UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR
PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO
CURSO DE MESTRADO EM AVALIAO DE POLTICAS PBLICAS
MARIA VANDERLI CAVALCANTE GUEDES
AVALIAO DO PROGRAMA NACIONAL DE CRDITO FUNDIRIO
MUNICPIO DE MORADA NOVA-CE
FORTALEZA
2010
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MARIA VANDERLI CAVALCANTE GUEDES
AVALIAO DO PROGRAMA NACIONAL DE CRDITO FUNDIRIO
MUNICPIO DE MORADA NOVA-CE
Dissertao apresentada Coordenao do Curso de Mestrado Profissional em Avaliao de Polticas Pblicas, da Universidade Federal do Cear, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre.
rea de concentrao: Polticas pblicas e mudanas sociais.
Orientador: Prof. Dr. Francisco Amaro Gomes de Alencar.
FORTALEZA
2010
G958a Guedes, Maria Vanderli Cavalcante
Avaliao do Programa Nacional de Crdito Fundirio Municpio de Morada Nova-CE. / Maria Vanderli Cavalcante Guedes . Fortaleza (CE), 2010. 141f.: il.; 31 cm. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Cear. Programa de Ps-Graduao em Avaliao de Polticas Pblicas, Fortaleza (CE), 2010. Orientao: Prof. Dr. Francisco Amaro Gomes de Alencar.
1- CRDITO AGRCOLA - MORADA NOVA CE. 2- REFORMA AGRRIA - MORADA NOVA CE. 3- TRABALHADORES RURAIS - MORADA NOVA CE ; 4- COMUNIDADES AGRCOLAS - MORADA NOVA CE. 5- PROGRAMA NACIONAL DE CRDITO FUNDIRIO. I - Alencar, Francisco Amaro Gomes (Orient.). II - Universidade Federal do Cear. Programa de Ps-Graduao em Avaliao de Polticas Pblicas. III - Titulo. CDD: 332.71098131
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MARIA VANDERLI CAVALCANTE GUEDES
AVALIAO DO PROGRAMA NACIONAL DE CRDITO FUNDIRIO
MUNICPIO DE MORADA NOVA -CE
Dissertao apresentada Coordenao do Curso de Mestrado Profissional em Avaliao de Polticas Pblicas, da Universidade Federal do Cear, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Avaliao de Polticas Pblicas. rea de concentrao: Polticas pblicas e mudanas sociais.
Aprovada em: _20__/_4__/_2010__
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Amaro Gomes de Alencar (Orientador)
Universidade Federal do Cear UFC
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Francisca Silvnia de Sousa Monte
Universidade Federal do Cear UFC
___________________________________________________________________
Dr. Jos Lima Castro Jnior
Secretaria de Desenvolvimento Agrrio - SDA
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A minha me, Anunciada, e ao meu filho, Marcelo, os dois grandes amores da minha vida.
memria do meu inesquecvel pai, Pedro Guedes Pereira, que, se aqui estivesse, mesmo com simplicidade e pouca instruo, saberia valorizar meu esforo, como sempre fez.
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AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom da vida e pela minha alegria de viv-la.
A minha famlia, meu porto seguro, pela amizade e confiana.
s Prof.as Dr.as Maria Vilani Cavalcante Guedes e Neide Cavalcante Guedes,
minhas irms, a quem tanto amo e de quem muito me orgulho, pela amizade e sugestes
valiosas para a realizao deste trabalho.
Ao Dr. Dilcio Dantas Guedes, meu sobrinho amado, e a minha afilhada e tambm
sobrinha, Lia, pela amizade, pacincia e valiosa contribuio para a concretizao deste
estudo.
Ao Prof. Dr. Francisco Amaro Gomes de Alencar, amigo e orientador, que,
segura e confiantemente, acreditou nas minhas possibilidades e me deu toda a liberdade de
agir.
banca examinadora, nas pessoas da Prof. Dr. Francisca Silvnia de Sousa
Monte e Dr.Jos Lima Castro Jnior, pelas valiosas contribuies.
E a todos os professores do Mestrado, pelo aprendizado proporcionado durante o
curso.
Prof. Dr. Silvia Maria de Freitas, pela amizade, apoio, colaborao e
disponibilidade para ajudar no desenvolvimento deste trabalho.
Aos meus colegas de turma, especialmente a Aglais, Osias, Ccero, Sandra e
Socorro. Valeu a convivncia e a amizade.
funcionria Marta, pelo apoio e disponibilidade aos alunos.
Aos agricultores e seus familiares, pela colaborao na elaborao deste estudo.
Aos profissionais que trabalham com o PNCF, pelo apoio e colaborao.
Universidade Federal do Cear, pela valiosa oportunidade.
EMATERCE, pela oportunidade de crescimento pessoal e profissional.
E a todos os que, de alguma forma, contriburam para o alcance desta meta.
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O cntico da terra
Cora Coralina
Eu sou a terra, eu sou a vida.Do meu barro primeiro veio o homem.De mim veio a mulher e veio o amor.Veio a rvore, veio a fonte.Vem o fruto e vem a flor.Eu sou a fonte original de toda vida.Sou o cho que se prende tua casa.Sou a telha da coberta de teu lar.A mina constante de teu poo.Sou a espiga generosa de teu gadoe certeza tranqila ao teu esforo.Sou a razo de tua vida.De mim vieste pela mo do Criador,e a mim tu voltars no fim da lida.S em mim achars descanso e Paz.Eu sou a grande Me Universal.Tua filha, tua noiva e desposada.A mulher e o ventre que fecundas.Sou a gleba, a gestao, eu sou o amor.A ti, lavrador, tudo quanto meu.Teu arado, tua foice, teu machado.O bero pequenino de teu filho.O algodo de tua vestee o po de tua casa.E um dia bem distantea mim tu voltars.E no canteiro materno de meu seiotranqilo dormirs.Plantemos a roa.Lavremos a gleba.Cuidemos do ninho,do gado e da tulha.Fartura teremose donos de stiofelizes seremos.
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RESUMO
Esta dissertao apresenta os resultados da pesquisa sobre o Programa Nacional de CrditoFundirio (PNCF), no municpio de Morada Nova, Estado do Cear. O estudo avaliou os efeitos socioeconmicos do Programa na melhoria das condies de vida das famlias muturias das Fazendas Angico e Lagoa da Serra. A metodologia adotada para a concretizao dos resultados baseou-se em pesquisa bibliogrfica, documental e de campo, de natureza qualitativa e quantitativa. Os resultados revelaram o perfil dos atingidos pelo PNCF, compatvel com o pblico estabelecido como alvo pelo programa, cuja ocupao principal relaciona-se agropecuria. Isto favoreceu a utilizao da mo - de - obra familiar nas atividades desenvolvidas nesses imveis, identificando relativas melhorias nas condies de vida dos muturios em relao habitao, sade, segurana alimentar, educao, aquisio de bens durveis e renda, aps a compra da terra. Constatou-se a ausncia de assistncia tcnica e a falta de integrao entre as instituies prestadoras de servios pblicos; a rea de ambos os imveis encontra-se abaixo de 1 mdulo fiscal por famlia, o que talvez dificulte o aumento da produo em relao ao nmero de animais existentes; e a morosidade no acesso de outras polticas pblicas que, de certa forma, esto integradas ao Programa Nacional de Crdito Fundirio.
