UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
CURSO DE GRADUAO EM FILOSOFIA
OTTVIO DE AZEVEDO OLIVEIRA RODRIGUES
ACERCA DAS RELAES ENTRE A FILOSOFIA E A SOFSTICA: UM OLHAR A PARTIR DO PROTGORAS DE PLATO
Niteri 2017
OTTVIO DE AZEVEDO OLIVEIRA RODRIGUES
ACERCA DAS RELAES ENTRE A FILOSOFIA E A SOFSTICA: UM OLHAR A PARTIR DO PROTGORAS DE PLATO
Monografia apresentada ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do grau de Licenciado em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Marcus Reis Pinheiro
Niteri 2017
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
CURSO DE GRADUAO EM FILOSOFIA
OTTVIO DE AZEVEDO OLIVEIRA RODRIGUES
ACERCA DAS RELAES ENTRE A FILOSOFIA E A SOFSTICA: UM OLHAR A PARTIR DO PROTGORAS DE PLATO
BANCA EXAMINADORA
_________________________________ Prof. Dr. Marcus Reis Pinheiro (Orientador)
Universidade Federal Fluminense
_________________________________ Prof. Dr. Luis Felipe Bellintani Ribeiro
Universidade Federal Fluminense
_________________________________ Prof. Dr. Alexandre da Silva Costa Universidade Federal Fluminense
Niteri 2017
Dedico este trabalho ao meu pai, Sebastio (in
memorian ), e minha me, Maria Aparecida, pelo empenho que depositaram na minha formao e por terem possibilitado que eu chegasse onde eles nunca
puderam chegar.
Agradecimentos
Ao meus pais, Sebastio (in memorian ) e Maria Aparecida, pelo esforo em me manter em uma universidade distante de minha cidade de origem, com todas as dificuldades decorrentes
disso. Vocs so o modelo de dedicao e empenho que eu emprego a cada dia em minha vida. s minhas irms, Ellana e Lucille, pelo carinho e pelo apoio que me direcionam desde a
poca que eu no entendia o valor disso. Vocs foram fundamentais na minha formao.
Aos 13 anos de governos transformadores de Lula e Dilma que possibilitaram que pessoas como eu pudessem ingressar na universidade. Nenhum golpe de estado apagar das nossas
memrias as conquistas do povo preto e pobre!
Ao meu namorado Thiago Selem pelo companheirismo, sem o seu apoio essa jornada seria muito mais difcil. A Nelma Ferreira, minha companheira de vida, fundamental em cada
deciso que eu tomo. Estar ao lado de vocs que torna isso tudo possvel.
Aos amigos, fundamentais nesse perodo aqui em Niteri. Arthur, Gabriela, Felipe Gabriel, Kate Soares e Youssef, pela recepo na Repblica do Ratn, minha primeira casa em
Niteri. J, Marcus, Sandro, Valdeir e Walace que ingressaram comigo na turma de 2013.1, e Bianca, Gabriela, Gianluca e Thiago Silva, amizades que eu tive o prazer de cultivar na
Filosofia. Todos vocs foram fundamentais para tornar meus dias em Niteri mais felizes.
Aos amigos e amigas que carrego de outras jornadas, Paula, Camile e Marcelo Puertas.
Ao Transporte Social Universitrio da Prefeitura de Maca, sem o qual teria sido muito difcil estudar em Niteri.
CAPES pelo Programa de Iniciao Docncia (PIBID) e UFF e FE-SSE pela bolsa de
Monitoria, fundamental para minha permanncia na universidade.
Ao professor Marcus Reis Pinheiro por ter acolhido a orientao da minha monografia. Suas contribuies foram fundamentais para que esse trabalho encontrasse um termo.
Aos Professores, Lus Felipe Bellintani Ribeiro e Alexandre Costa, por aceitarem gentilmente
fazer parte desta banca.
Aos demais professores do GFL pela dedicao que imprimem em suas aulas.
E, por fim, ao professor Richard Fonseca, prezado orientador de monitoria, que tornou o caminho para a experincia do ensino de Filosofia um pouco menos tortuoso.
() enquanto [Plato] se preparava para participar de um concurso de tragdias, passou a ouvir
Scrates em frente ao teatro de Dinisos, e ento jogou s chamas seus poemas (). Dizem que a
partir de ento, aos vinte anos, tornou-se discpulo de Scrates. Digenes Laertios, Vidas e doutrinas
dos filsofos ilustres . III. 5.
() se a tragdia havia absorvido em si todos os gneros de arte anteriores, cabe dizer o mesmo, por
sua vez, do dilogo platnico, o qual, nascido por mistura, de todos os estilos e formas precedentes,
paira no meio, entre narrativa, lrica e drama, entre prosa e poesia, (). NIETZSCHE, O Nascimento
da Tragdia , p.86.
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Scrates! interrompeu Adimanto ningum seria capaz de contraditar os teus argumentos. Mas de facto, a
impresso que experimentam aqueles que de tempos a tempos ouvem o que acabas de expor mais ou menos esta: supem que, pela sua inexperincia em interrogar e responder, a cada
pergunta a discusso os desvia um pouco, e que, depois de terem acumulado esses pequenos desvios, ao chegarem ao fim da argumentao, surge um erro grande e contrrio posio
inicial; e, tal como, no gamo, os jogadores hbeis cercam as pedras dos outros e no os deixam chegar ao fim, nem ter para
onde mover as pedras, tambm eles acabam por ficar cercados e sem ter que dizer nesta outra espcie de jogo, feito no com
pedras, mas com argumentos.
(Repblica, VI, 487b-c)
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RESUMO
Caracterizar a filosofia em oposio sofstica tarefa que persegue quase a totalidade dos
dilogos de Plato. A grande maioria deles traz, tcita ou explicitamente, alguma discusso
com esse movimento, seja atravs do personagem Scrates ou no. O esforo de Plato parece
ser o de promover uma distino entre dois gneros que para a maioria de seus
contemporneos, de uma forma ou de outra, confundiam-se. Nesse sentido, nosso trabalho
pretende se inserir no contexto da antiga discusso das relaes entre a filosofia e a sofstica
ocupando-se do dilogo Protgoras . Analisaremos, a partir desse dilogo, o modo com que o
filsofo ateniense caracteriza, por um lado, Scrates, seu modelo de filsofo por excelncia,
e, por outro, o sofista Protgoras, principal interlocutor de Scrates nessa obra.
Palavras-chave: Plato, Scrates, Protgoras, sofistica.
Abstract
Sumrio
Introduo.1 1) Entre o filsofo e os sofistas.5
1.1) Scrates: a criao do filsofo e a negao do sofista....5 1.2) Os sofistas e o seu aspecto profissional13
2) As imagens de Scrates e Protgoras no Protgoras ...17
2.1) Scrates e a necessidade do mdico da alma.17 2.2) Protgoras, professor da aret humana..24
2.2.1) O programa de ensino de Protgoras e as objees de Scrates.24 2.2.2) Resposta primeira objeo: mito de Prometeu e comentrio...31 2.2.3) Resposta segunda objeo: logos .36 2.2.4) Scrates frente ao encanto do Orfeu sofstico39
3) Quem Scrates para seus interlocutores no Protgoras ?.............................................41 Concluso.53 Referncias Bibliogrficas..55
Introduo
Caracterizar a filosofia em oposio sofstica tarefa que persegue quase a
totalidade dos dilogos de Plato. A grande maioria deles traz, tcita ou explicitamente,
alguma discusso com esse movimento, seja atravs do personagem Scrates ou no. O
esforo de Plato parece ser o de promover uma distino entre dois gneros que para a
maioria de seus contemporneos, de uma forma ou de outra, confundiam-se. A respeito disso,
o dilogo Protgoras parece ocupar um lugar de destaque. Nele, Plato no nos traz Scrates
discutindo doutrinas sofsticas ou suas prticas de modo abstrato, mas insere-o em um teatral
encontro com Protgoras de Abdera, precursor do movimento sofsta, que empresta seu nome
ao dilogo, em plena demonstrao de seus pressupostos e de seu programa de ensino, em que
ambos, tanto Scrates, quanto o sofista, parecem nos apresentar, como chamou Jos Amrico
Pessanha, uma coreografia das ideias (PESSANHA, 1997, p. 21)
Entre os comentadores de Plato que dividem a obra do filsofo em trs fases, a saber,
juventude, maturidade e velhice, h um considervel consenso em incluir o Protgoras entre
as obras da sua juventude. Alguns pesquisadores, observa Guthrie (1998, p. 210), chegaram a
classific-la como a mais juvenil entre os dilogos de Plato . Guthrie afirmar que 1
considerando o carter mais elaborado da argumentao, a inferncia mais natural que esta
obra foi escrita depois que aquelas outras peas mais breves e limitadas (GUTHRIE, 1998, p.
