sobre
determinadas porções do planeta, sobre as quais podem dispor como
esferas exclusivas de seu arbítrio privado, com exclusão de todos os
demais” (Marx, 1984: III/8:793). E “suposto o anterior, se trata de
desenvolver o valor econômico, ou seja a valorização deste monopólio
sobre a base da produção capitalista” (Marx, 1984: III/8:794).
Segundo Marx, portanto, os arrendatários capitalistas pagam ao
proprietário das terras uma renda em troca da autorização para o uso de seu
capital neste campo da produção em particular.
106 Este aspecto será discutido no capítulo 10. 107 A discussão moderna de previdência social deve ser feita em outros marcos como
veremos mais adiante, também no capítulo 10. 108 “A conseqüência última é, pois, a dissolução da diferença entre capitalista e
proprietário de terras, de maneira tal que, em conjunto, não há mais que duas classes na população, a classe operária e a classe capitalista. Esta comercialização da propriedade territorial, a transformação da propriedade da terra numa mercadoria é o desmantelamento definitivo da velha aristocracia e a definitiva instauração da aristocracia do dinheiro” (Marx, 1985: 98)
90
“Esta soma de dinheiro se denomina renda da terra, sem que importe se
se pague por terra cultivável, terreno para construções, minas,
pesqueiros, bosques, etc.” [...] “portanto, neste caso a renda do solo é a
forma na qual se realiza economicamente a propriedade da terra, a forma
na qual se valoriza” (Marx, 1984: III/8:796).
Desta forma, a renda da terra é uma categoria que é derivada do
monopólio sobre o uso de uma parcela do planeta. Tal poder, sem que se dê um
uso determinado para a terra não rende nada. Ou seja, a terra não agrega por si
mesma um rendimento. Mas a necessidade de se fazer uso desta leva a que sua
posse seja remunerada109.
O preço da terra é calculado a partir da renda que esta gera, ou pode
gerar potencialmente. Ou seja, pelo tempo de retorno de um dado investimento,
“calculado segundo a taxa de juros habitual”. O monopólio sobre uma parcela de
terra constitui-se assim, na aparência, como uma parcela de capital na medida
em que é precificável e que dá direito a uma renda, um “juro” indeterminado
embora “habitual”.
“O preço de compra ou valor do solo [é] uma categoria que, prima facie,
e exatamente como o preço do trabalho, é irracional, já que a terra não é
produto do trabalho e em conseqüência tampouco possui valor algum”
[...] “Mas esta capitalização da renda pressupõe a renda, enquanto que,
ao contrário, não é possível deduzir e explicar a renda a partir de sua
capitalização. Pelo contrário, sua existência, independentemente da
renda, é aqui o pressuposto do qual se parte” (Marx, 1984: III/8:802).
Tendo em vista a tendência de queda da taxa de juros “se deduz que o
preço do solo tem uma tendência à alta, também em forma independente do
movimento de renda e do preço dos produtos da terra, dos quais a renda
constitui uma parte” (Marx, 1984: III/8:803). Entretanto, como o investimento
em terra é considerado “seguro”, uma vez que deriva de um monopólio, sua taxa
109 “O juro pelo capital incorporado à terra e pelas melhorias que deste modo recebe
como instrumento de produção pode constituir-se uma parte da renda que paga o arrendatário ao latifundiário, mas não constitui a renda da terra enquanto tal, encontre-se esta em seu estado natural ou esteja cultivada” (Marx, 1984: III/8:797).
91
de remuneração costuma ser fixada abaixo da taxa “normal”110 de juros
encontrada em outros setores.
“O peculiar é que, com as condições dentro das quais os produtos
agrícolas se desenvolvam como valores (mercadorias) e com as condições
de realização de seus valores, se desenvolva assim mesmo a facilidade da
propriedade da terra de apropriar-se de uma parte crescente destes
valores criados sem sua participação, que uma parte crescente da mais-
valia se transforme em renda da terra” (Marx, 1984: III/8:822).
Na medida em que a renda da terra é uma renda de monopólio esta se
assemelha socialmente ao efeito da monopolização dos setores produtivos
executando uma punção sobre a taxa geral de mais-valia. É o fato de ser uma
renda de monopólio que confere ao proprietário de terra o “direito” sobre o
produto da terra, já que se a posse da terra fosse comum esta ainda poderia
gerar algum tipo de ganho diferencial frente a outras terras utilizadas para a
mesma produção.
Na medida em que o preço de produção de um determinado setor, como
já vimos, é dado pela soma de ic + iv + im (capital constante consumido, capital
variável e mais-valia de cada capital), e dado que este é um preço médio para
todo o setor, as empresas que logram economizar em outros custos terão um
lucro maior que os das competidoras, o que Marx denomina de superlucro111.
Assim, “os dois limites reguladores deste excedente são, por um lado, o preço de
custo individual, e portanto, o preço individual de produção, e pelo outro, o
preço geral da produção” (Marx, 1984: III/8:825), e no caso desta vantagem ser
oriunda de uma vantagem natural monopolizável pela posse da terra, como uma
queda d’água, este superlucro converte-se em renda da terra. (cf. Marx, 1984:
III/8:830).
A renda da terra é assim a aparência que reveste o superlucro
monopolista para que este possa ganhar vigência social e naturalizar-se como o
“preço” do monopólio sobre a terra.
110 Veremos no próximo capítulo que a idéia de uma taxa “normal” de juros é uma idéia
sem sentido. 111 Voltaremos ao tema de forma mais aprofundada ainda neste capítulo.
92
2. Refutação à crítica.
Deák (2001), com base em sua tese de doutorado de 1985, propõe-se a
refutar a teoria marxiana da renda da terra aqui exposta, alegando ser esta uma
intrusão indevida da teoria de Ricardo (1985) no trabalho de Marx112. A crítica
de Deák está centrada na renda da terra, em particular na forma de cálculo do
preço do solo:
“O preço do solo é o instrumento de mercado fundamental na
organização espacial da produção capitalista em geral e na grande
aglomeração urbana em particular. No entanto, sua análise ficou
obstruída pela teoria da renda da Economia Política, segundo a qual o
preço do solo é uma categoria derivada, sendo apenas a forma
‘capitalizada’ da renda. Uma análise crítica da teoria de renda mostra que
a própria renda não passa de uma categoria relativa ao modo de
produção feudal e impropriamente aplicada à análise do capitalismo”
(Deák, 2001: 56).
A crítica é forte, mas insustentável. A categoria “renda da terra” é uma
daquelas categorias pré-homéricas que continuam existindo dentro de diversos
modos de produção113. O problema é determinarmos o que há de específico
nesta dentro do modo capitalista, como feito por Marx, e seu desenvolvimento
no capitalismo contemporâneo. A tentativa de substituição da teoria da renda
por uma teoria do “preço de localização”, como proposta por Deák, acaba por
nos devolver ao próprio Marx, como veremos. Neste sentido, Deák prossegue
sua argumentação:
112 “... a lógica dialética impunha exatamente isso: na medida em que o modo capitalista
domina a produção (Capital III: 614), não havia lugar em sua análise para categorias correspondentes a relações baseadas em modos de produção pré-capitalistas eventualmente sobreviventes” (Deák, 2001: 73). A crítica centra-se na idéia de que Marx pretendia refazer a análise com base na Rússia czarista, dado ao fato de que as formações inglesas não eram modelares. A análise deste tema por Lênin (1982b) no “Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia” é totalmente baseada no conceito marxiano da renda da terra e o uso deste nos pareceu plenamente justificado sem que houvesse nenhuma inovação teórica sobre o tema.
113 Deák afirma que “a surpresa maior deve ser a descoberta que, na verdade, os pressupostos da teoria da renda nunca tiveram raiz em características concretas de qualquer estágio do capitalismo” (Deák, 2001: 65). Ora, isto também vale para a moeda, os juros, a circulação comercial na forma M-D-M’ e etc. e Marx deixa isto muito claro em O Capital. Resta saber de quem é a surpresa? Pode-se estabelecer uma crítica à aplicabilidade do cálculo diferencial direto na determinação do preço da terra (a influência ricardiana), mas esta é contornada por Marx justamente com a idéia de renda absoluta como veremos adiante. Isto não elimina, contudo, sua origem diferencial – corretamente apontada por Ricardo (1982) - na percepção dos agentes, que dá a base material que justifica a renda absoluta.
93
“No espaço aberto pela rejeição da teoria da renda esboça-se um
arcabouço de uma análise da organização espacial da produção mediante
uma construção de categorias novas, próprias do capitalismo, tais como
espaço, localização e preço do solo como forma de pagamento pela
localização e parte integrante do preço de produção de mercadorias”
(Deák, 2001: 56).
A exemplo das idéias de localização e preço do solo já contidas em Marx,
também a relação entre homem e natureza que constitui o próprio espaço (e o
conceito relacionado de localização neste caso) não tem nada de “propriamente
capitalista”, formando uma seqüência ao longo do tempo e dos sucessivos
modos de produção, como pode ser visto em M. Santos (1979), quando este
afirma que:
“Os componentes do espaço são os mesmos em todo o mundo e formam
um continuum no tempo, mas variam quantitativa e qualitativamente
segundo o lugar, do mesmo modo que variam as combinações entre eles
e seu processo de fusão. Daí vem as diferenças entre espaços” (M. Santos,
1979: 15).
Outro componente da crítica de Deák é sua análise da revolução burguesa
inglesa e a disputa entre a burguesia e os latifundiários. Deák apresenta a idéia
de que a renda da terra era apenas uma arma ideológica brandida por David
Ricardo contra os latifundiários na disputa pela aprovação da Lei dos Cereais.
Esta lei foi aprovada para garantir a baixa do preço da mão de obra e, junto com
esta taxou-se as rendas, “recuperando parcela dessa última para o controle do
capital” (Deák, 2001: 70). Ora, o que temos aqui é uma disputa dentro do bloco
histórico hegemônico inglês neste período, que reflete justamente a disputa pela
apropriação da massa de mais-valia entre os diferentes setores que compunham
a economia na época. A dissidência progressista da indústria, representada pela
Anti-Corn Law League, estabeleceu seu controle sobre os proprietários de terra,
e aproveitou para ampliar os fundos públicos que financiavam a expansão do
capital como um todo às expensas da fração derrotada.
O que Deák não percebe é que ao longo do processo histórico ocorre um
paulatino acúmulo de força por parte da burguesia mercantil que desloca, aos
poucos, os proprietários de terras e os converte em burguesia agrária,
subordinando ou atrelando seus interesses ao pólo dinâmico do processo
94
representado pela burguesia manufatureira. Quando a análise de Marx é
realizada, já não existem elementos feudais na Inglaterra, o que resta com uma
aparência de aristocracia é na verdade uma fração burguesa que vive das
“rendas” geradas pela propriedade territorial114. É verdade que, como vimos,
Marx apresenta a sociedade como dividida em três grandes classes: capitalistas,
latifundiários e trabalhadores, mas a confusão entre as duas primeiras é patente
na figura do proprietário de mina de carvão que só pode extrair alguma renda se
explorar pessoalmente sua propriedade. Desta forma, a disputa se dá entre
grupos burgueses, mas aprece como luta de classes na medida em que as
diferentes frações da burguesia aparecem para o conjunto da sociedade como
proprietárias de fatores de produção diferentes (o capital e a terra).
Deák confunde a origem ricardiana do tratamento da renda - expressa
pela renda diferencial, utilizada por Marx para apontar a base material que
sustenta a renda de monopólio - com sua origem última, a aparência do
processo com sua essência:
“Em suma: o conceito de renda no pensamento da economia clássica da
linguagem Smith-Ricardo-Marx é de que a renda é um pagamento de
transferência do excedente do trabalho entre duas classes: dos
capitalistas aos proprietários de terra, em troca de direitos de uso desse
recurso natural – dádivas da natureza – monopolizado por aqueles
últimos enquanto classe” (Deák, 2001: 61).
O acento da crítica é posto nas dádivas da natureza115, quando a origem
real da renda é o monopólio, o direito de propriedade. Afinal, para nos
aproximarmos do objeto do autor, qual a dádiva da natureza de um terreno
situado numa cidade? Nenhuma! Não há portanto diferença entre isto e uma
barreira protecionista na indústria. São diferenciais possibilitados pelo
monopólio. O fato é que a terra é necessária para a produção de alimentos e
como base à extração de outras matérias-primas, bem como serve de locus de
realização das atividades humanas de reprodução da vida num sentido amplo.
114 A análise do “verniz romântico” que recobre a transformação da aristocracia rural em
propriedade comercial rural é efetuada por Marx nos Manuscritos (Marx, 1985: 98-103 e 128-9).
115 A refutação da dádiva da natureza como fonte da renda da terra fica clara nos Manuscritos, quando Marx comenta os argumentos de Smith: “[que] provam claramente o equívoco dos conceitos na Economia Política, que transforma a fertilidade da terra numa propriedade do latifundiário” (Marx, 1985: 89).
95
Sua apropriação privada, realizada de forma prévia ao processo capitalista dota-
a de um preço, e este aparece sob a forma da renda da terra capitalizada. Mas os
problemas de Deák com as aparências não param por aí. Deák critica a forma
como Ricardo realiza o cálculo da renda da terra a partir de um produto ‘básico’
(o trigo), que é usado para determinar a renda da terra de outros produtos. Na
medida em que neste se determina a renda de forma ex post, enquanto nos
demais produtos tal determinação se faz ex ante, com base na renda que seria
obtida com a produção do produto básico, este valor se torna matematicamente
indeterminável, pois
“... com produtos diferentes produzidos sobre terras de qualidades
diferentes, cada qual com seu próprio preço de mercado, a renda
diferencial torna-se inconcebível, independentemente de haver ou não
pagamento pelo direito de uso da terra” (Deák, 2001: 64).
A simplificação ricardiana do preço do trigo, entretanto, serve apenas
para exemplificar a idéia de que se estabelece uma média de trabalho
socialmente necessário para a produção dos produtos116. Se esta abordagem gera
um problema de igualação de desiguais, este problema deve ser contemplado
pela teoria como faz Marx através do processo de abstração do trabalho como
uma substância social117.
Se voltarmos a Marx, vemos que as causas gerais principais que
aparecem como fonte da renda da terra seriam fertilidade e localização118, mas:
“A fertilidade, apesar de ser um atributo objetivo do solo, implica por
isto, economicamente, sempre uma relação – uma relação com o nível de
desenvolvimento alcançado pela agricultura nos aspectos químico e
mecânico – e por conseguinte se modifica com este desenvolvimento”
(Marx, 1984: III/8:837-8).
E, portanto, não se aplica ao solo urbano por definição, restando como
seu principal elemento a localização. A proposta de solução do problema dada
por Deák torna-se assim bis repetita quando, finalmente, volta a Marx 116 O próprio Ricardo (1985) assume, logo no primeiro capítulo de seu clássico, que a
utilização de um produto como o trigo ou o ouro é uma aproximação imperfeita devido à variabilidade do tempo de trabalho necessário à produção das mercadorias que servem como referência, e alerta para esta imperfeição de seus exemplos numéricos se retirada a hipótese coeteris paribus.
117 Para uma discussão mais completa do tema ver Paulani (1991) e Neto (2002). 118 Segundo Marx, também: 1) a distribuição dos impostos; 2) o desenvolvimento da
agricultura local e 3) a diferença de distribuição das terras entre arrendatários.
96
pretendendo negá-lo: “um exame mais atento revela que de fato nunca se pagou
por terra enquanto recurso natural, senão enquanto propriedade privada o que
é certamente um produto social e não um dom da natureza” (Deák, 2001: 65). O
que é exatamente a tese de Marx, o recurso natural ou a localização sendo
apenas a base material aparente que justifica esta renda de monopólio.
A idéia da propriedade fundiária como relação social pré-capitalista é
amplamente estudada por Engels (1981)119. O exemplo, sobre a necessidade de
relações capitalistas para a extração de mais-valia e o estabelecimento da renda
da terra, recontado pelo próprio Deák é o de Mr. Peel, que levou 3000 homens à
Austrália e em uma semana não tinha mais empregados, já que a abundância de
terras, ao não permitir seu monopólio, possibilita aos trabalhadores se negarem
ao assalariamento, retornando a uma situação pré-capitalista de homens livres
com acesso aos instrumentos de produção.
Como já vimos, Deák propõe que o preço da terra dentro do capitalismo
passa a ser determinado pelo preço de localização, pois, para o autor:
“...localização comanda um preço, ele próprio estabelecido no mesmo
mercado. Surge portanto um pagamento por localização, porque
localização é um valor de uso, e porque é comercializado como uma
mercadoria dotada de valor de troca. O pagamento pela localização
integra o preço de produção das mercadorias, junto com o pagamento
pelas outras condições de produção” (Deák, 2001: 90).
Como vimos, o valor de uso do solo não desaparece por este não ser
produzido pelo homem120. Por outro lado, a renda diferencial se aplicaria à
situação de monopólio ou oligopólio diferenciado com relação à localização, já
que tal monopólio diferenciado é relativo a outros pontos do espaço, mas isto
nos devolve à aparência do processo: se na agricultura é a produtividade do solo
que parece ser remunerada, na cidade é a localização que parece comandar o
valor do uso do solo. A localização é aqui a característica atribuída ao terreno
que vela a natureza social do espaço, e em especial do espaço urbano,
constituindo-se como o fetiche específico da terra como falsa mercadoria.
119 Mais do que sabidamente sempre em colaboração com Marx. 120 O que se pode questionar é se a renda da terra não esconde também um segundo
elemento, que torna a terra de pior tipo ainda assim dotada de preço e que não estaria justificada pela renda diferencial, argumento que Marx busca refutar através da renda diferencial do tipo II, como veremos adiante.
97
Voltamos assim à constatação de Marx de que a terra é natureza, e como
tal, sua existência é anterior ao homem e seu trabalho. Portanto, ela em si não
tem valor, seu valor de troca é uma aparência do processo que resulta desta ter
um preço por ser monopolizável e, portanto, poder ser alienada, e não por esta
ser de alguma forma produto de trabalho humano.
Deák prossegue:
“O valor de uso de uma localização é transformado incessantemente, e as
atividades econômicas individuais precisam, a seu turno, adaptar-se às
mudanças do espaço urbano, recorrendo sempre, de novo, ao mercado,
como ‘consumidores’ negociando localizações adequadas” (Deák, 2001:
92).
“A produção do espaço urbano é governado por leis diferentes daquelas
da produção de mercadorias, devido ao fato de o mesmo não poder ser
produzido enquanto valor de uso individualizado” (Deák, 2001: 93)121.
O problema nesta discussão é que a localização, como a tecnologia, é
mutável. Embora ambas sejam produto de trabalho humano, a localização em si
não agrega valor, como a tecnologia em si não o faz. A renda de localização é
definida pela economia de tempo para a realização de atividades humanas
relacionadas à proximidade de vias de comunicação ou sistemas de transporte
mais ou menos eficientes. É esta a base material sobre a qual se constrói a renda
diferencial que justifica a renda da terra no espaço urbano.
Por outro lado, agrega-se valor ao terreno ao construir-se um prédio, mas
seu uso pode não corresponder ao esperado. Vejam-se os problemas
encontrados para a realização dos investimentos pela Birmann e seus
concorrentes na área da Marginal Pinheiros em São Paulo122: criou-se um novo
locus de expansão da cidade e um produto que estava vinculado à localização
teoricamente privilegiada. Isto não impediu uma crise de realização de capitais!
O valor do edifício, enquanto objeto útil construído pelo homem, não está
relacionado à renda da terra sobre a qual ele é construído e este segmento do
mercado imobiliário vive há muito um excesso de oferta, ou seja, uma crise de
superprodução.
121 De fato, a questão da apropriação privada a partir de bens públicos de infra-estrutura
deve ser discutida de forma separada, embora, como veremos na parte III, não fuja às regras da teria do valor.
122 Para um estudo aprofundado deste processo ver Fix (2003).
98
Deixada ao sabor do mercado, a cidade é resultado da anarquia produtiva
tipicamente capitalista. O planejamento urbano por parte das autoridades
municipais ocorre no mesmo sentido da regulação do mercado para tentar
evitar o caos. As alterações do valor da renda da terra resultantes de melhorias
ou pioras do “entorno” são, portanto, alterações das qualidades desta
localização frente a localizações alternativas, constituindo-se claramente,
portanto, em renda diferencial, derivada dos investimentos em infra-estrutura,
normalmente de origem pública, que a tornam mais ou menos desejável por
parte de um consumidor específico123.
Finalmente, o autor analisa a percepção, pelo mercado, de que os preços
da terra são
“excessivamente altos”[...e que isto] “pode significar que o espaço urbano
esteja excessivamente diferenciado, ou, reciprocamente, que não esteja
suficientemente homogeneizado pela infra-estrutura, resultando numa
competição acirrada pelas localizações desejadas”(Deák, 2001:97)
O que está por trás de tal lógica da competição é justamente a idéia de
equilíbrio de mercado subjacente aos modelos de oferta e demanda que Deák
repudia em todo o seu trabalho. O exemplo dado pelo autor de um investimento
em infra-estrutura como gerador de uma nova renda peca por um dado simples:
seu resultado não pode ser aumentar o excedente global a menos que este seja
apropriado como renda diferencial do monopólio da localização, ou seja, renda
da terra, que o autor tanto quer pôr por terra. De outro modo, a exemplo da
difusão tecnológica, o resultado da difusão da infra-estrutura seria
simplesmente a economia de tempo de trabalho socialmente necessário para a
produção de mercadorias de forma linear (o que aumenta a riqueza social, mas
diminui o trabalho socialmente necessário), o que levaria a uma queda do preço
das mercadorias devido à baixa da renda da terra. Deste modo, a crítica de Deák
nos levou de Marx de volta a... Marx.
Regressamos assim à discussão sobre as formas de cálculo da renda
diferencial.
123 Embora o valor das vias e demais obras públicas não sejam um valor de uso
individualizável, sua apropriação na forma da renda da terra pode sê-lo. Voltaremos a esta discussão sobre bens públicos e bens privados, na parte III, em que discutiremos as relações do capital com o Estado.
99
3. Renda diferencial I e II. Renda Absoluta.
A renda diferencial é a aparência que justifica a renda auferida pelo
monopólio social sobre a terra. Sua essência, portanto, é a propriedade privada
sobre uma parcela do globo terrestre que se transforma, através do processo
de precificação, em falsa mercadoria. A existência de um preço para a renda da
terra faz com que Ricardo (1985) busque estabelecer a forma como se deriva a
renda da terra a partir da diferença entre a remuneração do capital em duas
terras distintas. Marx, a partir da idéia de renda diferencial, busca demonstrar
como é possível estender-se o conceito também para uma renda produzida pela
diferença de produtividade dos capitais envolvidos e, finalmente, estabelece a
idéia de que a generalização da relação concede mesmo às terras improdutivas
um preço. Preço este oriundo de uma renda absoluta, ou seja da naturalização
da remuneração pela posse da terra na sociedade capitalista.
Renda diferencial I
O montante de dinheiro que resulta da diferença (positiva) entre o ganho
médio auferido na produção de uma mercadoria e seu ganho individual é
denominado de superlucro ou renda diferencial (cf. Marx, 1984: III/8:830-1). A
renda não provém da elevação da produtividade absoluta da propriedade mas
apenas de uma produtividade relativa, e “a força natural não é a fonte do
superlucro, mas só uma base natural da mesma” (Marx, 1984: III/8:831). Pois,
“em si, a propriedade do latifundiário sobre a queda d’água não tem nada
a ver com a criação da mais-valia (lucro)” [...] “a propriedade da terra
não cria a parte de valor que se transforma em superlucro, mas apenas
capacita o latifundiário, o proprietário da queda d’água, a lograr que este
superlucro saia dos bolsos do fabricante e vá parar nos seus” (Marx,
1984: III/8:832).
Portanto, é a própria relação da propriedade, como uma relação social
cristalizada, naturalizada e reiterada, que gera o poder de transferir tal massa de
valor de mãos. Como veremos, o capital industrial obtém lucros excepcionais de
forma análoga com relação às marcas e patentes, estribado numa relação de
força mantida pelas regras do mercado.
100
“A propriedade da terra capacita o proprietário a apoderar-se da
diferença entre o lucro individual e o lucro médio; o lucro assim
embolsado, que se renova anualmente, pode capitalizar-se e aparecer
então como preço da própria força natural” (Marx, 1984: III/8:832).
O mesmo raciocínio vale para os monopólios industriais e comerciais
sobre forças socialmente constituídas, mas igualmente monopolizáveis. Desta
forma, a tecnologia, a marca, a capacidade de produção em grande escala
quando mantidas as condições sociais de produção de concorrentes menores,
aparecem como rendas monopolistas que aparecem também num primeiro
momento como rendas diferenciais por sua natureza. No caso de Sociedades
Anônimas, a rentabilidade transfere-se para as ações na forma de dividendos e
no aumento do preço das próprias ações, borrando desta forma as fronteiras
entre o lucro e as rendas na forma do capital fictício (no caso de empresas de
capital limitado, a empresa adquire um “valor” extra de “capital intangível” para
fins de contabilidade). Este processo mantém a taxa de retorno do capital
fictício próxima da média, mas faz com que o preço nominal da empresa se
descole do valor real do investimento, mascarando assim a relação de punção
exercida sobre a mais-valia geral produzida pelo capital monopolista.
Dificilmente encontraremos melhores exemplos deste processo do que as
empresas “ponto com”.
Embora escrevesse pensando na renda da terra, Marx analisa a diferença
de retorno entre dois capitais distintos, quando nos diz que:
“o super lucro, quando é normal e não produzido por circunstâncias
fortuitas que ocorrem no processo de circulação, se gera sempre como
diferença entre o produto de duas quantidades iguais de capital e
trabalho, e este super lucro se transforma em renda do solo quando se
empregam duas quantidades iguais de trabalho e capital em superfícies
de terreno iguais e com resultados diferentes” (Marx, 1984: III/8:835)124.
Marx entende assim que a renda da terra expressa um valor extra que a
sociedade, como um todo, paga acima do que seria o custo médio de produção
dos produtos agrícolas. Uma parcela do valor adicionado que é subtraída da
124 Assim sendo, justifica-se a afirmação de Ricardo: “tudo quando faça diminuir a
desigualdade no produto obtido na mesma terra ou em terras novas, tende a reduzir a renda; e tudo quanto faça aumentar tal desigualdade, produz necessariamente um efeito oposto e tende a eleva-la” (Ricardo, Princípios:74, apud Marx, 1984: III/8:836).
101
tendência geral de nivelação do lucro médio. Assim, “o preço da parte inculta da
terra está determinado pelo preço da parte cultivada, e isto é só um reflexo do
investimento de capitais e de seus resultados nas terras cultivadas” (Marx, 1984:
III/8:858).
Não se trata efetivamente de um valor somado ao total extraído de mais-
valia, mas sim, de uma massa de mais-valia subtraída do volume total extraído
dos trabalhadores que deixa de entrar no cálculo da média do lucro e que passa,
aparentemente a “remunerar” os “dons” da terra e a constituir uma categoria de
renda “à parte” do processo produtivo. Do ponto de vista do empreendedor
capitalista, ele irá somar os aluguéis como “custo de produção”, embora estes
sejam na verdade uma dedução de sua massa de mais-valia possibilitada pela
relação de posse do terreno nas mãos de outro proprietário.
Renda Diferencial II
A idéia de um segundo tipo de renda diferencial, é introduzida por Marx
no capítulo XL do terceiro volume de “O Capital”. Esta é entendida como o uso
intensivo de um terreno através do emprego de mais capital do que a média
utilizada nos investimentos de mesmo tipo. Tendo a renda diferencial como sua
origem histórica, a renda diferencial de tipo II soma à diferença da fertilidade as
diferenças na distribuição de capital e do acesso ao crédito entre os diferentes
arrendatários, resultando numa nova forma de renda diferencial, que como
veremos é a própria forma de diferenciação do capital monopolista125.
O aumento do investimento implica numa redução da taxa de lucro e
num aumento da renda diferencial II ao mesmo tempo126. Deste modo, para o
capitalista é interessante investir novo capital num terreno mesmo que este não
125 “Segue sendo o solo o que, com igual investimento de capital, apresenta uma
fertilidade diferente, só que, neste caso, o mesmo solo cumpre, para um capital sucessivamente investido em diferentes porções, a mesma tarefa que desempenham em I [na renda diferencial de tipo I] diferentes tipos de solo para diferentes partes do capital social, de igual magnitude, investidos neles” (Marx, 1984: III/8:870).
126 “Se permanecem constantes o preço de produção e as diferenças, na renda diferencial I pode aumentar, com a renda global, a renda média por acre, ou a taxa média de renda sobre o capital; mas o termo médio é só uma abstração. O verdadeiro nível da renda por acre ou calculada sobre o capital segue sendo o mesmo.” (Grifo nosso.) “Em troca, sob os mesmos pressupostos, o nível da renda, medida por acre, pode aumentar ainda que a taxa de renda, medida segundo capital investido, permaneça constante” (Marx, 1984: III/8:876) Marx expõe em seguida os casos particulares para preços de produção constantes, decrescentes e crescentes, nos capítulos XLI a XLIII.
102
gere mais lucro extraordinário, ou seja, renda, desde que continue gerando o
lucro médio (cf. Marx, 1984: III/8:928-9). Investimentos de capitais crescentes
podem gerar uma situação na qual, dado o custo elevado das últimas parcelas
produzidas a renda hipoteticamente desapareça.
“Os sobre-lucros e os sub-lucros se compensam. Por isto desaparece a
renda. Mas de fato isto só é possível por que os elementos da mais-valia
que formam o sobre-lucro ou renda entram agora na formação do lucro
médio” (Marx, 1984: III/8:931).
Tendo em vista a possibilidade de aumentar a produção com queda de
produtividade num solo de melhor qualidade esta pode ser mais lucrativa para o
capital do que a ampliação da produção para novos solos de pior qualidade.
Assim sendo, ocorreria uma ampliação da renda da terra no solo de maior
fertilidade e o aumento do preço faria com que o solo mais pobre também
passasse a receber renda (cf. Marx, 1984: III/8:939-41). Um aumento da
produtividade que se dê de forma crescente nas terras de pior qualidade, que
não se dê de forma simultânea em todas as terras pode gerar a oportunidade
para que os latifundiários se apropriem da diferença de produtividade como
renda e impedindo a queda dos preços para a nova média.
Na verdade, tal disputa acaba por ser resolvida através de uma disputa
direta de poder, já que as entradas de produtos agrícolas de fontes externas às
economias desenvolvidas, tendem a rebaixar os preços e com estes a parcela da
renda da terra no volume do produto127. Ao aprofundar-se na forma de cálculo
diferencial, Marx se perde nas voltas da aparência do processo que constitui a
renda da terra como categoria à parte ocultando seu caráter de lucro
monopolista, generalizável a outras relações. Esta, todavia, é a forma pela qual o
pagamento pelo uso da terra se generaliza no processo histórico como pode ser
visto em diversos autores128.
Na medida em que um investimento de capital na terra altere sua
substância e produtividade, através da construção de curva de níveis ou
qualquer outro melhoramento do gênero que impliquem em transformação de
parcelas desta terra em capital e instalações, teremos uma situação em que a
127 Como vimos acima, o exemplo dado por Deák (2001) para “refutar” o conceito de
renda da terra, presta-se na verdade para o entendimento de como se dá a disputa entre as frações burguesas pela apropriação do excedente.
128 Veja-se por exemplo Arrighi (1996) e Dobb (1983).
103
lucratividade derivará diretamente do capital e não na forma da renda
diferencial. Isto também vale para o solo urbano. Entretanto, a lucratividade
possibilitada por tais benfeitorias será disputada pelo capitalista e pelo
proprietário da terra no momento de renegociação do contrato, ainda que o
capitalista tenha arcado diretamente com as obras de melhoria. Ou seja, Marx
deixa claro que as fontes que justificam a renda monopolista tanto podem ser
naturais (a localização ou a produtividade do solo) como sociais (resultados de
investimento de capitais).
A disputa que se estabelece ultrapassa a dinâmica da base econômica,
torna-se uma luta intestina entre as frações capitalistas, que leva à
determinação do valor a ser atribuído à “renda da terra” ao campo do político,
por exemplo quando se estabelecem impostos diferenciados sobre esta fonte, ou
quando se pressiona o Estado no sentido de garantir a importação de produtos
agrícolas mais baratos pois, como já vimos, “a renda da terra é estabelecida
mediante a luta entre arrendatário e proprietário” (Marx, 1985: 89).
Renda Absoluta
Chegamos destarte à idéia de renda absoluta, que é a capacidade da pura
relação de propriedade justificar a cobrança de uma renda, ainda que pequena,
pelo uso do pior tipo de terra, ou melhor dizendo, de qualquer tipo de terra. Na
verdade “a lei da renda diferencial, enquanto renda diferencial é independente
por completo da justeza ou incorreção daquele pressuposto” [segundo o qual o
preço é determinado pelo pior tipo de terra] (Marx, 1984: III/8:951), a renda
diferencial, em seus dois tipos, é apenas a base material aparente que justifica
socialmente a cobrança da renda de monopólio pelo proprietário de terra.
Marx propõe as seguintes formulações para o preço de custo das
mercadorias:
ilKKP ecv ,129 onde não há renda
ilKKP ecv ' +d, sendo que P´ contém renda. Como P > P’ e P é o
preço operante no mercado, então P – P’ = d, a renda diferencial ou sobre lucro.
129 Onde P é o preço, Kc e Kv são os capitais constante e variável, le o lucro empresarial e
i a taxa de juros. Esta relação também pode ser escrita na forma P = k + g, onde k são a soma dos capitais constante e variável e g a massa total de lucros (lucro empresarial + juros).
104
Historicamente, entretanto, mesmo a pior parcela de terras gera alguma renda e
P será P + r, onde r advém de um sobre preço. Os demais tipos de solo
seguiriam somando suas parcelas de d a r para compor a renda total. Logo,
“o monopólio da propriedade da terra, a propriedade imóvel como
barreira do capital, está pressuposta não obstante na renda diferencial, já
que sem este monopólio o sobre-lucro não se converteria em renda da
terra e não cairia em poder do latifundiário em lugar de ficar nas mãos
do arrendatário. E a propriedade da terra como barreira persiste
inclusive ali onde a renda desaparece enquanto renda diferencial, ou
seja, no tipo de solo A [o pior]” (Marx, 1984: III/8:954-5, grifo nosso).
O monopólio sobre a propriedade da terra possibilita desta forma que os
latifundiários imponham um preço que se descola do custo de produção,
constituindo-se aparentemente num “tributo” pago em primeira instância por
um capitalista individual, mas que se subtrai do total da mais-valia extraída pelo
conjunto da classe capitalista. Uma vez constituído em prática social, tal renda
se torna independente de sua origem, naturalizando-se como relação social:
“[Pois] se produz o contrário [da livre concorrência e fluxos de capitais] e
o capital se depara com um poder alheio ao qual só pode superar em
forma parcial ou que não pode superar de todo, e que restringe seu
investimento em determinadas esferas particulares de produção, que só a
permite sob condições que excluem total ou parcialmente essa nivelação
geral da mais-valia para formar o lucro médio, se origina obviamente
nestas esferas da produção um superlucro em virtude de seu preço de
produção, superlucro que poderia converter-se em renda e se
autonomizar enquanto tal com respeito ao lucro” [...] “Assim, enfrenta o
latifundiário ao capitalista” (Marx, 1984: III/8:968).
Logo, independentemente de sua origem diferencial, a renda da terra, ou
a renda de monopólio sobre o uso da terra, converte-se numa massa de trabalho
social pago ao latifundiário como se fosse um tributo da sociedade a seu poder
de monopólio sobre a terra, uma vez que:
“Apenas a renda iguale o excedente do valor por cima do preço de
produção, toda esta parte da mais-valia excedente por cima do lucro
médio ficará subtraída a tal nivelação. Mas não importa que esta renda
absoluta iguale a todo excedente do valor por cima do preço de produção
105
ou só seja igual a uma parte do mesmo; os produtos agrícolas se
venderiam sempre a um preço monopolista, não por que seu preço se
encontre situado acima de seu valor, mas por que seria igual a ele ou
estaria situado abaixo do mesmo, mas acima de seu preço de produção”
(Marx, 1984: III/8:969).
O preço de monopólio, ao invés de ser composto por P=k+g (onde o
preço de produção é igual à soma do capital despendido com o lucro médio) é
dado por P=k+g+d, onde a renda diferencial não é incorporada ao rateio do
lucro médio e somada diretamente ao lucro do capital com um componente
monopolista. Sendo d:
“o excedente da mais-valia gerada por esse capital por cima do que lhe
destina a taxa geral de lucro” [...] “Se infere que só por causa do
monopólio da propriedade do solo o excedente de valor dos produtos
agrícolas pode converter-se por cima de seu preço de produção num fator
determinante de seu preço geral de mercado. Por último, se deduz que
neste caso o encarecimento do produto não é a causa da renda, mas que a
renda é causa do encarecimento do produto” (Marx, 1984: III/8:970).
Marx desenvolve, desta forma, o modo como o preço de monopólio é
instituído ao lado da concorrência capitalista, funcionando como uma punção
sobre a massa total de mais-valia produzida.
Para Marx, estas são as formas “normais” da renda – devemos dizer aqui,
das rendas oriundas de um monopólio sobre um componente da produção -,
pois
“fora das mesmas [as duas formas da renda diferencial e a renda
absoluta] a renda só pode basear-se num preço de monopólio
propriamente dito, que não está determinado pelo preço de produção
nem pelo valor das mercadorias, mas sim pelas necessidades e solvência
dos compradores, e cuja consideração deve efetuar-se na teoria da
competição, na qual se investiga o movimento real dos preços de
mercado” (Marx, 1984: III/8:971).
Este “preço de monopólio propriamente dito”, entretanto, é o preço não
formado, o preço da exceção à regra, o preço dado quando desaparece a regra
“normal” que vincula os preços de monopólio das mercadorias a sua origem
dentro do processo de valorização do valor. Só faz sentido em situações
106
excepcionais como o de um estoque de alimentos numa cidade isolada pela
neve. Embora neste caso o limite do preço de monopólio seja o “apetite do
mercado”, este apetite não pode ultrapassar o volume total de trabalho
incorporado à circulação pelo capital social global – ou o volume total de
riqueza socialmente reconhecida naquele determinado espaço geográfico, uma
vez que não há como exceder o volume total dos valores produzidos para a
realização das transações no mercado sem gerar um processo inflacionário que
corroeria o próprio valor do dinheiro.
Fica claro assim que, enquanto Marx parte do princípio dos imperativos
de concorrência para explicar o funcionamento dos mercados industriais, ao
analisar a produção agrícola e deparar-se com a barreira do monopólio sobre a
terra, utiliza a categoria de renda da terra como a forma em que aparece a renda
de monopólio, que justifica o preço de aluguéis e a rentabilidade das minas.
Desta forma, enquanto o aluguel é o pagamento pelo espaço físico da casa
(capital) - dentro dele encontra-se subsumida uma parcela de renda da terra -, e
a renda das minas para efeito deste raciocínio é considera igual à renda
agrícola130.
“Na medida em que a renda agrícola propriamente dita seja mero preço
de monopólio, este só pode ser pequeno, do mesmo modo que só pode
ser pequena a renda absoluta sob condições normais, qualquer que seja o
excedente do valor do produto por cima de seu preço de produção.
Portanto, a natureza da renda absoluta consiste no seguinte: capitais de
igual magnitude em esferas distintas da produção produzem, segundo
sua diversa composição média, com a mesma exploração do trabalho,
diferentes massas de mais-valia. Na indústria, essas diferentes massas de
mais-valia se nivelam para constituir o lucro médio, e se distribuem
uniformemente entre os diferentes capitais como entre partes alíquotas
do capital social. A propriedade do solo, enquanto a produção necessita
terra, tanto para agricultura como para a extração de matérias-primas,
obstaculiza esta nivelação dos capitais investidos na terra e intercepta
uma parte da mais-valia” (Marx, 1984: III/8:980).
130 “Esta renda absoluta desempenha um papel mais importante ainda na indústria
extrativa propriamente dita” (Marx, 1984: III/8:981). E seu caso mais dramático é o do petróleo, como discutiremos nos próximos capítulos.
107
É esta confusão entre a aparência (da potência produtiva social ou
natural que aparentemente agrega valor) e a essência (do monopólio
socialmente constituído sobre dita força natural ou social necessária à
produção) que nos serve de ponto de partida para a discussão das demais
rendas de monopólio. Aparentemente “é a própria propriedade do solo que
gera a renda” (Marx, 1984: III/8:960). A renda é paga pelo capitalista ao
proprietário de terras na medida em que tal direito de propriedade bloqueia o
investimento produtivo – o uso da terra pelo capitalista - caso não seja
remunerado131. Deste modo, um vinho raro será vendido com um sobre lucro
substancial e aparentemente “neste caso o preço de monopólio cria a renda”
(Marx, 1984: III/8:986). É necessário que tenhamos claro, no entanto, que o
volume de tal renda estará sempre limitado pela riqueza adrede produzida e/ou
acumulada, uma vez que estamos diante de um processo de troca desigual
dentro de uma somatória finita de trabalho objetivado em mercadorias.
Podemos concluir disto que o rentismo é uma expressão anterior à
formulação de Lênin sobre o tema das classes parasitárias, sendo expressão do
fato de que se consumou a separação entre o capitalista produtivo e o mero
proprietário do capital (entendido como o monopólio sobre uma parcela da
riqueza social cristalizada) – o que não impede que os dois sigam sendo a
mesma pessoa – pois
“A renda da terra foi [...] demolida como renda da terra, pois em
oposição ao argumento dos fisiocratas de que o latifundiário é o único
produtor verdadeiro, a Economia Política moderna demonstrou que o
latifundiário, enquanto tal, é o único rentista totalmente improdutivo”
(Marx, 1985: 168).
Veremos agora como ao latifundiário, juntaram-se outras categorias de
rentistas através da instituição de monopólios sobre outras forças produtivas de
caráter social.
131 “O fato de que seja só um título de um número de pessoas sobre a propriedade do
globo terrestre o que as capacita para apoderar-se de uma parte do sobre-trabalho da sociedade na qualidade de tributo, e de apropriar-se dele numa medida que cresce constantemente com o desenvolvimento da produção, é algo que fica oculto pela circunstância de que a renda capitalizada – ou seja, precisamente este tributo capitalizado – aparece como preço do solo, e que por fim este passa a ser vendido como qualquer outro artigo comercial” (Marx, 1984: III/8:986-7).
108
Capítulo 4 - Royalties, marcas e outras rendas.
Neste capítulo desenvolveremos a extrapolação da teoria marxiana de
preços de monopólio às potências produtivas de origem social como a tecnologia
e as marcas. Veremos também como estas rendas correspondem a um processo
histórico no qual o capital coloniza com sua lógica estes setores da vida social (a
produção científica e cultural) estabelecendo monopólios sobre saberes que, até
então, eram considerados como propriedades coletivas pelo conjunto da
humanidade.
1. A mais-valia extra ou superlucro como renda diferencial
Está contido no raciocínio de Marx, em particular no capítulo XIV do
tomo I, que a introdução de inovações geram um “lucro extraordinário” advindo
da diferença de produtividade entre o capital inovador e a média social do setor
em que ele atua. Este raciocínio é retomado depois no capítulo X do tomo III, na
discussão sobre a nivelação da taxa de lucros pela competição. Segundo Marx,
“quando a oferta das mercadorias ao valor médio, quer dizer, ao valor
médio da massa colocada entre ambos extremos, satisfaz a demanda
habitual, as mercadorias cujo valor individual se encontram por baixo do
valor de mercado realizam uma mais-valia extraordinária ou super lucro,
enquanto que aquelas cujo valor individual se encontram por cima do
valor de mercado não podem realizar uma parte da mais-valia contida
nelas” (Marx, 1984: III/6:226)132.
132 Grifos nossos. Segue deste raciocínio que alguém perde na soma zero. O apetite do
mercado tem limites e daí a crise de superprodução.
109
A definição de tal “lucro extraordinário”, como vimos no capítulo 2,
corresponde à definição de lucro proposta posteriormente por Schumpeter
(1982). Tanto Marx, quanto Schumpeter apenas se referem a um pico de
rendimentos que, fugindo da média, obriga os demais capitalistas do setor a
correr atrás da inovação. Enquanto o capitalista inovador é o único a produzir
na nova condição, enquanto esta não se socializou (isto é, tornou-se a norma do
mercado), temos claramente um caso de renda diferencial133, apropriada pelo
capitalista por empregar uma mesma massa de capital de forma mais eficiente
que os demais capitalistas.
A interpretação deste processo variará de acordo com a forma como esta
renda diferencial será absorvida pelo mercado. Numa situação de concorrência,
em que a demanda não esteja plenamente atendida, a tendência é a de formação
de um superlucro oriundo da diferença de produtividade entre o capital
inovador e a produtividade de seus concorrentes. Esta é a situação clássica de
superlucros de origem diferencial: a sociedade entende como situação média de
produção a imperante nas demais unidades produtivas (a terra de pior
produtividade) e, deste modo, o capital inovador pode auferir este ganho
diferencial advindo da maior intensidade de exploração de seus trabalhadores.
Nesta situação,
“um aumento na força produtiva média, social,do trabalho, não leva a
uma maior produção de valor por unidade de tempo, mas apenas à maior
produção de valores de uso; contudo, um aumento localizado, não
generalizado, na força produtiva do trabalho, que faz as mercadorias
produzidas por este trabalho de maior produtividade (que atua como
trabalho potenciado) terem valores individuais inferiores aos valores
sociais, leva à produção de mais valor por unidade de tempo e, portanto,
à produção de mais-valia extra. A origem da mais-valia extra, assim, está
na existência de condições de produção superiores às condições médias,
133 “...o tempo de trabalho socialmente necessário é determinado para uma esfera da
produção, com a fixação do valor de mercado a partir de uma diversidade de valores individuais. Fazer esta distinção tornou-se importante para o tratamento da concorrência entre os capitais e, portanto, para definir a mais-valia extra e o superlucro” (Neto, 2002: 213).
“Assim, a mais-valia extra se define por uma diferença (positiva) entre o valor social e o individual; o superlucro, que é simplesmente o lucro acima do lucro médio, tanto pode surgir da mais-valia extra quanto de preços de mercado acima dos preços de produção para as mercadorias vendidas” (Neto, 2002: 213-4).
110
que ‘potenciam’ a capacidade do trabalho de criar valor” (Neto, 2002:
215).
Numa situação de concorrência esta é uma situação instável só se
sustentando se mantida a relação de repartição do mercado entre os
competidores, pois tão logo haja a ameaça de uma crise de realização do capital
(representada por um encalhe das mercadorias), o competidor que estabeleceu
o ganho diferencial sinalizará para a sociedade a possibilidade de rebaixamento
do tempo de trabalho médio socialmente necessário para a produção desta dada
mercadoria através do rebaixamento de seus preços. Este rebaixamento dos
preços obrigará os competidores a adotar a nova técnica de produção sob a pena
de serem alijados do mercado pelo competidor inovador e, assim, se
restabelecerá a média de lucratividade com o novo padrão de produção servindo
como referência.
Ao rebaixar seu preço, aparentemente o inovador estaria dividindo seu
“lucro de inovação” com os consumidores, quando na verdade estará buscando
garantir a realização da massa de mais-valia extraída por seu capital, pois, se o
mercado não se encontra em equilíbrio, sua preocupação, dentro dos marcos da
competição capitalista é evitar ser eliminado e, ao mesmo tempo buscar
eliminar os concorrentes.
A situação é distinta, entretanto, se o ganho diferencial obtido por um
dos competidores se torna monopolizável. A exemplo do processo pelo qual o
proprietário da terra retira do restante da humanidade a possibilidade do uso de
uma parcela do solo, determinadas potências sociais de produção como a
tecnologia e as marcas tornaram-se monopolizáveis através da mesma força que
em princípio estabeleceu o sagrado direito à propriedade privada: o direito
positivo. Esta possibilidade de cristalização da renda diferencial representada
pelo superlucro na forma de rendimentos próprios, encarnáveis nas forças
sociais de produção, permitem aos capitalistas subtrair esta massa de valores do
processo de nivelação, constituindo, a exemplo da renda da terra, uma renda
monopolista.
Tais rendas, embora oriundas de ganhos diferenciais, estabelecem um
processo de descolamento da rentabilidade dos capitais monopolistas daqueles
situados em setores concorrenciais, implicando na transferência de mais-valia
socialmente constituída dos setores concorrenciais – o que inclui o restante da
111
indústria, no caso de um único competidor inovador - para os setores
monopolistas.
Assim, a interpretação de Neto (2002), citada acima, corresponde ao
modo como o processo se dá no setor concorrencial quando há a possibilidade
de disseminação da nova tecnologia. Embora à primeira vista tal leitura pareça
contraditória com a proposta por Mandel (1982), isto não é verdade, pois se “a
mais-valia extra se explicaria pela transferência de valor produzido pelos
trabalhadores das empresas que têm condições de produção mais desfavoráveis
para os capitalistas das empresas que têm condições mais favoráveis” (Neto,
2002: 216) isto se dá por que esta é a forma como ocorre o processo numa
situação em que o superlucro é transformado em renda de monopólio. Antes, a
interpretação de como se dá o processo na situação concorrencial descreve como
se consubstancia a base material a partir da qual a renda diferencial se
transforma em renda ao ser monopolizada. Tal transferência de valor,
entretanto, não se dá internamente ao setor, mas no âmbito do capital social
total, através do sistema de trocas desiguais a partir dos preços exposto pelo
próprio Neto (2002).
Neto insiste em sua argumentação contra a idéia de que a interpretação
da mais-valia extra se daria através de transferências de valor134, mas seu
argumento entra em contradição com a exposição de Marx sobre o tema pois,
“se a massa de mercadorias produzida é maior do que as que encontram
saída pelos valores médios de mercado, as mercadorias produzidas sob as
melhores condições regulam o valor de mercado. Se elas podem ser
vendidas, por exemplo, de maneira total ou aproximada pelo seu valor
individual, podendo suceder que as mercadorias produzidas sob as piores
condições acaso nem sequer realizem seus preços de custo, enquanto que
as do tipo médio só podem realizar uma parte da mais-valia contida
nelas. O que se disse aqui sobre o valor de mercado se aplica ao preço de
produção, na medida em que este haja assumido o lugar do valor de
134 “Mas o argumento mais importante contra a interpretação da mais-valia extra como
decorrente de transferências de valor é que ela implica que mercadorias iguais têm no momento da produção valores diferentes. As mercadorias produzidas pelas empresas de piores condições, custando mais horas de trabalho, representariam maior produção de valor, e as produzidas em melhores condições, custando menos horas, representariam menor produção de valor. Estes valores diferentes seriam igualados por uma transferência de valor no momento da circulação” (Neto, 2002: 218-9).
112
mercado. O preço de produção está regulado em todas as esferas, e o
está, do mesmo modo segundo as circunstâncias particulares” (Marx,
III/6: 227).
Ou seja, o momento em que o lucro extraordinário se manifesta como
uma mais-valia extra se limita ao momento da introdução da inovação no
processo produtivo, momento este no qual o novo tempo de trabalho
socialmente necessário, que será rebaixado pela introdução da nova condição de
produção, ainda não se disseminou como medida social. O próprio processo de
igualação da medida social discutido por Neto se encarrega de estabelecer este
novo valor como média social e, neste caso, segue ocorrendo uma rentabilidade
diferenciada dos capitais concorrentes até que o novo padrão produtivo se torne
homogêneo.
Neto comete dois equívocos em sua análise135. O primeiro está
relacionado ao nível de abstração em que discute o problema, já que ao estudar
as diferenças entre os custos das empresas estamos diante de trabalhos
concretos que objetivam por definição valores diferentes. A comparação entre
trabalho concreto e abstrato (social médio necessário homogeneizado e
normalizado) implica sim na transferência de valores, como ele mesmo
desenvolveu de forma clara no capítulo 4 e na conclusão de sua tese. O segundo
equivoco é imaginar o sistema concreto como homogêneo (a homogeneização é
tendencial e uma necessidade para o raciocínio de nivelação de preços em nível
abstrato): a competição tende a igualar a taxa de lucro mas se uma empresa
produz de forma mais eficiente que as demais seu lucro será maior, porque o
preço de mercado do produto será igual, mas socialmente médio. Daí que, na
análise de Marx, outra empresa necessariamente terá seu lucro reduzido,
respeitado o princípio do valor total agregado corresponder à somatória das
rendas distribuídas. Na verdade o próprio Neto corrobora com este argumento
quando diz que:
135 “... mercadorias que têm idêntico valor de uso objetivariam quantidades distintas de
trabalho abstrato, embora na venda realizem o mesmo quantum de valor. Ora, esta concepção vai contra toda a lógica da formação do trabalho abstrato, explicitada por Marx nos dois primeiros capítulos do Livro I de O Capital, e que analisamos nos Capítulos 1 e 3 deste trabalho. Como vimos na seção 3.3.2. do Capítulo 3, não existe nenhum mecanismo que ‘conta’ o trabalho abstrato de forma independente do processo de troca; é a partir da igualação dos produtos do trabalho que se faz a igualação dos trabalhos. Não faz sentido dizer que, para Marx, valores de uso iguais podem representar quantidades de trabalho abstrato objetivado, isto é, valores, diferentes” (Neto, 2002: 219).
113
“Os preços de mercado são os preços verificados empiricamente, que
flutuam em torno do preço de produção. Os desvios dos preços de
mercado em relação aos valores expressam sempre uma transferência de
valor no momento da venda (ou seja, da circulação). Estes desvios podem
ser permanentes, quando há algum tipo de monopólio ou quando, como
ocorre na agricultura136, é possível obstaculizar a redução dos valores aos
preços de produção. Ou podem ser transitórios, e sua importância não é
menor por isto. Uma das maneiras pelas quais os capitais que concorrem
podem conseguir ganhos extraordinários é esta, obtendo valor extra na
circulação a partir de desvios dos preços de mercado com relação aos
preços de produção” (Neto, 2002: 229).
De qualquer forma, segue válida a conclusão do autor sobre os
mecanismos de troca desigual, sejam motivados por diferenças no âmbito da
produção (dentro de situações concorrenciais), sejam por ganhos na circulação
(motivadas pela subtração de valores à nivelação pela média na produção):
“As diferenças entre valores individuais e valores sociais levam a
intercâmbios desiguais de quantidades de trabalho concreto (quando
um trabalho de força produtiva superior à média é contado como maior
quantidade de trabalho); as diferenças entre preços e valores implicam
intercâmbio desigual de valor, isto é, de trabalho abstrato” (Neto, 2002:
232-3)137.
Como vimos indiretamente através da argumentação de Neto sobre as
trocas desiguais, as leis a partir das quais Marx calcula a massa e a taxa de mais-
136 E, portanto, com um monopólio embutido. 137 Ou de forma mais extensa: “O intercâmbio desigual de valor decorre de desvios entre
preços e valores; quem perde, perde porque perdeu ao vender seus produtos ou ao comprar produtos alheios, ou porque perdeu mais (por um desvio do preço maior) quando vendeu do que ganhou quando comprou. Já no caso da mais-valia extra, quem perde, isto é, quem não consegue realizar todo o valor que produziu individualmente, perde porque o trabalho que produz seus produtos é menos produtivo que o trabalho médio na sociedade e, portanto, produz socialmente menos valor no mesmo espaço de tempo. A perda no caso do intercâmbio desigual de valor é uma perda na circulação, ou seja, no processo de intercâmbio. A perda no caso da mais-valia extra é uma perda na produção, isto é, decorrente de condições de produção inferiores à média social; não há perda no processo de intercâmbio, este apenas sanciona a perda já sofrida. A mesma diferença existe, naturalmente, para os ganhos nos dois casos.
As duas diferenças podem ser melhor entendidas a partir da caracterização do trabalho abstrato como uma substância social. Diferenças entre valores individuais e valores sociais dizem respeito à diferenciação na capacidade de produzir esta substância social; diferenças entre preços e valores dizem respeito à apropriação diferenciada desta substância social na circulação” (Neto, 2002: 233).
114
valia138 pressupõem uma organização de mercado próxima da idéia de
concorrência perfeita, o que está longe de corresponder à realidade, em
particular a partir do fim do século XIX. Faz-se necessário em decorrência disto,
estudar os efeitos da concentração e centralização de uma parcela dos mercados
sobre tais leis, uma vez que como veremos, a massa de mais-valia apropriada
pela empresa deixará de ser determinada apenas pela remuneração média sobre
a magnitude do capital, embora para efeitos do capital fictício tal regime de
exploração mantenha esta aparência.
Do ponto de vista da contabilidade capitalista foram criados ao longo dos
últimos decênios alguns conceitos bastante criativos para denominar este poder
de mercado, como a idéia de capital “intangível” para descrever marcas e
patentes que permitem alterar o valor das empresas no mercado acionário, ou o
de goodwill – a clientela – para explicar a diferença entre o preço pago pelas
ações (quando compradas por outra empresa) e a equivalência patrimonial, ou
seja, o preço corrente do capital fixo.
Numa primeira aproximação contábil estaríamos diante da escrituração
dos custos de registro de marcas e patentes e de gastos com publicidade,
entendidos como custos de tal capital intangível, entretanto, muitas vezes tais
“marcas e patentes” e as respectivas rendas esperadas são reavaliados
contabilmente a “valor de mercado”139, embutindo no “valor do ativo” da
empresa o preço capitalizado esperado do “rendimento” de tal capital fictício.
Assim, do ponto de vista da aparência do processo, o rendimento capitalizado
do monopólio é confundido com os custos de desenvolvimento e registro das
marcas e patentes e aparecem, desta forma, como capital, a exemplo do valor do
solo.
138 Primeira lei: “a massa de mais-valia produzida é igual à magnitude do capital variável
adiantado multiplicada pelas taxas de mais-valor, ou então se determina pela razão composta entre o número de forças de trabalho exploradas pelo mesmo capitalista e o grau de exploração de cada força de trabalho” (Marx, 1984: I/1:368).
Segunda lei: “O limite absoluto da jornada de trabalho média, que por natureza será sempre de menos de 24 horas, constitui uma barreira absoluta para ressarcir o capital variável aumentando a taxa de mais-valia, ou a restrição do número de trabalhadores explorados aumentando o grau de exploração da força de trabalho” (Marx, 1984: I/1:370).
Terceira lei: “quanto maior seja o capital variável tanto maior será a massa de valor e o mais-valor produzidos. [...] Dadas a taxa de mais-valia e o valor da força de trabalho, as massas de mais-valia produzidas estarão em relação direta às magnitudes do capital variável adiantado” (Marx, 1984: I/1:371).
139 Não faremos aqui uma discussão sobre as práticas contábeis. No caso brasileiro a referência básica de interpretação da lei de forma técnica é dada por Iudícibus et alli (1995).
115
Discutiremos a seguir como é justamente o “lucro extraordinário”, a
mais-valia extra (obtidos através dos ganhos auferidos com base nos ganhos
diferenciais), que compõe a base material das rendas de monopólio sobre as
forças sociais de produção (que se consubstanciam nos royalties e licenças), da
mesma forma como a “produtividade natural do solo” e a localização servem de
base material à renda da terra.
1.1. Patentes de produtos e tecnologia produtiva.Os royalties.
A lei do valor impõe aos proprietários do capital a necessidade de
constante inovação com vistas à obtenção de vantagens competitivas visando a
produção de mais valores de uso num espaço sempre menor de tempo. Assim, o
mote da competição capitalista sempre foi e continuará sendo a busca de novas
formas de organização da produção, objetivando o que M. Santos (2000)
denominou de aprofundamento da competitividade. Num quadro concorrencial
(sejam pequenos ou grandes os capitais envolvidos) as empresas buscam
permanentemente a obtenção de vantagens que se consubstanciem em lucros
diferenciais frente a seus concorrentes.
Marx trata diretamente da introdução da tecnologia numa só fábrica no
capítulo X do primeiro volume de O Capital, onde sublinha que este processo
permite a obtenção de uma mais-valia “extra”, o superlucro, que se origina da
diferença entre o custo de produção da mercadoria pelo inovador e seu custo
social médio vigente no mercado. Marx denomina a esta diferença de mais-
valia relativa, sublinhando desta forma sua origem diferencial. Segundo Marx,
esta vantagem relativa se desfaz com o tempo devido à competição capitalista
que impele à socialização da tecnologia numa situação de concorrência perfeita
que, como sabemos, com o passar do tempo, afastou-se cada vez mais de ser um
modelo válido para a explicação dos mercados “dinâmicos” na expressão
utilizada por Gramsci e Kalecki.
À época de Marx,
“a ciência constitui uma potência de expansão do capital em funções,
independentemente da magnitude dada que já haja alcançado o mesmo”
[...] “Em sua nova forma, o capital incorpora gratuitamente o progresso
116
social efetuado a espaldas de sua forma precedente” (Marx, 1984:
I/2:749).
Ao contrário da teoria econômica tradicional que têm sérias dificuldades
para encontrar um lugar para as inovações tecnológicas no processo produtivo,
a análise marxista do processo de produção ressalta justamente o caráter
dinamizador que esta exerce na criação e impulsionamento da competição pela
apropriação da mais-valia dentro do sistema. Marx afirma que,
“prescindindo dos materiais naturais, as forças naturais – que nada
custam – podem ser incorporadas ao processo de produção, na qualidade
de agentes, com maior ou menor eficácia. O grau de sua eficiência
depende de procedimentos e adiantamentos científicos que não custam
nada ao capitalista” (Marx, 1984: II/5, 434-5).
O problema óbvio aqui colocado é que a realidade mudou, perdendo a
aplicabilidade da idéia de que a ciência é uma força social autônoma e gratuita,
facilmente universalizável, como ao tempo de Marx, onde
“com a ciência ocorre como com as forças da natureza. Uma vez
descobertas, a lei que rege o desvio da agulha magnética no campo de
ação de uma corrente elétrica, ou a lei sobre a magnetização do ferro em
torno do qual circula uma corrente elétrica, não custam um
centavo”(Marx, 1984: I/2, 470).
O conhecimento científico, enquanto produto coletivo da humanidade,
segue sendo a princípio um bem coletivo, e o desenvolvimento da mão-de-obra
especializada, necessária à sua reprodução e aperfeiçoamento segue, em
decorrência, sendo largamente financiado pelo Estado como um “custo geral de
produção”, como voltaremos a discutir na parte III. Porém, a pesquisa de
tecnologias aplicáveis, bem como de conhecimento de campos genéricos (que
podem vir a ser aplicáveis à transformação da natureza), sempre objetivando a
produção de novas mercadorias que possam saciar necessidades humanas ou
economizar trabalho na criação de valores de uso, passa a ser um campo de
investimento de recursos por parte do capital. A tecnologia, como potência
social, entretanto, dista tanto de gerar valores quanto a terra. A ciência é uma
potência produtiva socialmente constituída, uma base material necessária à
transformação da natureza para a criação de valores de uso e, portanto, de
valores.
117
Embora fique claro em Marx que o processo de separação entre
concepção e trabalho “se consuma na grande indústria, que separa do trabalho a
ciência, como potência produtiva autônoma, e a compele a servir ao capital”
(Marx, 1984: I/2, 440). Também fica claro que a ciência em si não produz valor,
embora contribua para o aumento da riqueza social na forma de mais
mercadorias produzidas com menos trabalho e, portanto, aptas a saciar um
volume maior de necessidades humanas.
No caso da tecnologia, a ciência aplicada ao processo produtivo, é a
patente comercial que restringe a socialização da forma específica do processo
de produção – ou do novo insumo ou ainda da nova mercadoria - para as
demais empresas. A patente permite a seu detentor obter um ganho diferencial
na produção ou “alugar” o conhecimento monopolizado. Esta nova forma de
propriedade engendra um novo tipo de “renda”, não menos real por ser
abstrata, que constituem os royalties, os direitos da renda diferencial auferida
como resultado do uso de um dado saber. Sua “valorização”, entretanto, se dá de
forma indireta na venda do produto, a exemplo da renda da terra. A mera
propriedade da patente não gera valor. São necessários o uso do conhecimento
no processo produtivo concreto e a exclusão da possibilidade do uso deste
mesmo conhecimento pela concorrência para que se gere a renda diferencial
que justifica a remuneração do monopólio. Esta renda, no entanto, aparece
como uma alta do lucro auferido pela empresa, sendo computada em pé de
igualdade com o restante da mais-valia extraída.
Historicamente, a dinâmica de desenvolvimento da concorrência levou a
uma situação onde a cópia dos inventos passa a fazer parte da “estratégia”
empresarial. O aumento dos custos de pesquisa de novas tecnologias faz com
que as empresas inovadoras busquem proteger seu “investimento” em Pesquisa
& Desenvolvimento (P&D) e passem a pressionar pela proteção social para seus
inventos. Isto leva à consolidação da proteção da propriedade intelectual e ao
sucessivo desenvolvimento das legislações sobre marcas e patentes comerciais.
A exemplo de outros processos históricos, estas legislações protecionistas
se desenvolvem num primeiro momento no âmbito dos Estados nacionais, para
mais recentemente generalizarem-se através de modelos universais
preconizados por empresas multinacionais e promovidos por organizações
internacionais multilaterais criadas para a defesa dos interesses das grandes
118
corporações que visam, através desta política, a obtenção de vantagens
comparativas.
As diferentes legislações, ao permitirem a separação de um saber
historicamente constituído pela humanidade como força produtiva e tornar as
parcelas do saber assim registradas propriedade de algum indivíduo, autorizam,
desta forma, a constituição de um monopólio. Como este monopólio permite a
extração de um ganho diferencial, este ganho corporifica-se como uma renda
aparentemente “externa” ao processo produtivo quando o uso da técnica é
licenciado para outra empresa. Assim o superlucro parece ser produto da
tecnologia e não da extração mais intensiva de mais-valia possibilitada por esta.
A produção parece ser fruto do “capital intangível” e, devido a seu caráter
diferencial, os rendimentos auferidos pelo seu uso serão divididos entre o
proprietário da tecnologia e o licenciado. A proporção na qual se dará a
repartição entre os envolvidos é função de uma disputa direta que resulta num
acordo sobre o montante, estabelecido dentro de limites objetivos, a exemplo do
valor da renda da terra. Devemos frisar novamente: a tecnologia é uma potência
produtiva, ela não gera a renda por si mesma, é necessário que seja aplicada e
que se produza com base nela para obter os ganhos diferenciais que justificam
sua remuneração.
A concorrência entre tecnologias estabelece que a menos produtiva é a
socialmente média necessária vigente como base não remunerada. Tão logo
outra tecnologia mais produtiva deixe de ser protegida pelo sistema de patentes,
por exemplo por sua caducidade, esta tende a generalizar-se como nova base e
as tecnologias concorrentes reduzem parcialmente o ganho diferencial
propiciado por seu uso. Esta renda que aparece inicialmente como algo relativo,
diferencial, acaba por se constituir também em renda absoluta, desde que a
relação de transferência de “direitos de uso” sobre a tecnologia envolvida seja
socialmente aceita como “natural e justa”. Esta é a base de preços diferenciados
entre empresas que compõe um keiretsu japonês ou um chaebol coreano que,
com base numa história de alianças e de transferência de tecnologias, seguem
realizando trocas desiguais com as empresas do pólo dinâmico do grupo, como
discutiremos adiante.
O desenvolvimento técnico-científico não engloba apenas maquinário.
Está relacionado a métodos produtivos, a processos de fabricação (físicos e
119
químicos), à organização e métodos produtivos, à concepção de produtos e
avança para conceitos de desenho e concepções gerais de produtos que passam a
poder ser registrados como monopólios sob regras pactuadas, cada vez mais, em
âmbito internacional. Dada a forma como se constroem as relações de
licenciamento, os grupos produtores destas tecnologias, sempre entendidas
como forças sociais de produção monopolizadas, passam a ditar a dinâmica de
funcionamento e a própria forma de reprodução capitalista dos setores não
monopolistas, submetendo-os, através de relações de dependência que se
desenvolvem com base em técnicas de convencimento, à sua própria dinâmica
de acumulação.
Antes de avançarmos nesta discussão, entretanto, é importante ressaltar
o uso da lei como base para tais relações, pois as patentes tornaram-se o “arame
farpado” do capitalismo contemporâneo, na boa imagem de Haddad (1998:27-
8). Assim,
“A mera propriedade jurídica do solo não cria uma renda para o
proprietário. Mas sim lhe dá o poder de subtrair sua terra à exploração
até que as condições econômicas permitam uma valorização da mesma
que gere um excedente para ele, tanto se o solo se emprega para a
agricultura propriamente dita, como se o emprega para outros fins de
produção como edifícios, etc.” (Marx, 1984: III/8:962).
Como vimos, o que permite aos proprietários retirar sua terra do usufruto
da humanidade é o uso e costume garantido pela lei, cristalizada na
superestrutura estatal. Da mesma forma, o direito positivo garantirá outras
formas de monopólio através dos sistemas de registro de marcas e de patentes.
Tais usos e costumes fazem parte de uma determinada visão de mundo que
constitui a base da hegemonia burguesa. A idéia de propriedade privada sendo,
como vimos, a pedra angular sobre a qual se sustentam todas as relações
mercantis, expande-se como padrão para esferas da vida que antes não
dominava, submetendo assim, a produção de conhecimento à dinâmica do
capital. A alienação do domínio social sobre o conhecimento possibilita a
retirada de uma parcela da mais-valia socialmente produzida à nivelação pela
média e seu aparecimento na forma dos royalties como uma propriedade da
tecnologia, não mais vista como força social, mas como monopólio privado
sobre o conhecimento. Assim agem os proprietários de patentes diante do
120
restante da classe capitalista, da mesma forma como age o latifundiário com
relação ao capitalista
Tal propriedade intelectual, socialmente instituída na forma das
patentes, constitui um monopólio sobre uma nova forma da existência social140.
Não apenas o capital é proprietário dos meios de produção, mas torna-se
gradativamente proprietário do como produzir, do como fazer, ou, na forma
inglesa, tão adorada pelos executivos, do know-how. O mesmo vale para novos
produtos, com especial importância na indústria farmacêutica. A durabilidade
da patente gera um limite à renda extraída da mesma, transmitindo ao valor do
produto seu monopólio social em parcelas. Além disto, a programação da
obsolescência tecnológica permite ao capital a extração de um máximo de
rentabilidade dos equipamentos devido à protelação do desgaste moral das
máquinas141. Com o aumento dos custos de pesquisa, em particular no campo
molecular-digital, os próprios custos tecnológicos passam a agir como uma
barreira à competição oligopolista, gerando um equilíbrio instável entre os
atores envolvidos e funcionando como uma nova “barreira à entrada” de novos
competidores.
A naturalização da propriedade sobre o conhecimento, como um domínio
da existência social alienável ao conjunto da humanidade, se dá através das leis
de patentes e reflete e reforça o fato do capital reproduzir-se em escala social.
Este processo pelo qual o capital passa a intervir na própria criação de
conhecimento submete a ciência de forma direta às formas de reprodução
capitalista.
Ao assumir-se a propriedade intelectual como um campo em separado da
propriedade na sociedade burguesa estabelece-se, como no caso da terra, um
“roubo social” que priva a humanidade de forma geral, e diretamente os demais
capitalistas, dos desenvolvimentos técnicos gerados pelos engenheiros e
cientistas. A institucionalização do sistema de patentes permite a transformação
da ciência num campo de produção de mercadorias voltadas à produção que lhe 140 Esta relação com a renda de tecnologia já foi apontada também por Haddad
(1998:22-8) e antes dele por Mandel (1982) em especial no capítulo 3. 141 A programação da obsolescência e o controle total sobre o volume de lucros
possibilitado pelo controle das tecnologias por pouquíssimas empresas, tenderiam na visão de Beinstein (2001) a uma estagnação na produção e à aceleração do desemprego. Sua explicação entretanto, fica presa à idéia de “rendimentos decrescentes” do investimento em tecnologia, o que é apenas uma das possíveis aparências do processo, mas não sua essência, a manutenção de lucros diferenciais de monopólio.
121
consigna uma parcela da mais-valia social na forma de royalties, a forma
socialmente naturalizada da “renda” advinda do monopólio sobre a tecnologia
quando cedida a outras empresas.
Através deste mesmo processo, os homens de ciência aparentemente
“proletarizam-se” na medida em que se tornam assalariados, embora não se
“extraia” mais-valia de seu trabalho direto, como bem apontado por Haddad
(1998: 24-7).
Determinadas partes do processo de produção de tecnologia em si são
similares à produção de um produto pois, embora a informação seja uma falsa
mercadoria e o uso concreto do conhecimento só se dê como incorporação de
uma técnica nos processos de produção, uma série de processos de pesquisa e
construção do conhecimento científico são processos físicos de experimentação
que implicam em trabalho, no sentido clássico de gasto de músculo, nervo e
cérebro humanos, que aparentemente agregam “valor” à tecnologia. Neste
sentido, o trabalho dos técnicos de laboratório que produzem por exemplo o
seqüenciamento do DNA de uma bactéria não difere em nada de um teste de
DNA para determinação de paternidade. Mas a criação de um remédio ou
vacina que não permita a reprodução da referida bactéria resulta num exercício
de criação, numa força anímica que possibilita a criação de um novo produto.
Este fiat142 não é mensurável como resultado do trabalho do cientista, mas sim a
resultante de um acúmulo de saber social e historicamente constituído.
O “valor” gerado por tal gasto de músculo, nervo e bestunto científicos,
como vimos, não se transfere para as mercadorias como trabalho morto, mas
sim se consubstancia na verdade como uma economia de trabalho de outros
seres humanos (é o uso exclusivo de uma nova técnica por uma indústria que
permite a apropriação de um superlucro, mas com base no trabalho de
terceiros) ou em novos produtos (que geram novas necessidades para o
conjunto da humanidade). É a partir de tais processos que tomam corpo as
rendas – primeiro diferenciais e depois absolutas - daí obtidas pelo capital que
financia tais pesquisas, ou que compra o direito de sua utilização de forma
monopolista.
Por outro lado, do mesmo modo que o trabalhador foi separado de suas
ferramentas, o pesquisador das chamadas ciências aplicadas necessita de 142 Haddad (1998) prefere a idéia de “força anímica”.
122
equipamentos cuja posse e acesso, caso não sejam publicamente gerados, se
tornam proibitivos para os indivíduos. E assim, ao propiciar tal acesso, o capital
passa a deter a capacidade de direcionar a pesquisa, alienando, de fato, o que
seria uma atividade poiética típica143.
Como decorrência desta situação, os acordos de cooperação tecnológica
entre grandes empresas e pequenos laboratórios ou universidades devem ser
entendidos “essencialmente [como] uma estratégia de apropriação de recursos
abaixo de seu valor144” (Chesnais, 1996: 109). No caso de laboratórios privados,
estamos diante de mecanismos pelos quais o grande capital dita a dinâmica de
desenvolvimento das pesquisas de acordo com seus interesses, cobrindo os
custos e apropriando-se dos ganhos diferenciais possibilitados pelas patentes145.
No caso das universidades públicas, estamos diante de processos através dos
quais desenvolvimentos custeados pelo público são apropriados pelas empresas.
Em alguns casos tal transferência tecnológica pode funcionar como um subsídio
público ao desenvolvimento de um determinado setor econômico, em outros,
ocorre uma clara subordinação dos interesses públicos à dinâmica privada,
inclusive com o desvirtuamento da função da universidade pública146.
Voltaremos ao debate dobre as funções do fundo público na parte III.
Pode-se, desta forma, estabelecer aparentemente a “extração” de mais-
valia de pesquisadores e laboratoricistas, ao remunerá-los de acordo com seu
custo de reprodução (o custo de formação desta mão-de-obra, que inclusive
pode ser bastante alto) e se obtendo um rendimento que mais do que cobre os
investimentos realizados num laboratório de pesquisas. Mas o custo de tais
investimentos não pode ser medido pelo tempo socialmente necessário à
143 Marx afirma: “há que se distinguir entre trabalho geral e trabalho coletivo. Ambos
desempenham seu papel na produção, ambos se fundem um no outro, mas ambos também se diferenciam. É trabalho geral todo trabalho científico, todo descobrimento, toda invenção. Está condicionado em parte pela cooperação com os vivos e em parte pela utilização dos trabalhos de predecessores. O trabalho coletivo supõe a cooperação direta dos indivíduos” (Marx, 1984: III/6:128). Devemos ter claro que a análise de Marx é limitada por seu horizonte histórico a uma concepção na qual a ciência é entendida como propriedade coletiva da humanidade, não podendo, como homem de seu tempo, imaginar as atuais legislações que limitam a utilização de procedimentos de pesquisa através de patentes.
144 Parece evidente que aqui Chesnais usa valor no sentido de custo. 145 O que não impede que alguns “desenvolvedores” de fato se enriqueçam. 146 Esta é a situação do debate sobre as “Fundações” no caso da USP. Creio que o melhor
índice foi apontado pelos representantes discentes de Pós-graduação em debate no CO: as unidades que têm fundações, e que de acordo com o discurso dos que as defendem teriam “melhores condições de trabalho”, são pior avaliadas pela CAPES do que as unidades que não contam com Fundações.
123
produção da nova tecnologia. Afinal, qual o valor de um remédio? Quanto do
que foi gasto numa pesquisa genérica para isolar elementos ativos deve ser
computado como custo das patentes dos remédios que “vingaram”? Como
computar o tempo de trabalho socialmente necessário para se ter uma nova
idéia? E se esta idéia consiste apenas em formas de economia de trabalho social
através da racionalização de uma linha de produção, quanto desta
racionalização é fruto da nova técnica e quanto é fruto de ajustes
organizacionais derivados?
O “valor de uso” da patente sobre uma tecnologia é possibilitar à empresa
que dela se utiliza impor a extração de um superlucro ao mercado por um
determinado tempo, furtando ao restante da classe capitalista a cópia sobre seu
novo processo ou produto. Assim sendo, tendo por base material o lucro
diferencial obtido pela nova combinação produtiva, este “lucro” será computado
como se oriundo do “segredo de fabricação”. Aqui, como na renda da terra, a
aparência de que o royalty se origina da propriedade sobre a tecnologia dota a
patente, na aparência, da capacidade de gerar a renda, independentemente de
sua origem diferencial na produção concreta.
Como preço monopolista, o valor dos royalties está limitado pela disputa
estabelecida no mercado pela apropriação da mais-valia global subtraída à
nivelação geral e retirada da circulação pelo processo da troca desigual. No caso
de novos produtos patenteados, como por exemplo de remédios, trata-se de
transferência de mais-valia intra-setores através do estabelecimento de uma
margem de lucros monopolista – normalmente limitada pelos custos da
engenharia reversa ou do desenvolvimento de sucedâneos. Neste sentido, sua
determinação é tão fortuita quanto a da taxa de juros, embora, sempre limitada
pelo “estômago do mercado”, ou seja, pelo total de mais-valia extraída num
determinado período de tempo a ser dividida pelo conjunto dos capitais na
forma dos lucros.
Finalmente, cabe aqui um ligeiro parêntese sobre o processo de
depreciação do capital instalado. A introdução, nas condições de concorrência,
de um novo invento – como uma nova máquina mais produtiva do que os
modelos existentes, ou o barateamento da produção do mesmo modelo -
funciona sobre as máquinas já instaladas como um processo de desvalorização
124
do parque produtivo. Neste caso, as máquinas passarão a agregar às
mercadorias um valor menor do que o que se agregava anteriormente devido ao
rebaixamento do tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de
uma máquina que execute a mesma tarefa. Portanto, ao introduzir-se uma nova
máquina, a parte constante do capital dos demais capitalistas é diminuída, o que
leva a uma apropriação de uma maior massa de mais-valia pelo introdutor da
inovação. Este tipo particular de desvalorização das máquinas é denominado
por Marx desgaste moral do capital147.
Como complicação adicional ao problema do cálculo dos lucros numa
economia capitalista, devemos lembrar que o cálculo exato da depreciação de
equipamentos é muito difícil numa economia com alto grau de inovações, o que
leva as empresas a buscarem a máxima aceleração no registro contábil da
depreciação de suas máquinas, de forma a amortizá-las no menor tempo
possível, mesmo que isto implique numa redução dos lucros – também
contábeis - de curto prazo. A venda de máquinas úteis para empresas menores
compensa tais prestidigitações contábeis ao serem lançadas como “lucros não
operacionais”. Evidentemente tais manobras levam a alterar o valor do
excedente estimado na economia, já que o cálculo dos gastos em capital é
artificialmente inflado (a renúncia fiscal na década de 1950 nos EUA era de 15%
segundo estimativa de Phillips para Baran e Sweezy, 1974)148.
147 “Quando uma nova tecnologia começa a ser utilizada economicamente, dá início a um
processo de reavaliação do tempo de trabalho socialmente necessário, que vai depender do número de empresas que a utilizam e seu peso no setor, etc.; quanto maior o peso das empresas que utilizarem a tecnologia de ponta, mais próximo o tempo de trabalho socialmente necessário ficará daquele que lhe corresponde, como veremos no capítulo 5. Em cada momento haverá um único valor social, e portanto uma normalização dos tempos de trabalho necessários para as diversas condições de produção. Um processo semelhante de reavaliação – de sincronização – se desenvolverá com relação ao valor das mercadorias já existentes, incluindo os meios de produção, afetando portanto o valor transferido por eles às novas mercadorias. Se novas máquinas começam a ser produzidas com melhor tecnologia, as antigas começarão a perder valor, mas seu novo valor não dependerá apenas da nova tecnologia, mas também das condições concretas do setor que as produz” (Neto, 2002: 136).
148 Além disto, a depreciação não deve ser interpretada como sendo dirigida à reposição do equipamento, mas sim, como financiando em grande parte um novo equipamento com inovação tecnológica que embute uma queda de custos de produção. Desta forma, “quando o volume de depreciação é muito grande, como no capitalismo monopolista de hoje, é possível que as empresas possam financiar, apenas com esta fonte, todo o investimento que considerem lucrativo para as inovações (tanto em produtos novos como em processos novos) não deixando possibilidades ‘inovacionais’ para ajudar a absorver o excedente que busca investimento” (Baran & Sweezy, 1974: 107).
125
Isto posto, e sabendo que a legislação sobre patentes não se aplica
somente a produtos, tecnologias e processos produtivos, mas envolve também
as marcas comerciais, devemos avançar para a discussão destas.
1.2. Propaganda e Marcas
O objetivo da “propaganda” é tanto a alteração da forma como os
indivíduos percebem o valor de uso das mercadorias, através de uma
transformação de sua subjetividade, da percepção dos indivíduos de como o
produto os satisfaz, quanto a fidelização do cliente a uma determinada marca ou
mercadoria. São processos nos quais se constrói uma “segunda natureza” que
passa a fazer parte da determinação das necessidades dos indivíduos149. Embora
esta alteração não seja física (o produto é o mesmo, é a forma como ele é
percebido que muda), tais alterações ganham força e consistência material na
medida em que se tornam parte do juízo de realidade, da forma como os
indivíduos percebem o mundo, e a partir da qual os indivíduos se comportam
nas relações de troca. A produção do fetiche sobre cada mercadoria particular
torna-se componente da construção do fetiche geral da sociedade capitalista.
Tanto a diferenciação do valor de uso quanto a fidelização do cliente envolvem
uma estratégia de mercado que busca a cristalização do fetiche por uma
determinada mercadoria na mente dos consumidores, operando em termos de
preço como um monopólio socialmente instituído sobre a percepção subjetiva
destes.
A ação da propaganda visa diferenciar a percepção que os indivíduos tem
de um determinado produto ou marca com relação a seus concorrentes e
estabelecer, desta forma, uma espécie de “monopólio social” de base cultural
sobre uma parcela do mercado. Esta percepção do valor de uso em si não faz
parte do produto consumido mas sim da marca ou do “nome” associado ao
modelo – o carro transporta, a marca é “moderna”, o modelo “tem estilo”; a
roupa é vestida, a marca “ostentada”; o sanduíche alimenta, a marca “propicia
149 Isto está de acordo com a forma de determinação do salário segundo Marx, na qual “o
valor real de sua força de trabalho diverge deste mínimo físico; é diferente segundo o clima e o nível de desenvolvimento social; não só depende das necessidades físicas, mas também das necessidades sociais historicamente desenvolvidas, que se convertem em segunda natureza. Mas em cada país e para um período dado este salário médio regulador é uma magnitude dada” (cf. Marx, 1984: III/8, 1091, grifo nosso).
126
uma experiência150”. O fetiche de fato cria um valor de uso socialmente
construído. De um modo geral
“nesse processo de produção constante de novos produtos e serviços, a
marca assume uma importância crucial, já que ela entra com a força de
um padrão sedimentado no mercado, garantindo uma ‘segurança’ ao
consumidor que experimenta as novidades e permitindo, com isso, a
venda e a difusão mais rápida de novos produtos” (Fontenelle, 2002:
158).
No esquema da sociedade capitalista151 a busca da acumulação de poder
torna-se a busca, por parte de cada indivíduo, de criar uma nova necessidade,
para obrigar os demais a um novo sacrifício e, neste sentido:
“O homem, enquanto homem, se faz mais pobre, necessita mais do
dinheiro para tornar-se dono do ser inimigo, e o poder de seu dinheiro
diminui em relação inversa à massa da produção, isto é, seu mistério
cresce quando o poder do dinheiro aumenta. A necessidade de dinheiro é
assim a verdadeira necessidade produzida pela economia política e a
única necessidade que ela produz. A quantidade de dinheiro é cada vez
mais sua única propriedade importante. Assim como ele reduz todo ser a
sua abstração, assim se reduz ele em seu próprio movimento a ser
quantitativo” (Marx, 1985: 156-7).
O capital como Sujeito da relação social tende assim a fazer com que cada
homem só se veja como homem na medida em que é proprietário de massas de
trabalho objetivado – e não como indivíduo capaz de realizar trabalho. O ser
humano é medido pelo consumo e não pela existência, ou antes o consumo é
entendido como existência, como a única forma de exteriorização da existência
humana. A reprodução desta relação pela qual os indivíduos se medem pelo
consumo torna-se pressuposta na produção de cada mercadoria particular e a
necessidade gerada de seu consumo, propiciada pelo marketing, eleva o fetiche
da mercadoria à própria condição de mercadoria, à condição aparente de valor
de uso.
150 Ver Fontenelle (2002). 151 Nunca é demais lembrar que no capitalismo a propriedade privada, mesmo a de
falsas mercadorias como a terra, é em si a representação de parcelas pretéritas de capital, ou seja de trabalho objetivado.
127
Esta construção de imagens e idéias que dota os objetos de qualidades
exteriores através da propaganda torna-se uma potência social na medida em
que produz necessidades (mesmo que ilusórias) que impulsionam o
comportamento humano na direção do consumo e, desta forma, garantem a
reprodução do capital. Seu resultado, contudo, continua sendo um resultado
cultural, ideológico. Não difere em si e para si do convencimento dos indivíduos
da existência divina. Para realizar-se como capital, esta potência social
culturalmente construída necessita de uma base material que a sustente. E esta
base material é dada justamente pela mercadoria cujo valor de uso é
aparentemente alterado.
Mesmo as propagandas “genéricas” de incentivo ao consumo através dos
cartões de crédito necessitam de uma base material representada pelo momento
da compra de inúmeros bens. Esta geração de uma propensão ao consumo,
todavia, possibilita a expansão do consumo e, na medida em que se apóia no
monopólio do registro das marcas comerciais, possibilita a apropriação por
parte de seus proprietários de um superlucro, também este em princípio
diferencial, mas que se consolida como uma renda absoluta na medida em que,
dentro da esfera do oligopólio, estas estratégias de diferenciação se generalizam.
Neste contexto, a marca é o componente permanente das estratégias de
marketing. Muitos dos produtos são efêmeros, respondendo a tendências
culturais e à separação do mercado em segmentos. Há também casos em que
uma mesma empresa desenvolve diversas marcas que correspondem à
estratégia de segmentação de mercado (como no caso dos hotéis Accor)152.
Neste sentido a publicidade em si, as peças publicitárias corporificadas
em filmes e folhetos por exemplo, constitui-se numa mercadoria para a empresa
que a compra e para a firma publicitária que a produz e se extrai inclusive mais-
valia de sua produção e veiculação. Do ponto de vista da empresa que realiza a
propaganda de seu produto, entretanto, o resultado, o “valor de uso” da
publicidade, é que seu produto será diferenciado dos produtos das demais
firmas, possibilitando num primeiro momento facilidades de realização do
capital, evoluindo depois para uma diferenciação direta do produto e/ou marca
que possibilita, no limite, a extração de rendas com base no monopólio social da
marca. A mercadoria “propaganda”, porém, é um produto cultural, que se 152 Também citado em Fontenelle (2002: 143, rodapé 177).
128
manifesta no campo das idéias, na forma como os consumidores percebem as
mercadorias promovidas. Neste sentido, a eficiência da mercadoria propaganda
será medida pela capacidade de alterar as preferências relativas dos
consumidores153, não podendo ser, portanto, considerada como um “valor”
diretamente adicionado à mercadoria – como no caso da localização ou da
produtividade do solo na renda da terra.
Durante muito tempo, os autores marxistas prenderam-se, na análise do
marketing, apenas à idéia contida no texto de Marx sobre custos de circulação
das mercadorias:
“A lei geral é que todos os custos de circulação, provocados apenas pelas
modificações de forma, não acrescentam qualquer valor às
mercadorias. São simplesmente despesas exigidas para a realização do
valor, ou para a sua conversão de uma forma em outra. O capital
investido nessas despesas (inclusive o trabalho empregado por ele)
pertence às despesas mortas da produção capitalista. Devem ser cobertas
pelo produto excedente e são, do ponto de vista de toda a classe
capitalista, uma dedução da mais-valia ou do produto excedente” (Marx,
1984: II/4:178-9).