Palavras-Chaves: Polticas pblicas. Rural. Crdito Fundirio. Muturios.
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ABSTRACT
This dissertation presents the results of the research on the National Program of Agrarian Credit, in Morada Nova city, state of the Cear. The study evaluated the socioeconomics effects of the Program in the Angico and Lagoa da Serra Farms mortgager families life conditions improvement. The methodology adopted for the results concretion was based on qualitative and quantitative bibliographical, documentary and field researches. The results show the profile of those affected by the PNCF, compatible with the public established as a target for the program, whose main occupation revolves around agribusiness. That hasfavored the familiar hand use in the activities developed in those properties, identifying relative improvements in the mortgagers life conditions in relation to the habitation, health, alimentary security, education, durable goods acquisition and income, after the purchase of the land. It evidenced the technique assistance absence and lack of integration between the public services rendering institutions; that both property area was below of 1 family agricultural module, what perhaps makes it difficult the production increase in relation to the existing animals number; and the slowness of reaching other public politics accomplishment that, of certain form, are integrated to the National Program of Agrarian Credit.
Keywords: Public politics. Country. Agrarian Credit. Mortgagers.
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SUMRIO
1 INTRODUO....................................................................................................
2 TERRA PRPRIA: UM SONHO QUE SE TORNOU DVIDA....................
2.1 Acesso ao crdito no meio rural: os programas de compra e venda de
terras.....................................................................................................................
2.1.1 Programa Reforma Agrria Solidria do Projeto So Jos no Cear.....................
2.1.2 Projeto Cdula da Terra.........................................................................................
2.1.3 Programa Banco da Terra......................................................................................
2.1.4 Programa Nacional de Crdito Fundirio..............................................................
2.1.5 Programa Nacional de Crdito Fundirio na atualidade........................................
2.2 Consideraes da questo agrria no Cear
3 MATERIAL E MTODOS.................................................................................
3.1 rea do estudo......................................................................................................
3.1.1 Fazenda Angico.................................................................................................
3.1.2 Fazenda Lagoa da Serra....................................................................................
3.2 Populao estudada...........................................................................................
3.3 Coleta de dados.................................................................................................
3.4 Organizao e tratamento dos dados...............................................................
4 RESULTADOS E DISCUSSO.........................................................................
4.1
4.1.1
Avaliao do PNCF a partir da viso dos muturios......................................
Caracterizao dos muturios...........................................................................
4.2 Avaliao do PNCF a partir da viso das lideranas......................................
4.3 Avaliao do PNCF a partir da viso dos tcnicos.........................................
5. CONSIDERAES FINAIS.............................................................................
REFERNCIAS...................................................................................................
APNDICES.....................................................................................................
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1 INTRODUO
O acesso a terra e sua utilizao uma das principais discusses relacionadas
questo agrria no Brasil, que se constitui em um dos problemas recorrentes enfrentados pela
Nao e presente no cenrio nacional desde a poca do Brasil colnia.
importante mapear suas origens remotas, pois, assim, propicia-se a identificao
da sua continuidade e as modificaes havidas em seu perfil, provocadas pela emergncia
sucessiva de novas foras e contextos em sua trajetria. Nesse sentido, observa Alencar
(2005, p. 10): [...] com o passar dos sculos a reforma agrria incorporou significados, tomou
formas e se adequou aos momentos polticos do pas, colocando em cena setores das classes
dominantes, dos trabalhadores rurais e seus representantes.
No Brasil, a conquista do acesso e uso da terra deve-se, sobretudo, s reaes
apresentadas tanto pelos proprietrios de terra como pelos segmentos sociais lutam pela terra,
abrindo espaos para o surgimento dos movimentos sociais de trabalhadores do campo, os
quais adotaram alguns mecanismos para a realizao da reforma agrria. Relevante papel,
nessa luta, exerceram os ndios, os negros e os trabalhadores rurais1 das mais diversas origens
e etnias, todos esses, segmentos que aspiram pelo direito a terra e vida nesse cho brasileiro,
to vasto e, ao mesmo tempo, to escasso, aos mais pobres e politicamente aos menos
favorecidos.
A partir dos anos de 1980, por intermdio dos movimentos sociais, os
trabalhadores rurais sem terra, em especial, estabeleceram a estratgia de acampamentos e
ocupaes como sua principal forma de luta por terra.
A reforma agrria empreendida pelo Estado para atender aos anseios por terra dos
trabalhadores rurais utiliza-se da desapropriao por interesse social2, uma das modalidades
1 Sob essa denominao genrica de trabalhadores rurais esto todas as categorias que vivem diretamente do trabalho na terra (assalariados, agricultores familiares proprietrios e no-proprietrios e seus filhos, posseiros, arrendatrios, sem-terra etc.). Por sua vez, entende-se como agricultura familiar, de acordo com o art. 3 da Lei n 11.326/2006 (BRASIL, 2006a), aquela em que a propriedade e o trabalho esto intimamente ligados famlia. 2 A desapropriao por interesse social aquela que condiciona a propriedade da terra ao cumprimento da sua funo social, que s se verifica, segundo o Constituio Federal de 1988 art.146 e 148 quando simultaneamente, favorece o bem-estar dos que nela vivem, mantm nveis satisfatrios de produtividade,
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de interveno na propriedade por parte do poder pblico, como instrumento para a obteno
das terras necessrias ao assentamento das famlias. Essa poltica pblica, na viso de
Romeiro (2002), representa mais uma forma de amenizar os conflitos agrrios no campo do
que propriamente um instrumento de desconcentrao da terra e de ordenamento do territrio
rural.
A realizao do processo de reforma agrria no Brasil tem sido tema de diversas
discusses no contexto social, poltico e acadmico. Embora no seja recente, a partir dos
anos de 1980 ganhou nova fora e dimenso. Foi justamente nesse perodo que o processo de
reforma agrria alcanou resultados expressivos, pelo menos em termos de nmero de
famlias assentadas e hectares desapropriados.
Apesar dos resultados expressivos, existia a necessidade de acelerao do
processo de redistribuio de terras, em virtude da elevada demanda social por terra e da forte
presso social. nesse contexto que emerge o programa denominado Novo Mundo Rural3,
com vistas a convencer os trabalhadores sem terra e pequenos agricultores de que a integrao
ao capital o melhor caminho para acessar a terra e fazer reforma agrria. Para tanto, a
desapropriao por interesse social comea a ser substituda gradativamente pela prpria
compra e venda das terras dos latifundirios, mediante pagamento vista atravs do PNCF.
Essa medida fortalece ainda mais o grande proprietrio, descaracteriza a reforma
agrria com base na penalizao do latifndio e enfraquece os trabalhadores. Desse modo
surgiu o programa de compra e venda de terra como uma nova opo e reforo ao modelo de
reforma agrria vigente no Brasil.