210) A posio mais natural, defendem Guthrie (1998, p. 210) e Jaeger ( 2001, p. 620-621),
seria no fim desse conjunto de dilogos em que Scrates investiga uma srie de virtudes
particulares como a piedade, a coragem, por exemplo, mesmo que ainda seja um dilogo da
fase socrtica, ou seja, da juventude de Plato. No entanto, Taylor, tambm considerando a
riqueza da tcnica artstica empregada na composio desse dilogo, ir ainda mais longe na
sua afirmao, alm de repudiar que o Protgoras fosse uma das obras iniciais de Plato
(TAYLOR, 2013, p. 235), defender que ele deveria ser aproximado das obras de maturidade,
a saber, Fdon , Banquete e Repblica (TAYLOR, 2013, p. 20).
No Protgoras , Plato nos traz seu mestre Scrates, principal personagem em muitas
de suas obras, contracenando com uma srie de sofistas, em especial com o famoso
1 Guthrie, no Volume IV de sua Historia de la Filosofa Griega (1998, p. 210), destaca que Ritter e Wilamowitz colocavam o Protgoras entre os primeiros dilogos, escrito, inclusive, antes da morte de Scrates, e Arnim considerava-a a obra mais jovem de todas.
1
Protgoras de Abdera, principal interlocutor de Scrates e que, por isso, empresta seu nome
ao dilogo, bem como Hpias de lias e Pdicos de Quios, dois sofistas que tem uma
participao menos destacada ao longo do dilogo, e seus discpulos em um cenrio
fortemente vinculado ao movimento sofista: Scrates vai ao encontro dessas eminentes
figuras na casa de um rico ateniense, Clias de Hipnico, com o objetivo de apresentar a
Protgoras um aspirante a aluno, Hipcrates, jovem amigo do filsofo.
Segundo Taylor, se considerarmos as consideraes sobre a idade de Alcebades no
Prlogo (Prot . 309a-b), podemos concluir que a data dramtica do Protgoras no deve
passar do ano de 433 a.C ., isso o localizaria no perodo final da era de Pricles, momento de 2
maior opulncia e glria de Atenas (TAYLOR, 2010, p. 236). Scrates, portanto, ainda
segundo o autor, deve ser pensado como um homem com seus trinta e cinco anos, enquanto
Protgoras, principal interlocutor do filsofo no dilogo, j seria um homem velho, se
considerarmos as indicaes que o prprio personagem faz ao longo do dilogo (cf. Prot .
317c e 320c).
Qualquer trabalho que envolva uma considerao a respeito do movimento sofista do
sculo V a.C. uma tarefa que, de incio, esbarra em muitos empecilhos. Pois, como afirma
Kerferd no seu O Movimento Sofista , no nos restaram escritos de nenhum dos sofistas
[destes do sculo V. a.C.] e temos de depender de fragmentos insignificantes e de sumrios
muitas vezes obscuros, ou discutveis, de suas doutrinas, nos vemos, muitas vezes,
dependentes dos escritos daqueles que se colocavam como seus adversrios como o prprio
Plato (KERFERD, 2003, p. 9). Mesmo sendo evidente a hostilidade com que Plato trata os
sofistas, a tradio nos legou uma interpretao carregada de uma certa m vontade, que
no condiz com o teor do conflito que, ao que parece, teria ocorrido naquele perodo. Plato
nunca os considerou simplesmente pensadores de segunda ordem, como uma srie de
comentadores fariam posteriormente . De fato, Plato considerava os sofistas os adversrios 3
2 Guthrie concorda com a datao dramtica proposta por Taylor e ainda sugere que a referncia pea Os Selvagens do poeta cmico Fracles, encenada em 420 a.C., s poderia ser um anacronismo intencional de Plato. (GUTHRIE, 1998, p. 211).
3 Kerferd no seu O Movimento Sofista nos traz um esboo da concepo que triunfou a respeito desses pensadores que rivalizaram com os filsofos naquele perodo. A viso tradicional dos sofistas, ele exemplifica com a citao de um trecho de um artigo, era a de que (...) eles eram um bando de charlates que surgiu na Grcia do sculo V e ganhou amplamente o seu sustento impondo-se credulidade pblica: professando ensinar a virtude, eles, na realidade, ensinavam a arte do discurso falacioso e, enquanto isso, propagavam doutrinas prticas imorais. Dirigiam-se para Atenas como ao Pythaneu da Grcia; l encontraram com Scrates e foram derrotados por ele, que exps a inanidade de sua retrica, revirou do avesso seus ensinamentos capciosos e vitoriosamente defendeu slidos princpios ticos contra seus plausveis sofismas perniciosos.
2
mais perigosos da filosofia, tal como ele a compreendia, devendo, por isso, ser combatidos,
no entanto, a centralidade dessa rivalidade na sua obra j pode ser considerada um indcio de
que no poderamos de maneira alguma menosprezar a importncia desse movimento no s
do ponto de vista histrico, mas tambm do ponto de vista filosfico.
O trabalho que se seguir ser composto por trs captulos. O primeiro deles est
dividido em dois momentos. No primeiro deles, analisaremos, a partir da constatao da
disputa de sentido que os termos filsofo e sofista protagonizaram nos sculos V e IV
a.C, como Scrates, assumido como personagem do projeto platnico, ser fundamental para
Plato situar-se nessa disputa, de tal modo que produzir uma excluso que se perpetuar pela
histria da filosofia. No segundo momento deste captulo, discorreremos sobre o carter
profissional da prtica sofstica, em que o pagamento pelo ensino uma das caractersticas, de
modo que, por meio da sua constituio, buscaremos discorrer sobre alguns aspectos da
sofstica do sculo V a. C.
No segundo captulo, partiremos para uma anlise do modo como Plato constri, no
Protgoras , tanto o personagem Scrates, quanto o sofista de Abdera. Em primeiro lugar,
analisaremos o papel de Scrates no dilogo entre ele e Hipcrates, jovem ateniense
entusiasmado com a chegada do sofista de abdera, preparatrio para o encontro com o sofista
de Abdera. E, em seguida, analisaremos toda a primeira seo em que Protgoras colocado
em dilogo com Scrates. Nesse momento, os personagens investigam o programa de ensino
defendido pelo sofista, o que d ensejo discusso sobre a ensinabilidade da virtude (aret ).
Para justificar esse ensino contra as objees de Scrates, Plato faz Protgoras narrar a
clebre verso do mito de Prometeu, produto da genialidade platnica com elementos das
doutrinas associadas ao sofista.
No terceiro e ltimo captulo, discorreremos sobre a divergncia existente entre a
inteno que o personagem Scrates, reiteradas vezes no Protgoras , afirma gui-lo no
movimento de perguntas e respostas e aquela que os muitos de seus interlocutores o atribuem.
Observaremos essa discordncia quanto compreenso do encontro a partir da segunda parte
do dilogo entre Scrates e Protgoras, que se inicia aps o sofista narrar o mito de Prometeu
e o discurso que o complementa (Prot. 328d e ss.), permanecendo, mesmo com uma srie de
Assim, eles, depois de um breve sucesso, caram num bem merecido desprezo. E seu nome se tornou objeto de zombaria para as sucessivas geraes. (SIDWICK, H. The Sophists, Journal of Philology 4 (1872) p. 289 apud KERFERD, 2003, p. 17)
3
interldios, at o trmino do dilogo, em que tanto Scrates, quanto Protgoras acabam em
um estado de terrvel confuso (kto tarattmena deinn , Prot. 362c).
guisa de concluso, discorreremos sobre a importncia da leitura dos dilogos de
Plato como peas dramticas, na esteira de uma tradio de comentadores, por considerar
que apenas a partir de uma perspectiva que no prioriza um personagem em detrimento de
outros, por exemplo, que podemos captar mais precisamente as intenes que moveriam
Plato ao escrever suas obras, em especial, o prprio Protgoras .
4
Captulo 1 Entre o filsofo e os Sofistas
1.1) Scrates: a criao do filsofo e a negao do sofista
Em Atenas dos Sculos V e IV a.C., os tipos de intelectuais que representavam o
filsofo (philsophos ) e o sofista (sophists ) encontravam-se em situao de relativa
indistino e eram objeto de disputas de significados, diferentemente do que poderia indicar
uma leitura descuidada dos dilogos platnicos. Nesse sentido, Marina McCoy, no seu livro
Plato e a Retrica de Filsofos e Sofistas , afirma que:
O problema, ento, de distinguir a natureza da retrica e da sofstica um projeto ao mesmo tempo normativo e descritivo para Plato. Ou seja, assumir o ttulo de filsofo j significa ter certa concepo em mente sobre o que constitui um melhor ou pior entendimento da linguagem e sua relao com a razo e a realidade. Retrico , filsofo , sofista e poeta no so simplesmente termos que descrevem um conjunto de prticas, como mdico ou pintor . Ao contrrio, os termos ainda esto em desenvolvimento e so disputados com palavras na batalha sobre o que o lgos pode ou deve fazer (McCOY, 2010, p. 27).