De fato a publicidade age como uma potência social na esfera da
circulação das mercadorias, devendo ter seus custos subtraídos do montante
geral da mais-valia como um custo de realização. O problema é que com o
desenvolvimento das técnicas de venda, estas passaram a alterar a percepção
dos consumidores sobre as propriedades do produto e a criar, através da
propaganda uma propensão ao consumo de um determinado produto em
particular que não existia, ou ainda uma fidelização do consumidor a marcas ou
modelos de produtos, como no caso do oligopólio diferenciado. Esta produção
social de necessidades, embora não agregue valor direto, e neste sentido
permaneça como um custo externo à produção da mercadoria propriamente
dita, passou a possibilitar a obtenção de rendas diferenciais. Estas rendas se
verificam num primeiro momento num mercado concorrencial entre aqueles
que faziam ou não propaganda, garantindo a renda dos capitalistas que
realizavam tais gastos com publicidade e reduzindo a margem dos concorrentes
153 Não por acaso, Fontenelle (2002) nos fala de uma “cultura do automóvel” ou “cultura
do hambúrguer”.
129
– na medida em que viabilizavam a realização plena da mais-valia contida nas
mercadorias de uns em detrimento das mercadorias de outros.
Na medida em que a disputa se dá também pela expansão do consumo da
mercadoria divulgada, a propaganda coloca em disputa direta não apenas os
produtores daquela mercadoria, mas também os produtores de mercadorias
sucedâneas, e de forma mais geral e menos perceptível, todos os produtos de
cujo consumo um indivíduo pode abrir mão em prol do consumo da mercadoria
cuja compra é estimulada. Desta forma, a competição estabelecida pela
publicidade ganha foros de competição geral intersetorial e não apenas intra-
setorial.
A constatação deste fenômeno, como vimos, não é nova, sendo que a
diferenciação de produtos como estratégia consciente dentro do oligopólio é
percebida por Baran e Sweezy154 como estratégia de criação de um nicho
monopolístico através de marcas registradas e diferenciação de produtos e
embalagens155 já no imediato pós-guerra. Este fato, como já vimos no capítulo 2,
é apontado por Kalecki (1982) e outros autores que analisaram o
desenvolvimento do capitalismo desde pelo menos o início do século XX.
Contudo, o desenvolvimento da diferenciação das mercadorias e de
construção de novos fetiches alcançou na sociedade moderna uma profundidade
e uma extensão muito superior à imaginada por tais autores. Como estudado
por Fontenelle (2002), a construção da aparência de satisfação com o objetivo
154 “O tremendo crescimento das campanhas de vendas e a intensificação espetacular de
sua influência nascem do fato de terem elas sofrido uma transformação qualitativa de profundas conseqüências. A competição dos preços desapareceu, em grande parte, dando lugar a novos modos de promoção de vendas: publicidade, variação do aspecto dos produtos, de sua embalagem, a “obsolescência planejada”, as modificações de modelos, vendas a crédito, etc.” (Baran & Sweezy, 1974: 120). Infelizmente há aqui uma clara confusão entre estratégias de realização (publicidade e diferenciação do produto), estratégias de produção (obsolescência programada – ainda que entendida como produtos de pior qualidade) e financeiras (venda a crédito) que não nos ajuda a avançar na elucidação do problema.
155 “A publicidade afeta a procura [...] alterando as próprias necessidades. A distinção entre isso e a alteração dos canais pelos quais as necessidades existentes são atendidas, embora obscura na aplicação prática devido ao fato de que as duas freqüentemente se confundem, é perfeitamente clara analiticamente. Um anúncio que simplesmente mostra o nome de uma determinada marca comercial, ou de um fabricante, pode não transmitir informação alguma. Não obstante, se esse nome tornar-se mais familiar aos compradores, estes serão levados a pedi-lo, em preferência a outras marcas não anunciadas, desconhecidas. O mesmo ocorre com métodos de venda que jogam com as suscetibilidades do comprador, que usam contra ele leis de psicologia que lhe são pouco conhecidas, e contra as quais portanto não se pode defender, que atemorizam ou lisonjeiam ou desarmam – tudo isso sem que ele tenha conhecimento. Não são informativas, são manipulativas. Criam um novo esquema de necessidades pela redisposição de seus motivos” (E. H. Chamberlein, The theory of monopolistic competition, Cambridge, Massachussets, 1931: 119 apud Baran & Sweezy, 1974: 122).
130
de cativar os consumidores envolve não apenas a fixação da marca e do logotipo
na mente dos consumidores, mas avança para a colonização cada vez maior de
valores subjetivos, das sensações e do espaço de consumo. Não é nosso objetivo
aqui retomar estes elementos, mas ter claro que há por parte das grandes
empresas uma ação concreta no sentido de construção de uma população
subjetivamente envolvida com sua marca e/ou produtos que acaba por
representar um comportamento diferenciado sobre as escolhas objetivas dos
indivíduos.
Esta preferência do consumidor, construída através de técnicas cada vez
mais refinadas, permite à empresa garantir para si uma parcela de um mercado
sobre a qual exerce um monopólio, ou um quase-monopólio156, pois se
estabelece uma clara hierarquia de preferências entre os produtos consumidos.
Embora contraditória, a idéia de “monopólio relativo” nos parece a que melhor
descreve este processo. Esta percepção de satisfação da necessidade uma vez
diferenciada permite também a diferenciação do preço final cobrado por tal
produto157.
Como esta diferenciação da forma como o produto é visto pelos
consumidores é “produzida” através de alterações na percepção dos
consumidores que se dá em resultado da ação de propaganda, esta última
parece estar “agregando valor” ao produto, levando os teóricos da economia
vulgar, e sua prima pobre, a publicidade, a pensar que estão diante de
“investimentos” de marketing. Isto ocorre ao confundir-se a idéia de valor
adicionado com a diferença de preço possibilitada pelo monopólio sobre a
marca.
Um problema, derivado desta concepção, que já era apontado por Baran
e Sweezy, é que contabilmente os gastos com publicidade são computados como
custos em pé de igualdade com os custos fabris, o que confunde a situação do
ponto de vista dos agentes envolvidos, borrando a percepção de tais gastos e
vendo-os como parte do custo total. Entretanto, embora critiquem a idéia dos 156 Ninguém em sã consciência vai passar sede por, não tendo uma Coca-Cola para
tomar, recusar uma Pepsi, ainda que o faça reclamando. 157 Evidentemente que a real diferença de preços se dá entre Coca/Pepsi/Guaraná
Antártica e outras imitações alcunhadas em campanha de uma das marcas de “refrigereco”. Ou seja entre produtos com “marcas fortes” e outros congêneres. A busca do Guaraná Dolly (eis o clone escrachado) de diferenciar sua marca frente aos demais produtos da “segunda linha”, mostra bem a característica diferencial da renda gerada pela propaganda num mercado competitivo.
131
custos de marketing serem confundidos com os custos de produção, estes
autores não percebem o que há de novo nesta situação, pois sua compreensão
ainda está presa a uma interpretação direta de Marx vendo tais custos apenas
como gastos “de realização” das mercadorias158, o que é apenas um dos
elementos do problema.
Do ponto de vista da empresa, portanto, o gasto em propaganda aparece
como algo produtivo – a alteração da subjetividade do consumidor. O produto
passa a agregar uma nova “qualidade”, um valor de uso culturalmente
modificado, que se confunde com o valor de uso do objeto, uma necessidade
produzida para o espírito. Neste sentido, a propaganda parece efetivamente
tornar-se parte do custo de produção da mercadoria.
Aqui temos na verdade dois elementos diferentes que geram uma
situação que os embaralha no mesmo processo. De fato é necessário um gasto
de capital para a produção desta alteração da percepção dos consumidores, mas
não é o produto que passa a satisfazer melhor, ou mais, ao consumidor. É o
processo de construção da “marca”, associada ao produto e entendida como
produto cultural, que gera esta satisfação. Portanto, o “retorno do investimento”
que aparece como “lucro” do ponto de vista da contabilidade capitalista, só
existe como realização de uma venda diferenciada em função do monopólio da
“marca”– vender um volume maior de produtos que a média da concorrência ou
a um preço superior obtendo desta forma um lucro diferencial ou superlucro.
Uma vez criada a “marca”, a noção subjetiva de diferenciação do produto,
o processo de reprodução social da preferência se dá em alguns casos quase
automaticamente, cabendo à empresa na verdade uma ação de “manutenção” da
158 “Essa parcela do excedente é marcada por certas peculiaridades. Em primeiro lugar, é
composta de dois componentes heterogêneos. O primeiro é a parte das despesas totais de publicidade e de outras despesas de venda custeadas por um aumento dos preços para o consumidor pago pelos trabalhadores produtivos. Seus salários reais são reduzidos nessa proporção, e o excedente, que é a diferença entre a produção líquida total e os salários reais totais dos trabalhadores produtivos, é aumentada de forma correspondente. O outro elemento é mais complicado: trata-se do restante das despesas de publicidade e venda que recaem sobre os próprios capitalistas e os trabalhadores improdutivos, via maiores preços das mercadorias por eles compradas. Esse componente dos dispêndios em publicidade e campanha de vendas, não sendo custeado pelos trabalhadores produtivos, não constitui um aumento do excedente, mas provoca sua redistribuição: certas pessoas que dele vivem são privadas de uma fração de sua renda a fim de manter outras pessoas que vivem do excedente, ou seja, os que obtêm suas rendas dos salários e lucros criados pela própria “indústria” de vendas” (Baran & Sweezy, 1974: 129-30).
132
visibilidade da marca159. É interessante notar que, neste caso, as marcas podem
ser mais “fracas” ou mais “fortes” de acordo com a qualidade da técnica de
propaganda ou do volume de recursos utilizados para a sua criação. Entretanto,
não se trata aqui de um retorno direto do “investimento” em propaganda, mas
de uma renda auferida indiretamente através da venda dos produtos. A idéia de
marcas “mais fortes” ou “mais fracas” na verdade reflete a extensão do poder
relativo da marca na garantia de geração de lucros através da fidelização da
clientela. Noutros casos, esta idéia reflete o diferencial de preços que se pode
cobrar devido ao “valor percebido” como agregado pela marca.
Além disto, o desenvolvimento da marca tem um caráter cumulativo de
viés nitidamente cultural, que torna tais marcas “patrimônio” de suas empresas.
Desta forma, marcas estabelecidas há muito tempo passam a contar com o
efeito de “pai para filho” do tipo: - “meu pai sempre teve um Volkswagen”.
Efeitos estes que podem ser usados para explicar escolhas nem sempre
racionais. Esta permanência social da marca possibilita que as empresas contem
com uma parcela de mercado cativo, e sua diferenciação de preços passa na
verdade a derivar do monopólio social sobre a marca. Este é um efeito indireto e
dificilmente mensurável da propaganda, mas é visto como “propriedade
intangível” da empresa, sua clientela, ou na expressão contábil estadunidense –
the goodwill.
É o monopólio sobre a marca comercial que permite, também, a algumas
empresas a cobrança do preço diferenciado e o pagamento de royalties e
licenças por parte de empresas franqueadas. Um gasto em propaganda gera no
consumidor uma percepção de necessidade que passa a diferenciar um produto
dos demais congêneres160 estabelecendo desta forma uma preferência de
consumo com relação a outros produtos que satisfariam igualmente as
necessidades “normais”, ou seja o valor de uso de uma hipotética “mercadoria
padrão”. Esta situação, uma vez estabelecida como um padrão de consumo num
determinado mercado permite às empresas também a extração de rendas
diferenciais frente a empresas que por não disporem desta diferenciação se
159 Algumas empresas de moda por exemplo utilizam-se da técnica de presentear artistas
e outros indivíduos expostos à mídia com seus produtos, ganhando deste modo visibilidade e garantindo o efeito de mimetismo por parte do público.
160 Existem gastos em propaganda que não obtém resultado algum e outros que visam justamente desmontar a diferenciação já obtida por uma marca “mais velha”.
133
dispõe a pagar pela “licença” de produção da mercadoria ou pelo uso da marca
diferenciada.
A inflexão das estratégias de marketing ocorridas a partir dos anos 1960,
segundo Fontenelle (2002), é marcada pela busca da adequação constante das
marcas às mudanças culturais, antecipando-se às “necessidades e desejos dos
consumidores” adaptando-se através da diferenciação de produtos às tendências
detectadas através de pesquisas de mercado, possibilitando às empresas
manter-se um passo à frente da concorrência na formação de seu nicho
monopólico. O capital como Sujeito, busca estar imerso na sociedade,
adaptando-se e adaptando as mudanças culturais a seu imperativo de
acumulação, buscando através destas estratégias, manter-se, enquanto parcela
do sujeito semovente mais geral, numa posição em que possa conformar-se a, e
formar a, cultura de consumo da sociedade capitalista. Assim, o capital age
como criador e incentivador das tendências culturais que possam vir a ser
objeto de manipulação visando sua acumulação e a expansão de seu poder
social.
Pode ocorrer, de acordo com o produto anunciado e com a estrutura de
mercado, que o anúncio realizado pelas poucas empresas que produzem o
produto efetivamente não alterem sua participação relativa e que, portanto, não
haja aparentemente renda diferencial a ser apropriada por nenhuma delas161.
Mas esta é uma posição relativa dentro do segmento de mercado. Contudo, tal
custo continua sendo obrigatório como estratégia defensiva para a proteção de
sua fatia de mercado, e funciona também como barreira à entrada de novos
concorrentes na mesma indústria. Neste caso, a interpretação dos gastos com
propaganda como “custo improdutivo” pode parecer válida. Acontece porém
que tais gastos podem ser cobertos por uma espécie de “renda absoluta”, ainda
que pequena, que compense os “custos” de propaganda para efeito dos capitais
envolvidos, aparecendo assim como “um tributo sobre a população
consumidora”.
161 “... quando um determinado número de empresas de um mesmo setor é capaz de
oferecer preços mais baixos com uma ‘imagem de marca’ bastante parecida, aí nem a força da marca permite que se cobrem preços mais altos” (Fontenelle, 2002: 160). O que se dá justamente devido ao desaparecimento do diferencial que por natureza é relativo.
134
Destarte, Baran e Sweezy erram em sua avaliação com relação ao efeito
das campanhas publicitárias, quando afirmam que:
“O impacto direto das campanhas de vendas sobre a estrutura da renda e
da produção da economia é, portanto, semelhante ao dispêndio
governamental financiado pela arrecadação tributária”[...]“E sem dúvida
a expansão da renda total está ligada ao maior emprego de trabalhadores
improdutivos nas agências de publicidade, nos veículos de anúncios, etc.”
(Baran & Sweezy, 1974: 130-1).
Na verdade os gastos publicitários constituem numa nova indústria cujo
objetivo é a produção de necessidades. Seu produto, que aparentemente se
esgota na veiculação das peças publicitárias, passa a garantir a propagação do
consumo através da geração incessante de novas necessidades. O objetivo é
evitar o entesouramento e garantir o retorno à circulação, na velocidade a
mais rápida possível, de cada átomo da substância social do valor, de
preferência através da compra da mercadoria anunciada. Tal geração constante
de necessidades que caracteriza a “sociedade de consumo” do pós-guerras,
acaba gerando como efeito combinado (e de certa forma não intencional) a
propagação do “American way of life” – a pregação sem fronteiras do modo de
vida capitalista em sua versão norte-americana. O consumo e sua busca
incessante instituídos como modus vivendi para o conjunto da sociedade.
A necessidade da inovação para a manutenção de fatias do mercado é
levada ao paroxismo de se orientar toda a cadeia produtiva para o fim da venda,
ou seja, à realização do capital e não mais à produção em si. De um lado
observa-se a criação de “modas” artificiais e a introdução constante de novos
“modelos” que pouco distam dos produtos anteriores no mercado, enquanto,
por outro lado, devemos lembrar que grande parte dos gastos em Pesquisa e
Desenvolvimento é destinada ao desenvolvimento da forma de venda dos
produtos e não à inovação tecnológica como geralmente é propagado.
Um exemplo claro da forma como se manifesta a renda monopolista
sobre marcas e outras propriedades intelectuais – ou seja criações humanas no
campo da cultura - é dado pelo rato Mickey da Disney. Sua “escravidão”
segundo os órgãos de imprensa foi renovada por mais vinte anos ao se
estabelecer, através de mudanças na legislação norte-americana, a prorrogação
dos direitos de propriedade autoral sobre o já provecto ratinho. As ações da
135
Disney subiram, pois estão garantidos mais duas décadas de royalties sobre o
licenciamento do uso da imagem e marca associadas ao personagem. O
licenciamento de produtos – no caso de Mickey, lápis, lancheiras, fantasias de
carnaval, etc. - geram bilhões de dólares de lucros computados como “serviços”
pelos detentores do monopólio social sobre marcas e patentes.
Tal preço extra, cobrado sobre tais produtos licenciados não é
necessariamente resultado do trabalho específico de criação, mas sim
apropriação privada de elementos culturais que passam a ser capitalizados com
o estabelecimento do registro de marcas. Portanto, se como diz Fontenelle
(2002), todas as indústrias se tornam culturais - cultura do automóvel, do
hambúrguer, etc. – podemos afirmar que, sendo os símbolos culturais de
consumo162 uma propriedade privada, o poder de impedir sua fruição163,
permite ao proprietário da marca a cobrança de um valor extra que não está
ligado diretamente ao custo de divulgação do produto, mas antes expressa o
“monopólio social” sobre a marca, e a percepção subjetiva desta como símbolo
de status. Este status é percebido como um valor de uso cultural, uma
necessidade do espírito socialmente construída como as “relíquias santas” na
idade média164. Desta forma, a renda de monopólio derivada do status,
propiciado pelo consumo de determinado produto único ou raro, aparece como
a transferência da condição de monopolista para o consumidor. O fetiche
transformado numa necessidade do espírito criada e coisificada para aplacar a
ausência de sentido da vida burguesa além da acumulação de capital.
Tal renda é resultante da capacidade de realização subjetiva da marca. No
caso dos produtos de luxo, o que é vendido é o próprio fetiche da mercadoria, a
exclusividade do modelo, a alienação do restante da humanidade do consumo
da peça única – ou quase. O próprio monopólio social é transformado em valor
de uso, tornando a necessidade criada pelo status de ser proprietário na
consubstanciação do fetiche capitalista em sua forma extrema. Deste modo, seu
162 Ainda que construídos através de campanhas publicitárias. 163 O “poder ostentar” a roupa de grife, por exemplo. 164 Na verdade, o esquema da Igreja Universal do Reino de Deus, gentilmente apelidada
por alguns colegas nos seminários de projetos do Departamento de Sociologia de “Empresa Universal do Reino de Deus”, não dista de uma venda de paz espiritual (o valor de uso das seções de catarse coletiva) em troca dos dízimos (preço), cuidadosamente recolhidos na forma de carnês. A proliferação de templos gigantescos e a crescente participação destas religiões nos censos nacionais (7% ao ano na década de 1990, segundo Mariano (2001)), indica que, também a religião rende-se, deste modo, aos esquemas de reprodução ampliada do capital).
136
registro, a partir de regras socialmente instituídas pelo Estado e universalmente
aceitas, permite que a construção social de uma imagem que leve à associação
de qualidades a um determinado produto ou marca de produtos, sejam
explorados de forma exclusiva por uma empresa165. A renda diferencial
originalmente gerada torna-se portanto, a base material para a cobrança da
licença ou royalty sobre a marca e, assim, a renda aparece como se tivesse
origem na potência social que esta comanda e não no monopólio sobre um
construto cultural.
Para se ter uma idéia das dimensões das rendas em questão, o
rendimento direto de royalties e outras licenças pagas aos EUA em 1999, eram
da ordem de U$ 36,5 bi (algo entre o PIB da Ucrânia de U$ 38,6 bi e o do
Nigéria de U$ 35 bi), segundo os dados do Banco Mundial (2001)166. O fluxo de
pagamentos dos EUA sobre patentes e licenças externas era de U$ 13,3 bi,
representando uma renda declarada de U$ 23,2 bi para a economia norte-
americana167 (pouco mais que o PIB do Uruguai ou da Síria no mesmo ano). É
necessário enfatizar que neste caso estamos diante de pagamentos diretos de
royalties e não dos rendimentos provocados por estes que se encontram
embutidos nos preços dos produtos exportados ou produzidos e vendidos por
filiais de multinacionais no exterior ou no próprio mercado doméstico – o que
torna estes números uma subestimação da grandeza real envolvida.
Desta forma, a exemplo das demais rendas monopolistas, a renda gerada
pelas marcas tem um caráter diferencial original que justifica seu rendimento,
ou seja, o reconhecimento social do pagamento de uma renda em troca de seu
monopólio constituído a partir do direito positivo. Também como as demais
rendas, os valores apropriados pelo monopólio das marcas são previamente
gerados no processo de produção e apropriados através de trocas desiguais,
165 Coerentemente a grife Louis Vuitton informa que seus produtos encalhados não
entram em liquidação, viajam de volta a Paris onde são incinerados “para não popularizar a marca”, segundo a assessoria de imprensa informou à coluna de Mônica Bergamo na Folha de São Paulo de 30/01/05, pág. E2.
166 Os dados para os demais países do G7 são, para 1999: Japão (U$ 8,1 bi), Reino Unido (U$ 7,9 bi), Alemanha (U$ 3,0 bi), França (U$ 2,0 bi), Canadá (U$ 1,2 bi) e Itália (U$ 0,6 bi).
167 Novamente, os dados para o restante do G7 são, para 1999: Japão (U$ 9,9 bi), Reino Unido (U$ 6,3 bi), Alemanha (U$ 4,4 bi), França (U$ 2,3 bi) e Canadá (U$ 2,6 bi) e Itália (U$ 1,4 bi). Com a exceção do Reino Unido que registra um superávit de U$ 1,6 bi em tais rendimentos, os demais países do próprio centro capitalista são deficitários nesta conta. Sempre lembrando que não se incluem aqui os rendimentos embutidos nos preços praticados pelas empresas no comércio internacional ou lucros realizados em outros mercados.
137
através das quais se subtrai uma parcela da mais-valia geral ao processo de
nivelação pela média. No limite, o preço dos contratos de licenciamento, a
exemplo da tecnologia, também são determinados pela disputa direta entre os
proprietários da marca e os capitalistas licenciados, constituindo deste modo,
mais um caso de renda absoluta.
Assim sendo, as rendas de monopólio, oriundas da propriedade
capitalista instituída sobre as potências sociais relacionadas à tecnologia e às
marcas, personificadas pelos royalties e licenças, são a forma de manifestação
social de massas de mais-valia subtraídas à nivelação pela média, que se
constituem a partir de superlucros, oriundos de monopólios construídos a partir
da relação entre empresas e Estado, onde a superestrutura estatal é utilizada
para garantir pela irradiação de seu monopólio social da força, a exclusividade
de tais marcas e processos. Também os royalties e licenças não são “produto”
das tecnologias e marcas, mas aparecem como novos espécimes de rendas
derivadas do monopólio social garantido sobre estas forças materiais utilizadas
na produção e circulação de mercadorias na forma da lei.
O próprio processo de acumulação capitalista leva as massas crescentes
de capital corporificadas nas grandes empresas a empreender políticas que lhes
permita fugir à nivelação da taxa de lucros pela média social. Este processo
constitui as empresas, e portanto o capital, como criadores de uma cultura de
produção e consumo cuja característica central é a busca incessante pela
economia de trabalho e a constante invenção de novas necessidades. Isto tem
como resultado a aceleração tecnológica e a criação de uma “cultura de
consumo” que torna descartáveis os produtos num horizonte de tempo cada vez
mais curto, indo inclusive além da idéia de obsolescência programada.
2. Os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D).
Com o advento da estratégia de P&D, a renovação tecnológica e os gastos
de diferenciação mercadológica tornam-se um elemento nevrálgico na função da
acumulação capitalista realizada pelas grandes empresas. Segundo Baran &
Sweezy (1974), na década 1953-1962 ocorre um aumento dos gastos de P&D das
grandes empresas norte-americanas de U$ 3,5 bi para U$ 12 bi. Mas o que se
138
lança como P&D (e se amortiza como custo) são gastos relacionados em grande
parte ao desenvolvimento de vendas.
Como vimos, tanto a tecnologia, quanto o desenvolvimento de marcas e
estratégias de diferenciação de produtos aparecem para as indústrias como
“investimentos”, quando na verdade constituem-se em custos da construção de
monopólios sociais – ainda que relativos a um mercado e limitados pela
concorrência oligopolista – que determinam a apropriação por parte das
empresas num primeiro momento de lucros diferenciais ou superlucros, que
num momento posterior consolidam-se como lucros monopolistas, através da
transformação da renda diferencial em renda absoluta.
Todavia, para o industrial prático, a taxa de “lucro” operacional deve
cobrir e remunerar os custos com os gastos de tecnologia e propaganda. Ou seja,
para a empresa, o cálculo do preço de produção das mercadorias continua sendo
composto por um markup aplicado aos custos de produção dados pela soma dos
gastos com capital fixo e variável e incluídos agora os custos de P&D como
“custos do capital intangível”.
Na verdade, tal operação de precificação embute na taxa de markup,
aplicada aos custos para a determinação do preço final, uma composição entre a
taxa de mais-valia extraída pela empresa e os lucros de monopólio apropriados
pela mesma (sejam provenientes da terra, de diferenciais tecnológicos ou das
marcas). Logo, o valor do produto será composto por Kc + Kv + MV + Lm.
Onde, Lm – os lucros de monopólio – substituem a renda da terra na fórmula
desenvolvida por Marx no volume III do Capital. A exemplo da renda da terra, o
valor dos lucros monopolistas será resultado da disputa estabelecida entre os
diferentes setores pela apropriação da mais-valia, sendo este um valor
indeterminado, embora tenha como base a renda diferencial que originou a
renda de monopólio168.
O desenvolvimento tecnológico através de P&D é um dos componentes
centrais do dinamismo do crescimento econômico pós-guerra. Vamos assim nos 168 A inflação de markup é provocada pela disputa da massa de mais-valia, cujo valor
total, como vimos, precede a distribuição, entre os diferentes setores capitalistas na forma de taxas de lucro que superpassam o valor total disponível num determinado momento num mercado nacional, como demonstrado em Neto (2002). Disto evoluirá a incapacidade de regulação do mercado provocada por uma crise de “hegemonia de mercado”, motivada pela dificuldade dos agentes perceberem alterações nos preços relativos como uma necessidade de adaptar-se a novos níveis de rendimento provocados por uma nova relação de forças até que se chegue a um novo equilíbrio.
139
antecipar a alguns temas que serão tratados adiante – na parte III - para não
desconectarmos este elemento da discussão aqui travada. O desenvolvimento
histórico do dispêndio de P&D se dá em aliança direta com os Estados-nação
centrais. Ou seja, parcelas do fundo público são utilizadas para seu
financiamento na Europa Ocidental, Japão e EUA169 onde se concentram as
principais matrizes de inovação tecnológica. Segundo Chesnais:
“Os investimentos em P&D estão entre as despesas industriais mais
concentradas do mundo [em termos de países e de empresas] [...] É
também um dos campos mais determinantes onde se entrelaçam as
relações de cooperação e de concorrência entre rivais” (Chesnais, 1996:
141).
De forma geral, no capitalismo de fins do século XX “a vinculação entre
conhecimento científico fundamental e tecnologia tornou-se sensivelmente mais
estrita” (Chesnais, 1996: 142), ocorrendo uma interpenetração entre a pesquisa
de novas tecnologias de uso industrial e a pesquisa de base “pura”, sem falar na
“pesquisa fundamental orientada” que tem ganho força. O investimento em
P&D se dá com base no eixo Estado-empresas oligopolistas nacionais, através de
programas de pesquisa voltados para as indústrias estratégicas e que dão
sustentação ao conceito de “concorrência sistêmica”, como discutido
criticamente por Chesnais (1996), ou em Porter (1993) para a visão de um
assecla do sistema.
A deslocalização de P&D normalmente está relacionada com unidades de
produção para adaptação tecnológica ou aproveitamento de vantagens
oferecidas pelo Estado hospedeiro. As atividades destes laboratórios têm se
desenvolvido com a integração das empresas, o novo papel do marketing e a
crescente adequação dos produtos à demanda individual dos consumidores170.
As inovações das telecomunicações associadas à informática também
contribuíram para a descentralização de algumas atividades de P&D.
169 No caso dos EUA o dispêndio realizado pelas “Fundações” – órgãos criados pelas
empresas com incentivos públicos - são direcionadas ao “patrocínio” da pesquisa básica nas universidades norte-americanas, com a clara intenção de sua utilização aplicada aos negócios.
170 “A mundialização impulsionou um número crescente de grupos a adotar (juntamente com a forma de holding financeira) um modo de organização multidivisional, com a criação de divisões semi-autônomas, responsáveis pela gestão de diferentes produtos (ou linhas de produtos) ou por diferentes áreas geográficas. Isto levou a mudanças na localização da P&D no organograma dos grupos” (Chesnais, 1996: 151).
140
Além disto, a área de P&D é tipicamente definida pela “invasão recíproca”
(o estabelecimento de operações no país de origem dos adversários), “sucção de
informações” (espionagem industrial e contratação de ‘cérebros’ das
concorrentes), acordos de cooperação (alianças estratégicas) e fusões
(concentração de capitais, normalmente após o debilitamento de uma das
concorrentes ou como resposta a fusões de outros concorrentes). Os ramos
farmacêuticos e de biotecnologia são os setores nos quais estas áreas estão
melhor desenvolvidas devido à necessidade de testes, patenteamento e registros
junto aos ministérios da Saúde de diferentes países. De forma geral:
“A internacionalização da tecnologia pelas multinacionais não se limita a
suas atividades de P&D, de acompanhamento tecnológico e de
centralização e apropriação de conhecimentos. Inclui as medidas
tomadas pelos grupos para proteger suas tecnologias privadas e impedir
que sejam imitadas ou utilizadas sem a concordância dos proprietários,
conforme as leis de patentes e instrumentos jurídicos internacionais,
recentemente reforçados. E abrange ainda a formação de ‘alianças
estratégicas’ internacionais entre os grandes grupos, bem como a
elaboração de normas industriais, através de cooperação que, às vezes,
começa desde a fase de desenvolvimento tecnológico” (Chesnais, 1996:
163).
Este padrão se explica pela característica dos ganhos advindos de
tecnologias e marcas abrirem oportunidades de lucros monopolistas. Deste
modo, a construção do sistema internacional de patentes e marcas é produto
direto da necessidade de proteção de seus interesses. As empresas agem como
poderosos atores políticos estabelecendo políticas em âmbito internacional,
usando para isto as alianças constituídas com seus Estados de origem e a
barganha com os Estados hospedeiros171.
A proporção de patenteamento no exterior – registro de patentes por não
residentes -, indicando a “invasão recíproca” dos territórios econômicos pelo
capital internacional, é alta nos EUA e UE (45%) e baixa no Japão (12%). Este
último sofre pressão constante para abertura de seu mercado e sistema de
171 Exemplos podem ser encontrados em Stopford & Strange (1991), Strange (1998) e
Chesnais (1996).
141
inovações à ação integrada, em particular por parte dos EUA que tem imposto a
seu aliado crescentes relaxamentos de sua legislação.
O patenteamento tanto serve à defesa da exploração da tecnologia ou
marca de forma direta (evitando a cópia) como pode ser utilizado para
licenciamento, gerando royalties. Não por acaso, o Tratado de Marrakesh172
impõe normas draconianas à cópia de propriedade intelectual. Devemos ter em
mente ainda que a Organização Mundial de Propriedade Intelectual, instituída
em 1970, apresenta também como monopolizáveis, e portanto analisáveis com
base nos termos aqui desenvolvidos, as indicações geográficas de origem e o
desenho industrial173.
Além do componente de ação no sentido de “construir barreiras” que
garantam a rentabilidade de seus investimentos, os grandes grupos de capital
concentrado tecem redes de alianças para a pesquisa de tecnologias genéricas,
reforçando sua interdependência. “A repartição dos custos astronômicos de
P&D, que poucos grupos podem suportar sozinhos, bem como a troca de
conhecimentos tecnológicos, por intercâmbio cruzado e outras formas, serve de
base para uma considerável proporção das alianças” (Chesnais, 1996: 169).
Além das barreiras de entrada clássicas aos mercados (vantagens absolutas,
economias de escala e diferenciação de produtos) o peso da tecnologia torna-a e
à mão-de-obra qualificada para manuseá-la ou operá-la, fatores fundamentais
como barreiras de entrada nos mercados174.
Outra barreira de mercado, criada em tempos recentes, é estabelecida
pela normatização, que inicialmente se dava nos mercados nacionais e
atualmente é pactuada internacionalmente, em geral refletindo a força dos
oligopólios e deixando os interesses das diferentes sociedades nacionais de lado.
Poucos Estados são capazes de interferir nestas negociações, pois “muitas vezes,
é no estágio informal que se realiza o consenso entre os agentes principais
(industriais, prestadores de serviços, grandes usuários da indústria e dos
serviços)” (Chesnais, 1996: 178). Este processo de internacionalização da 172 O Tratado de Marrakesh concluído em 1994, faz parte da Rodada Uruguai do antigo
GATT e estabelece a legislação básica do chamado Acordo TRIPS - os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio.
173 A evolução histórica do Tratado de Cooperação em Patentes (WIPO, 1970 e 2004) gerido e coordenado por esta entidade multilateral sediada em Genebra, está disponível na internet no site: www.wipo.int.
174 Esta última barreira é denominada de “economia de aprendizagem” (cf. Porter, 1993).
142
disputa capitalista tem gerado uma crescente tensão entre alguns setores ainda
fortemente “nacionais” - em termos de organização de mercado - e as grandes
corporações que tendem a impor reduções nas margens de lucros dos primeiros.
Ao longo das últimas décadas do século XX, as normas passaram a ser
elaboradas “por antecipação” devido aos riscos de prejuízos envolvidos. “Estas
[normas] começam a ser esboçadas durante a própria fase de P&D, eliminando
assim a competição entre tecnologias alternativas” (Chesnais, 1996: 178). Neste
caso, a ação se dá pelo conjunto das empresas de um setor contra o restante dos
capitalistas. A normatização antecipada permite às empresas portadoras de
tecnologias genéricas comuns estabelecer uma competição segmentada contra o
restante do mercado, viabilizando, destarte, a subtração de uma parcela da
mais-valia à nivelação pela média pelo conjunto do setor e limitando a disputa
por esta massa de trabalho abstrato socialmente objetivado às empresas do
oligopólio.
Em tais políticas de aliança, entretanto, “o resultado final não é um
‘superimperialismo’ estável à maneira de Kautsky. Trata-se de um processo
combinado e permanente de ‘decomposição e recomposição dos oligopólios’”
(Chesnais, 1996: 179). A ação das empresas parece ter cada vez menos sentido
econômico e mais sentido político na medida em que a acumulação subordina-
se crescentemente a uma instável política de alianças envolvendo empresas com
perfis complementares e Estados, além de pactos com concorrentes. A disputa
pelo mercado gradativamente assemelha-se à disputa por territórios
econômicos, envolvendo tanto a rede de fornecedores quanto a de distribuição.
As ações ganham, desta forma, conteúdo estratégico em diversos sentidos. Neste
contexto, as motivações para a construção de parcerias podem ser
absolutamente agressivas, visando destruir ou incorporar o concorrente ou
parceiro:
“O problema crucial das parcerias estratégicas é então, muitas vezes, o do
equilíbrio precário na correlação de forças entre os parceiros e a ameaça
de prevalência de um parceiro sobre o outro.”[...]“Porter e Fuller
propuseram uma tipologia da escolha do aliado e dos motivos que leva à
aliança: 1) posse de uma fonte cobiçada de vantagem competitiva; 2)
complementaridade; 3) identidade de enfoque acerca das estratégias
internacionais; 4) baixo risco de se tornar concorrente no próprio campo
143
de cooperação; 5) compatibilidade de estruturas organizacionais; 6)
necessidade de se associar antes que isto seja feito por outras
companhias rivais.” [...] “É nesse quadro que se situam as opções
oferecidas às pequenas e médias empresas, bem como às companhias dos
pequenos países industrializados, que não sejam as multinacionais de
que se falou” (Chesnais, 1996: 180-1)175.
O resultado disto é que a concentração e a centralização de capitais levam
as empresas a procurar adonar-se de parcelas da esfera pública: regulação de
mercados e tecnologias; sistemas de comunicação; sistemas de inovação e
programas públicos de pesquisa cuja direção buscam influenciar;
regulamentação dos registros de marcas e patentes, etc. Na medida em que a
disputa pelo mercado avança para fora do mesmo, as empresas empreendem
passos no sentido de tornarem-se atores políticos e suas relações – entre si e
com relação a outros atores - tornam-se, cada vez mais claramente, relações de
poder.
Assim, se voltarmos ao aspecto relacionado à produção de valor, já bem
discutido por Neto (2002), veremos que:
“A lei do valor, naturalmente, é uma lei da concorrência. A fixação nos
dois primeiros aspectos da lei do valor implica mirar apenas a questão da
relação entre valores e preços, e portanto a concorrência intersetorial
entre os capitais. No entanto, a dialética valor individual – valor de
mercado, e a concorrência intra-setorial, são aspectos não menos
fundamentais da economia capitalista; são captados pela terceira
dimensão da lei do valor, o de lei de minimização do tempo de trabalho
abstrato. Ela determina (e redetermina), portanto, uma norma
produtiva, que tem implicações sobre a própria organização da
produção, sobre os métodos empregados etc., e este é seu sentido mais
profundo. Muito mais do que uma lei da distribuição (dos capitais e do
trabalho social), a lei do valor é uma lei da produção” (Neto, 2002: 242).
Veremos que este processo de produção, contudo, não está limitado ao
processo de produção material da sociedade e das relações de produção, ele
passa a ditar também as relações de consumo dos produtos e as normas de
175 Para um estudo sobre as estratégias de adaptação das pequenas e médias empresas
brasileiras do setor de máquinas ferramentas, ver Vermulm (1994).
144
valorização da vida (no sentido da construção social dos valores de uso), e
assim,
“... a constituição do trabalho abstrato, o desenvolvimento do valor até o
capital, o desdobramento do processo de trabalho em processo de
trabalho material e processo de valorização, modificam o caráter do
processo de produção (a produção de valores de uso é subordinada à
produção de valor) e suas condições técnicas. A necessidade de pautar a
produção pelo tempo de trabalho socialmente necessário – e de reduzi-lo
– molda o processo de trabalho” (Neto, 2002: 146).
Fica claro nos dois parágrafos anteriores que a lei do valor expressa nesta
dimensão implica na criação de uma cultura própria do capital como sujeito,
que leva os capitalistas práticos a realizarem determinadas ações com base
nestas leis cegas. A relação alienada dos capitalistas com o próprio capital
permite e determina um padrão de comportamento cuja finalidade única é a
acumulação permanente e desenfreada. Por sua vez, a aceleração dos processos
produtivos estabelece padrões de consumo em níveis que despregam a
necessidade (que passa a ser criada) de qualquer base material natural relativa à
vida humana, tornando a relação de consumo a própria consubstanciação do
fetiche da mercadoria. Como conseqüência, o reconhecimento social dos
indivíduos é hierarquizado a partir de seu padrão de consumo e o cidadão é
nivelado como consumidor e não mais como sujeito de direitos.
Constitui-se assim uma alienação do homem com relação à reprodução
de sua existência. O capital, enquanto substância social semovente que se
tornou Sujeito histórico, submete a humanidade a seu jugo, construindo
instituições e balizando os limites das instituições políticas de forma a garantir
sua reprodução. A classe capitalista age como capital concreto dando corpo às
determinações abstratas da forma valor em valorização, mas os próprios
capitalistas encontram-se subordinados a esta forma, daí a impressão de uma
hegemonia sem centro, externa à sociedade.
Como vimos no capítulo introdutório, o capital é uma relação social que
precisa ser estudada em dimensões outras que não as determinações normais da
produção do valor e do consumo. O capital enquanto trabalho pretérito é
constituído no próprio ato de reprodução da vida humana e torna-se desta
forma o centro mesmo do processo que constitui a concepção de mundo
145
burguesa, mas é também parte componente da forma como se constituem “a
religião, o Estado, a família, o direito a moral e a ciência”. Discutiremos agora os
movimentos que dão base a esta afirmação dentro do mundo da produção. No
espaço da fábrica e na relação da empresa, enquanto unidade de acumulação do
capital, com os demais atores sociais e a forma como se constitui a relação
capitalista como um consenso ditado pelo capital tanto na relação capital-
trabalho, quanto nas relações ente os diversos capitais.
146
Capítulo 5 - Aplicação da noção de hegemonia às relações de mercado.
Quando Gramsci afirma que “a hegemonia nasce da fábrica”, nos parece
claro que as formas de constituição do consenso são culturalmente construídas a
partir das relações de produção e que estas se refletem na sociedade através da
interação política da luta de classes no Estado. A forma como Gramsci, ao fazer
sua análise da sociedade norte-americana, relaciona força e consentimento nas
relações da base produtiva e a forma como isto permite à classe industrial a
ascendência sobre o comércio e os transportes176 é um tema bastante conhecido
da obra deste autor.
Propusemos no primeiro capítulo deste trabalho a idéia de que é o
próprio capital – entendido como relação que se estranha das pessoas que dela
participam e se torna Sujeito do processo histórico -, que se torna o centro das
relações de poder instituídas na sociedade, constituindo-se, desta forma, numa
relação que se observada do ponto de vista político deve ser descrita como o
capital hegemon. O capital deve ser visto, em outras palavras, como uma esfinge
176 “A América não tem grandes ‘tradições históricas e culturais’, mas tampouco está
sufocada por esta camada de chumbo: é esta uma das principais razões – certamente mais importante do que a chamada riqueza natural – de sua formidável acumulação de capitais, malgrado o nível de vida de suas classes populares ser superior ao europeu. A inexistência dessas sedimentações viscosamente parasitárias, legadas pelas fases históricas passadas, permitiu uma base sadia para a indústria e, em especial, para o comércio, possibilitando a redução cada vez maior da função econômica representada pelos transportes e pelo comércio a uma real atividade subordinada à produção [...] dado que existiam essas condições preliminares, já racionalizadas pelo desenvolvimento histórico, foi relativamente fácil racionalizar a produção e o trabalho, combinando habilmente a força (destruição do sindicalismo operário de base territorial) com a persuasão (altos salários, diversos benefícios sociais, habilíssima propaganda ideológica e política) e conseguindo centrar toda a vida do país na produção. A hegemonia nasce da fábrica e necessita apenas, para ser exercida, de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da ideologia” (Gramsci; 2000: IV/247-8).
147
dotada não apenas de sua face econômica, que comanda a reprodução material
concreta da sociedade, mas também como uma relação social que busca
subordinar o conjunto das relações sociais à sua lógica. Isto se dá através da
propagação ideológica da superioridade do sistema capitalista calcado no
consumo compulsivo e na acumulação incessante de riqueza através da qual o
capital busca subordinar ao seu movimento todas as formas da existência social,
constituindo desta forma um “totalitarismo de mercado”.
Ao longo deste capítulo discutiremos a forma como a concentração de
capitais dotou os pólos dinâmicos deste sujeito social da capacidade de retirar
parcelas crescentes da mais-valia extraída coletivamente pelo capital social geral
da distribuição normal dos lucros pela média e estabeleceu a constituição de
monopólios sobre potências sociais como a tecnologia ou elementos de cultura
associados a marcas e outros direitos de propriedade intelectual, colonizando,
desta forma, elementos da cultura com a forma própria de reprodução do
capital. Este processo dota o capital de uma face cada vez mais visível como
relação dominante na sociedade.
Nos parece evidente, porém, que isto não se dá sem resistências. Se por
um lado a Microsoft busca estabelecer seu domínio sobre os códigos para
computadores, o poderoso movimento de copyleft que gira em torno do código
Linux representa uma contrapartida de uma parcela crescente da sociedade que
se recusa à submissão. Da mesma forma, encontram-se na Internet cópias não
autorizadas de músicas, filmes e livros, além de conhecimentos de todo tipo (da
biologia a como construir uma bomba atômica).
Tal capacidade de reprodução ampliada do capital que se dá de forma
crescente, encontra limites também na capacidade da natureza de absorver os
impactos sobre o meio-ambiente, de um lado, e pela geração igualmente
acelerada de uma massa de excluídos, por outro. O que gera, a partir das
fraturas sociais e ambientais, movimentos políticos de questionamento do
padrão vigente177.
177 Esta é a ponta “civilizada” da contestação. Como contraponto devemos observar as
populações excluídas e condenadas à exclusão que cercam os bairros ricos com um mar de violência crescente e a mãe-terra começando a reagir aos desequilíbrios provocados pela ação humana com desastres ecológicos de dimensões cada vez mais dantescas. Voltaremos a abordar alguns pontos desta discussão sobre as implicações políticas deste processo no capítulo final deste trabalho, sem a pretensão, contudo, de esgotar o debate.
148
Queremos agora chamar a atenção para a “coordenação social do
processo de produção”. Este é o elemento chave para entendermos a ação do
capital como hegemon no nível do mercado, e como suas ações se refletem na
estrutura social mais geral. Para termos uma idéia de como esta situação é vista
pelos atores envolvidos do ponto de vista do capital, faremos uma breve
discussão sobre como alguns “intelectuais orgânicos” burgueses procedem a
exposição deste problema a partir das idéias de “capital intangível” ou “capital
intelectual”, que denotam sempre capacidades de gestão e organização da
produção que transcendem as técnicas diretas e a ciência aplicada empregadas
na produção. Pois, se
“a força produtiva do trabalho está determinada por múltiplas
circunstâncias, entre outras pelo nível médio de destreza do operário, o
estado de desenvolvimento em que se acham a ciência e suas aplicações
tecnológicas, a escala e a eficácia dos meios de produção, a coordenação
social do processo de produção, e as condições naturais” (Marx, 1984,
I/1: 49, sublinhado nosso).
Devemos voltar agora nossa atenção a alguns desdobramentos gerados
pela aceleração tecnológica, tendo em mente que esta gerou impactos tanto nas
relações entre as empresas como entre estas e os trabalhadores (direta e
indiretamente), tornando necessária a construção de explicações ideológicas
para tais processos que permitissem a construção e/ou manutenção do
consenso.
1. A política do capital segundo os managers. Galbraith (1982), em seu clássico O Novo Estado Industrial, introduz a
idéia de que as grandes empresas são unidades de planejamento econômico que
buscam minimizar os riscos do mercado, pois estes teriam, segundo seu
argumento, deixado de ser “seguros” para o investimento econômico baseado na
tomada de preços devido aos altos custos de investimentos tecnológicos e de
grandes plantas produtivas. O debate no qual está inserido o livro de Galbraith
está datado pelo ambiente ideológico da Guerra Fria no qual o autor se bate
para demonstrar que não existem grandes diferenças entre a intervenção estatal
e a ação de grandes empresas na busca de minimizar os riscos envolvidos em
grandes empreendimentos.
149
Assim, o que nos interessa de seu argumento é a idéia de que as empresas
buscam substituir os preços de mercado178 como mecanismos de determinação
do que será produzido e consumido, buscando suplantar, controlar ou
suspender as relações de mercado. Assim, as empresas suplantam os
mecanismos de mercado quando internalizam a produção de uma dada
mercadoria ou insumo que seja necessário a seu processo produtivo. Isto evita
que as empresas sofram com as oscilações de preços no mercado.
As empresas controlam o mercado quando reduzem ou eliminam “a
independência de ação daqueles aos quais a unidade de planejamento vende ou
dos quais compra” (Galbraith, 1982: 34), sendo que o principal método para
obter o controle do mercado é a constituição de contratos de longo prazo onde
são fixados preços e volumes de fornecimento. Este mecanismo tem a vantagem
de que “ao mesmo tempo, a forma exterior do mercado, inclusive o processo de
compra e venda, permanece formalmente intacta” (Galbraith, 1982: 34).
Finalmente, a suspensão do mercado, não é um atributo próprio direto
das empresas. A intervenção do Estado na economia tem a capacidade de
suspender a vigência dos mecanismos de mercado, estabelecendo por exemplo
preços mínimos para a agricultura ou realizando encomendas ao setor
armamentista ou de energia nuclear179.
Seguindo argumento semelhante, Chandler e Hikino (1997), discutem os
limites impostos pela escala de produção ao desempenho ótimo das empresas e
mostram como as empresas que passam a controlar o mercado o fazem com
base naquilo que Chesnais (1996) denomina “montagem de operações
complexas”, na medida em que:
1) uma escala mínima de produção deve ser atingida;
178 “Do ponto de vista do economista, do cientista político ou do estudioso profissional,
planejar significa substituir os preços e o mercado, como mecanismos de determinação do que será produzido e consumido a que preço” (Galbraith, 1982: 31).
179 No nosso entendimento Galbraith, confunde aqui dois processos. No primeiro caso, a suspensão do mercado no caso de preços mínimos da agricultura pode refletir o poder político do setor agrícola e sua capacidade de fazer valer seus interesses frente ao conjunto da sociedade, ou outras pressões no sentido de garantia de empregos, etc. No segundo caso, ele explica os preços pagos pelo Estado a partir dos custos de tecnologia e escala que seriam proibitivos para as pequenas empresas, não identificando em tais ações de suspensão do mercado pelo Estado, a relação do poder de controle do mercado – neste caso tendo o Estado como comprador - com a posição monopolista das empresas fornecedoras.
150
2) “a plena utilização dos recursos investidos requer a formação de
mercados e organizações distributivas em escala nacional e
internacional” (Chandler e Hikino, 1997:30)180;
3) a plena utilização em determinados setores implica na produção de
produtos correlacionados numa mesma planta;
4) e, finalmente, os ganhos das economias de escala dependem não só do
capital físico instalado mas também da ação coordenada do capital
intangível para que ela se realize de fato.
Tal capital intangível é fundamental também, segundo os autores, para o
posicionamento estratégico das firmas e ocupação de “áreas de mercado”. Sob a
idéia de capital intangível os autores agrupam tanto o domínio de
conhecimento tecnológico, quanto as capacidades “relacionais” internas e
externas à empresa, oriundas da “cultura’ empresarial e da “capacidade de
liderança” de gerentes e diretores. Assim, as “atividades de coordenação”
passam a desempenhar um papel central para a manutenção do funcionamento
e a obtenção de resultados dos grandes grupos que compõem o oligopólio
capitalista em escala global.
Autores como Porter (1986 e 1993) e Davenport & Prusak (1999) embora
dêem nomes diferentes ao problema (economia de aprendizado e capital
intelectual), também enfatizam a necessidade da empresa líder portar-se como
coordenadora do processo produtivo através da constituição de “alianças
estratégicas” e “culturas corporativas”.
180 Arrighi adota a leitura de Chandler para justificar a idéia de que o seu quarto ciclo
sistêmico de acumulação seria baseado numa internalização dos custos de transação, pois “como mostrou Chandler (1977; 1978), internalizar num único campo organizacional atividades e transações antes executadas por diferentes unidades permitiu que as empresas formadas por diferentes unidades e dotadas de integração vertical reduzissem e tornassem mais fáceis de calcular os custos de transação – isto é, os custos associados à transferência de insumos intermediários, através da longa cadeia de domínios organizacionais separados que vinculam a produção primária ao consumidor final” (Arrighi, 1996: 247). Esta abordagem é passível de sofrer pelo menos dois questionamentos sérios. Primeiro, ignora o fato de que nem todas as empresas subordinadas no processo de acumulação fazem parte do mesmo grupo e que, portanto, ocorre geração de valor fora do grupo, ou da empresa líder, que é incorporado aos seus lucros via trocas desiguais e relações de dependência. Antes, a empresa rede é justamente a expressão do uso desta coordenação para extrair rendas de outras empresas. Segundo, toma como generalizada uma estrutura organizacional que, segundo Porter (1993) varia de indústria para indústria. Além disto, o papel da oligopolização da indústria e da construção de barreiras monopolistas é largamente ignorado, simplesmente tomando os ganhos de “internalização de custos de transação” e de “economias de velocidade” advindas da inovação técnica como “vantagens comparativas” exatamente como enunciados pela literatura de administração, sem maiores críticas.
151
Mas o que é o capital intangível ou intelectual? Ora, as concepções de
capital intangível ou intelectual refletem nada mais do que a capacidade da
empresa tornar-se centro diretivo, produtor e irradiador de uma ideologia, a
competência de conformar o setor econômico a sua concepção de produção, a
integrar setores da vida social a seu modo específico de acumulação de capital e,
finalmente, a capacidade de, interagindo com a sociedade política no Estado,
convencer a sociedade civil, onde estão incluídas as outras empresas, que seus
interesses se confundem com os interesses da comunidade como um todo e,
portanto, tornar hegemônica sua visão de mundo tanto econômica, como
também cultural e politicamente. Na noção de capital intangível estão incluídas
tecnologias e marcas, que como vimos permitem superlucros, mas também a
capacidade de “relacionamento” da empresa com o meio, sua ação “estratégica”,
política, que reflete sua “cultura corporativa”.
Do ponto de vista histórico, a expansão dos grandes oligopólios após a I
Grande Guerra se dá segundo Chandler e Hikino a partir de quatro eixos: 1) a
expansão horizontal; 2) a integração vertical; 3) a expansão geográfica; e 4) a
diversificação do produto. Ainda segundo estes autores, o século XIX foi
marcado pela expansão capital intensiva, ao passo que o século XX seria o
século do capital intangível, em particular após o término da II Grande Guerra.
Tal datação corresponde justamente à construção da hegemonia (aqui
entendida em sua concepção mais tradicional) do Estado norte-americano
dentro do bloco capitalista ocidental e nos permitirá postular, nos próximos
capítulos, a idéia de que o modelo industrial centrado em grandes empresas
oligopólicas de capital aberto é a forma típica de expansão do capital norte-
americano e europeu, sendo esta uma das principais instituições adotadas pelos
demais países capitalistas do ocidente e do oriente ocidentalizado (Japão e
NICs) ainda que guardadas características próprias às legislações locais. Já
discutimos como a disseminação do american way, como cultura hegemônica
das relações de consumo, reflete e se confunde com a hegemonia de mercado
construída por tais empresas, a partir do estabelecimento de suas marcas e
campanhas publicitárias181.
181 Segundo Gramsci, o problema não é se os EUA têm uma cultura, já que a cultura
norte-americana não é mais que um “remoer a velha cultura européia”, mas saber se as transformações ocorridas na América, em particular na base econômica, obrigariam a Europa a uma adequação de seu modo de vida e de sua cultura que estariam sendo pressionadas pela
152
A preocupação central de Chandler e Hikino (bem como de Davenport e
Prusak), entretanto, é a capacidade de aprendizagem organizacional de tais
empresas. Eles chamam a atenção para a construção de redes de produção e
comando para frente e para trás na cadeia produtiva, os processos de
aprendizagem por tentativa e erro e avaliação, e o fato de que muitos destes
conhecimentos são dificilmente compartilháveis por ramos diferentes da
indústria182. No entanto, tal análise prescinde quase totalmente da existência do
Estado, exceto quando fala de uma grande participação do componente
tecnológico. Neste caso, os próprios autores reconhecem, ocorre uma forte
participação de investimentos estatais, sendo este um dos fatores que, como
vimos, leva ao posicionamento estratégico dos laboratórios das grandes
empresas nos pólos da tríade183.
Dada a natureza de seu trabalho centrar-se justamente na “vantagem
competitiva das nações” Porter (1993) afasta-se da análise de Chandler e Hikino
neste ponto, chamando a atenção tanto para a importância da regulação estatal
na organização da indústria, quanto da necessidade da ação empresarial no
sentido de influenciar a ação estatal a seu favor. Podemos, a partir desta
constatação, incluir também entre as capacidades necessárias a estas empresas
o desenvolvimento de negociadores aptos a articular os interesses do grupo
industrial com o setor financeiro e também com o Estado, como destacado por
Stopford e Strange (1991).
É interessante notar que a multinacionalização, do ponto de vista de
Chandler e Hikino, teria gerado estruturas descentralizadas com fronteiras
“prepotência” americana. “Os elementos da ‘nova cultura’ e de ‘novo modo de vida’ que hoje se difundem sob a etiqueta americana não passam das primeiras tentativas, feitas às cegas, devidas não tanto a uma ‘ordem’ que nasce de uma nova estrutura, que ainda não se formou, mas à iniciativa superficial e macaqueadora dos elementos que começam a se sentir deslocados pela ação (ainda destrutiva e dissolutora) da nova estrutura em formação” (Gramsci; 2000: IV/280). Ou seja, estamos diante de uma alteração do próprio sistema capitalista. “... trata-se de um prolongamento orgânico e de uma intensificação da civilização européia, que apenas assumiu uma nova epiderme no clima americano” (Gramsci; 2000: IV/281). Neste sentido, o american way, é apenas a resultante capitalista que o sistema gestou em ultramar e que volta para assombrar os sonhos das formas específicas do equilíbrio europeu. A aceitação do americanismo na Alemanha, para Gramsci, é reflexo da destruição da guerra e dos efeitos da crise de 1929, menos sentidos na França que, neste sentido, permanece refratária. Os BOBOs (Brooks, 2000) podem ser vistos assim como uma superação da burguesia WASP, uma nova forma para a velha classe que conserva algumas das características da anterior.
182 De forma similar Porter (1993) fala de “cadeias de valores”. 183 Tríade é a expressão usada para denominar o grande mercado formado por EUA,
União Européia e Japão, compreendidos como líderes de suas regiões no processo de expansão capitalista.
153
nacionais borradas, embora, ao mesmo tempo ocorra a manutenção de uma
hierarquia relativamente rígida dentro das empresas multinacionais. Tais
fronteiras borradas fazem parte de uma aparência que, no nosso entendimento,
deriva da necessidade que as empresas passam a ter de moldar-se à cultura local
como forma de poder competir por fatias dos mercados184, ainda influenciada
por ideologias com vieses nacionalistas. Estrategicamente, torna-se interessante
apresentar como “produto nacional” os resultados de uma tecnologia e capital
de origem estrangeira. Além disto, a montagem de operações de financiamento,
ajuda estatal e redes de fornecedores variarão de acordo com o ambiente
institucional e a cultura de cada país, estando longínqua ainda a pasteurização
pretendida pelo discurso de globalização.
Vemos assim que, apesar de apreenderem muito da forma concreta como
se estabeleceram os grandes grupos oligopolistas na economia mundial
construída no século XX, ao se apegarem a idéias como as de capital intangível
e capital intelectual, os autores do managering, confundem-se com relação à
essência, o conteúdo, das relações estabelecidas por tais agentes. A idéia de
intangibilidade do capital remete a resultados extra-econômicos não
mensuráveis, a relação de como o poder do capital concentrado possibilita
impor trocas desiguais aos capitais associados e ao conjunto da sociedade, que
só podem ser relacionados às empresas de forma abstrata a partir do
conhecimento e da capacidade de seus gestores de realizar as articulações
produtivas.
O capital intangível, neste sentido, é um conceito que busca descrever a
ação do capital, mas a partir de sua face diretamente econômica, preocupado
com os resultados no âmbito da produção e no resultado tangível dos lucros.
Sua face de relação social (sujeito semovente tornado independente da vontade
de seus suportes materiais), neste sentido descreve a capacidade de montagem
de articulações políticas e econômicas e permite de um lado a apropriação por
parte das empresas de parcelas do fundo público (isenções tributárias,
subsídios, contratos governamentais, etc.) e de outro a apropriação dos lucros
empresariais de fornecedores e distribuidores, apareçam como resultado de
ações de organização interna às firmas, fruto de sua “cultura superior”, e não
184 O que também é a percepção de Fontenelle (2002: 41-5) embora esta não utilize o
conceito de hegemonia gramsciano em sua análise.
154
como ações deliberadas que objetivam a mudança cultural e política que
sustenta a extração de rendas monopolistas.
Embora a ação das empresas se torne cada vez mais claramente política,
a forma como os conceitos são desenvolvidos pretende remetê-los ao capital
(entendido como propriedade privada de origem estritamente econômica) e às
capacidades pretensamente “intrínsecas” à cultura das grandes corporações e
não à exteriorização de seu poder em formas políticas e culturais.
Davenport e Prusak, por exemplo, associam o conhecimento empresarial
ao conjunto de habilidades necessárias para a obtenção de resultados
econômicos com base nas tecnologias dadas e que são “conhecidas” pelos
membros das empresas. Neste movimento são igualados empregados do setor
produtivo e gestores. Os autores afirmam mesmo que “a única vantagem
sustentável que uma empresa tem é aquilo que ela coletivamente sabe, a
eficiência com que ela usa o que sabe e a prontidão com que ela adquire e usa
novos conhecimentos” (Davenport & Prusak, 1999: xv). Assim, a idéia de gestão
do conhecimento para estes autores engloba tanto as formas concretas pelas
quais se adaptam processos produtivos a diferentes plantas quanto os
procedimentos necessários à aprovação de um novo remédio pela Federal
Drugs Administration (FDA)185. Desta forma, a idéia de capital intelectual
coloca no mesmo balaio os conhecimentos técnicos relacionados ao processo
produtivo com aspectos relacionados à gestão dos negócios e à construção da
imagem e das relações da empresa com o restante da sociedade.
Do ponto de vista do processo produtivo, a função desempenhada por
uma determinada empresa, ou conjunto de empresas, num setor produtivo em
que estas se tornam capazes de atender à demanda global por um determinado
serviço, as coloca também na posição de determinar a cultura de consumo
daqueles bens186 (Porter, 1993, diria mesmo que tal determinação deve fazer
parte dos objetivos estratégicos das corporações).
Ao estabelecer ligações estratégicas com outras empresas, estas se
comprometem com programas comuns que extrapolam em muito a ação
185 Trata-se da agência americana responsável pela liberação de remédios para uso
humano. 186 Podemos citar como exemplo produtos de obsolescência programada como os
modernos aparelhos de reprodução fonográfica e de vídeos cuja tecnologia disponível já bastaria para 20 a 30 anos de novos produtos a partir dos atuais padrões de consumo.
155
coordenada para extração de mais-valia. Tais empresas ditam a própria
dinâmica de acumulação de capital dos setores não oligopolizados e das
empresas a ela subordinadas. Desenvolve-se claramente uma relação de
dependência mútua. A empresa líder reserva “seu mercado” para o fornecedor
ou distribuidor, garantindo margens mínimas de lucratividade para aquele,
enquanto estabelece para si uma nova margem de lucro, mais alta, através da
apropriação da mais-valia extraída no conjunto das empresas. Por outro lado,
cabe à empresa oligopolista o estabelecimento do padrão tecnológico e a
transferência (de forma diretamente remunerada ou não) deste padrão
tecnológico para o conjunto das unidades produtivas envolvidas.
Assim, de forma dialética, a subordinação dos capitais concorrenciais a
empresas do núcleo oligopolista possibilita o desenvolvimento da capacidade da
transferência da mais-valia extraída por estes para o capital concentrado no
mesmo processo pelo qual estas empresas se tornam dependentes das empresas
líderes. A exemplo do mercado global, o “centro” dita a dinâmica da “periferia”,
e isto traz implicações para as taxas de lucro auferidas pelos diferentes atores.
Por outro lado, ao estabelecer a dependência de fornecedores e
distribuidores a seus imperativos, os gestores destas outras parcelas do capital
se tornam “reprodutores” da cultura disseminada por estas empresas líderes. O
interesse do líder passa a ser visto pelo associado como seu interesse,
possibilitando desta forma que demandas direcionadas, por exemplo, ao fundo
público, em busca de isenção de impostos ou outros subsídios, sejam
apresentadas como demandas do conjunto da rede produtiva e não apenas do
centro oligopolista. Esta observação é particularmente relevante quando
estudamos economias periféricas como a brasileira onde a dinâmica econômica
é largamente ditada por capitais estrangeiros.
Assim, é no processo de coordenação da produção que se verificam as
ações de construção e disseminação de relações culturais e políticas através das
quais o capital concentrado subordina a seu processo de acumulação os capitais
que se encontram a ele ligados no processo produtivo. Às trocas desiguais que
denotam posições monopolistas somam-se situações que re-introduzem na
circulação capitalista situações pretéritas do modo de produção, baseadas no
lucro comercial direto e também na usura. O lucro comercial reaparece agora
não como algo fortuito, mas como algo estrutural, calcado na imposição de
156
preços mais baixos à jusante, ou mais altos à montante da cadeia produtiva, em
favor da empresa dominante, enquanto a usura se consubstancia em taxas de
juros despregadas das teoricamente praticadas como “médias” pelo mercado,
como discutiremos no próximo item.
A “punção oligopsônica/oligopólica” e a “punção financeira”.
O “lucro comercial” e a usura como rendas diferenciais relacionais.
Os lucros de monopólio auferidos pelas grandes empresas do capital
societário187 não se limitam às rendas que provêm do monopólio sobre marcas e
patentes. Em suas relações com as empresas menores as grandes empresas
fazem uso de sua capacidade organizacional para barganhar, a partir de seu
próprio poder, a construção de contratos que pressupõem trocas assimétricas.
Em outras palavras, o mecanismo de controle do mercado de Galbraith não
permite às empresas eliminar apenas as oscilações de preços do mercado, na
verdade estas empresas são capazes de produzir rendas diferenciais a partir de
monopólios clássicos de mercado (por exemplo, suas próprias compras) e de
introduzir, através da troca desigual, o lucro comercial e a usura (no caso de
negociações de crédito) como componentes estáveis do sistema. Como
resultado, acaba se gerando mais um elemento de desequilíbrio no processo de
nivelação da taxa de lucros do capital social global188.
Vimos que as estratégias baseadas em tecnologias e marcas visam na
verdade a obtenção de superlucros e rendas absolutas, auferidos com base no
monopólio social propiciado pela alteração da forma de ver o mundo que
187 O termo societário refere-se estritamente neste trabalho às formas construídas pela
propriedade na forma de Sociedades Anônimas. A tradução do termo Corporation para corporação e a propriedade desta para corporada nos pareceu um anglicismo forçado e desnecessário, além de duvidoso, já que nos livros de Direito Comercial nos utilizamos das Sociedades Anônimas (S.A.s) e do termo societário para referirmo-nos a tais elementos em língua portuguesa.
188 Permanece válido na situação de monopólio o argumento desenvolvido por Neto para a situação de concorrência perfeita, segundo o qual “a circulação interfere na determinação do valor apenas transferindo um valor já existente entre as mercadorias. As mercadorias, para Marx, são portadoras de um valor que não é intrínseco a elas; o valor é uma relação social, não uma propriedade das coisas, e nenhuma contradição aparece se as mercadorias M transferem mais ou menos valor ao produto do que elas adquirem na produção” (Neto, 2002:189).
157
constitui o autor como “proprietário” da obra189 e que se consubstancia na
legislação de marcas e patentes. Falta-nos ainda discutir a partir do exposto as
relações que Chesnais denominou de “punção oligopólica” e de “punção
financeira” que envolveriam tanto as formas de renda já estudadas, como a
capacidade de imposição de transferência de parcelas da mais-valia (sempre
através de mecanismos de preços) extraída dentro das operações em rede
(tomando por base não só o encadeamento produtivo, mas também as fases de
comercialização e de circulação do capital).
Segundo Chesnais (1996: 104-5), nos últimos vinte anos as empresas
passaram a externalizar a realização de certos serviços criando quase-
hierarquias190 e reforçando sua posição econômica com base nas relações
assimétricas, ou seja, empresas que haviam realizado a internalização vertical de
custos, a suplantação do mercado de Galbraith (1982), transformam estes
processos em relações com firmas “terceirizadas” sob seu controle. O keiretsu
japonês é a mais perfeita forma de empresa rede, combinando o poder
industrial e financeiro, altamente diversificado, com uma estrutura
aparentemente frouxa e muito descentralizada. O toyotismo (que é a expressão
deste tipo de organização na forma direta de produção), por sua vez,
“deslocaliza” a produção através de contratos de longo prazo que terceirizam a
hierarquia do grupo para empresas juridicamente independentes.
“A empresa-rede apresenta-se então, não como uma ‘ruptura’ com as
hierarquias e a internacionalização, mas antes como uma nova forma de
organizar e gerenciar essas hierarquias, bem como de maximizar as
possibilidades de ‘internalizar’ as ‘externalidades’ [...] proporcionadas
pelo funcionamento da rede” (Chesnais, 1996: 109).
Para Chesnais, custos que seriam “irrecuperáveis” agem como barreiras à
entrada em determinadas indústrias com forte investimento em P&D. O reforço
189 O caderno Mais! da Folha de São Paulo de 18 de abril de 2004 (Droit, 2004) traz uma
interessante resenha sobre o livro de Bernard Edelman (2004) “Le Sacre de l´Auteur” [A Sagração do Autor] Ed. Seuil, onde este arqueólogo e historiador busca traçar a gênese do direito autoral no ocidente.
190 Neste caso o grifo é nosso. Quase em que? A hierarquia é produzida pelo uso do constrangimento econômico e o convencimento da necessidade da aliança com o grupo dominante para que o pequeno capital mantenha alguma rentabilidade (ainda que o preço disto seja abrir mão de sua autonomia e reduzir esta rentabilidade em prol da empresa líder). Ainda que encontremos nestes casos relações ressentidas - o pequeno capitalista percebe-se sendo explorado - tal exploração é consentida de forma consciente, formando-se um claro aspecto de tensão e cooperação simultâneas.
158
a estas indústrias seria dado pela apropriação de quase-rendas191 de inovação do
tipo schumpeteriano, que podem ser reinvestidos imediatamente. Além das
tradicionais barreiras à entrada nos oligopólios – vantagens de custos;
diferenciação de produtos (orçamentos de propaganda e ‘inovação de produto’)
e economias de escala, teríamos também novos tipos de vantagens
estratégicas: custos burocráticos; economia nos custos de transação (via
internacionalização) e a capacidade gerencial para realizar estas transações. O
que implica num aumento do peso da “viabilidade informacional” – a
capacidade das empresas gerenciarem o grande fluxo de informações -
normalmente restrita às grandes empresas. Ora, tal complexidade é justamente
a característica mais marcante do capital altamente centralizado que compõe as
empresas dinâmicas do sistema. Seria como dizer que “a barreira para se tornar
grande é se tornar grande”. A explicação do poder destas empresas deve
portanto transcender sua mera caracterização.
Como vimos, a empresa enquanto local de produção geralmente funciona
como pólo no qual alterações quantitativas (por exemplo, a concentração em
grandes plantas) determinam mudanças qualitativas (o estabelecimento de um
desequilíbrio na relação de poder possibilitado pelo oligopsônio). Alterações nas
diferentes industrias, ao estabelecerem-se como padrão (novamente
quantitativamente) acabam por alcançar a forma e o conteúdo da
superestrutura estatal que regula o funcionamento do mercado. Entretanto, este
processo mesmo deve ser dividido em diferentes formas e conteúdos.
A forma concreta e específica das diferentes produções, e das diferentes
formas de apropriação do excedente, correspondem a uma forma geral burguesa
de apropriação privada do mesmo. Por outro lado, as disfunções do mercado
levam ao surgimento de formas de apropriação indiretas do excedente, na forma
monetária, financeira e a decorrente da concentração setorial dos capitais que
derivam da estrutura de mercado oligopolista. Assim, paralela à construção de
uma justificativa para a apropriação do excedente por parte da classe burguesa
como um todo, processa-se um conjunto de operações através das quais setores
da burguesia apropriam-se de parcela dos lucros extraídos por outros
191 Já vimos que não se tratam de rendas, muito menos de “quase” qualquer coisa, mas
sim de lucros monopolistas.
159
capitalistas. Esta operação se dá através das empresas de capital altamente
concentrado do capitalismo contemporâneo192.
Por deter a capacidade de determinação do padrão tecnológico a ser
utilizado, tais empresas impõem a seus fornecedores um determinado padrão de
produção (a forma de relação do homem com a natureza), impõem a seus
distribuidores uma forma de relação com a clientela (a forma da relação social
da troca) e impõem à sociedade como um todo uma determinada forma de
relação com seus produtos (a forma de relação do homem com o produto do
trabalho, expressa no consumo como segunda natureza). Ou seja, elas são
capazes de determinar as relações básicas do próprio modo de produção. E,
além disto, os modernos oligopólios detém a capacidade de determinação das
taxas de rentabilidade (a forma de repartição e apropriação do excedente) das
diferentes operações em que se decompõe a cadeia produtiva, através do
controle que exercem sobre este mercado, que vai muito além da formulação
proposta por Galbraith.
Grande parte do setor de serviços (assistências técnicas e serviços de
manutenção), por exemplo, é produtora de valor industrial, na medida em que a
manutenção de bens duráveis restaura sua capacidade de atender as
necessidades humanas e, portanto, seus valores de uso. A fralda produtiva (os
produtores associados à empresa “dinâmica”, constituída não apenas por
fornecedores de peças, mas toda a rede de serviços de manutenção e pós-venda,
em particular nos setores de bens duráveis) constitui-se em espaços de mercado
onde pequenos capitais estão submetidos à lógica da acumulação das grandes
companhias que determinam a dinâmica de funcionamento do mercado e
drenam para si, através do mecanismo das trocas desiguais, o excedente aí
produzido. Como decorrência, em virtude do achatamento da rentabilidade dos
pequenos capitais os levarem à busca constante de formas pelas quais impedir a
diminuição de seus lucros, podemos constatar um dos elementos mais
chocantes do mundo contemporâneo: a retomada da exploração da mais-valia
de forma extensiva, além da intensiva, como jamais pensada nos tempos do
Estado de Bem-Estar Social.
192 A forma financeira está relacionada ao crédito e será desenvolvida em capítulo
posterior.
160
Partindo do exposto, podemos compreender como determinados setores
se tornaram capazes de comandar num sentido amplo a economia e a sociedade
como um todo, o que nos leva a novas questões. Se o desequilíbrio do poder
como reza a teoria política193, gera o despotismo no âmbito político, o que gera o
desequilíbrio do poder econômico? A formação clássica do mercado como uma
instituição auto-reguladora era um mito desde antes que Smith (1983)
escrevesse seu clássico A Riqueza das nações em 1776. Entretanto, o mercado
de “concorrência perfeita” já era então um tipo ideal, uma abstração para
facilitar o pensamento científico, como a hipótese Coeteris Paribus e outros
recursos da modelagem econômica neoclássica.
Se pudéssemos analisar a matriz de insumo-produto global que se
conforma neste início de século XXI, perceberíamos a existência de cadeias de
comando que perpassam os territórios nacionais e abstraem a existência de
fronteiras para determinados fins ao mesmo tempo em que as constroem
constantemente para outras finalidades. Determinados nós da cadeia,
representados por grandes empresas, têm a capacidade de ditar a forma de
funcionamento dos setores vizinhos justamente por serem responsáveis pela
definição do modo de produção a ser implementado. O capital concentrado,
dotado de autonomia, impõe aos capitais difusos sua particular forma de
organização da produção e sua dinâmica de desenvolvimento.
A noção de modo de produção foi sendo ampliada ao longo do processo
histórico de desenvolvimento do capitalismo para, atualmente, conter a
concepção do produto, a extração da matéria-prima, o controle sobre a patente
do processo produtivo, os diversos segmentos que compõem o processo
produtivo em si, a criação, fomento e administração da marca, a distribuição, a
logística, o financiamento e, em alguns casos, a assistência técnica para
manutenção que se encontra relacionada com o produto final. É importante
notar que quando falamos de financiamento estamos tratando tanto do
financiamento do investimento em si como também do financiamento do
consumo, forma de garantir a realização dos lucros na indústria.
Nas relações estabelecidas entre o capital concentrado e o capital
concorrencial, a categoria preço de custo encobre o processo de produção
capitalista e a diferenciação entre capital constante e capital variável, e desta 193 Ver Sartori (1994a).
161
forma, “adota a falsa aparência de uma categoria da própria produção de valor”
(Marx, 1984:III/6, 31). Do mesmo modo, o processo pelo qual se dá a formação
de preços na economia moderna encobre relações de poder através das quais
ocorre a transferência da mais-valia extraída numa determinada empresa para
outra. Assim como através das trocas desiguais no mercado este processo se dá
com base nos monopólios socialmente constituídos sobre os diferentes
elementos que interferem na produção e circulação de mercadorias, nas relações
de produção diretas onde se estabelecem contratos de fornecimento de longo
prazo, o poder de monopólio exercido por uma empresa sobre fornecedores e
distribuidores lhe permite a obtenção de lucros extraordinários através da
reintrodução da mais antiga relação de mercado: o lucro comercial simples. A
velha fórmula do comprar barato e vender caro transformando-se em prática
reiterada nas relações entre as grandes empresas oligopolistas e as empresas a
ela ligadas. As margens de lucro se tornam, em decorrência do exposto, objeto
de barganha entre compradores e vendedores industriais, e entre estes e os
retalhistas.
Novamente nos deparamos com uma forma concreta que contorna o
pressuposto de Marx segundo o qual “nenhum monopólio natural ou artificial
possibilite que alguma das partes contratantes venda por cima do valor, ou lhe
obrigue a desfazer-se da mercadoria a qualquer preço” (Marx, 1984: III/6:225).
Aqui estamos diante de relações entre empresas nas quais tais lucros são
assegurados e ampliados através do estabelecimento de hierarquias constituídas
entre os diferentes capitais, ou seja, entre as distintas parcelas autônomas do
capital.
O caso da Benetton, descrito por Chesnais (1996:108), é exemplar. O
“centro” estratégico (a holding Benetton) é responsável pela concepção do
produto, controle de qualidade, propaganda (marca) e estratégia financeira. A
“fábrica” de Benetton, onde se testam modelos de roupas e estratégias
produtivas, têm cerca de 850 trabalhadores. A produção propriamente dita é
executada por 450 pequenas empresas sub-contratadas, que empregam cerca de
25.000 pessoas e que são controladas através de sistemas informatizados. Na
outra ponta, as vendas por sistema de franchising são feitas por 4.500
estabelecimentos, em 52 países, empregando cerca de 40.000 pessoas. O
162
estoque destas lojas também é controlado através da informática e a logística
garante a rápida reposição do mesmo194.
O que chama a atenção, mais do que a descentralização e a total
terceirização da produção, é que tal empresa, além de estribar-se no monopólio
de uma marca, é capaz de impor à sua cadeia produtiva as margens de lucro e
controles de qualidade que empurram aos fornecedores os custos de realização
do capital, ficando para a empresa holding a tarefa de aplicar a etiqueta nos
produtos195. Na outra ponta, os preços pagos pelas lojas e os preços de venda
dos produtos aos consumidores finais são determinados pela holding, que
administra desta forma a lucratividade dos franqueados e garante para si a
transferência de parte dos lucros de comercialização. Também é parte do custo
do franqueado a manutenção dos estoques, de forma que a realização do capital
por parte da controladora se dá já na passagem do produto para o circuito
comercial.
O mesmo raciocínio é válido para as situações de monopsônio ou
oligopsônio. O monopsônio é a forma de mercado na qual a empresa aparece
para os produtores, normalmente de matérias primas, como única alternativa
para a venda de seus produtos e portanto para a realização de seu capital. No
caso do oligopsônio a empresa seria uma das poucas opções. Esta relação
normalmente assimétrica – um grande comprador contra pequenos
produtores196 – permite à empresa monopsônica ditar os preços do mercado e
transferir para si parcelas da mais-valia extraída no pequeno negócio.
A renda de monopólio (expressa pela transferência da parcela de mais-
valia que seria atribuída ao pequeno produtor para a grande empresa) aparece
aqui de forma direta e muitas vezes brutal, consubstanciando-se como um
tributo cobrado diretamente aos pequenos capitais em troca, quando muito, de
194 Em Fontenelle (2002) encontramos a descrição de como se constroem tais relações
na constituição da cadeia McDonald´s. 195 O filho do proprietário de uma pequena confecção no Brás - bairro de São Paulo onde
se concentram empresas do ramo do vestuário (que historicamente fazem uso de trabalho semi-escravo propiciado pela exploração de imigrantes clandestinos, no caso, bolivianos) nos relatou que o problema de não passar pelo controle de qualidade da Benetton era conseguir desovar a produção sem a etiqueta de “grife”. Uma estratégia, também por ele descrita, era a de buscar grandes magazines com marcas próprias como a C&A e as Lojas Renner.
196 O exemplo mais comum na literatura econômica é o que opõem produtores de leite às usinas de beneficiamento como Vigor, Parmalat ou Cia. Paulista. É necessário notarmos, todavia que o desenvolvimento da tecnologia de mini-usinas rompeu parte desta estrutura monopsônica e vêm alterando a configuração deste mercado pelo menos desde os anos 1990, com uma proliferação de pequenas marcas.
163
uma garantia de sua reprodução simples. Como “o capitalista se inclina a
considerar o preço de custo como o verdadeiro valor intrínseco da mercadoria
posto que é o preço necessário para a mera conservação do capital” (Marx,
1984:III/6, 42), o resultado ao longo do tempo é a redução do preço da
mercadoria a um preço de produção (preço de custo + lucro) muito próximo do
preço de custo, com a aplicação de uma pequena margem lucro que garante a
sobrevivência do pequeno capitalista e garante ao grande capital a apropriação
do restante da margem de lucro da empresa subordinada.
Este processo de “espoliação do pequeno pelo grande capital” é descrito
em Marx como componente da história na qual os pequenos produtores são
subordinados à dinâmica de reprodução ampliada do capital e que contribui
para dissolver os antigos laços de produção comunal e gremial. O mesmo
processo é descrito em outros estudos de processos de dissolução da antiga
ordem feudal e de introdução das relações capitalistas de produção (por
exemplo em Lênin (1982b) e Dobb (1983)), mas são vistos como componentes
de uma relação de “fronteira” entre as formas pré-capitalistas e o capitalismo
propriamente dito.
Na sociedade capitalista contemporânea, entretanto, as relações de
dependência e de extração indireta da mais-valia fazem parte da própria lógica
de expansão do capital monopolista que contribui diretamente para a
reprodução e reiteração desta relação específica, produzindo, como apontado
por Oliveira (2003), as novas formas subordinadas, pretensamente atrasadas,
das quais se nutre o pólo dinâmico da acumulação capitalista. Não se tratam
mais apenas de empresas familiares subordinadas ao capital comercial, mas de
indústrias, ás vezes de médio e grande porte197, subordinadas por processos
deste tipo aos imperativos dos grandes grupos.
Como decorrência desta situação, o preço de produção que era dado por
p= Kc + Kv + mv, onde a mais-valia era decomposta em lucro empresarial +
juros (le + j), torna-se, no limite, p´= Kc + Kv + le, cabendo o restante da
rentabilidade média do pequeno capital, e normalmente a maior parte da mais-
valia extraída, ao comprador monopsônico na forma de uma massa de lucros
197 Para um caso concreto: a Mapri, fornecedora de parafusos da FIAT do Brasil,
emprega 2100 funcionários.
164
que será incorporada a seu lucro total na forma de uma renda diferencial ou
superlucro.
Embora o exemplo aqui citado coloque empresas industriais no centro
destes processos, estes não são necessariamente comandados apenas por
indústrias, na medida em que
“... capital monetário, capital mercantil e capital produtivo não designam
aqui tipos de capital autônomos, cujas funções constituam os ramos de
negócios igualmente autônomos e separados uns dos outros. Aqui
designam só formas funcionais particulares do capital industrial que as
adota as três, uma atrás da outra” (Marx, 1984: II/4:59).
Na prática, desenvolvem-se especializações que fazem com que as
diferentes formas assumidas pelo capital apareçam como autônomas. Se à época
de Marx a manufatura parecia submeter o comércio e os bancos aos propósitos
de acumulação capitalista e na época do imperialismo estudado por Lênin e
Hilferding parecia ocorrer uma fusão entre o capital bancário e o industrial, no
fim do século XX a lista das 100 maiores empresas apresentava junto aos
grandes grupos financeiros e industriais tradicionais, empresas do comércio
varejista como Carrefour e Wal-Mart, impérios de mídia como a NewsCorp
(Fox) e a AOL-Time-Warner, grandes mineradoras como a
australiano/britânica Rio Tinto e os gigantes petroleiros, e empresas cuja
classificação como “serviços” era debatida até entre seus acionistas, como a
Microsoft e os novos gigantes das telecomunicações198. Os traços comuns a
todas, entretanto, são seu gigantismo e a forma legal adotada: todas são
sociedades anônimas com ações negociadas em bolsas de valores. Todas
apresentam também algum tipo de rendimento monopolista como fonte de
renda e a propensão a um alto índice de internacionalização de suas
atividades199.
Ao estudarmos os exemplos de empresa-rede dados por Chesnais, fica
claro o aparecimento de um “centro” nevrálgico da acumulação capitalista,
198 Segundo S. Anderson & Cavanagh (2000), em 1999 mais da metade das vendas das
200 maiores empresas globais concentravam-se em 4 setores. Os serviços financeiros (14,5%), veículos automotores e peças (12,7%), seguros (12,4%) e comércio atacadista e varejista (11,3%).
199 Dos cem maiores grupos industriais transnacionais (com exceção dos bancos e seguradoras) 56 apresentavam um índice de transnacionalização (formado por uma média ponderada composta pela participação externa de ativos, vendas e empregados no exterior sobre os respectivos totais) maior que 50% (cf. UNCTAD, 2002).
165
normalmente representado pela empresa holding do grupo empresarial. Isto
também é valido para as relações entre as grandes redes de supermercados e
seus fornecedores e entre bancos e pequenos tomadores. A aparência de “usura”
esconde uma relação de poder própria do sistema financeiro contemporâneo
que discutiremos de forma mais extensa no próximo capítulo.
Podemos concluir assim que, grosso modo, ocorre a separação das
empresas entre dois grandes grupos no capitalismo contemporâneo: um
primeiro, um setor concorrencial onde predominam pequenos capitais cuja taxa
de lucro g, se vê achatada a valores mínimos, que meramente permitem –
quando o permitem – a reprodução simples dos capitais e de seu proprietário, o
pequeno burguês que se vê reduzido a ser “patrão de si mesmo”, e que na
verdade segue operando numa forma direta ou indiretamente ditada pela
dinâmica de acumulação do setor oligopolista; e um segundo setor, o grande
capital monopolista organizado em grandes Sociedades Anônimas, fortemente
concentrado em escala global, cujas estratégias permitem além da extração
máxima de mais-valia propiciada pela alta composição orgânica de seus
capitais, a extração de superlucros propiciados por posições monopolísticas de
diferentes tipos, cuja taxa de lucros G incorpora em si tais rendas ou
superlucros.
Tal separação é evidentemente ideal, um jogo de chiaroscuro, dentro do
qual encontraremos uma enorme gama de cinzas. Ao contrário da média
esperada no caso de livre concorrência, como vimos na discussão de Neto
(2002), encontramos outra situação, onde a média não é a moda. Pelo contrário
há tendencialmente duas modas, uma acima e outra abaixo da média. Enquanto
o setor concorrencial opera com uma média g que tende ao valor do que Marx
denominou originalmente de lucro empresarial, o capital concentrado opera
com uma taxa G formada pela soma do lucro concorrencial com uma série de
rendas de origem diferencial d, que se tornam todavia, variáveis ao cristalizar-se
como rendas absolutas. Isto nos leva à generalização da nossa discussão sobre a
formação dos preços de monopólio até aqui desenvolvida.
166
3. Desenvolvimentos do esquema tripartite. Os preços de monopólio.
Tendo em vista a discussão precedente, o esquema tripartite de Marx
deve ser expandido. Salários, lucros e renda da terra, devem ter seu terceiro
termo substituído por rendas ou lucros monopolistas, ancorados em
monopólios legais socialmente aceitos e/ou impostos, constituídos agora no
plural, aparecendo como pressupostos da produção. O preço de monopólio, que
para Marx sempre foi uma exceção à regra que só complicava a observação do
objeto (cf. Marx, 1984: III/8, 1086), tornou-se regra, passando a constituir
parcelas do preço das mercadorias e tornando a taxa de lucro dos capitais
individuais uma grandeza indeterminável, já que o novo patamar da
concorrência capitalista ditado pelo capital concentrado implica que o
mecanismo de média subjacente à concorrência clássica é posto em xeque. A
generalização dos monopólios transforma a realização dos lucros no mercado
uma verdadeira luta de todos contra todos, entre as diferentes frações do
capital.
Não se deve achar, entretanto, que o preço da mercadoria é gerado pela
soma de salário, lucro e rendas, mas, pelo contrário, que este é uma grandeza
prévia de onde se extraem os demais. Marx mostra a relação estapafúrdia
estabelecida quando se pretende definir preço a partir de preço. A tautologia
morde o próprio rabo. (cf. Marx, 1984: III/8, 1096-7), pois “inclusive a renda
monopólica, na medida em que não é dedução do salário, em cujo caso não
constitui categoria particular nenhuma, sempre deve constituir indiretamente
uma parte da mais-valia” (Marx, 1984: III/8, 1060, grifo nosso). Como renda
diferencial ou absoluta, o superlucro ou a renda monopólica tal como aparece
para seus faustores, é retirada da mais-valia extraída na produção de outras
mercadorias e, portanto, das mercadorias que se trocam por essas mercadorias
que tem preço de monopólio. Como já discutimos, isto também pode se dar de
forma indireta via salários:
“O preço monopólico de certas mercadorias só transferiria uma parte do
lucro dos outros produtores mercantis às mercadorias com preço
monopólico. Indiretamente, se verificaria uma perturbação local na
distribuição de mais-valia entre as diversas esferas da produção, que não
obstante deixaria inalterado o limite dessa mesma mais-valia. Se a
167
mercadoria com preço monopólico entrasse no consumo necessário do
operário, teria que aumentar o salário e com isto diminuiria a mais-valia,
sempre e quando se pagasse ao operário, como até então, o valor de sua
força de trabalho” (Marx, 1984: III/8, 1093-4).