Conforme Medeiros (2002), o mercado de terra surge, no Brasil, num contexto de
intensas ocupaes de terra, redirecionadas pelas polticas do Banco Mundial que, desde
meados dos anos de 1970, elaborou princpios gerais de ao, tais como: o reconhecimento da
importncia da propriedade familiar em termos de eficincia e equidade; a necessidade de
estimular os mercados para facilitar a transferncia de terras para usurios mais eficientes; e a
importncia de uma distribuio igualitria de bens e de reformas agrrias redistributivas.
A poltica de reforma agrria de mercado do Banco Mundial teve como vetor
assegura a conservao dos recursos naturais e observa as disposies legais que regulam as justas relaes de trabalho (BRASIL, 1988). 3 O Novo Mundo Rural uma expresso utilizada para designar tanto as transformaes em curso na realidade brasileira, quanto um paradigma a ser perseguido. As mudanas teriam como fundamento a introduo de tecnologia, a emergncia de novas atividades no meio rural e o surgimento de novas configuraes sociais. O progresso tcnico, acarretando ganhos de produtividade na agricultura, haveria ensejado a formao de um excedente de trabalho (DOMINGOS NETO, 2004, p. 29).
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inicial, no Brasil, a experincia piloto ocorrida no Estado do Cear, por meio do Programa
Reforma Agrria Solidria - Projeto So Jos (1996-1997). Essa experincia foi ampliada para
os outros Estados do Nordeste (Bahia, Maranho, Pernambuco e Cear) e para o norte de
Minas Gerais, por intermdio do Projeto Cdula da Terra (1997-2000). Em seguida, foi levada
para boa parte do Brasil, na esteira do Programa Banco da Terra (1999-2002) e do Crdito
Fundirio de Combate Pobreza Rural (2002-2003). Essa poltica teve como pressuposto a
criao de um Fundo de Terra para financiar a compra e venda de terras entre proprietrios
dispostos a vend-las e agricultores sem terra ou com pouca terra interessados em compr-las.
Tais programas sofreram crticas dos movimentos sociais e das entidades de
representao dos trabalhadores rurais, no caso, a Comisso Pastoral da Terra (CPT) e o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), unidos no Frum Social pela
Reforma Agrria e Justia no Campo4.
Apresentado, em 2003, pelo governo federal, o Programa Nacional de Crdito
Fundirio (PNCF) no amenizou o descontentamento dos movimentos sociais e das entidades
de representao dos trabalhadores na luta pela reforma agrria. Isso porque o programa
manteve o incentivo aquisio de terra via processo de compra e venda no mercado,
deixando de lado o instrumento da desapropriao de terras por interesse social. Assim, o
PNCF do governo federal tem negligenciado a luta dos trabalhadores rurais pela reforma
agrria e mantido uma poltica agrria de valorizao do mercado como instrumento legal de
acesso a terra, o que tem garantido a continuidade da reforma agrria de mercado (RAM)
do Banco Mundial, no Brasil.
Os primeiros projetos dos programas do mercado de terra j completaram treze
anos. Nem por isso, no entanto, os debates acabaram.
Muitos agricultores familiares, ansiosos por terra prpria, buscam outro
mecanismo para a obteno do acesso desejado. denominado de Programa Nacional de
Crdito Fundirio. Este programa integra o Plano Nacional de Reforma Agrria como um
instrumento complementar desapropriao. um mecanismo de acesso a terra por meio do
financiamento da aquisio de imvel rural e de investimentos bsicos e comunitrios em
projetos apresentados pelos beneficirios voltados a produzir o aumento da renda e da
produo de alimentos, a melhoria das suas condies de vida e a dinamizao das economias
4 O Frum Nacional pela Reforma Agrria e Justia no Campo, criado em 1995, uma articulao com carter amplo e pluripartidrio, reunindo movimentos sociais, entidades ecumnicas e organizaes no governamentais. Seu objetivo articular as aes desenvolvidas pelas vrias entidades que apiam a realizao da reforma agrria no Brasil (WOLF; SAUER, 2001, p.196).
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locais (BRASIL, 2009). Essa poltica pblica vem sendo implementada no Estado do Cear
desde 1997 e utiliza, para sua efetivao, o financiamento da terra com reembolso em longo
prazo.
Nesse contexto, o interesse da pesquisadora por essa poltica pblica est
associado ao pblico por ela assistido por intermdio da Empresa de Assistncia Tcnica e
Extenso do Cear (EMATERCE), e volta-se para a compreenso do motivo que leva as
famlias a buscarem a terra via financiamento da sua aquisio com recursos do crdito
fundirio. Apesar da crescente expresso assumida por esse instrumento de acesso a terra no
Cear, o seu estudo nos meios acadmicos ainda incipiente. Tal limitao despertou a
curiosidade de verificar, in loco, se o programa proporciona a melhoria das condies de vida
das famlias muturias atingidas, como alega.
O despertar para a temtica da questo agrria surge das experincias vivenciadas,
durante minha trajetria profissional na referida empresa, onde foi possvel acompanhar as
dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores rurais que lutam arduamente por sua
sobrevivncia, para tornar-se proprietrio de um pedao de cho. Tanto o aprimoramento
profissional como o aprofundamento no assunto foram a maneira vislumbrada para melhorar a
qualidade da minha atuao na referida instituio, e, ao mesmo tempo, para diminuir as
muitas dvidas e questes dominantes na vida prtica dos trabalhadores rurais.
A definio da rea de estudo aconteceu no momento da realizao de atividade
discente no Mestrado em Avaliao de Polticas Pblicas. Foi escolhido o municpio de
Morada Nova por se constituir em rea de abrangncia de trabalho da pesquisadora e pelo fato
de o referido municpio ter sido o primeiro da regio do Baixo Jaguaribe a ser includo no
Programa Nacional de Crdito Fundirio, em vigor desde 2003.
Levando em considerao a abrangncia do Programa Nacional de Crdito
Fundirio (BRASIL, 2004a), cujo objetivo central consiste em [...] contribuir para a reduo
da pobreza rural e para a melhoria da qualidade de vida, mediante o acesso terra e o
aumento de renda [...] de famlias de trabalhadores rurais [...], questiona-se quais os efeitos
decorrentes do programa na melhoria das condies de vida das famlias muturias.
Para responder questo norteadora da pesquisa se faz necessrio avaliar, junto ao
pblico atendido, o seu perfil, a viso dele sobre o PNCF, suas ideias, o nvel de organizao
e a participao nas atividades coletivas, enfim, o que melhorou em termos de condies de
vida aps o financiamento da terra.
No intuito de ampliar o esclarecimento dessa questo, apontou-se como objetivo
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geral avaliar os efeitos do Programa Nacional de Crdito Fundirio na melhoria das condies
de vida das famlias das Fazendas Angico e Lagoa da Serra, no municpio de Morada Nova,
na regio do Baixo Jaguaribe, no Estado do Cear. Intrnseco a esse objetivo, listam-se outros,
especficos: identificar o perfil socioeconmico dos muturios do PNCF; analisar a melhoria
de vida das famlias muturias do programa, tomando-se como medida os indicadores
segurana alimentar, sade, educao, moradia/habitao, renda, acesso a bens durveis e
organizao social e identificar os principais apoios recebidos das demais polticas pblicas,
integradas ou no ao PNCF.