Plato, defende a autora, ao descrever Scrates como um filsofo e caracteriz-lo em
oposio s figuras de destaque de seu tempo, em especial aos sofistas, promove um
movimento que possui uma dimenso normativa, em vez de meramente descritiva dos tipos
intelectuais presentes na poca, como podemos ser levados a crer. Essa possibilidade ganha
ainda mais fora se levarmos em considerao que Scrates, antes de ser representado por
Plato em seus dilogos, feito personagem j pelo teatro cmico de seu tempo. A comdia
grega fonte mais antiga de informao sobre Scrates , sendo As Nuvens de Aristfanes, a
nica dentre elas que nos restou integralmente, a nica das fontes primrias que data do
perodo em que Scrates vivia (PRIOR, 2011, p. 40). 4
O poeta cmico Aristfanes, em As Nuvens , retrata um Scrates indistinto daqueles
sofistas representados por Plato. Nela, Scrates caracterizado como mestre do Pensatrio
(phrontistrion ), sendo capaz, desde que pago para isso, de ensinar seus discpulos a vencer
4 A data de apresentao de As Nuvens estimada em 423 a. C. (PRIOR, 2011, p. 40)
5
com discursos tanto as causas justas quanto as injustas (vv. 94-99). O Scrates de Aristfanes
se encaixa muito bem na imagem do sofista, professor de retrica, aquele que ensina quem os
paga sem qualquer preocupao de ordem moral, ou seja, sem se preocupar se seu discpulo se
valer dessa habilidade em situaes justas ou injustas.
O Scrates de Aristfanes um tipo hbrido com traos tanto dos membros do
movimento sofista, quanto de Scrates tal como foi apresentado por Plato em seus dilogos.
Por um lado, no contedo do ensino, cujo currculo objetiva fundamentalmente as disputas
oratrias e judiciais, e no hbito da cobrana por esse ensino (vv. 97-9 e 246) encontramos
ntidas relaes com os traos atribudos aos sofistas pela tradio. A referncia maiutica
(vv. 135-6), ao mtodo de perguntas e respostas (v. 344) e a meno ao hbito de andar
descalo (vv.102-4), por outro lado, so caractersticas fortemente relacionadas s de Scrates
se considerarmos a figura legada pelos dilogos de Plato.
A crtica que Aristfanes empreende nessa pea, devemos destacar, direcionada no
apenas ao possuidor do nome prprio do personagem mas tambm a todo esse grupo que tem
introduzindo novas prticas antiga educao tradicional, cujos representantes notrios so os
sofistas (vv.895-8). Por mais que Scrates faa parte desse movimento de poca que pretende
introduzir novas prticas e costumes, constru-lo como um membro do movimento sofista,
como faz Aristfanes, o que nos soa estranho quando nos ocupamos dessa fonte. Ser essa
vinculao que inclui Scrates no movimento sofista que Plato se ocupar de refutar em
diversos momentos de sua obra.
A fora de tal representao fica evidente se levarmos em considerao a meno que
Plato faz desta pea na sua representao do julgamento que levaria seu mestre
condenao. Na sua verso da Apologia de Scrates, Plato faz seu mestre defender-se
daqueles que ele chama de primeiros acusadores (Apol . 18a), entre os quais inclui
nominalmente Aristfanes (Apol . 19c). Segundo o relato, Scrates considera essa classe de
acusadores mais temvel que aqueles que efetivamente apresentaram a petio justia uma
vez que eles estiveram encarregados da educao de muitos de seus juzes desde meninos,
perodo em que eram mais crdulos (Apol . 18c), fazendo-os crer na existncia de um certo
6
Scrates, homem instrudo, que estuda os fenmenos celestes, que investigou tudo o que h
debaixo da terra e que faz prevalecer a razo mais fraca (Apol . 18b). 5
Plato refuta a imagem aristofnica de Scrates porque necessita combater a
indistino entre Scrates e os sofistas, parte integrante de suas acusaes, e garantir que seu
mestre no seja lembrado como pertencente a esse movimento. Dir Scrates no momento de
sua defesa:
Na realidade, no tem fundamento nenhum essas balelas; tampouco falar a verdade quem vos disser que ganho dinheiro lecionando. Sem embargo, acho bonito ser capaz de ensinar, como Grgias de Leontino, Prdico de Ceos e Hpias de lis. Cada um deles, senhores, capaz de ir de cidade em cidade, persuadindo moos que podem frequentar um de seus concidados a sua escolha e de graa a deixarem essa companhia e virem para a sua, pagando e ficando-lhes, ainda, agradecidos. (Apol . 19d-20a)
Seria preciso pr Scrates no momento de seu julgamento, como faz Plato,
reafirmando aquilo que persegue quase a totalidade dos seus dilogos, Scrates no um
sofista mas um filsofo. Por mais que o gnero filosfico e o sofstico se assemelhem tal
como o lobo se assemelha a um co, como afirma Plato no Sofista, devemos nos acautelar
dessa semelhana para no confundirmos os sofistas, esse gnero mais selvagem, com o
filsofo, que domesticado (Sof . 231a).
Plato no foi o nico dos discpulos de Scrates a escrever dilogos que traziam o
mestre como protagonista. Depois da morte de Scrates, diversos seguidores do filsofo se
engajaram na escritura desses dilogos, cuja origem, nos diz Guthrie, deveu-se ao hbito de
seus companheiros tomarem nota de suas conversaes para, depois de redigidas, serem
levadas para Scrates com fins de confrontao (GUTHRIE, 2003, p. 320). Como Scrates
no havia deixado nada escrito, esses dilogos passariam a exercer importante papel de
divulgao de sua figura, seu modo de vida e sua filosofia. Aristteles, na sua Potica , nos
relata que esses dilogos consistiriam um gnero literrio estabelecido no mbito das
composies imitativas, colocando-as, inclusive, ao lado dos mimos de Sfron. (Pot. 1447b).
Da vasta literatura que correspondia aos sokrtikoi lgoi , s nos restaram obras intactas, alm
das de Plato, as de Xenofonte . 6
5 Utilizamos como referncia para a traduo da Apologia Scrates a traduo de Jaime Bruna (1972) , contida na coleo Os Pensadores , optamos por chamar a obra de Apologia de Scrates e no Defesa de Scrates, como faz a traduo, por considerar o primeiro ttulo j muito consagrado. 6 Como nos informa Kahn (1998, p. 1) em seu importante Plato and the socratic dialogue foram conservados at ns fragmentos de outros quatro discpulos, Antstenes, squines, Fdon e Euclides. O Primeiro Captulo de sua
7
Se a disputa pela imagem de Scrates e pelo legado de seu modo de vida um ponto
to importante da literatura do sculo IV a.C., a disputa pelo sentido do termo filosofia
(philosopha ) tambm ter um lugar de considervel destaque. Em Atenas, no incio do sculo
IV a.C., Iscrates funda uma escola que rivalizar com a Academia de Plato pelo sentido do
que viria a ser a filosofia, opondo-se, a seu modo, sofstica. No discurso Contra os sofistas ,
que teria sido escrito no incio de seu trabalho como professor, Iscrates estabelece as bases
de sua educao (paideia ), o que leva a muitos intrpretes a considerarem esse discurso uma
espcie de carta de intenes de sua escola (LACERDA, 2011. p. 7). A filosofia como
entende Iscrates est vinculada educao (paideia ) e ao aprendizado com discursos, ou
seja, retrica e a uma educao moral que no deve ser confundida com a pretenso de
ensinar a justia dos sofistas (Cont. Sof. 21). McCoy, ao comentar a noo que Iscrates
possui de filosofia, dir:
para ele [Iscrates], philosofia no concerne ideias abstratas, mas sim os discursos que se destinam a fazer as pessoas agirem em situaes polticas concretas e especficas. A filosofia deve se preocupar com projetos nobres, enquanto a sofstica se debrua ostensivamente sobre discusses abstratas a respeito de questes sem serventia (McCOY, 2010. p. 17, grifo da autora).
Iscrates e Plato, no entanto, apesar de discordarem a respeito da natureza da
filosofia, concordam quanto ao ataque aos sofistas. Se Iscrates levado a escrever, por
exemplo, Contra os Sofistas para demarcar sua paideia daquela praticada pelos sofistas, como
foi dito, Plato se vale de quase a totalidade de seus dilogos para demarcar a diferena de seu
mestre, Scrates, seu modelo filosfico por excelncia, dos sofistas, .
verdade que, nem sempre, o termo sophists usado por Plato de modo
depreciativo. No Banquete , por exemplo, Diotima, aquela que teria doutrinado Scrates sobre
as questes do amor (t erotik , 201d) descrita pelo filsofo como a mais consumada
sofista (hoi tleoi sophista , 208c). Em uma passagem do Protgoras , curiosamente, Plato 7
tambm utiliza o termo sophists em um sentido que difere do que estamos habituados. No
momento em que Scrates comenta o poema de Simnides aps a provocao de Protgoras
(Prot. 342a e ss), o filsofo, guisa de introduo ao seu comentrio, promove o que alguns
obra, Sokratikoi logoi : the literary and intellectual background of Platos work, uma boa introduo para a compreenso do conjunto da literatura socrtica daquele perodo. 7 Utilizamos a traduo de Carlos Alberto Nunes (2011) como referncia para a citao do Banquete .