Embora o salário aumente, isto ocorre como forma de transferência da
mais-valia para o produto monopolizado via salário. Ou seja, a inflação de
markup forçaria um movimento de alta dos salários que transferiria parcela do
lucro do setor concorrencial, que perde margem de lucro, para o setor
monopolista via salários. A mais-valia aqui é apropriada de forma indireta,
também através do “ganho” dos trabalhadores.
É importante lembrar que a forma de determinação prática dos preços
segue sendo, como indicado a partir de pesquisa empírica por Labini (1986), a
fixação de um markup pelas empresas. Tanto faz se estamos falando da
“sabedoria” do português da padaria que compra por 1 e vende por 2, estimando
desta forma a cobertura dos custos de realização, ou de uma empresa
automobilística. Na prática é o “costume” que determina a margem média de
lucro, tanto do setor concorrencial como do oligopolista. Era este o sentido
prático da média histórica marxiana e este segue valendo, mas agora dotado de
taxas diferentes de acordo com o setor onde o capital é empregado e de qual
empresa o emprega.
Nas palavras do próprio Marx:
[Na economia vulgar] “o lucro e a renda aparecem como meras
remarcações de preço – determinadas por leis incompreensíveis – sobre
o preço das mercadorias, o qual está determinado em primeiro termo
pelo salário. Em poucas palavras: a competição deve encarregar-se de
explicar toda a falta de lógica em que incorrem os economistas, enquanto
que, pelo contrário, são os economistas que teriam que explicar a
competição” (Marx, 1984: III/8, 1099).
Como Marx sabiamente enfatizava, os preços de monopólio turvam a
observação do processo na medida em que introduzem diversas novas fontes de
rendas que passam a competir com os salários e os lucros normais pela massa
de valor agregada na economia num determinado período de tempo.
168
Novamente, é necessário ter claro que os exemplos numéricos são de
difícil extração200. Faz-se mister apresentar algumas considerações sobre como
se dá a formação de preços na prática contábil antes de seguirmos adiante.
Um dado que devemos considerar é o fato que a depreciação dos meios
de produção se dá contabilmente e na forma da lei e não através do valor social
de desgaste do maquinário e instalações. Algumas máquinas prosseguem
trabalhando mesmo após seu “consumo formal” via depreciação contábil,
enquanto outras se vêem completamente desvalorizadas sem ter
necessariamente entrado em uso, via desgaste moral da tecnologia básica. Além
disto, em termos de registro contábil, se processa a depreciação da capacidade
instalada em linha, mesmo que esta nunca atinja uso pleno, como é regra nas
grandes empresas em todo o mundo201.
Ao observarmos a taxa de lucro apresentada pelas empresas, temos
dificuldade de separar o que é ganho ou perda mercantil e financeira do que
resulta da extração de mais-valia, assim sendo, somarmos a isso a idéia de que
parte dos lucros são rendas não melhora os exercícios numéricos, mas amplia a
capacidade de explicação da teoria202. Logo, como os monopólios geram uma
distorção com a geração de ao menos duas taxas modais de lucro esta confusão é
acentuada. Como enunciamos no item anterior, passamos a ter duas taxas de
lucros “típicas”. A primeira g, é a taxa de lucro dos setores concorrenciais, cuja
tendência é de contração ao mínimo do lucro empresarial203, e a segunda, G,
que é dada pela soma do lucro empresarial com os juros e superlucros de
monopólio.
200 O próprio Marx só pode realizar alguns exercícios devido a Engels ter-lhe entregue os
registros contábeis de suas empresas. 201 Um dado a ser considerado para uma agenda de pesquisa é qual o peso deste valor no
preço do produto levando em conta o poder de oligopólio destas empresas e qual o papel da capacidade instalada do ponto de vista estratégico (potencial de ocupação de mercado) e financeiro (capital instalado como base da alavancagem financeira).
202 Além disto, não podemos perder de vista as considerações do próprio Marx, segundo o qual: “(...) a divergência dos preços de produção com respeito aos valores se origina em que: 1) ao preço de uma mercadoria se agrega não a mais-valia nela contida, mas o lucro médio; 2) o preço de produção de uma mercadoria, que diverge deste modo com respeito ao valor, entra como elemento no preço de custo de outras mercadorias, pelo que no preço de custo de uma mercadoria se pode encontrar contida já uma divergência com respeito ao valor dos meios de produção consumidos nela à margem da diferença que possa somar-se para ela mesma em virtude da diferença entre lucro médio e mais-valia” (Marx, 1984: III/6, 263).
203 Esta tendência, como discutiremos nos próximos capítulos, é reforçada pela relação do pequeno capital com o sistema de crédito e pela forma como se organiza a cobrança de impostos.
169
Logo, no setor concorrencial, o preço será dado pela soma dos capitais
constante (Kc) e variável (Kv) acrescidos de um lucro empresarial (le) e de uma
parcela de juros (j), ou Pc = Kc + Kv + (le + j), onde, de acordo com o setor ou a
articulação na cadeia produtiva, os juros tendem a zero, sendo incorporados
como renda de monopólio pelo setor concentrado.
Do outro lado, os preços monopolistas agregam à fórmula anterior um
componente novo que expressa o poder monopolista da empresa, assim Pm =
Kc + Kv + (le + j) + Lm, onde Lm incorpora os superlucros ou rendas absolutas
de monopólio advindas da terra, tecnologia, marcas e de relações de poder,
emanadas do papel exercido pela empresa na cadeia produtiva. Assim, a forma
de cálculo dos preços de custo a partir das novas taxas diferenciadas de markup
será dada por:
Pc = (Kc + Kv).(1+g) e Pm = (Kc + Kv).(1+G).
A disputa pelas rendas ou lucros de monopólio se dá dentro de um tipo
específico de organização da propriedade, o capital societário das Sociedades
Anônimas, que, como veremos no próximo capítulo, traz também alterações
profundas na relação entre a propriedade e a percepção desta por parte de seus
proprietários e gestores de forma particular, e para a sociedade de forma geral.
Por outro lado, como veremos na parte III, os tributos aparecem na cabeça do
capitalista individual como um “custo” extra, uma “punção” sobre sua parcela
da mais-valia, sobre seu lucro. O mesmo ocorre com relação aos juros pagos ao
setor financeiro pelo capital monetário, que, como veremos no próximo
capítulo, constitui-se também num tipo de renda monopolista.
4. Incluídos e excluídos.
O processo de hegemonia social das relações capitalistas de mercado traz
consigo implicações sociais de grandes dimensões, que se reforçam com a
universalização do modelo de capitalismo calcado em grandes monopólios.
Ainda prescindindo do papel desempenhado pelos fundos públicos dos
diferentes Estados nacionais, como discutiremos nos capítulos 10 a 12, podemos
aqui apontar alguns componentes importantes da tensão social resultante desta
cisão dos processos de reprodução capitalista em dois grandes blocos. Um
primeiro problema está relacionado ao papel da força de trabalho no pólo
170
monopolista e como o envolvimento desta com a cultura capitalista é expressão
da hegemonia do capital. O outro é dado pelo processo de expulsão de parcelas
do capital das relações legais (formais) do mercado e a conseqüente
informalização (na verdade ilegalidade) de parcelas do processo de reprodução
social. Este processo tem implicações no nível tanto dos pequenos capitais e da
força de trabalho a eles vinculada, quanto dos trabalhadores tornados
“supérfluos” pela aceleração tecnológica.
O primeiro problema, como dissemos, está ligado ao papel da força de
trabalho no processo produtivo do pólo dinâmico da acumulação capitalista que
está relacionado com as implicações do processo de aceleração da introdução de
inovações tecnológicas sobre a força de trabalho204. As taxas de desemprego
subiram de forma acelerada em todos os países capitalistas centrais nas últimas
décadas do século XX205. Tal crescimento do desemprego tem sido associado ao
desenvolvimento tecnológico e à decorrente “desnecessidade” de parcelas
crescentes da mão-de-obra, além da migração de empregos para a periferia
sistêmica206. Por outro lado, setores como os de informática, continuam
carecendo de mão-de-obra qualificada (e assim deve continuar, dada a
incapacidade do atual sistema de ensino gerar indivíduos pensantes no volume
necessário para suprir o crescimento deste setor).
A exportação de empregos industriais dos países da OCDE para os países
ditos “em desenvolvimento” tem gerado o aumento da precarização das
condições de trabalho nos próprios centros sistêmicos, além de uma pressão
sobre os sistemas de previdência social, tornados largamente deficitários pela 204 “O que diferencia uma época de outra não é o que se faz, mas como, com que meios
de trabalho, se faz” (Marx, 1984: I/1:218). De onde a importância da revolução microeletrônica e computacional para a racionalização dos processos produtivos.
205 Segundo os dados da OCDE em Beinstein (2001:64-5), o desemprego para o conjunto dos países da OCDE passou de 20 milhões de pessoas em 1980 para 36 milhões em 1996. No caso da união européia a evolução foi de 8 milhões em 1980 para 17 milhões em 2000.
206 Sobre isto um interessante balanço é encontrado em Chossudovsky (1999, cap. 3). Os casos patológicos, entretanto são apresentados por S. Anderson et alli (2004): um cidadão de Nova York que ligue para o 0800 responsável pelo atendimento de seu seguro desemprego será atendido, por uma subsidiária do JP Morgan Chase. Se anglófono sua ligação será transferida para um atendente em Pune ou Bangalore, na Índia, e se hispânico sua ligação será transferida para Tijuana, no México. A mesma empresa é responsável pelo serviço de atendimento relacionado aos cupons de alimentação e outros serviços de wellfare estatal em 30 estados norte-americanos. Enquanto isto o presidente do JP Morgan Chase, o Sr. William B. Harrison recebeu no ano de 2003 a soma de U$ 16,5 Mi de rendimentos pelo cargo. Ainda segundo a mesma fonte, as 50 principais empresas americanas relocalizaram ou anunciaram a relocalização para o exeterior de cerca de 200.000 empregos entre 2001 e 2003. Outro caso que nos foi relatado, relacionado a este mesmo processo, é o de pessoal recebendo treinamento em São Paulo para atender telefonemas em inglês com sotaque local do Texas, Califórnia, etc.
171
combinação deste processo com o envelhecimento da população. Por outro lado,
o barateamento da mão-de-obra prossegue agora em nível internacional. Assim,
se como conseqüência do progresso técnico ocorre uma difusão do aumento da
produtividade do trabalho207, então esta
“‘difusão solidária do aumento da produtividade do trabalho’, [...] se
expressa na produção de mais-valia relativa no conjunto da economia (se
este processo levar à redução do valor da força de trabalho) ou na
elevação do conjunto dos salários reais” (Neto, 2002: 225-6).
A diferença de produtividade e o custo de reprodução da mão de obra
variam de país a país, e de setor a setor, implicando muitas vezes em diferenças
salariais nominais que não necessariamente são reais e vice-versa. O aumento
da produtividade nos países periféricos também barateia o custo de reprodução
da mão de obra dos países desenvolvidos, embora, proporcionalmente, o valor
de seus salários possa parecer ter sido reduzido. Além disto, na medida em que
nos setores monopolistas a exploração do trabalho se dá com uma maior
intensidade, é natural se pensar que daí surge a explicação para as diferenças
salariais verificadas entre estes e os trabalhadores dos setores concorrenciais.
Por outro lado, estas diferenças não se dão pela “margem de lucro
monopolista” permitir uma maior remuneração, mas pela necessidade de
manutenção de um tipo de trabalhador diferenciado em termos de treinamento
e de envolvimento com o processo produtivo e com a empresa, como observado
por Bendazzoli (2003). Isto efetivamente altera o preço208 de reprodução desta
mão-de-obra.
Dentro do modo usado por Marx209 para calcular as taxas de lucro e de
mais-valia, são considerados como coeteris paribus: a produtividade do
trabalho, a duração da jornada de trabalho, a intensidade do trabalho e o
salário. Uma queda dos salários ou uma elevação dos outros itens implicam
num aumento das taxas de mais-valia e de lucro, e vice-versa. As alterações
tecnológicas radicais obrigam as empresas dos setores de “ponta” a utilizarem
207 Esta tem por principais efeitos o barateamento relativo da mão-de-obra e a
ampliação do poder de compra dos trabalhadores, mesmo dos que não tiveram sua capacidade técnica de produção alterada.
208 Seguimos aqui a idéia de Neto (2002) segundo o qual “tempo de trabalho socialmente necessário” para a reprodução da mão de obra é expresso pelo preço dos bens necessários a sua reprodução.
209 Cap. III, tomo III.
172
operários com um nível de formação e habilidade maior que a média social, e
portanto, com um custo social de reprodução, mais alto. Isto evidentemente é
mais do que compensado pelo grau de exploração e produtividade superiores
obtidos.
As necessidades específicas destes novos processos laborais levaram a
uma diminuição da flutuabilidade da mão-de-obra em setores tecnologicamente
desenvolvidos, criando uma espécie de exército industrial setorial, com mão-de-
obra cada vez mais qualificada e implicando em melhores salários que
correspondem ao custo maior para a reprodução desta mão-de-obra. Isto não se
limita aos salários e se dá através de uma série de treinamentos e
condicionamentos que efetivamente envolvem o trabalhador com as
necessidades do capital no processo produtivo210, dando um novo significado
para a idéia de que a hegemonia “nasce da fábrica”, na medida em que o
processo de envolvimento dos indivíduos com o capital ao qual servem de
suporte se dá de forma permanentemente reiterada num nível cada vez mais
elevado e complexo. Os condicionamentos para a produção passam a atingir a
forma como os trabalhadores vivem seu tempo de não-trabalho e, desta forma,
colonizam suas subjetividades, levando na expressão de Oliveira (1998) a que “o
tempo de não-trabalho cada vez mais corresponda a tempo de trabalho”.
Este diferencial salarial, e o contexto mais geral de desregulação e
diminuição dos postos de trabalho no conjunto da economia mundial, passam a
apresentar-se socialmente como uma alteração da própria posição social
aparente na vida destes trabalhadores. Se do ponto de vista do processo
produtivo, estes já tinham dificuldade em ver-se como indivíduos explorados
(dada as técnicas de envolvimento e a busca de “desalienação” das ações
210 “...a reestruturação abrange uma dimensão de racionalização do trabalho que não se
separa de uma nova disposição emocional e reelaboração da visão de mundo do trabalhador. Cada operador passa a responder pela qualidade do produto, pela conservação dos equipamentos, pela agilidade na entrega dos lotes; cada qual é responsável também pela vigilância do trabalho dos colegas, responsável por estar reforçando as normas e valores da empresa no cotidiano do trabalho junto a seus colegas. Somado às disputas internas por ascensão às faixas de salário mais elevado, isso produz uma fragmentação no coletivo, um tipo de sociabilidade novo, onde a solidariedade do trabalho não produz uma identidade de interesses de classe compartilhados. A empresa investe muito em treinamentos e cursos, que visam qualificar o trabalhador, mas, sobretudo, a homogeneizar os comportamentos e torná-los previsíveis. Os trabalhadores aprendem muito mais que normas de segurança e de asseio, “aprendem” um novo padrão de relacionamento com superiores e com colegas, aprendem que o seu sucesso está atrelado ao sucesso da empresa e seu objetivo é perseguir a produtividade e, principalmente, a qualidade. O trabalhador comprometido que a empresa busca e se esforça por construir deve pensar antes na empresa e não no salário.” (Bendazzoli, 2003: 194).
173
concretas no processo produtivo, representadas pela construção de “espaços de
autonomia” e pelos processos participativos), sua percepção de seu local na
sociedade também se altera, passando a corresponder não a uma visão de si
mesmos como proletários, mas, dentro de uma visão engendrada pela sociedade
capitalista, como “classe média”, como indivíduos que, apesar de não gozarem
da riqueza social como as classes dominantes, não se encontram completamente
restritos ao consumo de bens estritamente de subsistência211, e que se
encontram de alguma forma “incluídos” na sociedade de consumo.
Outro aspecto a ser destacado é que a evolução do modo de produção
vigente nas empresas do capital concentrado para o que se convencionou
chamar de toyotismo ou acumulação flexível212, traz como resultado desta
diferenciação e da capacidade das empresas impor preços a seus fornecedores, o
surgimento da estratégia de desverticalização e terceirização de atividades.
Estas estratégias são possibilitadas ou fortemente facilitadas e aceleradas,
quando já existentes, pelas novas técnicas e instrumentos de telecomunicação e
informática. Isto permite às indústrias livrarem-se, dentro das plantas, da
responsabilidade pelos setores não competitivos (produção de peças simples,
limpeza e segurança como regra). Como resultado, o down sizing, ainda que em
alguns casos isto seja apenas aparente (na medida em que os empregados
permanecem em seus postos sob novas condições de trabalho, mais precárias),
permite a eliminação da mão-de-obra “não essencial” da folha direta de gastos
que se confundia com o objetivo da empresa. Com isto, se eliminam os gastos
com a cobertura de “benefícios” para trabalhadores não centrais para o processo
de reprodução ampliada do capital. A sobre-exploração destes (através da
redução de salários e benefícios) será obra de “terceiros”, as firmas contratadas.
Esta separação também produz a atomização da classe operária e do sujeito
coletivo constituído pela grande fábrica fordista.
Os aumentos de salários, quando ocorrem, e as políticas de benefícios,
passam a estar restritos a uma parcela da força de trabalho cada vez mais
diminuta. Dada a alta composição orgânica do capital e os aspectos rentistas da
indústria concentrada, tais variações salariais afetam cada vez menos a margem
de lucro das grandes empresas. Como além disto há um poder específico destas
211 Para uma discussão mais aprofundada ver Bendazzoli (2003). 212 Sobre fordismo, toyotismo e acumulação flexível ver Mello e Silva (2004).
174
empresas que lhes permite impor o seu markup ao restante do mercado, a
parcela dos trabalhadores das indústrias monopolistas corre ainda o risco de
terem seus aumentos de salários utilizados como pretexto para aumentos de
preços que, na verdade, engordam os rendimentos do capital.
Surge, além disto, uma situação intermediária, “o trabalhador contratado
como empresa terceirizada”. Esta criação do capitalismo japonês corresponde à
idéia de que a maximização da produtividade pode ser obtida através da
autonomização de uma parcela da mão-de-obra, constituindo-se pequenas
empresas, administradas por ex-operários, que de forma geral seguem sendo
trabalhadores no processo produtivo. Neste caso, a relação salarial é substituída
pela relação de contrato entre fornecedor e contratante, estando sujeita aos
processos de transferência de mais-valia expostos acima. Alguns dos aspectos
deste tipo de contrato envolvem a possibilidade de rompimento destes por parte
da contratante sem os custos de demissão de mão-de-obra (em particular
quando o trabalho específico se torna desnecessário ou obsoleto), o uso de
técnicas de envolvimento que comprometem o novo “capitalista” com o sucesso
da “parceria” com a grande empresa e, finalmente, a redução dos custos de mão-
de-obra relativos a encargos sociais213.
No setor concorrencial dos pequenos capitais o impacto da formação dos
preços monopólicos no setor do capital concentrado acaba implicando na
proliferação da chamada “informalização” do mercado, que se dá com força cada
vez maior. A informalização, entretanto, deve ser mais bem definida: trata-se de
processos pelos quais pequenos capitais e trabalhadores individuais passam a
produzir “por fora” dos circuitos formais de produção. Isto grosso modo
corresponde a um trabalho exercido na “ilegalidade” ou, dito de outra forma, à
margem dos processos pelos quais se constitui o fundo público. Do ponto de
vista das estatísticas governamentais, a informalidade descreve tanto pequenos
capitais que um dia foram empresas social e legalmente constituídas, quanto as
atividades ditas do “submundo” (onde inclusive se aplica a idéia de preços
monopolistas, como no caso das drogas ilegais). Estão incluídas nestas
estatísticas, tanto empresas organizadas, com diversos empregados, quanto os
213 A proliferação de “cooperativas de trabalhadores” instituídas pelas próprias
empresas, como no caso de certas instituições de ensino superior brasileiras caminham no mesmo sentido.
175
indivíduos que vivem do pequeno comércio. Daí a dificuldade de mensuração
deste fenômeno214.
Como discutiremos de forma mais aprofundada na parte III, também os
tributos estatais são uma dedução da massa geral de mais-valia produzida pelo
capital social geral. Assim, o processo de disputa pela apropriação da mais-valia
através dos preços de mercado aparece, do ponto de vista do pequeno capitalista
(ou do trabalhador autônomo) como um processo no qual ele busca garantir a
reprodução de sua própria força de trabalho. Como a parcela de lucro que
corresponderia ao capital fixo de um pequeno negócio é disputada na forma das
rendas do capital monopolista - que fornece ao pequeno capital os produtos
(insumos ou mercadorias para revenda) ou o crédito -, no processo cíclico dos
negócios, a parcela da renda que caberia ao pagamento dos impostos acaba por
ser, ela também, imolada ao capital concentrado – seja consumida, seja usada
para pagar os juros ou a fatura necessários à manutenção do negócio.
O processo no qual se confunde o valor das mercadorias com seu preço
de custo, gera também confusão para os trabalhadores independentes que
vendem seu produto compondo o preço da mercadoria com o de seu tempo de
trabalho (salário médio) e não pelo valor agregado por seu trabalho, permitindo
desta forma a apropriação por terceiros da mais-valia por ele adicionada ao
sistema. Ou seja, o processo de troca desigual segue valendo como explicação do
processo de exploração, mesmo se considerarmos o trabalhador avulso
despregado de qualquer relação empregatícia como um membro do sistema. O
crédito é-lhe concedido como capital, e como capital ele deve portar-se. E ao
portar-se como pequeno capital nas relações mercantis hegemonizadas pelo
capital concentrado ele está submetendo-se a um processo pelo qual sua força
de trabalho (e a de eventuais associados ou familiares) é incorporada ao
processo de extração e acumulação de mais-valia. Desta forma o tempo de
trabalho e o de não-trabalho se confundem. Como apontado por Oliveira em O
Ornitorrinco, o capital constante e o capital variável se juntam na
informalidade. Toda a ação com vistas à sobrevivência se torna espaço de
214 Estas conclusões foram apresentadas na discussão contida no relatório da pesquisa
“O informal revisitado” coordenada pelo Prof. Francisco de Oliveira, no CEBRAP em 1991, da qual participei como auxiliar de pesquisa.
176
reprodução social na medida em que os indivíduos estão inseridos na sociedade
mercantil capitalista.
Conseqüentemente, a informalidade deve ser definida como a situação de
trabalho em que são lançados os indivíduos que não conseguem ter acesso ao
espaço de reprodução de capital vinculado à esfera pública (em oposição às
atividades estritamente ilegais). A situação de fraqueza relativa destes
trabalhadores, do ponto de vista do mercado, os impele a vender sua força de
trabalho numa relação na qual não se tornam capazes de recolher os impostos e
vincular-se desta forma ao fundo público. A relação destes trabalhadores
autônomos com a esfera de reprodução capitalista se dá assim, nas fraldas
produtivas ou de realização do capital, onde cada indivíduo age como capitalista
(e portanto como capital autônomo), sendo constantemente espoliado do valor
gerado por sua própria força de trabalho. Isto se dá através dos mecanismos de
trocas desiguais propiciados pelos preços monopolistas.
Por fim, a desestruturação das relações de reconhecimento dos
trabalhadores como classe social consciente e coesa, que resulta de uma
estratificação sem precedentes do mercado de trabalho, se junta à criação de
uma grande massa de indivíduos que sequer pode vir a sonhar em ser
trabalhadores – os inempregáveis do sociólogo presidente. Ao mesmo tempo, a
forma capitalista da propriedade privada que, como vimos, alicerça as relações
sociais capitalistas, educa a subjetividade humana a relacionar-se de uma forma
completamente direcionada ao mercado, na medida em que o único objetivo
válido para a afirmação dos indivíduos nesta sociedade é o consumo. Assim, a
impossibilidade de tornar-se consumidor, negado o reconhecimento da
exploração como classe, degenera na violência direta por parte dos excluídos. O
aumento da violência e da criminalidade torna-se reflexo da situação de
exclusão social gerada pelo sistema. Voltaremos a esta discussão no capítulo
final.
177
Parte II - O capital social. ________________________________________________________________________________
Capítulo 6 - Os bancos e o sistema de crédito.
1. A taxa de juros.
2. Rendas diferenciais na relação empresas x bancos.
Capítulo 7 - Surgimento e evolução das sociedades anônimas.
1. Surgimento
2. Nos EUA
3. As ferrovias e os bancos: a gênese da Sociedade Anônima privada.
4. A concentração de capitais:
as fusões e a cartelização norte-americana no início do século XX.
5. A genes do “capital financeiro”
6. Forma pública estatal x propriedade privada.
7. A transformação das leis.
Capítulo 8 - A forma da sociedade anônima e suas implicações para o
capital.
1. O capital fictício: juros, dividendos e o “lucro de fundação”.
2. A cisão entre propriedade e comando do capital.
3. A remuneração das gerências.
4. As muitas faces de um sujeito sem face:
Capital financeiro, capital societário, Capital hegemon.
178
Capítulo 6 - Os bancos e o sistema de crédito
Já em fins do século XIX, a concentração e a centralização de capitais na
indústria reforça a necessidade de concentração e centralização do capital
bancário (e como vimos através de exemplos concretos também do capital
comercial). Hilferding já percebia que “o próprio cartel pressupõe um grande
banco capaz de satisfazer continuamente o imenso crédito de circulação e de
produção de toda uma área industrial” (Hilferding, 1985: 217).
Embora perceba a tensa relação de dependência e disputa gerada por este
processo estabelecida entre os diferentes setores do capital social215, Hilferding
não avança no entendimento destas relações, ficando restrito à denúncia da
união pessoal entre os grandes capitais que resulta do processo de fusão. Como
vimos, o objetivo de tal união se é estabelecer a extração de rendas diferenciais
de caráter monopolista, seja pelo uso de marcas e tecnologia, seja por processos
de controle do mercado através do poder relativo do capital concentrado.
Havíamos, contudo, deixado para um momento posterior o relacionamento
específico entre o capital monetário centralizado pelo capital bancário e os
capitais industriais e comerciais. É necessário assim debruçarmo-nos sobre
papel específico dos bancos no processo de acumulação capitalista para
entendermos porque estes foram os atores centrais no processo de centralização
do capital nas outras esferas da reprodução social capitalista. Trata-se aqui de
215 “O cartel ou truste é uma empresa de grande poder de capital. Nas relações mútuas
de dependência entre capitalistas, é sobretudo a força do capital que decide qual empresa cai na dependência de outra. Uma cartelização muito avançada, de antemão, induz os bancos a se associarem e se ampliarem, para não cair na dependência do cartel ou truste. A própria cartelização promove assim, a união dos bancos, como, ao inverso, a união dos bancos fomenta a cartelização” (Hilferding, 1985: 217).
179
discutirmos o processo de adequação do capital usurário aos imperativos da
acumulação capitalista216.
Como Marx define no volume terceiro de O Capital (Cap. XXXVI), o
capital usurário do qual descende o capital bancário faz parte das formas
antediluvianas do capital, junto com o capital comercial. Desta forma, “o
desenvolvimento do capital usurário se vincula ao desenvolvimento do capital
comercial, e em especial ao do capital dedicado ao tráfico de dinheiro” (Marx,
1984: III/7:765). Nas formações pré-capitalistas o mestre artesão ou camponês
cede ao prestamista “toda a mais-valia com a exceção daquela que corresponde
ao Estado” (Marx, 1984: III/7:768)217 e, desta forma, o capital usurário cumpriu
o papel histórico de expropriar os trabalhadores de seus meios de produção218,
abrindo o caminho para a subordinação da produção ao capitalista e à criação
do modo capitalista de produção.
A usura, como exposta por Marx219, ao estabelecer a relação de
dependência do tomador de empréstimo para com o prestamista, torna as ações
destes devedores heterônomas ao impor um direcionamento externo à vontade
destes indivíduos, na medida em que elimina a base da autonomia dos mesmos
nos processos de reprodução social. Ao perder a independência econômica as
condições de independência políticas e culturais são colocadas em xeque. Ao
subordinar os indivíduos à relação de compra e venda de sua força de trabalho,
o capital se afirma pela primeira vez no processo histórico como Sujeito que
aspira à hegemonia. Estamos aqui já diante de uma forma de subordinação
política dos indivíduos aos imperativos do capital, ainda que numa forma
embrionária, na qual o capital constrói seu ser e afirma-se como relação
216 “O desenvolvimento do sistema creditício é levado a cabo como reação contra a
usura. [...] Não significa nem mais nem menos que a subordinação do capital que recebe juros às condições e necessidades do modo capitalista de produção” (Marx, 1984: III/7:773).
217 Hoje, como veremos na parte III, grande parte desta parcela destinada ao fundo público também é apropriada pelo sistema financeiro, embora de forma indireta, ao mesmo tempo em que o pequeno capitalista e o trabalhador avulso continuam sob o jugo do sistema de dívidas, como afirmamos ao discutir a idéia de “informalidade” no final do capítulo anterior.
218 “... a usura opera, por um lado, solapando e destruindo a riqueza e a propriedade antigas e feudais. Por outro lado solapa e arruína a produção dos pequenos camponeses e pequena burguesia, em suma, todas aquelas formas nas quais o produtor aparece como proprietário de seus meios de produção” (Marx, 1984: III/7:769).
219 “A usura [...] adere ao modo de produção como um parasita, daí a aversão popular contra a usura, aversão que alcança seu ponto máximo no mundo antigo, no qual a propriedade do produtor com respeito a suas condições de produção é, ao mesmo tempo, a base das condições políticas, da autonomia do cidadão” (Marx, 1984: III/7:769).
180
independente aos indivíduos. O que se gesta é a substituição do modo de
produção feudal pelo capitalista:
“A usura cumpre uma função revolucionária em todos os modos de
produção pré-capitalistas somente pelo fato de destruir e dissolver as
formas de propriedade sobre cuja firme base e constante reprodução na
mesma forma repousa a organização política” (Marx, 1984: III/7:770).
Ou seja, o poder (nas suas diversas vertentes econômicas, políticas e
ideológicas) calcado na propriedade territorial é solapado pela ação do capital
prestamista que, aos poucos transforma a renda da terra em espécie numa
relação monetária, ou que força a monetização das relações entre servos e
senhores, cumprindo o papel de acumular forças para a final dissolução dos
laços feudais e a progressiva transformação destes em relações mercantis no
processo histórico. No entanto, ainda não se trata do estabelecimento do
capitalismo que, segundo Dobb (1983, cap. 1), como modo de produção, só se
pode situar, de fato em torno do século XVI, e cujos antecedentes são situados
por Arrighi (1996) na expansão financeira das cidades-Estado da Itália
setentrional nos séculos XIII e XIV. Neste processo “o capital usurário possui o
modo de exploração do capital sem seu modo de produção” (Marx, 1984:
III/7:770).
Neste sentido, “o capital usurário e o patrimônio comercial mediam a
formação de um patrimônio monetário independente da propriedade da terra”
(Marx, 1984: III/7:771) que dá base ao desenvolvimento posterior das relações
tipicamente capitalistas de produção. Nos encontramos aqui ainda na fase de
acumulação primitiva do sistema. Assim, a história pré-capitalista mostra
claramente como a acumulação de poder econômico na forma de tesouros pode
transformar-se em poder político, quando não em formas diretas de dominação
entre os homens - como nos casos da conversão dos camponeses em servos sob
Carlos Magno, ou em escravos por dívidas em Roma, como explorado por Marx
e Engels (1986 e 1986a).
A forma central para o entendimento do sistema de crédito, entretanto, é
o aparecimento do capital em sua forma dinheiro220, ou da posição do dinheiro
220 “O dinheiro – tomado neste caso como a expressão autônoma de uma soma de valor,
já existindo de fato em dinheiro ou em mercadorias – pode ser transformado, sobre a base da produção capitalista, em capital, e em virtude desta transformação se converte num valor dado em um valor que valoriza a si mesmo, que se automultiplica. Produz lucro, o que quer dizer que
181
como capital, a expressão mais fetichizada do próprio capital, pois como nos
alerta Paulani (1991):
“À tensão que existe entre dinheiro e mercadoria, e depois do dinheiro
mesmo enquanto objeto, junta-se, para tornar plena sua obscuridade, o
fato de poder ele transformar-se em mercadoria. Assim de objeto de
mediação por excelência – incluindo-se aí a mediação que só media
porque se põe como não mediação (o crédito, ou meio de pagamento,
como o chama Marx) – o dinheiro passa a ser coisa mediada; porém,
como o meio efetivo é o próprio dinheiro, media-se ele consigo mesmo. O
movimento que resulta desse colocar-se como mercadoria-dinheiro,
como capital financeiro, adquire assim uma finalidade interna e, junto
com ela, a possibilidade de se pôr como sujeito: de predicado do capital,
o dinheiro pode vir a ser sujeito ainda que sujeito ‘fictício’” (Paulani,
1991: 154).
Esta aparição do valor que gera valor, do dinheiro que gera juros, contém
em si o capital, visto como sujeito que, em seu processo de reprodução ampliada
torna-se autônomo aos indivíduos que lhe servem de suporte. Em sua forma
monetária o capital aparentemente dissocia-se do processo pelo qual se torna
capital, ou seja, não aparece como valor que se valoriza no processo produtivo,
mas como mercadoria cujo uso gera valor. Não é mais visto como a relação
quantitativa entre valores, mas como a qualidade da mercadoria dinheiro, que
se posta em movimento deve gerar mais dinheiro221. Desta forma, a mercadoria
por excelência do sistema bancário, o dinheiro, ao apresentar-se como capital
dá ao capitalista a capacidade de extrair dos trabalhadores uma determinada quantidade de trabalho não pago, de mais-produto e mais-valia, e apropriar-se deste. Desta maneira adquire, além do valor de uso que possui como dinheiro, um valor de uso adicional: o de funcionar como capital. Seu valor de uso consiste, neste caso, precisamente no lucro que produz ao estar transformado em capital. Neste caráter de capital potencial, de meio para a produção do lucro, se converte em mercadoria, mas numa mercadoria sui generis. Ou o que resulta no mesmo, o capital enquanto capital se converte em mercadoria” (Marx, 1984: III/7:434).
221 “O valor só é plenamente valor quando não é mais valor, quando é valor que se valoriza, ou seja, quando é capital; assim, a posição de valor como valor não é posição do valor como valor, mas posição como capital – posição como autoposição. Na essência, pois, o capital suprime o valor. Mas como isto acontece? Aparece invertido, porque, no nível do fenômeno, é o valor que permanece e não o valor como capital; a relação quantitativa – que constitui o movimento do capital – aparece como relação qualitativa; a valorização do valor aparece como troca de equivalentes. Nesse sentido, o capital, sujeito posto, é sempre pressuposto porque o que é posto no âmbito do fenômeno é aquilo que o capital mesmo já negou (ou seja, ele se põe como o que não é, ele se põe como pressuposto). No caso da mercadoria-dinheiro, contudo, é a relação quantitativa, ela mesma, que aparece, de modo que o capital ganharia aí uma aparência que, ao invés de negá-lo seria capaz de colocá-lo fenomenicamente como aquilo que na realidade é” (Paulani, 1991: 155).
182
aparece como uma relação velada, um movimento que oculta o sujeito histórico
no qual se constitui o capital. Aqui, o capital aparentemente dissocia-se da
vontade dos indivíduos que lhe servem de suporte. É o próprio objeto do qual
tais indivíduos são proprietários que aparentemente detém a capacidade de
gerar lucros e não a relação de trocas instituídas a partir de seu poder e que se
estabelecem a partir da lógica de reprodução ampliada. Deste modo,
“(...) a valorização do valor, movimento que constitui o sistema enquanto
tal, fica reduzida a atributo de um objeto; esse objeto tem então o valor
de uso de produzir valor e transformar-se, como qualquer outro valor de
uso numa sociedade mercantil, em mercadoria. Assim, a aparição da
relação quantitativa que deveria, de alguma forma, ‘denunciar’ a
verdadeira natureza do sistema, é precisamente o que mais a acoberta.
Por isso, o aparecer do dinheiro como mercadoria nessas circunstâncias
completa com chave de ouro a aparência necessária do capitalismo,
porque vela por completo as relações sociais que o constituem e deixa
com isso escondido o verdadeiro sujeito” (Paulani, 1991: 154-5).
Este processo de alienação da lógica acumulativa da vontade dos
indivíduos, faz com que a relação de exploração capitalista seja vista não como
um atributo das relações sociais em si, mas como uma relação natural do
processo de circulação desta mercadoria especial, não importando, para quem
empresta, se o capital obterá sua ampliação a partir de atividades industriais,
comerciais, ou mesmo se será utilizado de forma produtiva. O juro será visto
assim como a renda do capitalista, entendido como mero proprietário do
capital, da mesma forma que o salário é visto como a renda do trabalhador por
este deter a força de trabalho. Mais ainda, na medida em que a propriedade do
capital se dissocia de seu comando, o juro passa a ser visto como o resultado da
ação do capital, dotado de movimento próprio na circulação dos “fatores de
produção” como descrito pela economia vulgar. O “lucro de empresário” passa
então a corresponder às retiradas dos capitalistas ativos e de seus prepostos.
Este visão do processo de circulação do capital como algo autônomo à
figura de seus proprietários e gestores, como discutiremos mais à frente, gera
resultados sociais que aparentemente alienam a vontade dos próprios
capitalistas atuantes que se sentem premidos pelas necessidades de apropriação
capitalista como um imperativo de sobrevivência da empresa – ou seja, da
183
figura do capital – e não da reprodução deles mesmos como agentes do processo
de reprodução ampliada.
Antes de prosseguir nesta discussão, contudo, devemos voltar às
atividades próprias ao sistema bancário no processo de reprodução ampliada do
capital. Se as atividades próprias à indústria e ao comércio aparecem como
atividades cuja definição é clara no processo de produção e circulação da riqueza
material, o mesmo está longe de ser verdade para o sistema bancário, em
particular a partir da crescente complexificação das atividades de regulação e
intermediação das atividades das outras formas nas quais o capital se manifesta
e que constituem a “financeirização” do processo.
Na boa expressão de Hilferding, no processo de reprodução ampliada do
capital, “a tesouraria cabe ao banco”, ou seja, a atividade primária do sistema
bancário passa a ser, com a disseminação do sistema capitalista de produção a
intermediação das transações monetárias e, junto com estas, o desenvolvimento
do sistema de crédito. Além disto, segundo Marx, no capítulo XXVII (vol. III),
“O Papel do crédito na produção capitalista”, a formação do sistema de crédito
“é necessária para mediar a nivelação da taxa de lucro ou o movimento de dita
nivelação, no qual se baseia toda a produção capitalista” e para a “redução dos
custos de circulação” (Marx, 1984: III/7, 561). Ou seja, faz parte das atividades
bancárias mediar o processo de transferência da mais-valia produzida pelo
capital social geral para que se remunere pela média os diferentes capitais.
Novamente devemos discutir o modo como Marx desenvolveu o tratamento
deste problema numa economia concorrencial para depois relaxarmos o
pressuposto da concorrência perfeita.
Dentro da dinâmica do padrão-ouro, um primeiro custo fundamental das
condições gerais de reprodução social é constituído pelo próprio dinheiro na
medida em que este tem valor por si. Ele é economizado de três maneiras
diferentes mediante o crédito: a) ao usar-se os registros contábeis e omitir-se
por completo o dinheiro nas transações; b) ao acelerar-se a circulação do meio
circulante, e isto se constitui como técnica do sistema bancário; e c) pela
substituição do ouro pelo papel-moeda222.
Assim o elemento fundamental da atividade bancária é constituído pela
222 O fim do lastro ouro e os impactos sobre o dinheiro serão discutidos na próxima
parte deste trabalho.
184
“aceleração por meio do crédito das diversas fases da circulação ou da
metamorfose do capital, e conseqüentemente aceleração do processo de
reprodução em geral (De outra parte, o crédito permite manter separados
por mais tempo os atos da compra e da venda e daí que sirva de base à
especulação). Contração do fundo de reserva, o qual pode considerar-se
de duas formas: por um lado como diminuição do meio circulante, e pelo
outro como restrição da parte do capital que sempre deve existir na
forma dinheiro” (Marx, 1984: III/7, 562).
Ou seja, o capital de crédito funciona como ponte entre o processo de
produção presente e a realização futura do capital, constituindo-se desta forma,
num potencializador do processo produtivo, ampliando a base de valores
disponíveis para a circulação de mercadorias a partir da antecipação das receitas
futuras. Assim, a criação de crédito (o processo pelo qual o dinheiro
contabilmente registrado é “re-emitido” pelo banco ao conceder um novo
empréstimo) ao possibilitar o aumento do volume de dinheiro disponível em
circulação, funciona como um multiplicador contábil223 do capital atuante (na
medida em que é socialmente reconhecido o crédito criado desta forma é, ele
também, uma força material da produção), que passa através das técnicas de
giro bancário a atuar de forma expandida, potencializada224. Um último
elemento pelo qual se dá a criação de crédito é a formação de sociedades por
ações que, devido às suas peculiaridades, discutiremos adiante.
Embora Marx enumere em sua análise todos os componentes do crédito,
o propriamente bancário e o mais desenvolvido das sociedades anônimas,
cremos ser necessário separar estes processos em nossa análise. Assim, o
primeiro elemento a ser discutido é o que constitui as atividades do setor
bancário propriamente ditas: a garantia da circulação de valores, e o provimento
de dinheiro para as diferentes atividades do fluxo de circulação capitalista que a
223 O multiplicador da oferta de moeda, ou multiplicador bancário, como é chamado
pela economia vulgar, é dado pela relação entre os novos depósitos e o aumento das reservas totais de moeda no sistema. No sistema de padrão-ouro representava o volume de moeda escritural que girava com base nos depósitos reais de ouro contidos no sistema. No caso do sistema de moeda fiduciária, este giro é limitado pelo estabelecimento de depósitos compulsórios junto aos Bancos Centrais que limitam o volume total de moeda em circulação, evitando que os bancos gerem uma oferta excessiva ou que o sistema se torne vulnerável a corridas bancárias.
224 É neste sentido que o multiplicador keynesiano de gastos governamentais pode ser visto como um substituto do capital financeiro como ativador da potência social do capital como proposto por Oliveira (1998) em seu texto sobre o Anti-valor.
185
necessitam e o registro deste movimento, que podem ser descritos como o
movimento de tesouraria do capital, parcela que complementa a ação da
circulação capitalista efetuada pelas trocas no mercado. O outro, de criação do
crédito, através do multiplicador bancário e da propriedade das ações, será
analisado mais adiante no capítulo 8225.
Já vimos que o capital industrial e o capital comercial disputam entre si
parcelas da mais valia apropriada de forma social no ciclo completo do capital. E
já dissemos que o mesmo raciocínio é válido para o capital monetário, embora
este se revista de uma aparência mais complexa devido à cortina “contábil” que
se lança sobre as atividades bancárias. O próprio Marx já nos alertava que o
processo real de circulação capitalista se vê obscurecido por duas
circunstâncias:
1) A aparição na circulação do capital industrial, do capital comercial
(que não gera valor) e do “capital monetário como objeto de
manipulação por parte de um tipo especial de capitalistas”.
2) A divisão da mais-valia – que em primeira instância sempre tem que
se encontrar nas mãos do capitalista industrial – em diversas categorias
das que aparecem como portadores, ao lado do capitalista industrial, o
latifundiário (para a renda da terra), o usurário (para os juros)., ditto [e
outro tanto] o governo e seus funcionários, rentistas, etc.” (cf. Marx,
1984: II/5, 514-5).
Mas não devemos parar por aí. A separação do capital em capital
industrial, comercial e monetário, é própria da forma como o capital se insere
recorrentemente na produção226. Na vida prática, entretanto, todas as empresas
capitalistas industriais, e todo capital, apresentam-se de forma sucessiva nas
três formas do ciclo de reprodução capitalista. Sua definição como empresa
225 Estamos aqui simplificando a descrição das atividades para proceder à análise, pois
como se pode ver no texto do próprio Marx, as atividades concretas são bastante complexas, na medida em que “o capital bancário consta 1) de dinheiro efetivo, ouro e bilhetes, e 2) de títulos e obrigações. Por sua vez estes podem dividir-se em duas partes: valores comerciais, letras de câmbio pendentes e que expiram de tanto em tanto, e em cujo desconto centra-se o negócio do banqueiro propriamente dito; e títulos e obrigações públicos, como títulos nacionais, certificados do tesouro, ações de toda sorte e, em suma, títulos que recebem juros, mas que diferem essencialmente das letras. Neste grupo podem incluir-se também as hipotecas. O capital que se compõe destas partes constitutivas materiais se divide, por sua vez, no capital investido do próprio banqueiro e nos depósitos que constituem seu banking capital ou capital emprestado. No caso dos bancos autorizados a emitir bilhetes entretanto se somam estes últimos” (Marx, 1984: III/7, 597-8).
226 Conforme Marx, 1984: II/4, caps. 1 e 2.
186
comercial, industrial ou bancária se dá em muitos casos pela principal função
exercida no processo produtivo, e não por sua ação exclusiva. Isto se dá no caso
industrial, na produção; no comercial, na realização das mercadorias; no
bancário, nas atividades de tesouraria, ou seja, em sua articulação como formas
de existência do capital atuante. Daí decorre a transitoriedade da situação de
capitalista monetário por parte de muitos dos capitalistas produtivos227.
Se por um lado, a evolução do sistema bancário facilita o crédito e os
empréstimos, ao colocar nos bancos à disposição da classe capitalista em seu
conjunto as reservas de capital individuais, por outro, isto faz com que os
bancos sejam o primeiro setor onde ocorre uma grande concentração de
capitais, ao se articular a poupança coletiva da classe capitalista à ação do
capital bancário. E o entesouramento continua ocorrendo devido à própria
dinâmica de acumulação capitalista, como a soma de capitais que não
conseguem aplicação dotada de uma rentabilidade maior do que os títulos de
renda alternativos à cristalização destes valores. O processo que necessita
sempre a formação de algum tipo de reserva, gera uma sobra de valores que
passam a disputar com o capital atuante a apropriação da massa de mais-valia
extraída por este. Além disto, os bancos disponibilizam também as reservas de
dinheiro das demais classes para a circulação capitalista228.
Neste sentido, o capital monetário tem origem em todas as esferas da
circulação mercantil, e também no entesouramento possibilitado por outras
fontes como as rendas da terra e as transferências governamentais. Ou seja, a
“matéria-prima” que possibilita o exercício da função social do capital bancário
tem origens diferentes. Sua função social é a própria viabilização da troca das
mercadorias pelo equivalente geral, o dinheiro, ou a mercadoria-dinheiro,
possibilitando seu processo de reprodução ampliada através da administração
227 “O capitalista produtivo torna-se um capitalista monetário ou fornecedor de
empréstimo. Ele só assume este caráter transitoriamente, no entanto, quando seu capital monetário se encontra ocioso e à espera de sua transformação em capital produtivo. E assim como ele empresta em certo momento, em outro ele toma emprestado de um segundo capitalista produtor. O caráter de capitalista emprestador é, em princípio, apenas transitório, e com a evolução do sistema bancário, torna-se então uma função especial dos bancos” (Hilferding, 1985: 92).
228 “O afã de tornar utilizável – para obter tanto um lucro como um rendimento – essa mais-valia que se atesoura como capital dinheiro virtual, encontra uma satisfação no sistema creditício e nos ‘papeluchos’. O capital monetário adquire desta maneira, sob esta forma, o influxo mais descomunal sobre o curso e o desenvolvimento imponente do sistema capitalista de produção” (Marx, 1984:II/5, 607).
187
do fluxo de caixa necessário à reprodução ampliada do capital. De outro lado, o
juro se descola de sua essência e passa a corporificar outras relações sociais,
pois
“... enquanto o juro é só uma parte do lucro, isto é, da mais-valia que o
capitalista atuante espreme do operário, agora, ao contrário, o juro
aparece como o verdadeiro fruto do capital, como o originário, e o lucro,
transmutado agora na forma do lucro empresarial, como mero acessório
e aditivo que se agrega no processo de reprodução. Aqui fica consumada
a figura fetichista do capital e a idéia de fetiche capitalista. Em D-D’
temos a forma não conceitual do capital, a inversão e coisificação das
relações de produção na potência suprema: a figura que gera juros, a
figura simples do capital, na qual o capital está pressuposto a seu próprio
processo de reprodução; capacidade do dinheiro, ou em seu caso da
mercadoria, de valorizar seu próprio valor, independentemente da
reprodução; a mistificação do capital em sua forma mais estridente”
(Marx, 1984: III/7:501).
Destarte, a forma dinheiro embota a relação do capital pois é a forma na
qual a mercadoria deixa de ter uma forma concreta, é “a forma na qual está
extinta a diferença das mercadorias enquanto valores de uso, e por fim também
a diferença dos capitais industriais consistentes destas mercadorias e em suas
condições de produção” (Marx, 1984: III/7:502).
O capital monetário parece, deste modo, se autonomizar da relação de
exploração que o suporta na medida em que gera rendimentos sem que haja o
comprometimento direto do capitalista. E a confusão se aprofunda no momento
em que o sistema bancário avança para além de suas funções de regulador do
processo de transferência de valores e assume um papel de especulador (ou de
organizador de novas combinações produtivas) em busca de rendas229.
A intermediação bancária opera aqui como um véu que encobre a relação
de poder estabelecida entre os capitais (na qual o detentor do capital recebe
229 “... quando detrás do produtor de mercadorias em geral se encontra um capitalista
monetário que adianta, por sua vez, capital monetário (no sentido mais estrito do termo, ou seja, valor de capital sob a forma de dinheiro) ao capitalista industrial, o verdadeiro ponto de retorno desse dinheiro é o bolso do dito capitalista monetário.” [...] “o modo pelo qual este setor adianta seu capital, por sua parte, condiciona o refluxo constante desse capital, em forma monetária, por mais que o dito retorno seja mediado, por sua vez, pela reconversão do capital industrial em capital monetário” (Marx, 1984: II/5, 505).
188
uma parcela do lucro do agente). Mais que isto, permite aos bancos aparecer,
eles mesmos, como proprietários do capital de terceiros, reforçando sua posição
como intermediários na alocação de capital. Esta função exercida pelos bancos,
lhes dá uma espécie de “monopólio” sobre o acesso aos capitais de um lado, e do
outro, encobre as relações de alocação social do capital. O proprietário do
capital delega a escolha da forma de alocação de sua poupança para o banco que
passa a agir socialmente como mandatário das pequenas e grandes poupanças.
Assim, devemos entender que os lucros bancários são, em condições de
concorrência perfeita, formados pela parcela correspondente à remuneração
destes pela administração do fluxo de dinheiro que corresponde ao capital social
total e que se deduz da mais-valia geral extraída230 cuja função de tesouraria é
“terceirizada” para o sistema bancário. Assim,
“os bancos realizam o lucro médio sobre esse capital, do mesmo modo
como os comerciantes o fazem sobre o capital de comércio de
mercadorias, e os industriais sobre o capital de produção. Porém, esta é a
única parcela do capital bancário que apresenta lucro médio no sentido
categórico” (Hilferding, 1985: 170).
E neste sentido a análise de Hilferding é perfeita: a única parcela devida
aos bancos por sua ação como agentes do capital social é a remuneração pelas
tarefas de tesouraria. Contudo, a relação aparece necessariamente de forma
velada: a remuneração do sistema bancário que é apurada como lucro é a
diferença entre as taxas de juros pagas aos correntistas e as taxas de juros
cobradas dos emprestadores, ou seja, é uma parcela da taxa de juros paga pelo
capital atuante ao proprietário do capital monetário, que pode ou não ser o
próprio banco.
O problema a ser explicado surge quando os bancos passam a exercer
outras atividades com vistas à obtenção de parcelas crescentes do excedente
econômico, que se constituem em rendas diferenciais possibilitadas pela
informação privilegiada e pelo poder relativo por eles exercido por estarem
envolvidos nas relações entre os agentes econômicos. Assim, as “operações
complexas” de Chesnais, que caracterizariam o grande capital concentrado são
230 Hilferding considera que não há lucro empresarial na ação dos bancos, mas isto
contraria no nosso entendimento a idéia de separação das tarefas próprias ao capital que justifica sua separação nas esferas industrial, comercial e monetária.
189
em muitos casos concebidas nos bancos, do mesmo modo como são criadas
grande parte das formas de representação do capital financeiro.
A primeira e mais óbvia forma de que se reveste a renda diferencial
obtida pelos bancos esta relacionada justamente a sua forma antediluviana: a de
capital usurário. O problema está na indefinição das taxas de juros (que como
preço do dinheiro, são por si mesmas indefiníveis). Se a operação bancária do
capital monetário é a forma mais alienada na qual se apresenta o capital - a
forma pura de valorização autônoma do capital na expressão D-D’-, cabe-nos
indagar a origem deste diferencial para além da aparência do processo. E qual a
remuneração do banco pelo exercício desta intermediação que possibilita a
transferência social de valores entre os circuitos de produção e realização para
os capitalistas monetários. Desta forma devemos discutir a taxa de juros e sua
função dentro da circulação capitalista.
1. A taxa de juros
Marx busca desvendar o processo de formação da taxa de juros a partir
da forma final que este apresenta na esfera da circulação de mercadorias: “O
capital lança, pro rata de sua magnitude, o mesmo lucro anual médio sem que
tenha importância que esteja industrialmente investido dentro da esfera da
produção, ou comercialmente na esfera da circulação” (Marx, 1984: III/7:433).
Mas estes são os processos no qual o dinheiro se encontra num processo
de valorização capitalista, onde em D – M – Pç – M’ – D’, o processo de
produção (Pç) agrega valor ao capital através da extração de mais-valia, a adição
de mais-trabalho à massa de valor original. Entretanto, a taxa de juros, não é
qualquer remuneração do capital, é a remuneração do monopólio social sobre
a massa de valores cristalizados na forma dinheiro, o capital em sua forma
líquida, volátil. O juro não é a forma pela qual se repartem as rendas entre os
diferentes agentes da produção, mas sim a forma como, entre os capitalistas, são
repartidas as diferentes rendas advindas da produção. O juro em si é uma
categoria derivada da transformação do dinheiro em mercadoria-capital. Na
medida em que o dinheiro aparece como substituto do sujeito capital, a ele é
atribuída a condição de gerar uma renda como “capital genérico”, um juro.
190
Neste sentido, a origem dos juros são as demais rendas. Ele não se
constitui numa renda em si (embora se confunda com a renda do capital), mas
numa repartição absolutamente indeterminada da renda auferida pelo capital
atuante (seja na produção, seja na circulação, seja como monopolista) com o
proprietário do capital231 (a quem não importa se o uso de seu capital monetário
rendeu um lucro advindo da produção, foi usado para a obtenção de um lucro
comercial especulativo, ou para a aquisição de outra fonte de renda). Não se
trata da oposição entre capital e trabalho, mas da disputa direta entre as frações
capitalistas pela apropriação da mais-valia extraída, mesmo quando se trata de
um processo de crédito ao consumidor, caso em que a sobre exploração do
trabalhador pelo sistema financeiro, quando se torna um processo constante,
pode passar a fazer parte dos custos de reposição desta mão-de-obra.
Assim, em condições ideais de “concorrência perfeita” a parcela do lucro,
extraída na atividade produtiva concreta, e paga ao capital monetário
disponibilizado para o capitalista industrial é o juro. Nas condições do
capitalismo concorrencial analisadas por Marx, era possível identificar-se
inclusive uma taxa média de juro que compunha desta forma a remuneração do
capital monetário, ao passo que o lucro, do ponto de vista do capitalista era
decomposto em lucro empresarial – segundo Marx, o lucro devido à atividade
mesma de representação da ação capitalista de extração da mais-valia - e o juro,
entendido como a remuneração devida à mera propriedade do capital como
massa de valor que possibilita o comando sobre os meios de produção na
concepção smithiana (de onde o lucro seja constantemente descrito por Marx e
seus seguidores, e citado ao longo deste trabalho como a soma de lucro
empresarial mais os juros, ou seja, l = le + j). Note-se que o que se considerava
231 Este processo fica particularmente claro na citação extraída por Paulani (1991) da
edição de O Capital da Editora Abril: “na forma do juro, essa antítese ao trabalho assalariado está apagada; pois o capital portador de juros como tal, tem como antítese não o trabalho assalariado, mas o capital funcionante (...) O capital portador de juros é o capital enquanto propriedade em confronto ao capital enquanto função.(...) Que sua função enquanto capitalista consistia em produzir mais valia (...) fica completamente esquecido em face da antítese de que o juro cabe ao capitalista, mesmo quando não exerce nenhuma função como capitalista. (...) Os motivos da repartição do lucro (...) transformam-se assim sub-repticiamente nos motivos da existência do lucro. (...) O capital portador de juros só se afirma como tal à medida que o dinheiro emprestado é realmente transformado em capital se produz um excedente do qual o juro é uma parte. Só que isso não anula o fato de, independentemente do processo de produção, o portar juros se ter incorporado a ele [ao dinheiro] como propriedade. (Marx, 1984 O capital pp. 283-5)” in (Paulani, 1991: 156-7).
191
uma taxa de lucro razoável à época de Adam Smith era o dobro da taxa de juros
(cf. Smith, vol II).
Como os juros são apresentados para uma massa fixa de valores, estes
são vistos no mercado como “preço” do dinheiro, variando como o de outras
mercadorias.
“De fato é só a divisão dos capitalistas em capitalistas monetários e
capitalistas industriais a que transforma uma parte do lucro em juro, a
que cria realmente a categoria do juro; e é só a competição232 entre
ambas variedades de capitalistas o que cria a taxa de juros” (Marx, 1984:
III/7:474).
Do ponto de vista do capitalista prático, o juro passa a ser visto como a
remuneração pela propriedade do capital, enquanto o lucro restante é “o fruto
do movimento do processamento do capital, processo este que agora lhe parece
sua própria atividade em contraste com a inatividade, a não participação do
capitalista monetário no processo de produção” (Marx, 1984: III/7:478). Assim
esta diferença qualitativa parece brotar objetivamente da realidade e não da
interpretação subjetiva do capitalista atuante. Como conseqüência o lucro de
todo capital se divide em lucro empresarial e juro233. Como decorrência o
mesmo capitalista quando atua com capital próprio vê seu lucro dividido em
dois: o primeiro a rentabilidade do capital monetário na forma de juro, o
segundo o lucro empresarial que brota do próprio processo de produção.
“Qualitativamente considerado, o juro é mais-valia brindada pela mera
propriedade do capital, mais-valia que o capital gera por si, apesar de seu
proprietário manter-se fora do processo de produção, isto é, gerado pelo
capital separado de seu processo” (Marx, 1984: III/7:481).
Podemos deduzir do exposto que o juro é a renda devida ao monopólio
sobre a propriedade do capital em sua forma líquida, monetária. Quando
cobrada do capitalista atuante é um tributo sobre a taxa de lucro (ou sobre as
232 Grifo nosso. Como vimos é nessa competição que radica as relações de força que dão
corpo às rendas diferenciais oriundas da “hegemonia de mercado”. A diferença específica, entretanto, é que a disputa dos juros se dará também sobre as rendas derivadas dos diferentes monopólios discutidos nos capítulos anteriores.
233 “Uma das partes do lucro aparece então como o fruto que corresponde em si e para si ao capital, numa determinação, como juro; a outra parte aparece como o fruto específico do capital numa determinação posta, e em consequência como lucro empresarial; a primeira como mero fruto da mera atividade com o capital, como fruto do capital enquanto capital em processo ou das funções que exerce o capitalista ativo” (Marx, 1984: III/7:479).
192
rendas diferenciais), cuja determinação se faz pela divisão da mais-valia
extraída aos trabalhadores, entre o capitalista atuante e o proprietário do
capital. O juro é assim a renda devida à massa de capital que se faz necessária
à reprodução social do capital em movimento.
Estas necessidades de capital para a reprodução se dão devido a duas
ordens de motivos: a primeira e clássica, o adiantamento de um capital para
novos investimentos quando o capitalista atuante não dispõe do volume total de
capitais necessário ao investimento (caso em que os dois tipos de capitalista
podem ser vistos como associados); e, em segundo lugar, à contingência de
crises ou problemas de interrupção do curso do capital combinada com a falta
de reservas do capitalista atuante, onde a situação vulnerável do capital atuante
abre espaço para a obtenção, por parte dos bancos, de um ganho diferencial de
natureza usurária através da cobrança de um juro maior pelo capital monetário
necessário à manutenção do movimento do capital atuante. Assim, a própria
usura é re-introduzida no sistema capitalista pela ação do capital bancário ao
aproveitar-se de situações de fragilização de unidades capitalistas decorrentes
do ciclo econômico234.
Além disto, grande parte dos empréstimos não é destinada à produção,
mas ao adiantamento do consumo improdutivo ou ao financiamento de uma
transferência de outro tipo de propriedade (por exemplo fundiária), o que
contribui para velar ainda mais a relação. O entendimento do processo de
determinação das taxas de juros, já que estas variam de acordo com o poder
relativo do freguês, é resultado de uma dinâmica de poder (ainda que de poder
econômico), a ponto de Marx considerar tal determinação impossível235. Assim,
234 Marx faz referência à conservação da usura quando discute a taxa de juros em países
numa fase de desenvolvimento inferior do capitalismo: “Ao comparar países de diversas fases de desenvolvimento [...] seria um erro completo querer medir pelo nível da taxa nacional de juros, o nível da taxa nacional de lucro. Naquela taxa encontra-se compreendido todo o lucro e mais que o lucro, em lugar de expressar somente, como em países de produção capitalista desenvolvida, uma parte alíquota da mais-valia ou do lucro produzidos. [...][Os juros] representam a proporção na qual a usura se apropria da renda” (Marx, 1984: III/6, 274). No nosso entendimento, esta observação só seria totalmente válida se nos próprios países mais desenvolvidos não ocorresse a introdução e expansão das rendas monopolistas, o que não é inconsistente com a idéia de que as taxas de juros nos países centrais sejam mais baixas do que nos países periféricos (cf. BIS, 2003).
235 “Se a competição decide enquanto tal, a determinação [da taxa de juros] é em si e para si, puramente empírica, e só o pedantismo ou a fantasia podem pretender desenvolver esta casualidade como algo necessário” (Marx, 1984: III/7:463). E a idéia de que as taxas de juros resultam determináveis pelo volume de dinheiro disponível no sistema também são refutadas por Marx, quando este afirma que “desde os descobrimentos de minas auríferas, a circulação
193
“a taxa média de juros que impera num país – e a diferença das taxas de
mercado, que flutuam constantemente – não resulta determinável por
nenhuma lei. Neste sentido não existe uma taxa natural de juros, tal
como falam os economistas de uma taxa natural de lucro e de uma taxa
natural de salário” (Marx, 1984: III/7:463).
As distorções encontradas, entretanto, podem ser indicadas pelo nível de
concentração do mercado de capital dinheiro já que, embora os pequenos
poupadores estejam atomizados, seus representantes, na figura de banqueiros e
fundos de pensão são relativamente poucos (em particular em países da
periferia do sistema onde o mercado de capitais é restrito).
“Se seguimos perguntando porque os limites do tipo médio de juro não
podem deduzir-se a partir de leis gerais, a resposta radicará
simplesmente na natureza do juro. Este é só uma parte do lucro médio.
[...] A forma em que o prestamista e o prestatário dividem as pretensões
que tem sobre o lucro é, em si e para si, um feito também puramente
empírico. [...] a diferenciação qualitativa surge da divisão puramente
quantitativa de uma mesma porção de mais-valia” (Marx, 1984:
III/7:465).
De novo o problema radica no poder relativo dos pólos da equação,
considerando-se também o grau de concentração do controle de capitais em
ambos os lados, como aponta o próprio Marx:
“A isto se soma que com o desenvolvimento da grande indústria, o
capital-dinheiro, na medida em que aparece no mercado, é cada vez mais
representado não pelo capitalista individual, pelo proprietário de tal ou
qual fração do capital que se encontra no mercado, mas se manifesta
como uma massa concentrada e organizada situada, numa forma muito
diferente da produção real, sob o controle dos banqueiros que
representam o capital social” (Marx, 1984: III/7:470).
Embora os bancos se apresentem como representantes do capital social
(e seu poder específico se encontre aumentado em decorrência deste fato), este
capital está estribado numa relação de propriedade individual. A própria função
bancária, de análise dos clientes para a concessão de crédito é uma delegação do
monetária se expandiu em toda a Europa e a taxa de juros aumentou. Portanto, a taxa de juros não depende da quantidade de dinheiro circulante.” (Marx, 1984: III/7:684, grifo nosso).
194
proprietário do capital a seu agente na acumulação monetária. Cabe ao banco a
obtenção de um juro “médio” para o capital monetário. E esta atividade é paga
pelo correntista na forma de taxas (deduzidas do rendimento de seu capital)
sobre um trabalho que é, em grande medida, socialmente improdutivo. Por
outro lado, os bancos utilizam-se de sua capacidade de gerar crédito para
multiplicar estes empréstimos e apoderar-se por si da rentabilidade de massas
crescentes de capital. A especulação, inerente ao sistema capitalista e que
potencializa as crises sistêmicas, acabou levando à intervenção dos diferentes
Estados, que fixam os limites à emissão monetária por parte dos bancos via
mecanismos de depósitos compulsórios, como voltaremos a discutir no capítulo
9.
Em decorrência do exposto, a fonte básica de lucros bancários é a
administração do capital monetário alheio pela qual o banco recebe uma parcela
dos juros obtidos pelo empréstimo dos depósitos. Esta intermediação
financeira, ao afastar-se da remuneração paga pelas atividades de tesouraria,
constitui-se numa forma de renda diferencial entre a média devida ao capital
monetário do conjunto dos depositantes e a capacidade do banco de impor taxas
mais altas a seus tomadores, e não corresponde de forma alguma, neste sentido,
à remuneração do capital monetário enquanto parcela do capital social
necessária à circulação do capital. Trata-se mesmo de uma renda advinda da
necessidade social, vista como individual, por parte do capitalista atuante em
manter a circulação do capital para completar seu processo de valorização. De
fato, como Marx aponta, o valor de uso do capital dinheiro é possibilitar a
manutenção de tal circulação, mas uma vez removida a restrição de que não
exista “um monopólio que obrigue o capitalista a comprar ou desfazer-se de
uma mercadoria por cima ou abaixo de seu preço” seu valor de troca não é mais
a participação pro rata nos lucros do capital atuante, constitui-se sim num
imposto, numa punção sobre a mais-valia extraída pelo capitalista atuante
possibilitada pela propriedade deste capital de servir como base social à
circulação das mercadorias:
“Esse juro é apenas uma parte ou uma dedução do lucro médio de nível
socialmente dado. Todavia, esse lucro não entra, de modo algum, na
determinação do nível da taxa média de lucro, como o lucro do capital do
comerciante e do capital monetário” (Hilferding, 1985: 170). [...] “A
195
diferença entre o juro que recebem como credores e o juro que pagam
como devedores constitui o lucro líquido dos bancos”236 (Hilferding,
1985: 171).
Em outras palavras, a principal fonte de obtenção de “lucros” dos bancos
é ela, em si uma atividade monopolista: a obtenção de rendas diferenciais,
através da apropriação da diferença entre as taxas de juros com que remuneram
seus depósitos e as que cobram dos empréstimos. A remuneração da ação dos
bancos encontra-se assim na apropriação das diferenças entre a segurança do
poupador e o risco do empréstimo. Risco este socializado na figura do próprio
banco através do uso do capital social de terceiros.
Além disto, com relação ao dinheiro, “é totalmente indiferente se é um
consumidor quem compra esta mercadoria como meio de subsistência, ou se a
compra um capitalista como meio de produção, como componente de capital”
(Marx, 1984: III/7:438). Da mesma forma que é indiferente para o proprietário
da terra se esta será usada para um investimento útil ou para a conservação
ambiental. O que gera o pagamento do juro, neste caso, é a propriedade do
dinheiro, da mercadoria dinheiro, que possibilita a mobilização dos meios de
produção. Assim, o capital monetário é a forma mais abstrata que toma a
riqueza na sociedade capitalista, e a forma que passa a servir de referência para
outras formas de propriedade:
“A forma de capital que gera juros traz junto a circunstância de que
qualquer renda monetária determinada e regular apareça como juro de
um capital, provenha ou não de um capital. Primeiramente se transforma
a entrada em juro, e com o juro também se pode determinar logo o
capital do qual provém. Do mesmo modo, com o capital que gera juros
qualquer soma de valor aparece como capital, enquanto ela não seja
gasta como renda; mais exatamente como soma principal (principal), em
contraposição ao juro potencial ou real que possa receber” (Marx, 1984:
III/7, 598).
Destarte, se na sociedade capitalista, a riqueza aparece como “um imenso
aglomerado de mercadorias”, sua forma capitalista mais pura - na medida em
236 É evidente que Hilferding faz abstração aqui das taxas e do ganho de senhoriagem.
Além da parcela relativa à função social de intermediação realizada pelo capital bancário pela qual ele participa de forma proporcional na extração da mais-valia produtiva via lucro empresarial.
196
que representam o capital como potência, como sua relação fetichizada D-D’ -,
são os títulos de propriedade, que constituem o capital fictício, que rendem
juros, e estes juros, como vimos são constituídos de direitos de monopólio sobre
a riqueza social produzida num determinado tempo, quer se constituam de
direitos sobre a mais-valia extraída por um capitalista atuante, quer se
constituam de rendas de monopólio de outro tipo como no caso da propriedade
da terra, das rendas de tecnologia ou de marcas. O mesmo se aplica com relação
à dívida pública, embora uma discussão mais aprofundada de sua relação com o
restante do sistema seja deixada para a parte III deste trabalho.
Voltaremos à discussão do capital fictício ao discutirmos as implicações
da forma da sociedade anônima para o funcionamento do capital. Por ora,
discutiremos o que há de específico na relação entre os bancos e o restante das
empresas do sistema capitalista.
2. Rendas diferenciais na relação empresas x bancos.
Vimos nos capítulos anteriores como as relações de poder são
estabelecidas entre as empresas permitindo àquelas posicionadas em nodos
privilegiados da cadeia produtiva e/ou dotadas do monopólio sobre
informações, marcas, tecnologia ou de massas concentradas de capital, impor a
seus parceiros e aliados a transferência, para si, de parcelas da mais-valia
extraída através da determinação da dinâmica de acumulação capitalista. Ou, do
ponto de vista dos capitalistas, de parcela da lucratividade esperada do capital
produtivo disperso para estas empresas privilegiadas. Chamamos a este
processo de “hegemonia de mercado”, buscando ressaltar que se trata de uma
relação na qual o capital aparece como produtor não só da mais-valia, mas
também como produtor das próprias relações sociais de produção, atuando ao
mesmo tempo sobre as determinações econômicas, políticas e culturais.
Afirmamos também que a capacidade destas empresas de realizar tais ações está
calcada, em grande medida, no poder relativo do capital concentrado.
Veremos no próximo capítulo que o desenvolvimento de tais relações se
deu historicamente a partir do sistema bancário, pois este setor do capital ao se
constituir como depositário das reservas de capital monetário da sociedade
como um todo, possibilitou a este tipo especial de capitalista, o banqueiro,
197
exercer de forma delegada o poder representado pela massa concentrada de
capitais sobre o restante da classe capitalista237, consubstanciando-se assim, no
primeiro setor onde a concentração e centralização de poder de massas
crescentes de capitais possibilita a transformação desta quantidade de capitais
numa relação qualitativamente diferenciada.
A função social do banqueiro como tesoureiro da classe capitalista
permite a este ocultar seu interesse próprio, apresentando o exercício da relação
de poder pela qual busca sobre-remunerar o capital monetário, como uma
necessidade da remuneração dos capitais a ele “confiados”. Neste curso
histórico, onde se dá a substituição das letras de câmbio das próprias empresas
pela letra de câmbio bancária, como resultado do menor custo da segunda e pela
especialização dos bancos em sua emissão, os capitalistas industriais e
comerciais se tornam dependentes dos banqueiros. As relações de
interdependência se fortalecem com as oscilações do ciclo econômico, e como
resultado deste processo os bancos ganham ascendência sobre as firmas
individuais. Ou seja, o poder das reservas geradas na própria esfera produtiva
volta-se contra seus detentores individuais ao adquirir sua forma social.
A punção financeira, para usarmos a nomenclatura de Chesnais, ou a
clássica usura, se exerce através da transferência da mais-valia produzida no
processo produtivo para o capital bancário. Este processo condena parcelas do
capital industrial e comercial a uma redução de sua margem de lucro – não por
reduzir-se a mais-valia extraída, mas pelo aumento das taxas de juros que
transferem, desta forma, parcelas crescentes da mais-valia ao capital bancário.
No limite se chega a situações em que se observa a redução do
movimento do capital a uma “reprodução simples” (ou, nos casos extremos,
uma descapitalização, quando o capital bancário se decide a matar a “galinha
dos ovos de ouro”). O resultado é que a empresa vê-se limitada em seu processo
de acumulação, transferindo, deste modo, sua capacidade de expansão ao setor
bancário, e tornando-se refém deste para a obtenção de créditos. Para
Hilferding, analisando a subordinação do capital comercial ao capital
237 Isto se dá na medida em que “com o desenvolvimento da produção capitalista, não
obstante, se desenvolve também, ao mesmo tempo, o sistema de crédito. O capital monetário que o capitalista ainda não pode empregar em seu próprio negócio, é empregado por outros, dos quais aquele, em troca disto, recebe juros. Funciona para ele como capital monetário no sentido específico do termo, como um tipo de capital diferente do capital produtivo. Mas opera como capital nas mãos de outros” (Marx, 1984: II/4, 394).
198
financeiro, a aliança entre capital industrial e bancário, o objetivo do capital
financeiro é reduzir o comerciante com capital próprio a um agente da
produção. O mesmo pode ser dito sobre capitais produtivos que caiam sob o
domínio dos bancos, ou de pequenos industriais que caiam na dependência de
um grande distribuidor. Assim, se para Hilferding, “a ficção da independência,
criada pelo outro modo de remuneração – e nesse caso trata-se de salário, o
rendimento do ‘comerciante’ consiste no lucro sobre seu capital e dos salários
que o sindicato teria pago a um agente – esta ficção contudo, poupa ao sindicato
os custos de vigilância e gastos de controle” [E, portanto] “até onde esta ficção
de autonomia é sustentada, é economicamente indiferente” (Hilferding, 1985:
210). O mesmo não pode ser dito, contudo, pelos indivíduos concretos que caem
sob o domínio do capital financeiro.
Trata-se agora de um processo pelo qual se transferem as rendas de um
setor para o outro, através não do processo de troca desigual que deveria
estabelecer a média de remuneração das taxas de lucro, mas sim pela
transferência direta de rendas na forma das taxas de juro. No caso, o setor
comercial transfere suas rendas (incluindo uma parte maior ou menor da mais-
valia que deveria compor seu lucro médio) para as empresas oligopolistas e, em
particular, para os bancos. A mesma lógica se aplica quando pequenas empresas
capitalistas produtivas caem sob a dependência do setor bancário ou da
indústria. Como vimos, o processo de subordinação não faz distinção de raça,
sexo ou cor, ou no caso, de setor de atuação, tradição, nome e mesmo em alguns
casos de tamanho. Para se ver esfolado, basta que o pequeno capital seja
obrigado a contrair dívidas em condições desvantajosas em nome de sua
subsistência.
Do ponto de vista político e sociológico tal ficção (pela qual o pequeno
capitalista se torna assalariado mas ainda vê sua renda como lucro) é menos
indiferente ainda! O caso mais típico de ausência de independência (e da
confusão de salários com lucros) nos dias de hoje são os franqueados. Micro-
empresários que não tem a menor margem de manobra dentro de seus
negócios, embora nominalmente sejam “independentes”. E isto inclui o ramo de
serviços. Como vimos na segunda parte deste trabalho, estamos diante de
formas de reprodução do capital que reduzem a ação do pequeno capitalista a
uma reprodução simples de seu capital (quando não a uma extração de mais-
199
valia indireta sobre o pretenso patrão de si mesmo238). Estas relações são
impostas, de forma contratual, pelas relações de poder estabelecidas entre o
pequeno e o grande capital. O que temos, no limite, no setor subordinado às
estratégias de acumulação do capital concentrado, é a criação de uma “taxa de
lucro” administrada que se reduz a um lucro empresarial equivalente a um
salário de gerência para seu proprietário. Todo o restante da mais-valia extraída
no processo é apropriada na forma de juros e outros lucros de monopólio, e
transferida, via mecanismos de preços, para as empresas oligopolistas que
comandam o processo239.
Do ponto de vista pessoal, entretanto, tal “capitalista franqueado”
continua se vendo como um “agente da produção”, identificando seu salário
com um “lucro” e agindo no sentido de reforçar a ideologia da “livre iniciativa”.
A aparência que reveste o processo aliena o indivíduo da percepção de sua real
condição – um gerente assalariado – e comporta as bases para o discurso do
“pequeno empreendedor” e suas conseqüências no sentido de reforço à
ideologia hegemônica, em particular na defesa da propriedade privada e do
antiestatismo – onde os impostos e o financiamento do “mínimo público”, como
veremos nos capítulos 9 a 12, são os alvos principais.
A indeterminação dos juros e a usura.
Como vimos, a taxa de juros também é regulada pelo mercado, e
novamente, o mercado não diz nada quando se encontra em equilíbrio, pois o
“preço”, ou seja “os juros” seriam regulados pelo próprio modo de produção.
Mas, para Marx, não existe uma taxa “natural” de juros. Esta é puramente
determinada pela concorrência entre os capitalistas:
“Quando a competição determina não só as divergências e flutuações,
isto é, quando cessa toda a determinação em geral no equilíbrio de suas
forças operantes contrapostas, o que há de determinar-se é algo em si e
para si arbitrário e não sujeito a lei alguma” (Marx, 1984: III/7:455).
238 As reclamações segundo as quais estes pequenos capitalistas se sentem “trabalhando
para a franquia” afinal tem um fundo de verdade. 239 Segundo Fontenelle (2002) no caso do McDonalds, uma importante parcela das
rendas transferidas era composta pelos aluguéis dos prédios pois a franquia se fazia nos EUA até bem recentemente apenas sob prédios de propriedade da controladora.
200
Portanto, estamos diante de uma relação pura de poder! Por isto, “para o
capitalista individual a mais valia realizada por si mesmo depende tanto do
logro recíproco [entre capitalistas] como da exploração direta do trabalho”
(Marx, 1984:III/6, 50). Um salário baixo aparece apenas como uma economia
realizada no gasto de um dos componentes do capital, como se houvesse
comprado insumos por baixo de seus preços reais. Mas, o que Marx não pode
perceber ainda em seu tempo, é que tais relações de logro deixam de ser casuais
e passam a constituir-se em relações estruturais de comando, de subordinação
do pequeno pelo grande capital. E tal relação desequilibrada aparece em
primeiro lugar na determinação “fortuita” da taxa de juros entre o banco e as
empresas por um lado e entre o banco e seus depositantes por outro.
A disputa pela determinação da taxa de juros é a forma como se dá o
nascimento do antagonismo dos interesses das frações burguesas pela
apropriação do excedente, a forma sob a qual nasce o processo de transferência
de mais valia entre o pólo dinâmico e o pólo difuso dos capitais. O capital
bancário, e depois o financeiro, buscam apropriar-se de parcelas crescentes da
mais-valia levando por vezes à paralisação dos setores produtivos. Estes
últimos, por sua vez, procuram diminuir ao mínimo a remuneração repassada
ao mercado de dinheiro de forma a poder ampliar a produção, mas isto leva
muitas vezes a uma fuga dos capitais das aplicações e a uma alta dos juros
devido à escassez de capital-dinheiro no mercado. A aparência do processo
encobre assim a relação de disputa direta. A escassez, como querem os
economistas burgueses, explica a alta dos juros, quando tanto a escassez quanto
a alta dos juros deveriam ser explicadas pelo movimento de disputa entre o
capital atuante e o capital monetário.
A queda de braço entre a acumulação interna às empresas produtivas e o
sistema financeiro se dá no entrechoque entre o oligopólio bancário e os
diferentes oligopólios produtivos, sempre lembrando que estes guardam entre si
relações de conflito e cooperação. Estes conflitos se resolvem, entretanto,
através de relações que não se limitam às meras operações de mercado, são
relações de poder que transcendem os signos monetários e se firmam em
alianças e acordos de cunho estratégico, eminentemente políticas que
entrelaçam empresas e bancos, empresas e Estado, bancos e Estado, e que, ao
mesmo tempo, reproduzem sua particular forma de ver o mundo para o
201
conjunto da sociedade. A tensão gerada na disputa entre os capitais, entretanto,
não se limita a estes, reverberando como conflito distributivo para o conjunto da
sociedade, seja através do rebaixamento da massa de salários, seja através de
processos inflacionários.
Se “ao aparecer todas as partes do capital como fontes, por igual, do valor
excedente (lucro), se mistifica a relação do capital” (Marx, 1984:III/6, 52), a
divisão do valor excedente em diversas rendas complica ainda mais a situação.
Devemos considerar que parte da rentabilidade do capital monetário terá
origem diretamente na produção, mas que outro tanto poderá advir
aparentemente de rendimentos financeiros (juros extraídos em cascata e
cobrados não apenas do setor produtivo), aluguéis (renda da terra), ou de
economias técnicas como estudadas nos capítulos anteriores (royalties e
licenças). Neste caso, borram-se as fontes da rentabilidade sob a forma do lucro,
que parece deixar de indicar apenas a extração direta da mais-valia.
Ainda que o lucro bancário se constitua de uma parcela, mesmo que
mínima, relativa às atividades de tesouraria pela qual faz jus a uma parcela da
mais-valia extraída como capital social global, segue do exposto acima que o
grosso de sua “rentabilidade” é sustentada pela apropriação de rendas
diferenciais advindas de seu poder relativo na cadeia produtiva. Hilferding não
está completamente correto ao afirmar que “o ganho bancário não é lucro”, mas
tem razão quando nos diz que “o montante do ganho, calculado sobre o capital
próprio do banco, deve ser igual à cota média dos lucros. Se é menor, serão
retirados capitais do negócio bancário, se é maior, aparecerão novos bancos”
(Hilferding, 1985: 176). Embora não se trate de uma atividade diretamente
produtiva, sua aparência como capital, e sua capitalização em bolsa como
capital fictício, leva a que seu “lucro” seja confundido com o lucro de outras
atividades, embora este se componha em sua quase totalidade de lucros
monopolistas.
Como vimos, o setor bancário foi um dos primeiros, senão o primeiro a
adotar diretamente a forma do capital social por ações, e esta forma nos leva a
outros desenvolvimentos como veremos adiante no item 3 do capítulo 8.
Com relação ao capital bancário, ainda são necessários alguns
comentários. Tendo em vista que
202
“tanto a usura como o comércio, exploram um modo de produção dado,
mas não o criam, se comportam de forma exógena com relação ao
mesmo. A usura trata de conservá-lo diretamente para poder explorá-lo
de forma renovada e constante; é conservadora e só o torna mais
miserável” (Marx, 1984: III/7:785).
Devemos ter em mente que nada impede que denominemos a punção
exercida pelo sistema bancário para além do juro básico de usura, pois “as crises
monetárias modernas demonstram como isto pode levar a circunstâncias nas
quais o capitalista financeiro e o usurário se fundem, ainda hoje em dia, num
só” (Marx, 1984: III/7:773). E Marx nem podia imaginar o que seriam as
empresas de cartão de crédito.
O crédito ao consumidor, neste sentido, tem a mesma lógica e o mesmo
objetivo dos créditos concedidos aos Estados, sua dinâmica é a de subordinação
dos devedores aos credores, estabelecendo desta forma uma relação de
dominação direta, como discutiremos nos capítulos da parte III. O indivíduo é
financiado e torna-se dependente do fornecedor do crédito. Como discutido por
Oliveira (2003), o “barracão financeiro” substitui o clássico truck system, no
processo de subordinação do trabalhador à lógica do capital em sua versão
financeira.
No longo prazo, como veremos, mesmo o capital latente disponível para a
empresa deve ser colocado em circulação de alguma forma devido aos
impedimentos de escala de novos investimentos. Tal capital tanto pode
substituir eventuais capitais de giro, emprestados por instituições financeiras,
como também financiar a criação de novas instituições financeiras interna
corporis, cujos objetivos passem a ser o financiamento de ações relacionadas à
produção ou ao financiamento do consumo de produtos da empresa. O melhor
exemplo deste tipo de banco voltado à empresa são os bancos e financeiras das
montadoras do setor automotivo (apenas como exemplo, o grupo FIAT declara
36 empresas coligadas exercendo funções diretas de financiamento e 20
seguradoras, cf. FIAT 2002). Com isto fecha-se um ciclo, no qual o capital
produtivo “livra-se” de seus sócios bancários, criando seu próprio setor
financeiro. Alguns grandes produtores, entretanto escolhem relacionar-se com
bancos em situações de oligopólio bilateral, negociando parcerias, etc.
203
Com isto, podemos dizer que, a formulação de Marx sobre a divisão dos
lucros entre um lucro empresarial, e uma taxa de juros (l = le + j) deixa de fazer
sentido aparente, pois os juros não são mais apenas a forma autonomizada do
rendimento do capital fictício, correspondendo agora também a um método de
transferência de renda que se constitui num lucro monopolista. Assim, parcelas
crescentes do capital industrial e comercial, ao conformar-se com sua redução a
tarefas subordinadas no processo de acumulação capitalista, abrem mão
inclusive do que seria sua rentabilidade média esperada. O lucro empresarial
passa assim a constituir a rentabilidade mínima pela qual o empresário aceita
arriscar seu capital próprio e “dignificar-se” como pequeno-burguês ou
pequeno-capitalista, recebendo um salário a título de lucro. Esta relação
despoja o pequeno empresário da possibilidade de realizar o processo de
reprodução ampliada do capital mantendo-o entretanto, ao menos em termos
de imaginário, dentro dos marcos da relação de proprietário capitalista.
Nesta relação radica a idéia de que se criam duas taxas “tendenciais” de
lucro como vimos anteriormente. É interessante notar que a “rentabilidade” dos
bancos é quase que totalmente formada por rendas de monopólio, expressas
numa punção direta dos lucros de seus clientes, o que leva uma parcela da
pequena indústria e do comércio a perceber sua contraposição ao setor bancário
quando a alta dos juros os priva de sua rentabilidade mínima.
Ficou faltando aqui a discussão da terceira forma de geração do crédito
indicada por Marx, a criação das empresas organizadas como sociedades
anônimas. Estas empresas, constituídas como “capitalistas coletivos”,
entretanto, tem um papel próprio no movimento de autonomização do capital
como sujeito semovente. Se o dinheiro, visto como capital monetário, permite a
seu proprietário estranhar-se da ação do capital e não ver-se como capitalista. A
forma do capital societário das Sociedades Anônimas termina de dar vida
própria ao capital como relação social.
A relação capital não apenas aparece estranhada por parte do
proprietário do capital, como agora também o capitalista atuante transforma-se
numa espécie de trabalhador, ainda que um trabalhador especializado, e adota
como postura entender que o comando sobre as pessoas e coisas são um
imperativo externo a sua vontade. O capital liberta-se assim de seus suportes e
ganha forma autônoma no processo histórico, passando a impor sua vontade
204
como algo externo aos homens que a realizam, e não estamos falando mais
apenas dos trabalhadores.
Antes de voltarmos à discussão das implicações da forma Sociedade
Anônima para a organização capitalista, discutiremos como se deu o processo
histórico de sua constituição.
205
Capítulo 7 - Surgimento e evolução das Sociedades Anônimas.
1. Surgimento.
A organização de empresas por ações, sociedade anônima ou a
corporation – na forma norte-americana -, está entre os arranjos institucionais
que mais marcaram a cultura capitalista no século XX. A origem mais direta da
legislação que a fundamenta se dá ainda nos alvores do século XIX, a partir dos
códigos napoleônicos
“que com sua ênfase na liberdade contratual garantida legalmente, seu
reconhecimento das letras de câmbio e de outros papéis comerciais, e
suas disposições em prol das empresas de capital social (como a societé
anonyme e a commandite, sociedade em que um dos sócios entra com o
capital e outro com o trabalho, adotadas em toda a Europa, exceto na
Grã-Bretanha e na Escandinávia) tornaram-se por essa razão os modelos
gerais para o mundo” (Hobsbawm, 1977: 246).
Do mesmo berço surgiu o moderno sistema creditício, inspirado nas
idéias saint-simonianas dos irmãos Pereire, e com isto “depois de 1850, deu-se o
fenômeno continental característico (especialmente alemão) do grande banco
atuando também como investidor e dessa forma dominando a indústria e
facilitando sua concentração precoce” (Hobsbawm, 1977: 247)240.
Tanto a idéia de empresas compostas por capitais associados, quanto o
sistema de bolsas de valores é anterior à criação das sociedades por ações como
240 Não se trata aqui do surgimento do sistema bancário em si, que remonta em termos
europeus no mínimo à Florença do século XIII (Arrighi, 1996; Hibbert, 1993).
206
as conhecemos hoje. As primeiras bolsas foram criadas visando a negociação de
títulos públicos e ações de companhias instituídas pelo Estado241. Dobb (1983)
já apontava os antecedentes da forma associativa adotada pelos capitais nas
maone genovesas, companhias privadas encarregadas da conquista de Caffa e
da colonização de Khios. São estas maone que servem de inspiração às grandes
companhias de navegação holandesas e britânicas, calcadas no monopólio do
comércio com as possessões coloniais destas potências.