A avaliao deve ser considerada um instrumento fundamental no processo de
gesto, em especial, por propiciar informaes para tomada de deciso e ajuste de polticas.
Nesse sentido, pode-se afirmar, a avaliao permite no s identificar os efeitos de um
programa, como tambm reconhecer sua viabilidade, favorecendo, quando necessrio, a
reformulao dos seus objetivos, metas ou atividades, e a reorientao das suas aes, com
vistas ao aperfeioamento e reformulao do programa. Dessa forma, atribui maior
confiabilidade s polticas pblicas.
Esta pesquisa reveste-se de significado por tratar de uma temtica polmica entre
estudiosos e atingidos. Merece, portanto, ser investigada cientificamente, sobremodo
porque, atualmente, torna-se cada vez mais importante saber o que pensam e como se
organizam os beneficirios e potenciais beneficirios de uma poltica pblica, a fim de se
lograr maior xito em sua implementao. Assim, conhecer o pensamento e as expectativas
das pessoas ansiosas por terra sem o envolvimento em conflitos abertos, a exemplo das que se
encontram nas ocupaes de terra, pode significar o caminho para o aprimoramento dos
programas governamentais de acesso a terra.
Para fornecer uma viso geral de todo o trabalho apresenta-se, a seguir, de forma
sucinta, um resumo dos captulos dentre os quais se distribuem as informaes obtidas no
decorrer da realizao da investigao. No primeiro deles, consta esta introduo.
No segundo, terra prpria: um sonho que se tornou dvida, promove-se uma
reviso na literatura sobre a temtica em discusso, como livros, revistas, dissertaes e teses,
bem como em websites especializados, procurando reunir, nessa seo, as contribuies mais
relevantes dos autores que se dedicam ao estudo das questes relativas a terra, consideradas
teis para o desenvolvimento do trabalho.
No terceiro, material e mtodos, contemplam-se a caracterizao das unidades de
anlise, a delimitao da rea de estudo, a populao selecionada, os mtodos e instrumentos
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de coleta de dados e o modo como se organizam e so tratados os dados coletados.
No quarto captulo, resultados e discusso, apresentam-se os resultados e
discutem-se os prs e contras da poltica adotada.
No quinto captulo expem-se as consideraes finais.
2 TERRA PRPRIA: UM SONHO QUE SE TORNOU DVIDA
2.1 Acesso ao crdito no meio rural: os programas de compra e venda de terras
No se tenciona fazer, aqui, um histrico completo a respeito do crdito fundirio,
mas ilustrar sua presena no campo, assim como os distintos interesses que marcaram essa
modalidade de financiamento.
Como obsevado, o financiamento de terras a agricultores familiares no uma
modalidade recente de acesso propriedade rural nos pases capitalistas. H referncias
esparsas ao uso desse instrumento, como a citada por Abramovay (2007) a respeito da
agricultura na Dinamarca, j no final do sculo XVIII. Conforme o autor menciona, nesse
pas, em 1788, foi criado um banco pblico de crdito, concedendo emprstimos em longo
prazo e com baixas taxas de juros para os agricultores comprarem terras (p. 204).
Ao analisar o contexto histrico da agricultura familiar, especialmente na Europa,
no Canad, e ainda, na Inglaterra, Bruno (1994, p. 57) afirma que, aps a abertura dos
mercados internacionais para importao de alimentos a preos mais baixos, os grandes
proprietrios de terra tambm compreenderam bastante rpido que seria mais rentvel
converter o valor de suas terras em dinheiro para investir na propriedade urbana, na indstria
e no comrcio. Na falta de condies de compra pelos pequenos agricultores, para lhes
possibilitar essas condies e, tambm, para satisfazer os interesses dos grandes proprietrios
de terras, recorreu-se ao Estado para lhes propiciar essas condies mediante a criao de uma
linha de crdito.
Para ilustrar, o acesso a terra por meio de financiamento, na Dinamarca e na
Inglaterra, divergiu em relao s formas de obteno do crdito. Na primeira nao, esse
acesso foi conquistado a partir das lutas empreendidas pelos camponeses; na ltima, ocorreu
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em detrimento dos interesses dos latifundirios. Em ambos os casos, para a obteno de terra,
os pequenos agricultores tiveram de recorrer ao financiamento estatal.
De acordo com Martins (1995), Reydon e Plata (1996) e Alencar (2005), as
condies iniciais para a formao de um mercado de terras, no Brasil, ocorreram com a
edio da Lei n 601, de 18 de setembro 1850, chamada de Lei de Terras. Segundo
estabelecido, a aquisio s seria efetivada pela compra em dinheiro.
Esta Lei de Terras foi elaborada com o objetivo de impedir que eventuais escravos
libertos e imigrantes pobres se tornassem donos de terras. Lembre-se, porm: em 1888, com a
abolio da escravido no Brasil, muitos imigrantes para c vieram, em substituio aos
escravos. Com essa lei, pretendia-se que tanto os escravos como os imigrantes pobres fossem
sempre trabalhadores rurais, garantindo-se, assim, mo-de-obra fcil e barata (MORISSAWA,
2001).
A Lei de Terras era injusta, particularmente por favorecer a expanso dos
latifundirios e impedir a aquisio de pequenas propriedades pelos escravos e imigrantes, os
quais poderiam praticar a agricultura familiar. Esse fato gerou frequente falta de alimentos
para muita gente no decorrer da histria do Brasil.
Entre a Lei de Terras (1850) e a proclamao da Repblica (1889), o Brasil
passou por um perodo que consolidou os grandes e crescentes latifndios. No havia um
poder pblico capaz de fiscalizar adequadamente o uso das terras. Um mesmo proprietrio
adquiria vrios lotes de terras, a preos nfimos, mas proibitivos para escravos libertos e
imigrantes pobres, construa uma moradia em cada um deles e colocava os filhos mais velhos,
irmos, pais e demais parentes para ocupar temporariamente aquelas propriedades. Em
seguida, iniciava uma cultura qualquer para caracterizar o uso e moradia, em cumprimento ao
determinado pela Lei de Terras (MORISSAWA, 2001).
A proclamao da Repblica manteve e at legitimou atravs da Constituio os
agravos da questo agrria no pas favorecendo sempre o latifundirio. Conforme Alencar
(2005, p.80), a Constituio Federal de 24 de fevereiro de 1891 estabeleceu que as terras
devolutas passassem a ser de domnio dos Estados da Federao. Como evidenciado, o
perodo republicano tem sido marcado pela reedio de Constituies, cada uma
representando os interesses de perodos diferentes da histria do Brasil.
Uma das primeiras referncias relativa ao crdito fundirio encontrada no Brasil
est prevista no Estatuto da Terra, Lei n 4.504, de 30 de novembro de 1964. Esta, em seu art.
81, previa emprstimo ao trabalhador rural no valor correspondente ao valor do salrio
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mnimo anual da regio, para aquisio de terra destinada ao trabalho, seu e da sua famlia.