8
chamaram de elogio da filosofia, exaltando a antiguidade do cultivo do amor sabedoria, que
teria nos cretenses e nos lacedemnios o local de maior destaque (Prot. 342a) . Nessa 8
passagem, Plato faz Scrates se utilizar dos termos filosofia, (philosopha , 342a7;
philosophan , 342d5; philosophen , 342e6) e sofistas (sophistai , 342b; sophistais , 342c5) sem
qualquer precauo ou advertncia, tratando-os para se referir a uma mesma coisa, a prtica
da sabedoria (sopha , 342b3).
O doxgrafo Diogenes Lartius em seu Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres , a
respeito dos usos do termo sophists , nos diz que ele tambm j fora empregado para designar
um outro nome para os sbios (sopho , DL. 1, 12). Isto indica que em determinado 9
momento do registro da lngua grega esses termos eram tratados como intercambiveis, no
havendo nada de depreciativo seu uso, como observa Kerferd (2003, p. 46), o que permitiria o
seu emprego para se referir mulher da Mantineia e no discurso de Scrates no Protgoras . 10
No entanto, o que estamos chamando de uso positivo do termo sophists no seu o
emprego mais comum no conjunto do corpus platonicum . 11
No dilogo Sofista , j rapidamente referido, Plato faz o Estrangeiro de Elia buscar, a
partir do mtodo de dicotomias, a definio daquele que eles chamam comumente de sofista.
Procurando uma definio que desse conta da pluralidade de formas que esse gnero aparece,
Plato far o Estrangeiro de Elia encontrar sete definies at o fim do dilogo, sendo
somente a ltima aparentemente satisfatria. O gnero sofista aparecer como um caador
interesseiro de jovens ricos (1, 223b), mercador no atacado de ensinamentos, discursos e
virtude (2, 224c), mercador no varejo desses mesmos ensinamentos que ele no produz (3),
ou dos ensinamentos que ele mesmo produz (4, 224d-e), controversista erstico que adquire
8 Essa passagem parece uma pardia de uma outra que ser comentada oportunamente nesse trabalho em que Protgoras exalta a antiguidade da arte sofstica (Prot. 316d-e). Essa passagem de muito difcil compreenso, alguns enxergaram nessa vinculao da filosofia creta e a lacedemnia como um caso de ironia por parte de Scrates (TAYLOR, 1991, p. 144) 9 Outro nome para os sbios era sofista, e no somente para filsofos mas tambm para poetas - Cratinos, ao elogiar Homero e Hesodos em sua pea Arqulocos , d-lhes esse nome. (DL, 1. 12). 10 Neto tambm identifica na passagem do Protgoras referida uma meno a um uso positivo do termo sophistes (NETO, 2012, p. 183). 11 Na Repblica , L.X, 596d, no momento em que Scrates se refere s habilidades criadoras de um demiourgos que seria capaz de produzir todas as coisas, seu interlocutor, Glucon, diz admirado: um sbio (sophistn ) de espantar, esse a que te referes. Como observa a tradutora para a lngua portuguesa, Maria Helena da Rocha Pereira (2001), esse contexto guarda uma ambiguidade intencional no emprego de sophistes . Por um lado, esse demiourgos que Scrates se refere produz todas as coisas por imitao da realidade (596d-e) como o sofista (Sof. 268c-d), por outro, possvel identificar uma relao com o uso tradicional desse termo, em que ele aparece desprovido de qualquer sentido pejorativo. Sobre os variados usos do termo sophists , conferir a sua entrada em LIDELL & SCOTT, 1883, p. 1410.
9
dinheiro com disputas privadas (5, 225e-226a), refutador que purifica as almas das opinies
que impedem a aprendizagem (6, 231b) e, finalmente, depois de uma longa discusso,
chegando definio que daria conta da multiplicidade desse gnero, dir o Estrangeiro que o
sofista imitador do sbio, produtor de simulacro (7, 268b-d).
De todas as definies a sexta aquela em que tanto o Estrangeiro como Teeteto, seu
interlocutor no dilogo, mais relutam em enunciar. Isso ocorre devido o receio em atribuir tal
honra aos sofistas (Sof. 231a), uma vez que tal definio aparece como sendo a nica dentre
as at ento encontradas que revelam um bom aspecto do gnero sofstico, nada mais, como
dir o Estrangeiro, do que a estirpe da genuna sofstica (Sof . 231b). 12
Hspede. - Interrogam sobre as coisas que algum julga que diz, sem nada dizer; questionam com facilidade as opinies assim errticas e, conduzindo-as com argumentos para o mesmo alvo, comparam umas com as outras e demonstram que se acham em contradio consigo mesmas. Ora, vendo isso, os questionados irritam-se contra si prprios e amansam-se em relao aos outros; desse modo, liberam-se das suas prprias opinies, grandiosas e obstinadas, e esta liberao de todas a mais agradvel de ouvir e a mais segura para quem experimenta. (Sof. 230b-c)
Essa descrio relativa ao membro da nobre sofstica surpreendente no s pelo
carter positivo que ela conserva, no que diz respeito refutao que capaz de purificar as
almas daqueles que so refutados (230c-d), mas, principalmente, por guardar uma descrio
estranhamente semelhante vida levada por Scrates. Essa definio do gnero sofstico
parece perfeitamente atribuvel ao paradigma platnico do filsofo.
Um movimento muito recorrente nos dilogos de Plato a demonstrao da
necessidade de levantar uma definio que d conta de uma certa multiplicidade. No Mnon ,
Scrates pede ao personagem que nomeia o dilogo que lhe d uma definio da virtude
(aret , 71b). O Mnon, no entanto, enumera-lhe as virtudes do homem e da mulher (71e-72b).
No Teeteto , Scrates pede que Teeteto lhe apresente uma definio de conhecimento
(epistem , 146a), ele no entanto, como no caso anterior, traz-lhe uma srie de exemplos de
conhecimentos como a geometria, a arte do sapateiro (146c-d), por exemplo. Nos dois casos
Scrates, ironicamente, elogia o fato de ao pedir uma nica definio, seus interlocutores
apresentarem uma variedade delas (Teet . 146d-e; Mn. 72a-b). Scrates no discordaria que
12 Como referncia para a traduo dO Sofista utilizamos a traduo de Henrique Murachco, Juvino Maia Jr. e Jos Trindade dos Santos (2011).
10
cada uma delas sejam casos especficos da coisa por ele pedida, a objeo residiria no fato de
Scrates estar procura da unidade na multiplicidade, do carter nico que permite que todos
sejam predicveis por virtude (Mn . 72c), no primeiro caso, ou por conhecimento, no segundo
(Teet. 146e).
O Sofista , em alguma medida, a despeito da mudana de mtodo de argumentao , 13
apresenta um movimento similar a esses dois elencados. Esse gnero, constatam o Estrangeiro
e Teeteto, apresenta-se de uma forma muito variada, no sendo apreensvel com apenas uma
mo, mas apenas com duas (Sof. 226a), tamanha a multiplicidade com que esse gnero se
manifestou (Sof. 231c). Desse modo, a nobre sofstica que foi encontrada, apesar de no dar
conta do gnero como um todo, como tambm no do todas as outras definies reveladas,
ao menos diriam respeito a um aspecto existente da sofstica, mesmo que particular. Essa,
parece, aproximar-se-ia consideravelmente da figura de Scrates.
No entanto, ser que a stima, e ltima, definio, aquela que pretenderia dar conta da
multiplicidade das definies reveladas, tambm compreenderia a nobre sofstica? Se Plato
aproxima Scrates da sofstica ao encontrar a sexta definio, seria possvel admitir que
Plato ainda quer aproximar Scrates da sofstica considerando a definio mais definitiva?
No nosso interesse nesse momento investigar de maneira mais profunda relao da nobre
sofstica com as outras definies e, em particular, com a ltima, nem investigar de mais
detido o dilogo Sofista . De modo que suficiente para a discusso proposta considerar que,
mesmo no momento em que Plato parece inclinado a ceder aproximao de Scrates com a
sofstica por meio da sexta definio, o seu movimento o de, imediatamente, promover o seu
afastamento desse gnero. Scrates no produtor de simulacro, distinguir Plato, mas
efetivamente filsofo por estar inclinado busca pelas Formas e pela verdade . 14
Marina McCoy, na introduo de seu livro j referido, reconhecendo a dificuldade de
distino entre os filsofos e sofistas, explorada pelo prprio Plato em seus dilogos, afirma:
Os significados dos termos filsofo e sofista eram discutidos na poca que Plato escreveu; para ele, a afirmao de que Scrates um filsofo em vez de um sofista uma declarao normativa em vez de meramente descritiva. s vezes, os dilogos de Plato expressam alguma ambivalncia sobre se a distino pode ser feita to claramente como o prprio personagem de
13 O mtodo por dicotomias utilizado aqui pelo Estrangeiro difere bastante daquele utilizado por Scrates nos dilogos referidos. 14 a partir da inclinao s Formas e verdade que Plato definir o filsofo nos Livros V e VI da Repblica , a respeito disso conferir 475e e 485a, por exemplo.