A organização das associações de capitais, tem uma ligação direta, desde
seus primórdios, portanto, com a ação estatal. É o Estado, atuando como
organismo coletivo burguês, mas também refletindo a síntese da luta de classes
da época, que direcionará e garantirá os esforços destas associações com vistas
aos grandes empreendimentos coletivos de capitalização do período
mercantilista. Devemos recordar também que os primeiros Estados nacionais
europeus onde a burguesia adquiriu poder regulavam as ações empresariais,
estabelecendo sistemas de permissão para o funcionamento das empresas -
incluindo-se aí a Inglaterra. Afinal, no início do século XIX, “todo governo,
mercantilista ou paternal, baixava seus regulamentos e disposições
administrativas sobre o assunto, para benefício da estabilidade social, porém
para a irritação do empresariado privado” (Hobsbawm, 1977: 245). Ou seja,
mesmo em nações onde o capital já havia se emancipado das formações pré-
capitalistas e as burguesias jogavam papel de destaque na direção do Estado,
esta direção não era inconteste, estando limitada pela regulamentação do
Estado, onde jogavam papel também as classes remanescentes do sistema
anterior e, crescentemente, através do clamor público e de movimentos
revolucionários, as novas classes exploradas.
Temos assim que dois processos simultâneos se confundem na formação
das grandes empresas de capital societário. A criação dos mecanismos legais e
creditícios que possibilitam e aceleram a centralização dos capitais, e a ação
estatal, no sentido de estimular e ao mesmo tempo regular o processo pelo qual
ocorre esta centralização. A ação do poder estatal, neste caso, se dá como reflexo
imediato da disputa entre as frações hegemônicas das classes pelo controle do
241... “vários tipos de bolsas de valores haviam surgido e florescido em Gênova, nas feiras
de Leipzig e em muitas cidades hanseáticas no século XV, e os títulos de empréstimos públicos tinham sido negociáveis muito antes disto nas cidades-Estado italianas” (Arrighi, 1996: 142).
207
Estado, como se encontra na análise que Marx (1972 e 1978) faz em A luta de
classes na França e no O 18 de Brumário. Quando Marx descreve a luta pelo
poder na França de Luís Felipe, fica clara a importância dada por ele à disputa
entre frações da classe dirigente:
“Quem dominou sob Luís Felipe não foi a burguesia francesa mas uma
fração dela; os banqueiros, os reis da Bolsa, os barões das ferrovias, os
proprietários de minas de carvão e de ferro e de florestas, e uma parte da
propriedade territorial aliada a eles: a chamada aristocracia financeira.
Ela ocupava o trono, ditava leis mas Câmaras e indicava os cargos
públicos, dos ministérios às tabacarias” (Marx, 1972: 40).
Em decorrência do fato do Estado não ser mero instrumento de
dominação, mas também espaço de disputa entre as classes e frações de classes
existentes na sociedade, é importante termos em mente que o processo de
construção da legislação que fixa a forma da lei, e conseqüentemente dos
instrumentos legais que permitem a composição de capitais é, ele mesmo, fruto
da disputa entre as frações capitalistas interessadas e as demais classes e frações
representadas no parlamento. O processo de centralização de capitais já era
descrito por Marx242 que ressaltava em sua análise que “com a acumulação do
capital se desenvolve, em conseqüência, o modo de produção especificamente
capitalista, e com o modo de produção especificamente capitalista a acumulação
de capital” (Marx, 1984: I/2:777). Tal processo ganha, assim, novos contornos.
O desenvolvimento do grande capital leva à necessidade de se encontrar formas
de organização e expressão legal para este processo de centralização e
concentração da propriedade. Isto se dá ao mesmo tempo em que as inovações
tecnológicas aceleram esta tendência ao necessitar de volumes cada vez maiores
de capitais para garantir a viabilidade dos novos negócios e sua reprodução
ampliada.
242 “A centralização pode levar-se a cabo mediante a mera distribuição modificada de
capitais já existentes, mediante a simples modificação do agrupamento quantitativo entre as partes constitutivas do capital social. Se o capital pode crescer aqui até converter-se numa massa imponente controlada por uma mão, é porque a muitas mãos se despoja de seu capital. Num ramo dado dos negócios alcançaria seu limite extremo quando todos os capitais investidos naquele se confundissem num capital singular” (Marx, 1984: I/2: rodapé 779-80). E Engels complementa o argumento do amigo em nota à quarta edição d’O Capital: “Os novíssimos trustes ingleses e norte-americanos apontam já a este objetivo, posto que procuram unificar em uma única sociedade por ações, dotada de um monopólio efetivo, pelo menos a totalidade das grandes empresas ativas em um campo industrial” (Engels, in Marx, 1984: I/2:780).
208
Como de início a repartição de heranças levasse ao fracionamento dos
capitais, isto se demonstrava contraproducente com relação às exigências
técnicas da produção, empurrando os indivíduos a uma situação na qual se
demonstrava como necessária, para a garantia da lucratividade, a associação.
Assim, ao perceber este processo, Marx (II/4:283) trata as sociedades anônimas
como “capitalistas associados” e as coloca ao lado dos grandes capitalistas no
interior de sua análise. Possivelmente, esta abordagem do objeto por parte de
Marx decorra da observação do processo no qual a distribuição dos capitais
entre os herdeiros na forma acionária possibilita que não se dissipe a empresa.
Neste momento histórico a forma societária encontrava-se ainda em germe
como alternativa para o processo de centralização de capitais. Ainda não se fazia
patente a forma como as Sociedades Anônimas acabariam gerando um tipo de
organização que levaria o capitalismo a romper os pressupostos da livre
concorrência estabelecendo novos padrões de funcionamento do sistema
calcados em lucros monopolistas.
Estes “capitalistas associados”, de meados do século XIX, dão lugar, após
poucos anos, aos financistas que se posicionam no comando das empresas e que
são tratados por “barões ladrões, magnatas243 ou mongóis” devido a suas
semelhanças com senhores feudais e sua falta de preocupação com o bem-estar
público. Na comparação entre o magnata do início do século e o homem de
negócios da década de 1950, pretendia-se que a vantagem do segundo era a que
“para o primeiro, a empresa era apenas um meio de enriquecimento; para o
segundo, o bem da companhia tornou-se uma finalidade ao mesmo tempo
econômica e ética. O primeiro roubava a empresa, o segundo rouba para ela”
(Baran & Sweezy, 1974: 39)244. O passar de mais meio século só faz confirmar a
mistura de ambos os comportamentos no caráter dos indivíduos que estão à
frente das grandes corporações: seja o profissional técnico de carreira, seja
Berlusconi, o caráter duvidoso é a marca de tais indivíduos245 que pretendem
dormir o sono dos justos pensando que “ao fim do dia fizemos mais coisas boas 243 O termo tycoon, traduzido por magnata, deriva de uma incompreensão por parte dos
norte-americanos do nome do Xógum japonês. 244 Os próprios autores ironizam a situação apontando o alto índice de criminalidade na
condução empresarial, seja pró ou contra os acionistas. 245 O trabalho de organizações não governamentais como a United for a Fair Economy e
outras nos EUA e Europa, em monitorar e denunciar abusos na ação destas empresas e de seus executivos parece servir apenas para expor a chaga, sem que maiores resultados políticos sejam atingidos. Ver Klinger et alli (2002) e S. Anderson et alli (2004).
209
do que más” como o advogado corrupto de Wall Street no filme Fora de
Controle, ao tentar justificar para seu futuro genro um desvio milionário de uma
instituição de caridade.
Junto com o poder, entretanto, vem a consciência deste poder, assim
“Escreveu um destes aristocratas, o Vice-Presidente da Pittsburgh Plate
Glass Company: ‘Nos Estados Unidos de hoje (1957) 135 empresas
possuem 45% dos bens industriais. São essas as companhias que
devemos observar. Nelas está o poder empresarial’. Evidentemente, o
exercício do poder encontra correspondência na consciência deste poder”
(Baran & Sweezy, 1974: 42)246.
Quase meio século depois, o quadro não parece ter se alterado de forma
significativa nos EUA. Antes, o padrão que era percebido em alguns países de
capitalismo mais avançado tornou-se agora a forma generalizada em termos da
economia global. A centralidade dos EUA na análise do capitalismo pós-
Segunda Guerra nos remete à discussão própria de como os acontecimentos se
deram neste país. Como veremos, a legislação norte-americana inova com
relação ao código napoleônico, transformando pela primeira vez as empresas
em pessoas jurídicas independentes de seus proprietários, dando a parcelas do
capital, como sujeito histórico, uma forma própria e juridicamente
independente de seus proprietários e gestores.
2. Nos EUA
As informações históricas expostas na seqüência deste capítulo se
baseiam principalmente em Roy (1997)247 e Arrighi (1996) 248.
246 “Em 1976, as cinco maiores companhias industriais, com um ativo combinado de U$
133 bi, tinham quase 13% de todos os ativos utilizados na indústria. As 50 maiores companhias tinham 42% de todos os ativos industriais. As 500 maiores tinham 72%” (Galbraith, 1982: 67).
247 Trata-se de um interessante trabalho sobre o desenvolvimento das sociedades anônimas nos EUA onde o autor apresenta o processo histórico de construção das grandes corporações americanas buscando estabelecer uma “sociologia política da corporação”, dando ênfase ao conceito de poder a partir da sociologia política. Roy descarta cabalmente uma aproximação com a teoria do Imperialismo proposta por Hilferding e Lênin (Marx sequer faz parte da bibliografia do trabalho) e escolhe como interlocutor a ser criticado Alfred Chandler e sua “teoria da eficiência”. Embora Roy não seja um marxista, sua pesquisa empírica, realizada em fins do século XX, nos fornece elementos mais ricos para a análise do processo, do que os constantes nos trabalhos de Lênin e Hilferding, datados da década de 1910.
Roy enfatiza em seu livro alguns quebra-cabeças históricos: o primeiro está relacionado a como a corporação foi transformada de uma extensão do poder estatal na quintessência da propriedade privada, num santuário com relação à autoridade governamental; e o segundo, consiste em explicar porque a manufatura, no caso norte-americano, ficou tanto tempo distante
210
A bolsa de Nova York (NYSE) é fundada em 1817, tomando como
exemplo as bolsas de Londres e Paris249. A fundação da NYSE corresponde ao
ano de lançamento dos bônus para o Canal Erie, que inicia a “canalmania” que
foi procedida pela “ferroviamania”. Em 1827, a bolsa concentrava a venda de
bônus de 8 estados e as ações de 12 bancos e 19 seguradoras contra fogo250. A
NYSE inicia-se como um mercado de pouca importância, amplamente
subordinado a Londres e Paris, assim, não é de admirar que a década de 1840
seja marcada pela negociação de ações de empresas norte-americanas nas
bolsas européias e que apenas no fim desta década a “corrida do ouro”
californiana possibilite sua expansão.
O papel do mercado financeiro, entretanto, já desponta como central
para o entendimento das variações da economia norte-americana. A exportação
de capitais excedentes britânicos encontra na economia norte-americana um
escoadouro ideal representado pelos vastos recursos físicos da nação norte-
americana, a língua comum e uma ideologia burguesa calcada no
empreendedorismo e na busca do rápido enriquecimento251. A depressão de
das finanças e porque sua união foi tão explosiva? Para o autor, “a teoria do poder começa com a questão de quem age para transformar um regime de propriedade em outro e investigar como o capital foi reconfigurado do nível individual para o social” (Roy, 1997: xiii). Veremos que as respostas encontradas por ele não são suficientes para dar conta do objeto e que, ironicamente, é na matriz marxista por ele afastada que encontraremos as pistas para sua compreensão.
248 Arrighi (1996) apóia-se no mesmo texto Chandler que é criticado por Roy para a exposição histórica do desenvolvimento das corporações americanas em apoio a sua tese sobre a “longa duração” dos ciclos capitalistas. Ao contrário de Roy, Arrighi incorpora praticamente sem crítica os resultados da análise de Chandler (que não percebe os ganhos de escala como rendas monopolistas) acaba redundando num forte ecletismo ao misturá-la com teorias de corte e orientação diferentes como as de Marx e Gramsci. Já discutimos no capítulo 2 um dos textos mais recentes de Chandler, escrito em parceira com Hikino (1999) sobre a dinâmica das grandes corporações ser orientada pela idéia de capital intangível. Não discutiremos aqui diretamente os textos citados por Roy, mas faremos referência a suas críticas a Chandler dentro deste capítulo.
249 Existia um pacto entre corretores datado de 1792 mas, antes da fundação, as operações de corretagem se concentravam num café em Wall Street.
250 A importância das seguradoras não pode ser menosprezada como unidades de reserva e custos da classe capitalista, uma vez que o capital constante está sujeito à aniquilação por diversos motivos. O que faz com que uma parte da mais-valia seja edificada em fundo de reserva para a sua reposição – como por exemplo nas seguradoras. Já vimos que, entre as 200 maiores empresas do mundo, 12,4% do faturamento correspondiam às seguradoras em 1999.
251 Não é de se estranhar nestas condições que “os Estados Unidos foram o país que captou a maior parcela desses investimentos, e aquele que deu aos investidores britânicos os maiores direitos sobre ativos estrangeiros e receitas futuras. Ente 1850 e 1914, o investimento externo e os empréstimos de longo prazo aos Estados Unidos somaram um total de U$ 3 bilhões. Mas durante esse mesmo período, os Estados Unidos fizeram pagamentos líquidos de juros e dividendos, em sua maior parte à Grã-Bretanha, num total de U$ 5,8 bilhões. A conseqüência foi um aumento da dívida externa norte-americana de U$ 200 milhões em 1843, para U$ 3,7 bilhões em 1914 (Knapp, 1957, p. 433)” (apud Arrighi, 1996: 278).
211
1857 ocorre, como nunca antes, causada pela dinâmica do capital financeiro e
com isto os capitais externos retiram-se temporariamente da bolsa de NY. Como
a isto se segue a Guerra Civil que mantém tais capitais externos à distância, ao
fim desta a Bolsa de Londres ainda tinha mais importância para o governo
norte-americano que a de Nova York.
Não havia, em Nova York, um sistema de compensação de crédito entre
as corretoras nem comunicação automática de preços ou volume de negócios,
mas na expressão de Roy “seu momento estava chegando”. E na explosão
seguinte tiveram papel fundamental os chamados Bancos de Investimento, que
surgem, antes da Guerra Civil, jogando um papel menor no financiamento das
corporações se comparados com as corretoras e loterias utilizadas para
operações de capitalização em larga escala. Estes Bancos de Investimento
desenvolveram-se fundamentalmente a partir de bancos comerciais e em alguns
casos de corretoras. Suas origens remontam à especulação com bônus públicos
emitidos para financiar atividades auxiliares durante a guerra com a Inglaterra
em 1812.
Embora os bancos de investimento não pudessem emitir notas como os
bancos comerciais, eles podiam descontar notas, aceitar depósitos e comerciar
extensamente no setor externo, substituindo assim as corretoras. Ao contrário
da centralidade do setor ferroviário neste processo como apontada por
Chandler, Roy e Arrighi, podemos constatar que nos EUA na verdade é no setor
bancário, propriamente dito que se desenvolve em primeiro lugar a forma
societária de propriedade. E este surgimento se dá de forma articulada à
concessão pública de emissão de crédito. Isto tem particular importância na
medida em que, antes da Guerra Civil, o único dinheiro nacional dos EUA eram
as moedas metálicas em si, enquanto milhares de tipos de papéis emitidos por
instituições privadas funcionavam como moeda nas transações comerciais. A
capitalização das indústrias normalmente se deu através da associação entre o
industrial e o capital mercantil que financiava a manufatura ou bancava o
empréstimo necessário junto aos bancos (quando banco e comerciante não
eram a mesma pessoa).
A questão de como financiar a guerra leva à criação de um sistema
monetário e creditício único, substituindo os 7.000 tipos de notas em circulação
nos EUA. Neste momento, segundo Roy (1997), se realizaram duas inovações
212
fundamentais para o desenvolvimento de Wall Street: 1) a venda de ações de
forma pulverizada e 2) a formação de “sindicatos” compostos por vários bancos
para a venda de grandes lotes de ações e bônus do tesouro. A venda no varejo
copiava o financiamento da Guerra da Criméia por Napoleão III. A entrada do
Estado norte-americano no mercado de Wall Street implicou num grande
aumento das operações centralizando cada vez mais os capitais envolvidos252.
Um dos principais efeitos da Guerra Civil é a criação de um sistema
monetário nacional nos EUA. Este processo torna desnecessário o papel das
corretoras intermediárias na troca de papéis de diferentes bancos diminuindo os
custos de transação. Um segundo efeito é a formalização de uma estrutura
piramidal de redepósitos pela qual os bancos locais depositam em 18
centralizadores e estes nos bancos de Nova York, facilitando assim a
centralização da riqueza e a constituição do capital social em nível nacional nos
EUA. O sistema de call loan propiciava o uso especulativo dos depósitos
bancários dos pequenos bancos rurais na bolsa, o que leva a um aumento tanto
da capacidade de alavancagem propiciada pelo aumento do volume do crédito
quanto de sua instabilidade. Alguns investidores passam a recusar-se a entrar
no “jogo de azar” das ferrovias, e cabe a J.P. Morgan a primeira iniciativa de um
banco de investimento vender as ações de uma ferrovia em troca de indicar um
diretor da mesma253.
252 Pode-se ver que não há de fato maiores diferenças entre a análise de Roy e a de
Hilferding: “Nos seus primórdios, a bolsa servia para a transformação de diferentes tipos de dinheiro e letras de câmbio. [...] Mais tarde, ela se tornou um mercado de capital fictício. Este evolui, em primeiro lugar com a evolução do crédito público. A bolsa se converte em mercado dos empréstimos públicos. Mas a transformação de capital industrial em capital fictício, ou seja, a penetração cada vez maior da sociedade anônima na indústria, provocou uma reviravolta” (Hilferding, 1985: 142).
253 Como já mencionamos, o papel dos capitais europeus era predominante no mercado norte-americano até o início do século XIX. Em 1808, ¾ dos depósitos em bancos norte-americanos eram europeus. O mercado europeu, entretanto, não aceita comprar ações das ferrovias americanas, mas aceita bônus dos tesouros estaduais, que por sua vez financiam as ferrovias, estreitando assim as relações entre o mercado financeiro local e o Estado norte-americano. O endividamento externo do Estado norte-americano e os investimentos diretos de capital externo crescem muito nos anos em torno da Guerra Civil.
O Investimento Externo Direto nos EUA salta de U$ 1,4 bilhão em 1870 para U$ 3,3 bilhões em 1890. A depressão de 1890 permite aos norte-americanos retomar o controle de grande parcela de sua economia, já que a maior parte dos investimentos, sobretudo ingleses, não se compunha de capital votante. Novamente, após a depressão ocorre uma retomada dos investimentos britânicos que dura até o início da primeira guerra mundial, quando “nos primeiros anos da guerra, os ativos britânicos nos Estados Unidos foram liquidados na Bolsa de Nova York com pesados descontos nos preços.” (Arrighi, 1996: 278).
213
Para Roy, a forma adotada pelo sistema financeiro norte-americano é
copiada do sistema europeu, não por este ser o mais eficiente, mas por
“isomorfismo”. Segundo o autor, não há como criar uma nova instituição se as
suas dependem do desenvolvimento da de outros países. Assim, a adoção dos
bônus governamentais e a criação das corporações se dão de forma mimética ou
compulsória, de acordo com o exemplo254.
Ainda segundo Roy, costuma-se explicar o desenvolvimento dos sistemas
legais dos países de capitalismo avançado alegando que causas iguais levam ao
mesmo resultado255. Acontece que os “casos” não são independentes. Trata-se
do mesmo sistema capitalista em todos eles. Falta a Roy entender a dinâmica
que altera o padrão em si.
Tais instituições foram criadas em algum lugar como resultado de algum
tipo de luta pela apropriação do excedente. As bolsas foram criadas nas cidades-
Estado do norte da Itália, visando facilitar o comércio. As Sociedades Anônimas,
na França, devido à necessidade da burguesia francesa estabelecer um novo
marco institucional no qual fosse livre para desenvolver as relações de produção
capitalistas em sua plenitude. Não se tratam de “necessidades abstratas do
futuro”, como ironicamente ele trata, mas de entraves concretos do presente a
serem transpostos. Ao fixar o modelo “fora” da nação que o adotou, Roy comete
uma escapadela “metafísica” – estabelecendo uma explicação de forma exógena
a seu modelo - e deixa de explicar como efetivamente a fração progressista da
burguesia cria sua nova forma de reprodução.
254 Ou, em termos gramscianos, pela função didática exercida pelas potências
dominantes no âmbito internacional, como discutiremos em seguida. Partindo de Polanyi (1980), Roy nos lembra que a repetição e a existência de
determinadas práticas sociais as torna “idéias” e formas de pensar naturalizadas pelos agentes. Isto ocorre com dinheiro, mercados, corporações e a outras instituições. Para Roy, “tais práticas, quando elas parecem reificadas como idéias, adquirem poder ideológico por aparecer como desenvolvimentos supra-sociais inevitáveis” (Roy, 1997: 140). Para o autor, as estruturas sociais que constituem a economia são constituídas com base na matéria-prima disponível no passado, não nas necessidades abstratas do futuro.
O autor defende sua tese dizendo que “quando arranjos sociais são aceitos como reais tornam-se a forma padrão pela qual as pessoas fazem as coisas, apenas porque são aquilo, sejam ou não eficientes” [...] “O capital financeiro não é apenas um tipo diferente de entidade com relação ao capital comercial, mas um conjunto diferente de relações e instituições, ainda que às vezes seja conveniente falar sobre estes como coisas”[...] “O capitalismo corporado é um sistema institucional inteiro incorporando todo um novo conjunto de relações sociais firmemente entrincheiradas naquilo que reificamos como corporações em nossa linguagem por trata-las como atores independentes” (Roy, 1997: 141).
255 Nos EUA o “mercado de ações, os bancos de investimento, as casas corretoras, e as práticas de capitalização empresarial tiveram suas origens nas finanças governamentais e no investimento externo” (Roy, 1997: 143).
214
Segue disto que a forma da Sociedade Anônima corresponde à
necessidade de centralização e concentração de capitais com vistas a possibilitar
investimentos de grande escala para os quais capitais individuais se mostravam
insuficientes. O mesmo problema foi enfrentado pelas diferentes burguesias
organizadas nas distintas circunscrições nacionais, que experimentaram formas
legais diferentes com o mesmo objetivo. A construção destas instituições
correspondeu na França, como vimos, a uma resultante concreta da disputa
entre as frações burguesas pelo poder e pela constituição da legislação no
período bonapartista que, como vimos, foi copiada posteriormente pelas nações
do continente.
Na Alemanha, o caminho encontrado para a construção de combinações
maiores que suprimissem o mercado foi a construção de trustes, através da
união direta de empresas que se mantinham formalmente independentes. O
carro chefe destas inovações, a fração burguesa que comandou a constituição
destas reformas em alianças de composição variável com outros setores em
todos os diferentes países do mundo capitalista, foi a fração bancária.
Portanto, a importação de tais instituições pela burguesia norte-
americana não se dá por “mimetismo” ou “isomorfismo”, mas por estas
representarem novas combinações que se demonstraram mais eficazes na
promoção da acumulação capitalista numa nação mais avançada. Neste sentido,
o “exemplo seguido”, na verdade se constitui numa alteração da cultura
burguesa sobre o regime de propriedade, e portanto sobre o capital. Sua adoção
plena passa por um período de aculturação que o transforma numa instituição
norte-americana na forma – já que a legislação, ao ser reescrita e aplicada no
espaço nacional a torna algo específico à nação que a adota. Seu conteúdo,
entretanto, é burguês e, como tal, “visa formar o mundo à sua imagem e
semelhança” (Marx & Engels, 1986a:22).
3. As ferrovias e os bancos: a gênese da Sociedade Anônima
privada.
Segundo salientam Arrighi (1996), Roy (1997) e Chandler & Hikino
(1997), o principal setor no qual se processa o aparecimento de Sociedades
Anônimas é o de obras de interesse público, como a construção de canais,
pavimentação e iluminação pública e, principalmente, as ferrovias, devido à
215
necessidade de volumes consideráveis de capitais. Mas, isto só é verdade se
abstrairmos os bancos e as seguradoras adrede constituídos. Este esquecimento
se dá devido aos bancos e seguradoras não participarem diretamente do sistema
como “capital produtivo” - embora do ponto de vista marxista o capital
monetário seja uma das formas que constituem o movimento do capital social
total. De forma geral, tais empresas, incluindo os bancos, surgiram e se
desenvolveram como empresas públicas, de ação complementar à do Estado,
com base em concessões e estímulos públicos256.
Historicamente é no setor ferroviário que surgem e crescem as
corporações públicas que servirão como base para o desenvolvimento posterior
das Sociedades Anônimas norte-americanas. Mas nos EUA as ferrovias
formaram um conjunto mais amplo de capitais do que os estritamente
relacionados ao transporte. As concessões públicas para a construção de
estradas de ferro continham, na mesma concessão, cartas de autorização
bancárias (incluindo emissão de dinheiro), e muitas vezes a parte ferroviária do
negócio não chegou a ser executada. Isto torna patente o papel central do
sistema de crédito na constituição e capitalização destas instituições. A partir de
1851 ocorre um novo impulso à concentração de capitais quando as ferrovias
ganham domínio iminente sobre a terra e a extração de madeira e pedra ao
longo do traçado de suas linhas, reforçando a capitalização do negócio com a
renda da terra.
Além dos governos federal e dos Estados, as municipalidades também
são envolvidas no processo. O comércio local pressiona seus representantes na
busca de atrair linhas ferroviárias que são vistas como “parteiras do progresso”,
mas acabam agindo como acionistas minoritários e sem poder, conformando-se
com as regras ditadas pelo Estado257. Por outro lado, os governos locais, ao não
legislarem sobre as concessões, comportam-se como pequenos proprietários,
256 É mesmo interessante notar que “Até hoje a Grã-Bretanha é o único país cujo sistema
ferroviário foi totalmente construído por empresas particulares, assumindo os riscos na sua busca de lucros, sem o incentivo de bônus e garantias aos investidores e empresários” (Hobsbawm, 1977: 246). Contraditoriamente, com a prática dos capitais britânicos na Inglaterra, entretanto, quando é o capital inglês exportado para outros países que realiza a construção das ferrovias, este não abrirá mão dos subsídios e estímulos governamentais, como por exemplo no caso brasileiro descrito por Faoro (2000) e Caldeira (1995), ou na Índia, como assinalado por Arrighi (1996).
257 Neste processo, “quando o risco era alto, governos locais pagaram e geralmente perderam. Enquanto o crescimento econômico foi prometido a todos, os beneficiários diretos das primeiras ferrovias foram poucos em número” (Roy, 1997: 88).
216
buscando “desviar” a rota da ferrovia visando maximizar seus benefícios, não
constituindo, assim, impedimento ao movimento de privatizações que surge na
segunda metade do XIX.
O mecanismo de desapropriação para eminente domínio, ao valorizar as
terras258, funciona como importante alavanca de financiamento das ferrovias
que trocam a terra por insumos. Podemos notar assim, que o processo de
constituição das grandes Sociedades Anônimas norte-americanas está
intimamente associado à transferência de recursos públicos para mãos privadas,
constituindo-se numa autêntica acumulação primitiva dinamizada pela renda
da terra e pelo poder de emissão de notas bancárias. Além disto, a especulação e
a fraude são a tônica dominante deste período histórico.
4. A concentração de capitais:
as fusões e a cartelização norte-americana no início do
século XX.
Marx percebe a capacidade de “atração gravitacional” exercida pelos
grandes capitais com relação aos pequenos, mas ainda observa a forma da
sociedade anônima como um modo “sutil” de proceder a tais fusões com vistas à
cartelização259.
A história mostra que a forma “sutil” mostrou-se mais eficiente em
encobrir a anexação do mercado por uma única empresa. Nos EUA, a criação da
U.S. Steel por J.P. Morgan e associados em 1901 marca a ascensão das grandes
sociedades anônimas e se dá junto com a mudança do modo de vida rural para o
urbano. Como vimos, até 1890 as grandes corporações não eram usuais. Antes
disto era comum a organização de consórcios por cotas de ação para a 258 Cerca de um décimo do território norte-americano foi cedido às ferrovias que
puderam capitalizar-se desta forma. Assim, embora a forma seja privada, o caminho público inscreve-se na construção das primeiras grandes corporações americanas. É interessante notar também a influência da extração dos dirigentes das ferrovias na forma de organização destas: engenheiros e militares, por acaso militares engenheiros, de onde a influência de West Point e o uso de conceitos militares na administração voltada à “ocupação do território”.
259 “A centralização completa a obra da acumulação, já que põe os capitalistas industriais em condições de estender a escala de suas operações. Seja este último resultado conseqüência da acumulação ou da centralização; ou que se leve esta a cabo pela via violenta da anexação – isto é, quando certos capitais se convertem em centro de gravitação tão preponderantemente para outros que rompem a coesão individual dos mesmos e logo atraem e incorporam os fragmentos dispersos –, ou que se dê a fusão de uma multidão de capitais já formados ou em vias de formação, mediante o sutil procedimento de constituir sociedades por ações, o efeito econômico será o mesmo” (Marx, 1984: I/2:780).
217
constituição de empresas que prestavam serviços como agências quase-
governamentais. Neste período a indústria era considerada “atividade de risco”,
e realizada por empreendedores com base em suas fortunas pessoais. Em 1890,
Wall Street financiava fundamentalmente estradas de ferro, telégrafos,
municipalidades e governos, além dos próprios bancos e seguradoras, dos quais,
como já afirmamos, os diferentes autores “se esquecem” já que estes compõem o
que denomina-se a “instituição” Wall Street.
Como vimos, as grandes corporations surgem, nos EUA, no final do
século XVIII e início do XIX, atuando em setores de base ligados às atividades
governamentais e são financiadas pela estrutura atualmente conhecida como
Wall Street (bancos e corretoras) que à época funcionava principalmente
negociando ações e títulos públicos. No meio do século XIX, tais
empreendimentos tornam-se privados mas permanecem separados do capital
manufatureiro. As estradas de ferro tornam-se gigantes. Seu colapso coincide
com a fusão entre capital bancário e manufatureiro260, segundo Roy “por uma
aceitação ideológica de que a grande corporação manufatureira socialmente
capitalizada era inevitável” (Roy, 1997: 18).
A queda da rentabilidade das estradas de ferro, findo o período de
expansão desenfreada e iniciada a fase de competição oligopolista, leva os
investidores a buscar novos setores que mantenham suas taxas de rentabilidade.
Segundo Roy, o processo de fusão das empresas torna-se “inevitável” quando a
formação de trustes261 é declarada ilegal, pela Lei Antitruste de Sherman em
1890. Tal inevitabilidade, contudo, é diretamente direcionada pela legislação
260 Segundo Roy, na virada do século estas duas instituições – Wall Street e a indústria -
se aproximam e se modificam. Ou seja, os bancos passam a agir no sentido de capitalizar grandes companhias industriais. A negociação de ações de indústrias na bolsa se inicia em 1890 atingindo um volume de U$ 1 bilhão em 1898 e saltando para U$ 7 bilhões em 1903 (ano de fundação da Ford Motors). Em 1904, o volume de ações na bolsa é de U$ 6,8 bilhões contra um total registrado para manufaturas de U$ 11,6 bilhões. O volume total varia em torno de U$ 7 bilhões até o início da primeira Guerra Mundial. Ainda segundo este autor, “a nova forma de propriedade, as novas instituições do capitalismo societário, e a nova estrutura de classe não apenas proveu a forma – a sociedade anônima – que a empresa manufatureira pode adotar, mas também fez disto algo racional a ser feito” (Roy, 1997: 110).
261 Ver nota 91 do capítulo 2. Segundo Hilferding, “o cartel é uma comunidade de interesses, se possível de todas as empresas, com o objetivo de aumentar os preços e, com isso, o lucro, mediante a conclusão mais completa possível da concorrência. O cartel é, portanto, uma comunidade de interesses monopolista.[...] O truste é uma fusão com o mesmo objetivo a ser alcançado pelo mesmo meio. Portanto, o truste é uma fusão monopolista” (Hilferding, 1985: 193). Como Arrighi aponta corretamente esta distinção não basta, pois a integração alemã e americana se dão de formas que correspondem a conteúdos diferentes.
218
adotada que prevê a forma holding como alternativa ao processo de
trustificação.
Assim, embora Roy acerte ao chamar a atenção para a questão da
dinâmica de poder, ele deixa de perceber o real fundo econômico da fusão: a
eficiência econômica está no aumento da rentabilidade, do lucro, do capital e
não na capacidade de produzir a baixos preços ou com melhor qualidade. A
partir do poder, e neste caso se trata de poder econômico, se pode estabelecer a
renda diferencial, o lucro monopolista, que leva a empresa a apoderar-se da
mais-valia extraída por outras empresas. O que interessa ao capital como vimos
na primeira parte desta tese é a apropriação dos lucros de monopólio, o que é
obtido com a fusão.
É importante se ter claro que ocorrem modificações legais que permitem
o desenvolvimento da confusão entre capital bancário e capital industrial
engendrando o que foi chamado por Hilferding e Lênin de capital financeiro.
Sua motivação, longe de ser um poder político “espectral” como sugere Roy, é a
mais velha parteira da ação econômica: a busca da valorização automática do
capital, processo que já foi explicado por Marx ao descrever a dinâmica do
capital fictício (discussão que retomaremos no próximo capítulo). O
desenvolvimento do poder político é antes, reflexo das novas necessidades da
concorrência, ainda que posta e reposta por esta, passe a ser o modo “natural”
de ação da grande empresa de capital social.
Por exemplo, Roy minimiza a importância da adoção da forma S.A. por
pequenas indústrias que “não lucram com isto” (isto é, não representam a
constituição de monopólios propiciada pelo grande capital), atribuindo a adoção
da forma S.A. por estas ao efeito “mimético”. Tais empresas manter-se-iam à
margem do processo central de criação de uma gerência profissionalizada,
remanescendo sob o controle de seus acionistas principais. Ora, a existência de
empresas onde o fundador mantém-se no comando, com uma maior ou menor
profissionalização de seu corpo diretivo também é verdade para Bill Gates! O
argumento deixa de lado a própria sociologia política que este autor pretende
abraçar. Ao adotar a forma de sociedades anônimas, as pequenas empresas
refletem mais que uma tendência organizacional, uma nova forma de arranjo
institucional que permite a seus proprietários escapar à completa
responsabilidade sobre seus erros na condução dos negócios, já que a
219
responsabilidade nestes casos esta limitada na forma da lei ao capital total
investido262 - e é esta a batalha travada pelo capital em seu processo de
autonomização, como veremos a seguir.
Segundo a crítica de Roy, para a teoria da eficiência (Chandler) a força
causal da dinâmica de incorporação é a adaptação e, assim, são as novas
configurações do mercado que levam à escolha de uma administração
profissional - o que corresponde a uma coordenação administrativa em
substituição à “coordenação pelo mercado” (ou, na acepção de Galbraith (1982)
a formação da tecnoestrutura e da supressão do mercado pelo planejamento
centralizado da grande unidade econômica). Para Chandler, a grande empresa
seria a resposta institucional ao crescimento do mercado norte-americano263.
Assim, segundo a tese central de Roy, o processo pelo qual as empresas tornam-
se sociedades anônimas é mais mimético que adaptativo.
No nosso entendimento, contudo, o processo é mais complexo do que
mimesis ou adaptação. As forças sociais em jogo estão reconfigurando não
apenas a forma de organização da indústria. A própria classe capitalista está
sofrendo mudanças neste processo. A configuração dos setores em monopólios
depende efetivamente da possibilidade de criação de barreiras reais à entrada de
concorrentes, ou à eliminação dos indivíduos relutantes, o que torna o processo
histórico particularmente violento e confuso. Achar que a mera força da
adaptação para sobrevivência é suficiente para levar um empresário a abrir mão
do comando de uma empresa familiar é impor uma racionalidade econômica
quase “pura” a um agente cujas reações são emocionais e culturais, e descartar
como irrelevante a eliminação de inúmeras empresas pela falência como de fato
correu no processo histórico.
Por outro lado, esperar que a transformação se dê por uma ação mimética
é algo que entra em contradição com o senso comum, na medida em que a
tendência à inércia e ao conservantismo é dominante no mundo empresarial.
262 A forma S.A. evita também a dispersão do capital com a morte do fundador da
empresa e facilita a transição para a profissionalização quando os herdeiros “não dão para a coisa”.
263 Mais adiante no trabalho, ao realizar uma modelagem estatística com os dados das grandes empresas e compará-las com os setores concorrenciais, Roy demonstra claramente que os setores de capital concentrado não são mais eficientes que os setores concorrenciais. Além disto, a teoria da eficiência desconsidera que as mudanças tecnológicas se dão de forma diferenciada em momentos diferentes do tempo de acordo com os setores econômicos, bem como o efeito demonstração entre setores.
220
Não é à toa que Schumpeter põe acento no “empresário inovador” e não no
administrador. Neste caso, para os setores onde a fusão era possível, a inovação
era a própria fusão, realizada com vistas ao monopólio, e foi conduzida
visando não a eficiência como pretende Chandler, mas os ganhos possibilitados
pelas rendas de monopólio, o que faz com que a adaptação seja de fato
necessária. Neste caso a teoria da eficiência está certa, mas pelo motivo errado.
Roy deixa escapar por entre os dedos os condicionantes do processo. Vê a
possibilidade aberta pela lei como uma “oportunidade” aberta aos capitalistas,
quando ela é mais do que isto. Ela é o desenho institucional resultante da
vontade de mudança determinada pelos pólos dinâmicos das forças capitalistas
na busca de rendas de monopólio e não de eficiência econômica. E aqui, a força
do capital se exerce, evidentemente a partir de seus suportes. Foram indivíduos
concretos que exerceram seu poder de pressão sobre os legisladores: banqueiros
e grandes industriais que percebem as oportunidades de ganho com a
reconfiguração de setores do mercado para a forma de monopólios.
Não é à toa que J.P. Morgan dizia serem as relações pessoais importantes
na formação dos grandes empreendimentos. São relações e alianças políticas
que, possibilitam a mudança na cultura e na lei, e remodelam os diferentes
setores industriais, determinando os “vencedores” do processo. Se o capital
hegemon aparece como um processo automático, o faz no momento em que as
condições para a sua reprodução estão dadas. Aqui, no momento catártico, de
criação das novas configurações, vê-se claramente que são indivíduos concretos
que agem, empurrando o sistema para um novo patamar, ainda que sua ação
seja obscurecida pela impressão de “determinação sistêmica”.
No caso da legislação norte-americana é na história da American Sugar
Refining Co. que se encontra a legitimação legal para uma corporação
monopolista e a diminuição do poder governamental para evitar a concentração.
Na primeira década do século XX esta era a sexta maior empresa norte-
americana. Ela era caricaturizada na imprensa como um gigante espremendo os
consumidores. A ação destas empresas contra enquadrar-se no mercado
concorrencial tem sua raiz óbvia na contra-tendência da queda da taxa de lucro
provocada pela oligopolização ou monopolização de um segmento de mercado.
O problema, como vimos, é que não se trata de manutenção da taxa de lucro,
mas do estabelecimento de uma nova lucratividade que incorpora o superlucro
221
propiciado pelo monopólio ao garantir as trocas desiguais. Dada a negociação
das ações destas empresas na bolsa, entretanto, isto se torna relevante do ponto
de vista do acionista, como discutiremos em detalhe mais adiante, pois a taxa
capitalizada que determina o “valor” do capital fictício já incorporou no preço de
venda este “novo padrão de rentabilidade”.
O truste, como vimos, não é uma organização que controla as firmas
individuais, mas um mecanismo através do qual cada empresa troca parte de
sua soberania pela garantia de grandes lucros, o que se dá através do controle da
produção, fixação de preços e divisão do mercado.
A tentativa de controle privado do mercado levou a uma disputa política
entre os advogados da trustificação e os defensores da livre-concorrência, pois
como bem definiu o Sr. Havemeyer, proeminente membro do truste do açúcar
norte-americano de fins do XIX: “os trustes não são um negócio para a saúde
dos concorrentes” (apud Hilferding, 1985: 215, rodapé 48). Como resultado,
esta forma de controle do mercado foi considerada uma atribuição possível
apenas ao Estado, e mesmo assim em caráter excepcional, e com isto, proibiu-se
a forma “truste” nos EUA, enquanto que, de forma contrastante, na Alemanha
esta foi a regra de concentração de capitais ainda por muitos anos.
Assim é o resultado da luta política entre os diferentes setores da
sociedade burguesa que leva à adoção das diversas formas em que se dá a
estabilização dos monopólios nos distintos países em que a tendência de
centralização e concentração de capitais atuava. Seu conteúdo, entretanto, não
se alterou de forma significativa. A legislação das sociedades anônimas não se
limita a dar forma jurídica a empresas de grande porte que atuam como
monopolistas, ela também serve a empresas menores e se adapta tanto a
gerências profissionais quanto a empresas familiares. Isto permite dizer que
“não existe uma coisa chamada sociedade anônima, e sim várias espécies de
sociedades anônimas, todas derivadas de uma estrutura legal comum, flexível e
bem abrangente. Algumas estão sujeitas ao mercado; outras refletem vários
graus de adaptação às exigências do planejamento e às necessidades da
tecnoestrutura” (Galbraith, 1982: 66). Logo, embora resultante do processo de
oligopolização da economia, a forma Sociedade Anônima, mesmo em sua forma
norte-americana, não é suficiente para explicar a ação do capital no sentido de
controlar o mercado.
222
Ao contrário da pacífica mimesis proposta por Roy, verifica-se também
neste período histórico que ocorre uma clara coerção social no sentido dos
capitalistas individuais aderirem aos trustes monopolistas pois, segundo
Hilferding, “foram distribuídas listas em que destacavam, em negrito, os
destiladores que não aderiram” (Hilferding, 1985: 215) 264. Vemos assim, que a
disputa capitalista se espalha também para o âmbito cultural e político, através
da perseguição social dos industriais que se colocavam como adversários ao
processo de centralização.
Outro exemplo é encontrado na disputa entre produtores de açúcar de
beterraba e os de açúcar de cana-de-açúcar nos EUA, que se desenvolve com
base em tecnologias quase idênticas, com a vitória do lado mais coeso: “no final
a dinâmica foi muito mais social que econômica: alianças, coalizões, conflito e
dominação, descrevem os eventos melhor que tecnologia, produtividade,
eficiência ou incentivos de mercado” (Roy, 1997: 219). Fica clara, para Roy, a
dinâmica de poder que anima as relações empresariais265, mas a substituição da
dinâmica econômica pela dinâmica política esconde justamente o que deveria
revelar: a competição econômica não é mais suficiente para garantir o
processo de acumulação da grande empresa concentrada e o capital deve
buscar novas formas de garantir sua lucratividade.
A busca pelo poder, e a extrapolação para ações tipicamente políticas
envolvem, portanto, o que denominamos nos capítulos anteriores de
“hegemonia de mercado”, que, como vimos, extrapola inclusive o campo do
político e emerge na própria construção da cultura. Por outro lado, pensar na
disputa política, sem a base econômica seria construir um castelo de areia, ainda 264 Isto fica ainda mais claro neste extrato do Deutsche Agrarkorrespondenz (nº 8 de
1899) citado por Hilferding: “O destilador alemão que se nega a ingressar na sociedade não merece o direito de consideração profissional. Tais pessoas deveriam ser estigmatizadas para sempre. Semelhante pessoa deveria ser punida com uma merecida vaia” (apud Hilferding, 1985: 215, rodapé 49).
265 “Os fatores imediatos que definiram a transformação para grandes, corporações manufatureiras socialmente capitalizadas, foram: (1) a habilidade de homens de negócio que produziam um mesmo produto ao agir coletivamente; (2) a eliminação de outras formas de governança coletiva que não as corporações; (3) as redes de trabalho que deram a alguns industriais o acesso ao capital societário que eles puderam usar para assegurar o domínio dentro de suas indústrias; (4) a ideologia que ditava que a competição era basicamente destrutiva e que o monopólio era necessário para garantir os lucros; (5) o colapso da indústria ferroviária norte-americana, precipitado pela depressão de 1893, liberando volumes maciços de capital para corporações industriais; e (6) o processo de institucionalização organizacional que fez a criação de grandes corporações uma atividade ‘racional’ e ‘contemporânea’” (Roy, 1997: 223). Em nosso entendimento há aqui uma mistura entre fatores contingenciais e culturais que podem descrever mais que explicar o processo, não sendo generalizáveis para outros exemplos históricos.
223
que a “busca da eficiência” e o “capital intangível” como propostos por
Chandler, na verdade encubram a lógica do lucro monopolista, e também não
dêem conta da disputa política.
5. A gênese do “capital financeiro”.
Se a criação das grandes empresas dividiu o mundo dos negócios entre
big business e small busines, tal divisão também engendrou a separação da
classe burguesa num novo desenho de frações de classes, e criou uma classe com
poderes altamente concentrados, denominada por Hilferding e Lênin, como a
“fração financeira”, a união pessoal entre o capital bancário e o capital industrial
dos setores monopolizados266.
Os processos de união das empresas nos EUA e Alemanha se dão através
da ação direta de bancos267, enquanto os cartéis ingleses são construídos pelas
próprias empresas dos diferentes setores devido à legislação inglesa da época
controlar a ação dos bancos (cf. Hilferding, 1985: 188). Isto chama a atenção de
Hilferding para a ação do capital bancário como articulador destas fusões.
Entretanto, a exceção inglesa e a posterior evolução do processo, no qual as
grandes corporações buscam a construção de uma desintermediação bancária
nos leva a questionar a validade geral da interpretação do capital financeiro (a
união entre capital bancário e industrial, também adotada por Lênin em O
imperialismo) como “nova forma” do capital.
Antes, em nosso entendimento, este processo de criação de uma nova
oligarquia financeira deve ser visto de um lado como uma aliança,
historicamente datada e geograficamente circunscrita do capital industrial com
o capital bancário, resultante da própria forma como se deu o processo de fusão
266 “Simultaneamente, desenvolve-se, por assim dizer, a união pessoal dos bancos com
as maiores empresas industriais e comerciais, a fusão de uns com as outras mediante a posse das ações mediante a participação dos diretores dos bancos nos conselhos de supervisão (ou de administração) das empresas industriais e comerciais, e vice versa” (Lênin, 1982: 606).
267 Na Alemanha, seis grandes bancos comandam o processo, sendo que “Esses ‘Grossbanken’ haviam emergido da estrutura pessoal e interfamiliar dos bancos alemães, ainda vigente na década de 1850, sobretudo através da promoção e financiamento de empresas ferroviárias e de empresas da indústria pesada envolvidas na construção de ferrovias (Tilly, 1967, p. 174-5, 179-80). Sua dominação sobre as finanças alemãs aumentou ainda mais durante a depressão da década de 1870. Na década seguinte, quando uma grande parcela de seus recursos empresariais e pecuniários foi liberada pela nacionalização das ferrovias, elas agiram depressa para tomar, integrar e reorganizar a indústria alemã, em conluio com um pequeno número de firmas industriais poderosas, ‘Grandes empresas e cartéis, trabalhando em estrita associação com os grandes bancos, eis aí os pilares gêmeos da economia alemã no último quartel do século XIX’ (Henderson, 1975, p. 178)” (Arrighi, 1996: 274).
224
de capitais em alguns centros capitalistas, e de outro, pela combinação de
formas de extração de rendas monopolistas, cuja confusão numa taxa de juros
genérica (combinando a extração de lucros com rendas monopolistas) a faz
aparecer como um resultado financeiro da ação do capital em sua forma
monetária. Esta indiferenciação das fontes das rendas monopolistas possibilita,
desta forma sua confusão num resultado financeiro, ou seja, como algo
produzido pelo capital-dinheiro de forma autônoma, e não pela extração de
mais-valia ou de transferência desta através de trocas desiguais ou punções
diretas para o pagamento de rendas monopolistas.
A disputa calcada no poder de alavancagem de capitais para a
apropriação de lucros gerados em outros setores, fica clara aqui no processo
histórico de formação dos cartéis. Inicialmente a vantagem do crédito está nas
mãos do comerciante que o usa para impor descontos à indústria268:
“A conduta dos comerciantes serve posteriormente aos industriais como
um dos motivos de justificação para a formação dos cartéis. Isso se altera
fundamentalmente com a mudança na relação dos bancos com a
indústria e com o surgimento das associações capitalistas na indústria”
(Hilferding, 1985: 206).
A disputa pela apropriação da mais-valia possibilitada pelas posições
relativas de poder leva o capital industrial a aliar-se ao capital bancário. Disto
resulta que
“a cartelização já significa uma união íntima da indústria e do capital
bancário; por via de regra, o cartel disporá do maior poder. Ele poderá,
então, ditar suas leis ao comércio. Mas, o conteúdo dessas leis vai no
sentido de tirar a independência do comércio, privá-lo do tabelamento de
preços” (Hilferding, 1985: 207).
Assim age o monopólio ao suprimir as relações de mercado. Fica claro
nesta discussão que a relação econômica dos agentes não se dá mais a partir da
estrutura concorrencial de mercado, o domínio por uma das partes do poder de
determinação dos preços implica numa troca desigual imposta ao pólo menos
favorecido. Trata-se muitas vezes de uma coerção realizada a partir de uma
posição de força relativa, que reflete a ameaça de eliminação do pequeno capital.
As negociações entre o grande e o pequeno capital envolvem tanto a chantagem 268 Como segue fazendo através do capital concentrado das grandes redes varejistas.
225
quanto o convencimento dos pequenos, por parte dos grandes. O argumento
central nestas negociações é o de que contratos de longo prazo com uma taxa de
lucros menor para os pequenos capitais serão compensados pela preferência de
compra ou a garantia de compra de sua produção (ou fornecimento de
produtos) nos momentos de crise.
O resultado de tais negociações dota, neste caso, o pequeno capital
comercial de uma ação heterônoma. Trata-se de uma disputa de poder ente as
diferentes frações capitalistas que, neste exemplo, inverte uma relação
estabelecida anteriormente onde havia vantagem para o pólo comercial do
capital social. Como vimos, a concentração de capitais no comércio pode
implicar numa relação contrária à aqui observada, onde o capital comercial se
apodera do lucro industrial, enquanto, outros setores do comércio menos
concentrados passam a “empregados” de certos ramos da indústria. Devemos
sempre ter em mente em nossa análise que as relações de subordinação entre as
diferentes formas do capital social (industrial, comercial e bancário) não são
unívocas nem pré-determinadas, antes, correspondem a um equilíbrio instável
de forças em constante mutação.
Historicamente, os bancos funcionavam inicialmente como um conduto
entre a empresa societária e o investidor, funcionando como “garantidores” da
solvência de ambos os lados. Seu papel de provedor de crédito, evolui para o de
garantidor das rendas do capital monetário através da intervenção direta nas
empresas para as quais concede crédito. A administração do capital monetário é
complementada pela ação direta no controle, no caso do imperialismo clássico,
do capital industrial engendrando desta forma o capitalismo financeiro na
acepção de Hilferding e Lênin. Mas este não é o fim da história. Antes as tensões
provocadas pelo ciclo econômico e a amplificação das crises pela intermediação
financeira levaram a novas alterações na forma legal das Sociedades Anônimas
com repercussões importantes.
Se voltarmos à história norte-americana, veremos que nesta se registram
setecentas falências de ferrovias no período compreendido entre 1875 e 1897,
representando metade da malha viária instalada no país. Tais empresas são
reorganizadas e justificam com isto o lançamento de novas ações que
incrementam o poder financeiro de Wall Street. Segundo Roy (1997), até os
226
anos 1890 os grandes lucros das ferrovias se deviam mais a operações de fusão
que à operação das linhas.
Como decorrência da insatisfação gerada por este processo, em 1884, o
caso Wabash (uma ferrovia) abriu caminho na jurisprudência norte-americana
para que os administradores recebessem parte do poder que originalmente era
dado aos sócios e parte do poder dos credores. Adotando uma “teoria natural da
entidade” e endossando o pedido dos credores de nomear administradores e de
assumir o controle da empresa insolvente, a magistratura abriu caminho para a
nova especialização dos bancos em nomear administradores profissionais para
empresas em processo concordatário. Consolidou-se assim, o processo já
descrito por Lênin e Hilferding de fusão pessoal da burguesia bancária com a
industrial, pois, se a organização específica do capital societário permite aos
atores dotados de informações privilegiadas apoderar-se de rendas
monopolísticas, os bancos, devido a suas relações na concessão de crédito e de
intermediação de pagamentos, se encontram em posição chave para
desempenhar este papel a partir do conhecimento da contabilidade de seus
clientes.
O conflito de interesses aparece na indústria269 refletindo suas ligações
com as ferrovias, mas esta análise fica incompleta se o mesmo raciocínio não for
aplicado para os bancos: as empresas com melhores ligações com os bancos
acabam podendo operar estratégias de maior risco em momentos de expansão
do mercado ou se encontram mais protegidas em momentos de crise, e usam
esta relação para controlar o mercado. Os próprios bancos agem neste sentido e
a criação de determinadas Sociedades Anônimas monopolistas são fruto direto
do interesse de determinado banco num setor industrial, como vimos em
diversos exemplos.
A relação entre empresas e bancos funciona também como correia de
transmissão da “cultura financeira” ao setor produtivo. Como decorrência do
novo arranjo institucional, as empresas aprendem que também podem se
financiar com base em ações preferenciais e debêntures através do exemplo do
Estado e dos bancos. Assim, embora a atividade central destas empresas seja a
269 “companhias com relacionamentos especiais com as ferrovias usaram esta vantagem
para dominar seus competidores e aceleraram o processo de consolidação industrial, que foi muito mais um exercício de poder e um conjunto de interesses conflitantes” (Roy, 1997: 113)
227
produção, estas internalizam as atividades relacionadas aos demais momentos
do capital. Assim atuam também como capital comercial e capital bancário
dentro de suas próprias estruturas, dominando todo o processo de circulação
capitalista e maximizando a extração de lucros de cada um de seus
componentes. Desta forma, a exemplo dos lucros monopolistas, as operações
das empresas no mercado são direcionadas à obtenção de lucros comerciais
através de trocas desiguais “produzidas” nas relações de troca pela criação de
“mercados internos” e “contratos de exclusividade”. O mesmo vale com relação
à busca por vantagens financeiras, através da obtenção de diferenciais de juros e
de operações de câmbio, que também se tornam uma preocupação estratégica
para a direção destas empresas.
Este processo de aproximação entre o capital industrial e o capital
bancário corresponde exatamente ao analisado por Hilferding, que também
deixa claro que os grandes negócios e absorções de companhias pelos trustes
passam pela dimensão política e por processos que denominamos aqui de
“hegemonização de mercado”, como a absorção da Tenesse Steel pelo
J.P.Morgan, ao arrepio da vontade governamental e da lei norte-americana (cf.
Hilferding, 1985: 145).
A particular aliança de capitais denominada de capital financeiro surge,
desta forma, da confluência de interesses que leva à união do capital bancário
com o capital industrial visando a reorganização da estrutura de propriedade
deste último objetivando a obtenção de lucros de monopólio. Novas leis e a
disponibilidade de capitais são pressupostos para estas fusões. Esta nova
combinação de capitais se dá com base na mudança da forma de propriedade
para uma forma líquida e facilmente transferível representada pelas ações.
Devemos ter claro, todavia, que a “fusão de interesses” dos capitais
industriais aos capitais bancários como proposta por Lênin e Hilferding, se por
um lado deriva da busca de rendas monopolistas, por outro confunde a
atividade própria do sistema bancário de prover liquidez ao sistema - operando
como criador de crédito - com sua ação como “empreendedor” de novas
combinações de capital monopolista - que geram rendas de monopólio no setor
industrial. Além disto, os rendimentos anteriores também se confundem neste
processo com a própria renda diferencial obtida pelo setor bancário (o spread
dos juros) ao relacionar-se com pequenos capitalistas que se vêem na
228
contingência de tomar empréstimos dos bancos a taxas superiores à média do
mercado devido à sua própria fragilidade relativa.
O desenvolvimento histórico do “Capital Financeiro” deve ser entendido,
neste contexto, como uma decorrência lógica dos imperativos da competição
capitalista propiciada pela concentração de capitais. O intento dos capitais
concentrados na aliança financeira não são os ganhos de produtividade, mas
sim o estabelecimento de posições a partir das quais, com base em rendas
monopolistas, o capital concentrado possa garantir para si, em detrimento do
restante da sociedade, e do restante da classe burguesa, um abrigo à tendência
de queda da taxa de lucros. A organização da propriedade na forma de
sociedades anônimas que possibilita tal concentração de capitais tem origem em
organizações públicas, o que gera outros problemas para a observação de nosso
objeto.
6. Forma pública estatal x propriedade privada.
Ao contrário do que se poderia pensar a partir de seu domínio sobre as
relações privadas da sociedade, as primeiras sociedades anônimas foram criadas
nos países de capitalismo avançado para executar serviços que eram
apresentados como de interesse público270. Um exemplo dado por Roy, no caso
norte-americano, ilustra esta origem, apontando para uma clara ligação ente
negócio e atividade pública já na raiz da sociedade norte-americana: em 1785 foi
criada a Potomac Co., com o objetivo de tornar navegável o Rio Potomac, a
propriedade da companhia era dos Estados de Virgínia e Maryland que
aportaram cada um 50% do capital. O presidente da empresa era George
Washington e um de seus diretores Thomaz Jefferson. Washington era
proprietário de boa parte das terras do Estado da Virgínia. O interesse público
coincidia convenientemente com os interesses privados dos “pais fundadores”
da república norte-americana.
270 Como vimos, suas precursoras são as Companhias de Navegação que juntavam a suas
atividades comerciais com ações de representação do Estado e outras funções estatais, inclusive o fazer a guerra.
229
As corporações norte-americanas surgiram, portanto, como empresas
estatais públicas e se transformaram em empreendimentos privados num
momento histórico posterior271.
Se compararmos a análise de Roy, centrada nos EUA, à descrição de
Hilferding e Lênin, muito mais apoiadas no exemplo alemão e subsidiariamente
em outros casos europeus e em algumas estatísticas também dos EUA, vemos
que há semelhanças nos processos, mas algumas discrepâncias (como por
exemplo o movimento inverso de privatização x estatização das estradas de
ferro) que desafiam a explicação do desenvolvimento capitalista a partir da idéia
de “função trajetória”. Assim, é a partir da análise destes últimos que
estabeleceremos uma explicação para o desenvolvimento do sistema calcado no
capital financeiro e que se esconde por trás da dicotomia entre público e
privado.
A figura das corporações surge como extensão do poder do Estado ao
longo dos séculos de consolidação do poder dos Estados-nação europeus. Após
as revoluções liberais na Europa também ocorre uma transferência de parte do
poder soberano dos Estados para algumas corporações que passam a poder
escrever suas próprias leis nos territórios administrados. Confunde-se assim, o
desenvolvimento do poder público com o monopólio privado de exploração das
colônias e de determinadas esferas dos negócios estrangeiros das nações. O
capitalismo de Estado, tão bem analisado por Faoro (2000) no caso português,
lança luzes também sobre o desenvolvimento deste processo em outras nações e
do sistema capitalista como um todo, como explorado por Arrighi (1996).
Inicialmente as corporações são autorizadas de forma especial só se
generalizando com o desenvolvimento histórico dos diversos Estados-nação.
Normalmente a licença de funcionamento estava ligada a alguma “carta de
271 Roy, busca explicar este desenvolvimento com base na idéia de “função trajetória”: “O
modelo causal implícito que sublinha a minha análise manifesta uma tensão entre a função trajetória (path dependence) e contingência” (Roy, 1997: 42). Este conceito, entretanto, tem um poder explicativo limitado na medida em que não capta justamente o processo político e econômico de construção da própria trajetória; como se construíram as condições (caminhos) que resultaram no desenvolvimento histórico das corporações (e, neste sentido, a análise de Roy está extremamente centrada dos EUA, para poder ser universalizável para o desenvolvimento capitalista). Apenas a ação do Estado para regular o mercado é estudada por Roy como necessitando de explicação. O movimento contrário, do mercado, como ente conjunto ou como atores individuais, influindo nas decisões estatais não está dentro da preocupação do autor, que chega a refutar abertamente sua importância. Com isto, Roy perde grande parte da capacidade explicativa das dinâmicas de poder.
230
monopólio” que permitia à corporação exercer o poder de cancelar o mercado
por delegação do Estado, ou seja, o monopólio é garantido pela outorga direta
do poder por parte do Estado. As idéias de público e privado ainda se
confundiam na gestão de tais empreendimentos, sujeitos à intervenção do
Estado em nome do interesse público ou nacional (mesmo que aparecendo
como interesse do trono).
A natureza republicana e federada do Estado norte-americano, ao mesmo
tempo em que o livra das amarras representadas pela tradição e pela herança
feudal européia, faz com que o processo de desenvolvimento histórico se
apresente de forma por vezes confusa, dado que a legislação que regula a forma
da propriedade é objeto de legislação estadual e que, portanto, varie entre os
diferentes estados norte-americanos. O processo descrito por Roy apresenta
uma convergência histórica no sentido de se estabelecer uma separação entre
empresas públicas e privadas que levou, enfim, à privatização generalizada das
sociedades anônimas constituídas pelo poder público. As privatizações foram
vistas (ou defendidas) como inevitáveis. Todavia, tais empresas haviam sido
constituídas em grande parte com capital público.
Como contraponto ao desenvolvimento histórico norte-americano,
entretanto, devemos observar que enquanto nos EUA as críticas ao Estado
levam a diminuir o controle deste sobre as sociedades anônimas (em especial as
ferrovias), na França e Alemanha a opção, comandada pelo mesmo tipo de
aristocracia financeira, foi exatamente a inversa e o que ocorreu foi a tomada do
controle sobre tais empreendimentos pelo Estado. É interessante notar também
que a retórica da “falta de alternativa” é usada tanto nos EUA quanto na França
para justificar movimentos opostos. No primeiro para a privatização dos
negócios, no segundo para sua estatização. Nunca é demais lembrar que Otto
Von Bismark foi originalmente um barão das estradas de ferro prussianas antes
de dedicar-se à política – e estatizar as ferrovias alemãs272 na década de 1880.
A explicação do processo de privatização nos EUA deve ser buscada
assim, no próprio acúmulo de poder que levou a fração de classe financeira
norte-americana a ver na eliminação da parceira com os Estados uma
272 Há uma clara linha de comparação do uso feito pelos advogados das privatizações das
corporações americanas nas depressões de 1837-57 com o processo de mundialização do capital de fins do século XX e as recessões provocadas por este mesmo processo a partir da primeira crise do petróleo.
231
oportunidade de ganho273. A acumulação de poder, neste caso nas mãos dos
corpos diretivos das Sociedades Anônimas, levou tais empresas criadas com
base num estatuto público a buscar livrar-se das amarras impostas pelo Estado.
Estamos aqui diante de um processo no qual claramente a ação de um
capital isolado não explica a alteração qualitativa que se deu no processo, o salto
qualitativo é resultado da ampliação da base social de interesse relacionada à
acumulação de capitais nos setores ferroviário e bancário. A alteração na base
econômica, o acúmulo de forças em seu sentido gramsciano, interligando os
interesses de pequenos comerciantes e das municipalidades em apoio à direção
das ferrovias, encontra sua forma ideológica no discurso do laissez-faire que
justifica, no campo da concepção de mundo, as reformas políticas e legais que se
fizeram necessárias ao processo de acúmulo de capitais274.
Como resultado do processo de privatização, as empresas estatais norte-
americanas são vendidas com prejuízo na operação, transferindo para
empreendedores privados, em especial os grandes bancos, a infra-estrutura
constituída com fundos públicos. Os Estados, como corolário, são proibidos de
realizar novos investimentos produtivos através de Sociedades Anônimas275.
O poder destas empresas, além disto, está relacionado com o controle
sobre parcelas do próprio mercado e na forma como se define a fronteira entre
público e privado276. E é este conjunto de fatores que propicia e incita à disputa
273 Assim como se verificou o contrário no caso alemão. Os grandes bancos
capitalizaram-se visando os novos investimentos industriais de grande porte a partir das indenizações pagas pelo governo por suas ações no processo de estatização das empresas, por eles engendrado.
274 “Dado que se opera essencialmente sobre as forças econômicas, que se reorganiza e se desenvolve o aparelho de produção econômica, que se inova a estrutura, não se deve concluir que os fatos da superestrutura devam ser abandonados a si mesmos, a seu desenvolvimento espontâneo, a uma germinação casual e esporádica. O Estado, também neste campo é um instrumento de ‘racionalização’, de aceleração e de taylorização; atua segundo um plano, pressiona, incita, solicita e ‘pune’, já que criadas as condições nas quais um determinado modo de vida é ‘possível’, a ‘ação ou omissão criminosa’ devem receber uma sanção punitiva, de alcance moral, e não apenas um juízo de periculosidade genérica. O direito é o aspecto repressivo e negativo de toda a atividade positiva de educação cívica desenvolvida pelo Estado” Gramsci (2000, III: 28).
275 “O papel do Estado foi redefinido como o de garantidor dos contratos e direitos de propriedade em geral e a proteção do mercado em particular. Sua autoridade continuou a proibir ou permitir as formas sociais de atividade econômica, mas o conteúdo da atividade econômica deveria ser deixado ao recém constituído setor privado” (Roy, 1997: 75).
276 Ao tentar explicar o processo Roy perde-se no jogo de espelhos da disputa ideológica entre os diferentes grupos burgueses em luta pela hegemonia política do processo. Como já vimos, o centro da hipótese alternativa à teoria da eficiência proposta por Roy está no papel do Estado, especialmente da lei, e a dinâmica institucional do poder político. Na verdade Roy está tão obcecado pela dinâmica do poder político que corre o risco de jogar o bebê com a água do
232
pelo controle sobre o Estado e pela forma das leis na medida em que estes
determinam a fronteira legal da subordinação da vida aos imperativos de
produção capitalista. Logo, ao elaborar uma concepção do mundo produtivo, a
empresa se vê diante do imperativo de agir de forma política e buscar
transformar as instituições normativas para dar legitimidade à sua forma de
dominação do mercado. Ao mesmo tempo, o poder da fração capitalista do
capital societário, representada pelos principais acionistas e pelos diretores das
referidas companhias, necessita de uma base material para constituir-se e esta
está relacionada ao acúmulo de riqueza propiciado pelo boom ferroviário, onde
jogam um papel de destaque os bancos e corretoras, que também são estruturas
de capital social.
Mais importante que isto, entretanto, é que a origem pública das
corporações facilita a sua assimilação como forma de aparição da propriedade
privada para o conjunto da sociedade. A garantia pública estatal é necessária ao
processo de “naturalização” da relação entre o detentor de riqueza e a sua forma
de existência como “certificado de propriedade”. O processo que cria a captação
de recursos para fins específicos, faz derivar da forma da dívida pública -
instrumento de renda capitalizada - o título de propriedade fracionária das
empresas, as ações, que passam a confundir-se com os bônus governamentais
como formas de existência do capital fictício.
7. A transformação das leis.
Assim como a propriedade privada é garantida pelo Estado como
conteúdo das relações materiais, sua forma, e portanto a forma da empresa
societária não pode existir sem um Estado que as garanta. É o Estado e sua lei
que define o conteúdo e a forma da propriedade.
Os principais elementos introduzidos pela lei que dão forma à
propriedade societária em sua forma norte-americana são os seguintes: 1) os
banho. Ao descartar totalmente a lógica econômica (que explica a vertente econômica do poder) que se encontra subjacente à teoria da eficiência defendida por Chandler como componente explicativo do processo, Roy perde a dinâmica da disputa de poder interna à classe dominante. Primeiro, não percebe a relevância da arquitetura financeira e dos “ganhos de fundador” que levam os bancos a agir diretamente para construir as fusões, movimento que constitui por si a “burguesia financeira”; e em segundo lugar, não percebe o papel desempenhado pelo Estado na chamada “escolha dos vencedores”, através da qual são constituídos os grupos beneficiados pelas políticas de privatização. E aqui a dinâmica de como o poder econômico se embrenha no Estado, se transforma em poder político, é o elo principal, na medida em que permite explicar como se dá a ação dos grupos privilegiados no processo.
233
proprietários não são responsáveis pelas dívidas das companhias; 2) as
companhias podem deter a propriedade de outras empresas; e 3) os
administradores podem gerir as companhias sem controle direto dos
proprietários. Disto derivam problemas que serão discutidos com maior detalhe
adiante: 1) ao não se responsabilizar o proprietário pelas dívidas das
companhias277 se aliena mais do que a responsabilidade legal do “titular” da
ação. O proprietário se vê apenas como proprietário do capital in abstracto que
compõe a empresa. Ele não é proprietário de uma parcela específica das
máquinas ou do “capital variável” ou dos estoques de produtos da empresa. Para
seu detentor, a ação é apenas um título que lhe dá direito a um rendimento; 2)
ao autorizar-se a compra de ações de uma companhia por outra, facilita-se a
concentração e centralização capitalistas, além de possibilitar à gerência das
empresas especular com a ação de concorrentes e fornecedores, contribuindo-se
desta forma, com a contaminação da empresa, que seria voltada à produção,
pela lógica financeira; e 3) a separação entre propriedade e comando do capital
dota a diretoria de plenos poderes sobre o comando da empresa e aliena, grosso
modo, uma grande parcela dos proprietários do capital das decisões estratégicas
da política empresarial, reforçando desta forma a posição de afastamento destes
proprietários da gestão de sua propriedade.
É interessante notar também que a possibilidade de se controlar uma
empresa sem comprá-la cria a possibilidade de formação de trustes sem sua
existência formal (como vimos, o truste é proibido pela legislação norte-
americana). A forma holding é desenvolvida, portanto, como forma de
contornar a restrição legal da trustificação. Assim, a holding é uma companhia
que só existe para deter a propriedade de outras companhias. Os gigantes norte-
americanos, como a Standard Oil e a US Steel, surgiram desta forma. Em muitos
casos, as pequenas firmas continuaram existindo com suas marcas e fatias de
mercado mas atuando como subsidiárias da empresa holding278, embora a
277 A socialização da propriedade trás consigo a perda de direitos de comando e a
diminuição da responsabilidade para zero. “Uma nova entidade, a própria corporação, torna-se o objeto legal no qual o direito de administrar e a responsabilidade pelo débito está investida” (Roy, 1997: 158). A responsabilidade limitada sobre as dívidas foi construída legalmente também ao longo do século XIX.
278 Isto contraria o argumento que pretende que a diferença entre a forma de concentração alemã e a norte-americana é dada pelo fato das empresas americanas terem “internalizado os custos de relacionamento” devido aos ganhos de escala proporcionados pelo tamanho da economia dos EUA. Isto de fato ocorreu, mas parece, a partir dos dados de Roy, ter
234
forma holding permitisse também a compra para a eliminação de unidades
menos produtivas por parte do grupo monopolista, o que não era possível para
os trustes alemães e ingleses.
O historiador norte-americano Howard Zinn, chama a atenção no
documentário The Corporation, para o fato de que a criação da pessoa jurídica
da sociedade anônima, em sua forma norte-americana, pega carona no
movimento de reconhecimento dos “direitos da pessoa” dos negros libertados
após a Guerra de Secessão. A lei de direitos da pessoa, escrita para garantir a o
direito de propriedade por parte dos negros, é usada, copiada e estendida à
“pessoa jurídica” das Sociedades Anônimas que passa a poder deter a
propriedade de outras empresas. Como resultado deste processo, se desvanece o
caráter de concessão pública das Sociedades Anônimas.
Este é o processo legal pelo qual se desconecta a responsabilidade do
proprietário e a transfere para a própria Sociedade Anônima instituída como
pessoa de direito pleno. É a Sociedade Anônima que será processada ou julgada
e não seus proprietários. A lei escrita para defender os direitos dos negros foi
acionada 307 vezes entre 1880 e 1910, apenas 19 vezes por negros; 288
processos referiam-se a direitos corporativos, que deste modo foram inscritos
na jurisprudência norte-americana.
Destarte, a criação da “pessoa jurídica” corresponde também à criação de
uma “persona”. O capital tornado independente de seus suportes materiais
(seus proprietários), apresenta-se na forma da Sociedade Anônima como algo
externo aos agentes da produção, como um novo “eu” dotado inclusive de uma
“imagem” pública na forma das logomarcas. A propaganda e a imagem pública
irão constituir sua “personalidade”. Como pessoa, nada mais natural que as
empresas sejam apresentadas como cidadãos que se pretendem úteis à
sociedade e que se vejam dotados de uma visão política sobre o mundo, como
vimos nos capítulos anteriores.
Assim, embora existisse a forma de Sociedades Anônimas praticamente
desde a independência norte-americana, não é de se admirar que até 1880 a
sido um fenômeno muito menos generalizado do que faz supor o argumento de Chandler seguido por Arrighi (1996).
235
manufatura não fazia parte do universo de Wall Street279. A adoção da forma
societária só se torna vantajosa para estas empresas a partir das alterações
legislativas que lhes permitem a obtenção de vantagens institucionais e a
formação dos cartéis sobre o abrigo da lei. Em 1889 a American Cotton Oil Co. é
fundada em Nova Jersey como uma holding, inaugurando tanto esta forma de
controle da indústria como a participação de indústrias no sistema de grandes
Sociedades Anônimas nos EUA. Para a teoria da eficiência esta indústria não
seria uma candidata a inaugurar este caminho, entretanto, a existência de um
número reduzido de estabelecimentos (45) jogou a favor. Seu truste havia sido
proibido em 1880. A fundação desta corporação corresponde a uma manobra
para dar forma legal a um truste. Ao mesmo tempo são convidados para seu
conselho diretivo homens ligados ao capital financeiro e às ferrovias. A
organização desta nova “empresa-truste” pavimentou a estrada para a
legalidade que muitos outros monopólios poderiam seguir (cf. Roy, 1997: 203).
De novo a descrição de Roy demonstra o acerto de Lênin e Hilferding, inclusive
na forma de composição dos interesses da fração financeira da burguesia, e
coloca em xeque o argumento de Arrighi (1996) baseado em Chandler, de que a
diferença específica que levou ao sucesso da grande empresa norte-americana
frente aos trustes alemães na competição com o capitalismo britânico teria sido
a internalização dos custos de transação por parte da grande Sociedade
Anônima norte-americana.
Na virada do século XIX apenas seis dos Estados norte-americanos
permitiam a participação acionária de uma sociedade anônima em outra, com a
liderança de Nova Jersey. O debate então, colocava de um lado os defensores
das holdings como “a única forma de se obter os ganhos de escala e
investimentos tecnológicos necessários” e do outro os que alertavam sobre a
forma “antinatural” com que se formavam trustes à sombra da lei.
“A lei também estabeleceu uma regulação sobre os poderes dos conselhos
de diretores criando novos poderes organizacionais não disponíveis para as
firmas de proprietários individuais” (Roy, 1997: 154). Isto se expressava por: 1) a
279 Como vimos Roy chama a atenção justamente para este fato, sem perceber que estas
alterações na legislação efetivamente criam uma “nova forma de existência do capital” e, portanto, justificam a adoção da forma societária pelas indústrias manufatureiras.
236
autonomia na relação agente-principal280 e 2) a habilidade de coordenar
relações, a partir da fixação de contratos específicos, com outras firmas através
da participação acionária ou da imposição de sua vontade. Como vimos, isto
leva à possibilidade da constituição de lucros monopolistas, o que empurra,
junto com a limitação da responsabilidade dos sócios sobre o volume do capital,
mesmo empresas familiares à adoção da forma societária281.
O Estado norte-americano ativamente moldou este estado de coisas,
sendo mais que um regulador ou “preservador” de mercados. Enquanto
Chandler defende que a formação de pools e trustes são uma quebra no regime
de mercado, Roy entende que eles são o resultado natural, uma defesa contra a
“intrusão” do mercado nas indústrias onde são formados. Argumento que
converge tanto com a idéia de Galbraith (1982) de que as empresas buscam a
supressão do mercado, quanto com a abordagem da linhagem marxista de que a
concentração e centralização de capitais leva à constituição de monopólios.
Assim, os pools são a forma mais antiga de organização do capital de um
ramo industrial para evitar os males do mercado regulando o volume de
produção e preços. A perseguição legal os levou à clandestinidade ou à
transformação em outras formas de organização. Os primeiros pools e cartéis
apresentavam-se publicamente como associações de industriais. Até que os
pools fossem legalmente banidos nos EUA em 1888 suas reuniões eram
realizadas abertamente e seus resultados publicados nos jornais, como em
outros países continuaram sendo. A organização do pool em uma empresa
societária estadual ou nacional o “legaliza”, sendo que a única restrição na lei
norte-americana é o domínio de 100% do mercado. Assim, as leis que barram a
formação de pools e cartéis aceleram o processo de fusões e a criação de grandes
Sociedades Anônimas.
O que Roy não percebe é que, se o Estado constrói a nova forma e ela não
corresponde às velhas formas de organização da burguesia, então devemos nos
indagar se não estamos diante do domínio político de uma nova fração de
280 A relação entre diretoria e acionistas. Um resumo da discussão sobre a relação
“agente-principal” pode ser encontrado em Velasco Jr. (1997). 281 É interessante notar que mesmo o que Roy afirma como novo em sua descrição do
processo norte-americano já fazia parte das análises de Lênin e Hilferding, ainda que sob outros matizes e com menos detalhes de cunho histórico.
237
classe, “financeira”, que determina por sua ação política, a nova forma de
propriedade societária por esta corresponder a seus interesses.
Ver a expansão da forma societária para o setor industrial, como propõe
Roy, como uma “barganha faustiana”282 entre o capital bancário e a indústria
competitiva, na qual o pequeno industrial “vende sua alma” ao grande capital é
negar justamente a capacidade explicativa da dinâmica de poder como
pretendida por Roy. A relação dialética que se estabelece no processo é mais
complexa. O processo de concentração e centralização de capitais se encontra
em seus alvores e os atores envolvidos buscam encontrar a forma ideal para sua
execução. A idéia de barganha faustiana, ao dar a entender que a rendição à
forma societária se deu sem resistência, contraria a descrição do processo,
muito mais rica, em que se nota a luta pela sobrevivência do pequeno negócio
frente à tentativa de imposição por parte dos bancos - normalmente credores do
pequeno industrial - deste pôr-se ao abrigo das incertezas da competição.
As inúmeras falências, perseguições (ora mais abertas, ora mais veladas),
que são descritas por Hilferding (1985), Lênin (1982) e Bukharin (1984), a
partir de exemplos europeus e pelo próprio Roy (1997) nos EUA, são prova de
que se tratava de um processo muito mais geral de mudança cultural da forma
como era percebida a propriedade privada antes e após o processo de
constituição dos monopólios. Assim, o processo é marcado pela luta, falência e
eliminação de concorrentes com o uso mesmo da violência direta que
caracterizava o capitalismo norte-americano nos dizeres de Lênin (1982)283 e
que era deplorada pelos economistas europeus, ao passo em que os mesmos
métodos e processos eram utilizados no velho continente (no que Roy chamaria
talvez de um “mimetismo às avessas”).
A disputa que se dá em torno da construção da legislação e dos
regulamentos sobre a forma do capital societário são o resultado de uma luta
intensa entre grandes e pequenos capitais, entre interesses difusos e
282 “Ao mesmo tempo, as instituições do capitalismo corporado, que haviam desdenhado
longamente as operações industriais, colocadas diante de um prospecto de uma indústria ferroviária saturada, viram uma oportunidade para novas conquistas. Manufatureiros, tentados pela perspectiva dos milhões de Morgan, fizeram sua barganha faustiana. O capital industrial fundiu-se com o capital de investimentos e detonou a revolução corporada” (Roy, 1997: 198).
283 “Os ‘costumes norte-americanos’, de que tão hipocritamente se lamentam os professores europeus e os burgueses bem intencionados, converteram-se, na época do capital financeiro, em costumes de literalmente toda a cidade importante de qualquer país” (Lênin, 1982: 618).
238
concentrados, entre municipalidades e Estados, entre liberais (na acepção
norte-americana) e conservadores, enfim, entre classes e frações de classe, pela
alteração na forma como se organiza a propriedade privada que é a pedra
fundamental sobre a qual se assenta a sociedade capitalista. É uma disputa que
se dá no âmbito da cultura e não só da política ou da economia. A redução a um
único componente a empobrece e esvazia seu sentido.
A alteração da legislação da forma societária reflete, deste modo, um
salto qualitativo – a partir da acumulação quantitativa de poder econômico por
parte das Sociedades Anônimas ainda em sua antiga forma, em particular dos
capitais bancários - que se inscreve na superestrutura estatal, mais diretamente
através de alterações legislativas. Por sua vez, tais alterações reforçam o
movimento de tornar independente do Estado o acúmulo de capital em sua
forma societária ao possibilitar uma vantagem competitiva para as massas de
capitais que logram romper esta barreira. O resultado é a adoção da forma
societária privada como condição de sobrevivência para os capitais que
pretendem manter-se na competição, deslocada para o âmbito do oligopólio que
se organiza em escala nacional. Com isto se constrói a hegemonia da forma
societária no mercado, e como resultado desta, a hegemonia da fração de classe
burguesa relacionada a este segmento sobre o restante da burguesia e das
diferentes nações.
Os efeitos das ferrovias sobre o mercado não estão limitados à
diminuição do custo de transporte e aos encadeamentos produtivos das
mesmas. Inclui também a possibilidade de criação de economias de escala para
atingir todo o território integrado pela malha ferroviária, que grosso modo
correspondia a todo o espaço nacional em diferentes países europeus e nos
EUA. A mera análise por setor industrial, em particular no caso norte-
americano, esconde a diversificação dos investimentos pelos grandes grupos,
sendo comum as companhias ferroviárias investirem em outras grandes
companhias que produziam de petróleo a açúcar ou bebidas.
Como vimos, a dinâmica do mercado é afetada pelo poder relativo das
empresas capazes de “controlar, suspender ou superar” a concorrência, na
acepção de Galbraith (1982). As grandes ferrovias normalmente exercem poder
de monopsônio, ou estabelecem “parceiras preferenciais” que colocam a
competição fora do jogo e esta é uma relação de poder. Entretanto, esta relação
239
de poder implica numa punção que resulta na apropriação de uma parcela da
mais-valia de um setor capitalista por outro, resultando que a dinâmica de
poder, melhor expressa pela relação que denominamos de “hegemonia de
mercado” acaba por resolver-se pela subordinação de uma massa de capital a
outra. A busca desta relação, e dos lucros de monopólio que lhe são inerentes,
anima, do mesmo modo, o processo de concentração de capitais observado na
indústria norte-americana no início do século XX, que rapidamente
transformou-se num processo de crescimento e concentração de capitais nos
mercados externos, através de Investimentos Externos Diretos (IED)284.
A disputa pelas massas de mais-valia, contudo, não está restrita às
dinâmicas das relações internas aos possuidores de capital. Antes, a disputa
capitalista espalha-se para o conjunto das classes sociais acirrando a luta de
classes e se expressa na disputa pela apropriação das rendas no mercado,
atingindo, através deste, o conjunto da sociedade. Segue, que a dinâmica que
leva à disputa intercapitalista pela formação de uma parcela monopolizada dos
lucros, leva, ao mesmo tempo, a uma expansão em intensidade e extensão da
exploração dos não proprietários que se encontram no mercado de trabalho.
Como vimos, o processo de transferência de mais-valia pode dar-se tanto
através da exploração direta da massa trabalhadora, quanto através de sua
espoliação indireta através de mecanismos de preços.
Não podemos nos esquecer aqui, ao privilegiar em nosso estudo o
momento de constituição da hegemonia do capital societário que a América das
grandes Sociedades Anônimas é a sofrida América dos “bóias-frias” de
Steinbeck. A luta de classes se manifesta neste período de forma aberta e
cruenta nos massacres de operários pela baioneta do exército como narra Zinn
(1980) e na supressão do direito de greve pela ação das máfias infiltradas nos
sindicatos.
284 “Esse crescimento não se limitou ao mercado interno norte-americano. ‘as empresas
norte-americanas começaram a se mudar para países estrangeiros quase imediatamente após concluírem sua integração continental. (...) Ao se tornarem firmas nacionais, as empresas norte-americanas aprenderam a se internacionalizar’ (Hymer, 1972, p. 121). Em 1902, os europeus já falavam numa ‘invasão norte-americana’; e em 1914, o investimetno direto dos Estados Unidos no exterior correspondeu a 7% do produto interno bruto (PIB) norte-americano – a mesma percentagem de 1966, quando os europeus voltaram a sentir-se ameaçados pelo ‘desafio norte-americano’ (cf. Wilkis, 1970, p. 71, 201)” (Arrighi, 1996: 249).
240
Capítulo 8 - A forma da sociedade anônima e suas implicações para o capital.
Como indicamos no capítulo 6, o terceiro elemento que compõe a
formação do crédito na análise de Marx é constituído pela própria formação de
sociedades por ações. Vimos então que, ao tempo de Marx, o desenvolvimento
das S.A.s se encontrava ainda em seus primórdios. Fica claro que sua análise
captura alguns dos aspectos mais salientes mas que fundamentalmente a bolsa é
vista como uma forma de socialização do capital com vistas a empreendimentos
de maior envergadura:
“Certas esferas da produção requerem já nos começos da produção
capitalista um mínimo de capital que ainda não se encontra nas mãos de
um único indivíduo. Isto ocasiona, em parte, que se concedam subsídios
estatais a ditos particulares, como na França de Colbert e como em mais
de um estado alemão até nossos dias, e em parte a formação de
sociedades que gozam do monopólio legal para a exploração de certos
ramos industriais e comerciais, precursoras das modernas sociedades
por ações” (Marx, 1984: I/1, 375).
A relação de tais empresas com os monopólios estatais – em que pese a
ausência de uma explicação para suas rendas - e sua forma de financiamento
semi-pública entretanto já são bastante claros para Marx, como podemos ver
quando chama a atenção para “a descomunal expansão da escala da produção e
empresas que resultariam impossíveis para capitais individuais. Ao mesmo
tempo, empresas que eram governamentais se tornam sociais” (Marx, 1984:
III/7, 562).
241
Marx chama também a atenção para o novo caráter diretamente social
adquirido pelo capital na forma das sociedades por ação quando afirma que “o
capital [...] adquire aqui diretamente a forma de capital social (capital de
indivíduos diretamente associados) por oposição ao capital privado, e suas
empresas aparecem como empresas sociais em contraposição às empresas
privadas. É a abolição [Aufhebung] do capital como propriedade privada dentro
dos próprios limites do modo capitalista de produção” (Marx, 1984: III/7, 562,
grifo nosso). No entanto, como veremos esta é uma abolição que se dá apenas na
aparência como estas empresas se relacionam com o mundo.
E, fundamentalmente, Marx desenvolve a partir da relação como os
valores são negociados na bolsa, o conceito de capital fictício. Neste item
mostraremos como Marx desenvolveu este conceito a partir da forma como
tratava os juros e sua capitalização e as implicações decorrentes das alterações
introduzidas neste trabalho para as Sociedades Anônimas, no que tange a seu
“valor” na bolsa; à separação entre propriedade e comando do capital e a
conseqüente forma de remuneração das gerências285.
1. O capital fictício: juros, dividendos e o “lucro de fundação”.
Marx denomina de capital fictício o processo de capitalização286 de uma
determinada taxa de juros que se corporifica num título de propriedade. Este
título “comporta-se como capital” na medida em que se espera dele uma dada
remuneração, o juro, pouco importando se provenha de lucros empresariais,
rendas de monopólio ou de tributos estatais. Nestas condições, “o juro expressa
em si precisamente a existência das condições de trabalho enquanto capital, em
seu antagonismo social ao trabalho e em sua transformação em poderes
pessoais frente ao trabalho e sobre ele. Constitui a mera propriedade do capital
285 Este é o foco de Marx quando chama a atenção para a “transformação do capitalista
realmente ativo em um mero diretor, administrador [manager no original] do capital alheio, e dos proprietários de capital, em meros proprietários, em capitalistas monetários. Inclusive se os dividendos que obtém englobam o juro e o lucro empresarial, isto é, o lucro total (pois a retribuição do diretor é, ou deve ser, mero salário de certo tipo de trabalho qualificado, cujo preço se regula no mercado de trabalho, como o de qualquer outro trabalho), esse lucro só se percebe na forma de juros, ou seja como mera recompensa pela propriedade do capital, que então se separa por completo da função no processo real de produção, assim como essa função se separa, na pessoa do diretor, da propriedade do capital” (Marx, 1984: III/7, 563).
286 “A formação de capital fictício se denomina capitalização” (Marx, 1984: III/7, 601).
242
enquanto meio para apropriar-se de produtos do trabalho alheio” (Marx, 1984:
III/7:488), mas sua origem não precisa ser diretamente esta.
A ficção em pauta é considerar como capital – valor em processo de
valorização – algo que é o rendimento esperado pela posse do título287. No caso
das ações, tais títulos se “legitimam como capital” na bolsa de valores através da
posse de ações de companhias reais:
“As ações de companhias ferroviárias, mineiras, de navegação, etc.,
representam capital real, a saber o capital investido e operante nessas
empresas, ou a soma de dinheiro adiantada pelos participantes para ser
gasta como capital em tais empresas. [...] a ação não é outra coisa que um
título de propriedade pro rata, sobre a mais-valia que se vai realizar
através deste capital” (Marx, 1984: III/7, 601).