Tal emprstimo seria financiado pelo Fundo Nacional de Reforma Agrria, com prazo de
vinte anos para pagamento, acrescido de juros de 6% ao ano. De acordo com o pargrafo
nico do mesmo artigo, poderiam acumular o emprstimo dois ou mais trabalhadores que
optassem pela aquisio de propriedade com rea superior quela estabelecida pelo Estatuto
da Terra, por unidade familiar, sob administrao comum ou em forma de cooperativa
(BRASIL, 1985).
Com o passar do tempo, verificam-se alguns avanos. Por exemplo, os
movimentos sociais na dcada de 1960 (em especial as Ligas Camponesas) reivindicavam a
realizao da reforma agrria no Brasil. Como o debate e a reivindicao pela reforma agrria
no pas estavam em ebulio, o governo militar adotou uma medida drstica em relao aos
movimentos sociais: elaborou e aprovou o Estatuto da Terra. Esse documento, apesar de
muito rico, teve apenas a finalidade de redirecionar o problema da reforma agrria para o
mbito estritamente econmico. Consoante se acreditava, o fim do latifndio e do problema
agrrio dar-se-ia pela transformao do grande latifndio em empresas rurais.
Segundo Medeiros (2003 p. 24-25):
O Estatuto da Terra criou condies institucionais que possibilitavam a desapropriao por interesse social como caminho para eliminar os conflitos no campo. No entanto, no rearranjo de foras polticas que se seguiu ao golpe, a possibilidade de uma reforma agrria com base na desapropriao foi posta de lado, em favor de um modelo fundado no apoio modernizao tecnolgica das grandes propriedades, com incentivos fiscais e crdito farto e barato.
A facilidade do crdito rural para os latifundirios propiciou a incorporao das
pequenas propriedades rurais pelas mdias e grandes: a monocultura exigia maiores
propriedades e o crdito facilitava a aquisio de terra. Assim, quanto mais terra tivesse o
proprietrio, mais crdito recebia e mais terra podia comprar (INCRA, 1995).
Conforme Brando (2000), o Estatuto da Terra, poca da sua publicao,
encarava a reforma agrria como uma necessidade premente Nao e, at mesmo, como
uma questo de segurana nacional.
Ainda conforme Brando (2000), a lei centralizou no governo federal no somente
a incumbncia de realiz-la, mas, sobretudo, o poder de decidir quando, onde e como faz-lo.
Essa herana centralizadora foi, infelizmente, passada Constituio de 1988. Dessa forma,
hoje, os Estados no dispem de mecanismos legais e eficientes que lhes permitam uma
participao mais contundente no processo de reforma agrria em seus territrios.
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Diante desta realidade, o que se vislumbra que a reforma agrria continuar a
caminhar lentamente, sem atingir seus objetivos, de maneira centralizada e sempre a reboque
de solues para situaes emergenciais provocadas pelos movimentos sociais. Segundo o
Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (FERREIRA et al., 2008), a omisso da reforma
agrria entre os objetivos prioritrios na proposta do Plano Plurianual (PPA) 2008-2011
trouxe muito desnimo a quantos ainda a viam como uma necessidade para a incluso social e
a diminuio das desigualdades sociais, alm de ser estratgica para a poltica de garantia
alimentar do pas.
Constante da Lei n 4.504/64, a denominao Crdito Fundirio abrange todas as
polticas pblicas que promovam o acesso propriedade da terra por meio de financiamento
em longo prazo.
Apesar das crticas e oposio dos movimentos sociais agrrios, os programas de
mercado de terra vm sendo implantados desde 1997, no Brasil. Mesmo apresentando
diversos problemas, como, por exemplo, dificuldade por parte das famlias para pagar as
prestaes e amortizar a dvida, o Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA) ampliou as
linhas de financiamento e, com a criao do Programa Nacional de Crdito Fundirio e de
mudanas legais no Fundo de Terras, transformou essa proposta em uma poltica de Estado,
com aportes de recursos regulares do Oramento Geral da Unio (MDA, 2005).
De maneira geral, os programas de acesso a terra foram concebidos pelo Estado
como mecanismos para diminuir os conflitos e combater a pobreza rural, pois as aes
agrrias no eram vistas como parte do programa econmico, muito menos como uma questo
poltica. Essa viso permitiu a aliana com o Banco Mundial, o qual tinha interesses em
financiar programas de alvio pobreza, cumprindo sua misso social (PEREIRA, 2006).
Mencionados recursos permitiram ao governo do presidente Fernando Henrique Cardoso
amenizar a presso social por terra sem alterar a estrutura fundiria ou ampliar os processos
de desapropriao (SAUER; PEREIRA, 2006).
Essa juno de interesses possibilitou a formulao e a implementao do projeto
piloto de reforma agrria de mercado, como uma experincia alternativa de acesso a terra via
mecanismo de compra e venda. O governo do presidente FHC instituiu o financiamento
pblico para a compra privada de terras como um mecanismo para aliviar tenses sociais no
campo e retomar o protagonismo poltico na conduo da poltica agrria (SAUER;
PEREIRA, 2006).
19
Desde o incio do governo do presidente FHC (1995), o Banco Mundial
preconizava a dinamizao dos mercados de terras como mecanismo para atingir dois
objetivos simultneos: permitir o acesso a terra a agricultores sem terras e aliviar a pobreza
rural, intensificando-se pelas polticas de ajuste estrutural (PEREIRA, 2006). Na viso do
Banco Mundial, o modelo de mercado deveria ser introduzido no Brasil como uma espcie de
brao agrrio de polticas compensatrias j em curso (SAUER; PEREIRA, 2006).
Politicamente, o governo federal e o Banco Mundial tinham interesse em diminuir
a presso provocada pelas ocupaes de terra, introduzindo um mecanismo de mercado que
pudesse disputar, pela base, a adeso de trabalhadores sem terra (PEREIRA, 2005). A criao
de programas orientados pelo mercado e a disponibilidade de financiamento para compra
deveriam desconectar as ocupaes das desapropriaes por interesse social, permitindo ao
governo realizar aes fundirias no mais pautadas por mobilizaes e presses dos
movimentos sociais (SAUER; PEREIRA, 2006).
Pereira (2004) faz uma importante abordagem sobre o debate internacional e o
caso brasileiro a respeito do modelo de reforma agrria de mercado. Analisa as proposies
do Banco Mundial, as disputas poltico-ideolgicas e as principais posies internacionais
sobre a aplicabilidade desse modelo de reforma agrria, a partir dos resultados preliminares,
no Brasil. Essas polticas foram implementadas na dcada de 1990 em pases como frica do
Sul, Colmbia, Filipinas e El Salvador, com o apoio do Banco Mundial, instituio que
formulou inmeras crticas aos modelos tradicionais de reforma agrria conduzidos pelo
Estado pela via da desapropriao.
Segundo Medeiros (2002, p. 71), na avaliao do Banco Mundial, [...] essas
reformas [tradicionais] eram consideradas coercitivas, dirigidas, centralizadas e portadoras de
um aspecto confiscatrio, na medida em que as terras eram muitas vezes pagas abaixo dos
preos de mercado e parte em dinheiro, parte em ttulos pblicos.