11
Scrates deseja fazer parecer. Um olhar atencioso s mltiplas camadas dos dilogos revela um Scrates que s vezes se parece mais com seus oponentes do que ele gostaria de admitir ou vice-versa. (McCOY, 2010, p. 11)
No dilogo Protgoras , a confuso entre o filsofo e o sofista, aquilo que Jos
Amrico Pessanha, chamou de a questo mais dramtica do platonismo (PESSANHA,
1997, p. 22), ser tratado, em uma das passagens, de modo assaz cmico. Scrates e
Hipcrates dirigem-se casa de Clias, onde os sofistas estavam reunidos com seus alunos,
chegando sua porta, resolvem concluir um assunto que teria ocorrido no caminho cujo
contedo no nos relatado . Aps isso, Scrates nos relata:
Penso que o porteiro, um eunuco, ouviu nossa conversa, sendo de presumir que tivesse tomado ojeriza s visitas da casa, em virtude da grande afluncia de sofistas, pois, mal havamos batido, abriu a porta, e, vendo-nos, gritou para o nosso lado: PORT. - Ah! exclamou; mais sofistas! Ele est com todo o tempo tomado.
Assim dizendo, fechou decidido com as duas mos a porta no nosso rosto. Tornamos a bater; mas, sem abrir a porta, falou-nos do lado de dentro: PORT. - Oh, senhores! No me ouviste dizer que ele no tem tempo? SOC. - Mas, meu caro, lhe respondi, no estamos procura de Clias, nem somos sofistas. Tranquiliza-te; viemos procurar Protgoras. Anuncia-nos. (Prot. 314c-e) 15
Plato, nessa passagem, retrata comicamente a dificuldade de distino entre o sofista
e o filsofo. O eunuco prestava ateno na conversa de Scrates e Hipcrates, cujo contedo
no nos relatado e a expulso feita imediatamente, sem, ao menos, questionar as intenes
que os levaram at l. Plato faz, mais uma vez, repetindo-se quase exausto, Scrates
reafirmar a sua diferena com os sofistas, a despeito de alguma semelhana que poderiam
observar, e observaram, aqueles que os cercaram, semelhana reconhecida por Plato mas
rechaada pela necessidade da construo do filsofo.
A respeito de Scrates podemos levar em conta, por um lado, a diversidade de
imagens que nos chegaram pelas fontes que sobreviveram histria, seja de Aristfanes, seja
de Xenofonte ou de Plato, por outro lado, podemos considerar tambm a diversidade de
escolas e movimentos que foram gestadas no seio da companhia socrtica, Acadmicos,
15 Para citaes do dilogo Protgoras usaremos de referncia a traduo de Carlos Alberto Nunes, qualquer indicao contrria apontaremos por nota. A incluso das iniciais daqueles que tomam a palavra a partir da narrao de Scrates (vale lembrar que o dilogo narrado a um amigo como indica o seu prlogo, 309a-d) foi feita para facilitar a compreenso das interposies das falas, elas no esto presentes na traduo utilizada.
12
Cticos, Cnicos, Megricos e Cirenaicos, para ficarmos s com alguns. Podemos, alm disso,
nos ater somente o Scrates tal como conhecemos pelos dilogos de Plato. Scrates seria um
amigo das formas? Apenas um simulacro de sofista como parece querer Plato? Ou um sofista
daqueles pertencentes sua forma mais nobre?
Uma concluso advm imediatamente quase como necessria. Somente uma figura
polimorfa, como parece ter sido Scrates, poderia ser a fonte de tamanha diversidade, uma
figura, talvez, mais difcil de apreender do que o gnero sofista do dilogo Sofista . To
variada e escorregadia que se mostra inapreensvel, talvez, at mesmo com duas mos.
1.2) Os sofistas e o aspecto profissional No Protgoras , todos os grandes sofistas daquele perodo, Protgoras, Hpias e
Prdico, com a nica ilustre exceo de Grgias, esto recm-chegados em Atenas (Prot .
310c). Eles encontram-se hospedados na casa de Clias, um jovem proveniente de uma das
famlias mais ricas da cidade, cujo patronato levou-o a ser conhecido por suas vultosas
contribuies financeiras aos sofistas . Plato, inclusive, faz Scrates afirmar em sua 16
Apologia que ele, sozinho, teria dado mais dinheiro aos sofistas que todos os outros atenienses
juntos (Apol. 20a). A escolha pelo cenrio da casa de Clias fundamental para Plato nesse
dilogo pois, com ele, refora a construo da atmosfera intelectual de Atenas da segunda
metade do sculo V a. C., fundamental para as suas intenes no dilogo (GUTHRIE, 1988,
p. 217). , tambm, por meio do patronato desses mecenas que os sofistas vindos de toda
parte do mundo grego se estabelecero em Atenas. Kerferd, no seu O Movimento Sofista ,
afirmar que, nesse perodo, no auge da Era de Pricles, Atenas se tornar um importante
centro para onde os grandes sofistas daquele perodo convergiam (KERFERD, 2003, p. 32).
Os sofistas vieram de toda parte do mundo grego e muitos, embora nem todos, continuaram a viajar por toda parte em funo de sua atividade profissional. Entretanto, todos vieram a Atenas, e claro que Atenas, por uns sessenta anos, na segunda metade do sculo V a.C., era o verdadeiro centro do movimento sofista. (KERFERD. 2003. p. 32).
Atenas tornou-se especialmente atrativa para esses sbios, afirma Kerferd, devido a
uma srie de mudanas gradativas que foram ocorrendo durante o comando de Pricles. Em
16 Conferir o verbete Cllias III em SMITH, 1867, p. 567
13
primeiro lugar, Kerferd destaca a pujana econmica alcanada por Atenas, caracterizada
principalmente por um extenso programa de construo de prdios pblico, restaurando
aqueles destrudos pelos Persas (KERFERD. 2003. p. 32). Jaeger, no Paideia , tambm atribui
considervel importncia figura de Pricles para a construo do cenrio institucional que
garantir o solo para o movimento sofista. Com Pricles , aps a vitria nas guerras contra os
Persas, Atenas amplia os horizontes citadinos a partir da sua incluso na dinmica
econmica, comercial e poltica das demais cidades gregas (JAEGER, 2001, p. 339).
Por outro lado, destaca Kerferd, dois princpios da democracia ateniense, cujos
principais contornos foram traados desde Slon, tambm foram fundamentais para o
surgimento da demanda pelos servios dos sofistas especialmente na cidade de Atenas, a
saber:
(1) que o poder deveria estar com povo como um todo e no com uma pequena parte do conjunto dos cidados, e (2) que os cargos com direito de aconselhar e agir em nome do povo deveriam ser confiados aos mais competentes e mais capazes de desempenhar essas funes (KERFERD. 2003. p. 33).
Os sofistas, desse modo, supririam uma demanda social e poltica da sociedade
ateniense (KERFERD. 2003. p. 33). A educao desses chefes, que deveriam erguer-se dos
demais em competncia, despontaria, assim, como a finalidade do movimento sofista no
mbito da educao (JAEGER, 2001, p. 339) . Hipcrates, o jovem amigo de Scrates que no 17
Protgoras pretende juntar-se ao sofista com o objetivo de tornar-se uma figura de relevo
(ellgimos ) na cidade (Prot. 316b), como diz o filsofo ao apresent-lo a Protgoras, afirma
que o sofista conhecedor do tornar hbil no falar (poisai deinn lgein , Prot. 312d) aqueles
que a ele se juntam. A habilidade do falar, como evidenciam essas passagens, era um
elemento fundamental do elevar-se frente aos outros cidados, uma relevncia que tem uma
conotao especificamente poltica. A atividade poltica, tal como foi experimentada em
Atenas, dependia dessa capacidade que os sofistas ofereciam queles que poderiam pag-los.
Sobre o aspecto do lgos na atividade poltica, Jean Pierre Vernant nos diz que:
17 J desde o comeo a finalidade do movimento educacional comandado pelos sofistas no era a educao do povo, mas a dos chefes. No fundo no era seno uma nova forma de educao dos nobres, dir Jaeger na passagem mencionada.
14
o que implica o sistema da polis primeiramente uma extraordinria preeminncia da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder. Torna-se o instrumento poltico por excelncia, a chave de toda autoridade no Estado, o meio de comando e de domnio sobre outrem. (VERNANT, 1998, p. 41)
exatamente por conta da importncia que o domnio do logos , do discurso, adquire
na poltica que os sofistas conquistam tamanha importncia principalmente na segunda
metade do sculo V.