Mas esta é apenas a aparência do processo. O preço de tais títulos está
diretamente vinculado a sua rentabilidade, ou seja à remuneração esperada pelo
mercado. O preço das companhias está completamente desvinculado do preço
de seus ativos. Os títulos de propriedade acionária são equivalentes a um capital
real, mas a uma parcela ideal deste, e são capital fictício na medida em que não
podem ser reconvertidos em dinheiro, máquinas ou equipamentos. São apenas
direitos sobre os dividendos distribuídos pelo capital atuante.
“Seu montante de valor, sua cotação na bolsa, tem necessariamente a
tendência de aumentar com a baixa da taxa de juros – na medida em que
esta, independentemente dos movimentos peculiares do capital dinheiro,
constitui uma simples conseqüência da baixa tendencial da taxa de lucro
– de modo que essa riqueza imaginária, que pela expressão de seu valor é
de um valor nominal originário determinado para cada uma das suas
partes alíquotas, se expande já, por essa única razão, no curso do
desenvolvimento da produção capitalista” (Marx, 1984: III/7, 615).
Esta tremenda disparidade entre o valor dos ativos e o preço do capital
fictício reflete o descolamento de tal título de propriedade da forma objetiva de
existência da riqueza social, a propriedade direta e o comando sobre o capital, e
287 “Ainda que no caso de que o certificado da dívida – o título ou obrigação – não
represente um capital meramente ilusório, como no caso da dívida pública, o valor do capital desse título é puramente fictício” (Marx, 1984: III/7, 601).
243
deste passar a ser associado a um título de rendimento288. Desta forma, “no
capital que gera juros, a relação do capital alcança sua forma mais alienada e
fetichista. Temos aqui D-D’, dinheiro que gera dinheiro, valor que se valoriza a
si mesmo, sem o processo que media ambos os extremos” (Marx, 1984:
III/7:499). E disto segue que “no capital que gera juros, portanto, este fetiche
automático – o valor que se valoriza a si mesmo, o dinheiro que incuba dinheiro
– se cristalizou em forma pura, numa forma na qual já não apresenta os
estigmas de sua origem” (Marx, 1984: III/7:500). Esta é, portanto, a forma pela
qual o capital se desprega de seus suportes. O capital deixa de ser visto como
relação de exploração para ser visto como “fator de produção” que gera uma
renda, o juro. Como vimos, entretanto, esta renda é uma falsa renda, uma renda
derivada, uma apropriação por parte do capital monetário da renda gerada pelo
capital atuante289.
Em decorrência disto, como vimos nos capítulos anteriores, a
precificação dos títulos que correspondem ao rendimento esperado pelas
empresas passa a estar vinculado não apenas à extração de mais-valia, mas à
subordinação da acumulação de setores inteiros da produção capitalista à
acumulação de uma empresa monopolista ou de poucas empresas oligopolistas.
Tal capacidade de centralizar a mais-valia extraída por um conjunto de
empresas leva a um descolamento cada vez maior entre o valor real do capital da
empresa e seu preço de mercado representado por sua capacidade de pagar
renda na forma de dividendos (ou da diretoria valorizar o capital fictício dos
proprietários de ações através da absorção direta de outras empresas através
dos processos de fusões e aquisições).
288 Apenas como exemplo: os ativos da rede Wal-Mart equivaliam a U$ 94,6 bi em 2002
(sendo cerca de U$ 9 bi correspondentes a “capital intangível” resultante da compra de outras empresas) enquanto seu valor de mercado atingia a U$ 310,3 bi, representando um ágio de 228% sobre os ativos. (Wal-Mart, 2003)
289 [Assim,] “na bolsa, a propriedade capitalista aparece em forma pura como título de rendimento o qual se transformou inadvertidamente a relação de exploração, a apropriação do mais-trabalho. A propriedade deixa de expressar qualquer relação de determinada produção e se converte num título de rendimento totalmente independente de qualquer atividade. A propriedade se desprendeu de toda relação com a produção, com o valor de uso. [...] Toda produção é capital e não-propriedade; as dívidas também são, como todo empréstimo público, capital; e todo capital é igual e se encarna em pedaços de papel impressos, que na bolsa sobem e baixam” (Hilferding, 1985: 151-2).
244
Ao mesmo tempo, a aparente transformação de toda riqueza monetária
em formas que trazem consigo o processo de capitalização que as transforma em
capital fictício borra, entorpece, a capacidade cognitiva dos agentes envolvidos.
Isto trás decorrências para a forma como os proprietários de tais capitais
se vêem no processo social de distribuição do excedente. De um lado passam a
agir as organizações que realizam a extração das rendas, que como vimos são
denominadas de lucros sem que haja nenhum tipo de identificação concreta de
suas fontes, de outro, os portadores da riqueza líquida da sociedade em busca de
formas de capitalização de seu patrimônio. Aparentemente, “a diferença
qualitativa da garantia do rendimento é expressa quantitativamente na
diversidade da cotação” (Hilferding, 1985: 147). Mas tal diferença reflete de um
lado a renda esperada por parte do capital atuante que dá base a tais empresas e
de outro, a força relativa dos emissores de tais papéis, como por exemplo no
caso dos títulos públicos ou dos ADRs empresariais290.
Neste sentido, o capital fictício é uma forma de entesouramento para o
proprietário do capital monetário e de crédito para o primeiro tomador. O fato
do título variar de preço após seu lançamento não deve aqui velar sua relação
original. Ele estabelece a relação primordial de poder que determina a taxa de
juros esperada sobre a produção no caso de lucro, ou sobre as rendas derivadas
dos diferentes monopólios sociais. A assunção da forma fictícia já corresponde
ao primado do capital monetário sobre a atividade produtiva, a separação ideal
entre capital monetário e capital atuante. Já é o monopólio da propriedade do
dinheiro que se estabelece sobre as relações de produção.
Ao transformar-se em mercadoria, o capital faz com que os títulos que o
representam ajam também como capital em outro sentido. A necessidade de
garantir a remuneração aos proprietários do título que representa o capital
monetário, torna a necessidade de acumulação capitalista algo externo à
vontade de seus gestores e, assim como a reprodução da acumulação é um
imperativo para a existência do capital em abstrato, o mesmo vale para a
reprodução das relações sociais que garantam a continuidade da existência do
290 É necessário lembrarmos aqui que, assim como as dívidas estatais sofrem
“classificação” por parte das agências de risco, o mesmo procedimento é realizado com relação à dívida das grandes corporações do capitalismo contemporâneo. Os ADRs (American Depositary Recipes) são títulos de dívida, vendidos no mercado aberto pelas empresas - no lugar de emitir novas ações - a taxas de juros pré-fixadas.
245
capital. Assim, o capital aparenta tornar sua “vontade” independente da de seus
suportes, um atributo de si mesmo como mercadoria.
Segundo Marx, ao analisar o papel das bolsas, “o crédito é o instrumento
introduzido para acelerar o processo de concentração capitalista” (Marx, 1984:
I/2:779-80). E daí a centralidade do capital usurário, bancário, que controla e
estimula estas fusões. A aristocracia financeira representa neste processo, a
subordinação do capital industrial à lógica do capital bancário, a busca do
rentismo encoberta pela busca “naturalizada” e socialmente aceita do lucro. Por
trás da “dignidade social” do empreendedor esconde-se a usura do banqueiro.
Sua comunidade de interesses os funde na “aristocracia financeira”, fração de
classe fundada na unidade e luta de contrários, que por sua vez se contrapõem
ao restante da sociedade.
Voltemos a um exemplo histórico: a corporação norte-americana da
indústria do cigarro é fundada em 1890, com um valor nominal de U$ 25 Mi,
dos quais apenas U$ 4 Mi correspondiam a bens tangíveis. O restante devendo
ser lançado à antecipação de lucros monopolistas. A prática competitiva da
empresa tem um pouco de eficiência e muito de dumping, mascaramento,
contratos de exclusividade e operações através de testas de ferro. É um setor no
qual opera o poder financeiro, nada de tecnologia ou mercados. A disputa se dá
a partir de Wall Street.
A relação entre lucros empresariais e capitalização segue turva mesmo no
caso das empresas por ações, na medida em que o capital acionário ao gerar
dividendos apenas subtrai da taxa de lucro uma parcela, como os juros (e de
forma similar a estes), “apesar de estar investidos em grandes empresas
produtivas, uma vez deduzidos todos os custos, só geram pequenos ou grandes
juros, os assim chamados dividendos” (Marx, 1984: III/6, 307). O restante do
lucro não é distribuído e serve fundamentalmente à capitalização (com o
aumento das propriedades das empresas e com o emprego em novos
investimentos produtivos). Neste mesmo sentido,
“... empresas muito grandes, com uma proporção extraordinariamente
elevada de capital constante, como por exemplo as ferrovias, não lançam
a taxa média de lucro, mas somente, uma parte da mesma, um juro. De
outro modo, a taxa geral de lucro diminuiria mais ainda. Em
246
compensação neste caso um grande estoque de capital encontra, sob a
forma de ações, um campo direto de atividade” (Marx, 1984: III/6:337).
Como a taxa de remuneração não é dada a priori, ou seja, o acionista
corre risco (e, portanto, espera uma taxa melhor de remuneração), a bolsa
funciona como concorrente dos bancos na absorção da poupança monetária
cristalizada na sociedade. “É só com o estabelecimento desse mercado [a bolsa
de valores] que se atribui ao capital acionário (agora sempre ‘realizável’ para o
particular) o caráter efetivo de capital monetário” (Hilferding, 1985: 113). Por
outro lado, o pequeno acionista corre o risco duplo de ver-se às voltas com o
movimento especulativo dos bancos na bolsa, já que,
“O movimento de ações não é movimento de capital, senão apenas uma
compra e venda de títulos de renda; as oscilações de seus preços não
afetam diretamente o capital industrial realmente ativo, cujo rendimento
elas representam, mas não o seu valor” (Hilferding, 1985: 114).
Novamente, a “lucratividade” dos atores financeiros que agem no
processo depende apenas de informação e de ganhos fortuitos possíveis na
chamada “economia de cassino” como descrita por Strange (1998)291 e tão bem
expressa no comentário de Carlton Brown, operador do mercado de
commodities novaiorquino, referindo-se ao 11 de setembro, segundo o qual “na
devastação está a oportunidade” (The Corporation, parte 2).
O lucro de fundação.
Do ponto de vista da mobilização originária dos capitais na bolsa292, a
emissão das ações, há a possibilidade do estabelecimento de ganhos reais para
os atores envolvidos, em particular os bancos. Na medida em que existe uma
grande diferença entre o valor real do capital vendido “nominalmente” nas
ações, e sua cotação de mercado (o rendimento capitalizado na forma do capital
fictício), os bancos que se especializaram nestas operações puderam carrear 291 “A grande diferença entre um cassino comum no qual você pode ir ou deixar de fazê-
lo, e o cassino global das altas finanças, é que neste último estamos todos involuntariamente engajados no jogo diário. Uma mudança monetária pode reduzir à metade o valor da colheita de um fazendeiro antes que ele a colha, ou colocar um exportador fora dos negócios. Um aumento nas taxas de juros pode fatalmente inflacionar os custos de manutenção de estoques para um lojista. Uma tomada de controle ditada por considerações financeiras pode roubar o emprego de um trabalhador fabril. [...] O cassino financeiro põe todos jogando o jogo de Cobras e Escadas” (Strange, 1986: 2) in (Strange, 1998: 5).
292 “A mobilização do capital abre para os bancos uma nova esfera para sua atividade: a emissão e a especulação” (Hilferding, 1985: 169).
247
para seus cofres volumes enormes de riqueza monetária pré-acumulada por
outros setores da sociedade.
Hilferding denominou este diferencial, entre o valor nominal das
empresas e seu valor de mercado como capital fictício, de “lucro de fundação”:
“O lucro de fundação ou emissão não é nem lucro, nem juro, mas lucro
capitalizado de empresário. Seu pressuposto é a transformação do capital
industrial em fictício. O patamar do lucro de emissão é determinado,
primeiro, pela cota média de lucro e, segundo, pela taxa de juros. Lucro
médio menos juros determina o lucro de empresário que, capitalizado à
taxa de juros reinante, constitui o lucro de fundação; o lucro de fundação
não depende, de forma alguma, do nível do capital próprio do banco”
(Hilferding, 1985: 172).
A idéia central do lucro de fundação como transformação do capital real
em capital fictício está correta, mas o que se capitaliza neste caso não são os
lucros de empresário como afirma Hilferding. O lucro de fundação é a
apropriação pelo fundador de uma massa capitalizada de lucros sim, mas de
outra estirpe: lucros monopolistas! O exemplo dado pelo próprio Hilferding
(1985: rodapé 55, páginas 217-8) nos dá conta de que o truste do açúcar é
formado nos EUA com um capital equivalente a U$ 6,5 Mi, mas emite ações no
valor de U$ 50 Mi e paga dividendos de 10% sobre os U$ 50 Mi, ao invés de
70%293 sobre o montante inicial294. Fica claro que o banco apropria-se da
valorização das ações decorrentes da renda de monopólio propiciada pela
formação do cartel. Além disto, parte do “lucro de fundação” é utilizada para
comprar as empresas dos “resistentes”. “O banco procura ampliar seu capital
próprio para fixá-lo industrialmente, para auferir lucro de emissão e poder
dominar a indústria” (Hilferding, 1985: 173). Ou seja, o objetivo é o monopólio e
não se pode analisar o monopólio, como Hilferding tenta fazer, com as regras e
leis de formação de preços da concorrência capitalista idílica.
293 76,92% se calcularmos como U$ 5 Mi de dividendos distribuídos. 294 Outro exemplo foi citado acima é o do cartel do cigarro com bens valendo U$ 4 Mi
que emitiu ações no valor de U$ 25 Mi.
248
Hilferding critica Marx por este não considerar os dividendos295 como
uma categoria de rendimento em separado e por considerar que as Sociedades
Anônimas estavam fora da tendência de queda da taxa média de lucro por
poderem distribuir apenas a parcela dos lucros referentes aos juros. O problema
é que como segue amarrado à concepção estrita de juros como parcela da mais-
valia extraída pela própria empresa, Hilferding não percebe o componente
monopolista destes dividendos que pretende constituir em nova categoria de
renda.
Nos parece aqui que Marx estava certo ao considerar os dividendos
apenas como a denominação do juro pago pelo capital fictício na forma
acionária. Ele não difere em absoluto de juros pagos, por exemplo pela dívida
pública estatal. Por outro lado, como veremos ao discutir a remuneração da
gerência, Marx não percebe, que, de fato, a alta gerência se vê como capitalista
atuante e estipula sua remuneração de acordo com esta posição. Não são os
capitalistas que decidem a remuneração de seus prepostos, mas comumente,
são os prepostos que determinam o volume de renda a ser distribuído para os
proprietários do capital. Como vimos, ainda não parecia claro ao tempo de Marx
a tendência de formação dos lucros monopolistas como uma condição normal
por parte destas empresas.
Desta forma, Hilferding centra sua crítica no ponto errado ao pretender
que Marx se adiantasse a seu tempo e perde a oportunidade de realmente
avançar na concepção dos juros como mais do que parcelas da mais-valia
produzida pela grande empresa, já que a maioria das Sociedades Anônimas ao
tempo de Hilferding são estabelecidas em ramos onde se suprime a
concorrência, possibilitando a obtenção de lucros de monopólio.
Devemos observar, contudo, que este diferencial de lucros se refletirá na
bolsa como alta do preço das ações nivelando a taxa de rendimento do capital
fictício, ou seja, nivelando o rendimento do capital social monetário embora o
295 Hilferding partiu da idéia de que “o lucro de fundador não é, no entanto, nenhuma
fraude, e nenhum tipo de indenização ou salário; é uma categoria econômica sui generis” (Hilferding, 1985: 115), e propôs um modelo de circulação das ações que seria descrito como A – D2 – A, onde as ações são trocadas por dinheiro. Neste, “D2 = D1 + d1, onde D1 é o capital dinheiro da fundação e d1 o lucro de fundador Lf, dado como:”
Lf = 100R/d – 100R/l, onde: R= rendimento do empresário l = lucro médio d = dividendos
249
rendimento do capital atuante tenha se despregado da média. Este processo de
transformação da forma como o capital atuante se apresenta em títulos de
capital fictício é o modo pelo qual se encobre o processo real de extração dos
lucros monopolistas sobre o restante da economia. O rendimento do capital
fictício corresponde eventualmente à uma média, enquanto o capital real está
sendo remunerado numa proporção muito superior à média esperada, como
desenvolvemos na parte I deste trabalho.
Hilferding ainda incorre em mais um equívoco em sua análise quando diz
que “na fundação de uma Sociedade Anônima, o capital acionário é calculado,
de tal forma que o lucro da empresa seja suficiente para distribuir a cada
acionista individual um juro correspondente ao capital por ele emprestado”
(Hilferding, 1985: 118). Ao comprar uma ação, ainda que no momento de
fundação da empresa, momento no qual efetivamente o que se fornece à
empresa é crédito, o capitalista não está emprestando realmente o dinheiro,
mas sim está comprando um título pelo qual espera um rendimento, uma
representação simbólica do capital em sua forma D-D’, um tesouro dotado da
capacidade de auto-valorização, pois a ação é em si capital, ainda que fictício.
É deste descolamento entre sua forma, a ação que rende juros, e seu
conteúdo manifesto, a parcela ideal da empresa concreta, que emana a
possibilidade do ganho monetário que permitiu aos financistas do XIX, e mais
recentemente a Bill Gates e outros “novos bilionários”, realizarem a venda de
parcelas de suas empresas e anteciparem, para seus bolsos, o rendimento futuro
esperado pelos capitalistas monetários na forma dos lucros de fundação.
A inexistência de novos empreendimentos lucrativos, que permitissem a
imobilização do capital na forma clássica de investimento produtivo, leva a uma
demanda crescente por parte dos detentores de capital monetário, e de seus
agentes, os financistas, por formas de imobilização de capital monetário na
forma de capital fictício. Isto se dá por esta ser a forma na qual o capital
monetário, que nada mais é do que uma reserva de dinheiro, capital em
potência, adquire sua forma “rentável” de capital. Como a produção e o
comércio envolvem riscos de outro tipo, o capitalista monetário, o detentor de
dinheiro em sua forma líquida, busca sua imobilização na forma de títulos que
geram rendimentos. Esta demanda encontra seu escoadouro em três “produtos”
básicos, três formas de capital fictício: os títulos públicos, que serão melhor
250
analisados nos próximos capítulos, as ações e títulos privados, e a propriedade
imobiliária cuja remuneração se dá com base na renda da terra.
É interessante notar que a formação do que se chamou de “solo criado”,
corresponde exatamente à idéia de “lucro de fundador”, correspondendo, no
caso, à diferença entre o valor do solo urbano antes e depois da construção de
uma edificação com muitos andares. Como o que gera a renda é a unidade
imobiliária – apartamento ou escritório – seu preço será dado pela capitalização
do valor do aluguel de cada unidade. A soma das unidades normalmente
ultrapassa o valor do capital investido somado ao preço original pago pelo
empreendedor pela parcela ideal do solo nu. Por outro lado, também é
importante frisar que tais operações, a exemplo de certas ações, tem caráter
especulativo e pode, muitas vezes, não obter o sucesso esperado ou embutir um
prejuízo futuro para o comprador296.
O importante a frisar aqui é que se a rentabilidade do capital atuante é
maior que a média social por qualquer motivo, a diferença de preço da ação,
expressa pelo preço do capital fictício, será embolsada pelo emissor como “lucro
de fundador”.
Sweezy segue a idéia de Hilferding, denominado-a de “lucro do
organizador297” e caindo no mesmo erro deste de não enxergar as rendas
monopolistas como fundamento da capitalização, mas critica a idéia de
predomínio do setor financeiro expressa por Hilferding que, como vimos, é
historicamente datada. Entretanto, devemos ter em mente que grandes parcelas
do capital fictício cobram sua existência na forma de ações do sistema bancário
e de outras instituições do capital financeiro, como por exemplo os fundos
mútuos e fundos de pensão, cujo objetivo precípuo é a obtenção de lucros
monopolistas com base no uso do capital monetário, quer sob a forma de
empréstimos diretos, quer sob outras formas de capital fictício, e assim, “ao
invés dos capitalistas monetários particulares investirem seu dinheiro em ações
industriais, investiram-no em ações bancárias, e o banco, ao comprar ações
industriais, o transforma em capital industrial” (Hilferding, 1985: 174). Ou
ainda em renda da terra, royalties, etc. Desta forma, têm
296 Novamente para um estudo de caso ver Fix (2003). 297 Isto talvez se deva a uma diferença de tradução. Infelizmente não tive tempo de
conferir os nomes originais.
251
“lugar uma duplicação do capital fictício. O capital monetário é
ficticiamente transformado no capital de ações bancárias e, com isso,
passa a ser na verdade, propriedade do banco; esse capital bancário é
agora transformado ficticiamente em ações industriais e, na realidade,
em elementos do capital produtivo, meios de produção e força de
trabalho” (Hilferding, 1985: 174-5).
Segue do anterior que o que aparece como autonomização do capital
fictício nada mais é do que a usurpação do comando sobre o capital monetário
por parte do sistema financeiro. A autonomia aparente é o resultado da direção
exercida pelos gestores que se tornam “autônomos” e ao mesmo tempo
declaram-se como “heterônomos” ao executar a “vontade” de acumulação do
capital. Assim, na separação entre capital monetário e capital atuante, a relação
capital adquire corporeidade e passa a assombrar a sociedade que a animou. O
imperativo de acumulação que se tornou uma propriedade do título de capital
fictício assombra os gestores do capital atuante funcionando como um acicate
bramido sobre suas peles. De outro lado, o proprietário do capital fictício aliena-
se da tarefa de exploração realizada pelo capital atuante ao ver em suas ações
apenas a forma na qual se corporifica seu tesouro, sua fonte de renda
despregada dos aspectos mundanos da produção.
Como as ações aparentemente restabelecem a “média dos lucros”, a
percepção de lucratividade também pode desaparecer do ponto de vista do
investimento concreto, abrindo a brecha para a administração do oligopólio. A
lucratividade extraordinária aparece assim no balanço do banco e não no da
empresa.
Sabemos que a acumulação financeira é o processo que permite a
realização da reprodução ampliada do capital. Jogam papel relevante neste
sentido os fundos próprios das empresas298 e os fundos disponibilizados por
agentes financeiros. Os lucros retidos pelas empresas constituem o capital
potencial para investimentos. Este capital garante a base de autonomia de tais
empresas. Entretanto, segue existindo a necessidade de distribuição de
dividendos para os acionistas, pois se espera uma determinada “rentabilidade”
das ações negociadas em bolsa, o capital fictício. É esta contradição que aponta
para o nosso próximo tema: as relações estabelecidas entre os detentores do 298 Ver Labini, 1986.
252
capital fictício e os agentes encarregados da administração da empresa
capitalista concreta.
2. A cisão entre propriedade e comando do capital.
No desenvolvimento histórico da sociedade anônima, a classe burguesa
cristaliza uma divisão entre o capitalista monetário e o empreendedor
empresarial299, entre o proprietário do capital fictício e o agente da acumulação.
Ambos buscam o aumento de seus lucros, mas a divisão entre juros e lucros, ou
dividendos e lucros é uma disputa política, de poder, que se dá no seio da classe,
quando não mais especificamente dentro da assembléia de acionistas das
grandes corporações. O conceito de capital financeiro, na medida em que
aglutina os agentes do capital atuante e os principais acionistas acaba por
confundir ambas as categorias. Faz-se mister retomarmos a discussão de como
se constitui no processo histórico a separação entre propriedade e comando
para podermos entender este processo onde interesses contrários convivem e
disputam a supremacia entre si, compondo, ao mesmo tempo o capital como
sujeito histórico e relação social.
Como discutimos a partir da tese de Paulani (1991), o capital, em
particular ao apresentar-se como dinheiro, é dotado de uma forma obscura na
medida em que compõe uma relação social em movimento. Em sua essência a
conversão do dinheiro em capital monetário o torna valor em valorização, i. é,
capital. Na medida em que age como crédito financeiro para o capital atuante
ele se torna sujeito social cuja “vontade”, aparentemente alienada aos agentes
que lhe servem de suporte, é sua autovalorização. A expressão do ser deste
sujeito se dá através de seus gestores contratados, que lhe servem de suporte e o
personificam (ao mesmo tempo em que aparecem como empregados, velando a
relação) e constróem as redes de relações que permitem a transferência de
valores de outros agentes atuantes no mercado para as empresas de capital
concentrado.
Aqui encontramos a máscara que reveste as ações dos indivíduos que
representam o capital in actu. Sua ação parece automática, mas de fato é
tomada a cada rodada de reprodução do sistema. A consciência dos homens
299 Também é esta a visão de Harvey (1982:49-50).
253
aparece desta forma velada pelo capital que lhes aparece como “piloto
automático” do sistema, afinal ao profissionalizar-se a gestão do capital o
trabalho de tais indivíduos passa a ser garantir a reprodução ampliada deste.
Por outro lado, na medida em que as condicionantes do processo de reprodução
ampliada do capital são sistêmicas, mesmo que o indivíduo tenha consciência
do efeito de seus atos para além da reprodução capitalista, ele sente-se
impotente para mudar e conforma-se com medidas paliativas do tipo aderir a
associações pela “ética empresarial” ou bancando ações de “responsabilidade
social”. A essência do capitalismo segue intacta.
Tornados os suportes “profissionais”, devemos buscar a construção da
cultura capitalista no próprio sujeito alienado desta relação: o capital, que ao
reproduzir sua base material de reprodução social põe-se também como
hegemon para o conjunto das relações sociais. Sua forma e essência são veladas
pelas relações sociais reificadas e transmutadas em seu contrário. Sua
propriedade privada é travestida em sociedade anônima (propriedade social),
seus custos de representação que antes eram benemerência agora aparecem
como “responsabilidade social”. As próprias empresas se apresentam como
“organizações sociais”, mascarando seu objetivo de acumulação privada.
Socialização da propriedade e a “hegemonia do anônimo”:
uma crítica à sociologia aeconômica
A ascensão das Sociedades Anônimas mudou fundamentalmente a
natureza dos direitos, responsabilidades e obrigações ligados à propriedade de
empresas produtivas. Os proprietários nominais perderam muitos de seus
direitos, responsabilidades e obrigações, e isto corresponde a uma mudança do
ponto de vista legal: de um lado as empresas passam a ser vistas como entidades
em si; de outro, passa-se a nomear administradores e não comitês de sócios
para a administração de firmas com problemas financeiros. Outra importante
mudança gerada pela forma Sociedade Anônima é a de que nenhum
proprietário particular reteve qualquer autoridade sobre qualquer trabalhador
em particular, mas toda a autoridade tornou-se mediada pelo grupo de diretores
e gerentes; e, na medida em que a propriedade é uma relação garantida pelo
Estado, como bem salienta Roy “a Sociedade Anônima é uma criação da lei, uma
‘ficção legal’”. [...] “Portanto, a explicação da ascensão da grande sociedade
254
anônima industrial requer a análise das mudanças legais, especialmente da
propriedade societária” (Roy, 1997: 12).
A forma da Sociedade Anônima passa a mediar a relação de classe entre
proprietários e trabalhadores. Fica claro que para Roy não existe uma unidade
de interesses dentro da classe burguesa, ou dos segmentos desta classe, o que
também contribui para explicar o domínio das corporações sobre os pequenos e
médios empresários, tanto econômica quanto legalmente. Assim, as Sociedades
Anônimas constituem-se como instituições sociais e, neste sentido, usam um
conjunto de categorias e práticas que são entendidas ser o “porque as coisas são
feitas” (Roy, 1997: 14), incluem uma matriz de organizações, ou um campo
organizacional, que no agregado constitui uma área reconhecida da vida
institucional, descrevem categorias culturais, um senso de realidade, uma
“idéia”.
Em outras palavras, a organização da produção na forma S. A. constitui
uma concepção de mundo que em termos gramscianos afeta diretamente a
organização do mercado e as relações de produção, estabelecendo hierarquias e
relações auto-alimentadas que acabam por constituir-se num processo de
naturalização e automatização das relações sociais geradas por esta forma. Por
outro lado, o autor tem claro que a distinção entre público e privado é chave
para a discussão aqui presente300.
A principal diferença apontada pelo autor entre a propriedade pública e a
propriedade privada são as estruturas de autoridade, contabilidade,
responsabilidade e poder a elas inerentes. O acesso à informação de uma
empresa pública deveria, ao menos em tese, ser pleno para todos os cidadãos,
enquanto as informações e o poder de mando sobre as ações de uma empresa
privada está limitado a seus acionistas, e mesmo dentre estes aos controladores
majoritários em muitos casos301.
300 Sua perspectiva “é que nós precisamos explicar não apenas como qualquer atividade
particular é pública ou privada, mas como e porque esta distinção é historicamente construída e alterada”. [...] “A divisão entre público e privado é ela mesma uma construção histórica. Categorias econômicas e políticas não são naturais e inevitáveis, nem a divisão do trabalho entre elas” (Roy, 1997: 44).
301 Um aspecto importante no caso da propriedade privada de ações é o fato de haver nas diferentes leis internacionais que regem as sociedades anônimas um divórcio entre a propriedade do direto da pessoa e da coisa que limita o alcance dos processos contra os acionistas. “Os proprietários originalmente tem os diretos de propriedade, mas não todas as responsabilidades” (Roy, 1997: 47).
255
Para Roy o poder institucionaliza a propriedade e reciprocamente, a
propriedade institucionaliza o poder. Como corolário desta concepção, o poder e
a propriedade mudam as instituições. O problema que surge aqui é explicar
como as alterações ocorrem, particularmente quando se afirma que a forma S.
A. implica na renúncia do poder de comando sobre o capital por parte de seu
proprietário. A incapacidade da abordagem de Roy em dar conta do objeto fica
patente quando pretende refutar a abordagem marxista (sempre sem citar ou
fazer referência a qual autor está criticando):
“Na lei, os proprietários são a firma” [...] “Mas sociologicamente, a firma
é uma organização com uma divisão do trabalho. A ideologia capitalista
pode definir os proprietários como a essência enquanto a ideologia
marxista [sic] define os trabalhadores – que criam o valor - como
essência, mas sociologicamente a produção é uma atividade coletiva”
(Roy, 1997: 161-2)302.
A recusa de diálogo com a lógica econômica, faz com que este autor fique
obcecado pela face política do poder e dê as costas à base material onde está
enraizado o problema, decerto econômico, que divide o dito “segmento de classe
societário” em dois: os agentes da acumulação capitalista e os proprietários do
capital dinheiro, que disputam a apropriação do excedente. A base material que
deveria refletir-se no arranjo político acaba sendo explicada, ela mesma, pelo
arranjo político numa clara inversão de causa e efeito.
Na observação do objeto, além disto, há um fator que complica a
observação do fenômeno: muitos indivíduos são membros de ambos os grupos,
como no caso dos capitais empatados na agricultura em que o capitalista se
confunde com o proprietário da terra. É necessário, por uma questão de
método, separar os grupos para procedermos a análise.
O fato de o capital fictício representar idealmente o capital atuante na
forma de ações gera uma confusão que vai além das encontradas nas definições
vulgares de investimento303. Esta confusão entre a forma do capital potencial e o
capital atuante permite ao rentista a obtenção do juro, enquanto ao mesmo
tempo o separa da exploração direta do trabalho. Por outro lado, a mera
302 O diálogo com o texto de Roy por vezes se torna difícil, na medida em que este tem
uma atitude com relação a Marx que varia do desconhecimento ao simples preconceito. 303 Quanto tempo se perde nas aulas de economia vulgar, discutindo se investimento é
comprar um título de capital fictício ou realizar uma nova combinação produtiva?
256
poupança de valores não é suficiente para gerar a remuneração do capital, é
necessário que este se torne capital in actu, ou seja, seja utilizado de forma
produtiva304.
Para Roy (1997) as Sociedades Anônimas socializam a propriedade,
tornando as firmas propriedades de muitos indivíduos, e os proprietários
individuais tornam-se proprietários de partes de diversas firmas. Esta
concepção, todavia, esconde diversos problemas. Em primeiro lugar, os
indivíduos que abriram mão de suas empresas num processo de fusão podem
ver-se ainda como proprietários de uma empresa concreta. De fato, em muitos
casos eles mantiveram-se gerenciando sua unidade produtiva. Entretanto, com
o processo de profissionalização da gerência, esta relação com a propriedade se
aliena. Daí chegarmos a questões como: onde fica o centro de decisão? Como os
pequenos proprietários são alienados de sua autonomia na tomada de decisões,
submetendo-se à assembléia de acionistas? Disto decorre que uma parcela do
capital financeiro detém a capacidade de mando e pode determinar a política a
ser seguida pela empresa como um todo de acordo com seus interesses
estratégicos, que podem ou não coincidir com o dos acionistas minoritários.
Na análise de Hilferding:
“Essa intervenção bancária acelera e facilita um processo que reside no
sentido evolutivo da concentração industrial. Mas o introduz por outros
meios. O resultado da luta competitiva é antecipado. Por um lado é
poupado com isso o aniquilamento inútil e o desperdício de forças
produtivas. Por outro lado, contudo, não resulta, de imediato, aquela
concentração de propriedades que era o resultado da luta competitiva. O
proprietário da outra fábrica não é expropriado. Temos concentração de
estabelecimentos, respectivamente de empresas, sem concentração de
propriedades. Assim como na bolsa há pura concentração de propriedade
sem concentração de empresas, sucede agora na indústria uma
concentração de empresas sem concentração de propriedades, expressão
304 “No sistema acionário já existe o antagonismo com a antiga forma na qual o meio
social de produção se manifesta como propriedade individual; mas a transmutação na forma da ação ainda queda prisioneira, ela mesma, dentro das barreiras capitalistas, por isto, em lugar de superar o antagonismo existente entre o caráter da riqueza enquanto riqueza social e enquanto riqueza privada, só o aperfeiçoa numa figura nova” (Marx, 1984: III/7, 567).
257
patente de que, cada vez mais, a função da propriedade é desligada da
função da produção” (Hilferding, 1985: 194-5).
A eliminação ou não de forças produtivas é um fenômeno apenas
tendencial, que não explica as alterações ocorridas no curto prazo: as empresas
coligadas podem ou não eliminar os setores menos competitivos, bem como os
redundantes, sendo que estas decisões são tomadas caso a caso, não sendo de
antemão generalizáveis, como pretendem Arrighi e Chandler. Outro elemento,
ainda mais importante é que o desligamento da propriedade jurídica do mando
econômico sobre a produção pode ocorrer ou não. Assim, a socialização da
propriedade é condição necessária mas não suficiente para este processo.
Devemos adicionar aqui um segundo eixo de análise pois, ao assumir
uma forma social, a propriedade privada dos meios de produção implica numa
mudança funcional do sistema capitalista que passa a contar com as melhores
cabeças para a gestão dos negócios, eliminando assim o problema da
hereditariedade305.
Marx chama a atenção para a aparência do processo que se constituiria
numa “socialização da propriedade” e apontaria para “uma nova forma de
produção”306. Mas aqui devemos lembrar que Marx ainda observava o início do
processo. Assim, devemos nos perguntar em que se constitui a “ação” e outros
“papeluchos”. Tais títulos não deixam de ser títulos de propriedade privada (e a
administração da propriedade coletiva não é exatamente transparente, nem no
caso do Estado nem no caso das empresas). Neste sentido a apropriação do
capital social via S.A.s ou a “compra do Estado pelos capitalistas”, para usarmos
a fórmula de Marx, na forma da dívida pública, são irmãs siamesas, resultando
na alienação do poder coletivo, seja dos cidadãos, seja dos capitalistas
minoritários, pelos indivíduos que exercem o poder307. A institucionalidade que
305 Expressa pela anedota clássica do “pai rico, filho nobre, neto pobre” que descreve a
trajetória de muitas famílias capitalistas das quais não restou mais que o nome. 306 “Isto constitui a abolição do modo capitalista de produção dentro do próprio modo
capitalista de produção, e portanto, uma contradição que se anula a si mesma, que prima facie se apresenta como mero ponto de transição para uma nova forma de produção.” [...] “Em determinadas esferas estabelece o monopólio, pelo que provoca a intromissão estatal. Reproduz uma nova aristocracia financeira, um novo tipo de parasitas, fundadores e diretores meramente nominais; todo um sistema de fraude e engano com relação a fundações, emissão de ações e negociação destas. É uma produção privada, sem o controle da propriedade privada” (Marx, 1984: III/7, 565).
307 “O movimento autônomo do valor destes títulos de propriedade, não só dos títulos estatais, mas também das ações, confirma a aparência de que constituam um capital real junto ao capital ou ao direito a esse capital, direito do qual possivelmente sejam títulos. Pois se
258
se cria põe e repõe a função capitalista dentro de um determinado caminho de
desenvolvimento.
Assim, a forma do capital acionário irá envolver a disputa de poder entre
pequenos e grandes proprietários de capital. Além da evidente diferença entre
portadores de ações ordinárias (com direito a voto) e preferenciais (com direito
à preferência no recebimento de debêntures distribuídas), verifica-se a diferença
de poder relativo entre os representantes de grandes grupos de ações, bancos e
diretores com participação acionária, vis-à-vis os pequenos investidores. Do
ponto de vista formal, pode-se dizer que a assembléia de acionistas
representaria os capitais de forma equivalente a sua participação ideal sobre a
propriedade “de forma democrática”. Mas, na prática, o que se constata é que
um grupo reduzido de grandes acionistas detém um poder relativo que,
normalmente, sufoca a ação e os interesses dos pequenos investidores308.
Por outro lado, o poder é exercido em nome dessa mesma massa anônima
de pequenos proprietários de capital. Assim, ao avaliar o processo de
acumulação capitalista, Marx afirma que
“em sua condição de veículo consciente desse movimento, o possuidor de
dinheiro se transforma em capitalista. Sua pessoa, ou mais precisamente,
seu bolso, é o ponto de partida e de retorno do dinheiro. O conteúdo
objetivo dessa circulação – a valorização do valor – é seu fim subjetivo, e
só na medida em que a crescente apropriação da riqueza abstrata é o
único motivo impulsor de suas operações, funciona ele como capitalista,
ou seja como capital personificado, dotado de consciência e vontade”
(Marx, 1984: I/1, 186-7).
É justamente esta consciência que se esvai na forma dos depósitos
bancários remunerados e dos fundos de pensão, e em última instância na
propriedade fracionária das ações quando o poder de mando (ou de voto) é
alienado ao proprietário das ações. O que resta deste poder torna-se uma
convertem em mercadorias, cujo preço tem um movimento e uma estabilidade peculiares” (Marx, 1984: III/7, 601-2).
308 Para citarmos um crítico burguês sobre o tema: “o porte da empresa, a passagem do
tempo e a dispersão da propriedade de ações não retiram o direito de voto do acionista. Ao contrário, ele pode votar, mas seu voto, quando a favor da administração, é desnecessário, e quando contra infrutífero. Ou seja, não tem valor” (Galbraith, 1982: 70). Além disto, “a assembléia anual das grandes sociedades anônimas americanas talvez seja o exercício mais aprimorado da ilusão popular” (Galbraith, 1982: 74)
259
propriedade da mercadoria “capital”, do mero título de propriedade, e assim, o
rentista pode horrorizar-se com os escândalos envolvendo as grandes
Sociedades Anônimas sem que sua consciência se sinta envolvida. Ele aliena-se
de sua capacidade de comando e com ela lava a alma das implicações dos atos
realizados em nome da acumulação de seu capital monetário. Todavia, é seu
interesse de “maximização” dos lucros, que justifica as ações empreendidas
pelos agentes gestores do capital na busca do estabelecimento de relações que
possibilitam a concentração máxima de mais-valia nas rendas da empresa.
A socialização do capital, neste sentido, não aponta para nenhuma forma
socialista de propriedade. Ela segmenta o direito sobre uma parcela da mais-
valia extraída pela empresa entre inúmeros proprietários, mas, como capital
fictício, guarda sua identidade básica como capital, valor que se valoriza, em sua
forma mais fetichista. Mais ainda, ao socializar uma parcela da mais-valia
globalmente extraída entre os membros das classes médias e inclusive
trabalhadoras, conquista corações e mentes para a ideologia capitalista de
apropriação privada, faz residir numa propriedade difusa e emasculada, estéril
– uma vez que não detém o poder decisório real – a base da concepção de
mundo que legitima as relações capitalistas de produção e exploração. O capital
e a concepção de mundo a ele subjacente aparecem de fato como interesse dos
próprios indivíduos que são explorados no processo de reprodução social do
valor e de seu modo de produção numa inversão que dota o capital de um novo
fetiche. O indivíduo que é explorado se vê na condição de explorador rentista e
reforça a lógica de sua própria exploração. Ao corporificar-se em sua forma
social, o capital fracionário faz parecer ao indivíduo que não dispõe dele em
volume suficiente para viver de seus juros, que está “participando da
distribuição da riqueza”, quando em verdade está contribuindo para a
reprodução de sua própria miséria.
Neste sentido, a hegemonia capitalista parece perder seu caráter burguês,
se descaracteriza e se mascara: a dominação é tratada como “culpa do mercado”,
onde os proprietários do capital perdem a identidade e se tornam, como as
sociedades anônimas nas quais se consubstanciam os capitais fictícios, em entes
anônimos. O capital, como Odisseu, apresenta-se à humanidade como
260
“ninguém”, e esta, tal qual o ciclope cegado pelo navegante, urra aos céus:
Ninguém fez isto! Ninguém é o culpado!309
Os pequenos capitais monetários, oriundos das poupanças de todas as
classes que compõe a sociedade, são hegemonizados dentro do processo de
acumulação pelo capital concentrado e centralizado e apresentados como os
portadores da vontade e beneficiários do sistema. Para o conjunto da sociedade,
sua heteronomia (oriunda da dispersão) é apresentada como hegemonia (o
conjunto do capital social), como vontade autônoma, ao passo que as decisões
dos agentes gestores e principais beneficiários do comando sobre o capital (os
grandes executivos, proprietários e gestores de massas concentradas de capital),
são apresentadas como decisões heterônomas, justificadas pelos “imperativos
de mercado”. Como se estas não fossem em si decisões políticas, elaboradas e
executadas por estes últimos atores e por seus representantes junto ao Estado.
A ilusão propagada pelo sistema poderia nos levar a pensar que todos os
detentores de poupança, que recebem algum tipo de rendimento por conta de
suas reservas monetárias consubstanciadas em capital fictício por obra dos
bancos, se transformaram em capitalistas310. Mas é esta a confusão que permite
ao capital hegemon aparecer como o centro autônomo do sistema. O capital, que
se apresenta como relação alienada de seus suportes, age e faz agir a
humanidade no sentido de garantir e perpetuar tanto a reprodução ampliada do
valor, como a reprodução das relações de produção que o sustentam, como
também a produção de novas relações que ampliem o controle deste sobre a
vida social. A ínfima minoria dos gestores, escondida atrás do capital disperso,
exerce sua hegemonia sem que seja nomeada e ainda aparentando “trabalhar
em prol dos acionistas”.
309 Esta imagem me foi sugerida por minha esposa, a socióloga Milena Bendazzoli, que
estava lendo o clássico de Homero quando lhe apresentei a idéia original. 310 Esta é a confusão de Roy ao analisar o problema, pois para este “...a separação da
propriedade do controle se dá às expensas dos proprietários igualados, especialmente os pequenos” (Roy, 1997: 270-1). “Enquanto a propriedade foi dispersada pela socialização, o controle foi concentrado” nas mãos das instituições do capital socializado. “A corporação em si adquiriu muitos dos direitos legais, prerrogativas e responsabilidades formalmente detidas pelos proprietários individuais, mas isto meramente criou um novo quadro de relações que os indivíduos tem entre si. Embora a lei trate a corporação como uma entidade legal em si, separada dos indivíduos naturais que a detém, sociologicamente, a corporação descreve a estrutura das relações entre indivíduos. Reificando a corporação pode-se mistificar o relacionamento entre indivíduos e o modo [pelo qual] os interesses individuais são estruturados, mas não pode negar estas realidades. Socializando-se o capital, socializou-se a classe capitalista, solidificando esta ao mesmo tempo em que a dispersava” (Roy, 1997: 271).
261
Assim, ao tratar a fração de classe como classe311 e confundir o pequeno
poupador com o grande capitalista e os gestores envolvido no processo, Roy
perde por um lado o poder explicativo do processo de aliança entre “as finanças
[no caso os bancos] e a indústria” que em sua visão “são ‘incorporadas’ à classe
corporada”, e aceita como essência do sistema sua aparência. Como
complemento, devemos nos perguntar se a classe corporada de Roy, não é
apenas uma versão envergonhada da aristocracia financeira da tradição
marxista? Nos parece mais fácil para fins de análise, portanto, entender o bloco
hegemônico como alianças entre as frações de classe capitalistas para evitar
confundir alhos com bugalhos e não incluir no núcleo dirigente o pequeno
poupador hegemonizado – e tantas vezes espoliado - no processo.
Todavia, também a idéia de “aristocracia financeira” pode confundir o
modo pelo qual esta parcela dos proprietários constrói o seu domínio sobre as
pequenas poupanças. O estabelecimento do capital fictício como forma de
reserva social da riqueza separa a atividade própria capitalista da renda do
capital monetário, criando o que foi chamado pelos autores da teoria clássica do
imperialismo de “classe rentista”312. A categoria de rentier, no entanto, borra as
fronteiras entre os capitais grandes e pequenos, irmanando-os no fetiche da
propriedade acionária. Como o poder não se radica no vácuo, novamente
acabamos encontrando em meio ao processo de valorização do valor o próprio
capital, que aparece como sujeito autônomo, e parece comandar a relação da
qual também aparentemente se alienam seus suportes.
A forma da Sociedade Anônima ou corporação, permite deste modo a
cisão entre a titularidade do capital e seu comando. Institui-se uma “divisão
social do trabalho burguês” nos dizeres de Hilferding e Lênin. Esta divisão,
entretanto tem implicações mais profundas. A profissionalização da gestão do
capital permite por um lado um ganho de eficiência na direção ao afastar
311 Para Roy, “deste modo o processo concreto pelo qual a corporação foi criada foi um
processo de formação de classe. A criação das corporações foi cumprida pela atividade coletiva e por seu turno solidificou a classe corporativa” (Roy, 1997: 272),
312 “É próprio do capitalismo em geral separar a propriedade do capital da sua aplicação à produção, separar o capital-dinheiro do industrial ou produtivo, separar o rentier, que vive apenas dos rendimentos do capital-dinheiro, do empresário e de todas as pessoas que participam diretamente na gestão do capital. O Imperialismo, ou domínio do capital financeiro, é o capitalismo no seu grau superior, em que essa separação adquire proporções imensas. O predomínio do capital financeiro sobre todas as demais formas do capital implica o predomínio do rentier e da oligarquia financeira, a situação destacada de uns quantos Estados de ‘poder’ financeiro em relação a todos os restantes” (Lênin, 1982: 619).
262
titulares da propriedade do capital que não se demonstrem bons gestores do
capital sem que a maldição de Lafargue se consubstancie em sua falência313. Por
outro lado, cria-se uma camada de gestores profissionais, recrutados não apenas
em meio à burguesia, dotando o sistema de uma permeabilidade social que
reforça a imagem vendida pela democracia de mercado como um sistema onde
os indivíduos que demonstram talento, tem oportunidade314.
A Sociedade Anônima libera de forma constante “o capitalista industrial
de suas funções de empresário industrial. Para o capitalista, essa alteração de
função atribui ao capital investido na Sociedade Anônima a função de puro
capital monetário” (Hilferding, 1985: 111). Além disto, devemos ter em mente
que a cooptação dos setores da pequena burguesia e mesmo do proletariado se
dá através da construção de um regime de previdência privado que retira dos
salários a obrigação de manutenção do trabalhador na velhice e lança, como
reserva disponível de capital, o pecúlio coletivo dos trabalhadores na ciranda
financeira, na forma dos fundos de pensão, cujos dirigentes cumprem as
mesmas funções dos gestores do grande capital bancário.
Não devemos perder de vista que é neste centro diretivo, crescentemente
profissionalizado que reside o comando e a criação das novas combinações
produtivas. É dentro da empresa, e em especial das grandes administradoras de
fundos privados e Sociedades Anônimas contemporâneas que se reproduz,
elabora e constrói a concepção de mundo que domina a sociedade. “Os poucos
intermediários profissionais da política e da ideologia” de Gramsci são
ativamente dirigidos pelos profissionais da reprodução ampliada do capital que
submetem parcelas ainda crescentes da humanidade e da vida humana a seu
domínio, e portanto, ao domínio do capital hegemon.
313 Entre os deveres do capitalista impostos pelo “Deus Capital” encontramos que: “1.
Muitos são os chamados e poucos os eleitos; todo dia reduzo o número dos meus eleitos; 2. Dou-me aos capitalistas e partilho-me entre eles; cada eleito recebe em depósito uma parcela do Capital único; e só conserva o seu gozo se a aumentar, se a fizer reproduzir-se. O capital retira-se das mãos daquele que não cumpre a sua lei” (Lafargue, 1990:178). Neste sentido, a profissionalização da administração possibilita a transferência da tarefa de manutenção do acúmulo de capital para terceiros.
314 Podemos ver em Mills (1956), e no mais recente Brooks (2000), como na verdade esta permeabilidade é mais aparente do que real, na medida em que tais gestores dificilmente são recrutados fora de um grupo circunscrito pela elite da sociedade.
263
O capital atuante
O que caracteriza o capitalista como a personificação do capital atuante é
sua ação no sentido de garantir a extração e apropriação do trabalho alheio315.
Não existe capital abstrato sem a ação do capital concreto. Assim,
“certo nível da produção capitalista torna necessário que o capitalista
possa dedicar todo o tempo que funciona como tal, isto é, como capital
personificado, à apropriação e portanto ao controle do trabalho alheio e à
venda dos produtos deste trabalho.” (Marx, 1984: I/1, 374).
Esta função social do capitalista é que será “delegada” para uma classe de
gestores profissionais com o desenvolvimento do capital social das Sociedades
Anônimas. Este processo é facilitado pelo fato de que, com a complexificação
das funções de gestão capitalista, cada vez mais as atividades capitalistas
aparecem como trabalho. Desta forma, se leva a exploração além do universo do
trabalho “de modo que o trabalho de explorar e o trabalho explorado são
idênticos ambos enquanto trabalho”. (Marx, 1984: III/7:489). Estes gestores
comporão, eles mesmos, parte da classe capitalista contemporânea,
independente de terem herdado capitais para alavancar suas carreiras, como
discutiremos adiante. O importante a frisar aqui é que
“Dentro do processo de produção, o capital se converte em mando sobre
o trabalho, isto é, sobre a força de trabalho que se põe em movimento a
si mesma, ou o próprio operário. O capital personificado, o capitalista,
cuida de que o operário execute seu trabalho como é devido e com o grau
de intensidade adequado” (Marx, 1984: I/1, 376-7).
315 [O Capital] “só se pode conceber como movimento e não como estática. Os que
consideram a autonomização do valor como mera abstração esquecem que o movimento do capital industrial é esta abstração in actu” (Marx, 1984: II/4:123).
“Os movimentos do capital aparecem como atos do capitalista industrial individual ao operar como comprador de mercadorias e de trabalho, como vendedor de mercadorias e como capitalista produtivo e assim servir, com sua atividade, de mediador do ciclo. Se o valor social do capital sofre uma revolução de valor pode ocorrer que seu capital individual sucumba ante ela e desapareça por não poder cumprir com as condições deste movimento de valor. Quanto mais agudas e freqüentes se tornem as revoluções de valor, tanto mais se impõe, atuando com a violência de um processo natural dos elementos, o movimento automático do valor autonomizado frente à previsão e ao cálculo do capitalista individual, tanto mais se submete o curso da produção normal à especulação anormal, tanto mais cresce o risco para a existência dos capitais individuais. Estas revoluções periódicas do valor confirmam pois o que se pretende que refutem: a autonomização que experimenta o valor como capital e que mantém e agudiza mediante seu movimento” (Grifo nosso, Marx, 1984: II/4:124).
264
Fica claro em Marx como o capital converte-se numa relação de poder: o
capital é “mando sobre o trabalho” e, por outro lado, uma vez separada a
propriedade do comando sobre o capital, serão os gerentes e prepostos do
capital que realizarão esta tarefa. O poder de mando, e de influenciar as
organizações torna-se neste sentido uma tarefa para a qual os indivíduos
passam a ser educados e treinados. Não se esta mais em termos sociais diante
da figura lafarguiana do “eleito do capital”. A administração se torna
“científica”, a gestão “técnica”, a política “profissional”. Ao contrário da
organização feudal, na qual a justificação do poder emanava de Deus, no
sistema capitalista será o “mérito” que aparentemente ungirá o eleito do capital,
o indivíduo mais “apto” ao comando socialmente visto como necessário316.
A substituição do capitalista original por um preposto não elimina o
caráter capitalista do processo. Antes transforma este indivíduo em agente do
capital e, ao apoderar-se de uma parcela ainda que diminuta da mais-valia como
“prêmio”, tal indivíduo torna-se o próprio capital em movimento.
Consubstanciando em si a relação de dominação entre os homens e erigindo a
extração de mais-valia como teleologia de vida. Neste sentido, o Capital “escolhe
seus eleitos” entre aqueles que se demonstram mais capazes em reproduzi-lo e
acumulá-lo. A crescente complexidade das necessidades gerenciais gera a
necessidade de alteração qualitativa desta gerência, e neste caso a função
desempenhada “faz o homem”317.
Esta função social, entretanto, passa a ganhar a forma de trabalho,
embora este trabalho não agregue valor no sentido de objetivação de trabalho
humano na mercadoria produzida por outros318. A realização das funções do
316 “Com a cooperação de muitos assalariados, o mando do capital se converte no
requisito para a execução do próprio processo de trabalho, numa verdadeira condição de produção. As ordens do capitalista no campo da produção se tornam, atualmente, tão indispensáveis como as ordens do general no campo de batalha” (Marx, 1984: I/2, 402).
317 “Esta função diretiva, vigilante e mediadora se converte em função do capital nem bem o trabalho que lhe está submetido se torna cooperativo. Enquanto função específica do capital, a função diretiva assume características específicas” (Marx, 1984: I/2, 402).
“Na sociedade moderna, esse poder dos reis asiáticos e egípcios ou dos teocratas etruscos, etc., é conferido ao capitalista, faça este sua entrada em cena como capitalista isolado ou – no caso das sociedades anônimas – como capitalista combinado” (Marx, 1984: I/2, 406).
318 “Nas fábricas, por exemplo, compradores e vendedores são amiúde pessoas diferentes. Na produção de mercadorias a circulação é tão necessária como a produção mesma, e em conseqüência os agentes da circulação são tão necessários como os agentes de produção. O processo de reprodução inclui ambas as funções do capital o que quer dizer que também encerra a necessidade de que estas funções estejam representadas, seja pelo capitalista, seja por assalariados, agentes do mesmo. Mas isto não é motivo para confundir os agentes da circulação
265
capital por assalariados faz parecer que os capitalistas realizam funções
imprescindíveis ao processo produtivo e confunde as atividades necessárias
para a realização do capital (como a compra e a venda de mercadorias) com as
atividades próprias do planejamento e direção produtivas319. É necessário,
porém, ir além destas aparências para discutir a gerência moderna. Não se trata
simplesmente de um bom vendedor que ganha comissões pela venda de um lote
de mercadorias, mas de indivíduos que personificam o capital em sua acepção
inteira, como ordenadores e dirigentes da produção em sua forma social e da
reprodução do capital em sua forma ampliada. O capital concentrado na forma
das Sociedades Anônimas parece ganhar autonomia frente à sociedade e exercer
um poder fantasmagórico sobre os indivíduos que o criaram, como uma força
social alienada:
“Vimos que a crescente acumulação de capital implica uma crescente
concentração do mesmo. Assim, cresce o poderio do capital, a
autonomização das condições sociais da produção, personificadas no
capitalista, com respeito aos produtores reais. O capital se apresenta
cada vez mais como um poder social cujo funcionário é o capitalista e
que já não guarda nenhuma relação possível com o que possa criar o
trabalho de um indivíduo isolado, mas como uma força social alienada,
autonomizada, que se opõe enquanto coisa à sociedade, e enquanto
poder do capitalista através desta coisa. A contradição entre o poder
social geral em que se converte o capital, e o poder privado dos
capitalistas individuais sobre estas condições sociais de produção se
desenvolve de maneira cada vez mais clamorosa e implica a dissolução
dessa relação, ao implicar ao mesmo tempo a transformação das
condições de produção para convertê-las em condições de produção
gerais, coletivas, sociais” (Grifo nosso, Marx, 1984: III/6:338-9).
com os agentes da produção, assim como tão pouco o é confundir as funções de capital mercantil e capital monetário com as de capital produtivo” (Marx, 1984:II/4, 150).
319 “O volume de seu negócio lhes permite [aos capitalistas] e os obriga a descarregar suas funções em outros. Em mais de um negócio se paga a compradores e vendedores com uma participação percentual nos lucros” (Marx, 1984:II/4, 150). E também, “assim como o tempo de circulação do capital constitui um lapso necessário de seu tempo de reprodução, assim o tempo durante o qual o capitalista compra e vende, se move no mercado, constitui um lapso necessário de seu tempo de função como capitalista, isto é, como capital personificado. Constitui uma parte do tempo que ele dedica aos negócios” (Marx, 1984:II/4, 153). Não importando quem exerça a função e, portanto, personifique o capital.
266
Desta dicotomia entre poder do capital e função do capitalista deriva o
anonimato que anima o poder do capital como relação externa e estranha aos
indivíduos320. Ao transformar o capitalista mesmo num funcionário
encarregado de gerir a forma de reprodução ampliada, o sistema
aparentemente aliena a vontade de seu próprio condutor, naturalizando-a
como coisa externa ao indivíduo e socialmente determinada. O capitalista que
exerce o poder na relação de domínio que anima a produção capitalista se vê
num emaranhado jogo ideológico de espelhos que dá a ele, o gestor capitalista,
ares de “trabalhador criativo”, na expressão schumpeteriana, ao realizar as
combinações produtivas necessárias à realização de novos empreendimentos.
Ao mesmo tempo, ao disciplinar-se a retirada de pró-labores e participações nos
lucros de forma limitada ao “fausto capitalista”, os dirigentes passam a ver-se
como “assalariados”321.
Este será também o indivíduo “sem alma”, encarregado da execução da
lógica acumulativa sem preocupar-se com os indivíduos envolvidos. Como diz
Noam Chomsky, no documentário The Corporation “como indivíduos os CEOs
podem ser bons camaradas, como suporte das corporações são necessariamente
monstros”. E monstros que atribuem seu comportamento a uma razão externa a
suas pessoas. Ou seja, mesmo as decisões de tais indivíduos como capitalistas
aparecem como alienadas. O capital, como sujeito autonomizado, parece impor-
se também aqui a seus suportes, pois como afirma Sam Gibara, ex-CEO da
Goodyear, no mesmo documentário: “as suas prioridades podem ser outras
como pessoa, mas como CEO não pode fazer o que quer. Isto é conseqüência do
capitalismo moderno”.
Parece ocorrer deste modo uma divisão do trabalho social dentro da
própria burguesia, com uma “obsolescência” do capitalista tradicional através
da profissionalização de suas funções. Obsolescência e superfluidade aparentes,
320 “As empresas por ações em geral – desenvolvidas com o sistema creditício -, tem a
tendência de separar cada vez mais este trabalho administrativo, enquanto função da posse do capital, seja próprio ou emprestado, exatamente da mesma maneira que, com o desenvolvimento da sociedade burguesa, as funções judiciais e administrativas se separam da posse da terra, da qual constituíam atributos na época feudal” (Marx, 1984: III/7:496).
321 “O capitalista industrial, enquanto diferenciado do proprietário do capital, não aparece como capital atuante, mas como funcionário incluído prescindindo-se do capital, como simples agente do processo de trabalho em geral, como trabalhador, e mais exatamente como trabalhador assalariado” (Marx, 1984: III/7:488).
267
pois é de sua função no processo produtivo que brota seu poder e a reprodução
social da forma capitalista de produção322.
“As funções especiais que deve desempenhar o capitalista enquanto tal, e
que lhe correspondem precisamente em contraposição aos operários, se
apresentam como meras funções laborais. Este capitalista cria mais-valia
não porque trabalhe como capitalista, mas porque, prescindindo de sua
condição de capitalista, também trabalha” (Marx, 1984: III/7:489).
Assim, deste jogo de espelhos através do qual o capitalista se legitima
como produtor surge o reconhecimento social da função do capitalista, e da
divisão de tarefas entre os membros mais aptos da elite capitalista surge um
sistema de meritocracia que permite o recrutamento dos elementos mais aptos
para a gestão do capital nas fileiras das classes “superiores” da sociedade323.
Eventualmente o capitalista pode até estar exercendo de fato um trabalho
produtivo na coordenação dos diversos trabalhos324, o que reforça esta sensação
de que, de fato, trabalha.
Finalmente, citando Aristóteles, Marx abre o espaço para que os gerentes
ocupem seus postos e possam exercer o comando delegado inicialmente por
seus amos, e reposto em novos patamares pelo capital tornado autônomo nas
Sociedades Anônimas. Esta delegação acaba, nos dias de hoje por estabelecer-se
na total separação de funções entre propriedade e comando do capital. “A
própria produção capitalista faz com que o trabalho de direção superior,
totalmente separado da propriedade capitalista, ande perambulando pelas ruas”
(Marx, 1984: III/7:494). A mesma separação é vista entre gerentes do capital
industrial e do capital bancário, pois
“Dizer que este trabalho é necessário enquanto trabalho capitalista,
enquanto função do capitalista, não significa senão que o vulgo não pode
322 “Concentração de capitais: com esta forma extrema de antagonismo, a produção se
vê transformada em produção social, ainda que sob um aspecto desfigurado trabalho social e no processo concreto de trabalho, emprego coletivo dos instrumentos de produção. Enquanto funcionários do processo que acelera ao mesmo tempo esta produção social e o desenvolvimento das forças produtivas, os capitalistas se tornam supérfluos na medida em que, por via da sociedade, se apropriam do lucro e em que, como proprietários dessas riquezas sociais, adotam a figura de comandantes do trabalho social” (Marx, 1984: III/6, 316-7 rodapé.).
323 Novamente nos referimos a Mills (1956) e Brooks (2000). 324 “Em todos aqueles trabalhos nos quais cooperam muitos indivíduos, a coesão e
unidade do processo se representam necessariamente numa vontade dirigente, e em funções que não afetam aos trabalhos parciais mas à atividade global desse lugar de trabalho, como é o caso de um maestro numa orquestra. Este é um trabalho produtivo que deve efetuar-se em qualquer modo de produção combinado” (Marx, 1984: III/7:490).
268
imaginar as formas desenvolvidas no seio do modo capitalista de
produção, separadas e liberadas de seu caráter capitalista antagônico.
Frente ao capitalista financeiro, o capitalista industrial é um trabalhador,
mas trabalhador como capitalista, ou seja, como explorador do trabalho
alheio” (Marx, 1984: III/7:495).
Marx percebe que a Sociedade Anônima aprofunda este processo, mas
acaba por idealizá-la como um caminho possível para a superação das relações
calcadas na propriedade privada dos meios de produção:
“Nas sociedades por ações, a função está separada da propriedade do
capital, e em conseqüência também está totalmente separada da
propriedade dos meios de produção e do plustrabalho. Este resultado do
desenvolvimento supremo da produção capitalista é um ponto de
transição necessário para a reconversão do capital em propriedade dos
produtores, mas já não como a propriedade privada de produtores
isolados, mas como propriedade deles enquanto produtores associados,
como propriedade direta da sociedade. Por outro lado é um ponto de
transição para a transformação das funções que no processo de
reprodução têm estado vinculadas até o presente com a propriedade do
capital, em meras funções dos produtores associados, em funções
sociais” (Marx, 1984: III/7, 563).
Após século e meio de “propriedade socializada”, entretanto, os acicates
continuam sendo premidos sobre trabalhadores do mundo todo, e em alguns
casos por capitais que representam a previdência social dos próprios
trabalhadores. A socialização da propriedade em sua forma capitalista
objetivamente mostra-se uma condição necessária, mas a reprodução da
hegemonia da forma capital impede que esta cumpra sua função de superação
do modo de produção. Destarte, a forma alienada da direção deste capital
permite ao manager não só a apropriação para si de uma parcela maior da
massa de mais-valia e sua conversão num burguês, como também o uso político
da massa total de capital social colocada sob sua direção.
O comando concreto da organização social da produção, a empresa
capitalista, e o sistema de remuneração – que estudaremos adiante –
consubstanciam neste sentido a alma do capitalista. De um lado, os gerentes são
eles próprios, o capital in actu. De outro, sua remuneração é composta por
269
mais-valia extraída de terceiros, lucro capitalista resultante de sua atividade
diária de exploração da mão-de-obra colocada sob seu jugo. Mesmo que
eventualmente oriundo de uma “classe média”, o indivíduo torna-se membro da
classe capitalista ao ingressar na alta gerência. Neste sentido vale o credo
lafarguiano: “muitos serão os chamados, mas nem todos escolhidos”. Além
disto, a disputa pelo lugar ao sol dentro de uma grande empresa de capital social
torna uma carreira de executivo uma atividade eminentemente política.
Em sua análise sobre o tema, Baran & Sweezy (1974) partem de um “tipo
ideal” de S.A. cujas características destacadas são:
“1) O controle fica na mão da administração, ou seja, a junta de diretores
e os principais funcionários da administração” (Baran & Sweezy, 1974:
25).
“2) A administração se faz por um grupo que se auto-perpetua. A
responsabilidade para com os acionistas é, em todos os aspectos, letra
morta. Cada geração de administradores recruta seus sucessores,
treinando-os, encaminhando-os e promovendo-os de acordo com os
padrões e valores vigentes” (Baran & Sweezy, 1974: 26).
“3) Cada empresa visa atingir, e normalmente atinge, a independência
financeira através da criação interna de fundos que permanecem à
disposição da administração”, o que possibilita a estas empresas evitar “o
tipo de sujeição ao controle financeiro que foi tão comum ao mundo das
grandes empresas há 50 anos” (no caso a década de 1910) (Baran &
Sweezy, 1974: 26).
Os autores lembram, citando Mills (1956) que não é indiferente ao
indivíduo deter uma grande fortuna para ascender dentro de uma Sociedade
Anônima, mas que o fundamento das fortunas se tornam as próprias empresas,
que se afastam na medida do possível do controle exercido pelos grandes grupos
financeiros325.
325 “Uma serie de fatos afrouxou ou rompeu os laços que ligavam antigamente os
grandes grupos de interesses. O poder do banqueiro investidor baseava-se na necessidade urgente que tinham as primeiras empresas gigantes, na época da fundação e nas primeiras crises de crescimento, de financiamento externo. Mais tarde, essa necessidade declinou de importância e desapareceu totalmente, à medida que as empresas, colhendo ricos lucros monopolistas, puderam atender suas necessidade financeiras com fundos criados internamente” (Baran & Sweezy, 1974: 27).
270
Vimos no primeiro capítulo que as relações estabelecidas entre as
empresas e o restante da sociedade são também compostas por relações
políticas por excelência. Mas na mesma medida em que as empresas são pólos
de criação de cultura, e constituídas por estruturas burocráticas privadas, elas
também são um espaço de disputa pelo poder. Por exemplo, o objetivo de
crescer dentro da empresa para um jovem executivo está relacionado ao
crescimento de sua empresa, daí a ligação direta pretendida pelos
psicologistas326. E esta busca é contínua, pois mesmo após ter atingido a
presidência de uma companhia, ele tem em mente que “a situação, o prestígio e
o poder no mundo dos negócios não são atributos pessoais, já que advêm da
situação, prestígio e poder da companhia, que os transmite ao dirigente
individual, segundo a sua posição na empresa” (Baran & Sweezy, 1974: 47). A
concepção capitalista mais geral orienta o comportamento individual e reforça,
desta forma o mesmo comportamento. A práxis repõem-se como uma mó que
gira sob si mesma, um aparente moto-contínuo, perdida a compreensão de onde
surgiu o fiat original.
A disputa interna gera desta forma resultados externos, seja na busca de
novas oportunidades de investimento, seja através de políticas e estratégias de
alianças ou pelo rompimento destas. Assim,
“os objetivos primordiais de uma política empresarial – que são ao
mesmo tempo e inevitavelmente os objetivos pessoais dos dirigentes da
empresa – são, portanto, a força (crédito e valor das ações), a taxa de
crescimento e o tamanho” (Baran & Sweezy, 1974: 48).
E a forma como isto se dá é a busca incessante do lucro e do
“posicionamento” estratégico da empresa de forma a obter lucros monopolistas.
A elaboração de políticas e objetivos claros por parte das empresas, e portanto
dos indivíduos que as gerem, representam o exercício de fato do poder da massa
de capitais disponíveis da empresa em todas as suas expressões. De fato, os
boards dirigentes das grandes corporações consubstanciam o papel de comitê 326 “Resumindo: os negócios são um sistema ordenado que seleciona e recompensa
segundo critérios bem compreendidos. O princípio orientador é aproximar-se o máximo possível da cúpula dentro de uma empresa que esteja o mais alto possível entre as empresas. Daí a necessidade de lucros máximos. Daí a necessidade de dedicar os lucros obtidos ao fortalecimento da posição financeira e da intensificação do crescimento. Tais coisas se tornam as finalidades e valores subjetivos do mundo dos negócios, porque são as exigências objetivas do sistema. O caráter deste determina a psicologia de seus membros, não o inverso” (Baran & Sweezy, 1974: 50-1).
271
executivo da empresa capitalista – ou seja, são o que dizem ser, a aparência
assalariada não pode esconder sua função de mando, não trai sua essência de
capital atuante. Neste caso é a função, aliada aos rendimentos, que caracterizam
a classe ou a fração de classe capitalista, como bem percebem Baran e Sweezy
(1974)327, Mills (1956), Galbraith (1982) e mais recentemente reafirma Brooks
(2000).
Baran & Sweezy reconhecem que a separação entre a propriedade e o
controle desta é uma realidade, mas ressaltam que
“não há justificativa para concluir-se disso que a administração em geral
está divorciada da propriedade em geral. Pelo contrário, os dirigentes
estão entre os maiores donos; e, devido às posições estratégicas que
ocupam, funcionam como os protetores e os porta-vozes de toda a
propriedade em grande escala. Longe de serem uma classe à parte,
constituem na realidade o principal escalão da classe dos proprietários”
(Baran & Sweezy, 1974: 44).
Assim, a forma societária coloca à disposição de elementos altamente
treinados para a execução das funções de gerenciamento da acumulação
capitalista recursos para a execução de novos tipos de ações tanto na disputa
pelo mercado como pela ampliação das relações humanas submetidas a este.
Além disto, na medida que não se trata diretamente do dinheiro dos próprios
administradores o que está envolvido, a ação destes passa a ser muito mais
agressiva, tomando riscos que de outra forma talvez evitassem. Devemos ainda
somar a isto que “[...] a fácil fiscalização e a supressão da limitação do crédito
sobre o capital circulante, dão à sociedade anônima a possibilidade de utilizar o
crédito de modo muito mais intenso e, com isso, lhe conferem uma nova
superioridade na luta pelo mercado” (Hilferding, 1985: 128).
Em decorrência do exposto, estratégias como o dumping passam a fazer
sentido para as sociedades anônimas, pois do ponto de vista dos controladores
não há um compromisso real com a distribuição de dividendos. Podem-se
passar períodos de guerra comercial ativa, onde ocorre a desvalorização das
327 “A verdade é que a camada administrativa é a parte mais ativa e influente da classe
dos proprietários. Todos os estudos mostram que seus membros são recrutados principalmente das camadas média e superior da estrutura de classes; confundem-se por vezes com o que C. Wright Mills chama de ‘os muito ricos’; com poucas e insignificantes exceções são homens ricos, independentemente das grandes rendas e amplos privilégios que obtêm de suas ligações empresariais” (Baran & Sweezy, 1974: 43).
272
ações, sem que se quebre a empresa. Também é óbvio que a assimetria de
informações pode levar a que os bancos ou alguns diretores conduzam políticas
de desvalorização das ações de forma obscura buscando a aquisição do capital
fictício antes de uma posterior viragem na política da empresa. Neste sentido,
“a administração do capital alheio irá revelar um caráter mais enérgico,
mais corajoso, racional e isento de considerações pessoais,
principalmente quando semelhante política encontra, em geral, o
consentimento dos grandes acionistas soberanos, capazes de suportar a
limitação passageira de seu lucro, porquanto também embolsarão, no
fim, com a alta das cotações, os frutos dos sacrifícios feitos pelos
pequenos acionistas, que há muito já alienaram igualmente a sua
propriedade” (Hilferding, 1985: 130).
Tais políticas são desta forma uma demonstração do processo pelo qual,
os pequenos capitais são controlados pelos acionistas majoritários e diretorias,
em processos nos quais o grande capital deglute o pequeno ou submete sua ação
a uma lógica heterônoma.
O processo histórico no qual se constitui a administração
profissionalizada, como vimos, se faz por inspiração do capital bancário, que se
apresenta como representante das reservas de capital monetário da sociedade
como um todo. A separação entre poder e comando se dá também como reflexo
da escala do negócio.
O impulso a atuar ativamente na criação de novos cartéis e empresas
societárias se dá também pela própria aversão a risco do capital bancário. É
mais confiável para o capital bancário, como representante do capital social, um
administrador profissional à testa do negócio do que os “cavaleiros da sorte” que
comandavam os empreendimentos no século XIX. O próprio sistema capitalista
gera, desta forma, uma transformação na classe capitalista, deslocando o
empreendedor tradicional para uma figura acessória, como capitalista
monetário, ou reconfigurando sua função no conselho de direção das grandes
corporações onde deixa de desempenhar um poder despótico puro como o que
exercia na pequena empresa.
O capital bancário e o capital industrial parecem irmanar-se na figura do
capital financeiro, ainda que interna corporis continue uma divisão clara de
suas tarefas. Por outro lado, do ponto de vista da grande companhia,
273
encontraremos duas diferenças fundamentais entre a ação do capitalista
individual e a da grande empresa: “a grande companhia tem um horizonte
temporal maior do que o capitalista individual, e é um calculador mais racional”
(Baran & Sweezy, 1974: 56) e é virtualmente “imortal” como destaca Galbraith
(1982). Neste sentido, a administração conjunta do capital atuante pelos
interesses de “comitês” formados por gestores oriundos de diferentes setores da
burguesia, “estabiliza” a ação do capital socializado e concentrado; tempera o
ímpeto do pequeno empresário e dota, ao mesmo tempo, o grande capital de
uma visão mais geral do mercado ao constituir o capitalista coletivo.
A racionalização administrativa “cria certas atitudes características, e
certos modos de comportamento”, entre os quais se destacam “(1) a fuga
sistemática aos riscos; [e] (2) uma atitude de tolerância para com os outros
membros do mundo empresarial” (Baran & Sweezy, 1974: 56)328. Assim, a
formação dos monopólios, passa a configurar os mercados em posições onde
passa a predominar o equilíbrio de forças e interesses interligados que torna,
paulatinamente, a negociação uma arma preferencial à disputa aberta – embora
esta não deixe de ocorrer. Assim, como o imperialismo se estabiliza em torno de
uma potência dominante no campo ocidental no pós-guerra, o mercado das
diferentes indústrias se estabiliza dentro de determinadas regras consensuais de
disputa econômica pelo excedente, pelas quais os grandes grupos oligopolistas
exercem seu poder de forma ordenada.
Vimos que os indivíduos que efetivamente conduzem estas ações ou são
por nascimento, ou passam a ser por cooptação, membros efetivos da classe
capitalista. E são capitalistas, antes de qualquer coisa, por serem o capital em
movimento, os efetivos gestores do capital societário. Mas além disto o sistema
de remuneração dos gestores do capital irá cooptar o indivíduo em definitivo
para a classe dos proprietários.
328 Com relação aos riscos, Baran e Sweezy apontam que as grandes empresas não eram
dadas a inovações (comportamento que se altera posteriormente). Esperavam que surgisse algo novo e o compravam (e neste sentido a IBM cometeu um erro histórico ao recusar-se a comprar o MS-DOS da Microsoft no início do boom dos computadores pessoais). Com relação à tolerância está se dá dentro do oligopólio e não com relação a fornecedores e distribuidores. A tolerância se desenvolveu, segundo os autores, devido a certas derrotas sofridas pelos magnatas originais, em particular com relação à legislação antitruste.
274
Se ao tempo de Marx, o reforço da hegemonia burguesa se dava através
da concessão de crédito aos indivíduos mais aptos329, que desta forma eram
“recrutados” para a classe superior, hoje em dia esta mobilidade social associada
ao processo de dominação hegemônica se dá de forma segura e
institucionalizada através dos programas de trainees das grandes Sociedades
Anônimas. Tais empresas colocam como meta para os jovens executivos galgar
os degraus da carreira que os levarão ao prêmio final: as vagas na diretoria e a
remuneração anual de seis dígitos em dólares que lhes abrirá as portas da classe
superior de rendas.
O preço cobrado, dos jovens ou velhos, é a entrega de suas almas aos
misteres da acumulação capitalista, a perfeita execução da “vontade do capital”,
expressa na construção da grandeza da empresa e no aumento dos lucros. A
profissionalização dos gestores possibilita desta forma que o capital, como
relação social alienada, ganhe ascendência sobre seus suportes, tornando na
aparência suas ações não escolhas dos indivíduos (o que paradoxalmente não
deixam de ser), mas imperativos do sujeito semovente do valor. O fetiche do
capital aplicado a seus próprios representantes.
Passamos assim à discussão da forma de remuneração das gerências.
3. A remuneração das gerências.
O estudo da remuneração das gerências é fundamental para o
entendimento de como a “burocracia industrial” moderna, como Hilferding
trata os diretores de carreira, ascende às fileiras da burguesia. Hilferding
descreve a direção das sociedades anônimas, seja ela composta por capitalistas
acionistas ou por diretores remunerados (que em sua descrição se tornam
acionistas via participação nos lucros), como uma oligarquia (cf. Hilferding,
1985: 126). Hilferding e Lênin apontavam a ação da aristocracia financeira como
329 “Inclusive quando se concede o crédito a um homem sem fortuna em seu caráter de
industrial ou comerciante, isto ocorre confiando em que atuará como capitalista, em que mediante o capital emprestado se apropriará do trabalho não pago. Concede-se-lhe crédito no caráter de capitalista em potencial. E esta circunstância que tanto admiram os apologistas econômicos, a de que um homem sem fortuna, mas com energia, solidez, capacidade e conhecimento dos negócios possa converter-se em capitalista [...] consolida o domínio do próprio capital, ampliando suas bases e lhe permite recrutar forças sempre renovadas procedentes do substrato social. [...] Quanto mais capaz seja uma classe dominante de incorporar os homens mais eminentes das classes dominadas, tanto mais sólida e perigosa será sua dominação” (Marx, 1984: III/7:774).
275
marca política da era do imperialismo. Deduziram tais conclusões diretamente
de pistas deixadas por Marx:
“Sobre a base da produção capitalista se desenvolve nas empresas por
ações uma nova artimanha com o salário administrativo, ao aparecer,
junto ao verdadeiro diretor e por cima dele, uma série de conselheiros de
administração e supervisão para os quais, na realidade, a administração e
a supervisão são um mero pretexto para esfolar os acionistas e para auto-
enriquecer-se” (Marx, 1984: III/7:498).
Infelizmente Marx não viveu o suficiente para ver o desenrolar desta
nova configuração das relações capitalistas. Estes indivíduos não exercem
apenas o papel de núcleo dirigente dentro da classe capitalista no sentido de
apropriar-se economicamente de uma parcela mais generosa da mais-valia330.
São eles que organizarão as novas empresas cada vez mais gigantescas que
conformarão os oligopólios contemporâneos.
São estes mesmos gestores do capital que exercem o papel de
facilitadores políticos dentro da disputa capitalista, e é aqui que a disputa pelo
mercado ganha conotações políticas e a idéia de hegemonia de mercado mostra
novo sentido. Estes eleitos do capital na verdade buscarão realizar o jogo de
apoderar-se dos lucros normais e monopolistas em nome dos acionistas,
desenvolvendo a rentabilidade do capital fictício com base em acordos com o
Estado ou com o estabelecimento de monopólios dentro de espaços nacionais
inteiros. Esta é a verdadeira “elite de poder” capitalista, os global-players, e,
como tais, remuneram-se pela diferença que desempenham ou que pensam que
desempenham.
A exemplo dos vendedores, que são os primeiros trabalhadores
especializados na realização do capital no sistema industrial moderno, as
gerências são necessariamente remuneradas com parcelas da mais-valia
330 Segundo Anderson S. et alli (2004), citando a Business Week, os Chief Executive
Offices (CEOs) das maiores companhias dos EUA recebiam em média um rendimento anual combinado (somando salários e demais benefícios) da ordem de U$ 8,1 Mi por ano em 2003. Como a justificativa para tais salários é o “risco” de tais cargos, os autores comparam esta média salarial com o soldo de um general norte-americano com vinte anos de experiência, servindo no Iraque, que é de U$ 144.932,40 ao ano, o que dá uma relação de 56 vezes (a relação com um soldado é de 634 vezes, para um soldo de U$ 12.776,40). Na 12ª posição da lista da Business Week, está o presidente e CEO da United Techmologies, a fornecedora dos helicópteros Black Hawk para as forças armadas dos EUA. George David, recebeu rendimentos combinados no valor de U$ 70,452 Mi no ano de 2003 (não vale adivinhar que ele está na lista dos maiores arrecadadores de doações para a campanha de George W. à reeleição).
276
extraída no processo produtivo331. O mesmo raciocínio vale para os executivos
que gradualmente substituem os capitalistas à frente das empresas. A diferença
é que estes recebem parcelas mais graúdas da mais-valia, além de gozarem de
uma certa autonomia para fixar seus rendimentos e prêmios.
Na leitura de Marx sobre a divisão do lucro em duas parcelas, como lucro
pela atividade empresarial e como juro como remuneração do capital,
depreende-se que na mente do capitalista
“se desenvolva necessariamente a idéia de que seu lucro empresarial –
muito longe de constituir antítese alguma do trabalho assalariado e de
ser só trabalho alheio não pago – é, pelo contrário, salário por seu
trabalho, salário de supervisão, wages of superintendence of labour, um
salário mais elevado que o do assalariado comum, 1) porque é seu o
trabalho mais complexo; e 2) porque se paga o salário a si mesmo”
(Marx, 1984: III/7:486).
E disto se deriva a racionalidade de se entregar tal função a terceiros,
reservando-se o juro ao proprietário do capital fictício e pagando o “lucro
empresarial” aos executivos de carreira, presumivelmente melhor treinados que
os herdeiros naturais do capital monetário.
Como já vimos, a própria definição de lucro empresarial é
suficientemente elástica para que englobe muito ou pouco dinheiro, de acordo
com a empresa e o setor econômico onde se observa o fenômeno. Assim a
remuneração do gestor capitalista é entendida como um tipo especial de
salário332. Mas tal figura de salário não pode nos fazer esquecer de dois fatos: o
primeiro é que embora eventualmente adicione valor ao produto ao “coordenar”
a produção, a remuneração se faz com base não no tempo de trabalho
331 “O desembolso por eles, ainda que efetuados na forma de salários, difere do capital
variável desembolsado na compra do trabalho produtivo. Incrementa os desembolsos do capitalista industrial, a massa do capital que há de adiantar, sem aumentar diretamente a mais-valia. Pois é um desembolso, pago por trabalho, que só se emprega na realização de valores já criados” (Marx, 1984: III/6:383). O custo de realização é subtraído da mais valia, daí, inclusive, o costume de se pagar por porcentagem. Em sua modelagem, Kalecki (1983) prefere usar o termo ordenado para diferenciar tais rendas dos salários recebidos por atividades produtivas.
332 “O salário do epítropos ou do régisseur, como era denominado na França feudal, diverge por completo do lucro e adota assim mesmo a figura de salário por trabalho qualificado, na medida em que se maneja a empresa numa escala suficientemente grande como para pagar um diretor (manager) desta índole, pese a que, não obstante isso, nossos capitalistas industriais ainda distam muito de ‘dedicar-se a assuntos do Estado ou a filosofar’”. (Marx, 1984: III/7:494). Diriam Gates, Soros e Ohmae do alto de seus feitos e publicações que Marx não estaria fazendo jus a suas qualificações intelectuais.
277
socialmente necessário para a reprodução social do gerente, mas com base nos
parâmetros do fausto capitalista. E segundo, que tais salários ultrapassam em
muito o “valor” que qualquer indivíduo isolado seja capaz de adicionar ao
processo produtivo. Assim, ainda que consideremos a atividade de coordenação
como trabalho necessário, sua remuneração não se faz pelo trabalho necessário,
mas pela função desempenhada de capital in actu, e neste sentido, a base desta
remuneração será o trabalho não pago a outros trabalhadores. Disto segue que
os gestores profissionais e grandes proprietários se irmanam na classe
burguesa, constituindo no processo histórico a chamada “aristocracia
financeira”, ou “os muito ricos’ de Mills (1956) pois
“Como membro do conselho fiscal o grande acionista recebe primeiro,
em forma de cotas de participação nos lucros, uma parte destes, tendo
ainda oportunidade de influir na administração da empresa ou de
aproveitar seus conhecimentos sobre a política da empresa, seja para
especular ou para lucrar em outras transações comerciais. Forma-se
assim, um círculo de pessoas que, em virtude do poder do capital próprio
ou na condição de representantes do poder reunido do capital alheio
(como diretores de banco), fazem parte dos conselhos fiscais de um
grande número de sociedades anônimas. Surge assim um tipo de união
pessoal, de um lado, entre as diversas Sociedades Anônimas e, a seguir,
entre estas e os bancos, circunstância que deve ser de maior influência
para a política da sociedade, por formar-se entre as diversas sociedades
um interesse comum de proprietários” (Hilferding, 1985: 124).
Hoje em dia devemos juntar às empresas e bancos, os fundos de pensão -
libertos, ou semilibertos da tutela estatal. Tais fundos de pensão formam uma
interessante modalidade do capital “socializado” e historicamente constituído
pelo Estado, que poderia comportar-se como capital social não atuassem seus
gestores como capitalistas financeiros de fato. A propriedade do capital e a
capacidade de comando do capital monetário, a poupança compulsória dos
trabalhadores, é usurpada pelos gestores que, em troca de buscar a
rentabilidade média deste capital monetário, destinado a garantir as
aposentadorias dos trabalhadores ativos, locupletam-se pessoalmente em
278
termos financeiros e buscam expandir ao máximo sua influência política para
além do âmbito privado333.
É interessante notar que a constituição dos fundos de pensão repõe para
o sistema de forma mais contundente a disputa consagrada na literatura como
“agente x principal”, a contraposição entre os interesses dos gestores do capital
(os agentes), que buscam maximizar a retenção de lucros para novos
investimentos, e os proprietários do capital (ou do principal) que buscam a
maximização da distribuição de dividendos334. O comportamento da direção dos
fundos de pensão irá variar de acordo com sua necessidade de caixa. De forma
geral um fundo com uma carteira nova não estará preocupado com o
recebimento de dividendos líquidos podendo se interessar pela reinversão de
lucros, mas fundos mais “maduros” que necessitam pagar a seus rentistas
passam a pressionar no sentido de um aumento do fluxo líquido de dinheiro.
Do ponto de vista mais geral, os dirigentes são aliados dos maiores
acionistas que tem uma tendência a poupança muito alta e para os quais é
interessante que a própria empresa realize a poupança de forma a poder realizar
diretamente seus investimentos. Além disto, a poupança empresarial resulta
num aumento no valor de suas ações, e segundo Baran e Sweezy, dentro da
legislação norte-americana, a realização de lucros na forma de venda de ações é
tributada a 25%, enquanto os dividendos somam na renda geral do indivíduo de
forma direta e são tributados com alíquotas muito maiores quando se tratam de
grandes proprietários.
Dada a estrutura progressiva de impostos que prevalece em grande parte
do mundo, e em particular nos EUA (apesar da obra em contrário recentemente
promovida por George W.), mais importantes que o contracheque dos gerentes
são os benefícios como a participação nos lucros, planos de aposentadoria e
opções de ações, pois “[o]s bens de capital presentes e futuros do diretor de
empresa médio são muito maiores do que o seu saldo bancário e cheque de
salário podem indicar” (Business Week de 24/11/1958 apud Baran & Sweezy,
1974: 49, rodapé 19).
333 Daí Oliveira (2003) identificar os gestores petistas dos fundos brasileiros como a
contraparte dos banqueiros tucanos em nossa aristocracia financeira. 334 “Ao juro lhe corresponde a forma social do capital, mas expressa numa forma neutra
e indiferente, ao lucro do empresário lhe corresponde a função econômica do capital, mas abstraída do caráter capitalista determinado desta função” (Marx, 1984: III/7:489).
279
Esta confusão de interesses entre grandes acionistas e gestores que leva à
escolha da empresa como locus de acumulação do capital (em contraposição à
alternativa de distribuição dos lucros na forma de dividendos e à busca de novos
investimentos por parte dos capitalistas individuais), leva a que Baran e Sweezy
concluam que:
“O verdadeiro capitalista de hoje não é o empresário individual, mas a
empresa. O que o homem faz na sua vida privada, sua atitude para com a
obtenção e o gasto de sua renda pessoal são essencialmente irrelevantes
para o funcionamento do sistema. O que conta é a sua atuação na vida da
companhia e sua atitude para a obtenção e o gasto da renda da
companhia. E sob esse aspecto não pode haver dúvida de que a obtenção
e acumulação de lucros ocupam hoje uma posição mais dominante do
que nunca” (Baran & Sweezy, 1974: 52).