Na tica dos idealizadores do programa de compra de terra atravs do mercado,
este era um processo descentralizado e voluntrio, por isso, mais rpido. Nesse sentido, havia
economia com as custas judiciais e a descentralizao do processo de assentamentos rurais, o
qual, ao proporcionar um enxugamento da mquina burocrtica, acabava por tornar o
processo menos oneroso. Alm disso, previa-se uma agilizao do processo de distribuio de
terras como forma de prevenir possveis aumentos de conflitos sociais no campo.
Conforme Pereira (2006, p. 33-34), a crtica no debate sobre a reforma agrria de
mercado centrada no modelo tradicional :
20
[...] feita de maneira abstrata, homogeneizadora e universalista, deslocada da anlise emprica dos conflitos sociais que definiram a natureza, o grau, a extenso, o ritmo, a direo e mesmo o refluxo ou a desconstituio das polticas de reforma agrria, sempre muito homogneas entre si. [...] O ncleo da critica do BIRD reforma agrria conduzida pelo Estado realmente no tem consistncia emprica. Em primeiro lugar, a reforma agrria, onde ocorreu, jamais foi dirigida pela oferta, pois sempre foi impulsionada, em maior ou menor grau, pela demanda por terra provocada pela luta social do campesinato e das coalizes polticas que o apiam. Em segundo lugar no vlido atribuir o suposto fracasso das reformas agrrias ao seu carter coercitivo e centralizado, uma vez que, nessa matria, existe historicamente uma associao positiva entre grau de redistribuio, sano estatal e centralizao politico-administrativa. Em terceiro lugar, a lentido na execuo de polticas de reforma agrria sempre tendeu a ser maior onde os mecanismos de mercado foram privilegiados, em detrimento da ao compulsria do Estado. Em quarto lugar, no correto atribuir eventuais supervalorizaes concedidas aos proprietrios ao carter mais ou menos estadista da reforma agrria, mas sim corrupo e, fundamentalmente, a minimizao do poder desapropriatrio do Estado, em geral inversamente proporcional ao poder poltico e social dos grandes proprietrios de terra. Em quinto lugar, falsa a idia de que os casos de corrupo nos processos de reforma agrria se devem ao seu carter estadista, como se, na prtica, o agente corruptor por excelncia no fosse o mercado, i , os grandes proprietrios interessados na supervalorizao de suas terras. Em sexto lugar, igualmente falso atribuir reforma agrria responsabilidades que no lhe competem exclusivamente uma vez que ela no , nunca foi e jamais ser uma panacia .
Depois de tentar desqualificar a necessidade da adoo de um modelo alternativo
de reforma agrria, a corrente crtica se concentra em criticar o modelo de reforma agrria de
mercado como um todo, divergindo inclusive do seu carter redistributivo, segundo Pereira
(2006, p. 31-32):
O modelo de reforma agrria de mercado definitivamente no pode ser considerado um modelo redistributivo. Percebe-se que os pressupostos da reforma agrria de mercado so distintos dos da reforma agrria redistributiva. No primeiro caso a terra vista como um mero fator de produo, uma mercadoria como qualquer outra. No segundo caso, a terra vista pela sua gravitao poltica, econmica e cultural, razo pela qual os direitos de propriedade sobre ela expressam, antes de tudo, relaes de poder entre classes e grupos sociais. No h, portanto qualquer semelhana entre o modelo de reforma agrria de mercado e reforma agrrias redistributivas. Transaes mercantis e aes paliativas de alvio da pobreza rural nada tm a ver com redistribuio do estoque de riqueza (no caso, a terra rural) acumulado por uma classe ou fraes de classe. Tambm em nada se assemelha democratizao de poder poltico e tampouco contribuem para um suposto empoderamento dos trabalhadores rurais. A natureza voluntria e mercantil do modelo de reforma agrria de mercado o distingue completamente de qualquer poltica de reforma agrria, cuja viabilidade depende da luta social autnoma do campesinato e da ampliao dopoder sancionador e redistributivo do Estado contra o monoplio da terra. No demais lembrar que a lgica do modelo de reforma agrria de mercado pressupe a reduo de ambos.
Conforme o mencionado autor, os crticos questionam a necessidade de um novo
modelo para superao do problema fundirio brasileiro:
Mesmo se funcionassem i e, mesmo se ocorressem transaes de mercado a preos razoveis e os beneficirios pudessem de fato pagar pela terra por meio de sua
21
produo agrcola tais programas seriam absolutamente insuficientes para absorver a presso social sobre uma estrutura de propriedade altamente concentrada, ainda mais em sociedades que experimentam h anos uma regresso social e econmica provocada pelas reformas estruturais (PEREIRA, 2004, p. 246).
Ao questionar a viabilidade do modelo para superar o problema fundirio, a crtica
centra-se na principal caracterstica da reforma agrria de mercado: acesso a terra via
mercado.
Destaque-se, no entanto: o governo do presidente FHC (1995-2002) programou e
iniciou quatro programas de reforma agrria de mercado, sendo o Projeto Reforma Agrria
Solidria uma linha dentro do Programa estadual So Jos, uma experincia pequena do
Cear. Criado em agosto de 1996, o primeiro financiamento para compra de terras foi liberado
em fevereiro do ano seguinte.
Assim, a reforma agrria de mercado, como uma poltica de contrarreforma
agrria, aparece como condio e consequncia da forma pela qual o Estado foi levado a
recriar o mercado de terras para favorecer o desenvolvimento do capitalismo no Cear.
Segundo Alencar (2005), para a operacionalizao desses programas de compra e
venda de terra, os governos federal, estaduais e municipais, com a parceria do Banco
Mundial, implementaram, a partir de 1997, sob a denominao de Poltica Pblica
complementar da Reforma Agrria, por intermdio do mecanismo de compra e venda da terra,
quatro programas, abordados a seguir.
2.1.1 Programa Reforma Agrria Solidria do Projeto So Jos no Cear
A experincia pioneira que deu origem poltica pblica de crdito fundirio no
Brasil foi a implantao do Projeto Piloto So Jos, no Cear, em fevereiro de 1997, por
intermdio do acordo de emprstimo 3.918 BR, conforme os autores Brando (2000),
Reydon e Plata (2000), Medeiros (2002), Pereira (2004), Nunes et al. (2005), Alencar (2005)
e Ramos Filho (2008).
Para a realizao dessa experincia, o governo do Estado do Cear, com a edio
da Lei n 12.614, de 7 de agosto de 1996, instituiu o Fundo Rotativo de Terras do Cear, o
qual viabilizou a parceria com o Banco Mundial para a criao do componente Ao
Fundiria do Projeto So Jos. Esse componente se caracterizou pela adoo, sob a forma de
projeto piloto, da concesso de crdito fundirio, viabilizando o acesso a terra aos
trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra, desde que agrupados em associaes,
mediante negociaes concretizadas diretamente com os proprietrios. Alm do
22
financiamento da terra estava previsto o financiamento a fundo perdido para investimentos de
infraestrutura produtiva e/ou social (BRANDO, 2000). Eram recursos no reembolsveis, a
serem geridos diretamente pelas associaes, com base em projetos produtivos por elas
elaborados (GARCIA FILHO, 1998; SAUER, 2004; PEREIRA, 2004).