Protgoras considerado o fundador do movimento sofista, tendo sido o primeiro,
segundo Plato, a apresentar-se com o nome sofista (sophists ) e a cobrar pelo seu ensino
(Prot. 317b; 349a). De fato, Plato faz Protgoras sustentar que a sua atividade descende de
uma nobre tradio, vinculando Homero, Hesodo e Simnides, por um lado, e, por outro, at
mesmo Orfeu e professores de ginstica e msica (Prot. 316d-e) sofstica, numa bela cena 18
de apologia a essa ocupao. A vinculao de tais figuras sofstica faz-se possvel, por um
lado, por conta dos variados usos que termo sophists possui na literatura grega, que,
principalmente antes do tempo de Plato, eram fundamentalmente positivas, como nos
referimos anteriormente. Por outro lado, e, talvez, mais significativamente, possvel atribuir
essa nobre antecedncia porque, para Protgoras, ser sofista est estreitamente relacionado
tarefa de educar homens, pois ele aquele que, sem esconder-se em alguma arte guisa de
cobertura (parapetsmasin , Prot. 316e), declara ser sofista e educar homens (homolog te
sophists enai ka paideein anthrpous , Prot. 317b). Todos esses homens, como sabemos,
estavam vinculados, de uma forma ou de outra, tarefa educativa. Jaeger, numa passagem
com explcita inspirao nessa fala de Protgoras, dir:
Sem compreenderem nada desta investigao separada da vida, os sofistas vincularam-se tradio educativa dos poetas, a Homero e a Hesodo, a Tegnis, a Simnides e a Pndaro. S podemos compreender claramente a sua posio histrica se os situarmos no desenvolvimento da educao grega, cuja linha definida por aqueles nomes. (JAEGER, 2001, p. 345)
18 Protgoras dir na passagem referida: Alis, sou de opinio que a arte do sofista muito antiga, mas que os homens das outras eras que a praticavam, com medo dos percalos da profisso, recorriam a subterfgios para escond-la, valendo-se alguns, como Homero, Hesodo e Simnides, da poesia; outros mais, como Orfeu e seus discpulos, dos mistrios e orculos. Sim, alguns, conforme observei, serviram-se at mesmo da arte da ginstica, tal como o tarentino Icos, e tambm esse sofista ainda vivo, que no cede a palma a nenhum outro, Herdico, o selembriano, primitivamente de Mgara. A msica serviu de pretexto para Agtocles, sofista eminentssimo; assim como Pitclides, de Ceos, e para muitos outros
15
Com efeito, se esse vnculo de Protgoras com essa tradio to evidente, em que
mbito residiria a originalidade da atividade desempenhada por ele? Protgoras pode ser
considerado uma figura de ruptura na medida em que com ele que a atividade educativa
comea a constituir-se em torno de uma ocupao efetivamente profissional, estabelecida
entre tantas outras, cujo instituio da cobrana pelo ensino, iniciada por ele, apenas um
indcio disso (Prot. 349a). O Protgoras a fonte fundamental, afirma Kerferd (2003, p.
34-5), para identificarmos que, a partir de Protgoras, fica estabelecido no meio sofstico uma
dupla atividade, alm de instruir esses jovens ricos que querem se destacar politicamente,
caberia ao sofista formar, dentre seus discpulos, aqueles que se tornariam efetivamente
sofistas profissionais. Isso o que indica, por exemplo, o dilogo entre Scrates e Hipcrates
(Prot. 312a-b), que estudaremos oportunamente, e o comentrio feito pelo filsofo ao
ingressar na casa de Clias, quando, ao nomear os presentes que escutavam Protgoras,
refere-se a Antmeros de Mende como o mais famoso dos discpulos de Protgoras, que
estudava com ele para seguir a profisso de sofista (Prot. 315a).
Essa ocupao, no entanto, ao mesmo tempo que renderia reconhecimento e estima
aos sofistas por parte de alguns contemporneos, outros, nutriro uma forte repulsa a esses
pensadores . Sobre esses diferentes sentimentos direcionados aos sofistas, diz Kerferd: 19
Eles [os sofistas] faziam parte do movimento que estava produzindo a Nova Atenas de Pricles, e era como tal que foram, ao mesmo tempo, bem-vindos e atacados. Eles atraam o entusiasmo e o dio que regularmente advm queles que esto profundamente envolvidos num processo de fundamental mudana social. A mudana que estava se realizando era, ao mesmo tempo, social e poltica, de um lado, e intelectual, de outro (KERFERD, 2003, p. 44).
19 Talvez seja nito, feito personagem por Plato no dilogo Mnon (cf. 90b e ss.), o melhor exemplo do dio aos sofistas e ao que eles representavam naquele perodo. Curiosamente, ele um dos acusadores de Scrates no processo que levar a sua morte.
16
Captulo 2 As imagens de Scrates e Protgoras no Protgoras
2.1) Scrates e a necessidade do mdico da alma
O personagem Hipcrates desempenha um papel fundamental no desenvolvimento
dramtico do Protgoras , pois ele quem se dirige a Scrates impelindo-o a ir at a manso
de Clias, onde os sofistas estavam hospedados proferindo suas lies. Quando Hipcrates
acorda Scrates de seu sono, ainda durante a madrugada, e lhe conta que Protgoras
encontra-se em Atenas, o filsofo no demonstra surpresa, uma vez que ele j sabia dessa
notcia (Prot. 310b-c). Scrates, apesar de saber que Protgoras estaria em Atenas, no
demonstra nenhum interesse especial nisso. O filsofo, no instante em que se segue ao
discurso de Protgoras (328d-e), afirma estar agradecido com o fato de Hipcrates t-lo
impelido a lev-lo at l, dando a entender que, caso ele assim no tivesse agido, Scrates no
procuraria Protgoras por mais que ele estivesse em Atenas.
O jovem amigo de Scrates, no entanto, diferentemente do filsofo, fica
completamente eufrico com a descoberta da chegada de Protgoras Atenas, j que a ltima
vez que o sofista estivera na cidade ele ainda era muito jovem (Prot. 310e). Tal euforia se
converte em um verdadeiro afobamento, pois Hipcrates, assim que informado por seu
irmo da estadia do sofista na cidade decide procur-lo imediatamente. O jovem apenas recua
da deciso quando percebe que j era noite, sendo, por isso, melhor esperar at o dia seguinte
para ir ao encontro do sofista. J no dia seguinte, Hipcrates no espera nem o despontar do
sol para sair de casa, tamanha a sua pressa para encontrar o eminente estrangeiro (Prot.
310b-c).
A imediatez dessa deciso motivo, em alguns passos seguintes, de censura por parte
de Scrates. Mesmo que Scrates tenha sido procurado aos berros (Prot. 310b) por Hipcrates
antes deste ir ao sofista, sua inteno pedir que seu amigo apresente-o ao estrangeiro que
est de passagem por Atenas, uma vez que ele ainda no o conhecera (Prot. 310e), e no para
aconselhar-se com ele sobre a sua inteno. Hipcrates no teria, na verdade, ido
aconselhar-se com qualquer outro sobre a deciso de procurar Protgoras, como afirma
Scrates:
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() no te aconselhaste nem com teu pai, nem com teu irmo, nem com nenhum de ns, teus familiares, para decidirmos se deverias ou no confiar tua alma (epitrepton [...] tn sn psychn ) a esse estrangeiro recentemente chegado, mas tendo, como disseste, ouvido ontem noite falar dele, vieste at aqui de manhzinha, no para entabularmos conversao e te aconselhares comigo, sobre se deves entregar-te a ele ou no (epitrpein sautn aut ete m ), porm disposto a gastar tua fortuna e a dos amigos, visto j teres resolvido que preciso, a todo custo, frequentar (syneston ) Protgoras, que no conheces, conforme dizes, e com quem nunca conversaste (Prot . 313a-b).
Apesar disso, Scrates se dispe a examinar dialeticamente a deciso de Hipcrates,
colocando sua convico prova. Ele dir:
- Ainda no, meu caro; muito cedo. Porm levantemo-nos e vamos para o ptio, onde ficaremos a passear e conversar at clarear o dia; depois iremos. (...). Depois de dizer isso, levantamo-nos e fomos para o ptio. Ento, para pr prova a resoluo de Hipcrates, pus-me a interrog-lo sem desviar dele a vista [test-lo, examin-lo, dieskpoun ]. (Prot . 311a-b).
Ainda cedo para Scrates no s porque o dia ainda no havia raiado, mas porque a
deciso no est devidamente refletida e analisada. Hipcrates jovem e a deciso por
juntar-se (syneston ) a algum no qual no tem nenhuma experincia uma deciso muito
perigosa, como advertir Scrates, j que ela envolve a entrega de sua alma (epitrepton tn
sn psychn ) aos cuidados de algum desconhecido. Desse modo, o elemento luminoso,
referido a partir da imagem do sol que clarear a cena, muito importante. Desse elemento
dependem os movimentos fundamentais nesse incio de dilogo: se, por um lado, Scrates e
Hipcrates precisam caminhar para esperar o sol despontar no horizonte iluminando toda a
cena exterior, por outro lado, Scrates precisa lanar luz, a partir do mtodo dialtico, nas
intenes que movem o jovem Hipcrates a procurar ansiosamente os ensinamentos de
Protgoras. Como Jos Amrico Pessanha nos fala, o dia nasce dentro e fora da alma do
interlocutor de Scrates, porque enquanto o sol ilumina a cena exterior, Scrates,
interrogando, vai iluminando o interior de seu amigo (PESSANHA. 1997, p. 23).