Nos parece, entretanto, que tal afirmação é em parte infundada. A
empresa de fato é a forma na qual o capital se consubstancia, mas a renda
pessoal do gestor e sua posição social estão muito longe de serem irrelevantes
para o funcionamento do sistema. Embora seja verdade que “a substituição do
capitalista individual pelo capitalista da sociedade anônima constitui uma
institucionalização da função do capitalista” (Baran & Sweezy, 1974: 52), as
atitudes com relação à obtenção e ao gasto da renda pessoal de tais indivíduos
são centrais para o funcionamento do sistema pois conformam a visão de
mundo que estes tem de si e dos outros, e que os demais membros da sociedade
tem deles. Em outras palavras, é a renda e a forma como ela é gasta que indica o
status social da elite capitalista335.
Reduzir a vida do capitalista a seu desempenho como tal interna corporis
à empresa é reduzir o indivíduo a sua função social na produção, como se na
fábrica o gerente fosse um capitalista e fora dela pudesse, de fato, ser um
“socialista excêntrico”. Uma análise deste tipo é idealista e não contribui para o
entendimento das relações aqui estudadas, além de ver na Sociedade Anônima
um sujeito de fato e não de jure, assumir a ficção como pessoa, o fetiche da coisa
como relação dotada de autonomia real..
335 E o livro de Brooks (2000) é quase inteiramente dedicado a analisar os hábitos de
consumo desta elite
280
A riqueza e o consumo ostensivo são a marca que caracteriza
externamente os “eleitos do capital”. Neste sentido, como dizia Marx, “o luxo faz
parte das despesas de representação do capital” ainda que hoje em dia as modas
de consumo como apresentadas por Brooks (2000) possam passar a impressão
de que os indivíduos das classes superiores detenham uma “consciência
cósmica”, uma preocupação com o meio-ambiente ou com a preservação das
culturas primitivas, isto se dá como reflexo de um movimento de
interpenetração entre os padrões de consumo das classes superiores e os
movimentos de contestação da cultura hippie norte-americana que se
consubstanciam em “modismos” sem que decorra deste discurso efeitos
políticos reais336.
As cozinhas de milhares de dólares e os automóveis com mais potência do
que o trânsito conturbado dos grandes centros urbanos pode absorver são
exemplos típicos do consumo ostensivo337 que, embora adquira nuances
diversas, marcam a classe que Wright Mills denominou de “os muito ricos”. Da
mesma forma insere-se o gasto com a filantropia, já apontado por Marx como
componente do fausto capitalista e reapresentado contemporaneamente com
base na idéia de responsabilidade social (em alguns casos mesmo, como se fosse
“caridade” pagar os impostos) 338.
Grosso modo, esta classe que dirige as principais sociedades capitalistas
ocidentais e, em particular, a norte-americana pode ser assim caracterizada pelo
acesso ao comando das grandes massas de capital social concentrado e pelas
altas rendas que usufruem por se encontrar em tal posição. “Os muito ricos”, o
“segmento de classe corporado”, a “aristocracia financeira”, são alguns dos
nomes que lhes foi dado mostrando que a burguesia capitalista aparece sempre
336 A julgar pelo discurso de Brooks (2000) uma parcela da elite norte-americana teria
escrito o Protocolo de Kyoto (o tratado da ONU sobre emissão de poluentes) e imposto sua assinatura ao mundo, quando a situação é exatamente a inversa.
337 “Essas despesas de representação tomaram, tradicionalmente, a forma do desperdício ostensivo, de um lado, e da filantropia, do outro. Ambos tiveram sempre o que hoje se chamaria de finalidade de relações públicas: o primeiro, espantar e intimidar o público; o segundo, granjear-lhe a fidelidade e a afeição. Com ambos o capitalista atua em sua capacidade de capitalista privado” (Baran & Sweezy, 1974: 53). A nota recente é a internalização para a empresa da “ação social” através da filantropia empresarial rebatizada de “responsabilidade social”. Este padrão teria entrado em declínio nos anos 1950, quando a competição é pelo tamanho das sedes e das frotas de aviões à disposição dos empregados. “O que mudou foram a forma e o método do dispêndio ocioso, e não a finalidade ou o conteúdo” (Baran & Sweezy, 1974: 54).
338 Sobre isto ver, como já indicado, Arantes (2004) e Paoli (2002).
281
sob novas formas e sob novas nuances na medida em que são criadas novas
frações de classe que sucessivamente assumem o comando da empresa de
exploração e subordinação da massa da humanidade a sua voracidade
acumulativa. A forma da Sociedade Anônima dotou este capital ao longo do
século XX de uma elite fluida. Elite esta, calcada numa meritocracia que evolui
historicamente da “aristocracia financeira” de Lênin para uma elite
transnacional sem rosto ou nome, que fala de si mesma para os veículos de
comunicação utilizando-se da terceira pessoa do plural, se referindo ao
“mercado”, ou aos “operadores do mercado”, quando são eles próprios os
principais agentes e beneficiários do processo.
4. As muitas faces de um sujeito sem face: Capital Financeiro, Capital Societário, Capital hegemon.
Vimos como a forma do capital societário permite a seus operadores
apresentarem-se como pretensos fantoches da vontade do mercado, apontando
os pequenos poupadores como responsáveis pelas ações decididas pela diminuta
elite de poder que ocupa os postos chave dos conselhos diretivos das empresas
oligopolistas globais. Contudo, a forma do capital societário permite, além disto,
aos gestores do capital produtivo e do capital monetário, a consolidação de sua
simbiose, constituindo-se na prática como fração de classe que se diferencia do
restante da burguesia (os grandes proprietários de capital fictício,
transformados em simples rentistas) por serem os gestores práticos do sistema,
Assim,
“O banco339 não só pode conceder créditos em maior escala à Sociedade
Anônima do que à empresa individual; pode investir também uma parte
de seu capital monetário em ações, por um tempo mais ou menos longo.
Em qualquer dos casos nasce sempre um interesse duradouro do banco
pela Sociedade Anônima que, por um lado, deve ser controlada pelo
banco para garantir a aplicação correta do crédito concedido e, por outro
lado, deve ser dominada na medida do possível, pelo banco, a fim de
garantir todas as transações financeiras geradoras de lucro bancário”
(Hilferding, 1985: 124).
339 E, hoje em dia os fundos de pensão, e fundos mútuos.
282
E assim se formam as bases da classe corporada de Roy ou a aristocracia
financeira de Lênin. Ao gerirem os interesses do capital concentrado, tais
indivíduos reconhecem-se como pares. Em termos gramscianos está dada a base
econômico-corporativa a partir da qual estes elementos constituem sua
consciência de classe frente aos demais grupos sociais e podem, constituindo
sua representação de mundo, buscar disputar a hegemonia política nos distintos
Estados nacionais340. Neste sentido,
“Essa união pessoal, que significa ao mesmo tempo uma concentração de
cargos em conselhos fiscais na mão de um pequeno número de
capitalistas, torna-se importante quando os mesmos abrem caminho ou
chegam a promover o estabelecimento de vínculos de cunho
organizacional mais íntimos entre sociedades anônimas antes
independentes” (Hilferding, 1985: 125).
O mesmo vale com relação ao Estado e à entrada e saída de dirigentes de
órgãos reguladores do Estado ou dos Bancos Centrais para a iniciativa provada
(com ou sem regras de quarentena constitui-se a elite capitalista dirigente que
dirige a sociedade burguesa).
Por outro lado, o processo de financeirização da produção, deve ser
entendido como a combinação das atividades de extração de mais-valia de
forma direta como realizado pela indústria, com as atividades típicas de
administração do fluxo de capital-dinheiro. Há aqui um duplo movimento.
Enquanto por um lado, fundem-se os sistemas de transferência de mais-valia
sob o comando do capital concentrado: as empresas buscam a acumulação de
mais-trabalho oriundo tanto da extração direta de mais-valia quanto das
diversas rendas de monopólio discutidas na primeira parte deste trabalho. Por
outro lado, esta fusão das fontes de rendas sob o mesmo “teto” empresarial
confunde suas origens diversas, possibilitando assim que estas apareçam como
uma única renda na forma dos juros pagos ao capital social em sua forma
acionária, que destarte, nivela as diferentes fontes como atributos do capital,
visto em sua forma de mercadoria.
A fusão entre capitais bancários e industriais e a constituição da
chamada burguesia financeira, apenas decorre deste movimento de
coordenação necessário às novas operações de reprodução do capital – a parcela 340 Ver em particular Gramsci, III: 40-3.
283
dirigente, dinâmica, hegemônica, do capital que ao diferenciar-se lança as novas
bases da reprodução ampliada destes capitais e do sistema como um todo. Deste
movimento decorrem tanto a aparência de um comportamento rentista da
direção do capital produtivo (que, como vimos, é composta pela busca dos juros
vistos como lucros monopolistas garantidos pela propriedade do capital),
quanto a “profissionalização” das funções do capitalista. Como a administração
do capital social tem origem nos bancos, é também o setor bancário que lidera
esta profissionalização ao assumir o controle sobre empresas e delegar sua
gestão a empregados. Também são os bancos que lideram e agem no sentido de
convencer o restante da classe capitalista da superioridade da forma da
propriedade societária para a obtenção de seus interesses.
Lênin (1982), seguindo Marx, afirma que o sistema de pulverização do
capital em ações é mais uma forma de se roubar o público, concentrando o
poder na oligarquia financeira. As falcatruas em balanço, descritas por Lênin no
clássico “Imperialismo, fase superior do capitalismo”, podem ser consideradas
idênticas aos escândalos recentes da Enron, WorldCom e Parmalat, desde que
guardadas as devidas proporções com relação aos valores monetários
envolvidos. São também igualmente válidas para comportamentos anteriores da
especulação bursátil como nos exemplos descritos por Arrighi (1996) ou da
clássica emissão de títulos pela República de Poyais341. Contudo, embora a
honestidade não seja o traço mais característico da “aristocracia financeira”,
caracterizá-la simplesmente como uma elite corrupta como fazem alguns
autores da vulgata marxista empobrece sobremodo a análise que se abre para a
pesquisa.
O papel de coordenação desempenhado pelo capital bancário altamente
concentrado fica claro quando, na descrição de Lênin (1982), nas vacas gordas
os bancos ganham com a intermediação da emissão de ações, nas magras
compram os falidos, mas não nos parece correta a tese de Hilferding342 sobre o
341 Uma ficção inventada pelo aventureiro britânico Sir Gregor MacGregor, que antes já
havia contraído dívidas em nome da República da Grã-Colômbia (cf. Dawson, 1998, cap. 2) 342 “A dependência da indústria com relação aos bancos é conseqüência das relações de
propriedade. Uma porção cada vez maior do capital da indústria não pertence aos industriais que o aplicam. Dispõem do capital somente mediante o banco, que perante eles representa o proprietário. Por outro lado, o banco deve imobilizar uma parte cada vez maior de seus capitais. Torna-se assim, em proporções, cada vez maiores, um capitalista industrial. Chamo de capital financeiro o capital bancário, portanto o capital em forma de dinheiro que, desse modo, é na realidade transformado em capital industrial” (Hilferding, 1985: 219).
284
capital bancário tornar-se diretamente capital industrial e desta forma
constituir o capital financeiro. Isto não é correto na medida em que grandes
massas do capital bancário, que não pertencem aos bancos, serão igualmente
utilizadas para a obtenção de outras formas de capital fictício, como por
exemplo títulos públicos.
A separação entre a propriedade do capital e o comando sobre este, na
verdade dota a própria relação de reprodução do valor de autonomia com
relação a seus proprietários e seus prepostos, e a maior parte das empresas
busca, com o passar do tempo, livrar-se dos sócios bancários. Da mesma forma,
embora exista uma classe dos “muito ricos”, a constituição de fundos de pensão
e fundos mútuos demonstra que uma parcela significativa da poupança social
continua sendo constituída por pequenos poupadores que são submetidos à
vontade dos grandes e são constantemente golpeados nas bolsas (cf. Strange,
1998), mas que não desaparecem como se poderia interpretar a partir da
tendência apontada por Hilferding343.
Como vimos na primeira parte deste trabalho, Hilferding também propõe
a interpretação de que o capital usurário que contribuiu para a acumulação
original das massas de capital que permitiram o desenvolvimento da produção
capitalista (e que foi socialmente renegado justamente por ser visto como
usurário) reaparece na figura do capital bancário e, novamente, subordina a
indústria e o capital comercial que havia desempenhado este papel no início do
processo. Desta forma, para Hilferding, o capital comercial teria sido desalojado
de sua posição dominante sobre a manufatura pois “essa queda é definitiva e o
desenvolvimento do capital financeiro reduz o comércio absoluto e transforma o
comerciante, outrora tão soberbo, em um agente da indústria monopolizada
pelo capital financeiro” (Hilferding, 1985: 220)344.
343 “O capital financeiro desenvolveu-se com o desenvolvimento da sociedade anônima e
alcança o seu apogeu com a monopolização da indústria. O rendimento industrial ganha um caráter seguro e contínuo; com isso, a possibilidade de investimento de capital bancário na indústria ganha extensão cada vez maior. Mas o banco dispõe do capital bancário, e os proprietários majoritários das ações bancárias dispõem de domínio sobre o banco. É evidente que, com a crescente concentração da propriedade, os proprietários do capital fictício, que dá o poder aos bancos, e os proprietários do capital que dá o poder à indústria são cada vez mais as mesmas pessoas. Isso é tanto mais verdade quando, como vimos, cada vez mais o grande banco obtém o poder de dispor do capital fictício” (Hilferding, 1985: 219).
344 Sweezy (1983) critica a leitura de Hilferding, pois “As grandes empresas monopolizadoras se encontram, em proporção direta ao seu êxito (ou seja, de sua lucratividade), de posse de fontes internas de fundos, não só na forma de lucros que podem ser acumulados ao invés de distribuídos como dividendos aos acionistas, como ainda na forma de depreciação,
285
Já vimos que esta interpretação é insuficiente. Não precisamos de dados
precisos para discordar de Hilferding pois o Wal-Mart, o Carrefour, a família
Diniz, et caterva destoam de forma prática de tal interpretação como vimos ao
longo dos capítulos precedentes. O que queremos destacar aqui é que o
desenvolvimento de “braços financeiros” de grandes conjuntos de mercados
industriais também indica que tal configuração discutida por Hilferding é
histórica e geograficamente delimitada não podendo ser generalizada. Da
mesma forma, a concessão de créditos para o investimento acelera a
concentração bancária, além de diferenciar a forma de relacionamento com a
indústria.
Sweezy (1983) também critica a análise de Hilferding no que tange ao
papel dos bancos como futuros centralizadores da riqueza social, na medida em
que para ele “Hilferding confunde uma fase transitória do desenvolvimento
capitalista com uma tendência permanente. É certo que durante o período do
próprio movimento de combinação, quando as sociedades anônimas e as fusões
estão em processo de formação, os bancos desfrutam uma posição estratégica
que lhes permite influir sobre áreas-chave do sistema produtivo” (Sweezy,
1983:205) entretanto, Sweezy considera que a partir de um certo grau de
concentração há uma tendência de estabilização da concorrência monopolista e
de redução quando não cessação completa do movimento de fusões, o que está
em completo desacordo com a realidade contemporânea.
Buscar dar ênfase ao domínio de uma das formas do capital (industrial,
comercial ou monetário) sobre as demais para caracterizar o capital financeiro é
explicar o processo por seu resultado, a causa pelo efeito, e portanto, errado. A
financeirização reflete na verdade um processo de superação da administração
segmentada do capital em suas diferentes formas. Embora haja sempre uma
atividade predominante dentro dos diversos papéis desempenhados pelos
grandes grupos, a forma societária une atividades de constituição do crédito
(das quais a própria constituição do capital na forma de ações exerce o papel
central) às atividades de extração e apropriação de mais-trabalho e também às
manutenção, obsolescência, e outras chamadas “reservas” contábeis, que são transferidas, em proporções cada vez maiores, para as finalidades de acumulação” (p. 205), e portanto estão livres dos banqueiros. Sweezy deixa claro que não se anula a análise de Hilferding, mas que o domínio no processo é da indústria e não dos bancos (o que vimos também ser uma crítica improcedente). Sweezy chama ainda a atenção para o fato que Lênin alterou ligeiramente a definição de capital financeiro de Hilferding, isentando-o desta crítica.
286
atividades relativas à circulação. Os bancos realizam serviços de outra índole
que não os financeiros ao administrar empresas produtivas, e vice-versa. Assim,
o capitalismo financeiro deve ser visto como a forma superior na qual se
organiza o capital em sua forma social, embora ainda privada. Trata-se aqui de
uma superação dialética, superação que conserva. No capital financeiro estão
contidas as formas anteriores de existência do sujeito social semovente que na
forma do capital social ganha seu próprio corpo como indivíduo dotado de
direitos e personalidade345. E é a construção desta personalidade, através das
atividades de propaganda e marketing, o método pelo qual as empresas buscam
estruturar uma identificação entre seus objetivos e a “vida ideal” dos indivíduos,
construindo por este método seu consentimento. A manipulação da concepção
de mundo caminha no sentido de identificar as grandes corporações com a
liberdade, a riqueza e o divertimento. Enfim, com a vida desejada por cada
indivíduo.
Assim, a forma do capital societário por um lado parece torná-lo
independente dos seres humanos que lhe servem de suporte e, por outro,
aparentemente unifica as diferentes fontes de renda no rendimento genérico
dos dividendos (ou juros). Com isto, a Sociedade Anônima torna-se a forma pela
qual se organiza a distribuição social da riqueza entre os proprietários do capital
em sua forma fictícia. Ao mesmo tempo as atividades de extração do trabalho
em escala social, sejam elas realizadas por capitalistas industriais, comerciais ou
bancários, são negadas e igualadas sob o fetiche dos capitais fictícios na forma
societária de suas ações.
Já vimos que o capital dinheiro que aparece no banco, seja recebido
como salário, renda da terra ou capital de um capitalista, é uma forma
transitória do capital.
“Mas por momentos desempenha a função de dinheiro emprestável, ou
seja de capital-dinheiro. Portanto, nesse aspecto a acumulação de
345 No documentário The corporation, as corporações como “pessoas” são diagnosticas
como psicopatas, na medida em que: 1. Não demonstram preocupação pelo sentimento de outras pessoas. 2. São incapazes de manter relações longas. 3. Não estão preocupadas com a segurança alheia. 4. Mentem e enganam outros sistematicamente em busca de vantagens. 5. São incapazes de sentir culpa. 6. Não se conformam às normas sociais e não respeitam os comportamentos legalmente instituídos.
287
capital-dinheiro sempre deve refletir uma acumulação maior que a que
realmente existe, posto que a expansão do consumo individual – devido a
estar mediada pelo dinheiro – aparece como uma acumulação real, para
o que inaugura novos investimentos de capital” (Marx, 1984: III/7:652).
Dada a natureza de tal fluxo, o banqueiro necessariamente aparece como
intermediário e administrador do sistema. As reservas de capital-dinheiro
podem aumentar pela queda de preços de matérias primas, pelo estancamento
do fluxo de comércio, ou pela retirada de capitalistas do ciclo produtivo que
passam a viver de rendas. Mais uma vez voltando a Marx, vemos que:
“Com o crescimento da riqueza material cresce a classe dos capitalistas
monetários; por um lado aumenta o número e a riqueza dos capitalistas
que se retiram, os rentistas, e pelo outro, se fomenta o desenvolvimento
do sistema creditício, e com isto se incrementa o número de banqueiros,
financistas, emprestadores de dinheiro, etc.” (Marx, 1984: III/7:658).
E, assim,
“O sistema creditício que tem seu ponto central nos bancos
presumivelmente nacionais e nos grandes emprestadores de dinheiro e
usurários que pululam em torno a eles, constitui uma enorme
centralização, e confere a esta classe parasitária um fabuloso poder não
só de dizimar periodicamente aos capitalistas industriais, mas de intervir
de maneira mais perigosa na produção real; e esse bando nada sabe da
produção, e nada tem que ver com ela” (Marx, 1984: III/7:702).
Contudo, Marx não captura aqui toda a relação que está em processo de
formação em seu tempo. O sistema acaba por ensinar aos banqueiros, e demais
gestores do capital monetário na forma dos diferentes fundos, a cuidar da
“galinha dos ovos de ouro”, o capital produtivo, ao mesmo tempo em que a
práxis cotidiana ensina o gestor industrial a confiar desconfiando do sistema
bancário e a buscar posições nas quais esteja ao abrigo dos movimentos
especulativos, quando não se torna ele mesmo um especulador346.
O sistema bancário socializa a circulação do capital e poderia revogar
seu caráter privado. Todavia, na medida em que é baseado na propriedade
privada, só submete o social ao privado num novo patamar coordenando a
346 Não é outra a natureza por exemplo do chamado hedge financeiro, em particular com
relação ao câmbio.
288
distribuição social da riqueza347. Mesmo autores contemporâneos insistem em
analisar o processo como caracterizado pela predominância da esfera bancária
ou financeira sobre a produção. Por exemplo, temos em Chesnais que:
“É na produção que se cria riqueza a partir da combinação social de
formas de trabalho humano de diferentes qualificações. Mas é a esfera
financeira que comanda, cada vez mais, a repartição e a destinação social
dessa riqueza” (Chesnais, 1996: 15).
Essa dinâmica para Chesnais específica das finanças se alimenta de uma
“‘inflação do valor dos ativos’, ou seja, a formação de ‘capital fictício’” (Chesnais,
1996: 15), e da transferência efetiva de riqueza para o setor financeiro através
das dívidas públicas e políticas monetárias associadas348.
A forma como se dá a relação contemporânea entre capital fictício e a
dinâmica de poder própria das grandes corporações será delineada nos
próximos capítulos. Por ora, devemos ter claro que as frações dirigentes da
burguesia articulam na prática os interesses dos grandes proprietários de capital
fictício e dos gestores da acumulação capitalista em suas diversas formas, ambos
formam a classe beneficiada pelo sistema de produção capitalista. A aparente
hipertrofia da parcela monetária – aparente porque não pode descolar-se da
base produtiva sob pena de auto-aniquilação – faz com que pareça a alguns
analistas que estamos diante de sua direção hegemônica, desta forma
“Dado o volume que o capital monetário representa, as suas prioridades
(alta taxas de juros, ‘inflação zero’) e o seu horizonte temporal (de curto
ou curtíssimo prazo) ditam o comportamento das empresas e dos centros
de decisão capitalistas, como um todo” (Chesnais, 1996: 16).
Como por o guizo no gato?
Torna-se necessário em decorrência do exposto estabelecer um critério
que possa caracterizar a burguesia em sua forma contemporânea dividida entre
os rentistas e os gestores do capital. Na verdade como voltaremos a discutir na
347 “Com relação a sua organização e centralização formal [...] o sistema bancário é o
produto mais artificial e elaborado ao que chega o modo capitalista em seu conjunto [...] com ele fica dada a forma de uma contabilização e distribuição gerais dos meios de produção em escala social, mas só a forma” (Marx, 1984: III/7:781, grifo nosso).
348 Ficou faltando aqui a terceira forma de capital fictício, a que reflete o valor da propriedade da terra, que em particular no caso do petróleo e de outras matérias primas estratégicas tem o poder de deslocar massas de mais-valia entre os diversos setores da economia como analisamos na parte I.
289
última parte deste trabalho (capítulo 12), a forma de identificação de um
indivíduo como incluído na classe capitalista torna-se não exatamente a origem
de sua renda, na medida em que qualquer indivíduo com uma conta corrente
num banco (estima-se que metade da humanidade em idade adulta, cf. BIS,
2003) recebe algum tipo de juro sobre seus depósitos monetários ou, mesmo
que não receba juros, contribui para a criação do capital monetário total
disponível para o conjunto do sistema.
Também não se pode estabelecer o critério de trabalho para se identificar
os membros das classes exploradas, pois como vimos os capitalistas também
realizam trabalhos necessários á reprodução do capital e muitos indivíduos que
se vêem como capitalistas gerindo pequenos negócios na verdade tem seu
próprio trabalho explorado por terceiros através de relações contratuais que os
forçam a trocas desiguais. A propriedade de capital fictício também não torna
por si um indivíduo membro da classe capitalista, na medida em que esta é a
forma na qual se corporificam as poupanças dos trabalhadores que devem
garantir seus anos de velhice.
Assim sendo, o critério para a caracterização dos eleitos do capital deve
combinar trabalho e rendas. O quanto de trabalho que é adicionado pelo
indivíduo à massa de valor deve ser comparado com o quanto é retirado por ele.
Basicamente, o que caracteriza o burguês no capitalismo contemporâneo é o
fato de apropriar-se de uma parcela maior do produto social do que a que gera
para o sistema. No caso dos rentistas esta classificação é direta: na medida em
que um indivíduo não trabalha e vive de rendas (devemos excluir aqui os
indivíduos cuja renda é uma aposentadoria derivada de uma poupança realizada
com este fim, e socialmente instituída, e que se esgota com sua morte, como no
caso da previdência social).
No caso dos capitalistas atuantes a pergunta a ser feita é: quem em sã
consciência se considera capaz de adicionar mais do que, digamos, U$
100.000,00 à economia no período de um ano? Independentemente da
resposta, tais indivíduos (o rentista e o capitalista atuante) são primos-irmãos.
Um não pode viver sem o outro e é das fileiras dos rentistas que se formam,
geralmente os novos gestores do capital; bem como são os gestores retirados e
seus descendentes que formam a grande massa dos rentistas que podem de fato
290
ser denominados de capitalistas. E é em torno deste núcleo duro que giram as
elites dirigentes do Estado burguês.
Ainda há muito que explicar antes de podermos voltar a este debate.
Assim como a previdência social e seu processo de privatização estão
relacionadas com a massa de dinheiro gerida pelo Estado, também as altas taxas
de juros, apontadas por Chesnais, só podem ser explicadas como resultantes de
um determinado arranjo no qual um setor do capital impõe a outros setores e ao
Estado a transferência para si da mais-valia extraída pelo conjunto dos agentes
capitalistas. Assim, devemos passar à discussão da forma de articulação do
Estado ao modo de reprodução capitalista contemporâneo.
291
Parte III – O Estado ________________________________________________________________________________
Capítulo 9 - O equivalente geral fiduciário e sua relação com o Estado.
1. O equivalente geral.
2. A moeda.
3. O câmbio.
4. Crédito, inflação e o papel dos bancos centrais.
Capítulo 10 – A Economia Política da Política Econômica.
1. Bens públicos e bens privados. O Estado como produtor de valor e
antivalor.
2. As punções sobre o fundo público: a política protecionista como
caminho para o lucro de monopólio.
3. A economia da dívida: o capital fictício e as travas ao
desenvolvimento e à reprodução capitalista.
4. Ampliação do modelo de apropriação do plusvalor: os tributos.
5. O modelo de rendas ampliado: salário, lucro, rendas de monopólio e
tributos.
Capítulo 11 - O Estado global.
1. As contradições do antivalor e da democracia.
2. A contradição do nacional como espaço de exploração com o
internacional como espaço de registro da acumulação.
3. O fim do Estado-nação?
4. Governança global e “democracia de mercado”: os novos caminhos
do totalitarismo.
292
Capítulo 9 - O equivalente geral fiduciário e sua relação com o Estado.
“... o dinheiro há de vencer todas as outras formas da propriedade
privada” (Marx, 1985: 130).
Devemos retomar aqui a discussão sobre o papel do Estado no
capitalismo iniciada no primeiro capítulo deste trabalho. Segundo Marx e
Engels na “Ideologia Alemã”, o Estado é constituído historicamente no próprio
ato de separação entre público e privado, constituindo-se num “outro” externo
aos indivíduos e que, paradoxalmente, representa a comunidade, as
necessidades coletivas.
“É justamente desta contradição entre o interesse particular e o interesse
coletivo que o interesse coletivo toma, na qualidade de Estado, uma
forma autônoma, separada dos reais interesses particulares e gerais e, ao
mesmo tempo, na qualidade de uma coletividade ilusória, mas sempre
sobre a base real dos laços existentes em cada conglomerado familiar e
tribal – tais como laços de sangue, linguagem, divisão do trabalho em
maior escala e outros interesses – e sobretudo, como desenvolveremos
mais adiante, baseada nas classes, já condicionadas pela divisão do
trabalho, que se isolam em cada um destes conglomerados humanos e
entre as quais há uma que domina todas as outras. Segue-se que todas as
lutas no interior do Estado, a luta entre democracia, aristocracia e
monarquia, a luta pelo direito de voto, etc., são apenas as formas
ilusórias nas quais se desenrolam as lutas reais entre as diferentes classes
[...]; segue-se, além disso, que toda classe que aspira à dominação,
293
mesmo que essa dominação como no caso do proletariado, exija a
superação de toda a antiga forma de sociedade e de dominação em geral,
deve conquistar primeiro o poder político, para apresentar seu interesse
como interesse geral, ao que está obrigada no primeiro momento.
Justamente porque os indivíduos procuram apenas seu interesse
particular, que para eles não coincide com seu interesse coletivo (o geral
é de fato a forma ilusória da coletividade), este interesse comum faz-se
valer como um interesse ‘estranho’ aos indivíduos, ‘independente’ deles,
como um interesse ‘geral’ especial e peculiar; ou têm necessariamente de
enfrentar-se com este conflito, tal como na democracia. Por outro lado, a
luta prática destes interesses particulares, que constantemente e de
modo real chocam-se com os interesses coletivos e ilusoriamente tidos
como coletivos, torna necessário o controle e a intervenção prática
através do ilusório interesse ‘geral’ como Estado. O poder social, isto é, a
força produtiva multiplicada que nasce da cooperação de vários
indivíduos exigida pela divisão do trabalho, aparece a estes indivíduos,
porque sua cooperação não é voluntária mas natural, não como seu
próprio poder unificado, mas como uma força estranha situada fora
deles, cuja origem e cujo destino ignoram, que não podem mais dominar
e que, pelo contrário, percorre agora uma série particular de fases e
estágios de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos
homens e que, na verdade, dirige este querer e agir” (Marx & Engels,
1986: 48-50).
O desenvolvimento da teoria sobre o Estado, comércio exterior e mercado
mundial, faziam parte do plano inicial de Marx para O Capital349. Entretanto, a
evolução do trabalho o levou a protelar tal tratamento, nos deixando sem uma
sistematização destes temas, que já haviam sido explorados em outros textos
pelo mesmo. Não é nosso objetivo aqui dar um tratamento histórico às
alterações conceituais nem tentar “acabar” a tarefa de Marx, mas tão somente,
aderindo aos princípios da filosofia da práxis, desenvolver alguns pontos do
vasto debate visando integrar este aspecto da vida social ao debate teórico aqui
travado.
349 Uma discussão aprofundada deste debate pode ser encontrada em Neto (2002), e a
carta contendo o plano da obra pode ser encontrada em Marx (1978).
294
O Estado será aqui entendido como o corpo de instituições sociais no
qual reside, e através do qual se exerce, o poder político das diferentes
sociedades nacionais. A superestrutura, tanto a idealista quando a concreta - na
qual se inscrevem os limites legais de ação dos indivíduos e se garante o
cumprimento das regras pactuadas ou impostas, em particular a forma da
propriedade350. O Estado, enquanto superestrutura idealista das relações entre
indivíduos e coletividade é, ao mesmo tempo, produtor e produto do
desenvolvimento histórico das sociedades humanas, cabendo-nos indagar-lhe
qual a essência de sua formação, a que serve.
O estudo do desenvolvimento deste ao longo da história encontra-se em
Marx e Engels (1986) e em outros textos, assim, daremos ênfase aqui à análise
das transformações ocorridas nestas superestruturas entre o final do século XIX
e ao longo do século XX, o que corresponde ao período em que se construiu o
domínio, ou o predomínio sobre este, de uma classe ou fração de classe
vinculada ao que denominamos anteriormente de “capital societário” que se
torna dirigente das sociedades capitalistas mais desenvolvidas, que utilizam o
aparelho estatal para, segundo Gramsci, “pelo direito, tornar homogêneo o
grupo dominante”.
O Estado pode ser analisado neste sentido como o espaço de
consubstanciação da forma legal das relações socioeconômicas. A esfera na qual
as alterações do substrato social tornam-se expressas em novas relações
garantidas pela lei351. Segue disto que o Estado é ao mesmo tempo reflexo e
constituinte das formas de dominação de classe. Ele reflete o conteúdo das
relações, providenciando, na lei, sua forma; no cumprimento da lei, sua
homogeneização.
350 “O direito privado desenvolve-se simultaneamente com a propriedade privada, a
partir da desintegração da comunidade natural” (Marx & Engels, 1986: 98). A manutenção do modo de produção e a conseqüente manutenção das relações da indústria e do comércio em Roma num estágio com baixa divisão do trabalho, fez com que seu código legal ficasse esquecido durante a idade média até que o desenvolvimento do comércio marítimo na Itália renascentista o trouxesse de novo à baila e então fosse adotado como base do direito privado nas principais nações européias, com a exceção britânica, onde foi mais extensamente adaptado.
351 “Como o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado e adquirem através dele uma forma política. Daí a ilusão de que a lei se baseia na vontade e, mais ainda, na vontade destacada de sua base real – na vontade livre. Da mesma forma, o direito é reduzido novamente à lei” (Marx & Engels, 1986: 98).
295
Por outro lado, nos interessa aqui discutir, em particular, a interação
entre o Estado e o processo produtivo, seja através da intervenção direta do
Estado na Economia, tanto como produtor quanto como regulador do processo
de reprodução social ampliada do capital352, seja como último garantidor do
equivalente geral fiduciário e do crédito. Além disto discutiremos no próximo
capítulo o papel do Estado na indução de comportamentos econômicos através
de políticas ativas como o gasto público e as políticas protecionistas – que de
resto já existiam, ainda que em outras formas, nas cidades-Estado italianas
desde o renascimento e em outros Estados europeus a partir, pelo menos, do
século XVIII353. Finalmente, no último capítulo desta parte, discutiremos a
tensão gerada pela mundialização do processo de acumulação capitalista em
relação às unidades nacionais nas quais se organiza a vida dos povos e onde se
dá a construção do consenso.
1. O equivalente geral.
O dinheiro é a forma universal de manifestação das mercadorias que
representam a riqueza social354, desta forma “o dinheiro aparece (...) como a
encarnação material do valor; é seu ser-aí, a aparência efetiva do valor
autonomizado que suprimiu o valor de uso enquanto seu suporte material”
(Paulani, 1991: 137), e já ao tempo de Marx o ouro era visto como simples signo
por diversos autores. Isto correspondia a uma forma de fazer-se ver que “a
352 “O fato de que a principal função do Estado seja a de proteger a existência e a
estabilidade de determinada forma de sociedade não significa que não execute também outras funções de importância econômica. Pelo contrário, o Estado tem sido um fator de grande relevância do funcionamento da Economia dentro da estrutura do sistema de relações de propriedade que a garante” (Sweezy, 1983: 190).
353 “O privilégio corporativo local estendia-se, nessas proibições primitivas, a toda a nação. Os direitos alfandegários surgiram dos tributos que os senhores feudais impunham aos comerciantes que atravessavam seus territórios, como resgate da pilhagem; tais tributos foram, mais tarde, igualmente impostos pelas cidades e, com o aparecimento dos Estados modernos, constituíram o recurso mais ao alcance do fisco para obter dinheiro” (Marx & Engels, 1986: 89).
354 Como nos lembra Paulani: “quando o dinheiro aparece, contudo, e se encarrega de toda a trabalheira da mediação, essa antítese constitutiva da mercadoria, que se externalizava antes na forma simples, vale dizer, na relação entre duas mercadorias, se externaliza, agora, na forma dinheiro do valor, ou seja, na relação entre mercadoria e dinheiro. Por isso se diz que o dinheiro, enquanto meio de circulação, meio de troca, enquanto mediação, pois, resolve a contradição e resolve porque a realiza em outra condição, ou seja, naquela que surge entre mercadoria e dinheiro. O dinheiro aquieta a alma da mercadoria porque facilita e acelera a sua realização, a qual só se dá através do movimento de sua circulação; tudo se passa, então, como se o pólo valor encarnasse no dinheiro (o dinheiro é o valor autonomizado) e restasse à mercadoria o pólo valor de uso” (Paulani, 1991: 137).
296
forma do dinheiro é exterior à coisa mesma, e portanto, mera forma de
manifestação das relações humanas ocultas detrás dela” (Marx, 1984: I/1:111).
Embora Marx desenvolva sua teoria imerso numa sociedade em que
vigora o padrão-ouro e a ideologia a ele subjacente355, sua concepção de moeda
já está um passo adiante de seu tempo, antecipando quase em um século a idéia
de eliminação do lastro ouro e a adoção da moeda fiduciária como uma
possibilidade não só teórica como prática356. Mais ainda, uma necessidade a ser
imposta pela história, pois, “o ouro e a prata, como mercadorias monetárias,
constituem para a sociedade custos de circulação que só surgem da forma social
da produção. [...] é uma parte da riqueza social que há que sacrificar ao processo
de circulação” (Marx, 1984: II/4, 162).
355 “[...] as limitações que a natureza do capitalismo [...] [da época de Marx] impôs a sua
apresentação teórica são muito claras. Para ele, a vinculação do dinheiro a uma mercadoria particular (o ouro) impunha-se como uma necessidade. Portanto, apesar de forma autônoma do valor, o dinheiro não podia ser assim tão autônomo. Na aparência o dinheiro tinha de ser mercadoria (como de fato tem de sê-lo ainda hoje) mas mercadoria ‘de verdade’, ou seja, o ouro. Assim, se ele tinha consciência do caráter puramente formal do dinheiro, que se realiza quando de sua determinação de meio de pagamento geral, acreditava também que, quando era necessário o ‘valor em pessoa’, era o ouro a única aparência capaz de conferir ao dinheiro esta dignidade. Enquanto dinheiro mundial, por exemplo, era sempre necessário que ele existisse em sua corporeidade metálica, de modo que não fosse apenas forma do valor mas o próprio valor, situação diferente da existente no âmbito interno, onde ele era substituído por signos do valor. [...] não pôde Marx perceber que a essência da aparência de mercadoria do dinheiro é, ela própria, puramente forma e não pôde perceber isso porque efetivamente a realidade do capitalismo do século XIX obrigava que o dinheiro se mostrasse como ouro” (Paulani, 1991: 146-7). Já a teimosia de Hilferding da necessidade do lastro ouro no início do século XX não nos parece tão desculpável.
356 “A lei determina arbitrariamente o conteúdo metálico das tarjas de prata ou cobre. Em seu curso as mesmas se desgastam ainda mais rapidamente que as moedas de ouro. Por conseguinte, na prática sua função monetária se torna inteiramente independente de seu peso, isto é, de todo valor. A existência monetária do ouro se separa totalmente de sua substância de valor. Objetos que, em termos relativos, carecem de valor, bilhetes de papel, ficam pois em condições de funcionar substituindo ao ouro, na qualidade de moeda. Nas tarjas metálicas o caráter puramente simbólico se encontra ainda, em certa medida encoberto. No papel moeda faz sua aparição sem tapumes” (Marx, 1984: I/1, 154-5).
“... o dinheiro só funciona como signo de si mesmo e, portanto, também pode ser substituído por signos. O signo do dinheiro não requer mais que sua própria vigência socialmente objetiva, e o papel moeda obtém essa vigência mediante o curso forçoso. Este curso forçoso estatal só vige dentro da esfera da circulação interna, ou seja, da circunscrita pelas fronteiras de uma comunidade, mas é só nessa esfera também, onde o dinheiro exerce de maneira plena sua função como meio de circulação ou moeda, e portanto, onde pode alcançar, no papel moeda, um modo de existência puramente funcional e exteriormente desligado de sua substância metálica” (Marx, 1984: I/1, 158). Junte-se isto aos acordos de Bretton Woods e temos como explicar o curso forçoso do dólar como moeda mundial do sistema capitalista e o estabelecimento da centralidade do Estado norte-americano (pelo exercício do poder), bem como a “predileção” do sistema financeiro internacional por esta moeda. O curso forçoso da moeda fiduciária, estabelecida antigamente dentro de um campo nacional, ganha o mundo na medida em que se estabelece uma hierarquia entre os Estados que se reflete na hierarquia de suas moedas fiduciárias.
297
É necessário que o volume de dinheiro que representa o capital seja
suficiente para dar curso à produção capitalista. Daí deduz-se que a limitação do
volume de ouro teria, necessariamente, de ser substituída pela moeda
fiduciária357. A moeda fiduciária transfere ao Estado e aos bancos, via
multiplicador de crédito, esta capacidade de gerar capital monetário em
potencial. Com isto, a acumulação que se encontrava limitada pelo volume de
ouro produzido no “departamento aurífero” como analisado por Marx, passa a
ser limitada por uma convenção social em torno do volume ideal de moeda e
crédito. Esta convenção é constantemente tensionada pela existência de dois
pólos criadores do crédito, o primeiro privado, representado pelos bancos, e o
outro público, representado pela autoridade monetária estatal. Assim a criação
de crédito pelos bancos leva a uma disputa através dos mecanismos de mercado
pela apropriação da mais-valia socialmente gerada e que deve ser expressa pelos
preços das mercadorias. A inconsistência entre o volume de dinheiro e o valor
que deve ser expresso resulta na destruição do próprio “valor” da moeda, ou
seja, na perda da capacidade desta representar o valor contido nas mercadorias,
que resulta no fenômeno inflacionário. Com isto, o Estado que é levado a
exercer seu poder regulador sobre o sistema monetário encontra-se numa
relação permanentemente tensa com o pólo privado do mecanismo de criação
social de crédito358.
Ao longo do processo histórico “a quantidade de dinheiro existente na
sociedade é sempre maior que sua parte imersa na circulação ativa, por muito
que esta parte aumente ou decresça conforme as circunstâncias” (Marx,
1984:II/5, 602). O sistema bancário acelera esta acumulação ao tornar
disponíveis os capitais sociais acumulados por diferentes capitalistas e pelas
outras classes. A complexidade do processo de atesouramento e de circulação
oferece um sem número de “ocasiões de desenvolvimento anormal” onde o ciclo
virtuoso da acumulação encontra problemas e desequilíbrios. Assim sendo, a
massa de ouro dos países desenvolvidos, ao tempo de Marx, era constantemente
357 “Só na produção do ouro – na medida em que o produto áureo contém mais-produto,
portador de mais valia – se cria nova riqueza (dinheiro em potência), o produto áureo entra na circulação, acrescenta o material monetário de novos capitais monetários em potência” (Marx, 1984:II/5, 599).
358 Como veremos nos próximos capítulos, o desafio lançado pelas praças offshore, constitui exatamente na geração de espaços desregulados de criação de moeda que buscam contornar as barreiras instituídas pelo Estado a esta expansão.
298
pressionada a expandir-se para fazer frente à acumulação359. A impossibilidade
prática do sistema de dar vazão às trocas necessárias no sistema comercial e o
desenvolvimento do sistema de crédito levam em decorrência à paulatina
adoção do sistema universal de moedas fiduciárias. Isto resulta, como
demonstrado pela história do pós-guerra, na construção de um sistema
monetário internacional altamente hierarquizado360.
Assim, ao dissociar-se as moedas nacionais de um equivalente físico, a
gestão monetária tornou-se um dos componentes da superestrutura idealista
estatal, pois é a partir da confiança dos cidadãos na capacidade do Estado de
garantir as funções básicas da moeda que se avalia sua força361. Como
decorrência deste fato, as relações de disputa interestatais no final do século XX
são fortemente marcadas pela disputa no campo monetário, e a hegemonia, no
sentido mais amplo e tradicional do termo, da política econômica norte-
americana serve de aval e é avalizada pela centralidade do dólar para o sistema
financeiro internacional.
Desta forma,
“... a possibilidade de substituição monetária revela a natureza
hierárquica das relações entre as moedas na economia mundial. Isto
significa que são sempre problemáticas as relações entre as moedas
nacionais ‘fracas’ – no sentido de que não gozam de boa ou nenhuma
reputação como instrumentos de denominação ou liquidação de
transações internacionais – e a moeda que desempenha provisoriamente
o papel de standard universal” (Belluzzo & Almeida, 2002: 18).
Se ao tempo de Marx, era lucrativo especular com os diferenciais de
valores do ouro e da prata utilizados como lastro monetário em diferentes
países, o sistema monetário internacional contemporâneo baseia-se numa
versão fake desta mesma relação. De certa forma se paga um prêmio para se ter
acesso ao equivalente geral universal (que não é mais físico, mas tão somente 359 É interessante notarmos que este mecanismo é substituído pelas reservas em
“moedas fortes” nos países da periferia sistêmica nos dias de hoje 360 Para uma história bastante detalhada ver Eichengreen (2000) ou, para uma
abordagem mais crítica, Strange (1998). 361 “Gerir a moeda significa, antes de mais nada, preservar a unidade de suas três
funções – padrão de preços, meio de circulação e reserva de valor – e impedir que quaisquer ativos (moeda estrangeira, títulos financeiros públicos ou privados, mercadorias particulares) possam assumir essas funções ou alguma delas, colocando em marcha um processo de fracionamento do sistema monetário e da sociedade fundada nas relações mercantis” (Belluzzo & Almeida, 2002: 17-8).
299
uma moeda fiduciária garantida por um Estado num nível superior na cadeia
hierárquica) nas economias periféricas. A necessidade de divisas estrangeiras
para a liquidação de transações internacionais leva a que a gestão do câmbio se
torne um mercado onde grandes empresas especulam contra pequenos Estados,
que no afã de manter sua soberania monetária, submetem-se a um jogo onde
são necessariamente os perdedores362.
Em seguida discutiremos o processo histórico no qual se deu a
substituição do sistema monetário lastreado em metais para o sistema fiduciário
puro, a substituição da mercadoria equivalente pelo símbolo socialmente
construído e naturalizado. Desta discussão passaremos à relação entre as
diferentes moedas, o câmbio, que esconde em si relações de poder que toldam a
visão das já desiguais relações de comércio internacional. Finalmente
encerramos este capítulo com uma discussão sobre o papel de geração de
crédito e da administração do equivalente geral desempenhado pelos Estados.
2. A moeda
Marx vive no período histórico em que se dá o processo de transição da
ordem monetária calcada no equivalente geral metálico para o papel moeda
fiduciário. O padrão ouro dominante na Grã-Bretanha era imitado por uma
parcela das nações do globo, enquanto outras aderiam à prata ou ao
bimetalismo. Havia nações, como o Brasil, que já à época utilizavam-se apenas
da moeda fiduciária, eventualmente embarcando em aventuras de
conversibilidade que geravam mais desastres econômicos do que ganhos
comerciais363. Essencialmente o sistema do padrão-ouro funcionava a partir de
uma moeda-papel idealmente lastreada em ouro, com a conversibilidade
garantida pelos Bancos nacionais que deram origem aos modernos Bancos
Centrais, mas sem realmente existir um volume de reservas conversível ao
362 Strange (1998) aponta mesmo que “por volta dos anos 1980, as velhas barreiras
insulares em torno de muitas das principais economias haviam desaparecido” (Strange, 1998: 91). “no novo sistema financeiro aberto, os estados não podiam mais controlar simultaneamente a taxa de inflação e a taxa de câmbio e a taxa nacional de crescimento econômico. Uma das três deveria ser deixada aos mercados” (Strange, 1998: 91). Discutiremos algumas das implicações da internacionalização do fluxo de capitais neste capítulo e no próximo.
363 Ver Eichengreen (2000). Para informações sobre as economias latino-americanas ver Dawson (1998) e em menor medida Caldeira (1995). É interessante ressaltar como este último descreve o Visconde de Mauá como ardoroso adversário do padrão-ouro na economia brasileira, o que destoa de sua formação fortemente influenciada por Adam Smith.
300
par364. Na verdade, as reservas metálicas tinham papel no comércio exterior, ao
passo que nos mercados internos já não eram utilizadas tornando-se hábito
nesta quadra “o abandono da conversibilidade dos bilhetes bancários dos
bancos centrais” em casos de “emergência”. Desta forma,
“... quando o Banco da Inglaterra, em função das guerras napoleônicas e
da necessidade de financiar seus aliados, cortou,em 1797, o vínculo
automático entre suas notas e os metais preciosos pelos quais elas
deveriam ser, em princípio, trocáveis, o dinheiro mostrou, pela primeira
vez, que havia algo mais por trás de sua natural aparência de mercadoria,
visto que, de uma hora para a outra, por conta de um decreto qualquer,
ele podia transformar-se em simples pedaço de papel, sem nenhuma
referência mais, por indireta e longínqua que fosse, ao ouro que ele era,
e, o que é mais surpreendente, podia desempenhar, a despeito disto, as
mesmas funções de antes” (Paulani, 1991:76).
A desvalorização da libra que seguiu a este abandono levou à
“controvérsia bullionista” onde saiu vitoriosa a visão ricardiana da necessidade
de manutenção do vínculo ao substrato metálico como forma de garantir a
estabilidade de preços, que conduziram ao padrão ouro que seria a doutrina
inconteste nos 150 anos seguintes.
Na medida em que o volume de dinheiro necessário às transações difere
essencialmente do volume total de metal disponível para servir como
equivalente geral, passou-se a utilizar junto com o metal, ainda no século XIX,
depósitos em papel-moeda estrangeiro como “lastro conversível”365, o que
distanciou ainda mais o volume total de papel-moeda em circulação de sua base
aurífera. Esta função de meio de troca da moeda é que empurra o sistema no
sentido de plena utilização do papel-moeda. As tentativas de manutenção da
364 Apenas como exemplos do multiplicador bancário: em 1892 as reservas de ouro
representavam apenas 11,97% dos depósitos na Inglaterra. No início da década de 1840, para £ 3 Mi de reservas na Escócia, havia £ 27 Mi em depósitos.
365 A demanda de ouro já punha em polvorosa o sistema bancário na década de 1840, pois um fluxo de ouro para o estrangeiro implicava numa redução da capacidade de emissão. O problema do Banco da Inglaterra já era o problema contemporâneo de manter a conversibilidade da moeda, devido ao ouro “servir como fundo de garantia para a conversibilidade de bilhetes de banco em países com o desenvolvimento do sistema de crédito e de dinheiro creditício. A tudo isto se soma finalmente 1) a concentração do fundo nacional de reserva num único banco principal, e 2) sua redução ao mínimo possível” (Marx, 1984: III/7, 586).
301
conversibilidade e/ou de manutenção de limites estreitos de lastro físico
empurram os sistemas monetários nacionais a constantes crises366.
O mercado de dinheiro era perturbado ao tempo de Marx até mesmo por
elementos sazonais bastante simples como as colheitas, a distribuição trimestral
de dividendos e os pagamentos periódicos de juros da dívida pública. Além das
oscilações provocadas pelo ciclo de longa duração da própria produção
capitalista. Em momentos de pânico, os comerciantes não devolviam aos bancos
os bilhetes circulantes e produzia-se uma escassez devido às limitações impostas
pela lei à emissão de bilhetes pelo Banco da Inglaterra. Contraditoriamente ao
apregoado pela economia vulgar, “a quantidade absoluta da circulação só influi
de maneira determinante sobre a taxa de juros em tempo de estreitamento [do
mercado]. Neste caso, a demanda de circulação plena só expressa a demanda de
meios para o entesouramento” (Marx, 1984: III/7:683). Ou seja, diminuía a
velocidade de circulação e em conseqüência aumentava a demanda por moeda
corrente.
As corridas bancárias e o estreitamento do mercado de dinheiro podiam
ser provocados na Inglaterra, pela ação de grandes especuladores ou por três
bancos. O Banco da Inglaterra, embora tivesse o poder de fazê-lo sozinho ficava
fora do jogo devido a seu caráter semi-estatal367.
No processo de reprodução ampliada, a Inglaterra do século XIX,
funcionava como succionadora do ouro mundial como forma de mantê-lo
internamente como unidade de conta. A armadilha do padrão ouro impunha-se
também ao centro hegemônico do sistema financeiro na medida em que
impunha limites à acumulação de capital por não disponibilizar o volume de
dinheiro necessário à reprodução ampliada do capital investido na City
londrina368. Naquele momento,
366 “O que sugerimos aqui é que, quando se quer o dinheiro como mercadoria absoluta, e
não apenas como intermediário de trocas, ou seja, nas crises, essa necessidade deixa de ser fictícia. Nesses momentos, se quer o valor em pessoa, portanto sua substância. E se o dinheiro é visto como tal mercadoria, os que se refugiam nele têm a ilusão (que não é, no entanto, ilusão subjetiva, mas objetiva) de que seguram nas mãos a própria substância do valor. Contudo, é porque é fictícia a necessidade que obriga a relação do valor dinheiro com um substrato, que tal vinculação pode, na realidade, ser falsa ou mesmo inexistir. Quando o dinheiro é vinculado ao ouro, a relação é falsa, porque o valor do ouro também varia; quando ele é substituído por signos de valor, ela simplesmente não existe” (Paulani, 1991: 145).
367 O que de certa forma é a característica de um Banco Central autônomo contemporâneo. Estatal para garantir a solvência do sistema. Privado para esfolar a sociedade.
368 Ver Arrighi (1996) e Dawson (1998).
302
“o dinheiro suplementar que se requer para a circulação desta massa
mercantil maior e de valor superior deve obter-se ou economizando num
grau mais alto a massa monetária circulante – ora compensando os
pagamentos, etc., ora recorrendo a meios que acelerem a circulação das
mesmas peças monetárias – ou bem fazendo passar o dinheiro da forma
de tesouro à forma circulante” (Marx, 1984: II/4, 422).
Disto se deduz que o volume de mercadoria-dinheiro tendia a impor um
limite à capacidade de acumulação do sistema. A moeda fiduciária rompe esta
limitação através de um processo histórico no qual
“O sistema bancário demonstra ademais, em virtude da substituição do
dinheiro por diversas formas de crédito circulante, que o dinheiro, de
fato, não é outra coisa que a expressão particular de caráter social do
trabalho e de seus produtos, mas que, em contraposição à base da
produção privada, sempre deve apresentar-se em última instância como
uma coisa, como uma mercadoria particular junto a outras mercadorias”
(Marx, 1984: III/7:782).
Isto se dá até que tal expressão se torne socialmente aceita como mero
símbolo e a necessidade de lastro material do equivalente geral dissolva-se no
ar369. Assim sendo, o próprio processo de eliminação deste lastro do equivalente
geral é um processo pelo qual se naturaliza a relação monetária a ponto de
transformá-la em mera troca simbólica.
Por outro lado, o preço dos metais passou a ser afetado por existir
excesso ou escassez num determinado país, despregando seu valor do seu preço,
369 Este processo é discutido por Paulani, que conclui que “Assim, se como diz Marx, a
contradição entre mercadoria e dinheiro é a exteriorização da contradição interna à mercadoria ente valor de uso e valor, essa mesma exteriorização da contradição pode ser dita de outra forma, ou seja, como a contradição interna ao dinheiro mesmo que tem, a um só tempo, de ser e não ser mercadoria. É como se, ao invés da contradição ficar espalhada em infinitas mercadorias, distintas umas das outras, ela se concentrasse numa única, que teve, para tanto, de suprimir de suas determinações o valor de uso (inclusive seu próprio valor de uso ser apenas valor de troca, visto que a troca não mais dele necessita).”
“Mas isso só acontece, como já se adiantou, quando o dinheiro deixa de ser mera forma evanescente das mercadorias em seu movimento de circulação, para se fixar, como diz Marx, enquanto única forma, porque é forma autonomizada do valor, é a forma que o valor encontra para se libertar, em sua apresentação, da corporeidade diferenciada das mercadorias (que só o punha de modo limitado, que o fazia correr incessantemente de um lado a outro), guardando delas sua aparência fenomênica. Daí que, no que tange ao dinheiro, pouco importa qual é o corpo que carrega essa forma, se ouro ou bilhete de papel, aquela que legitimamente representa todas as demais: sua aparência de mercadoria dissimula assim sua existência formal” (Paulani, 1991: 144).
303
exercido pela função social de dinheiro370. A recusa do Estado em cunhar
moedas com o metal levado à casa da moeda gerava processos de descolamento
do preço dos metais e a expulsão da “moeda boa”.
Os teóricos marxistas que trataram deste assunto na época do início da
dissolução do padrão ouro (que corresponde ao período de crise da hegemonia
britânica) também pouco contribuíram para o entendimento do processo. Por
exemplo, embora abra a caixa preta da moeda fiduciária e perceba a tendência
geral do desenvolvimento do processo onde “o padrão verdadeiro de valor não é
o dinheiro; a ‘cotação’ do dinheiro é determinada por aquilo que eu gostaria de
chamar de valor socialmente necessário da circulação” (Hilferding, 1985: 52), a
argumentação de Hilferding é contraditória com seu achado e ele defende a
redução da moeda fiduciária a um mínimo e a manutenção do metal em
circulação371.
Segundo Hilferding, a “moeda [fiduciária] fracassaria na prática, pela
simples circunstância de não haver nenhuma garantia do Estado não aumentar
a emissão desse papel-moeda” (Hilferding, 1985: 62). Este argumento,
analisado ex post, parece bastante ingênuo, pois apontava justamente para a
necessidade de se instituir uma relação entre o Estado e o mercado na qual se
obrigou o Estado a declarar o volume de dinheiro em circulação para conter esta
possibilidade de emissões “indevidas”- além de gerar o espaço para se especular
contra o erário público.
Como a troca só se legitima através do equivalente geral, a substituição
deste equivalente geral, socialmente convencionado como uma mercadoria que
representa as demais mercadorias, por outro, representado pelo papel-moeda e
370 Um exemplo é o do Florin austro-húngaro (cf. Hilferding, 1985: 47-9). 371 “... semelhante papel moeda sem lastro de metal não corresponde, a longo prazo, às
exigências do meio de circulação. Como seu valor é determinado pela soma de valor das respectivas mercadorias correspondentes em circulação, e estas se encontram submetidas a constantes oscilações, o valor do dinheiro também oscilaria constantemente. O dinheiro já não seria o parâmetro de valor das mercadorias, mas, pelo contrário, seu valor seria medido de acordo com a respectiva capacidade circulatória, ou seja, pelo valor das mercadorias, no caso da velocidade de circulação permanecer constante. Papel-moeda de tipo puro, torna-se pois, impossível como instituição permanente por que a circulação estaria, dessa forma, exposta a perturbações constantes” (Hilferding, 1985: 60-1). Mas, na prática, o estabelecimento da conversibilidade em ouro, já estava causando esta mesma instabilidade. O problema é que o equivalente geral para manter-se estável necessitava de uma determinada estabilidade na forma de distribuição da massa de valores gerados na economia, o que implicava numa regulação estatal sobre a emissão monetária e o controle das reservas bancárias através dos depósitos compulsórios nos bancos centrais e das políticas de redesconto.
304
pela moeda escritural bancária – simples símbolos -, constitui o caminho
histórico de sua naturalização como relação social cristalizada. E é no campo da
estrutura idealista, o Estado, que se consubstancia esta relação372. Assim, num
primeiro momento,
“O Estado ou a ordem legal não determinam arbitrariamente nem o
caráter do dinheiro, nem a matéria do dinheiro. Logo, o Estado ou a
ordem legal somente transformam de imediato o dinheiro em moeda.
[...] O ouro é primeiramente dividido ou medido de acordo com o peso e
posteriormente segundo outro parâmetro aleatório, com base obrigatória
em algum acordo consciente. Como o Estado representa a forma de
organização consciente mais elevada, no caso da sociedade produtora de
mercadorias, cabe a ele sancionar esse acordo para que o mesmo tenha
validade social universal” (Hilferding, 1985: 40).
Hilferding dá o primeiro passo na análise, mas não a completa, pois
seguiria disto que, de fato, o ouro deixaria de ser necessário. Destarte, na
medida em que se reconheceu o valor do papel-moeda e de seu registro bancário
através das leis domésticas e acordos internacionais, a moeda fiduciária
mostrou-se perfeitamente capaz de substituir o ouro. Mais que isto, como
também foi desenvolvido por Belluzzo e Almeida (2002), dada a hierarquização
internacional e a capacidade de determinados Estados de manter a validade
geral de suas moedas, cria-se a situação na qual o poder relativo é a fiança do
equivalente geral e, em conseqüência, pode-se entender a construção da
hegemonia do dólar com relação às demais moedas como conseqüência do
poder dado pela capacidade produtiva norte-americana e de seu poderio militar,
ou seja, como extensão da hegemonia norte-americana nas relações
internacionais373.
372 “A moeda e a confiança nela são fenômenos coletivos, sociais. [...] O metabolismo da
troca, da produção, dos pagamentos, depende do grau de certeza na preservação da forma geral do valor, que deve comandar cada ato particular e contingente. A reprodução da sociedade fundada no enriquecimento privado depende da capacidade do Estado de manter a integridade da convenção social que serve de norma aos atos dos produtores independentes” (Belluzzo & Almeida, 2002: 27).
“Marx foi quem melhor entendeu, em todas as suas conseqüências, o fenômeno monetário do capitalismo. [...] A ‘sociedade’ – ou seja, as relações constituídas pela referência a um padrão comum de valor – antecede, do ponto de vista lógico, os desejos e as preferências do indivíduo produtor” (Belluzzo & Almeida, 2002: 27).
373 Na verdade nos encontramos diante de uma determinação cruzada: o dólar torna-se a moeda referencial como resultado da supremacia americana no pós-guerra, e esta supremacia
305
Estes autores ressaltam ainda, que:
“Na visão marxista, o processo de socialização dos proprietários privados
é visto como o resultado da institucionalização de uma rivalidade
irredutível entre proprietários de riqueza. Sendo assim, é preciso
reconhecer que as instituições que nascem desse conflito são, elas
mesmas, instáveis e sujeitas ao colapso e à reorganização periódicas”
(Belluzzo & Almeida, 2002: 29) 374.
E o que está pressuposto neste raciocínio é justamente a relação de poder
instituída pelo capital como hegemon do conjunto social como apontamos no
capítulo 1. O poder relativo e a estabilidade da moeda são expressão não apenas
do grau de soberania de uma nação, mas também do grau de hegemonia interna
– entendida como o grau de coesão atingido pelas classes dominantes, isto é
pelos representantes do capital, tanto política como economicamente. É neste
sentido que “os agentes privados tem que acreditar nessa convenção precária e
transforma-la numa âncora natural, num centro de gravitação de suas decisões,
girando como a terra em torno do Sol” (Belluzzo & Almeida, 2002: 29-30).
De certa forma, o Estado “ganha” a capacidade de emissão de nova
moeda como quem garimpa ouro, pois teoricamente coloca em circulação um
“novo valor” que pode ser socialmente ratificado na circulação de mercadorias
(e aqui ocorre uma importante confluência entre as interpretações marxistas e
keynesianas). Isto permite ao Estado atuar como gerador do consumo,
garantindo através de uma intervenção ex ante a realização do capital investido
de forma anárquica. Por outro lado, entretanto, passa a ser função do Estado
garantir a medida do valor, isto é administrar para o conjunto da sociedade o
equivalente geral fiduciário e os limites do crédito. Com isto, o Estado passa a
estar submetido à limitação da percepção social sobre o volume de moeda
necessário à circulação.
é garantida pelo uso do dólar como standard universal nos países que compõe o bloco capitalista.
374 O seguinte trecho, redigido por Engels para complementação de uma lacuna em O Capital, dá plena razão ao argumento: “A riqueza da sociedade só existe como riqueza de indivíduos, que são seus proprietários privados. Só se acredita como riqueza social pelo fato de que esses indivíduos trocam reciprocamente os valores de uso qualitativamente diferentes com o fim de satisfazer suas necessidades. Na produção capitalista só podem fazê-lo por mediação do dinheiro. Assim, só mediante o dinheiro, a riqueza do indivíduo se efetiva como riqueza social; no dinheiro, nessa coisa, se encontra encarnada a natureza social dessa riqueza.” (Marx, 1984: III/7:739, trecho redigido por Engels).
306
Não é apenas o fundo público que se encontra em disputa na figura do
Estado, a moeda fiduciária torna o Estado o espaço de conflito pela apropriação
do valor representado no Dinheiro, o que inclui a capacidade dos bancos
gerarem moeda contábil através do multiplicador bancário. A determinação da
cotação do equivalente geral, e de seu valor de conversão nas demais moedas
passa a ser objeto de disputa política entre as diferentes frações e classes que
compõe a sociedade. Este processo torna a reprodução ampliada do capital
dependente da sanção social do equivalente pela representação ideal do
interesse coletivo na forma do Estado, o que leva a uma nova rodada de criação
de instituições que coloquem os interesses das frações beneficiadas ao abrigo da
disputa política.
As instituições que limitam o papel do Estado visando ao mesmo tempo
garantir a riqueza social e evitar o “abuso” do poder discricionário por parte do
Estado, como os “bancos centrais autônomos”, fazem parte da construção
paulatina de mecanismo de controle sobre a ação reguladora exercida pelo
governo, de forma a garantir que o Estado represente de fato apenas e tão
somente os interesses dos detentores de riqueza, mesmo que o governo
pretenda, eventualmente, aplicar um rumo diferente às relações econômicas375.
Desta forma,
“A capacidade de garantir o valor do estoque de moeda emitido pelos
bancos nas operações de crédito que criam depósitos depende, na
verdade, da confiança do público nas normas de conversibilidade desta
moeda privada na moeda estatal e desta no dinheiro universal” (Belluzzo
& Almeida, 2002: 32).
Segue que as crises monetárias se dão devido a descompassos entre a
magnitude de bilhetes necessários como meios de troca e o entesouramento.
“A função do dinheiro como meio de pagamento traz consigo uma
contradição não mediada. Na medida em que se compensam os
pagamentos, o dinheiro funciona só idealmente como dinheiro de conta
ou medida de valores. Na medida em que os pagamentos se efetuam
realmente, o dinheiro já não entra em cena como meio de circulação,
como forma puramente evanescente e mediadora do metabolismo, mas
como a encarnação individual do trabalho social, como a existência 375 Voltaremos à frente ao problema dos bancos centrais autônomos.
307
autônoma do valor de troca, como mercadoria absoluta. Dita contradição
estala nessa fase das crises de produção e comerciais que se denomina
crise monetária” (Marx, 1984: I/1, 168).
A gestão da moeda como bem coletivo e seu papel como cristalizadora da
relação de poder de comando sobre os valores socialmente constituídos, fazem
com que a moeda passe a expressar em si a contradição público/privado latente
na disputa Estado/mercado, pois “essa indeterminação dos resultados da
política monetária – seja ela discricionária ou submetida a regras preanunciadas
– reflete a dupla natureza do dinheiro no capitalismo, enquanto bem público e
objeto de desejo privado” (Belluzzo & Almeida, 2002: 34).
Estamos aqui diante de uma discussão realmente fulcral para o capital
hegemon: o dinheiro é gerido por uma estrutura idealizada como pública, o
Estado, mas serve de regulação para atividades privadas, e desta forma, isto
gera um claro conflito de interesses entre as classes idealmente representadas
no Estado. Por um lado, o Estado, ao exercer sue poder discricionário, é capaz
de socializar perdas ou impor condições à circulação do valor; por outro, o
capital busca controlar a ação do Estado, seja gerando restrições a seus
movimentos, seja pressionando pela autonomia dos Bancos Centrais, que
representam normalmente uma limitação a seus poderes discricionários em
termos de política monetária. Assim, se para Keynes
“a ordem monetária é indissociável da soberania do Estado, e sua
sobrevivência supõe que os proprietários acatem a moeda como uma
convenção necessária para a reprodução do processo de circulação de
mercadorias, de liquidação das dívidas e de avaliação da riqueza”
(Belluzzo & Almeida, 2002: 30).
Decorre disto que, no nosso entendimento, o que está em jogo é a
capacidade do grupo dominante dentro de um Estado nacional exercer o poder
soberano deste Estado em sua relação com outros Estados, como uma relação
de poder que se expressa entre outras através da validade interna do equivalente
geral garantido por aquele dado Estado. A existência de um bloco histórico
hegemônico – tanto no sentido social quanto no sentido econômico - interno a
um Estado é o que garante a validade de sua moeda em todas as três funções
monetárias, enquanto que, do ponto de vista externo, é o poder relativo dos
Estados que estabelece uma hierarquia monetária que reflete justamente o
308
poder relativo entre estes (e a base deste poder está justamente na capacidade
produtiva e no grau de coesão nacional). As políticas social-democráticas
baseiam-se justamente nesta capacidade de intervenção do Estado no conjunto
da reprodução social que permitem o redirecionamento de parcelas do
excedente para fora do processo de concentração ditado pelo capital.
As relações monetárias entretanto não estão limitadas ao âmbito das
nações isoladas, assim faz-se mister passarmos à discussão das relações entre as
moedas, ainda que sem a pretensão de esgotá-las.
3. O Câmbio
Parece haver um consenso entre os autores contemporâneos376, tanto de
linhagem marxista quanto da keynesiana, sobre o fato de que o processo de
mundialização do sistema financeiro internacional apresenta uma configuração
sistêmica e hierárquica, quer com relação ao capital, quer com relação aos
Estados-nação, encontrando-se os EUA como epicentro do sistema financeiro.
Estamos longe dos bancos de câmbio que surgiram na virada dos séculos
XVI para XVII377 e que eram analisados por Marx como os negociadores do
dinheiro mundial metálico378. Hoje o mercado de câmbio negocia diariamente
cerca de U$ 1,9 tri, segundo dados do BIS (2003), arbitrando o valor dos
equivalentes fiduciários entre si e estabelecendo uma competição pela
376 É esta a visão de Arrighi (1996 e 1997), Chesnais (1996) e Chesnais et alli (1998), de
Belluzzo e Almeida (2002), Strange (1998), Stopford e Strange (1991), bem como dos diferentes autores que escrevem nas coletâneas organizadas por Tavares e Fiori (1997), e Fiori (1999).
377 A história do sistema monetário e dos centros financeiros a ele relacionados é extensamente descrita por Arrighi (1996 e 1997), ao propor a interpretação da dinâmica dos ciclos longos do capitalismo. Nos dispensaremos aqui de sumarizar esta história.
378 “Enquanto dinheiro mundial, o dinheiro nacional se despoja de seu caráter local; um dinheiro nacional se expressa em outro, e assim todos se reduzem a seu conteúdo em ouro ou prata [...] O comerciante de dinheiro converte esta mediação em sua atividade específica. Assim, o negócio de câmbio e o comércio de lingotes são as formas mais primitivas do comércio de dinheiro, e emanam da dupla função do dinheiro: como moeda nacional e como dinheiro mundial” (Marx, 1984: III/6:407-8). “Mas o dinheiro em sua determinação enquanto meio de pagamento internacional é ouro em sua realidade metálica, como substância valiosa em si mesmo, como massa de valor. É ao mesmo tempo capital, mas capital não como capital mercantil, mas como capital dinheiro. Capital não na forma da mercadoria, mas na forma do dinheiro (e mais exatamente do dinheiro no sentido eminente da palavra, na qual existe na mercadoria geral do mercado mundial). Não nos encontramos aqui na presença de uma antítese entre demanda de dinheiro como meio de pagamento e a demanda de capital. A antítese existe entre o capital em sua forma dinheiro e em sua forma mercadoria; e a forma na qual ele é exigido neste caso, a única forma na qual pode funcionar, em sua forma dinheiro” (Marx, 1984: III/7, 593). Substitua-se aqui o ouro pelo dólar e temos a razão e o alicerce último da hegemonia do capital norte-americano.
309
apropriação de pequenos ganhos diferenciais. A soberania monetária das
diferentes nações do mundo passou a depender do capricho de um mercado,
que se pretende anônimo mas que é composto por cerca de cinqüenta grandes
bancos e outras trezentas financeiras379, articuladas a cerca de quinhentos
fundos mútuos. Todos com nome e endereço.
Não pretendemos entretanto, antecipar aqui a discussão que faremos
sobre as estruturas internacionais – da qual faz parte o Sistema Monetário
Internacional (SMI) - que conformam e regulam o sistema capitalista em escala
global, à qual voltaremos nos próximos capítulos. Para os limites de nossa
discussão basta termos claro que o mercado de câmbio é outro setor onde se
opera a “soma zero” e onde ocorre a transferência de valores entre quem extraiu
a mais-valia e quem se apropria dela380, seja através de trocas desiguais seja
através da remuneração do capital monetário na forma de juros que imponham
a transferência de parcelas da mais-valia que não correspondem à média de
remuneração que seria esperada se o mercado fosse de fato concorrencial. Não é
raro vermos no noticiário econômico, casos de empresas que necessitam enviar
lucros ao exterior pagando por uma alta do câmbio provocada justamente por
sua pressão sobre um mercado diminuto, que depois volta a ajustar-se.
As grandes instituições financeiras vendem na alta e compram na baixa e,
com isto, apropriam-se de uma parcela da mais-valia extraída no setor
produtivo, computada pela indústria como “ágio” na aquisição de dinheiro
universal. Novamente os atores centrais destas manobras são os bancos;
novamente é o deter a forma líquida do capital universal que possibilita a estes o
exercício do arbítrio de fixação de seu preço. Não se trata de trabalho
necessário, mas de realização do capital por parte de seus detentores últimos
necessitar da conversão dos valores de moeda local em moeda geral e desta ser
monopolizada – particularmente no caso dos países menores e/ou periféricos -
por um restrito grupo de instituições financeiras, que graças a este
379 Os dados estão em Chesnais (1996). 380 Encontramos novamente em Neto (2002) uma interessante discussão sobre como se
processa a transferência de valores dentro das trocas internacionais. Embora em princípio sua abordagem seja metodologicamente correta, o autor não discute a tensão provocada pelo controle exercido pelas grandes empresas transnacionais nas trocas diretas (em última instância não são os países que comerciam mas as empresas). Estas empresas respondem grosso modo, segundo dados da UNCTAD (2002) por 2/3 do comércio mundial, sendo que 1/3 de todo o comércio é realizado entre unidades da mesma empresa. Não nos estenderemos sobre este tema.
310
posicionamento estratégico impõem um “custo” de conversão, uma nova punção
financeira sobre o setor produtivo.
A necessidade de conversão constante de valores em distintas moedas
empurra as empresas à constituição de seus próprios braços na execução da
política de câmbio, contaminando o setor produtivo, também neste aspecto,
com a cultura especulativa própria do setor financeiro381. Se ao tempo de Marx
era necessário que o dinheiro internacional fosse ele mesmo “realidade
metálica”, esta não é a condição do Sistema Monetário Internacional atual382,
onde a crise monetária passa a refletir diretamente uma crise de hegemonia
econômica (quando se trata de uma disputa sobre a apropriação do excedente
global representado no denominador comum, como no caso das crises do
petróleo) ou política (quando os atores privados julgam conveniente atacar as
bases monetárias do Estado devido a uma insatisfação com o modo como se dá
o exercício da gestão) no sistema.
Por outro lado, a manutenção do crédito e o controle das taxas de inflação
são crescentemente dificultadas pela adoção de preços dolarizados em
economias onde a geração de divisas se torna uma “obrigação do Estado em
nome da nação” - uma triste sina das populações submetidas à hegemonia do
capital concentrado – e internacionalizado - em sua forma financeira.
4. Crédito, inflação e o papel dos Bancos Centrais
Tratamos no capítulo 6 da relação entre bancos e crédito no sentido de
determinarmos a função do sistema bancário como tesouraria da classe
capitalista, mostrando como esta posição particular possibilita aos membros
381 Esta contaminação é analisada por Strange (1998), além disto já demos o exemplo
dos bancos de montadoras. Este é um processo que, todavia, marca praticamente todas as grandes empresas de capital social.
382 “Assim, a passagem do padrão-ouro ao padrão-dólar implica um movimento dialético: para que, nas crises, o representante do valor possa ser o próprio valor, ele tem de encarnar a si mesmo, de modo que o valor e seu representante coincidem na mesma figura, ou, dizendo de outro modo, nos momentos de crise, o dinheiro, para deixar de ser representante apenas do valor, para ser o valor em pessoa, tem de ser precisamente o representante do valor; para ser o que não é, tem de ser o que é. Essa alteração, traz para o âmbito internacional, a possibilidade de um tipo de crise antes circunscrita ao nível nacional: como agora o dinheiro mundial é, ele próprio, um signo de valor – transformou-se no valor em pessoa – fica latente a possibilidade de que, em determinados momentos, o movimento não mais nele se reconheça, não mais o veja como a mercadoria absoluta e corra anarquicamente em busca de outra” (Paulani, 1991: 174).
311
desta fração de classe a apropriação de uma parcela da mais-valia socialmente
extraída que se constitui numa renda, encoberta pela forma dos juros, oriunda
de sua posição de monopólio sobre o crédito.
Esta função de regulação do crédito, no sentido de prover o mercado da
liquidez necessária às operações de compra e venda relacionadas à realização do
capital industrial e comercial, possibilitou historicamente a constituição de
operações de especulação contra os diferentes atores econômicos que, como
reação, acabaram por forçar a restrição do funcionamento livre dos gestores
financeiros no mercado. A constituição de regras para a emissão de títulos,
redesconto de duplicatas e depósitos compulsórios nos bancos nacionais,
representavam a necessidade do conjunto da classe capitalista adquirir controle
sobre seus tesoureiros, garantindo a observação de regras que não agravassem
ainda mais as crises inerentes ao sistema capitalista com o movimento
agravante da especulação financeira.
Assim sendo, a desregulamentação financeira que ocorre a partir dos
anos 1960 e ganha força na década de 1980, opera como movimento pendular
inverso àquela tendência de regulação e publicização do conflito, no qual o
sistema financeiro ganha autonomia para submeter a esfera produtiva – a
economia real dos neoclássicos - a sua lógica própria de acumulação,
retomando a tendência histórica observada no fim do século XIX e contida pelas
regulamentações surgidas em reação à crise dos anos 1930383. Há aqui uma
clara luta política entre o conjunto da sociedade e os setores bancários das
diferentes nações, pela definição de quem gera o crédito – e se é ou não
remunerado por isso - e quem direciona sua aplicação.
A criação dos Bancos Centrais e sua subordinação aos Estados
correspondem a uma necessidade histórica da classe capitalista que visa a
regulação dos instrumentos de avaliação e validação da riqueza socialmente
constituída. A eliminação do ouro como lastro das operações não elimina a
necessidade de controle do volume de dinheiro disponível à circulação, antes
deixa patente a necessidade de fixação de um ótimo que necessita ser
383 “Os Eua foram atingidos por pânicos nos bancos em 1893, 1895 e depois em 1907. Os
pânicos bancários dos anos 1930, durante a grande depressão, levaram mais de 9.000 bancos à falência” (Samuelson e Nordhaus, 1999:481).
312
administrado no interesse do conjunto da classe detentora de riqueza384.
Primeiro a centralização da emissão monetária nos Bancos Centrais e, depois, a
fixação das taxas de depósito compulsório junto a estes, se dão no sentido de
limitar a criação de moeda, ou seja do crédito, através do multiplicador
bancário, fixando desta forma o volume total de moeda escritural em circulação,
garantindo o controle do volume disponível de meio circulante por parte do
Estado ou de uma agência delegada. Isto se dá porque a base do crédito é o
volume total de moeda, e desta determinação material não pode despregar-
se385.
Os bancos têm por função intermediar as operações de comércio de
dinheiro386 e funcionar como depositários do tesouro dos indivíduos, que
convertem no capital geral de reserva da sociedade. A universalização do
sistema bancário transforma todo dinheiro depositado em capital potencial (e
neste sentido, como discutimos nos capítulos anteriores, podemos dizer que
somos explorados por nossas próprias contas correntes). Além disto, como
também já foi dito, uma parte do dinheiro dos bancos serve para mediar o
consumo e a outra o consumo produtivo387. À época de Marx a diferença mais
marcada era a de que o grande comércio se fazia a crédito e o assalariado não
tinha acesso a este, o que se altera no século XX com a constituição do crédito
ao consumidor, que transfere o encargo do financiamento da realização do
384 “Em tempos de crise, quando o crédito se contrai ou cessa de todo, o dinheiro se
contrapõe subitamente às mercadorias como único meio de pagamento e verdadeira existência do valor. Daí a desvalorização geral das mercadorias, a dificuldade – mais ainda, a impossibilidade de convertê-las em dinheiro, vale dizer, em sua própria forma puramente fantástica. Mas, em segundo lugar, o próprio dinheiro creditício só é dinheiro na medida em que represente absolutamente o dinheiro real no importe de seu valor nominal. Com a drenagem do ouro, sua convertibilidade em dinheiro – ou seja, sua conversibilidade em dinheiro - se torna problemática” (Marx, 1984: III/7:665).
385 “O sistema monetarista é essencialmente católico, enquanto o sistema creditício é essencialmente protestante. [...] Enquanto papel, a existência monetária das mercadorias só possui uma existência social. O que salva é a fé. A fé do valor do dinheiro como espírito imanente das mercadorias, a fé do modo de produção e sua ordem predestinada, a fé nos agentes individuais da produção como meras personificações do capital que se valoriza a si mesmo. Mas assim como o protestantismo não se emancipa dos fundamentos do catolicismo, tampouco se emancipa o sistema creditício de sua base, o sistema monetarista” (Marx, 1984: III/7:762-3).
386 “O comércio de dinheiro facilita o saldo de balanços, na medida em que o dinheiro atua como meio de pagamento, e diminui, em virtude do mecanismo artificial destas compensações, a massa de dinheiro requerida para isto, mas não determina a conexão nem o montante dos pagamentos recíprocos” (Marx, 1984: III/6:411).
387 “A diferente determinação – a de se atua como forma dinheiro da renda ou do capital – não modifica em nada, por princípio, o caráter do dinheiro enquanto meio de circulação” (Marx, 1984: III/7, 575).
313
capital da esfera produtiva para o consumo, criando desta forma novos
mecanismos de subordinação dos trabalhadores ao capital social geral, como foi
discutido no capítulo 6.
Grosso modo, as operações de crédito se dão por três diferentes formas: a
emissão monetária, a emissão de letras de câmbio e a emissão de títulos e ações.
Já discutimos esta última forma no capítulo 8, ao discutir o capital fictício,
assim devemos tratar aqui das duas restantes.
A emissão monetária passa a ser limitada pela legislação que reconhece
os Bancos Centrais como emissores primários de moedas e os bancos comerciais
como emissores secundários através do processo denominado de multiplicador
bancário. Vimos nos itens anteriores que é função dos Bancos Centrais garantir
a função monetária de reserva de valor, de forma a que se limite a capacidade
estatal de emissão que de outra forma permitiria ao Estado ganhos de
segnoriage388.
Como complemento a estas duas formas temos a emissão de letras de
câmbio que trocadas entre industriais e comerciantes, constitui uma relação
interna ao processo M-D de realização da mercadoria como capital que, através
do tensionamento máximo das forças do capital produtivo permite a ampliação
do processo de produção389. A letra de câmbio é fundamentalmente uma
“moeda fiduciária particular”390 emitida por uma empresa, o que levou a que
nas crises, a não conversibilidade destes bilhetes se transformassem em corridas
pela conversão das mesmas em moeda estatal com a conseqüente perda de
valores por parte dos detentores destes bilhetes (novamente os bancos compram
na baixa e cobram na alta). A especialização dos bancos na negociação de tais
388 Em casos de inflação crônica como o apresentado pela economia brasileira nas
décadas passadas, tal capacidade de emissão permitia também a captação do chamado “imposto inflacionário”, composto pela diferença entre o valor da moeda emitida e seu valor futuro no tempo, que pode representar um grande volume de recursos num caso de aceleração inflacionária permanente em curtos períodos de tempo. Este imposto inflacionário também é composto por um componente primário apropriado pelo Estado, e por um componente secundário, apropriado pelos bancos através do empréstimo de dinheiro de contas não remuneradas que lhes permite a apropriação não apenas de um juro real, mas também da correção monetária sobre o montante emprestado. Este processo reforçou a hipertrofia do setor financeiro na economia brasileira e tornou-o um dos mais lucrativos do mundo.
389 “O máximo de crédito equivale aqui [sem bancos] à ocupação mais plena do capital industrial, ou seja, ao descolamento máximo de sua força produtiva sem ter em conta os limites do consumo. Estes limites do consumo resultam ampliados pela maior tensão do próprio processo de reprodução” (Marx, 1984: III/7, 619).
390 “A letra de câmbio substitui o dinheiro ao assumir ela mesma uma função monetária, atuando como moeda fiduciária” (Hilferding, 1985: 85).
314
papéis os levou à posição de intermediários também deste tipo de crédito e
reforçou sua posição como intermediários remunerados das operações de
tesouraria do sistema capitalista391 com as conseqüências já discutidas em
termos de acúmulo de poder. Quando se soma a este processo o desconto das
letras junto aos bancos e corretoras, passa-se a impressão de um ganho de
agilidade nas transações e perde-se a capacidade de prever onde o sistema está
travando até que este entre simplesmente em colapso392.
Se por um lado o crédito permite a expansão da produção, por outro, faz
com que as crises de realização do sistema de produção capitalista se
consubstanciem em crises de crédito, e que a administração da socialização das
perdas, provocadas pelo súbito desaparecimento da riqueza monetária expressa
em representações sociais do capital monetário, seja feita pelo sistema
bancário. Neste sentido, o crédito coloca à disposição dos especuladores toda a
poupança social.
A socialização das perdas se dá em Marx principalmente nos processos de
mercado, em particular pela concentração da propriedade via perdas na bolsa
que obrigam os capitalistas menores a vender sua participação e ser engolidos
pelos que tem recursos em reserva. Entretanto, os processos de destruição de
valor através da desvalorização do equivalente monetário podem também afetar
o conjunto da sociedade, representando muitas vezes transferência de riqueza
entre classes e indivíduos393.
Como vimos no capítulo 2, para Marx a busca por uma taxa de lucros
irreal por parte dos capitalistas leva a um processo inflacionário, o que coloca
Marx como precursor da idéia de inflação de markup. Como corolário à nossa
interpretação, devemos dizer que a disputa pela apropriação do excedente
resulta em inflação sempre que não haja uma “hegemonia de mercado” que
garanta o estabelecimento dos preços de forma a determinar a redistribuição da
renda no conjunto da sociedade aí incluído o fundo público, de forma a
compensar a alta de alguns produtos com a baixa de outros. Segue disto que a 391 O processo é analisado por Marx (1984: III/7) no capítulo XXV. 392 “Se aparecem perturbações nesta expansão [do capital global] ou inclusive só na
intensidade normal do processo de reprodução, também se produz com isto uma escassez de crédito; fica mais difícil obter mercadorias a crédito. Mas a exigência de pagamento em espécie e a cautela na venda a crédito são especialmente características da fase do ciclo industrial que segue o colapso [Krach]” (Marx, 1984: III/7, 622).
393 Na literatura econômica brasileira o melhor exemplo, para não dizermos o exemplo clássico, está na análise do processo brasileiro de industrialização feita por Furtado (1998).
315
estabilidade monetária tem por pressuposto não só a constituição de um
equilíbrio entre as forças atuantes no mercado, mas também na disputa política
pela forma da estrutura idealista que o regula a partir do aparelho de Estado, e
na forma do acesso dos diferentes atores ao fundo público.
Como discutiremos a seguir, os Estados – em particular os dos países do
núcleo capitalista mais desenvolvido - detiveram ao longo do último século uma
capacidade jamais registrada de intervir na vida econômica. Aparentemente tais
Estados buscaram a construção de um equilíbrio na distribuição de renda que
garantisse o crescimento sustentado das economias nacionais. Para tanto, com
base nas políticas de corte keynesiano utilizaram-se de ações que visavam, a
partir do controle sobre a tributação e as moedas, dirigir a ação privada com
vistas ao crescimento econômico, sem preocupar-se necessariamente com a
obtenção de lucros máximos por parte dos atores privados – muitas vezes
contendo mesmo esta tendência.
Enquanto estas políticas representaram oportunidades de novos negócios
e aplicação lucrativa de capitais, as frações de classe burguesas beneficiadas
apoiaram ou quando muito sustentaram uma oposição, por assim dizer,
“menor” às políticas de bem estar social associadas à intervenção planificadora e
direcionadora do Estado. Entretanto, com o fim dos “trinta anos de ouro”, sua
oposição tornou-se crescente e foi comandada pelo setor financeiro que se
internacionalizara.
Não por acaso, uma das primeiras pedras angulares do novo discurso que
buscava moldar a organização dos diferentes Estados dava acento à questão da
autonomia dos Bancos Centrais. Tal autonomia visa castrar a capacidade do
Estado de, através de políticas monetárias, intervir na regulação das taxas de
juros ou de promover políticas de desvalorização monetária que possam, por
ventura, atingir os detentores de riqueza na forma monetária. Ou seja, a
instituição do controle da moeda que havia permitido aos Estados agir como
criadores de crédito é reduzida apenas à função de garantidora do sistema, o
que implica numa reposição dos mecanismos de crédito dentro de uma lógica
estritamente privada e, crescentemente, antipública. Uma vez engessadas as
políticas monetárias, as ações de corte keynesiano por parte do Estado, como
por exemplo a expansão do gasto público, podem ser esterilizadas ou contidas
por um movimento contrário por parte do banco central, e a ação
316
governamental torna-se inteiramente dependente do financiamento privado na
forma da dívida pública.
Além disto, os bancos centrais autônomos, passam a agir de forma
responsiva aos mercados e servem como “perdedores de última instância”, para
usarmos o termo de um analista insuspeito como Ohmae (1999), operando
como socializadores das “perdas” do sistema financeiro para o conjunto da
sociedade em nome da “estabilidade” financeira nacional – ou seja a garantia do
valor da moeda – e da “governabilidade”, lógica implícita na política do “muito
grande para falir” que justifica o socorro aos agentes do sistema financeiro
quando suas ações de risco resultam em fiascos394. Estas dinâmicas estão
vinculadas à idéia de fundo público que passamos a discutir.