Consoante Alencar (2005), o Programa Reforma Agrria Solidria do Projeto So
Jos, no Cear, foi executado pelo Instituto de Desenvolvimento Agrrio do Cear (IDACE),
atuou em 26 municpios, atendeu 694 famlias mediante compra e venda de terra, numa rea
de 23.624, 30 ha distribudos em 44 imveis, correspondendo a 59% da meta prevista para
dezembro de 1997, com um custo de R$ 3.997.701,44. Dessa forma, o custo mdio por
hectare foi de R$ 169,22, e por famlia, de R$ 5.760,38.
Em linhas gerais, era um projeto de combate pobreza rural financiado pelo
Banco Mundial. Sua gesto envolvia Secretarias Coparticipantes, Conselhos Municipais de
Desenvolvimento Sustentvel (CMDS), Sindicato de Trabalhadores Rurais e Associaes
Comunitrias. Em princpio, o Projeto So Jos no previa uma linha de financiamento para
aquisio de terras, e os financiamentos eram destinados melhoria das propriedades rurais.
Entretanto, por meio de um fundo de terra criado pelo governo estadual/Banco Mundial, o
financiamento para aquisio de terras foi introduzido para acomodar a crescente presso do
movimento social no Estado. Surge, ento, a chamada Reforma Agrria Solidria, a se
transformar, mais tarde, no Projeto Piloto denominada Cdula da Terra, o qual, no Estado do
Cear permaneceu como Programa de Reforma Agrria Solidria Cdula da Terra
(BRANDO, 2000).
2.1.2 Projeto Cdula da Terra
O Projeto Cdula da Terra (PCT) foi viabilizado pelo governo federal, por
intermdio do Ministrio Extraordinrio de Poltica Fundiria (MEPF) e do Instituto Nacional
de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA), alm do Banco Mundial, por meio do acordo de
emprstimo 4.147 BR (ALENCAR, 2005).
Conforme Alencar (2005) e Ramos Filho (2008), em abril de 1997 foi criado o
Projeto Piloto de Reforma Agrria e Alvio da Pobreza, mais conhecido como Projeto Cdula
da Terra, abrangendo cinco Estados da Federao - Cear, Maranho, Pernambuco, Bahia e o
norte de Minas Gerais -, cujas regies acumulavam forte concentrao de pobreza rural e
urbana, e operando at o final do governo do presidente FHC. Referidos Estados tm em
23
comum o fato de possurem elevados ndices de pobreza. Apesar de ser considerado um
piloto, este projeto foi abrangente, pois contemplou em torno de 15 mil famlias no perodo e
foi concludo oficialmente em dezembro de 2000 (SAUER, 2004).
Os recursos iniciais do programa totalizaram US$ 150 milhes, dos quais US$ 45
milhes oriundos de recursos do governo federal para a aquisio de terras, US$ 90 milhes
provenientes de emprstimos do Banco Mundial, US$ 6 milhes aportados pelos governos
estaduais participantes e US$ 9 milhes correspondentes contrapartida das comunidades
aportadas, principalmente sob a forma de fora de trabalho. Esse montante, por sua vez,
deveria ser gasto na seguinte proporo: 30% (US$ 45 milhes) para a compra de terras, 56%
(US$ 84,3 milhes) para investimentos complementares, 2,6% (US$ 3,9 milhes) para
assistncia tcnica e capacitao, 6,7% (US$ 10,1 milhes) para monitoramento, superviso e
administrao do projeto) e 4,5% (US$ 6,7 milhes) para avaliao e propaganda pelo
governo federal. Oficialmente, os recursos oriundos do Banco Mundial seriam utilizados
somente para investimentos complementares, enquanto os recursos para a compra de terras
viriam do governo federal (SAUER, 2004).
Diversos autores, como Medeiros (2002), Pereira (2004), Sauer e Pereira (2006),
salientam os conflitos agrrios e ocupaes de terra como uma das causas que levou o
governo federal a criar o PCT em parceria com o Banco Mundial. Ao instituir esse
mecanismo de acesso a terra, pretendia aliviar as tenses no campo e abrir novas alternativas
para o atendimento s crescentes demandas por terra, sem, no entanto, precisar lanar mo da
desapropriao por interesse social. Para melhor compreender esse programa, alm dos
autores citados anteriormente, existe uma variedade de outros estudos sobre o tema
desenvolvidos por Navarro (1998), Xavier (1999), Vegro e Garcia Filho (1999), Brando
(2000), Reydon e Plata (2000), Buainain et al. (1999, 2000, 2003), Alencar (2005), Da Ros
(2006), Ramos Filho (2008), dentre outros.
Apesar das crticas, o PCT foi implantado e obteve certa adeso. Houve tambm
sua implantao, proveniente dos governos estaduais interessados em angariar votos nas
eleies de 1998, e do governo federal e do Banco Mundial, interessados em legitimar o novo
modelo e, assim, travar a disputa poltico-ideolgica com os movimentos sociais, como bem
explicita Buainain et al. (1999, p. 272):
A conjuntura poltica tambm contribui para aumentar a adeso e acelerar a implantao do programa. Dois fatos merecem destaque: as eleies e a aparente ansiedade do governo federal em viabilizar o programa como instrumento de ao fundiria [...]. Os projetos foram implantados sob presso do governo federal e do Banco Mundial, dificultando as tarefas de planejamento e acompanhamento.
24
Intensificou-se o esforo conjunto da trade governo federal, governos
estaduais e Banco Mundial. Desse modo, mais da metade dos 223 projetos contabilizados em
janeiro de 1999 havia sido implementada apenas no segundo semestre de 1998: [...]
justamente no perodo de acirramento da disputa eleitoral, de aumento do nmero de
ocupao de terra e da ecloso de saques no Nordeste, que repercutiam negativamente sobre
os governos federais e estaduais (CARVALHO, 2001, p. 208-209).
De acordo com Buainain et al. (1999, p. 280-281), o significado e a
intencionalidade poltica do Cdula da Terra naquela conjuntura foram diagnosticados com
clareza:
Essa concepo de acesso a terra fruto de uma negociao entre as partes, solidria e sem conflitos parece ser eficaz em atrair uma camada do pblico potencial da reforma agrria [...]. Na atual conjuntura de mobilizao, ao colocar nova opo de acesso a terra, o Cdula da Terra introduz uma disputa poltica e ideolgica com outros movimentos sociais e seus mediadores [...], os quais detm, hoje, a iniciativa poltica neste campo e defende o acesso a terra via instituto da desapropriao.
A aliana poltica entre governo federal e Banco Mundial em favor da extenso do
Cdula da Terra a todo o pas foi permanente e marcou, desde o incio, a execuo do projeto,
contra o qual se posicionaram, de maneira unificada, movimentos sociais e organizaes
sindicais organizados no Frum Nacional pela Reforma Agrria e Justia no Campo.