A iluminao das intenes de Hipcrates dever, portanto, pressupor a demonstrao
do perigo que Hipcrates se coloca ao se envolver com algum que desconhece. Ao interrogar
seu jovem amigo, Scrates quer saber se ele conhece ou ignora que espcie de homem ele
18
encontrar ao ir at o sofista de Abdera e se ele sabe o que ele se tornar ao instruir-se com
ele. Se o procurado fosse Hipcrates de Cs, afirmam, ele seria procurado por ser mdico e o
jovem Hipcrates, ao procurar instruir-se com seu homnimo, teria interesse em tornar-se
tambm mdico. Da mesma forma que o mesmo ocorreria com Policlito de Argos ou Fdias
de Atenas, no caso da escultura. Portanto:
SOC. Imaginemos, agora, que algum nos perguntasse, ao perceber nosso empenho na consecuo desse projeto: Scrates e Hipcrates, dizei-me que espcie de homem esse Protgoras a quem tencionais oferecer dinheiro? Que lhe responderamos? (...) HIP. - Sofista, Scrates, respondeu; assim que lhe chamam. SOC. - na qualidade de sofista, por conseguinte, que lhe vamos dar dinheiro? HIP. - Perfeitamente SOC. - E se a mesma pessoa insistisse em perguntar-se: E que pretendes ser com os ensinamentos de Protgoras? Ao responder-me, enrubesceu - pois j estava ficando suficientemente claro para que eu pudesse ver-lhe o rosto: HIP. - Por consequncia com o que dissemos antes, claro que para ser sofista. SOC.. - Pelos deuses! lhe disse; e no te envergonhas (aischynoio ) de te apresentares aos helenos na qualidade de sofista? HIP. Muito, Scrates, por Zeus, se tiver de dizer o que penso. (Prot . 311d-312a)
O dia, de fato, j comeava a despontar e, com o dia, Hipcrates tambm j comeava
a se dar conta da importncia da deciso que est tomando. Scrates, mesmo sem ter sido
incitado para isso pelo jovem Hipcrates, j comeara a lanar luz sobre as intenes de seu
amigo que enrubescera, esse enrubescimento j uma indicao desse dar-se conta.
Protgoras era um sofista e Hipcrates, ao juntar-se a ele, viria a se tornar tambm um sofista
se esse caso se assemelhasse aos que Scrates enumerou, possibilidade de que o jovem
Hipcrates se envergonha. No entanto, o interesse de Hipcrates ainda no estava
inteiramente esclarecido, para tal, Scrates precisar, primeiro, investigar a natureza do ensino
que seu amigo persegue ao procurar Protgoras, de modo a saber se seria, de fato, vergonhoso
fazer parte de seu crculo.
Hipcrates, afirmar Scrates, no conviver com Protgoras para adquirir uma
tcnica (ouk ep tchne ), tal como ocorreria se ele fosse se tornar um profissional (demiurgs ).
Seu interesse nos servios desses sbios itinerantes ser similar quele presente no contexto
19
de sua aprendizagem com o mestre de letras, de msica e de ginstica, Hipcrates procurar
Protgoras para adquirir cultura (paidea ), tal como convm a um homem livre (eletheron ,
Prot. 312a-b). O jovem amigo de Scrates, portanto, no procura Protgoras para tornar-se
sofista, mas para receber essa educao secundria seletiva, destinada aos jovens ricos que
possuam anseios de ingressar na vida pblica, como dir Kerferd (2003, p. 34) inspirando-se
nesse dilogo.
Se Scrates j conseguiu esclarecer a natureza da educao que seu amigo receber
por meio desses profissionais, uma outra questo segue em aberto: Hipcrates e Scrates
ainda no investigaram a natureza desse profissional, a pergunta o que o sofista?, esse a
que vais entregar a sua alma (epitrepton [...] tn sn psychn , 312c) ainda no foi feita e a
isso que eles precisam se dedicar nesse momento.
SOC. Pois resolveste entregar tua prpria alma aos cuidados de um homem que, conforme disseste, sofista; mas o que seja, de fato, sofista, muito me admiro se o souberes. Ora, se ignoras isso, tambm no poders saber a quem entregas a tua alma (paraddos tn psychn ), nem se para teu bem ou para o mal. HIP. Penso que sei, respondeu. SOC. Ento dize: na sua opinio, que um sofista? HIP. A meu parecer, disse, como o prprio nome indica (tonoma lgei ), um indivduo cheio de sabedoria (toton enai tn tn sophn epistmona ). (Prot. 312c).
A resposta de Hipcrates no est errada, e Scrates sabe disso, o que o incomoda a
sua falta de preciso. Hipcrates relaciona o nome sophists com o adjetivo sophs sabio
com a raiz -ist de epistasthai , conhecer , da a sua resposta com tom de obviedade ao
referir-se sobre a indicao produzida pelo prprio nome, ou seja, a aproximao garantida
pela prpria etimologia da palavra, de modo que Hipcrates a entende em sua relao
imediata com sophs , sentido anterior ao seu sentido pejorativo que foi se constituindo,
principalmente, a partir dos sculos V e IV a.c . Para Scrates, no entanto, isso pouco, a 20
resposta ainda est em termos demasiadamente gerais.
Ser sbio em coisas sbias seria uma atribuio cabvel tambm a pintores ou
carpinteiros, mas, para esses, identificamos facilmente o domnio dessa sapincia. E com
relao ao sofista, sobre que tipo de coisas um sofista sbio? Ou de que tipo de produo ele
20 Conferir a nota 8, p. 509, traduo do Protagoras de GUAL, RUIZ & INIGO (1985) e Kerferd, O sentido do termo sofista in : O movimento Sofista (KERFERD. 2003. p. 45-74).
20
conhecedor? Dir Hipcrates, ingenuamente, que um sofista conhecedor do domnio de
tornar hbil no falar (epistten to poisai deinn lgein , Prot. 312d). Essa resposta, mais 21
uma vez, ser insuficiente para nosso filsofo, afinal um citarista tornaria algum hbil
(deinn ) no falar a respeito do tocar ctara, ou seja, a respeito daquele domnio em que ele
tambm hbil. Pergunta Scrates a seu amigo: Qual a coisa sobre a qual ele prprio sbio
e torna sbio seu discpulo? (Prot. 312e). A essa pergunta crucial Hipcrates no mais
capaz de responder.
Essa dvida, que no ser resolvida positivamente no dilogo entre Scrates e
Hipcrates, o que motivar o desenvolvimento de todo a discusso entre Scrates e
Protgoras no momento seguinte do dilogo. Se o contedo da educao promovida pelos
sofistas e, em especial, por Protgoras s reaparecer na discusso quando Scrates encontrar
Protgoras na manso de Clias, por ora, Scrates se ocupar em discorrer com Hipcrates
sobre a natureza desse tipo de viajante que vende seus servios de ensino. Ser pelo
desconhecimento do que viria a ser esse tipo que o seu amigo pretende juntar-se, que Scrates
elaborar a sua advertncia.
Scrates dir que o sofista nada mais do que um comerciante (mporos ) de
mercadorias para alimentar a alma (aph n psych trphetai , Prot. 313c), de modo que esses
alimentos com os quais a alma se nutre seriam conhecimentos (mathmasini , Prot . 313c).
Dessa forma, afirma Scrates, Hipcrates, ao ignorar a natureza deste a que pretende
juntar-se, coloca em perigo (kndynon ) a sua alma, pois a compra de mercadorias relativas
alma mais nociva que a compra relativa aos alimentos do corpo, uma vez que, com esses,
possvel transport-los em vasilhas at um conhecedor do assunto antes de passarem para o
corpo, ou seja, antes de serem ingeridas (Prot. 314a). Com relao aos alimentos de que a
alma se nutre, ao contrrio, a ingesto das mercadorias ocorre no momento mesmo da
compra e no podem, de forma alguma, ser transportados para uma conferncia posterior
(Prot. 314b). Se os alimentos por acaso forem malficos, esse malefcio, forosamente,
afetar o comprador no ato da compra, caso no sejam detectados anteriormente os seus
efeitos.
21 O termo grego deinon dotado de uma ambiguidade, pode designar tanto hbil, quanto terrvel, essa ambiguidade, inclusive, discutida no prprio Protgoras em um momento em que Scrates recorre cincia divina de Prdico (cf. 340e-341). Carlos Alberto Nunes possivelmente optou traduzir deinon nessa passagem por hbil, eliminando a ambiguidade, pelo seu uso para se referir ao citarista na fala que o segue.
21
Como o sofista um mercador, ele no se furtar em tecer elogios sobre as
mercadorias de que dispe para a venda, mesmo que ignore se seus efeitos sero benficos ou
nocivos, tal como o faz tambm um comerciante de alimentos para o corpo (Prot. 313d). Os
compradores desses produtos, afirma Scrates, caso tambm no sejam capazes de diferenciar
a natureza vantajosa ou prejudicial dessas mercadorias, tornam a transao ainda mais
perigosa.