394 O PROER é apenas o caso brasileiro de uma política generalizada de socorro a bancos
ocorrida em todo o mundo nas últimas décadas como relata Strange (1998).
317
Capítulo 10 – A Economia Política da Política Econômica.
1. Bens públicos e bens privados: O Estado como produtor de valor e antivalor
Segundo Oliveira (1998), o fundo público formado para financiar a
intervenção estatal, torna-se pressuposto da reprodução da mão-de-obra (via
gastos sociais) e do capital (através de incentivos e investimentos do tipo: juros
subsidiados, setores estatais produtivos, gastos militares, subsídios agrícolas, e
dívida pública). A diferença entre o capitalismo dos séculos XVIII e XIX395, com
relação ao modo social-democrata do século XX é que “criou-se, como já se
assinalou, uma esfera pública ou um mercado institucionalmente regulado”
(Oliveira, 1998: 21).
O crescimento da participação estatal nos PIBs nacionais, em particular
dos países centrais faz com que se conclua que “a presença dos fundos públicos,
pelo lado, desta vez, da reprodução da força de trabalho e dos gastos sociais
públicos gerais, é estrutural ao capitalismo contemporâneo, e, até prova em
contrário, insubstituível” (Oliveira, 1998: 23). Tal conclusão, encontra não
apenas respaldo em nossas proposições, mas também, como veremos, um novo
elemento explicativo de sua gênese a partir das relações concretas entre os
capitais concentrados das grandes corporações e o aparelho de Estado.
395 É interessante lembrarmos que a contraposição entre público e privado pode ser
percebida inclusive em teóricos burgueses como Smith, segundo o qual “o interessa especial daqueles que exercem um determinado ramo do comércio ou da indústria é sempre, em certo sentido, distinto do interesse do público e com freqüência abertamente oposto a ele” (Smith, II: 163-5, apud Marx, 1985: 73-4), embora seu idealismo o leve a afirmar que os interesses particularistas levam ao ótimo para o conjunto da sociedade (Smith, 1983, I: 378).
318
Vimos anteriormente, que a segmentação da competição em dois setores
– o oligopolista e o competitivo -, e a construção de uma dinâmica de
competição onde as empresas buscam agir dentro de certos parâmetros pré-
estabelecidos, é resultado da dinâmica própria do capital concentrado. Com
isto, o que Oliveira (1998) havia percebido como causa possível da segmentação,
a nova função desempenhada pelo fundo público396 - explicação que em grande
parte animou nossa pesquisa -, acaba por ser, na verdade, não causa, mas
resultado da dinâmica de competição do capital concentrado, que determina,
através do exercício do poder, as novas formas de articulação do Estado com o
mercado, e o estabelecimento dentro deste da “competição consensual” típica
das relações do capital oligopolista. No mesmo sentido se dá o fenômeno da
“diplomacia tripartite” como descrita por Stopford & Strange (1991).
A concentração capitalista, como vimos, precede historicamente e incita a
ação coordenadora por parte dos Estados e é a base material que a explica. A
exacerbação do conflito entre o setor oligopolista e o setor concorrencial faz com
que sejam buscadas novas formas de regulação das relações sociais, das quais
são expressões – ainda que absolutamente distintas - tanto a intervenção
liberal-keynesiana, quanto os Estados corporativistas de moldes nazi-fascistas.
Ambas são fundamentalmente reações das burguesias nacionais à ameaça de
socialização apontada pelo exemplo do Estado soviético.
A construção do Estado de Bem-estar social corresponde a um processo
de construção de hegemonia da classe capitalista com base numa política que se
pretendia como includente das diferentes classes e frações de classes
organizadas nos diferentes espaços nacionais. O processo histórico específico
novamente varia de país a país. Enquanto nos EUA se organiza o New Deal a
partir dos onze pontos de Wilson, a história européia é dirigida para um
processo no qual se buscam construir “soluções de compromisso” entre as
diferentes classes sociais, com a aceitação por parte da burguesia da inclusão
396 “Na medida em que o padrão de financiamento público constituiu-se em uma
verdadeira esfera pública, as regras da reprodução tornaram-se mais estáveis porque mais previsíveis, e da competição anárquica emergiu uma competição segmentada. Por certo, não deixou de haver competição no capitalismo, mas essa se dá dentro de regras preestabelecidas e consensuais. Essa universalização tem efeitos paradoxais, segmentando a competição em pelo menos dois níveis; o primeiro, o circuito dos oligopólios, e o segundo, o circuito dos capitais competitivos. A rigor, o fundo público é um Ersatz [substituto] do capital financeiro, indo além da teorização proposta por Hilferding” (Oliveira, 1998: 27-8).
319
dos partidos social-democratas da Segunda Internacional397 dentro dos blocos
de governo.
Assim, a intervenção dos diferentes Estados buscava regular a ação dos
atores e arrefecer a luta de classes através da ação estatal398. Deste modo, o
Estado funcionava como espaço de síntese da luta de classes buscando propiciar
um mínimo público à população (ora como conquista, ora como transformação
tutelada pelas elites como no caso periférico brasileiro) enquanto coordenava a
expansão do crescimento econômico a partir de políticas de direcionamento de
créditos e investimentos. Nesta situação, a política do capital concentrado
focou-se em buscar adaptar-se ao ambiente e capitanear o crescimento
econômico de forma coordenada com o Estado, buscando construir para si
“ilhas de estabilidade” onde pudesse impor à sociedade a transferência de
parcelas crescentes de mais-valia socialmente produzida.
Em outro campo, as instituições do capital societário buscavam já neste
período construir aquilo que chamamos anteriormente de hegemonia
econômica, subordinando os indivíduos ao modo de produção através dos
mecanismos do mercado imperfeito. A construção de sua hegemonia não se dá,
entretanto, a partir da política, mas sim a partir das formas de representação
social do capital societário. O objetivo é o convencimento dos indivíduos da
desnecessidade de intervenção política - uma vez garantidos os direitos de
propriedade e de livre iniciativa que abririam o paraíso capitalista às grandes
massas da população, convertidas em classes médias, através da propriedade de
pequenas parcelas do capital fictício. O primeiro grande fiasco desta ideologia
expressou-se na crise de 1929.
A crise dos Estados nacionais capitalistas derrotados na Primeira Guerra
Mundial, cujos limites de expansão externos se encontravam delimitados pelo
tratado de Versalhes apontavam para outra vertente, igualmente burguesa, e
igualmente dirigida pelo capital concentrado, de solução do conflito. Os Estados
nazi-fascistas operam a partir de outra vertente, suprimindo o mercado, em
particular o de trabalho, e anulando ao mesmo tempo o espaço de debate
público. No totalitarismo nazi-fascista, o domínio do grande capital e de suas
397 Que abandonaram explicitamente a violência revolucionária e eram denominados de
traidores por Lênin e pela Terceira Internacional controlada pela URSS. 398 Como aponta Oliveira (1998: 50-1) não se trata de intervenção do Estado, mas de
publicização das relações privadas devido à insuficiência do mercado de dar conta do conflito.
320
classes aliadas é exercido pelo uso direto da força. Entretanto, do ponto de vista
do sistema capitalista, tal intervenção é ela também uma forma de contornar e
regular através da força, e não do consentimento, a crescente tensão entre o
capital concentrado e o conjunto da população não beneficiada por este mesmo
processo de concentração (o que não elimina a necessidade de elaboração de
uma concepção de mundo que justifique o exercício do poder, e neste sentido a
construção de uma direção moral sobre a sociedade).
A vitória aliada na Segunda grande guerra leva ao predomínio do modelo
liberal e à ascensão das políticas inspiradas por Lord Keynes399, e assim a
supremacia deste modelo dentro do bloco capitalista é transformada em
imposição de alguns princípios diretores para a forma de organização estatal
por parte das burguesias vitoriosas na II Grande Guerra400. Deste modo,
embora as formas permaneçam amarradas a um forte conteúdo nacional
(Strange, 1998), ocorre uma convergência de seu conteúdo dentro das nações
capitalistas.
Considerado por um outro ponto de vista, este processo histórico no qual
se deu a constituição do antagonismo entre grandes e pequenos capitais, interno
às nações mais desenvolvidas, começa a delinear-se em fins do século XIX com
a formação das grandes sociedades anônimas articuladas na forma do “capital
financeiro”. A produção em grande escala e a impossibilidade dos mercados
internos de absorver as novas massas de produtos leva à busca de mercados
externos para dar vazão à superprodução401. O controle das fontes de matérias
primas e de mercados externos constituiu o leitmotiv da política imperialista
analisada por Lênin (1982), que culminou na I Grande Guerra com o
esgotamento da possibilidade de “anexação de novos mercados” pelas potências
dominantes. O Imperialismo, entendido por Lênin como a política externa do
capital financeiro, pressupõe a idéia de que a fração financeira de cada
burguesia nacional tornou-se hegemônica nas principais nações européias e 399 “Keynes tentou provar, seguindo sua intuição e senso prático, que se poderia, via
mecanismos de política econômica, induzir os detentores de riqueza a valorizar seus estoques de capital predominantemente através da geração de fluxos produtivos” (Paulani, 1991:97).
400 A própria disputa entre as burguesias vitoriosas – em particular o mal-humor francês com a supremacia norte-americana - e as concessões em particular aos japoneses, além das disputas internas a cada nação, levaram naturalmente à construção de organismos estatais bastante diferenciados, mas grosso modo, as regras relativas à intervenção estatal na economia se homogeneizaram bastante após a II Grande Guerra.
401 Discutiremos no próximo capítulo os resultados deste processo de internacionalização do capital.
321
que, devido à impossibilidade de uma solução de partilha pacífica do globo,
arrastaram as nações, os Estados constituídos com base em culturas nacionais, à
guerra402.
A vitória aliada na Primeira Guerra, não resulta na ascensão de um novo
hegemon. A Inglaterra está enfraquecida, sua concorrente direta, a Alemanha,
destruída, e os EUA ainda não despertaram para seu papel histórico de
coordenadores da ação da burguesia em escala global403. No período entre
guerras, ou como preferem outros, no período de interregno da grande guerra,
ocorre a maior crise da história do capitalismo – e seu epicentro é justamente o
mercado norte-americano -, obrigando as burguesias nacionais à construção de
novas alternativas políticas frente à agora concreta “ameaça do socialismo”. O
período entre guerras é conturbado pelo recrudescimento da luta de classes,
acirrada pela grande depressão que decorre, em larga medida do ajuste das
economias às novas condições de produção pautadas pela monopolização
crescente dos mercados e pela financeirização crescente das relações
capitalistas. Isto resulta na constituição de regimes de compromisso entre a
burguesia e os partidos social-democratas que lançam as bases do que seria o
Welfare State do pós-guerras. Contudo, onde tais compromissos não foram
capazes de constituir uma saída nos marcos da hegemonia burguesa, deu-se a
ascensão do nazifascismo.
A construção de mecanismos de “socialização das perdas” e de “regulação
de mercado” para evitar novos desastres, está na base da nova ideologia estatal
que se fará dominante com a vitória aliada, De um lado a social-democracia404 e
os gastos estatais com programas públicos geram a possibilidade de ampliação
do mercado interno para o consumo de bens que se tornam uma segunda
necessidade para o capital – e aqui o fundo público torna-se pressuposto da
402 No extremo oposto do argumento, Kautsky propõem a idéia de que se constituiria
um superimperialismo que levaria ao fim das guerras ao eliminar o caráter nacional das burguesias. O processo histórico parece dar razão a ambas interpretações como discutiremos no próximo capítulo.
403 Este é o argumento desenvolvido por Kindleberger (1973) The World in Depression: 1929-1939, Berkeley, University of Califórnia Press, citado em Strange (1998) e Arrighi (1996).
404 É interessante notar que o gasto keynesiano quando realizado pelo governo norte-americano nunca parece ser feito como uma ideologia adotada – como no caso europeu -, mas sempre como uma ‘ação pragmática’ em resposta a demandas que não poderiam ser supridas de outra forma. A predileção americana pelo gasto militar e pela quase total ausência de capital público como proprietário de empreendimentos, contrasta neste sentido com a política mais comum no caso europeu.
322
acumulação capitalista -, de outro, a economia de guerra “ensina” as grandes
corporações a lidar com o fornecimento de serviços ao governo e transforma o
fundo público num grande cliente para setores econômicos inteiros.
A extrapolação do poder das empresas do âmbito meramente econômico,
para o estatal, concorre para a construção de relações políticas que
necessariamente se consubstanciam no Estado. Neste sentido, a extrapolação da
disputa econômica para a constituição de monopólios sob a supervisão e o
beneplácito estatal mostra também para a grande sociedade anônima, cuja
origem na maioria dos países é estatal, a funcionalidade do fundo público para
seu processo de reprodução ampliada. A introdução da disputa pela hegemonia
de mercado nos marcos aqui propostos nos leva ao desenvolvimento do fundo
público como um instrumento aparentemente exterior ao capital que passa a
mediar a transferência de parcelas do excedente social do conjunto da
sociedade, e mesmo de parcelas da própria classe capitalista, para os setores
concentrados. Neste sentido, o fundo público forma uma unidade com o
processo de reprodução ampliada do capital, sem, entretanto, constituir-se
como capital.
É necessário ter claro desde logo, que o capital societário não cria um
Estado que se ajuste a suas necessidades, mas que, através da disputa política
com as demais classes e frações de classe, altera paulatinamente – ou de golpe,
de acordo com a contingência histórica – as estruturas deste, de modo a
configurá-lo às suas novas necessidades. A forma histórica, variará de país a
país, mas a substância do Estado regulado será aproximadamente a mesma: as
instituições que se convencionou denominar de Welfare State405 no caso dos
países centrais, enquanto que na periferia a intervenção estatal será de outro
tipo, mais comumente conhecida como a do “Estado desenvolvimentista”406. É
neste contexto que:
“A partir dos anos 30, o conflito extrapola os marcos daquilo que se
poderia dizer que ficava restrito ao espaço da esfera burguesa, segundo
uma abordagem habermasiana ou mesmo weberiana. O próprio conflito
405 Apenas como exemplo, a rede de proteção social começou a ser construída na
Alemanha no final do século XIX. Em 1883, foi criado o seguro-saúde, e o primeiro sistema de previdência social do país data de 1889, um ano depois da abolição da escravatura no Brasil.
406 A bibliografia neste caso é extensa, tendo como centro os cepalinos, em particular o “Estudo Econômico” escrito por Raúl Prebisch em 1949 e o já citado Furtado (1998, 1983 e outros).
323
interburguês assumiu proporções tais que acarretaram o seu
deslocamento do terreno do privado para o público. Portanto, não é
propriamente uma transformação das classes, mas um fenômeno devido
ao próprio conflito entre elas. A crise de 30 foi a evidência mais
eloqüente desse deslocamento do terreno privado para o público.
Naquele momento, a esfera do privado revelou-se insuficiente para de
alguma maneira processar o conflito na sociedade burguesa” (Oliveira,
1998: 65).
A teorização recente de Oliveira (1998), precisa aqui ser trabalhada no
sentido de sua ampliação, já que como vimos, o fundo público é apenas um dos
elementos que dão vazão à formação de duas taxas tendenciais de lucro na
economia capitalista contemporânea. O elemento para o qual chamamos a
atenção aqui é que a origem da crise está na própria tendência de estratificação
da classe burguesa em dois pólos, duas grandes frações, que surgem da posição
ocupada com relação ao capital concentrado e ao exercício do poder que daí
emana. Assim, embora seja correta a afirmação de que
“Imbricando-se diretamente na determinação da taxa média de lucro do
setor oligopolista, o fundo público influi decisivamente, através de
outros recortes, sobre a taxa de lucro de setores inteiros e até de ramos
especiais da reprodução no interior do setor oligopolista.” [...] “O papel
do fundo público como pressuposto especial dessa segmentação retirou o
capital constante e o variável da função de parâmetro-pressuposto, e
colocou em seu lugar a relação de cada capital em particular com o
próprio fundo público. Em outras palavras, a taxa de lucro de setores de
ponta como a aeronáutica, as atividades industriais especiais, a
informática, tem que se referir simultaneamente aos seus próprios
capitais e à fração dos fundos públicos utilizados para sua reprodução;
isto tem um efeito paradoxal, pois enquanto aumenta a taxa de lucro de
cada capital em particular (pois na equação particular a fração do fundo
público utilizada não tem remuneração ou quando tem é francamente
subestimada) diminui407 a taxa de excedente global da economia”
(Oliveira, 1998: 28-9).
407 Como veremos, embora tendencialmente correta, esta redução não é
necessariamente verdadeira.
324
É necessário separarmos as relações diretas e indiretas constituídas entre
Estado e mercado, que dotam o sistema de diversas formas de transferência da
riqueza social para mãos privadas. O elemento chave aqui é a discussão da
distinção entre bens privados e bens públicos e o papel da estrutura estatal na
produção de bens de consumo e da infraestrutura física necessária ao
desenvolvimento dos capitais privados.
Grosso modo encontraremos a aplicação de recursos públicos, ou seja a
fração da mais-valia retirada de circulação pelo Estado na forma de taxas e
impostos (ou socialmente apropriada na forma da segnoriage ou do imposto
inflacionário), na forma de gastos públicos que se constituem em: 1) compras
governamentais (custeio e bens públicos); 2) subsídios (diretos e indiretos) e
transferências unilaterais (incluindo pensões e aposentadorias e os juros da
dívida); e 3) investimentos públicos em infraestrutura408.
O gasto governamental com a mera manutenção da máquina estatal faz
parte das “despesas gerais” que viabilizam as “condições gerais de produção”
dos diferentes setores econômicos. Esta é a parcela do gasto estatal que os
liberais denominariam de “autêntica”. Os gastos aqui envolvidos, desde que
considerada a média de remuneração da mão-de-obra, e que as compras dos
itens necessários à manutenção do funcionamento da máquina se dão a preços
médios de mercado, implicam em transferência indireta da mais-valia que
constitui o fundo público do conjunto da sociedade para estes fornecedores,
mas, exceto nos casos em que o governo pague um preço de monopólio a algum
fornecedor, não estamos diante ainda das relações de poder que implicam na
construção de taxas de lucro descoladas da média. Não é aqui que
encontraremos – exceto em casos fortuitos - o gênio da lâmpada.
Os gastos que extrapolam a manutenção da máquina governamental e
que representam de alguma forma o fornecimento de bens e serviços à
população em geral, entretanto, necessitam de melhor análise. A instituição de
políticas públicas de saúde e educação, por exemplo, ao propiciarem uma
melhora na qualidade média da mão de obra, representam de um lado a
universalização do serviço para a população, constituindo desta forma uma
conquista passível de discussão pública e portanto, neste sentido, o que Oliveira
(1998) denomina de um antivalor. Do ponto de vista da produção destes bens 408 Para a discussão de contas nacionais ver Paulani e Braga (2000)
325
ou serviços, o que temos é a ação do Estado como produtor de um bem
denominado na literatura econômica de “público” – por definição um bem do
qual não se pode excluir nenhum cidadão da fruição - em contraposição aos bem
privados, só acessíveis aos indivíduos capazes de pagar por eles.
A produção de um bem ou serviço na esfera pública o descaracteriza
como mercadoria – na medida em que não é produzido para a troca – e
constituiria desta forma, a antimercadoria de Oliveira (1998). Todavia, do
ponto de vista do mercado, ou seja dos agentes privados de produção, este bem
é computado como “custo” na forma dos impostos409, e sua contrapartida é o
barateamento da mão de obra, cuja formação e saúde são pagos, do ponto de
vista do capitalista, indiretamente410.
Podemos dizer que a produção de determinados bens públicos, que
constituem parte das necessidades de reprodução da mão-de-obra, por parte do
Estado transforma uma parcela do produto, paga pelos capitalistas na forma de
impostos, numa produção de anticapital variável público e universal. A forma
pública da antimercadoria garante ainda duas vantagens: 1) sua origem pública
pressupõe uma qualidade mínima (estamos falando das economias centrais
desenvolvidas) que não se garante necessariamente no setor privado, e 2) a não
remuneração desta produção como mercadoria a torna mais barata,
representando uma economia do ponto de vista da classe capitalista como um
todo que se torna apta a apropriar-se da diferença do que seria gasto – na forma
de redução do salário - caso este bem público fosse produzido de forma privada.
Neste caso, temos que o salário social médio, portanto o capital variável,
será composto por uma combinação de salário direto e indireto, na forma de
bens públicos que constituem uma antimercadoria provida pelo Estado. Por
409 Quando é o próprio trabalhador que está sujeito ao pagamento do INSS e não faz uso
do serviço de saúde público ele se sente “pagando duas vezes” ao contratar um serviço privado. 410 A lógica é a mesma com relação à discussão das políticas de renda mínima, e não é de
forma alguma nova como podemos perceber neste trecho dos Manuscritos: “O salário do trabalhador pertence assim aos custos necessários do capital e do capitalista, e não pode ultrapassar as exigências desta necessidade. É, portanto, perfeitamente lógico que ante a Amendment Bill de 1834 os fabricantes ingleses subtraíram do salário do trabalhador, como parte integrante do mesmo, as esmolas públicas que este recebe por meio do imposto dos pobres” (Marx, 1985: 124).
Segue-se que as políticas de renda mínima para se tornarem renda liberada necessitam de força política por parte dos trabalhadores para garantir a irredutibilidade salarial. Ou seja, a utilização do fundo público para garantir a distribuição de renda é condição necessária mas não suficiente para gerar o ciclo virtuoso keynesiano. Neste sentido a renda mínima não é anti-valor, na medida em que se não for garantida como custo do capital não tem efeito.
326
outro lado, do ponto de vista do empresário, os impostos remuneram o Estado
pela produção desta antimercadoria; e do ponto de vista do conjunto das
empresas, atua fornecendo esta antimercadoria, como uma mercadoria abaixo
de seu preço, dado que a natureza pública de sua produção elimina de seu preço
de custo, o gasto público, o trabalho não pago (já que o salário médio será
determinado pelo mercado como o mínimo necessário à reprodução daquela
dada mão-de-obra) aos servidores que realizam este serviço. Assim, do ponto de
vista geral da massa de trabalho apropriada no sistema, a produção de bens
públicos funciona como uma redução do preço da mercadoria força de trabalho,
implicando na liberação direta de mais-valia extraída pelas empresas na forma
de uma redução do salário. Do ponto de vista do capital o Estado atua como
concorrente411 – quando a atuação se dá num segmento em que isto é possível –
ou como fornecedor de um determinado bem.
A parcela do tributo despendida pelo Estado nesta forma deve ser vista
do ponto de vista da empresa, como capital variável, constituído na forma de
fundo público, que se estranha de sua forma de capital ao constituir-se em bem
público, mas que retorna à esfera da circulação de mercadorias ao compor a
manutenção da classe trabalhadora412.
411 A situação mais trágica com certeza será sempre encontrada no setor educacional
onde pseudo-reitores, alguns deles analfabetos (os donos das faculdades e “Unis”-qualquer coisa), fazem pose de educadores enquanto vendem diplomas mal e porcamente reconhecidos pelo MEC. Aliás, o estudo dos processos de autorização de funcionamento dos cursos que proliferaram durante o tucanato nos daria muitos exemplos concretos de como se dá o tráfico de influência entre o setor público e o setor privado, com claro benefício deste último e perda para a democracia.
412 Segue-se que num esquema de reprodução ampliada, que dividisse a economia nos setores clássicos de bens de salário e de capital, o Estado surgiria como um setor onde não há realização de mais valia, assim:
Depto. Bw (bens de salário) = Kcw + Kvw + mvw (lw+ tw) Depto. Bk (bens de capital) = Kck + Kvk + mvk (lk + tk) Estado (bens públicos) = Gpc + Gpv + Gg Onde Gpc e Gpv, são os gastos públicos com equipamentos públicos (equivalentes ao
anticapital constante) e mão de obra (equivalente ao anticapital variável) e Gg são os “gastos gerais de produção”, respectivamente, tw e tk são os tributos pagos pelos respectivos setores, Kc e Kv são os capitais constantes e variáveis e mv é a mais valia extraída (ou o volume físico do lucro mais os tributos). Considerado um orçamento em equilíbrio, temos que:
Kcw + Kvw + lw + tw = Kcw + Kck + Gpc Kck + Kvk + lk + tk = Kvw + Kvk + Gpv+ lw + lk Tw + tk = Gpc + Gpv + Gg Ou: Kvw + lw + tw = Kck + Gpc + % Gg Kck + tk = Kvw + Gpv + lw + % Gg T = Gpc + Gpv, de onde o fundo público se torna componente dos esquemas de
reprodução do capital social, sem que se dê respaldo aqui à teoria do capital monopolista de
327
Idealmente, entretanto, o custo de reprodução social da população passa
a ser composto pelo gasto público, que passa a representar um produto
“potencialmente” usufruível pela população como um todo. Isto rompe a
circularidade da reprodução ampliada do capital, ao colocar à disposição da
população, mesmo a não explorada pelo capital, um “mínimo de cidadania”, que
além disto, coloca suas demandas dentro da estrutura estatal e as constitui no
campo dos direitos legais.
Por outro lado, a produção pública, como vimos, barateia o custo do
capital variável na medida em que “vincula” o uso da renda total da sociedade à
produção de um determinado bem público e determina a forma de seu gasto
social, possibilitando, através da política, o direcionamento do produto. A
exemplo das unidades de planejamento privadas, a ação do Estado também
permite para o conjunto da sociedade a realização de determinados “ganhos de
escala” (gerados pela universalização de determinadas políticas), como por
exemplo no caso de campanhas de vacinação, cujo resultado são o aumento da
eficácia que não seria obtida de forma privada.
Percebe-se ainda que há uma indeterminação sobre quem paga a conta,
pois os tributos, como se sabe, são cobrados de formas diversas, diretas e
indiretas, gravando ora sobre a renda, ora sobre o consumo. Partindo-se da
idéia de que o imposto fosse único – como quer certo deputado liberal – com
alíquota única cobrada sobre o valor agregado e com ausência de elisão,
teríamos a possibilidade teórica de uma repartição equânime dos custos dos
bens públicos. Entretanto, num país com dezessete impostos413 e centenas de
alíquotas diferenciadas, sabemos na prática que não é assim que a coisa
funciona, nem aqui nem em lugar nenhum.
É praticamente impossível a determinação de qual seria a quota parte de
cada empresa ou indivíduo dentro do gasto governamental, assim, o
financiamento do fundo público é a resultante de um jogo de forças em última
instância político, que compõe a superestrutura idealista estatal, já que, assim
como a classe ou fração de classe dominante deve justificar sua particular forma
de organização do Estado, também este deve exercer seu poder sobre o conjunto
Estado, mas sem que se possa determinar também a proporção em que se dá a apropriação da parcela do excedente socialmente constituído.
413 Abstraindo de taxas de contribuições de melhoria.
328
da sociedade através da cobrança de impostos, e a forma como estes são
distribuídos pela sociedade não é indiferente. Já vimos num exemplo anterior,
no capítulo 3, como a eliminação da tarifa protecionista da Corn Law inglesa
representou um barateamento do capital variável para a indústria inglesa414.
As estratégias de elisão fiscal, consubstanciadas no “planejamento
tributário” das grandes corporações, buscam colocá-las a salvo do fisco,
representando um dos tantos elementos do “capital intangível” proposto como
explicação para o lucro das grandes corporações pelos institucionalistas. Mas
além da capacidade de pagar advogados caros para realizar o planejamento
tributário, há noutro sentido, a ação política concreta na busca de subsídios
estatais, que se dão muitas vezes na forma de “isenções” de taxas e impostos,
representando uma abdicação por parte do Estado de cobrar o que seria de
direito público. Tais deduções são diretamente computadas nas contas de
resultado e transformam-se, desta forma em lucro, mais-valia que deixou de ser
arrecadada pelo Estado.
O “subsídio” estatal não é de forma alguma novo e está na raiz de
violentas disputas comerciais entre os diversos países pelo menos desde o
mercantilismo. As políticas protecionistas são formas indiretas de fornecer a
proteção, pela força do Estado, à acumulação primitiva de empresas cujos
capitais não poderiam ter logrado obter tais resultados se fossem deixados aos
ventos da concorrência internacional. O subsídio adquire assim formas diretas e
indiretas415.
Na forma direta ocorre o financiamento público de determinadas
produções, como a garantia de preços mínimos ou as encomendas militares que
discutiremos a seguir. No caso indireto, o que se observa é que o Estado, ao
abdicar por exemplo da cobrança de impostos, rompe a condição de igualdade
de competição, permitindo que a empresa não pague sua parcela do gasto social,
transformando desta forma, este dinheiro diretamente em lucro contábil. Como
se pressupõe nos custos médios a inclusão dos impostos, a ausência destes
permite um sobrelucro de tipo monopolista, viabilizado pelo Estado,
politicamente obtido e orientado. Todavia, a obtenção do favor não garante a
414 O mesmo efeito poderia ser obtido com a taxação extraordinária dos bens produzidos
com um alto preço de renda da terra embutido. Neste caso, teríamos uma disputa ente as frações burguesas resultando num maior imposto sobre o capital aplicado no setor agrário.
415 Podem-se encontrar diversos exemplos em Arrighi (1996).
329
apropriação da parcela da mais-valia “politicamente obtida”. Como no caso das
rendas de inclusão, é necessário que exista o poder econômico, a força política,
dentro do mercado para fazer valer o preço final da mercadoria e tal esforço não
implicar na transferência destes lucros para outro setor.
A proteção à agricultura, através da política de preços mínimos, surge
como uma necessidade de colocar a produção agrária ao abrigo da concorrência
pela apropriação do produto social com outros setores, em especial os bancos.
Sua extensão está condicionada pelo poder relativo do setor agrícola com
relação ao bloco histórico hegemônico e a importância da renda agrícola para a
formação dos mercados internos dos diferentes países. Assim, subsídios deste
tipo aparecem ora como resultado de um longo processo histórico no qual, após
o achatamento da renda da terra a valores mínimos, o setor agrícola passa a
depender da ação pública para garantir sua rentabilidade mínima, ora, ao
contrário, garantindo sua rentabilidade de acordo com seu poder político
específico junto ao Estado (e seria o caso para uma pesquisa de se considerar a
idéia de um subsídio indireto que garantisse a rentabilidade não da agricultura,
mas dos bancos que fornecem o crédito agrícola).
Um caso diferente, entretanto, está relacionado, por exemplo, aos gastos
com defesa. E não é necessário lembrar que os EUA lideram mundialmente os
gastos sob esta rubrica. Os investimentos em armamentos, em particular na
compra de avançados equipamentos de guerra, pressupõem a idéia de que este
gasto é realizado em nome do “interesse geral”, da defesa do território, dos
“interesses nacionais”. Cabe aqui lembrar que por interesses nacionais devem
ser lidos os interesses da classe ou da fração de classe que se encontra à frente
do Estado.
Nos interessa aqui, entretanto, tão somente o efeito econômico destes
gastos. Não se constituem em despesas gerais de manutenção das condições
gerais de produção. Não são bens públicos no sentido de suprirem um valor de
uso comum fora da esfera do mercado, exceto se aceitarmos o patriotismo
ideologicamente incutido como uma segunda natureza, e portanto, entendermos
os gastos militares como uma necessidade de “segurança” dos indivíduos. No
entanto, lá está a indústria militar respondendo por uma parcela considerável
330
dos gastos públicos norte-americanos e de outros países desenvolvidos416,
particularmente quando consideramos os números sobre o orçamento de seus
governos nacionais.
O grosso deste gasto não é a manutenção de pessoal, mas sim a compra e
manutenção de equipamentos que são produzidos a preços monopolistas, em
contratos exclusivos de fornecimento. Neste caso, a indústria bélica encontra no
fundo público o cliente dos sonhos. O consumo de tais bens, que se destinam
única e exclusivamente à destruição (de capital e vidas) é justificado pela
superestrutura idealista estatal. Seus preços são negociados por indivíduos – em
sua maioria, militares - que comumente, após o fim de suas carreiras no
aparelho de Estado, passarão a compor os boards das companhias fornecedoras
– e que normalmente negociam com ex-colegas. Os preços de monopólio, ao
serem pagos pela soma dos recursos extraídos do restante da sociedade,
transformam o fundo público em meio pelo qual se dá a transferência de
parcelas da mais-valia extraída pelo conjunto da classe capitalista para um setor
monopolista específico. O mesmo raciocínio é válido para compras estatais de
outros bens produzidos de forma privada com características monopolísticas –
além das situações de fraude aberta.
Neste sentido, ao tornar-se a forma de viabilização da realização do
capital das empresas fornecedoras, a relação da empresa com o fundo público,
mais do que um tráfico de influências – e não nos cabe discutir aqui se escusas
ou legítimas – torna-se uma relação política417. É necessário, por exemplo, às
empresas do setor bélico norte-americano, convencerem o conjunto da
sociedade da necessidade de manutenção dos gastos militares num determinado
nível que lhes garanta a reprodução ampliada de seu capital. Segue-se que a
416 Os gastos militares representaram em média na década de 1990, 20% das despesas
do governo federal norte-americano, com o pico de 27,2% no ano de 1987 e uma média de 25% no final da década de 1980, representando cerca de 6% do PNB dos EUA. Durante o governo democrata de Clinton (1992-1999) esta média reduziu-se paulatinamente para atingir 3,3% em 1997, coma eleição de Bush Jr. e a retomada armamentista pós 11/9 estes números voltaram a aumentar significantemente. Em 1997, a Austrália gastava 2,2% de seu PNB em armamentos (8,6% do orçamento do governo central). Para as mesmas rubricas os números de alguns países desenvolvidos era: França 3,0% (6,4%), a surpreendente Grécia 4,6% (13,8%), Alemanha e Japão – sobre quem pesam interdições desde a II Guerra – 1,6% (4,7%) e 1,0% que é o limite constitucional inscrito pelo governo norte-americano (6,6%), respectivamente. Temos ainda: Itália 2,0% (4,6%); Reino Unido 2,7% (7,1%); e a pacífica Suécia 2,5% (5,4%).
417 E aqui está a origem da “vocação diplomática” percebida por Stopford e Strange (1991) na ação das multinacionais. Sua ação política na regulação de seus mercados internos e a subordinação do interesse coletivo de suas nações de origem a seus próprios interesses de acumulação capitalista.
331
construção da concepção de mundo dominante naquela sociedade será
diretamente influenciada pelos interesses destas empresas que, buscarão
permanentemente difundir uma interpretação do “interesse coletivo”, da
“defesa nacional”, que justifique sua participação no orçamento governamental.
Assim, tais empresas passam a criadoras ativas da concepção de mundo
dominante e, na medida em que obtém sucesso, compõem a fração hegemônica
dirigente do Estado e do mercado418.
Neste caso específico, os tributos são usados para a compra de bens cujo
valor de uso muitas vezes é apenas a ostentação de poder por parte do Estado –
como no caso das bombas atômicas e vetores de lançamento. Os tributos,
coletados sob a égide da “necessidade pública”, são gastos em mercadorias cujo
uso público representaria apenas a destruição. Por outro lado, o gasto por parte
do Estado em mercadorias que em muitos casos não serão usadas, representa
uma realização de capital para um setor monopolista específico, resolvendo-se
com relação ao restante da economia, como reposição do capital constante e
variável do setor monopolista em questão, e como transferência de uma massa
de mais valia, socialmente extraída e paga ao Estado na forma de impostos, para
um setor específico do qual o Estado é o único cliente, como um superlucro
monopolista. O pagamento do preço de monopólio e outras benesses
relacionadas à pesquisa419 são classificados como políticas de subsídio indireto
ao desenvolvimento destes setores.
Outra situação na qual pode-se caracterizar o subsídio – transferência de
riqueza pública para mãos particulares através da ação do Estado – é a política
de investimentos em infraestrutura pública. Novamente, trata-se de bens cujo
consumo é não exclusivo – a ponte, o viaduto ou a iluminação pública são bens
fixos que podem ser “usufruídos” por qualquer cidadão. Entretanto, devido à
propriedade privada do solo, tais bens públicos geram benefícios que são
418 A camarilha de Bush Jr. dá uma triste nota de contemporaneidade a esta situação. 419 Não pretendemos aqui desprezar os gastos com P&D realizado pelos estados centrais,
pelo contrário, como já vimos no capítulo 4, a criação e patenteamento de novos produtos é estratégica para garantir a manutenção das empresas em posições competitivas, daí seu esforço em garantir o financiamento do Estado para pesquisas cujo produto possa ser apropriado de forma privada posteriormente, socializando desta forma o custo da pesquisa. Devemos lembrar no âmbito desta discussão que grande parte dos gastos apresentados pelas empresas como P&D são destinados ao desenvolvimento de embalagens e outras formas de venda dos produtos, sendo o gasto público totalmente voltado para a pesquisa básica e aplicada.
332
apropriados de uma forma diferenciada pelos proprietários do solo e/ou de
imóveis localizados próximos à benfeitoria.
Neste caso estamos diante de uma situação na qual, mesmo que o Estado
não tenha permitido o superfaturamento da obra (caso em que se
consubstanciaria o superlucro da empreiteira), estar-se-ia diante de um lucro
excepcional gerado pela valorização da terra, na forma de renda capitalizada
como discutido no capítulo 3420. O que se constata é como a ação do fundo
público pode ser dirigida pelo capital especulativo do ramo imobiliário no
sentido de favorecer tal ou qual segmento de proprietários, redundando num
“lucro imobiliário” cujo componente fundamental é a capacidade política dos
interessados de direcionar o investimento estatal de forma a valorizar seu
monopólio sobre a terra ao dotá-la de uma melhor infraestrutura421.
Também é válido tal raciocínio quando se trata da instalação de
estruturas de transporte como portos e grandes vias de transporte que
viabilizam o tráfego de mercadorias, possibilitando às empresas instaladas num
determinado ponto do território a distribuição de seus produtos para uma
região geográfica mais abrangente e que é denominada pela literatura
microeconômica de “capital social” – uma contradição em termos que revela o
fato de que se trata de um bem público que favorece a acumulação de capital
privado mas é pago e mantido pelo conjunto da sociedade.
Falta-nos ainda a discussão das transferências unilaterais do Estado para
o setor privado, que são basicamente o pagamento de pensões e de juros sobre a
dívida pública.
O efeito econômico do pagamento de pensões que constituem um dos
alicerces do Welfare State é entendido a partir da formulação keynesiana
clássica do multiplicador econômico. Do ponto de vista marxista, ele garante a
realização de grandes parcelas do capital ao permitir a sobrevivência da
população idosa, além de viúvas e inválidos. A previdência social representa a
transferência para o Estado da responsabilidade de manutenção da população
que se encontra fora da População Economicamente Ativa (PEA) após ter
420 Não há nenhuma novidade aqui, o assunto foi largamente discutido na bibliografia
de urbanismo e planejamento urbano e em particular pelos geógrafos como David Harvey e Milton Santos.
421 É esta a lógica que escapa a Deák (2001) em sua análise.
333
cumprido seu tempo útil para a produção. O efeito econômico neste caso é
similar ao dos gastos governamentais, funcionando como um sistema de
transferência de renda da população ativa para a inativa através dos fundos
públicos de pensão. O sistema de previdência social representa a socialização da
poupança pessoal dos trabalhadores para um sistema de poupança coletiva, do
qual derivaram os fundos de previdência privada. Isto se deu na medida em que
o papel desempenhado por tais fundos, como base para a criação de crédito,
tornou-se claro para os agentes do sistema financeiro como uma nova fonte de
controle sobre o capital social.
Finalmente, a última forma de transferência da parcela do excedente
apropriada pelo fundo público para a circulação econômica é o pagamento de
juros sobre a dívida pública constituída por títulos de capital fictício garantidos
pelo tesouro público.
Neste caso estamos diante da expressão direta da renda de poder
exercida pelo mercado financeiro sobre o conjunto da sociedade. Ao pagar juros
sobre a dívida pública, o Estado transfere, de forma indireta, seu poder de
tributar para as mãos de terceiros. Na prática, a emissão de títulos da dívida
pública constitui-se na emissão de um direito sobre uma parcela do excedente
socialmente extraído e apropriado pelo Estado na forma dos impostos. Como
vimos, a determinação da taxa de juros é sumamente fortuita, representando a
relação de força entre prestamistas e tomadores. Neste caso, a banca confronta-
se com o Estado, que se constitui paradoxalmente, justamente como seu
regulador.
Esta contradição aparente todavia, esconde muitas vezes uma relação
inversa: é o sistema financeiro que dita à maior parte dos Estados a taxa de
juros através do poder de comando sobre a massa de capital monetário
disponível. Assim, ao participar do bloco histórico hegemônico, o sistema
financeiro constitui o Estado – através dos juros pagos sobre a dívida pública -
no instrumento através do qual se faz a transferência da mais valia produzida
pelo conjunto da sociedade para si. É esta a essência da “punção financeira” de
Chesnais; é esta a essência da “república dos banqueiros” na qual se
transformou o Brasil.
334
2. As punções sobre o fundo público: A política protecionista como caminho para o lucro de
monopólio.
Vimos assim que ao Estado nacional são delegadas três ordens de tarefas
ao longo dos últimos séculos de domínio burguês. A primeira, que caracteriza
qualquer tipo de estrutura estatal, é a de garantir a ordem social dentro da qual
se exerce o domínio sobre o conjunto da sociedade nacional através do
monopólio da força, o que inclui o exercício da força militar interna e externa ao
território. A segunda é composta por prover os bens de cuja universalidade o
capital depende para sua perfeita reprodução (educação, saúde, defesa, etc.) e
atuar como capitalista coletivo, financiando investimentos para os quais não
haja poupança coletiva suficiente, ou em empreendimentos em que os capitais
privados considerem os riscos muito elevados. Já vimos como, para o
financiamento destas atividades se constituiu o fundo público a partir da coleta
de impostos e da emissão monetária controlada pelo Estado, o que nos leva à
terceira tarefa que é a administração do equivalente geral e do volume de
crédito disponível no sistema, necessário aos mecanismos de reconhecimento
da riqueza e que inscrevem o equivalente geral fiduciário como objeto de
disputa política no âmbito do Estado.
A intervenção estatal inspirada na teoria keynesiana engendrou grosso
modo dois tipos de caracterizações do Estado que se confundem na prática
corrente: o Estado de bem-estar social, mais típico das nações mais ricas, onde a
acumulação de capital se encontrava num nível mais elevado, e o Estado
desenvolvimentista, mais característico das nações da periferia do sistema que
buscaram ao longo dos últimos 50 anos diminuir a distância que as separam do
núcleo desenvolvido. Neste sentido, a disputa burguesa pela apropriação do
excedente se reflete na organização dos diferentes Estados e nas políticas de
comércio exterior executadas por estes. A disputa relacionada ao comércio entre
as nações dá-se assim em dois níveis: um relativo às grandes empresas de
capital social e outro, onde os Estados nacionais são usados como estruturas
conjuntas das burguesias nacionais para estruturar esta disputa. Por ora
deixaremos de lado o papel das empresas e discutiremos o processo no qual se
dá a disputa no nível interestatal onde os atores principais são os Estados, e
aqui ainda é central o conceito de nação. Na verdade, tanto os Estados centrais
335
realizaram intervenções típicas de políticas desenvolvimentistas, quanto os
Estados periféricos buscaram construir algum nível de proteção social, sem que
lograssem entretanto os mesmos efeitos obtidos no centro sistêmico. Por outro
lado, o impulso apresentado às burguesias periféricas é que estas devem
esforçar-se para competir entre si no sentido de acumular capitais de forma
coletiva para “chegar ao primeiro mundo”.
Este processo é descrito e criticado por Arrighi (1997) em A Ilusão do
Desenvolvimento, onde o autor caracteriza os poucos casos de decolagem como
reflexo de interesses estratégicos do núcleo desenvolvido e faz contraponto a
estes com os casos de involução (como a Argentina). O autor caracteriza os
processos milagrosos, como o brasileiro, como “ilusões” na medida em que,
apesar de um enorme desenvolvimento e aumento do PIB, estes países
mantiveram sua posição relativa frente ao núcleo desenvolvido, na prática
“correndo para não sair do lugar”.
O uso do poder do Estado em apoio às atividades de acumulação
capitalista desde cedo transcende a mera garantia do direito de propriedade. A
rigor, nas formações sociais anteriores, a cobrança dos impostos se dá para a
manutenção do Estado com base em outras justificativas ideológicas
(feudalismo, modo de produção asiático), incorrendo muitas vezes na
apropriação privada de parcelas dos tributos, que de qualquer forma não se
constituíam ainda em fundo público422 dada a forma e o conteúdo do Estado.
Uma das primeiras formas de ação no sentido de subsidiar a acumulação
privada – já tipicamente capitalista - é o estabelecimento de barreiras
protecionistas ainda sob o Estado feudal e antes que a burguesia tomasse o
poder de forma direta423. Já nesta relação entre a classe capitalista nascente e a
aristocracia feudal encontra-se os germes da constituição da forma de
422 Apenas para ter claro “o fundo público é um conceito construído para a investigação
dos processos pelos quais o capitalismo perdeu sua capacidade auto-regulatória [...] e tem a pretensão de sintetizar o complexo que tomou o lugar da auto-regulação” (Oliveira, 1998: 49). Ou, mais precisamente, “o fundo público busca explicar a constituição, a formação de uma nova sustentação da produção e da reprodução do valor, introduzindo, mixando, na mesma unidade, a forma valor e o antivalor, isto é, um valor que busca a mais-valia e o lucro, e uma outra fração, que chamo de antivalor,que por não buscar valorizar-se per se, pois não é capital, sustenta o processo de valorização do valor” (Oliveira, 1998: 53).
423 “[...] No continente europeu [...] o processo havia se simplificado consideravelmente. Aqui, parte do capital originário do industrial fluía diretamente do erário público” (Marx, 1984: I/3:946). Nada diferente dos tigres asiáticos e de outras políticas de “decolagem”, na acepção de Rostow (1960), financiadas via dívida pública e calcadas na escolha de campeões.
336
relacionamento que se estabelecerá de forma plena com a legislação
napoleônica. As políticas protecionistas permanecerão como marca nas relações
entre os Estados que perduram até os tempos modernos424.
A interpenetração entre público e privado confunde-se com o próprio
desenvolvimento de formas de organização semi-estatais como as grandes
Companhias de Comércio. Podemos ver, na nota 155 do tradutor de Marx (1984:
III/8: 1183-4), como este, ao analisar a história da Cia. das Índias Orientais,
oscila entre dizer que o Estado garante a Cia., ou vice versa, como a Cia.
representa o Estado britânico. Há aqui uma clara interpenetração entre público
e privado que mostra a inviabilidade de uma análise “separada” destes
elementos dentro do sistema capitalista, como pretende a economia vulgar.
Outro exemplo claro é encontrado na análise que Faoro (2000) faz da relação
entre o governo português e a burguesia que ali se desenvolveu tutelada pelo
estamento dirigente estatal. Como vimos no capítulo primeiro, as formas do
público e do privado são constituídas ao longo do processo histórico e aqui elas
ainda se encontram entremeadas, suas fronteiras pouco definidas.
Novamente precisamos ter claro que os “experimentos” de organização
social que resulta de conflitos ou em conflitos, para a regulação da produção e
da divisão do produto se verificaram de formas diferenciadas nos diversos
países do mundo, tendendo a uma homogeneização na medida em que a própria
burguesia se torna mais homogênea com sua internacionalização. As políticas de
proteção tarifária constituem neste sentido um dos elementos que os
institucionalistas denominariam de função trajetória, ou que Roy classificaria
como política mimética. As proteções tarifárias às indústrias internas menos
competitivas são assim uma política empregada de acordo com a supremacia de
um ou outro grupo dentro do bloco dominante (e isto inclui a transformação de
velhas em novas frações burguesas como resultado da intervenção do Estado,
como é o caso dos processos denominados de escolha de campeões).
424 “O sistema protecionista era um meio artificial de fabricar fabricantes, de expropriar
trabalhadores independentes, de capitalizar os meios de produção e de subsistência nacionais, de abreviar pela violência a transição entre o modo de produção antigo e o moderno. Os países europeus disputaram com furor a patente desta invenção, e uma vez que entraram a serviço dos fabricantes de mais-valia, não só escorcharam o próprio povo – indiretamente com barreiras protetoras, diretamente com benesses às exportações, etc. – para alcançar este objetivo, mas também nos países contíguos extirparam pela violência toda indústria,...” (Marx, 1984: I/3:946).
337
O que se observa ao longo do processo histórico das distintas nações é
que as políticas protecionistas vão e vêm como reflexo da concentração de poder
dentro do bloco hegemônico; no já discutido caso do trigo inglês no início do
século XIX, ela foi desfeita na medida em que outros setores econômicos se
viram prejudicados. Enquanto os agricultores são os principais aliados dos
financistas a barreira tarifária vigora, quando os industriais tornam-se
dominantes, esta se vai (cf. Marx, 1984: III/6:132-3). Enquanto predomina a
livre concorrência, o protecionismo europeu e norte-americano é “uma política
econômica que deve tornar possível o sistema de livre comércio, ao propiciar o
desenvolvimento de uma indústria nacional para a qual o sistema do livre
comércio é o mais apropriado” (Hilferding, 1985: 286). Na medida em que os
monopólios nacionais se consolidam, essa política torna-se seu contrário, “a
política que fora criada como ‘educativa’ e que visava ser revogada é substituída
pelo “protecionismo dos cartéis” (Hilferding, 1985: 286) em particular nos
setores de matérias-primas e semimanufaturados, e “por conseguinte, o
protecionismo propicia ao cartel um lucro extra, acima do alcançado pela
cartelização e dá-lhe o poder de impor como que um imposto à população do
país” (Hilferding, 1985: 289). Ou seja, nos termos aqui discutidos
anteriormente, o Estado garante a posição de poder relativo que permite às
empresas monopolistas – ou oligopolistas de acordo com o mercado – a
obtenção da transferência de uma parcela do excedente para seus cofres na
forma de mais um tipo de uma renda monopolista originado, desta feita, das
trocas desiguais viabilizadas pelo poder de manutenção de um monopólio
instituído pelo poder político425.
No início do século XX, Hilferding (1985) já antecipava o argumento de
Chesnais (1996) sobre o oligopólio tornar-se um espaço de cooperação e
conflito, e da ação diplomática por parte das empresas como sugerido por
Stopford e Strange (1991):
“Dessa forma existem aqui duas tendências opostas. Por um lado, o
protecionismo torna-se, para os cartéis, uma arma ofensiva na luta
425 “De meio de defesa contra o açambarcamento do mercado nacional por parte das
indústrias estrangeiras [o protecionismo] converteu-se em meio para ocupar os mercados estrangeiros através da indústria nacional; de arma defensiva do fraco, tornou-se arma de ataque do forte” (Hilferding, 1985: 291). A criação de barreiras protecionistas, por sua vez, passa a atrair capitais estrangeiros em busca de maiores lucros (sendo que os pioneiros, como já citado, foram suecos, suíços e norte-americanos no início do século XX).
338
competitiva, pela qual se aguça a guerra de preços, enquanto, ao mesmo
tempo, tenta-se fortalecer a posição, na luta competitiva, empregando-se
meios estatais coercitivos e intervenções diplomáticas. Por outro lado, o
protecionismo estabiliza os cartéis nacionais, criando assim as condições
para a conclusão de acordos intercartelistas. O resultado dessas
tendências é o de que esses acordos internacionais significam mais um
armistício do que uma comunidade de interesses perene, já que toda
modificação da defesa protecionista e toda alteração das relações estatais
de mercado mudam a base dos acordos e tornam necessários novos
contratos. Somente se chega a composições mais sólidas onde o livre
comércio, de certa forma, elimina as barreiras nacionalistas, ou onde a
base do cartel é dada não pelo protecionismo, mas sobretudo por um
monopólio natural426, como no caso do petróleo, por exemplo”
(Hilferding, 1985: 294-5).
Da possibilidade de aumento do custo das matérias-primas deriva um
aumento do capital constante necessário à produção e uma conseqüente queda
da taxa de lucros. Disto “resulta, entre outras coisas a importância que tem para
os países industrializados o baixo preço da matéria-prima” (Marx, 1984:
III/6:131). O acesso aos recursos naturais leva à utilização do Estado-nação
como instrumento da “política por outros meios” na acepção de Clausewitz
(1996). A busca da projeção de poder por parte das potências mais
desenvolvidas, com o objetivo de controlar as fontes de matérias primas e
eventuais mercados consumidores, resulta assim nas guerras coloniais com a
fase denominada de imperialista que se completa com as duas grandes guerras
mundiais.
Contudo, a política colonial do imperialismo, que opunha diretamente as
grandes potências capitalistas, em particular as européias, é aos poucos
substituída por políticas mais sutis, calcadas na exportação de capitais e nos
acordos bilaterais com o reconhecimento da independência formal dos países
que compõe a periferia capitalista. Isto permite a construção de “condomínios
426 A idéia de que possa existir um “monopólio natural” é bastante ingênua e contraria a
abordagem marxista.
339
de interesse” e a atribuição de “esferas de influência” entre os distintos países e
também entre os diversos capitais particulares427.
Voltando-se para os mercados internos, a ação para refrear a tendência
de queda da taxa de lucro expande-se para além das relações de mercado com a
busca por parte dos capitais de garantir para si num primeiro momento o
monopólio sobre parcelas da produção e, em seguida, a apropriação de parcelas
do fundo público na medida em que os subsídios e compras governamentais
passam a fazer parte do leque de opções de políticas de desenvolvimento. Por
outro lado, o capitalismo enquanto sistema necessita que ocorra uma constante
expansão das relações mercantis como forma de naturalizá-las e encobrir a
necessidade de sua superação428.
O que ao tempo de Marx estava relacionado à expansão extensiva dos
mercados, torna-se com o passar do tempo uma expansão para setores que se
consideravam até então exclusivos do Estado, como saúde e segurança, para não
se falar do historicamente híbrido setor educacional. Ou seja, uma vez vencida a
subordinação da humanidade às regras de mercado, o capital busca expandir
suas garras a atividades humanas até então consideradas como não-
mercadorias.
Por exemplo, até a década de 1930 qualquer gasto para minorar a
situação de pobreza das classes inferiores era visto como uma aberração que
contrariava os princípios da liberdade de iniciativa. Os gasto sociais nos EUA,
segundo Baran e Sweezy (1974), só iniciaram-se com o New Deal, motivados
pela grande depressão. Em 1929, os gastos do governo totalizavam 19,3% do
PNB norte-americano. Destes, 13,3% eram destinados a compras do governo
não destinadas à defesa, 4,6% a transferências financeiras, e apenas 1,4% a
gastos militares – ainda que estes já houvessem dobrado com relação a 1929
devido à previsão de entrada dos EUA na guerra. Baran e Sweezy chamam a
atenção para o fato de que grande parte das transferências se constituírem de
socorro governamental a empresas sob risco de quebra. Ainda assim, o aumento
427 Voltaremos, ainda que rapidamente, à discussão sobre a política internacional do
capital concentrado no próximo capítulo. 428 “Por isso há que se expandir constantemente o mercado, de modo que suas
vinculações e as condições que as regulam assumam cada vez mais a figura de uma lei natural independentemente dos produtores, se tornem cada vez mais incontroláveis. A contradição interna trata de compensar-se pela expansão do campo externo da produção” (Marx, 1984: III/6, 314).
340
dos gastos governamentais em 70% não foi suficiente para segurar a queda do
PNB no período seguinte. A estrutura dos tributos estaduais e municipais dos
EUA demonstrou-se bastante inelástica, limitando assim a expansão dos gastos
nos níveis inferiores da máquina pública norte-americana no período. No caso
do governo federal, a oposição ao aumento dos gastos cresce na medida em que
um número maior de programas é proposto e, portanto, para os autores
contraria os interesses de parcelas maiores da elite endinheirada.
Na verdade o que temos é a disputa entre as diferentes frações burguesas
pela apropriação de parcelas crescentes do fundo público. Normalmente tal
oposição visa barrar aos concorrentes o acesso a parcelas do fundo público que
de outro modo poderiam estar sendo disputadas pela fração interessada. Os
autores propõem que no “capitalismo monopolista”, o Estado é capaz de
expandir o produto sem alterar a divisão social do excedente429, o que segue a
formulação keynesiana mas desconsidera que a expansão do produto implica na
disputa pela apropriação do excedente, sendo no mínimo ingênuo acreditar que
os diferentes setores “agradecidos” pela manutenção do giro econômico
propiciado pela intervenção estatal irão conformar-se com a redução da taxa de
lucros provocada pelo aumento da participação tributária.
A ação econômica do Estado é necessariamente redistributivista, seja
com relação ao conjunto das diferentes classes, seja com relação às disputas
internas da burguesia. Apenas como exemplo, podemos voltar ao caso brasileiro
da Política de Substituição de Importações, analisado por Celso Furtado
(1998)430 onde o processo de transferência de renda do setor agrícola para a
indústria é resultado de uma ação por parte do Estado na administração do
câmbio que leva a uma diminuição da renda da terra e a um aumento resultante
na renda monopolista da indústria possibilitada pela reserva de mercado.
Assim sendo, tanto nos países mais desenvolvidos como na periferia do
sistema, o desenvolvimento da intervenção estatal vem acompanhado pelo
favorecimento de setores específicos e torna a disputa pelo excedente econômico
socialmente extraído, na medida que é mediada pelo Estado, uma disputa
429 “Se esses recursos ociosos puderem ser postos em atividade, produzirão não só os
meios necessários de subsistência para os produtores, mas também volumes adicionais de excedente. Daí, se o governo criar mais procura efetiva, poderá aumentar seu controle sobre os bens e serviços sem interferir nas rendas de seus cidadãos” (Baran & Sweezy, 1974: 147).
430 Uma discussão mais ampla para o conjunto da América Latina é encontrada em Tavares (1982) e no texto mais recente de Wilson Cano (2000).
341
política. A capacidade da empresa, ou fração de classe, manter uma posição de
monopólio é reflexo da capacidade destas de convencer o conjunto da sociedade
da justeza de sua condição de exceção, ou de impor-se através de outro tipo de
exercício de poder431.
O processo mais dramático de punção do fundo público, entretanto, é o
que atrela a arrecadação tributária ao pagamento dos juros da dívida pública e
que constituem o Estado como intermediário do processo de transferência de
mais-valia – já em sua forma monetária – entre o setor produtivo e o capital
financeiro.
3. A economia da dívida: o capital fictício e as travas ao desenvolvimento e à reprodução capitalista.
Já vimos que a posição do Estado como gestor do equivalente geral lhe
permite, dentro de determinadas regras pré-estabelecidas e pactuadas com a
sociedade, administrar os gastos públicos a partir de uma combinação de
emissão monetária (antes do Banco Central autônomo), cobrança de impostos e
endividamento publico. Além disto, os gastos públicos constituem os gastos de
consumo necessários para a reprodução da ordem e bem-estar sociais
considerados como mínimos para uma determinada sociedade. Assim, o gasto
público insere-se indiretamente na reprodução do capital na medida em que
garante a reprodução da população (de onde se tira a base do capital variável),
defende as matérias primas disponíveis no território e garante a lei, a
institucionalidade do curso do capital e a forma de consubstanciação da riqueza.
O desequilíbrio entre o volume da arrecadação tributária e o volume dos
gastos governamentais, o chamado déficit público, leva à dívida, mas os gastos
expressam uma determinada organização social onde as classes sociais (ou suas
frações organizadas) digladiam-se na esfera do Estado em defesa de seus
diferentes interesses – não necessariamente de forma pública. A disputa entre o
público e o privado expressa um determinado equilíbrio de forças, normalmente
refletindo uma hegemonia, ou em alguns casos, a ausência desta.
431 Como no caso da Microsoft, já condenada a “desfazer-se de seu monopólio” pelas
autoridades antitruste americanas e cuja reação foi ameaçar mudar a sede da empresa para o Canadá. A mera ameaça de redução da arrecadação tributária pelo Estado norte-americano levou a uma situação de impasse que durou mais de uma década e foi revertida recentemente em favor da empresa.
342
A contração de dívida tanto pode expressar uma impossibilidade de
pactuação da forma do financiamento do gasto social como uma imposição de
uma “fuga para a frente” por parte dos monopólios capitalistas que buscam
através do Estado a expansão do consumo que financie uma nova rodada de
expansão do capital através da legitimação – via gasto público – da expansão do
crédito. Ambos os processos acabam por levar o Estado às garras do mercado
financeiro, o que, na prática, fabrica uma nova relação de forças onde os setores
que poderiam transferir suas rendas ao Estado em nome do bem público,
tornam-se senhores de parcelas da arrecadação social. Ou seja, a dívida torna-se
uma forma de transferência de parcelas da mais-valia entre setores da burguesia
e uma sucção do valor disponibilizado para a sociedade pelos impostos. Na
medida em que o volume da dívida torna-se maior, a quantidade transforma-se
em qualidade, e os credores passam a impor suas condições ao devedor. A
dialética do endividamento é a mesma quer se tratem de indivíduos isolados,
empresas ou Estados.
Fica claro em Marx que os títulos públicos não são capital tout court432,
mas sim obrigações emitidas pelo Estado sobre o produto anual da nação.
Entretanto, na medida em que a dívida pública serve para manter sob controle o
volume de dinheiro em circulação, a taxa de juros paga pelo Tesouro torna-se
objeto da agiotagem dos bancos. Por outro lado, a inexistência de novos
investimentos produtivos lucrativos faz com que parcelas do capital pressionem
pela expansão do capital fictício garantido pelo Estado – em particular, no caso
dos fundos mútuos e de pensão, como hedge de “investimentos” menos seguros,
como a especulação cambial com moedas periféricas433.
Paradoxalmente, o Estado – e aqui temos uma situação muito particular
no caso dos EUA – ocupa funcionalmente o papel de consumidor de última
instância. Ou seja, na medida em que o fundo público torna-se o grande
realizador de parcelas crescentes do consumo social, e desta forma garante o 432 “Ainda que no caso de que o certificado da dívida – o título ou obrigação – não
represente um capital meramente ilusório, como no caso da dívida pública, o valor do capital desse título é puramente fictício” (Marx, 1984: III/7, 601).
433 O caso do déficit norte-americano é ainda mais problemático, na medida em que este é financiado por poupança japonesa, que demanda títulos públicos norte-americanos como uma forma de hedge frente à ameaça de uma variação da cotação do dólar implicar numa redução dos lucros para as empresas japonesas. Assim, o maior credor da dívida americana é o próprio governo japonês que só nos anos 1980 comprou mais de U$ 100 bi em títulos públicos norte-americanos. Por outro lado, a ameaça de vender estes títulos tornou-se uma espada de Dâmocles nas relações bilaterais entre estes países (cf. Strange, 1998).
343
reconhecimento do conjunto da riqueza social, ele não pode mais deixar de fazê-
lo – e ao contrário, é constantemente empurrado a expandir seus gastos, ainda
que a forma destes seja disputada pelos diferentes setores. O consumo estatal
que inicialmente ao longo da história indicava insuficiência de capitais, passa a
representar em fins do século XX, seu excesso.
É próprio do esquema do multiplicador keynesiano que, uma vez
utilizado para deslocar a demanda agregada, o gasto público realizado deve ser
mantido sob pena de desfazer o ciclo virtuoso no mesmo volume e intensidade
com que a demanda foi inicialmente deslocada. Assim, a expansão da economia
possibilitada pelo gasto público deve ser mantida a qualquer custo sob pena da
redução da riqueza total. Por outro lado, é pressuposto do modelo que a
expansão do gasto, a ser confirmada ex post, será financiada por um aumento
da arrecadação tributária, e neste sentido o déficit público será esterilizado.
Entretanto, a disputa pela apropriação do excedente gerado não garante
ao governo a força necessária para que a arrecadação cubra os gastos. Além
disto, novos gastos são demandados por outras classes e/ou frações da classe
burguesa, e mesmo o melhor planejamento está sujeito aos caprichos do ciclo
econômico. Assim, mesmo que contraída no intento de combater os males da
anarquia produtiva própria do sistema capitalista, a dívida pública acaba por
instalar-se como um componente central da administração da gestão monetária
e do fundo público. Esta parcela do capital fictício434 passa a assombrar o fundo
público como se uma parte deste houvesse sido seqüestrada e o resgate se desse
sempre de forma incompleta435.
434 “A acumulação de capital da dívida pública não significa outra coisa, como já se
demonstrou, que o aumento de uma classe de credores do Estado, autorizados a reservar-se para si certas somas sobre o montante dos impostos. Neste fato de que inclusive uma acumulação de dívidas possa apresentar-se como uma acumulação de capital, se revela a consumação da distorção que se opera no sistema creditício. Estes títulos da dívida, estendidos em troca do capital originalmente emprestado e gasto muito tempo atrás, estas réplicas de papel do capital conquistado, funcionam para seus possuidores como capital na medida em que constituem mercadorias vendíveis, pelo que podem ser reconvertidas em capital” (Marx, 1984: III/7, 614). Neste trecho há uma citação de Sismondi onde fica claro que os impostos são cobrados sobre a produção e, portanto, da massa de mais-valia.
435 “O Estado deve pagar anualmente a seus credores certa quantidade de juros pelo capital emprestado. Neste caso o credor não pode reclamar o pagamento da dívida a seu devedor, mas somente vender a exigência, seu título de propriedade da mesma. O próprio capital foi consumido, gasto, pelo Estado.”[...] “Mas em todos estes casos, o capital cujo látego (juro) se considera ao pagamento estatal, é ilusório, capital fictício. Não só por que a soma que se emprestou ao Estado já não exista em absoluto. Pois esta soma nunca esteve destinada, em geral, a ser gasta, investida como capital, e só em virtude de seu investimento como capital se poderia ter transformado num valor que se conserva a si mesmo. [...] Por muito que se
344
Se a criação da dívida pública é comemorada pela burguesia como forma
de garantir para si um maná sem os riscos do investimento direto como Marx
realça ao discutir a acumulação originária, é porque as relações de poder daí
decorrentes permitem o desenvolvimento de uma fração de burgueses voltados
à especulação e ao tráfico destes bilhetes públicos, a alienação do Estado436. O
gasto estatal já nasce como parteiro da acumulação privada na forma de
subsídios e gastos suntuosos. Marx chega mesmo a estabelecer a ligação entre a
dívida pública e o sistema de impostos e como eles se realimentam, mas, não
fecha o modelo como uma punção cruzada entre os capitalistas. Fica apenas na
exploração indireta do trabalhador pelo capital através da extração de impostos
que serão pagos como juros da dívida pública (cf. Marx, 1984: I/3: 945, rodapé
c). Segue da discussão anterior que o título da dívida pública dá direito a seu
portador de apropriar-se da mais valia cobrada pelo Estado na forma de
impostos, e neste sentido o capital é bem pouco fictício.
O Estado aliena-se de sua função pública e é colonizado pela lógica
privada do mercado quando se torna responsável pela gestão do equivalente
geral, a moeda fiduciária. A impossibilidade de se sancionar a partir do mercado
(e portanto de forma privada) a lei do valor, empurra para a esfera pública a
disputa desta medida. O processo que constitui o Estado como fiel do valor,
garantidor último do equivalente geral, e responsável pelo volume de crédito,
lança para dentro do Estado, ou seja, estatiza, a disputa pela sanção da riqueza,
insere na superestrutura o marco regulatório que se dava até então na estrutura
produtiva.
Torna-se borrada desta forma a diferença entre uma fraude financeira de
uma S.A. e o calote da dívida pública. Ambos eliminam, de um golpe, enormes
contingentes de riqueza social cristalizada na forma de títulos de capital fictício.
Mas o Estado, na medida em que representa o interesse coletivo em
contraposição aos interesses particulares tem a possibilidade de garantir-se
como tal, empenhando desta forma a riqueza coletiva – pretérita e futura - de
forma delegada. Enquanto a empresa pode ir à falência e seus acionistas não
multipliquem as transações, o capital da dívida pública segue sendo puramente fictício, e a partir do momento em que estes certificados de dívida se tornassem invendíveis, se desvaneceria a aparência deste capital. Não obstante, como veremos de imediato, este capital fictício tem seu próprio movimento” (Marx, 1984: III/7, 599).
436 “A dívida pública, ou em outras palavras, a alienação do Estado -...- deixa sua marca na era capitalista” (Marx, 1984: I/3: 943).
345
conseguirem reaver nem mesmo sua fração ideal do capital, o Estado só pode
cancelar sua dívida pública mediante o perdão dos credores – como no caso de
algumas ex-colônias francesas e inglesas e mais recentemente a Argentina de
Kirschner – ou no caso de uma revolução, como a soviética437 e a chinesa cujos
novos dirigentes, alegando tratar-se de um novo Estado, recusaram-se a
reconhecer as dívidas dos regimes anteriores.
Outro guizo para o gato.
O Estado, enquanto administrador dos bens sociais atua como grande
facilitador de uma série mecanismos do mercado e gera valores de uso de forma
direta ou indireta. Embora institucionalmente tenha outra natureza que o
capital, é permeado e colonizado por sua lógica na medida em que arbitra
conflitos distributivos da sociedade burguesa. Títulos públicos dão direito à
apropriação da mais-valia social. Subsídios, idem. Política e economia são assim
formas de expressão do poder que se confundem na sociedade burguesa. Os
próprios funcionários do Estado que transitam aos postos das Sociedades
Anônimas - e vice versa - são espelho desta aparente promiscuidade.
Uma das principais preocupações de Strange (1998, cap. 9 e 10) é a
difusão da lógica do capital financeiro para o conjunto das relações de mercado,
particularmente tomando-se em conta que esta lógica está muitas vezes baseada
no sigilo das operações, o que as aproxima da lógica criminosa, e com o fato de
que um dos elementos que mais cresce junto com a desregulamentação dos
mercados é justamente a prática do suborno e corrupção de políticos e agentes
governamentais.
Fica claro que o mercado financeiro do século XXI – que de mercado tem
muito pouco, uma vez que é fortemente concentrado – tem poder para garantir
a taxa de usura cobrada dos Estados nacionais em níveis positivos e altos.
Segundo François Chesnais, a perda da independência e soberania dos Estados-
nação não é a conseqüência mecânica da globalização, é uma decisão política de
seus governos. (cf. Chesnais, 1996: 34). As interpretações de Stopford e Strange
(1991), Strange (1998), Beinstein (2001) convergem para a mesma tese.
437 O papel da dívida pública do império Russo na substituição de Londres por Nova
York como principal centro financeiro munial é explorado por Arrighi (1996).
346
A crescente internacionalização do capital financeiro, entretanto, aponta
também para a transformação de todas as dívidas públicas do mundo em
dívidas externas, pois mesmo aquelas contraídas dentro de um país não podem
ser discriminadas necessariamente como propriedade de nacionais. Além disto,
a desregulamentação dos fluxos de capital, permitem que, mesmo capitais
financeiros com origem no país emprestador, tentem “pôr-se a salvo” nas praças
offshore e/ou paraísos fiscais assim que se aproxima uma tormenta438. Isto
aumenta o risco sistêmico na medida em que tais dívidas passam a ser
contraídas em moeda global, além de reforçar o poder político – devido ao papel
de emprestador de última instância - do Estado que funciona como emissor do
standard universal.
Segue que a lógica da punção financeira torna-se uma lógica global do
sistema que transforma os Bancos Centrais e Estados-nação em reféns do
comportamento do sistema financeiro. A ampliação das dívidas públicas – que
como vimos é uma realidade tanto no centro quanto na periferia sistêmica –
implica no comprometimento de parcelas crescentes da arrecadação pública
com o pagamento de juros. Esta ampliação pode dar-se de três formas: 1) corte
em outras despesas; 2) ampliação da arrecadação (que por sua vez cerceia a
acumulação de capitais em outros setores); ou 3) ampliação da dívida. Todas as
alternativas implicam em algum nível de cerceamento à liberdade do Estado de
conduzir políticas públicas e travas ao desenvolvimento de atividades
produtivas.
O corte em despesas, como já discutimos, pode representar uma retração
do PIB na medida em que os juros podem não substituir o gasto público direto
na alimentação dos mecanismos de circulação econômica. A ampliação da
arrecadação implica na ampliação da exploração de algum setor da sociedade –
achatamento de salários ou diminuição dos lucros de algum setor para que se
possa transferir esta parcela da mais-valia para os bancos. E finalmente, a
terceira alternativa representa lançar a conta para o futuro, quando
potencialmente será cobrada com efeitos perniciosos de maior monta,
438 Este foi o comportamento dos capitais mexicanos, argentinos, brasileiros, malaios e
coreanos, para citarmos as crises mais recentes. Normalmente, os bancos “nacionais” destes países eram os primeiros a expatriar recursos colaborando com a situação de aperto monetário gerado para seus bancos centrais. Como exemplos no início da década de 1990, os casos do sudeste asiático são descritos por Chesnais (1996), o caso mexicano é descrito por Zapata (1997), e o argentino por Panés (1997).
347
possivelmente combinando as duas alternativas anteriores com algum
mecanismo monetário que permita a socialização das perdas para o conjunto da
sociedade. Discutiremos em seguida mais profundamente como se dão estes
processos a partir da atividade de tributação estatal.
4. Ampliação do modelo de apropriação da mais-valia: os tributos.
A forma do Estado burguês deve aparecer como pública e, para tanto,
necessita ser financiada pelo conjunto da sociedade, inclusive para ser funcional
à dominação de uma classe sobre as demais, e na medida em que é uma
estrutura idealmente justificada. Como vimos, Estado e mercado aparecem
assim como as duas grandes estruturas nas quais se dá o exercício do poder. No
primeiro pólo, temos o poder político, que para ser exercido, entretanto,
necessita utilizar-se de uma parte do excedente do produto social. No outro
pólo, o mercado, onde se exercita o poder econômico, aparece a necessidade do
poder do Estado para garantir suas relações básicas de funcionamento – a
propriedade privada, o equivalente geral monetário e as leis que regulam e
garantem os contratos.
Não há aqui uma contradição de objetivos: um pólo reforça o poder do
outro na medida em que a classe capitalista, e através dela o capital como
sujeito social, se torna hegemônica frente ao conjunto da sociedade. O Estado
garante o mercado que, reciprocamente, garante o poder do Estado, mas isto
não forma uma unidade interdependente. O Estado, para cumprir sua função de
dominação ideológica, deve parecer público e não privado, para poder garantir
as relações privadas do mercado, que em nenhum momento se pretendem
públicas.
O problema enfrentado aqui é discutir a dicotomia entre público e
privado no âmbito do Estado, e como o capitalismo aos poucos coloniza o
espaço que se apresenta como público, submetendo a esfera estatal à sua
vontade e a correspondente resistência da sociedade, apesar de todo o esforço
capitalista de produção ideológica do consentimento dos dominados.
Embora não correspondam à base real que gera tais rendas, o lucro, as
rendas da terra (e, como demonstramos, os demais lucros monopolistas) e o
salário aparecem como as formas do rendimento das diferentes classes. A forma
348
como se distribui o produto social conforme Marx. No entanto, a aproximação
marxiana de fins do século XIX, embora trate do assunto, não se estende sobre a
participação do Estado na divisão do bolo do produto439. É da massa de
produtos gerada na produção anual de um país que se extrai e constitui o fundo
público, não importando a forma como este incida sobre a sociedade via
impostos de consumo, como um látego sobre o trabalhador, ou diretamente
como um imposto sobre valor agregado, aparecendo para o industrial como uma
punção sobre seu lucro. Não devemos perder de vista que “a distribuição
pressupõe antes a existência dessa substância, a saber: o valor global do produto
anual, que é nada mais que trabalho social objetivado” (Marx, 1984: III/8,
1047).
Se como vimos anteriormente, o produto divide-se em lucro empresarial,
juros, salários e renda da terra, a introdução dos impostos gera um novo
incomodo. Um novo ator busca apropriar-se de uma parcela do produto
nacional: o Estado. Embora este seja o instrumento que representa o poder
exercido pela classe ou grupo social dominante, ele será visto como um ator
independente, autônomo, por parte do conjunto da sociedade. Esta aparente
autonomia gerará alguns complicadores de ordem ideológica para sua análise.
Se o pequeno burguês já se sentia escorchado pelos juros e bradava aos
ares contra o capital monetário440, agora seu ódio dirige-se ao representante do
fisco, sempre pronto a garrotear a produção para o financiamento da máquina
pública, sem que o pequeno capitalista veja maior sentido em tal ação (ainda
que constantemente seja beneficiado por esta).
Em Marx ficam claras as duas formas como os impostos são vistos e que
correspondem à aparência e à essência do processo. Na primeira, “... a maneira
como ingressa um imposto no preço da mercadoria à qual grava, como um
elemento independente de seu valor” (Marx, 1984: III/8:963) será a forma
como o imposto é visto pelo empresário, como um preço a ser adicionado ao
processo produtivo aparentemente exógeno a este, como se o imposto fosse
439 Este tema já foi tratado antes por Baran e Sweezy (1974) que partem da idéia de
excedente econômico, para poder incorporar outras determinações da renda nacional como os impostos e o dízimo eclesiástico (que Marx apontou como componentes da distribuição da renda também no “Teorias da Mais-Valia”).
440 “Em contraposição ao juro, o lucro do empresário se lhe apresenta como independente da propriedade do capital, e melhor ainda como o resultado de suas funções como não proprietário, como... trabalhador” (Marx, 1984: III/7:486).
349
aparentemente um preço a mais a ser cobrado além do custo de produção da
mercadoria. Em outros trechos441, fica claro que o imposto é uma parcela da
mais-valia, e portanto do tempo de trabalho socialmente necessário quitado
pelo Estado ao produtor na forma de uma punção direta sobre a sua renda, o
lucro442. Assim sendo, temos em Marx tanto a idéia de que do ponto de vista da
aparência como são vistos pelos empresários, os impostos são exógenos ao
processo produtivo, quanto a de que na prática sejam uma punção do Estado
sobre o produto anual da nação, representando assim a socialização dos custos
estatais.
O financiamento do “interesse coletivo”, ainda que o principal seja o
interesse da classe dominante em garantir a forma de apropriação privada, ao
ser apresentado como interesse geral, torna-se uma necessidade de
financiamento do Estado por parte de toda a sociedade. Segue disto que os
impostos incidirão de forma direta sobre as diferentes rendas (lucros, juros,
aluguéis e salários), e de forma indireta, embutido no preço das mercadorias,
competindo o Estado, neste caso, com a apropriação privada da mais-valia na
forma de um “markup público”. Isto nos leva uma vez mais à discussão do
modelo de transferência e distribuição das rendas.
5. O modelo de rendas ampliado: salário, lucro, rendas monopolistas e tributos.
Num esquema simplificado, podemos descrever o processo de
transferência da renda mediado pelo Estado da seguinte forma, considerando
um sistema a dois setores (desta vez um concorrencial e outro monopolista) não
importando se estamos diante da produção de bens de capital ou de salário, a
produção da economia seria descrita por:
I = Kc + Kv + mv1(le1 + t1)
II = Kc + Kv + mv2(le2 + t2)
Onde os tributos recolhidos pelo Estado seriam dados por:
T = t1 + t2
Se o gasto do governo (G=T) se constituísse apenas em juros sobre uma
dívida constituída junto ao setor II, altamente financeirizado, e detentor do 441 Particularmente nos já citados capítulos XXIV e XXV do Vol. I do Capital. 442 Também é esta a interpretação de Harvey (1982) sobre os impostos.
350
controle sobre a massa de capital monetário disponível nesta sociedade, então,
tendencialmente, a repartição final da renda entre os setores seria:
I = Kc + Kv + lucro1 (le1)
II = Kc + Kv + lucro2 (le2+ t1 + t2)
E aqui está retratada, de forma pura e radical, a tendência percebida por
Oliveira (1998) de formação de ao menos duas taxas de lucro, uma do setor
concorrencial, como já dissemos tendente ao lucro empresarial, cada vez mais
equivalente à remuneração pelo trabalho do pequeno capitalista, e outra do
setor oligopolista, reunindo a grande massa de mais-valia socialmente extraída.
As fórmulas acima descrevem igualmente o processo de transferência
ocorrido dentro da economia se I fosse composto apenas por capitais
concorrenciais e II por empresas que vendessem apenas ao Estado operando
com preços monopolistas, como no caso da indústria bélica.
No outro caso extremo, teríamos o Estado no papel de produtor de bens
públicos, destinado uma parcela de seu gasto à produção destes. Assim, uma
interpretação do papel do Estado nas contas nacionais (ainda considerando uma
economia fechada) nos levaria de um lado a constatar que seus gastos são
realizados através da ação direta na produção de bens públicos, que
representam um barateamento geral das condições de produção e que podem
resultar ou não na transferência de renda entre as classes sociais, normalmente
jogando no sentido de aumentar os lucros do setor capitalista; outra parcela que
se destina aos gastos de infra-estrutura, cuja dinâmica leva à apropriação de
parcela da mais-valia social na forma de lucros oligopolistas por parte de
empresas fornecedoras destes bens, e de enriquecimento indireto dos
proprietários de terra na forma de rendas derivadas da localização; a concessão
de subsídios diretos e indiretos que beneficiam alguns setores econômicos em
detrimento de outros; a previdência social que representa a socialização dos
custos de manutenção da população excluída da PEA, majoritariamente por
idade, e que seria um custo direto sobre os salários caso não fosse garantida
desta forma; e, finalmente, o pagamento de juros sobre a dívida pública que
representam,juntamente com os gastos improdutivos, uma transferência direta
de riqueza socialmente produzida e constituída em fundo público para bolsos
privados, em particular para o sistema financeiro.
351
A contrapartida destes gastos nos leva à forma como se constitui o fundo
público, que grosso modo se dá via tributos (impostos, taxas e contribuições de
melhoria), dívida pública e emissão monetária. Desta forma, o modo como os
tributos são constituídos e cobrados é historicamente determinado, resultando
da disputa política entre as classes e frações de classe em conflito. Assim, o
financiamento do gasto público não se dá de forma equânime dentro da
população nem entre as diferentes classes que compõe a sociedade. Daí a
dificuldade para se realizar e o caráter crítico - no sentido de momento crucial -
das reformas fiscais e tributárias.
A dívida pública (constituída e justificada historicamente com base na
necessidade de gastos públicos em grandes empreendimentos de infra-estrutura
ou nas guerras), acabou por tornar-se um elemento indispensável da regulação
do valor atribuído às moedas fiduciárias garantidas pelos diferentes Estados443.
Neste sentido, a emissão monetária e a dívida, que constituem as formas da
chamada “política monetária” e os tributos que constituem a “política fiscal”,
representam os instrumentos de regulação da política burguesa e os verdadeiros
espaços de disputa política entre as esferas pública e privada nas diferentes
nações. Esta passagem da representação do valor pelas instâncias políticas de
legitimação, lançam a forma mercadoria para além do mercado, inscrevendo
parte do processo de seu reconhecimento social na esfera da representação do
interesse geral, coletivo, público, que se dá no âmbito da estrutura estatal.
A dívida estatal originalmente contraída para financiar a acumulação
primitiva e possibilitar a aceleração econômica, torna-se a forma de
entesouramento, refletindo a inexistência de aplicações práticas para a enorme
massa de capitais monetários disponibilizados pelas classes possuidoras.
Sua importância é central por dois motivos: primeiro, como vimos é
através da dívida pública que se processa grande parte da transferência de mais-
valia do setor produtivo concorrencial da economia para a esfera do capital
concentrado, em particular para os bancos; e segundo, é através da regulação do
sistema de crédito que o Estado e o sistema bancário disputam entre si a
443 “Não é a sua origem em bancos nacionais que tornou [o dinheiro] em algo
universalmente legitimado [...], mas o fato de que o National Banking Act fez com que a moeda fosse segurada com bônus do Tesouro norte-americano” (Roy, 1997: 132).
352
apropriação do imposto inflacionário e o comando sobre o “valor”444 das
moedas, constituindo-se desta forma num campo de disputa fundamental da
“hegemonia econômica” na medida em que se trata de estabelecer as regras
pelas quais se reconhece a riqueza pretérita e a partir das quais os diversos
atores se apropriam do excedente gerado pelo sistema capitalista em seu
conjunto.
444 Entendido aqui como o montante de trabalho social médio, substância social
cristalizada nas diferentes moedas.
353
Capítulo 11 - O Estado global.
1. As contradições do antivalor e da democracia.
“22. [O capitalista] Não é a favor bem contra o sufrágio universal,
nem a favor nem contra o sufrágio restrito, serve-se dos dois: compra
os eleitores do sufrágio restrito e engana os do sufrágio universal. Se
têm de optar, pronuncia-se por este último, como sendo o mais
econômico: porque, se é obrigado a comprar os eleitores e os eleitos
do sufrágio restrito, basta-lhe comprar os eleitos do sufrágio
universal” (Lafargue, 1990:181).
Até aqui fizemos uso da conceituação elaborada por Oliveira (1998) sobre
o fundo público buscando, sempre que possível, reforçar suas principais
conclusões. Em particular discutimos como o conceito de hegemonia econômica
aqui proposto se presta, como uma nova forma de utilização da noção de
hegemonia, para entendermos como o poder econômico se transubstancia em
poder político e como este último delimita o primeiro, de forma a conter a
disputa pela apropriação da mais-valia global entre as diferentes classes e
frações. Este movimento, entretanto, põem em relevo as contradições entre
público e privado subjacentes ao conceito de antivalor e do conteúdo da
democracia no Estado burguês.
A idéia de antivalor, como partícula contrário ao valor, criada na
produção estatal dos bens públicos só é válida no nosso entendimento se, de
fato, o fundo estatal for passível de disputa pública, no sentido de ter seu uso
definido através de mecanismos de fato democráticos e não apenas formalmente
354
democráticos. Neste sentido, sua capacidade transformadora radical se encontra
limitada pelo velho sonho da social-democracia.
Se retomarmos o argumento de Rosa Luxemburgo contra Conrad
Schmidt445, devemos nos indagar sobre o velho limite dado pelos direitos de
propriedade privada que se estabelecem como pedra fundamental da sociedade
capitalista (Sartori, 1994a). Apesar disto, grande parte dos experimentos sociais
democráticos se deu com base em justificativas dos ditos “revisionistas alemães”
e de fato lograram, ao menos por um período, integrar os historicamente
excluídos sob uma hegemonia burguesa (cf. Borón, 1994:74-5). Este espaço da
democracia446, ainda que inicialmente burguesa, é que é divisada por Oliveira
como um possível limiar para novos experimentos sociais. Desta forma, a
própria democracia burguesa deve ser questionada sobre como pode vir a ser
este espaço de construção do público, como pode vir a ser condição necessária e
suficiente para a transformação social e superação do sistema. Entretanto, há
pressupostos que necessitam ser construídos para que a real autonomia dos
indivíduos seja conquistada e a propriedade privada limitada em seu poder de
comando.
O debate sobre o que é ou o que deixa de ser democracia, entretanto,
seria muito extenso para que déssemos conta aqui. Dos pensadores clássicos
gregos a Sartori (1994) ou o recente Hardt & Negri (2000)447, da interpretação
do sistema eleitoral norte-americano feita pelos economistas Baran & Sweezy
(1974) à discussão mais refinada de Borón (1994 e 2000) sobre a funcionalidade
da democracia de mercado, e de como esta tem muito pouco de democracia
445 “Segundo Conrad Schmidt, a realização de uma maioria social-democrata no
parlamento deve ser a forma direta da socialização gradual da sociedade [...] Formalmente, o parlamentarismo expressa os interesses de toda a sociedade na organização do Estado. Por outro lado, no entanto, é ainda uma sociedade capitalista, ou seja, uma sociedade na qual os interesses capitalistas predominam [...] As instituições democráticas na forma são na substância instrumentos dos interesses da classe dominante. Isso se evidencia mais no fato de que tão logo a democracia mostra uma disposição de negar seu caráter de classe e tornar-se um instrumento dos verdadeiros interesses do povo, as formas democráticas são sacrificadas pela burguesia e por seus representantes no Estado. A idéia de uma maioria social-democrática surge, portanto, como um cálculo que, totalmente dentro do liberalismo burguês, se preocupa apenas com um lado – o lado formal – da democracia, mas que abandona o outro lado, seu conteúdo real” (Luxemburgo, R. Gesammelte Werke. III p 59-60. apud Sweezy, 1983: 195).
446 “A democracia representativa é o espaço institucional no qual, além das classes e dos grupos diretamente interessados, intervém outras classes e grupos, constituindo o terreno do público, do que está acima do privado. São, pois, condições necessárias e suficientes” (Oliveira, 1998: 41)
447 Já atualizado pelos autores no novo Multitude – War and Democracy in the age of Empire. Penguin, 2004.
355
produzindo no limite uma “democracia sem cidadãos”, nos obrigaria à produção
de mais uma tese448. Assim, nos limitaremos a algumas considerações sobre os
caminhos apontados pela nossa pesquisa.
O fato a ser constatado é que mesmo a democracia burguesa – seja ela
aparente ou não - está sob ataque em tempos do totalitarismo neoliberal. Por
um lado, a transformação do equivalente geral em medida pública e a
reprodução social de grande parte do trabalho necessário à reprodução social se
dá no espaço público e com base no fundo público – o que transforma o fetiche
da mercadoria num fetiche do Estado - por outro lado, a submissão de tudo o
que há sob o céu à tributação e à monetização, remercantiliza – na medida que
submete à medida social para o mercado – todas as relações que aparentemente
seriam desmercantilizadas pela ação do fundo público na produção do
organismo social.
O fetiche do Estado se mostra assim como algo previamente constituído e
repousa na ilusão da democracia burguesa, como uma extensão do fetiche do
capital. O Estado social-democrata ao não se constituir em direito real e em
relação consciente de cidadania republicana, se reveste de formas incompletas e
parciais de exercício do kratos alienado ao indivíduo e de fato exercido por
agências e organismos de regulação. As formas de relacionamento indivíduo-
Estado típicas do sistema capitalista são heterônomas – mesmo se consentidas -
e, neste sentido, não geram possibilidades de devir. Antes, funcionam como sua
negação.
O totalitarismo do capital, no sentido de uma visão de mundo
culturalmente difundida que nega todas as alternativas fora da reprodução
ampliada do valor em sua forma monetária (e se estivéssemos tratando de um
vírus poderíamos dizer que isto se dá em sua forma mais virulenta e letal),
submete cada vez mais o Estado a suas regras. Neste sentido, a precificação da
mão de obra utilizada pelo Estado se dá com base nos parâmetros privados; o
cidadão é transformado em cliente, e o fundo público, ao tornar-se pressuposto
da acumulação, mais-valia a ser transferida do setor produtivo ao financeiro; do
pequeno ao grande capital. Desta forma, o antivalor só não dá seu salto mortal e
vira valor se sua apropriação se der por regras e através de instâncias realmente
públicas, o que não é o caso sob o primado da democracia burguesa pautada 448 Que talvez constitua um próximo trabalho.
356
pela propriedade privada. Trata-se portanto, como veremos no próximo
capítulo, de se construir os caminhos para uma refundação radical da
democracia.
O problema assim colocado passa a ser os limites à mercadorização da
produção: de fato o que impede a completa colonização do Estado pelo
Mercado? Nada. Do ponto de vista neoliberal, desde que a prestação do serviço
seja “controlada”, o próprio exercício da força pode ser delegado a mercenários,
junto com a guarda dos presos, educação, saúde etc. O fato de isto dar em Don
Rumsfeld e nas atrocidades cometidas pelos norte-americanos no Iraque é mera
decorrência do princípio.
Contudo é necessário termos claro que, dentro do pacote da ideologia
burguesa que tenta ser imposto pelo específico modo norte-americano de ver o
mundo, e que segundo Strange (1998) os norte-americanos consideram como
algo que está sendo copiado por todos (e se ainda não foi será), faz parte sua
particular concepção de democracia, através da qual:
“Os Estados Unidos tornaram-se uma espécie de utopia para a soberania
privada da propriedade e do comércio. A estrutura mesma do Governo
impedia a ação efetiva em muitas áreas da economia ou da vida social
[...] O papel positivo do governo tendeu a limitar-se rigorosamente a
umas poucas funções que poderiam gozar da aprovação de
substancialmente todos os elementos das classes abastadas: a ampliação
do território nacional e a proteção dos interesses dos homens de negócios
norte-americanos e dos investidores no estrangeiro, atividades que
durante toda a história norte-americana foram a principal preocupação
do Governo Federal; aperfeiçoamento e proteção dos direitos de
propriedade, internamente; dividir o domínio público entre os que dele
pretendiam uma parcela com mais energia e insistência; proporcionar
uma infraestrutura mínima para a operação lucrativa da iniciativa
privada; distribuição de favores e subsídios de acordo com os princípios
bem conhecidos do logroll e do pork barrel449”. (Baran & Sweezy, 1974:
161-2).
449 Aqui se faz necessária a transcrição da nota do tradutor: “Expressões características
do linguajar político norte-americano. Logroll é a colaboração mútua entre os membros de uma assembléia legislativa para obter a aprovação de leis de interesse local ou pessoal, especialmente as relacionadas com verbas destinadas a beneficiar determinados eleitorados. Pork barrel é a
357
A idéia de que seu sistema possa ser e seja simplesmente copiado é
evidentemente tola e reflete o egocentrismo coletivo a partir do qual os norte-
americanos, e em particular sua elite, vêem o mundo. Entretanto, alguns
elementos adaptados do sistema norte-americano fazem parte do “pacote”
vendido para a felicidade dos povos que se submetem ao sistema capitalista, seja
no leste europeu ou no Oriente Médio. São estas instituições que tornam
possível a subordinação dos Estados nacionais formalmente independentes ao
sistema hierárquico centrado nos EUA e demais países desenvolvidos, e a
construção de proto-hegemonias locais funcionais à manutenção da ordem
social global e à extração da mais-valia em nível mundial para alimentar os
apetites da NYSE. É aqui que faz sentido o uso do termo “potência hegemônica”
e onde se expressa sua “ação didática” em termos gramscianos.
2. A contradição do nacional como espaço de exploração com o internacional como espaço de registro da
acumulação.
Tornam-se patentes neste processo as contradições geradas pela
dinâmica de universalização do princípio de soberania nacional que dirigiu o
movimento de descolonização pós-guerra. A primeira está relacionada ao fato
da soberania nacional estar limitada por uma hierarquia internacional que se
consubstancia em organismos multilaterais e em acordos bilaterais entre as
nações que, a exemplo dos contratos entre empresas, limitam a capacidade de
ações autônomas pelas partes envolvidas. O segundo elemento contraditório diz
respeito ao reconhecimento da forma da propriedade como instituída pelos
países do núcleo orgânico do sistema capitalista, o que restringe a
experimentação social, mesmo no âmbito do capitalismo, e em decorrência
reduz as possibilidades de surgimento de dinâmicas novas que possam vir a
constituir novos núcleos de capital autônomos com relação aos já existentes nas
nações centrais. Segue disto que a forma da “democracia de mercado” passa a
ser ela também um requisito de adequação das nações ao paradigma neoliberal,
funcionando como um sistema pelo qual se dá a gestão das populações por parte
denominação geral das verbas manipuladas pelos legisladores, através do processo precedente, para obras públicas e outras, de interesse específico para seus distritos e para as suas campanhas políticas” (in Baran & Sweezy, 1974: 162).
358
das elites locais a partir de uma concepção de mundo, onde estão incluídas,
tanto a própria forma da democracia (eleições diretas periódicas), quanto a
forma das relações de apropriação do excedente (a sagrada propriedade
privada).
A isto se integra ainda um terceiro elemento que é gerado pela crescente
internacionalização da riqueza capitalista, representada não apenas pelos fluxos
de IED, mas também pelas grandes reservas de capital-dinheiro constituídas
nos chamados paraísos fiscais, originados pela negociação offshore do dólar
norte-americano, na qual se irmanam tanto as classes proprietárias dos países
centrais quanto suas congêneres periféricas. A burguesia crescentemente
transnacionalizada busca, através de diversos mecanismos, evitar a taxação de
sua riqueza por parte dos Estados, além de especular contra a capacidade destes
mesmos Estados de manter a cotação de suas moedas com relação ao
equivalente geral universal.
Desta forma, ao mesmo tempo em que se desenhavam a independência
formal e o reconhecimento da soberania e do direito de autodeterminação dos
diferentes Estados-nação, construiu-se um sistema internacional altamente
hierarquizado a partir das ex-potências coloniais que compõem o núcleo
orgânico do sistema, que na verdade impede ou limita qualquer arroubo de
autonomia. Por outro lado, o desenvolvimento que no período colonial era
comandado de forma direta pelos Estados dos países centrais na forma da
coordenação e através de investimentos diretos nos territórios periféricos, passa
a ser dirigido por atores locais, normalmente em aliança com algum grupo de
capital oriundo dos países centrais (comumente da ex-metrópole) e sob
coordenação de organismos multilaterais que, neste sentido, substituem a
antiga metrópole no papel de tutela da elite local.
A exportação de capitais, que na época do imperialismo clássico se dava
normalmente através de investimentos e empréstimos diretos sob a tutela do
Estado central é substituído pelo investimento externo direto (IED) na forma
tipicamente norte-americana que passa a ser garantido pelas autoridades locais
sob o enforcement dos organismos multilaterais. Ao mesmo tempo, a
constituição de relações contratuais entre Estados pretensamente soberanos450
450 Na verdade o processo não é novo, o que se dá é sua generalização, pois “enquanto
existir um poder estatal que possa manter a ordem, o domínio direto é menos importante. Isso
359
abre espaço para a construção de relações de comércio assimétricas (por parte
das empresas) que permitem a transferência de rendas através de políticas de
câmbio que tendem a favorecer os setores exportadores em detrimento de
políticas de desenvolvimento mais equilibradas no seio das novas nações.
Este processo abre caminho para a constituição de blocos históricos na
periferia sistêmica que na verdade refletem mais os interesses do pólo associado
aos capitais externos do que os interesses “nacionais”, constituindo as
estratégias descritas por Cardoso (1972) como de “capitalismo associado”. Este
capitalismo associado na verdade é expressão da constituição da hegemonia
política e econômica por parte de capitais de origem externa à nação em pauta.
Tais burguesias, ao optar por estratégias deste tipo, na verdade abrem mão da
construção de uma hegemonia própria, tornando-se heterônomas, e
constituindo-se como pólos retardatários dos processos de acumulação
comandados pelos capitais dinâmicos oriundos do centro sistêmico.
Embora o reconhecimento destas nações periféricas tenha possibilitado
tentativas de construção de alguns projetos nacionais com graus variados de
autonomia ao longo do século XX, estas tentativas de decolagem, o termo é de
Rostow (1960), demonstraram-se, com algumas poucas exceções do sudeste
asiático, fadadas ao malogro, ou miragens como descrito por Arrighi (1997).
Mais que isto, o arranjo institucional internacional que permitiu a submissão
destas experiências periféricas à dinâmica do núcleo central parece ser o centro
do que Guimarães (2002) chama de “estruturas hegemônicas” e que tendem a
perpetuar a hierarquia relativa dos membros do sistema internacional.
Evidentemente este processo se deu com níveis diferenciados de resistência, e
mesmo de luta, de acordo com o país, obrigando o Estado norte-americano
instituído em gendarme das nações centrais, a intervenções abertas onde se
evidenciava o conflito.
Um exemplo claro da forma de difusão da concepção de mundo das
burguesias centrais para as nações periféricas através destas estruturas
hegemônicas se dá pela organização do Sistema Monetário Internacional (SMI).
Se a relação monetária é vista como uma dimensão do Estado nacional, uma
se altera com o aumento da exportação de capitais; trata-se então de interesses muito maiores.” [...] “O atraso da legislação torna-se assim uma barreira cuja superação o capital financeiro exige de forma cada vez mais agressiva e mesmo por meios violentos” (Hilferding, 1985: 302). O que reflete a constituição da direção hegemônica a partir de um centro exógeno à nação.
360
parte da concepção de mundo dominante num dado país, as relações entre as
moedas nacionais tornam-se necessariamente conflitantes, na medida em que,
neste caso, a hegemonia - e o bloco de classes que a exerce - é uma construção
interna a cada Estado nacional. Segue que a construção do SMI corresponde à
construção de uma estrutura idealista supra-estatal de caráter burguês que
busca minimizar as disputas entre as burguesias dos países desenvolvidos e
padronizar a forma do desenvolvimento econômico de acordo com o modo de
produção dominante e em consonância com o interesse das nações líderes. Em
muitos casos, se trata mesmo de sufocar este desenvolvimento em países
periféricos. Na prática, tal estrutura funciona atrelando as nações menos
desenvolvidas à forma de desenvolvimento das líderes, atuando como canal de
difusão das concepções dominantes nas nações centrais sobre a forma de
administração e manejo da política monetária para as nações periféricas ou
subordinadas. Muitas vezes as orientações são do tipo “faça o que digo, não faça
o que faço”, representando ingerências diretas na gestão soberana dos Estados
nacionais menos desenvolvidos. Estes são os mecanismos tantas vezes
denunciados como imperialistas e correspondentes à concepção mais difundida
do uso do conceito de hegemonia451. O que queremos ressaltar aqui é a ligação
destas determinantes macro-sociais e macroeconômicas com mecanismos de
caráter e origem micro-sociais e microeconômicos que lhes dão sustentação ao
mesmo tempo em que são reforçados por tais políticas.
Não é estranha aqui a idéia de que as estruturas concretas deste SMI, o
Banco Mundial e o FMI, funcionam como correias de transmissão da política
norte-americana, e em particular da vontade do FED. Na prática, é este
conjunto de instituições que toma para si a tarefa de “gerir o sistema”,
construindo o padrão de relações prático que estabelece a hierarquia entre as
nações e suas respectivas moedas. Não se trata de nenhuma denúncia de
maquiavelismo. Tais instituições exercem este papel porque foram construídas
para exercê-lo e não para “a construção do bem comum no concerto das nações”
como rezam seus estatutos. E neste sentido não deveria causar espanto os
documentos descobertos recentemente com as orientações políticas para os
representantes norte-americanos no FMI com relação à gestão das dívidas do
451 Ver Chossudovsky (1999) e Guimarães S. (2002).
361
terceiro mundo serem condicionadas a ajustes políticos e institucionais452. O
SMI de fato amarra o processo de reconhecimento social do valor às instituições
internacionais e ao dólar norte-americano, constituindo, ainda que de forma
indireta, as instituições multilaterais em controladoras dos processos de
reconhecimento internacional das moedas e de validação do valor contido
nestas. Se a validação do valor se torna estatizada, sua conversão última no
equivalente geral universal se dá a partir de instituições multilaterais
construídas com o sentido de garantir o funcionamento do sistema com base na
direção do bloco burguês que hegemonizou o sistema no pós-guerras, buscando
a alienação da soberania monetária das nações envolvidas.
Como já apontamos, a hipertrofia das grandes corporações, além disto,
dota a política internacional de um novo componente, denominado por Stopford
e Strange (1991) de diplomacia triangular, pois além dos interesses das nações
envolvidas, passa a agir diretamente nestas negociações o poder das empresas
como capitais externos aos Estados-nação, que contraditoriamente se mantém
como espaços de construção da hegemonia (ou seja, espaços onde se dá a
disputa política). Tais empresas, na medida em que passam a exercer seu poder
relativo no sentido de direcionar a ação dos Estados hospedeiros para suas
necessidades de acumulação, introduzem mais um elemento de tensão no
sistema, ao posicionar fora do espaço político nacional um dos elementos que
determinam os diversos equilíbrios nacionais, que se tornam, por este meio,
crescentemente interdependentes, sem que se constituam espaços democráticos
onde se possa estabelecer a medida e a negociação. Mais que isto, a ideologia
capitalista ganha validade e vigência globais, construindo numa oitava superior
aos acordos e legislações de caráter nacional, uma legislação internacional que
resulta da interação de poder entre os diferentes capitais oriundos de diversos
países, e que desta forma torna homogênea a burguesia numa escala
internacional. É este em essência o papel dos organismos multilaterais de
comércio, em particular da OMC e de seu predecessor histórico o GATT.
Assim, a forma pela qual os mercados são regulados, de modo a que se dê
uma distinção entre a rentabilidade do capital concentrado e o capital
concorrencial, é reproduzida em escala internacional ao se ratificar a adesão de
cada país aos diferentes acordos internacionais, seja no âmbito monetário, seja 452 Cf. revista Carta Capital, n. 312.
362
com relação à legislação de patentes ou à forma do comércio. Garantem-se desta
forma as trocas desiguais em escala internacional e a transferência de mais-valia
entre países.
Neste contexto, a ascensão da ideologia neoliberal deve ser entendida
como o resultado da vitória de uma determinada concepção de mundo, cujo
epicentro se encontra nos sistemas financeiros dos países do núcleo orgânico do
sistema, que passou a advogar junto às diferentes burguesias (cada vez menos
diferentes e menos nacionais), uma nova forma de gestão das hierarquias
monetárias e financeiras mundiais. O acúmulo de forças – representado pela
criação de uma gigantesca massa de capital-dinheiro disponível no mercado
financeiro europeu, ainda que propriedade de capitalistas de distintos paises -,
realizado ao longo das décadas de 1960 e 1970, permitiu que, paulatinamente,
os sistemas financeiros relacionados com a negociação do dólar fora dos EUA,
passassem a exercer o papel de árbitro da valorização real dos capitais nos
diferentes países que dependiam da conversibilidade de suas moedas ao
equivalente geral mundial.
Por outro lado, o Estado norte-americano empenhado em seu papel de
“representante do mundo livre” – ou seja, representante das burguesias
nacionais aliadas à sua própria burguesia – percebeu no abandono da
conversibilidade de sua moeda em ouro, a possibilidade de financiar parte de
seu déficit público através de uma política de sucção da renda mundial para os
EUA, através dos juros da dívida pública do terceiro mundo e dos rendimentos
do IED, realimentado pelo acúmulo de ganhos financeiros e estabilizando o
sistema com base na inviabilização da acumulação de capitais no terceiro
mundo453. O desenvolvimento posterior levou à criação dos chamados déficits
gêmeos, através dos quais o valor da moeda norte-americana é mantido com
base na expansão constante da dívida pública, que por sua vez gera o
crescimento do déficit da balança de capitais que financia o déficit comercial
453 Nos anos 1980 o aumento das importações americanas, compensa para a periferia a
sangria dos juros da dívida. Com isso os bancos norte-americanos puderam emprestar ao Tesouro norte-americano, melhorando o perfil de suas carteiras. “Os programas do Fundo Monetário cumpriram, portanto, a finalidade implícita em sua concepção: reduzir ao mínimo os riscos de uma crise financeira à escala global, evitando, assim, a contaminação das praças que formam o centro nervoso do sistema internacional de pagamentos e de administração de grandes volumes de capital dinheiro” (Belluzzo & Almeida, 2002: 14). Argumento similar é encontrado no texto seminal de Mª. da Conceição Tavares em Tavares e Fiori (1993).
363
norte-americano454. Do ponto de vista das economias periféricas, a ausência de
crescimento, relacionada tanto à remessa de lucros por parte das
multinacionais, quanto pela evasão de poupança pública através do pagamento
de juros sobre a dívida, implicam na prática num processo de reprodução
simples do capital se analisada do ponto de vista do conjunto dos capitais
nacionais.
Assim sendo, quando um honesto homem do sistema, como Eichengreen,
chega à conclusão que:
“O permanente desenvolvimento dos mercados financeiros, alavancados
pelos progressos nas telecomunicações e nas tecnologias de
processamento de informação, prejudicou os esforços para conter os
fluxos financeiros internacionais. As tentativas de contenção eram não
apenas dispendiosas: o desenvolvimento da competição entre centros
financeiros, os países que impunham controles onerosos corriam o risco
de perder sua participação no mercado mundial de negócios financeiros
para outros concorrentes. Os países em desenvolvimento que não
liberalizassem seus mercados financeiros corriam o risco de não atrair
investidores estrangeiros. A liberalização, embora inevitável, agravou a
dificuldade de manter as âncoras cambiais, levando um número
crescente de países em desenvolvimento a deixar flutuar suas moedas”
(Eichengreen, 2000: 185).
Eichengreen reverbera aqui a ideologia neoliberal da inevitabilidade da
flexibilização e abertura econômicas. Devemos então nos perguntar onde está a
armadilha de seu pensamento pois o argumento é falacioso. A facilidade gerada
pela tecnologia não implica necessariamente em dificuldades para a contenção
dos fluxos de capital. A opção pela construção de praças “desregulamentadas”, é
454 “Desde meados dos anos 90, as grandes alterações nas posições dos países ou das
regiões, tanto ofertantes quanto demandantes líquidas de poupança, geraram um contínuo aumento dos desequilíbrios em conta corrente. A proporção da poupança mundial necessária para financiar o desequilíbrio externo dos Estados Unidos triplicou desde 1997. Em compensação, as economias de mercado emergentes se converteram em ofertantes líquidas de poupança, sendo especialmente impressionante a mudança ocorrida nas economias emergentes da Asia. Após a crise de 1997–98, a balança em conta corrente asiática aumentou mais de 5% do PIB só em dois anos. Em 2002, a região asiática (incluindo o Japão) cobriu, junto com a Europa, dois terços das necessidades de financiamento dos Estados Unidos. Contudo, a discrepância entre os balanços em conta corrente mundiais inviabilizam o conhecimento de todas as fontes de poupança mundial. Esta discrepância quase havia desaparecido em 1997, mas retornou desde então ao nível de quase 0,5% do PIB mundial registrado há 10 anos.” (BIS, 2003: 46-7).
364
o nome do processo que encobre a construção de praças onde o regulamento é
permissivo para determinadas ações do sistema financeiro. Não por acaso estas
são construídas em grande parte sob o guarda-chuva da Commonwealth
britânica, sob a inspiração direta dos grandes bancos norte-americanos e
ingleses – rapidamente seguidos por outros - que começam a operar off shore,
de forma a escapar dos impostos e outras restrições impostas pelos Estados
nacionais centrais455.
Esta revolta do capital financeiro – que como vimos funciona como
vanguarda do capital monopolista como um todo -, corresponde na prática ao
rompimento de quaisquer compromissos com a raiz “nacional” dos capitais que
compunha a ideologia burguesa. Ao optar por buscar os lucros,
independentemente da vontade do conjunto das demais frações burguesas
nacionais, o sistema financeiro anglo-saxão prepara-se para desafiar a forma de
organização da hegemonia burguesa do pós-guerra e da particular forma de
organização do Welfare State.
A constituição de reservas de capital em territórios externos aos Estados-
nação que lhes deram origem, prenuncia o rompimento dos pactos nacionais e a
dessolidarização das diferentes burguesias com as demais classes que lhes
serviram de base para a acumulação de seus capitais. Desta forma, o Citybank é
o primeiro banco norte-americano a oferecer a seus correntistas a possibilidade
de efetuar investimentos em depósitos gerenciados a partir de Londres, de
forma a escapar das restrições impostas às movimentações de grandes contas.
O volume de recursos financeiros que se forma nas praças financeiras
européias - particularmente em Londres - em decorrência das multinacionais
norte-americanas se recusarem a repatriar os lucros obtidos na reconstrução
455 É sintoma da falta de controle real exercida sobre estas praças offshore, que a
instituição de políticas que permitam a supervisão do funcionamento de seus sistemas bancários por parte das autoridades do Banco de Compensações Internacionais, o BIS, se dê de forma extremamente lenta. O relatório da comissão nomeada para discutir uma “pauta de sugestões” (BIS, 1996) em vista das dificuldades encontradas para a implementação de um programa mínimo de controle proposto pelo banco em 1992, é mais elucidativo da falta de controle sobre as operações financeiras que ocorrem nestes países do que da vontade de regulação de suas atividades por parte das autoridades internacionais. Até onde pudemos averiguar, tal “pauta de sugestões” não chegou até hoje a constituir-se num marco regulatório, o que contrasta com a urgência com que outras regras são impostas a países periféricos. Apenas como informação, “o Grupo Offshore de Supervisão Bancária, constituído em 1980, é composto por Aruba, Bahamas, Bahrain, Barbados, Bermuda, Ilhas Cayman, Chipre, Gibraltar, Guernsey, Hong Kong, Ilha de Man, Jersey, Libano, Malta, Mauritius, Antilhas Holandesas, Panamá, Singapura e Vanuatu.” (BIS, 1996: 2).
365
européia e de suas operações nos mercados europeus ocidentais (visando evitar
o fisco e a necessidade de distribuir os lucros por suas matrizes) é a origem dos
chamados eurodólares que financiarão, junto com o dinheiro árabe proveniente
dos lucros do petróleo, o endividamento dos Estados-nação, em particular os do
terceiro-mundo, frente aos choques do petróleo.
No caso dos centros financeiros a liberalização dos fluxos é decorrência
da construção de pólos alternativos para a realização das operações financeiras
fora dos centros tradicionais. Isto leva à adoção por parte destes, como a City
londrina456, de legislações mais frouxas visando manter o fluxo de capitais na
medida em que estes garantem a arrecadação de impostos que incidem sobre a
capacidade do sistema financeiro de transferir para si parcelas da mais-valia
globalmente extraída.
Quando o restante da burguesia norte-americana repara na manobra de
sua fração bancária para pôr-se a salvo da tributação no outro lado do Atlântico,
o Estado norte-americano é instado a pressionar as autoridades britânicas por
uma nova regulamentação da ação dos bancos na City londrina. O efeito é a
criação da diáspora das praças offshore para as pequenas unidades do antigo
império britânico e algumas ex-possessões coloniais holandesas. Como nos
relata Strange (1998) o resultado final, ao contrário da tentativa de controle
ensaiada na década de 1970 é o estabelecimento da liberalização dos
procedimentos financeiros na própria praça de Nova York, justificada pela
“perda de competitividade” de seus bancos frente à concorrência internacional
(comandada pelos mesmos bancos norte-americanos).
No outro lado da moeda (e aqui a alusão é quase literal), percebe-se na
concorrência dos países periféricos pela atração de investidores que estamos
diante de uma chantagem motivada pela crescente dependência destes da
moeda internacional. Esta dependência é motivada e/ou agravada pela fuga dos
capitais “nacionais” para a operação a partir dos novos paraísos fiscais. Isto se
dá em particular em países onde o sistema arrecadador apresentava deficiências
que permitem a operação de caixas paralelos pelas empresas e empresários –
456 É interessante notar que embora Nova York seja o principal centro financeiro
internacional devido à centralidade de suas bolsas de valores e mercadorias, o principal centro de negócios de câmbio ainda é Londres, o que não por acaso justifica a protelação britânica a aderir ao Euro.
366
além do próprio dinheiro de atividades ilegais que passa a ser lavado por este
sistema financeiro altamente “flexibilizado”457.
Deste modo, a utilização do dólar como moeda mundial expressa mais do
que a concentração das reservas de ouro nos EUA pós-guerra ter levado a uma
saída institucional que permitiu a conversibilidade de última instância das
moedas em ouro. Representa um ajuste institucional que reconhece a moeda
norte-americana como dinheiro mundial, andando de par com a construção da
hegemonia da política econômica daquele país sobre o conjunto das burguesias
aliadas458.
A hierarquização provocada pela construção deste arcabouço supra-
estatal permite a ação de Estados (na busca de financiamento) e empresas na
busca de apropriar-se, agora em escala global, de ganhos de produtividade e
vantagens comparativas, bem como do exercício do poder direto para o
estabelecimento de lucros extraordinários459. Já vimos como, na prática, tais
superlucros são apropriados pelos setores de capital concentrado, compondo
desta forma a massa de superlucros monopolistas, oriunda neste caso da
transferência de mais-valia entre nações, as trocas desiguais potencializadas
pelos diferenciais obtidos no mercado de câmbio, isto é, como reflexo do poder
relativo dos conjuntos nacionais de garantir o “valor” internacional de suas
moedas460.
457 Uma boa descrição deste processo é encontrada em Beinstein (2001), embora no
nosso entendimento este exagere na estimativa do volume total de “dinheiro sujo”. 458 E aqui cabe um comentário sobre uma observação do professor José Luis Fiori em
palestra recente na FFLCH/USP. O professor nos lembrou que a Guerra Fria não termina com uma conferência de Paz que dividisse o mundo em novas áreas de interesse. No nosso entendimento isto ocorre porque Bretton Woods ao sacramentar a posição do conjunto das nações capitalistas com a retirada da URSS da mesa de negociações já estabelecera a nova ordem sob a hegemonia americana e prefigurara as linhas gerais de assimilação dos novos territórios econômicos ao sistema capitalista global. A anexação do leste europeu ao sistema segue a mesma linha de distensão praticada na “independência” africana ou nas relações com a América Latina. Os novos Estados são constituídos com uma soberania formalmente aceita, desde que submetidos às estruturas e às leis internacionalmente pactuadas – ou impostas – pelas burguesias do núcleo duro capitalista, cada vez mais internacionalizadas.
459 Para Marx, a “vantagem competitiva” de um país desenvolvido no comércio mundial “é exatamente a mesma que o fabricante que utiliza um novo invento antes deste generalizar-se, vendendo mais barato que seus competidores, não obstante o que vende sua mercadoria acima de seu valor individual, ou seja, valoriza como plus-trabalho a força produtiva especificamente mais elevada do trabalho que empregou. Desta maneira, realiza um super-lucro” (Marx, 1984: III/6, 304).
460 Isto nos parece correto mesmo se descontarmos as considerações relativas às diferentes produtividades do capital como nos alerta Neto (2002).
367
Além disto, a possibilidade de exercer a política discricionária em
mercados estreitos também deve ser vista como um poder específico do sistema
bancário e das grandes corporações que, devido a seu peso relativo, podem
exercer a arbitragem sobre as taxas de câmbio em nações cuja “necessidade de
conversibilidade” empurra seus Estados às cordas do ringue financeiro. Surge
desta forma outro aspecto da política exercida pelos grandes bancos na
imposição de padrões de funcionamento dos Bancos Centrais. Sua ação
coordenada pode limitar a capacidade de política monetária mesmo de países
ricos – o ataque ao Euro em seus primeiros anos de existência, ou ao dólar entre
1962 e o abandono da conversibilidade da moeda norte-americana no início da
década de 1970, demonstram que não há “piques” neste jogo de pega. Embora a
manutenção da estabilidade das praças centrais seja uma necessidade para a
garantia da representação da riqueza, os movimentos especulativos contra os
Bancos Centrais – vistos como perdedores naturais do sistema461 – ocorrem de
tempos em tempos.
À atuação das empresas no mercado de câmbio, se junta a exploração por
parte destas grandes empresas dos diferenciais de produtividade e de custos
com mão-de-obra entre as nações, o que leva a que, como já citamos, as 500
maiores empresas do mundo dominem 2/3 do comércio mundial, sendo que 1/3
de todo o comércio mundial ocorre intra-firmas, ou seja, entre matrizes e filiais
de um mesmo grupo (cf. UNCTAD, 2002).
Portanto, as “crises de balanço de pagamentos” devem ser olhadas com
desconfiança num contexto mundial dominado de um lado por um mercado
financeiro que ganha na arbitragem dos valores, e de outro pelo papel
desempenhado por um reduzido número de empresas majoritariamente
sediadas nos países desenvolvidos. Se Marx alertava sobre o processo pelo qual
a crise monetária permitia à Inglaterra apropriar-se dos grãos necessários à
subsistência de sua população a baixos preços462, devemos nos perguntar se o
461 “É o medo de perder que faz o mercado recuperar seu senso de equilíbrio. Se o
governo estiver disposto a comprar dólares quando todos querem vende-los, agirá como um voluntário a perder.” [...] “Quando o Banco do Japão ou o Federal Reserve de Nova York intervém, tendem a criar estatisticamente mais ganhadores do que perdedores no mercado” (Ohmae, 1999: 171).
462 “Na medida em que a crise na Inglaterra é acentuada em virtude da legislação bancária, tal legislação é um meio para fraudar, em tempos de fome, às nações exportadoras de grãos, primeiramente logrando-lhes o grão e depôs o dinheiro correspondente ao mesmo” (Marx, 1984: III/7, 634).
368
mesmo raciocínio não segue pontuando a vida econômica da periferia
sistêmica463.
A verdadeira causa das crises de balanço de pagamentos é a
superprodução mundial que se manifesta como crise de sobre-comércio
internacional, e têm no desequilíbrio do fluxo de divisas seu auriga464. Assim,
“A crise da balança de pagamentos deve ser entendida num duplo
sentido. De um lado a sobre-importação, do outro, sobre-exportação e
estas se sucedem. Em tempos de crise geral, a balança de pagamentos é
desfavorável em todas as nações, pelo menos em todas as nações
comercialmente desenvolvidas, mas sempre de forma sucessiva...” (Marx,
1984: III/7, 633).
Desta forma, a socialização da crise passa a ocorrer em escala
internacional através dos mecanismos de mercado que, ao exportar a crise,
impõe o pagamento de sua quota parte aos capitalistas e povos da periferia
sistêmica. A queda das exportações provocada pela retração dos mercados
consumidores centrais leva ao estreitamento do mercado de câmbio doméstico
das economias periféricas, isto desvaloriza a moeda local ao mesmo tempo em
que permite a exportação em volume de bens a preços aviltados. Por sua vez, os
bens importados serão pagos a um valor de câmbio que levara o país periférico a
despender mais recursos por um bem cujo valor-trabalho é comparativamente
menor. Com isto, se processa a drenagem de mais-valia da periferia para o
centro do sistema capitalista465. No lugar do ouro, opera a necessidade do dólar
como equivalente geral universal. No lugar do fluxo de metais o fluxo de divisas.
A variação do equivalente geral fiduciário passa a refletir os interesses
comerciais dos grupos dominantes no comércio mundial, que na medida em que
463 Novamente Chossudovsky (1999: 77-9). Os exemplos numéricos concretos
encontrados neste nos dão conta de que apenas 4% do preço final de um quilo de café é apropriado pelos produtores diretos, sendo que apenas cerca de 10% deste preço é apropriado no país de origem. Portanto, 90% do valor do produto é computado como PIB do país importador (no caso do exemplo, os EUA). Outro exemplo é dado com base na fabricação de camisas em Bangladesh, em 1992, a partir de materiais importados: apenas 2,7% do valor do produto corresponde a rendimentos (salários e lucros) retidos pela economia local. O lucro comercial bruto, aluguéis e outros lucros dos distribuidores correspondem a 71,8% do valor final, enquanto o Estado do país desenvolvido arrecada 10,5% do preço final em impostos.
464 “A drenagem áurea é um fenômeno da crise, mas não sua causa; 2) a seqüência na qual se produz nas diversas nações só indica [...] quando lhes chegou o prazo da crise, e quando estouram nelas os elementos latentes da mesma” (Marx, 1984: III/7, 633). A substituição de ouro por “divisas” – ou seja moeda fiduciária internacionalmente aceita – atualiza perfeitamente a análise marxiana.
465 O processo é o mesmo descrito por Marx em O capital (III/7: 666-7)
369
compõe os blocos dirigentes de seus países, se confundem com o interesse das
nações dominantes.
A superabundância de capital monetário disponível nos EUA reflete
justamente este processo de espoliação global das economias periféricas. A
impossibilidade de aplicação destes recursos na economia norte-americana leva
à tendência de baixa da taxa de juros doméstica. Na prática, a economia norte-
americana vive o drama inverso ao das demais economias do mundo. Sua
posição central como única economia emissora do equivalente geral global,
permitiu ao Estado norte-americano a utilização plena das políticas monetária e
fiscal até o endividamento da década de 80. Todavia, com a constituição das
grandes reservas de eurodólares, a economia norte-americana passou a viver o
drama do risco de liquidez excessiva, na medida em que qualquer aumento da
taxa de juros básica acarreta na migração para o seu mercado de um volume de
recursos mais do que suficiente para justificar uma nova baixa dos juros.
Esta contradição entre a função dos espaços nacionais como unidade de
conta e espaço de reprodução do capital e a crescente internacionalização da
propriedade do capital monetário concentrado levaram à elaboração por parte
da fração financeira internacionalizada da retórica do borderless, ou da
desnecessidade do Estado-nação frente ao processo de globalização econômica.
3. O fim do Estado-nação?
Uma das argumentações mais representativas do “globalismo” é a de
Kenich Ohmae (1999), ex-executivo da McKinsey Co. que se transformou em
autêntico ideólogo do capital transnacionalizado. Segundo este senhor, as
inovações da tecnologia da informação levaram a um novo paradigma
concorrencial devido às empresas poderem tornar mais enxutas suas estruturas
administrativas. A percepção de Ohmae é a de que os dirigentes das empresas
percebem tais alterações com mais nitidez que os dirigentes do Estado-nação e
das estruturas internacionais (ONU, UE, Nafta, etc.), e que os governos
acreditavam que o Estado-nação não seria questionado pela nova economia
“sem fronteiras”, mas estavam errados.
A pretensão de Ohmae é a de apresentar um novo conjunto de princípios
que dê conta da administração dos Estados tendo em vista as novas “realidades
370
transnacionais”, segundo ele mesmo, resultantes dos últimos vinte anos de
trabalho de empresas de consultoria que buscaram a criação de empresas
“genuinamente globais”.
Segundo o autor,
“muitos dos valores básicos que sustentam uma ordem mundial baseada
em Estados-nações delimitados, independentes – a democracia liberal
conforme praticada no Ocidente, por exemplo, ou a própria noção de
soberania política – têm se mostrado seriamente carentes de redefinição
ou, talvez, de substituição. De fato, à medida que se aproxima o século
XXI e que aquilo que denomino os quatro “Is”, a indústria, o
investimento, os indivíduos e a informação – fluem relativamente sem
impedimento através das fronteiras nacionais, os conceitos básicos
adequados a um modelo do mundo de países fechados do século XIX não
mais se sustentam” (Ohmae, 1999: xiv).
O argumento é falacioso em diversos aspectos: 1) a indústria flui em
busca de baixos salários e/ou de posicionamento estratégico para distribuição
de seus produtos, e/ou de Estados que disponibilizem parcelas do fundo
público, na forma de incentivos ou renúncia fiscal de forma a aumentar sua
lucratividade; 2) Os fluxos de investimentos são grandemente especulativos,
não se ligando a qualquer tipo de projeto nacional de desenvolvimento, sendo
em muitos casos fortemente especulativos, o que levou os Estados dirigidos por
elites sensatas a limitá-los; 3) Os fluxos anteriores já existiam – e na mesma
proporção – no século XIX, não se constituindo em novidade; 4) Os ‘indivíduos’
que fluem através das fronteiras de forma legal são uma minoria de gestores do
capital e trabalhadores científicos. A mão-de-obra desqualificada continua
relegada a “atravessar a cerca” para, caso escapem da prática de tiro ao alvo,
engrossar o exército industrial de reserva, ou funcionar como fronteira
‘flexibilizada’ da economia, leia-se o trabalho ‘informal’ que, na verdade,
denomina o trabalho fora da legalidade e proteção institucional do Estado; e, 5)
Qual informação para quem? Muita informação não implica em informação de
qualidade e muito menos que os indivíduos tenham a capacidade de processá-la.
Voltemos ao argumento de Ohmae. Este, questiona se os Estados-nação
são realmente os principais protagonistas da atual economia mundial,
baseando-se no crescente endividamento destes atores, sem entretanto analisar
371
o processo que levou ao dito endividamento. Desta forma, o autor argumenta
que o investimento, não está restrito, como demonstra o volume de capital
interpenetrado nas principais economias. Segundo Ohmae, até 1990, os fluxos
de capital estavam ligados aos governos, tendo sido, a partir daí, crescentemente
privatizados (o que na verdade é reflexo do processo de desregulamentação). O
segundo I, a deslocalização industrial, segundo Ohmae, deixa de ser orientada
para a busca de subsídios (o que contraria os dados de Chandler & Hikino,
1997), transfere tecnologia e know-how (que como vimos se dá de forma a
reforçar a dependência do receptor) e cria condições para os novos mercados
serem corretamente analisados, devido ao estabelecimento de padrões de
funcionamento das empresas transnacionais na economia receptora. O
movimento dos dois primeiros Is é facilitado pelo terceiro, a informação, (ou
seja, o argumento está restrito ao controle propiciado pelos desenvolvimentos
da telemática), que possibilita o controle de linhas de produção à distância. O
quarto I, os consumidores individuais, passam a exigir produtos bons e baratos,
independentemente da nacionalidade. E então Ohmae se revela um pálido eco
de Adam Smith: o Estado só atrapalha!
Ohmae propõe que no lugar dos Estados-nação se considere os Estados-
região, que na verdade correspondem na sua visão ao locus de acumulação
capitalista, como Hong-Kong e a faixa sul da China que lhe rodeia, a Catalunha
ou São Paulo, como regiões geográficas onde ocorre a acumulação de renda que
permite a formação de mercados concentrados e diferenciados das regiões
circundantes e de Estados-nação maiores que os contém.
Ao mesmo tempo em que faz o discurso mistificador do neoliberalismo
afirmando que as unidades políticas nacionais466 tem muito menos a contribuir
(segundo Ohmae devido aos gastos excessivos com bem-estar social e também
devido a perderem467 a capacidade de determinar a taxa de juros e de câmbio),
acaba por revelar suas reais intenções ao afirmar que “Os Estados-nações têm se
tornado inevitavelmente vulneráveis à disciplina imposta por opções
econômicas feitas em outros lugares por pessoas e instituições sobre as quais
466 É interessante notar que para Ohmae isto é válido para os EUA no mesmo pé de
igualdade que para Vanuatu. 467 Strange (1998) na verdade constata que os governos devem escolher duas variáveis -
entre taxa de juros, câmbio e crescimento econômico - sobre as quais exercer controle, deixando a restante ao sabor do mercado.
372
não têm nenhum controle possível” (Ohmae, 1999: 6). Desta forma, “o Estado-
nação é cada vez mais uma ficção nostálgica” (Ohmae, 1999: 7), já que as médias
gerais não correspondem às regionais; as grandes empresas perderam seu
caráter nacional e a propaganda ‘nacional’ se tornou apenas um elemento de
marketing. Desta forma, a vitória de uma dada concepção de mundo pela qual o
mercado financeiro tenta impor suas regras aos Estados é apresentada como o
resultado natural de uma disputa, onde a supressão do Estado como espaço de
luta é apresentada como incapacidade deste mesmo Estado de fazer frente ao
“desafio” das novas realidades, da mesma forma como o trabalhador é “culpado”
por seu desemprego. Estamos assim, diante de mais um caso de culpabilização
da vítima.
Além disto, Ohmae ataca diretamente a idéia de “interesse nacional”
como algo ultrapassado, ficando claro que o interesse neoliberal é menos o fim
do Estado do que a imolação dos compromissos nacionais assumidos pela
burguesia num tempo pretérito. O Estado deve existir, mas não deve sustentar a
idéia de nação. Sua única funcionalidade é a de garantir a rentabilidade do
capital. Desta forma, Ohmae critica a tese de Michael Porter (1993) em A
vantagem competitiva das nações: “No mínimo, o sucesso de um setor da
economia ou de uma região não é função de uma nação per se, mas da
combinação específica de indivíduos, de instituições e da cultura nesse setor ou
nessa região [que pode estar contida num país ou em vários]” e desta forma,
“não foi o Japão que foi surpreendentemente competitivo, mas apenas um
pequeno número de indústrias dentro do Japão e, para ser mais preciso, apenas
um pequeno número de empresas lideradas por indivíduos fortes dentro dessas
indústrias” (Ohmae, 1999: 59). O acento de Ohmae está assim na idéia de que os
setores competitivos variam de país para país e dentro destes ao longo do
tempo.
A deslocalização industrial dos pólos dinâmicos da indústria japonesa
(automóveis para os EUA e eletro-eletrônicos para o sudeste asiático) leva à
paralisação da indústria interna japonesa, segundo Ohmae “viciada em
subsídios e proteção”. Desta forma, conclui, “a competitividade não é – e
simplesmente não pode ser - a propriedade de um Estado-nação. No mundo
sem fronteiras, os fatores chave do sucesso dependem, cada vez mais, de
condições universais, e não locais” (Ohmae, 1999: 62).
373
Ora, todo este discurso só faz sentido quando as empresas que
representam o capital investido no pólo dinâmico altamente concentrado
abandonam seu compromisso com seus parceiros nacionais (que lhe foram úteis
no período do imperialismo clássico). A “globalização” ou a “mundialização do
capital” se constrói com base na ação das transnacionais na conformação de um
mercado mundial do capital-dinheiro. Mas não só a periferia paga a conta desta
acumulação de capital, também o trabalhador do centro, cuja cumplicidade com
o sistema é construída ao longo dos anos dourados do keynesianismo, é imolado
em honra ao capital468. E o que permite a dissolução dos laços de
responsabilidade e solidariedade mútuas entre empresas originárias de um
mesmo país é a própria forma do capital anônimo, cujo princípio impessoal de
lucratividade dissolve as relações de compadrio, na medida em que a
propriedade do capital fictício se internacionaliza e se torna indireta na figura
dos fundos mútuos e de pensão. Afinal, alianças são “estratégicas” e visam a
acumulação de capital, e este não carrega peso morto.
Desta forma, o discurso de Ohmae sobre o Estado-região na verdade é
um aríete direcionado à soberania e à autonomia469 dos entes estatais e busca,
de forma explícita, a negação da possibilidade de qualquer política que não vise
a “atração” de capitais (inclusive com o uso dos tão criticados subsídios). Ao
final tal discurso é apenas mais uma tentativa de esgarçar a autonomia de gestão
do Estado, de constituição do mínimo público e a possibilidade de construção
do espaço da política calcados no conceito de nação, que é o que realmente
representa a noção de soberania470. Em consequência, no debate sobre o fim do
Estado-nação, enquanto todos correm a defender o Estado do ataque, a nação é
destruída e, com ela, o espaço da política.
468 O documentário Roger & Eu de Michael Moore dá a nota nostálgica ao processo da
Ford retirando-se de Flint (Michigan, EUA). 469 “Os Estados-regiões são diferentes pelo fato de evitarem de bom grado a pompa e a
circunstância da soberania em troca da capacidade de atrelar os ‘Is’ globais às suas necessidades” (Ohmae, 1999: 75).
470 “Para os Estados-nação modernos será difícil escapar por muito tempo da pressão retrógrada do interesse nacional e do mínimo público ou da fragmentação do interesse comunal representados pelo colapso do liberalismo tradicional” (Ohmae, 1999: 72).
374
4. Governança global e “democracia de mercado”: os novos caminhos do totalitarismo.
Embora o processo de difusão da democracia em nível global nas últimas
décadas garanta a forma democrática dos governos, não se garantiu uma
democratização da sociabilidade nos diferentes países, esta ao contrário foi
crescentemente privatizada. Na verdade, ocorre um esvaziamento da discussão
política, na medida em que o que é colocado em disputa é a “gestão” do Estado e
não sua forma de organização ou seus objetivos. “A competição pública não se
faz ente partidos, ideologias ou candidatos, mas entre imagens que disputam
valores como ‘credibilidade’, ‘confiabilidade’, ‘respeitabilidade’, ‘inovação’,
‘prestígio’” (Chauí, 1992: 386). A própria política é transformada assim em
mercadoria, negada como política, privatizada. Como continua Chauí “havíamos
visto que a marca do despotismo é a moralização do poder (as virtudes da
corporificação e personalização do poder identificando-o com a figura do
governante). É exatamente isso que procura o neoliberalismo no pós-moderno”
(Chauí, idem).
Os desafios colocados pela ideologia do capital-dinheiro globalizado,
identificadas com o primado do mercado, dificilmente podem ser respondidos
pelos Estados-nação, que, ao abandonar o lastro da moeda e aderir aos acordos
internacionais, tornam-se reféns do “referendum” do mercado global. A
integração das diferentes legislações nacionais às leis de mercado ditadas por
“instâncias superiores” (leiam-se organismos supra-estatais cujo caráter
multinacional exprime uma renúncia de parcelas das soberanias nacionais para
sua constituição) acaba implicando na perda de mais do que a soberania
formalmente cedida pelo Estado. Este não apenas deixa de deter o poder de
controle sobre o fluxo de capitais e fatores de produção, como
democraticamente (através de leis votadas nos parlamentos) transfere para
organismos multilaterais não democráticos a capacidade de decisão sobre a
gestão da política. A opacidade de tais organismos é ainda maior do que a
opacidade das instâncias do Estado-nação471, na medida em que, embora
471 “Dada a mecânica detalhada de como as decisões são realmente tomadas, as
informações tornam-se opacas, em vez de transparentes. Na grande maioria dos assuntos, um triângulo de ferro de legisladores, burocratas e interesses de grupos especiais dominam o processo” (Ohmae, 1999: 70).
375
formalmente públicos, sua distância com relação às populações e o caráter
técnico de muitas das discussões inviabiliza o entendimento de qualquer debate
que se torne público. A isto se deve juntar a possibilidade de lobby restrita aos
grandes interesses monopolistas que acaba por constituí-los num Estado acima
dos Estados. Não estamos aqui falando da ONU, mas mais especificamente de
organismos como o FMI e a OMC que, de fato, dirigem as políticas nacionais
com relação a uma série de aspectos de seus membros.
A globalização coloca em conflito, desta forma, os setores capitalistas
interessados nesta internacionalização e os setores menos dinâmicos, para os
quais a abertura de mercado significa a morte. Da mesma forma, os
trabalhadores dos países do núcleo orgânico passam a perceber nos
trabalhadores de outros países concorrentes por seus empregos, sem ver que
ambos são igualmente explorados, que o desemprego de um é a sobre-
exploração do outro. Torna-se assim irônico depararmo-nos com a
argumentação defendida por Ohmae:
“Que haverá pressões para manter tudo isso [a globalização e as políticas
de desregulamentação] à distância é previsível. Sempre haverá grupos
politicamente influentes que favorecerão o mínimo público e a proteção
em nome do interesse nacional” (Ohmae, 1999: 69).
O argumento de Ohmae se baseia na idéia de que a busca do lucro através
da exploração dos trabalhadores de outro país é do interesse dos trabalhadores
da nação central que está perdendo os empregos, na medida em que poderiam
vir a comprar mercadorias mais baratas – o que é um argumento duplamente
falso: comprar com que renda se o emprego não mais existe? E, o que garante a
redução dos preços?
Esta pretendida homogeneização do espaço econômico mundial,
entretanto, não se dá de forma linear nem tende à construção de uma cidadania
global. Antes, as necessidades criadas pela retirada do capital de um dado
território são utilizadas para convencer a população daquela nação das
necessidades de se abrir mão de direitos adrede constituídos para tentar
reconquistar os empregos perdidos. Não precisamos ir longe para encontrarmos
um exemplo embaraçoso ao próprio argumento de Ohmae: “cada emprego salvo
através da ação governamental na indústria automobilística norte-americana
tem custado aos contribuintes cerca de U$ 80.000,00” (Ohmae, 1999: 133) – ou
376
seja, não é apenas do governo do Estado da Bahia que a Ford andou arrancando
subsídios milionários.
Se em Marx, o comércio exterior funciona como uma válvula de escape
para a manutenção do equilíbrio intra-setorial, as alterações ocorridas no
sistema global introduzem novas situações nas quais não só é possível, como se
torna necessária a propagação da crise para a periferia sistêmica como
demonstraram os Cepalinos. Não apenas isto, as tendências recentes de
evolução do sistema, têm demonstrado como particularmente acertado o
argumento de Sunkel (1971) segundo o qual a dinâmica centro-periferia não
estaria mais restrita à descrição do processo entre Estados-nação, mas também
passaria a ser algo próprio do funcionamento interno às diversas economias,
dotadas de um pólo dinâmico (central) e outro pólo subordinado (periférico),
sejam elas centrais ou periféricas. Desta forma, a analise de Oliveira (2003)
sobre o processo brasileiro em seu clássico Crítica à Razão Dualista, deve
apontar-nos as pistas para o entendimento de como se desenvolve o processo de
criação das condições de reprodução do atraso como precondição da
acumulação do pólo dinâmico também nas economias centrais, tornando desta
forma as elites responsáveis pela “vanguarda do atraso” em liderança global do
modo de espoliação liderado pelas classes proprietárias.
Na primeira parte de nossa análise (em especial no capítulo 5), vimos
como o próprio processo de concentração capitalista vem gerando, a partir da
terceirização de atividades, os novos pólos subordinados – tanto no centro
quanto na periferia sistêmica -, através da criação de empresas, que em seu
próprio ato de criação já se encontram subordinadas ao processo de acumulação
dos grupos do capital concentrado. Ao mesmo tempo, ocorre um processo de
convergência dos indicadores econômicos entre os países do núcleo orgânico do
sistema, que refletem uma ação coordenada por parte dos principais bancos
centrais, tanto no que tange aos juros (tendendo a situar-se abaixo de 2% a.a.
para os países da tríade), quanto pelo tipo de políticas seguidas com relação às
bolsas de valores e seguros em reação aos escândalos da WorldCom e Enron. A
única nota destoante, como dificilmente deixaria de ocorrer, era a maior
fragilidade das empresas norte-americanas percebida pelas maiores taxas de
juros pagas por estas ao mercado de capital-dinheiro.
377
Se há uma convergência dos indicadores econômicos no núcleo orgânico,
o mesmo nunca foi verdade para o restante das nações do globo. Deste modo, o
fluxo de capitais, que exceto na forma de alguns tipos de Investimento Externo
Direto (IED) não gera nenhum tipo de dinamismo nas economias para onde se
dirige, é apresentado quase como uma entidade divina (e de fato é diáfana –
ninguém nunca o viu pessoalmente); cobrando juros como se fossem
“oferendas” a sua beatitude. E mesmo quando se dão novos investimentos
produtivos, o capital internacional busca cobrar uma participação no fundo
público dos países periféricos ou regiões menos desenvolvidas dos países
centrais para os quais se dirige da mesma forma como se comporta com relação
aos países centrais. A política econômica do capital concentrado tende,
portanto, também a uma homogeneização da regra. Homogeneização na qual
seus lucros são máximos e os compromissos sociais, sempre que possível, nulos.
Desta forma, embora os Estados nacionais venham sofrendo pressões para
redefinir seu escopo de atuação este desenho não é plenamente aplicável em
nenhum dos extremos. Nem os Estados tornaram-se mínimos, nem a
diplomacia e a pressão militar deixaram de ser exercidas por estes espaços de
negociação coletiva, como podemos ver empiricamente.
O capital, ao arrastar o conjunto da humanidade sob seu jugo, constrói
deste modo a forma na qual a política é submetida ao modo de produção,
tornando-se não apenas garantidora da propriedade privada, mas sendo, ela
mesma, reduzida a uma relação privada. Se como afirma Paoli (1998) o projeto
de governabilidade ou governança é feito para produzir um governo que possa
controlar e administrar as divergências e tensões sociais, eliminando assim o
campo da política, esta interpretação do mundo só pode vingar e tornar-se
plausível na medida em que os indivíduos são levados a verem-se como
consumidores dos bens públicos e não mais como cidadãos. Os indivíduos
isolados perdem a capacidade de representar-se como coletivo na medida em
que são igualados pelo mercado sem perceber os mecanismos de construção da
diferença, velados estes pelo processo de naturalização. Assim, a instituição de
cada indivíduo como portador privado do capital, mesmo quando se vê apenas
como proprietário de sua força de trabalho, leva a uma peripécia pela qual o
indivíduo despossuído e explorado indiretamente pelo grande capital na forma
do trabalho informal, como discutimos na primeira parte deste trabalho,
378
identifica-se a si mesmo como “empreendedor”, o “biscate” transformado em
pequeno negócio.
A ideologia liberal trata agora não de convencer o trabalhador da
necessária aliança com o capital, mas de demonstrar-lhe que ele mesmo é parte
do capital e beneficiário do movimento deste (na forma da participação dos
lucros e na constituição dos fundos de pensão). Como tal, o indivíduo é
chamado a participar da subjetividade privada, identificar-se com as cores não
da nação ou da religião, mas as da empresa. A solidariedade necessária não é
com o próximo ou com outro trabalhador, mas com o capital que lhe assegura a
reprodução da vida. Em termos sociais, o processo é o de dessolidarização da
classe trabalhadora, posta como concorrente frente à massa dos inempregáveis
do ex-presidente Cardoso. A lógica implícita é a do cada um por si (e todos pelo
capital). A expansão da ação do capital e de sua lógica coloniza tanto o espaço
estatal quanto as subjetividades dos indivíduos.
Desta forma, o espaço público que surge com o liberalismo do século XIX
como forma estatal de administração de conflitos é substituído no final do
século XX por um espaço público amenizado, privatizado, dando origem com
base na técnica, a um novo “totalitarismo”472, calcado na hegemonia não da
visão de mundo do citoyen, mas na do burguês, travestido em consumidor. Cada
vez mais, o mercado é transformado na baliza pela qual se move o espaço
público e na medida pela qual os indivíduos se reconhecem e, desta forma, a
hegemonia política é substituída pela hegemonia econômica, confunde-se com
esta.
A negação da democracia se dá de forma natural, na medida em que a
gestão do Estado torna-se não objeto da vontade, mas a “arte do possível” (como
a da sobrevivência diária da população), a realização das aspirações
crescentemente atomizadas são parametrizadas pelo “sucesso” individual na
carreira. Na medida em que a capacidade do Estado de realizar transformações
é limitada, a participação democrática perde o sentido para o indivíduo. Não há
porque falar se ninguém está ouvindo, ou se quem ouve apenas cumpre o rito de
472 Novamente seguimos o caminho apontado por Oliveira, para quem “essa
desuniversalização da dominação, que portanto redefine-se como apenas dominação, des-democratiza e transmuta-se em totalitarismo. O conceito, mesmo que imperfeito, parece-nos teoricamente mais produtivo, no tratamento do neoliberalismo que o de hegemonia” (Oliveira, 1998: 220).
379
ouvir e responder que a solução está além do poder coletivo, agora
parametrizado pelas “forças do mercado”, que pretensamente deveria regular. A
“democracia de mercado” corresponde desta forma à criação de um espaço onde
se realiza um simulacro de debate público. Simulacro por que aparentemente
tudo pode ser debatido, desde que nada mude. Dificilmente se poderia
descrever melhor as situações de governos como o de Lula.
Ao extinguir-se a idéia de conversibilidade do equivalente geral em
mercadoria o fundo público, como garantidor da moeda fiduciária, é lançado em
definitivo às feras do mercado. A forma de sua apropriação refletindo o
conteúdo da apropriação social da riqueza produzida nos territórios e no mundo
através do equivalente geral internacional que passa a ser necessário para tais
trocas. Assim, a hegemonia dos setores capitalistas na direção do Estado atua,
no longo prazo, como um processo de naturalização da coerção social.
Ao decretar-se a obsolescência dos Estados nacionais, mais do que a
privatização do público, decreta-se a supremacia final do capital como relação
total, pretende-se que tudo esteja submetido a sua dinâmica acumulativa. O
capital como hegemon constrói o caminho pelo qual a hegemonia política se
torna desnecessária, a supera, mantendo a forma da democracia, mas substitui a
medida comum pela medida do privado. Naturalizado o caráter sagrado da
propriedade privada e não estando mais esta em pauta, as relações políticas são
elas mesmas reduzidas não ao publicizar diferenças, mas ao obter vantagem
sobre o fundo público. O objetivo da política privatizada, em particular com
relação à gestão do fundo público, não é afirmar o mínimo público, mas garantir
que este funcione como pressuposto da reprodução capitalista473. A experiência
política burguesa contemporânea, fundamentalmente é antipública porque o
espaço público foi privatizado e as classes sociais pulverizadas (com a exceção
da própria burguesia, que age de forma pulverizada sempre que não seja
necessário contrapor-se ao restante da sociedade), e a hegemonia reduzida a seu
conteúdo econômico. A concentração e a cooperação de capitais escapam ao
473 Foi possível construir-se um círculo perfeito para o Estado-previdência enquanto as
forças produtivas que este articulava circunscreviam-se ao Estado-nação. “A crescente internacionalização retirou parte dos ganhos fiscais, mas deixou aos fundos públicos nacionais a tarefa de continuar articulando e financiando a reprodução do capital e da força de trabalho” (Oliveira, 1998: 23) e acrescente-se aqui a conversibilidade e o reconhecimento social do equivalente geral.
380
poder do Estado ao qual resta a árdua tarefa de garantir o equivalente geral e a
paz social frente a seus mestres.
Assim, se “a primeira tarefa intelectual e prática do campo democrático é
problematizar o conceito e a prática dessa democracia ‘consensual e
hegemônica’” (Oliveira, 1998: 211), cabe-nos na verdade apontar para a
destruição hoje de reais espaços democráticos públicos e estatais, reduzidos que
foram a instâncias de confirmação da vontade dos mercados “que votam todos
os dias” como não cansa de repetir George Soros.
A tarefa posta torna-se mais ambiciosa, trata-se mesmo de encontrar o
caminho através do qual se possa devolver o kratos ao demos, em outras
palavras, refundar a democracia.
381
Epílogo – Os filhos de Ugolino. ________________________________________________________________________________
Capítulo 12 – Os filhos de Ugolino: transmutações das classes sociais no
capitalismo contemporâneo.
1. A concentração de renda.
2. A(s) classe(s) dominante(s) no centro: “Bobos no paraíso”, jecas na
presidência e a nova elite transnacional.
3. As classes dominantes na periferia sistêmica: elites mamelucas e
comensalismo.
4. O papel dos fundos de pensão ou “o paradoxo da velhinha inglesa” e a
alienação do social.
5. Os despossuídos: o novo demos.
382
Capítulo 12 – Os filhos de Ugolino: transmutações das classes sociais no capitalismo
contemporâneo.
“Come um poco di raggio si fu messo nel doloroso carcere, e io scorsi
per qautto visi il mio aspetto stesso, ambo le man per lo dolor mi morsi; ed ei, pensando ch’i’ fessi per voglia
di manicar, di subito levorsi e disser: ‘Padre, assai ci fia men doglia
se tu mangi di noi: tu ne vestitsti queste misere carni, e tu le spoglia’.”
(Alighieri, 1967:472)474.
A imagem de Ugolino mastigando e engolindo seus filhos é uma das mais
fortes das muitas encontradas no inferno dantesco. Os estudos de Auguste
Rodin sobre o tema e sua imortalização na Porta do Inferno transmitem uma
imagem de horror incomparável: os filhos oferecem ao pai a própria carne para
mantê-lo vivo em sua prisão, na qual é encontrado à beira da loucura
mastigando os cotos das mãos. A imagem ilustra de forma crua o
comportamento das classes sociais diante do capital hegemon. Capitalistas e
trabalhadores correm ao cadafalso no qual destroem a si mesmos e ao planeta
que lhes serve de base material de reprodução da vida.
A relação alienada de seus suportes e que lhes serve como modo de
produção da vida põem-se assim, acima dos homens, cobrando a destruição do
474 “Quando a luz ainda escassa se apresenta / no doloroso cárcer, meu semblante / nos
quatro rostos seus se representa. / Mordi-me as mãos de angústia delirante. / Eles, cuidando ser a fome o efeito. / Dê súbito, e com gesto suplicante. / Disseram: ‘Menos mal nos será feito / nutrindo-te de nós, pai; nos vestiste / desta carne: ora sirva em teu proveito” (Alighieri, 1967:473).
383
globo e da humanidade em sua honra. A fúria acumulativa ensandecida, desfaz-
se de seus suportes restringindo tanto o número de eleitos, quanto o de
indivíduos diretamente explorados, e lança à vala comum da inutilidade todos
os indivíduos que não façam parte de seu ser. Desta forma, o capital parece
bastar-se a si mesmo, seu corpo vira seu alimento. E os seres humanos,
tornados desnecessários por seu próprio processo de reprodução ampliada, são
deixados à morte, na África, sudeste asiático, América Latina.
A substituição da inclusão através da cidadania pela inclusão através do
consumo, do direito universal pelo direito particular (na forma do contrato
entre as partes), do público pelo privado como espaço de medida, torna o centro
dos processos de produção da hegemonia não o Estado, mas o mercado,
idealizado como o lugar onde os indivíduos se afirmam eles mesmos como
mercadorias através do consumo de outras mercadorias. Esta é a reificação final
do fetiche, o homem tornado fetiche do homem475. O Estado, emasculado de sua
virtualidade pública, torna-se apenas meio de garantir a propriedade privada e,
se possível, a segurança. Os interesses dos setores sociais subordinados ou
subalternos são relegados ao pão mínimo de cada dia numa sociedade não de
abundância, mas de abundante estímulo ao consumo, este restrito a uma parte
da humanidade, ou ao consumo do fetiche da mercadoria falsificada, como o é a
própria existência natural476. A reprodução da cultura produz, desta forma,
massas de desesperados, em sua figuração dantesca de um Big Brother, por um
fugidio lugar ao Sol. A exposição pública dos indivíduos tornada mero
voyerismo, mais uma degradação moral, mais uma animalização do ser
pretensamente humano.
O abismo entre ricos e pobres, e a posição da busca da riqueza a qualquer
custo continuam a servir de leitmotif para os indivíduos que se empurram como
cegos sem perceber que este movimento só interessa aos que já chegaram ao
alto da pirâmide.
475 “A propriedade privada nos tornou tão estúpidos e unilaterais que um objeto só é
nosso quando o temos, quando existe para nós como capital, ou quando é imediatamente possuído, comido, bebido, vestido, habitado, em resumo utilizado por nós” (Marx, 1985: 148).
476 E, portanto, “se consuma assim o fetichismo peculiar da economia burguesa, que transforma o caráter econômico, social, que se imprime às coisas no processo social de produção, num caráter natural, que surge da natureza material dessas coisas” (Marx, 1984: II/4:274).
384
Ao mesmo tempo, o processo borra as diferenças entre trabalhadores e
capitalistas, na medida em que parte dos trabalhadores passa a ter parcelas de
suas rendas futuras sustentadas por rendas auferidas pela poupança dos fundos
de pensão e ao menos uma parte dos capitalistas parece trabalhar nas atividades
de coordenação da produção para obter o seu sustento. Desta forma, ao mesmo
tempo em que naturaliza o processo de produção de mercadorias como a única
forma de mediação dos seres humanos, o que implica, como vimos, na
submissão da vida humana em extensão e profundidade a seus ditames, o
capital torna-se relação que aspira a mediar todas as relações sociais que se
tornam crescentemente monetizadas ou, de outras formas, submetidas à
mensuração pelos mecanismos de mercado (ainda que imperfeito). Deste modo,
“... a tendência do modo capitalista de produção é transformar, no
possível, toda produção em produção de mercadorias; o meio principal
de que se serve para isto é precisamente arrastar assim toda produção ao
processo capitalista de circulação e a própria produção de mercadorias
desenvolvida é produção capitalista de mercadorias. A ingerência do
capital industrial promove em todas as partes esta transformação dos
produtores diretos em assalariados” (Marx, 1984:II/4, 130).
Como decorrência, tanto os lucros pagos ao gestor serão vistos como
salários ou outros proventos de seu “trabalho”, quanto uma parcela dos salários
pagos aos trabalhadores diretos será apresentada na forma de “participação nos
lucros”, o que termina de velar as fontes de renda como forma de identificação
da posição social do ponto de vista dos atores envolvidos. Como vimos, devemos
juntar a isto o processo de exploração indireta da grande massa de pequenos
capitais e trabalhadores isolados realizada através de trocas desiguais no
mercado para, com isto, entendermos o processo aparente de nivelação dos
indivíduos numa única massa orgânica de explorados e exploradores, sem que
se torne claro o ponto de clivagem entre uns e outros.
Vimos algumas formas de “por o guizo no gato”, mas o fizemos ainda
tendo em vista as relações estabelecidas entre as classes no processo de
reprodução de vida social. A observação da distribuição de renda nas diferentes
sociedades e no conjunto do globo nos dará uma idéia mais clara do resultado
produzido pelas relações descritas até aqui, e nos possibilitará tecer alguns
comentários, por ora finais, ainda que não pretendamos com isto esgotar o
385
debate em definitivo, mas tão somente apontar para algumas pistas para
discussões futuras que consideramos abertas neste trabalho.
1. Concentração de renda em nível global: índice de Gini.
O indicador usado para medir a distribuição de renda nos diferentes
países do mundo é o índice de Gini da renda. O número é calculado como a
diferença entre a área de um triângulo onde a distribuição seria ideal (cada um
recebe exatamente o mesmo que os demais), a chamada curva de Lorenz, e a
curva formada pela distribuição encontrada através de uma pesquisa de renda,
onde se estabelecem as médias para cada quintíl da distribuição. Com isto,
chega-se a um número entre zero e um. Quanto mais próximo de zero mais
equânime é a distribuição de renda, quanto mais próximo de um, mais desigual
será esta distribuição (uma distribuição igual a um significaria que um único
indivíduo detém a renda total de uma sociedade, enquanto os demais não
teriam nada)477.
A comparação entre rendas de diferentes sociedades encontra barreiras
dificilmente contornáveis, na medida em que o preço do equivalente geral é
variável entre pontos no tempo e no espaço. Os índices de Gini para a renda têm
piorado de uma forma geral refletindo o aumento da concentração de renda da
classe proprietária tanto nos países do núcleo orgânico quanto na periferia do
sistema capitalista. O desenvolvimento econômico, entretanto, não tem trazido
melhoras na situação dos diferentes países do mundo frente aos países mais
desenvolvidos. Grosso modo, a participação do G7 na riqueza mundial equivale
a 2/3 do total das rendas ou do produto mundial bruto segundo dados do Banco
Mundial.
Se aceitarmos que a distribuição amostral a partir da conversão dos
dólares a poder de paridade de compra, o chamado dólar PPP, entre os
diferentes países é factível, podemos traçar uma curva com os dados globais
disponíveis no banco de dados do Banco Mundial (2001) com base nas
informações de países que somados representam 99,99% da renda e 97,3% da
população mundial no ano de 1999 (o último disponível nesta base de dados).
477 Para detalhes sobre a fórmula de cálculo ver o apêndice 1 de Paulani & Braga (2000).
386
Isto permite, em nosso entendimento, uma boa aproximação da
distribuição da renda global, em que pese, por exemplo, alguns países estarem
com suas moedas sub ou sobre-avaliadas mesmo em termos do dólar PPP (como
no caso brasileiro ao longo da década de 1990). O índice de Gini encontrado
para o conjunto dos países que compõe esta amostra no ano de 1999, talvez para
a surpresa de alguns, está acima dos piores índices nacionais (Brasil, Paraguai e
Serra Leoa, historicamente disputam o título de país com pior distribuição de
renda, oscilando em torno de 0,6) e atinge a marca de 0,81 (0,88 considerando
o dólar a preços de mercado).
Se a concentração de renda brasileira causa choque com os 20% mais
ricos detendo 63% (e os 10% mais ricos 47%) da renda no ano de 1999, a
distribuição para o conjunto dos países do mundo aponta para uma situação
mundial na qual os 20% mais ricos detém 69,9% da renda (e os 10% mais ricos
50%) sempre em dólares PPP478.
Este é o efeito concreto final de toda a discussão sobre a transferência de
rendas realizada ao longo desta tese. Não podemos comparar o grau de
exploração ou a produtividades de trabalhos em diferentes países de forma
linear, o que impossibilita o uso da média mundial de renda como aproximação
do trabalho adicionado esperado por um trabalhador médio no mercado
mundial (algo em torno de U$ 7.000,00 PPP a.a. – ou U$ 2.260,00 correntes na
Federação Russa)479, mas a diferença entre esta média e os números reais
(pouco mais que 25% da população mundial tem uma renda média superior a
este valor) parece indicar que há mais do que tecnologia por trás desta relação,
em especial quando metade da população mundial vive com uma renda média
inferior aos U$ 2.600,00 PPP (que equivalem na China a U$ 590,00 correntes,
ou a U$ 1.300,00 na Polônia) ao ano.
Desta forma, antes de considerarmos as aparências de como os
indivíduos se inserem na produção como definidoras de sua posição social na
sociedade contemporânea, o critério para a separação destes deve ser
encontrada não na propriedade em si, mas na posição exercida dentro do
sistema e no volume de renda auferida pelos indivíduos. Assim, embora uma
478 A dólares correntes os números pioram. Os 20% mais ricos detém 98,12% da renda
total e os 10% mais ricos ficam sozinhos com 68,49% desta renda. 479 Em 1999 a conversão no Brasil se dava de dois dólares correntes para três em PPP.
387
parcela dos trabalhadores seja proprietário de frações do capital, não se
constituem por isso em capitalistas, na medida em que tais frações são
insuficientes para transformá-los em rentistas, ou mesmo de permitir-lhes
compensar a perda de renda gerada pelo processo de expropriação, realizado na
produção direta. Por outro lado, também os pequenos burgueses, como vimos,
estão submetidos a relações através das quais são submetidos à sua própria
espoliação na forma do pagamento de rendas monopolistas a outros capitais,
não constituindo-se em capitalistas tout court, na medida em que não podem
realizar de fato um processo de acumulação.
2. As classe(s) dominante(s) no centro: “Bobos no paraíso”, jecas na presidência e a nova elite transnacional.
“Alguns os chamam de elite, outros de ‘os muito ricos’; eu os chamo de minha base” George W. Bush.
Segue do acima exposto que a real caracterização da classe proprietária
deve ser feita a partir de uma medida social mais ampla, mas não menos
concreta: o burguês é aquele indivíduo que retira mais do que põe no sistema
com base no monopólio da riqueza pretérita, ou seja da propriedade. Há aqui,
entretanto, uma divisão da posição social burguesa480 que permite caracterizá-la
como elite, na acepção de Mills (1956), na medida em que esta não forma um
todo homogêneo, ou antes, que só se homogeneíza na medida em que se
reconhecem como os indivíduos que desfrutam da riqueza social.
Assim, nesta elite encontraremos tanto a figura do burguês que
“trabalha” como coordenador do processo produtivo (e remunera-se acima do
real valor de seu trabalho), como também os indivíduos que vivem
exclusivamente de rendas monopolistas, sem trabalhar (a classe parasitária de
480 A idéia aqui é ampliarmos o raciocínio clássico segundo o qual “a divisão do trabalho,
de que já tratamos acima como uma das forças principais da história até aqui, expressa-se também no seio da classe dominante como divisão do trabalho espiritual e material, de tal modo que, no interior desta classe, uma parte aparece como os pensadores desta classe (seus ideólogos ativos, conceptivos, que fazem da formação das ilusões desta classe a respeito de si mesma seu modo principal de subsistência), enquanto que os outros relacionam-se com estas idéias e ilusões de maneira mais passiva e receptiva, pois, na realidade, os membros ativos desta classe e têm pouco tempo para produzir idéias e ilusões acerca de si próprios” (Marx & Engels, 1986: 72- 3).
388
Lênin), ou ainda os indivíduos que fazendo parte de um ou outro grupo,
dedicam-se à gestão do Estado burguês. Esta caracterização também variara de
acordo com o espaço geográfico no qual tais indivíduos se reconhecem como
representantes do capital na direção das diferentes sociedades.
Nas sociedades que forma o núcleo orgânico do sistema capitalista, esta
elite de altas rendas identifica-se claramente como um conjunto de indivíduos
coeso, dotado de consciência de classe e transforma-se, cada vez mais, numa
oligarquia diferenciada do restante da sociedade. Sua caracterização, seja pela
lista de milionários da revista Forbes, seja por seus hábitos de consumo como
descrito por Brooks (2000), deixa clara a separação destes indivíduos com
relação ao restante da sociedade. São eles que ditam as regras em nome do
capital (ainda que fundamentalmente a coesão social exigida pelo capital lhes
dite as regras) e aparecem como dirigentes das grandes empresas e elaboradores
da concepção de mundo que organiza a sociedade. Ao mesmo tempo, tais
pessoas estão submetidas a uma crescente competição como indivíduos, a partir
de uma relação onde se estrutura uma meritocracia a partir da medida de quem
melhor realiza os objetivos de acumulação capitalista. Suas escolas e
relacionamentos sendo parametrizados pelo “sucesso” em acumular mais
riqueza frente a seus pares.
Como complemento a este processo, a globalização do capital, tem
homogeneizado a burguesia também em termos internacionais. O conhecimento
do mundo sendo cada vez mais valorizado (apesar do paradoxo de George W.)
como parâmetro para o pertencimento da classe dominante. Em particular no
caso europeu a educação superior em escolas internacionais passa a ser cada vez
mais valorizada e cresce a integração das diferentes burguesias nacionais como
reflexo da constituição do mercado comum. Brooks (2000) fala mesmo de uma
europeização do gosto norte-americano se dando em conjunto com a
americanização dos comportamentos europeus e da influência oriental sobre
ambos.
3. As classes dominantes na periferia sistêmica: elites mamelucas e comensalismo.
Na periferia do capitalismo, e assim voltamos ao tema que deu origem a
nossa pesquisa, a constituição de um pólo de capital estrangeiro, altamente
389
concentrado e da dívida externa que atrelou os fundos públicos dos Estados
nacionais periféricos ao sistema financeiro internacional, operou alterações na
disputa pela apropriação do excedente dentro destes mercados que levou a uma
crise hegemônica, normalmente entendida como uma crise política interna a
estes Estados. Entretanto, tal crise também se constituía como uma crise de
hegemonia econômica por parte das burguesias nacionais, que perdiam na
prática o controle sobre seus mercados internos e sua capacidade de regular a
forma da apropriação do excedente, crescentemente demandado como parcela
da circulação do capital global.
Do ponto de vista histórico, em particular na América Latina, mas com
processos semelhantes em países africanos e em outras periferias, o que se
constata é que após um período maior ou menor no qual as burguesias
nacionais tentaram ensaiar projetos próprios de desenvolvimento autônomo das
forças de acumulação capitalistas estas acabaram por render-se ao jugo do
capital internacional e involuir para posições próximas das expressas por Caio
Prado Jr. (2000) como componentes do “sentido da colonização”.
O projeto de acumulação perde qualquer conteúdo nacional autônomo –
quando este chegou a se constituir - e passa a estar associado a uma postura
comensalista com relação aos capitais externos instalados no país periférico. A
cultura volta a ser a de “fazer a América” (ou a África, ou a fortuna onde quer
que seja) e remeter os ganhos para fora do território explorado. Neste sentido o
sonho de consumo destas elites periféricas passa a ser fazer parte da elite global
(ou dos hábitos de consumo desta), mesmo quando percebidos em sua forma
kitsch como uma residência em Miami Beach. O desenvolvimento recente
concentrou estes capitais “nacionais” nos setores financeiros, em particular os
bancos, a partir dos quais gozam de uma posição particularmente lucrativa ao
especular contra o Estado e as necessidades do setor exportador na conversão
das moedas locais no equivalente universal481.
481 “As tentativas de estabilização, ou seja, de restaurar a confiança na moeda local,
foram, ao longo dos anos 1980, sistematicamente derrotadas pela incapacidade dos Estados nacionais da periferia, não só de compatibilizar o ajustamento do balanço de pagamentos e a reordenação das finanças públicas, mas também de enfrentar a resistência à mudança dos grupos enriquecidos da sociedade” (Belluzzo & Almeida, 2002: 17). No Brasil existe uma taxa de juros bancária que se move em sentido contrário ao da explicação da teoria neo-clássica. Pretextando a inadimplência os bancos sobem os juros em plena crise. Isto em verdade é expressão do domínio que exercem sobre a sociedade como um todo. A hegemonia econômica possibilita que o setor de automóveis tenha comportamento semelhante no Brasil, aumento os
390
Estas elites (banqueiros e grandes exportadores em particular) passam a
se comportar como autênticos mamelucos no sentido empregado originalmente
pelos árabes para nomear os filhos de chefes que eram retirados de Sefarad (a
península ibérica) e enviados ao norte da África para serem educados nos
costumes do invasor e depois devolvidos para governar seus concidadãos de
acordo com os ensinamentos recebidos na “metrópole” (cf. Ribeiro, 1995) – daí
a expressão usada pelos jesuítas para referir-se aos mestiços de brancos e
índios. A composição de governos como o de FHC, onde metade do primeiro
escalão fez a graduação ou a pós-graduação nos EUA (cf. Gomes, 2000), ilustra
bem como se constroem estas elites mamelucas nos dias atuais.
Assim, o andar superior pode ser caracterizado tanto no centro como na
periferia por elites que crescentemente abandonam os compromissos nacionais
e se internacionalizam, junto com a criação da circulação de capitais nas praças
offshore.
É necessário agora lançarmos o olhar sobre o que está abaixo.
4. O papel dos fundos de pensão ou “o paradoxo da velhinha inglesa” e a alienação do social.
Ao lado do grande proprietário rentista aparece um grande número de
pequenos rentistas. Estes entretanto não se vêm necessariamente como
proprietários de capital, mas sim, como detentores de poupança, de um
pequeno tesouro, de uma reserva para eventualidades. Seu objetivo ao aderir ao
sistema é a preservação de suas poupanças e a constituição de fundos para a
velhice, em particular onde o sistema de previdência social é falho ou foi
privatizado. Desta forma, também entre os capitalistas surge o déspota que se
apodera do kratos disperso entre os muitos pequenos poupadores. O capital,
todavia, aparentemente se generaliza como relação na medida em que as
aposentadorias aparecem para os poupadores e segurados como capitalização
de suas poupanças (aparentemente todos se tornam capitalistas). A hegemonia
do capital financeiro sobre as populações dos países desenvolvidos se torna
desta forma uma realidade palpável, encoberta pela forma alienada e fetichizada
do capital fictício.
preços em plena crise como forma de garantir o volume total de lucros a ser remetido para as matrizes.
391
Segundo Ohmae (1999) só o Japão tem U$ 10 Tri investidos fora de seu
território e 10% do capital dos fundos de pensão norte-americanos está
investido na Ásia. Estes pequenos poupadores, entretanto, não são os
responsáveis diretos pelo movimento especulativo. Antes, são suas constantes
vítimas, pois faz parte da dinâmica do ciclo financeiro os pequenos sofrerem as
maiores perdas quando ocorrem as oscilações482.
O mercado faz com que a mesma senhora que faz doações ao Greenpeace
seja sustentada pelo capital japonês que caça as baleias, ou pela empresa de
transporte de petróleo responsável por um derramamento no mar do norte, ou
ainda, é acionista da empresa que produz um remédio que ela toma e está lhe
fazendo mal, constituindo o que costumo nomear de “paradoxo da velhinha
inglesa”. Desta forma, há uma clara contradição entre os interesses dos
poupadores como cidadãos e a ação de suas poupanças na forma do capital. Esta
alienação do social processada pela forma capital necessita assim ser discutida
não só nos termos do fundo público, mas também ganhar a rua no debate sobre
a gestão privada do capital social, em particular dos fundos de pensão
socialmente instituídos e posteriormente privatizados (uma das novas reformas
anunciadas por Bush Jr. para seu novo mandato, é justamente a privatização da
seguridade pública norte-americana)483.
Já observamos que o rentismo – expresso por aposentadorias e por
indivíduos que detém riqueza e vivem dos juros – deve ser analisado com base
na idéia de que ocorre uma separação entre o agente capitalista e os
possuidores, na qual se aliena do proprietário o comando sobre o capital. Desta
forma, as classes médias, mesmo que não endossem completamente o programa
do grande capital concentrado, reforçam o movimento de concentração que
sacrifica suas vidas na bigorna social capitalista, trocando a condição de cidadão
consumidor pela sua própria alienação como sócia do processo de reprodução
ampliada do capital.
482 Ver Carta Capital n. 310, “A vez dos inocentes”. 483 Cf. CartaCapital n. 316.
392
5. Os despossuídos: o novo demos
Constatamos ao longo deste trabalho que no estado neoliberal
contemporâneo, a condição de inclusão dos indivíduos deixa de ser
representada pelos pactos sociais para ser expressa de forma reducionista nas
virtudes particulares através da figura do consumidor. Ou seja, o indivíduo é
considerado cidadão se for proprietário ou se a fortuna lhe sorrir. Ao realizar-se
a divisão social do trabalho, os indivíduos tornam-se parte do trabalhador
coletivo, podendo assim ter sua mais-valia extraída de forma direta ou indireta.
Desta forma, os não proprietários tornam-se uma massa heterogênea submetida
ao jugo das relações capitalistas.
A explicação de Oliveira (1999), inspirado em Rancière (1996), tem o
sentido de entender a democracia liberal contemporânea (ou neoliberal) como
um sistema de gestão de populações, restringindo o papel dos Estados
nacionais, em particular na periferia, a conter dentro dos territórios nacionais as
demandas das populações que nunca poderão sonhar em reivindicar uma
condição de igualdade de consumo igual à dos Estados centrais.
Neste sentido, as ameaças de publicização do Estado devem ser
contornadas pelo setor privado, pois tal publicização implicaria numa re-
apropriação do que foi expropriado (dentro do nosso argumento isto se daria
com a descolonização do Estado pelo Mercado, ou pelo rompimento do
princípio de afirmação prévia do pólo privado na relação deste com o público).
Nos marcos do antivalor (Oliveira: 1998), isto se daria pelo valor que é
redirecionado pelos impostos aos produtores originais através do Welfare State.
Desta forma, a privatização do Estado nega esta discussão pois ela nega o
próprio princípio do Estado como organismo público. Disto decorre que a
sociedade vê-se numa crise sobre o modo de apropriação do excedente, e a
explicitação desta crise através da reivindicação de inclusão das massas alijadas
do consumo nesta sociedade de abundância é que pode abrir caminho para uma
transformação nas suas relações fundantes.
Mais que uma negação da fala, o outro não pode ser incorporado no
discurso político devido à apropriação da esfera do político pelo poder
econômico através da introdução do fundo público como pressuposto da
reprodução ampliada do capital e do novo papel desempenhado pelo Estado na
393
regulação do equivalente geral. Ou seja, ao transformar a esfera pública em
objeto de disputa para a apropriação particular e ao negá-lo como espaço de
medida coletiva, a burguesia trava a possibilidade do desenvolvimento virtuoso
do sistema engendrado pela social-democracia.
Devemos assim, voltar à discussão de Rancière (1996a) sobre o
“dissenso” como produtor da política. Rancière parte da crítica “do discurso
atualmente dominante que identifica a racionalidade política ao consenso e o
consenso ao princípio mesmo da democracia”. Sua tese central é a de que “a
racionalidade da política é a de um mundo comum instituído, tornado comum,
pela própria divisão”. No seu entendimento a política “é antes um modo de ser
da comunidade que se opõe a outro modo de ser, um recorte do mundo sensível
que se opõe a outro recorte do mundo sensível” (cf. Rancière, 1996a: 367-8). Se
juntarmos este raciocínio à idéia gramsciana de concepção de mundo, podemos
propor que a instituição do dissenso se dá no confronto das formas de
concepção do mundo. Assim, a anulação do dissenso, ou seja, da possibilidade
de se instituir a política, nos tempos atuais, se dá com a construção da
hegemonia neoliberal calcada no individualismo através dos canais formadores
de opinião como a mídia, as faculdades, etc.
Desta forma, podemos comparar a idéia de hegemonia à função da
política entendida como polícia por Rancière: “o conjunto dos processos pelos
quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização
dos poderes e a gestão das populações, a distribuição dos lugares e das funções e
os sistemas de legitimação dessa distribuição”. Dentro deste registro a ação
contra hegemônica constituiria o campo da política, que Rancière reserva para o
“conjunto das atividades que vêm perturbar a ordem da polícia pela inscrição de
uma pressuposição que lhe é inteiramente heterogênea. Essa igualdade, como
vimos, não se inscreve diretamente na ordem social. Manifesta-se apenas pelo
dissenso, no sentido mais originário do termo, uma perturbação do sensível,
uma modificação singular do que é visível, dizível, contável” (Rancière,
1996a:372). Assim, é a criação de novas formas de perceber o mundo (através da
modificação das antigas) que tornam possíveis as ações políticas.
Finalmente, cabe-nos a pergunta de como se constitui o ator capaz de
instituir este dissenso. Rancière (1996), em outro texto propõe como central a
expressão dos “pequenos ventres”, os indivíduos que pela fome colocam a
394
demanda de suas necessidades frente ao conjunto da sociedade. Enquanto
Hardt & Negri (2000) propõem que a “multidão” constituída pelo
fracionamento do trabalho abstrato e concreto se contraporia ao império,
Rancière retoma algo mais clássico: estamos aqui diante de outra forma pela
qual se manifesta a figura dos despossuídos, o demos grego. E é justamente a
este demos que chegamos quando observamos o que se produz com o processo
de inclusão através da exclusão, característico do capitalismo contemporâneo.
Ao mediar através da forma mercadoria todas as relações humanas, o
capital, como hegemon do sistema, produz em seu movimento uma massa de
excluídos e inempregáveis que está muito além do exército de reserva ou da
caracterização de lumpenproletariado. Pois ao mesmo tempo em que tais
indivíduos estão excluídos do consumo que caracteriza a sociedade de
abundância, estão incluídos nos processos de reprodução do metabolismo social
que produz o capital e os reproduz como trabalhadores, ainda que precarizados,
informais ou ilegais. O movimento do capital empurra para a situação de párias
sociais até mesmo indivíduos com formação superior, além de uma grande
massa de mão-de-obra com formação técnica criada pelos mecanismos de
produção de educação estatal (antimercadoria).
Por outro lado, e mais importante, o impacto da mundialização do modo
de produção capitalista sobre o meio-ambiente está tornando patente a
inviabilidade de sua reprodução dentro dos atuais parâmetros. A ameaça de
extinção da raça humana como resultado da destruição do espaço físico que nos
serve de sustento passa a ficar óbvia mesmo para indivíduos que aparentemente
se beneficiam do sistema. E é este movimento que deve ser contido para que a
humanidade tenha esperanças de um devir.
A alternativa posta é a refundação do Estado público na forma
aristotélica, e com este a refundação do privado, também este emprenhado
como local de sociabilidade onde se veja e onde se possa ser visto (não se trata
de devassar o íntimo, processo que o próprio capital está construindo, mas de
romper a lógica da acumulação pela acumulação). O caráter sagrado da
propriedade deve ser relativizado e limitado, uma vez que entra em conflito com
os demais direitos humanos ao afirmar a soberania da esfera privada sobre a
pública para a qual os demais direitos servem de garantia. O que torna
dicotômico e inconciliável o caráter sagrado da propriedade privada, é que ele
395
corresponde a uma enunciação de mundo que diverge do resultado prometido
pela ideologia liberal e neoliberal de construção de um mundo melhor para o
conjunto da sociedade. Neste sentido, Lefort (1987) tinha razão ao utilizar os
“direitos humanos” como bandeira, tanto quando Marx de caracterizá-los como
ideologia. Não basta a reivindicação da justiça enquanto distribuição do
excedente, é necessário pôr em questão a própria apropriação. De outra forma,
os Estados, continuarão a apresentar-se a nós como submissos
“a uma vontade que doravante se situa acima dos Estados,
representantes locais de um governo mundial que define as regras do
jogo que se impõe a cada um. Esse governo mundial imaginário é, em
última análise, o governo mundial da riqueza, governo inencontrável que
determina as margens ínfimas da redistribuição local cuja gestão ótima
requer o consenso. O que uns chamam modéstia do Estado, outros, fim
da política, é então a reabsorção total do político pelo estatal. O Estado
gestionário funciona como representante local do governo sem centro da
riqueza, um governo ausente ao qual ninguém pode pedir contas”
(Rancière, 1996a: 380).
Ora, o que é este governo sem centro senão o mercado? O que é este
hegemon anônimo senão o próprio capital? Posto o problema, cabe-nos a tarefa
de superá-lo.
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