() os que vendem e mercadejam, sem cessarem de enaltec-los, para os que se mostram desejosos de adquiri-los. Pode dar-se o caso, caro amigo, de haver muitos que no saibam quais sejam das mercadorias venda as teis ou as nocivas para a alma, como tambm no o sabem os que as adquirem, salvo se houver entre eles algum mdico da alma. No caso de conheceres o que neste particular vantajoso ou prejudicial para a alma, poders comprar conhecimentos sem perigo nenhum, no s de Protgoras como de qualquer outro sofista (Prot. 313d-e)
Os comerciantes, portanto, sejam de quais alimentos forem, ocupam-se em elogiar
seus produtos sejam eles nocivos ou benficos. Caso sejam nocivos, isso ocorreria no por
uma m-f ou desvio moral, mas por uma ignorncia inerente queles que no so
conhecedores das propriedades desses alimentos, mas apenas seus vendedores. Os
compradores deveriam, portanto, resguardar-se, afirma, de compr-los apenas se estiver em
companhia de algum mdico, seja do corpo, seja da alma, no caso dos mercadores como os
sofistas.
Jos Cavalcante de Souza, ao analisar essa passagem, afirma que os intrpretes
apressam-se ao enxergar a incisivos termos de confirmao da venalidade dos sofistas.
Scrates, segundo ele:
fala to somente de venalidade das mercadorias espirituais e no dos que se atrevem a vend-las, e ao mximo que da se pode inferir o reconhecimento da grave responsabilidade, ou do risco temerrio, dos que assumem tal encargo. () Quanto aos sofistas do nosso dilogo, longe de arrolar em uma censura direta e pessoal, que de antemo tiraria todo interesse de uma conversa com eles, Scrates se prontifica a ser o porta-voz do jovem Hipcrates, e a consult-los sobre esse delicado problema. (SOUZA. 1969. p. 73-4)
Os sofistas, portanto, nesse contexto, estariam parcialmente livres de uma crtica mais
incisiva. No mximo, Scrates poderia dizer que os sofistas, ao lidarem com ensinamentos
22
que incidiriam diretamente na alma dos aprendizes, no deveriam agir de maneira to
negligente, desconhecendo a natureza desses produtos que vendem. Dessa afirmao Scrates
no decorre, como ressalta o autor, uma interdio pura e simplesmente da sofstica. A prpria
relao de Scrates com Prdico de Cs, mencionada em muitos dilogos, indica que o
filsofo teria tornado-se em algum momento aluno do sofista, aprendendo com ele sobre a
correo dos nomes (cf. Prot. 341a; Crt . 384b e Mn . 96d).
Disso podemos depreender que, se os ensinamentos dos sofistas podem ser
prejudiciais, eles tambm podem ser benficos, no entanto, faz-se necessrio ressaltar, se o
forem, os sofistas seriam, tambm menos dignos de grandes elogios, pois seu benefcio
decorreria de uma potncia que o sofista tambm no controlaria. Esse benefcio, poderamos
dizer, seria uma decorrncia casustica do contedo que fora ensinado e no de uma relao
necessria que se seguiria a seu ensino. O maior mrito, poderamos afirmar seguindo esse
raciocnio, residiria no no sofista que seria um mercador desses conhecimentos, mas no
mdico da alma que saberia identificar, dentre os alimentos para a alma ofertados pelo
sofista, aqueles que causaro benefcios e aqueles malefcios.
Por mais que Scrates afirme que no esse mdico da alma que analisar o benefcio
ou malefcio dos ensinamentos dos sofistas, quando ele diz que depois de conversar com
Protgoras, ambos devem examinar (skopmetha ) com os mais velhos (presbytron ) a
respeito dessa questo, uma vez que eles so ainda jovens (ti neoi ), o desenvolvimento do
dilogo parece querer nos indicar o contrrio. Scrates no se limita a apresentar Hipcrates a
Protgoras como o jovem queria, mas pe prova as posies que o sofista assume ao longo
do dilogo, tanto quando expe suas objees possibilidade do ensino da virtude, como nas
perguntas que faz a respeito dos pontos do mito e do discurso que o sofista narrar (conf.
Prot. 320d 328d).
Alm disso, importante destacar, o dilogo narrado por Scrates a um amigo no
nomeado instantes aps ele sair do encontro com Protgoras, como nos mostra o seu prlogo
(Prot. 309a-d). Scrates no se limita a tecer elogios ao encontro, referindo-se a Protgoras
como o mais sbio do nosso tempo (Prot. 309d), sapincia tamanha que teria ofuscado em
beleza a presena de Alcebades, destacado por sua estonteante beleza, uma vez que quem
mais sbio no poderia deixar de ser mais belo (Prot. 309c). Scrates no se censura de narrar
este encontro imediatamente ao amigo, apesar de afirmar a necessidade de consultar-se com
algum mais velho sobre o que eles teriam ouvido no dilogo (Prot. 314b).
23
Considerando o que foi exposto, possvel afirmar que, a despeito da indicao
contrria, Scrates desempenha o papel desse mdico da alma que capaz de identificar
dentre os ensinamentos dos sofistas quais sero benficos e quais sero prejudiciais. Sob certo
aspecto, esse o papel que Scrates imbui-se no dilogo que travar com Protgoras aps a
exposio do mito e do discurso.
2.2) Protgoras, professor da aret humana 2.2.1) O programa de ensino de Protgoras e as objees de Scrates
O sofista Protgoras entra efetivamente em cena no dilogo que leva seu nome a partir
da chegada de Scrates e Hipcrates na casa de Clias, local em que ele, Hpias e Prdico
estavam hospedados para realizar as suas concorridas lies. Ao entrar, Plato desenvolve a
partir do personagem Scrates uma precisa descrio da maneira com que esses ilustres
hspedes estavam dispostos neste cenrio, em uma das passagens mais bonitas de todo o
dilogo. Hpias descrito respondendo, aparentemente, algumas perguntas sobre astronomia e
natureza dos corpos celestes, enquanto Prdico de Ceos representado ainda deitado, coberto
por cobertores, j dissertando sobre algum assunto que no fora possvel discernir, devido a
sua voz grave (Prot. 315b-316a).
Protgoras, no entanto, aquele que ocupa o lugar de maior destaque na descrio
dessa cena introdutria. Junto a ele reunia-se uma srie de cidados de Atenas, dentre os quais
encontra-se o anfitrio, Clias, e os filhos de Pricles, Xantipo e Pralo, alm de muitos
estrangeiros que Protgoras arrebanhara das cidades por onde passara, atraindo-os com sua
voz, como fazia Orfeu, e eles, enfeitiados, o seguiam (Prot. 315a), que juntos formavam
uma espcie de coro (315b), a mover-se de modo a nunca colocar-se na frente de Protgoras,
que andava de um lado para o outro.
Nesse coro o que mais me deleitou foi ver a deferncia com que todos se esforam para no incomodar Protgoras com lhe tomar a frente. Todas as vezes que ele e seus acompanhantes se voltavam, em perfeita ordem e preciso os ouvintes se apartavam para a direita e para a esquerda, e, formando um crculo, numa execuo admirvel, vinham colocar-se de novo por trs dele. (Prot. 315b)
24
evidente a preciso quase teatral que tal descrio contm. Ao l-la somos
imediatamente lanados formulao do cenrio que essas palavras procurar reproduzir.
Taylor sugere, por conta disso, que essa descrio faz referncia s representaes dos sofistas
na comdia desse tempo, talvez trazendo lembrana a pea Os Aduladores de upolis,
representada em 421, que tem como cenrio a mesma casa de Clias e Protgoras e
Alcebades como personagens ou a pea Knnos de Ameipsias, representada em 423, que
.tem um coro de pensadores e Scrates como personagem (TAYLOR, 1996, p. 72. Apud
NETO, 2011, p. 85, n.113).
Sob um outro aspecto, a comparao de Protgoras com Orfeu igualmente
interessante para ilustrar o magnetismo exercido pelo sofista nos lugares por onde passava.
Orfeu um personagem mtico representante de uma fase originria da poesia grega, cuja lira,
presente de Apolo, exercia poderes de encantamento. Tal poder teria possibilitado que os
Argonautas atravessassem o oceano sem serem naufragados pelas sereias (SMITH, 1861, vol.
III, p. 59). Orfeu ser novamente citado no dilogo, dessa vez pelo prprio Protgoras, um
pouco mais adiante, quando ser includo entre os precursores ancestrais da arte do sofista
(tn sophistikn tchnen ), numa passagem j referida (Prot. 316d).
J estando no cenrio em que transcorrer o restante do dilogo, Scrates pe-se a
chamar Protgoras, coloc-lo a par daquilo que teria o levado at ali. Ele viera com o intuito
de apresentar-lhe o jovem Hipcrates, que intenciona tornar-se seu discpulo. Na conversa
inicial entre Scrates e Hipcrates, o jovem afirmava a necessidade de ter seu amigo ao seu
lado para apresent-lo a Protgoras. Como ele era ainda m