Uma questo importante para diagnosticar se existiram problemas no processo de
aquisio das propriedades no PCT verificar de quem partiu a iniciativa do negcio.
Consoante alguns autores (RAMOS FILHO, 2008; SAUER, 2006; PEREIRA, 2004, 2005;
ALENCAR, 2005; MARTINS, 2004) contra-argumentam, o processo de aquisio foi
fortemente influenciado pelos interesses dos proprietrios das terras e esse processo uma
extenso das influncias (negativas) sofridas pelos beneficirios do programa.
Aps a rpida experincia com o Cdula da Terra, foi apresentada ao Congresso
Nacional a proposta de criao do Fundo de Terras e da Reforma Agrria Banco da Terra.
Essa proposta difere da experincia anterior, pois no se resume a um projeto ou programa.
Como afirma Pereira (2004, p. 109):
Sua natureza institucional a de um fundo de terras criado pelo Congresso Nacional. Por isso, constitui-se num instrumento de carter permanente. Podem-se mudar regras de funcionamento ou condies de financiamento, mas, enquanto Fundo de Terras, ele persiste, a menos que o prprio Congresso, por maioria absoluta, o extinga.
25
Medeiros (2002) frisa que o crescimento das presses dos movimentos sociais
impulsionou o Legislativo a acelerar o ritmo da reforma agrria, pela dificuldade de obteno
de recursos fundirios pela desapropriao e pela alegao do Executivo Federal acerca da
queda de preo, com vistas s demandas de terra no mercado.
Apoiados pelos consultores do MDA, os argumentos do Poder Executivo e do
Banco Mundial, pesquisadores e idealizadores do programa envolvidos na avaliao do PCT
criticaram severamente o processo de desapropriao por interesse social, salientando as
vantagens da descentralizao do financiamento atravs do PNCF (MEDEIROS, 2003).
Debateram-se esses argumentos em seminrios promovidos pelo MDA e governo do Estado
do Cear, entre 25 e 27 de novembro de 1998.
Em fevereiro de 1997, foi protocolado, no Senado, um projeto de lei (PLS n 25)
criando o Fundo de Terras/Banco da Terra, o qual foi aprovado em 4 de fevereiro de 1998
(Lei Complementar n 93/98) (SAUER, 2003). quela altura, a implantao do Cdula da
Terra mal havia comeado e o Executivo Federal jogou peso poltico e aprovou, em tempo
recorde, a criao do Fundo de Terras/Banco da Terra no Congresso Nacional (SAUER;
PEREIRA, 2006).
2.1.3 Programa Banco da Terra
To logo o Fundo de Terras/Banco da Terra foi aprovado, o Banco Mundial
anunciou sua inteno de apoiar financeiramente o novo programa, o qual deveria ser
implantado em todo o pas (ALENCAR, 2005).
O Banco da Terra, como ficou conhecido, foi regulamentado pelo Decreto n
3.027, de 13 de abril de 1999. Conforme Alencar (2005), no Cear, no perodo de 2000 a
2002, foram comprados 104 imveis, no total de 66.503 ha, beneficiando 1. 464 famlias. Os
dois primeiros anos de atividade do Banco da Terra no Estado foram os que apresentaram
maior quantidade de compra de imveis, bem como o maior nmero de famlias beneficiadas.
Segundo Nunes et al. (2005, p. 57), a inteno do governo e das organizaes
sociais era melhorar a eficincia e garantir maior controle social ao programa. Nesse sentido,
as aes programadas tendem a ganhar mais legitimidade e a evitar a disperso dos recursos,
consoante previsto no regulamento do Banco da Terra.
Em 25 de fevereiro de 2003, o Fundo de Terras e da Reforma Agrria Banco da
Terra, previsto na Lei Complementar n 93/1998, foi regulamentado atravs do Decreto n
26
4.892, no governo Lula. Trouxe algumas alteraes em relao aos decretos anteriores, que
sero explicitadas ao longo desta seo, omitindo, porm, o termo Banco da Terra, como
smbolo da ruptura com o governo FHC. Essas alteraes se referem, principalmente, ao
impedimento para adquirir imveis passiveis de desapropriao e ampliao das linhas de
financiamento e dos itens financiveis.
Referido decreto, no entanto, explicita definies referentes ao programa de
reordenamento fundirio, de acordo com a Lei Complementar n 93/1998. Em seu art. 1, 1,
I, estabelece que o programa seja a ao do poder pblico que visa a ampliar a redistribuio
de terras, consolidar regimes de propriedade e uso em bases familiares, visando a sua justa
distribuio, por intermdio de mecanismos de crdito fundirio (BRASIL, 2003a). Essa
definio leva em considerao apenas o instrumento tratado na mencionada lei, isto , o
crdito fundirio, no excluindo outros mecanismos, tal como a regularizao fundiria de
pequenas posses.
A criao do Programa Banco da Terra um complemento da reforma agrria
quanto aquisio de terra pelos agricultores familiares sem terra. Contudo, as terras no
poderiam estar sujeitas desapropriao pelo INCRA. Nesse caso, o objetivo era o
financiamento de terras e a execuo de obras de infraestrutura no valor de at R$40 mil, a
serem pagos no prazo de vinte anos. At 2003, o Banco da Terra financiou 17.886 projetos,
contemplou 34,5 mil famlias e foi responsvel pela liberao de R$731 milhes em todo o
Brasil (NUNES et al., 2005).
Tal como outras instituies, os setores ligados aos grandes proprietrios de terra
tambm apoiaram o programa, que veio suprir antigas aspiraes dessa categoria de
agricultores. Nas palavras de Medeiros (2003, p. 63), o Banco da Terra foi considerado pela
CNA o primeiro passo no rumo do acesso democrtico a terra.
Mas o programa sofreu rgidas reaes contrrias a sua implantao bem antes do
seu lanamento. Muitos atores se posicionaram contra as rejeies a essa proposta
governamental e a essa modalidade de acesso a terra, e so analisados por Medeiros (2002).
Ressalta-se a importante contribuio do Frum Nacional pela Reforma Agrria e Justia no
Campo como espao de debate e interveno em esferas diversas que congrega um amplo
leque de organizaes no governamentais, organismos religiosos, entidades de representao
e a Secretaria Agrria do Partido dos Trabalhadores (MEDEIROS, 2002, p. 81). Criado em
1995, o frum articulou-se com as organizaes internacionais de defesa dos trabalhadores
rurais e dos direitos humanos, com o objetivo de promover um vasto debate em torno do
27
modelo de reforma agrria proposto. Entre suas prioridades, estava o combate ao Banco da
Terra e a defesa dos instrumentos de desapropriao por interesse social.
As crticas feitas ao acesso a terra pela via do mercado referem-se s condies
desiguais de negociao entre os compradores de terra e os vendedores, desconhecendo-se as
circunstncias de negociao do programa por parte dos beneficirios; falta de assessoria
tcnica e jurdica aos beneficirios; s influncias polticas na seleo dos beneficirios;
incapacidade dos novos proprietrios de pagarem suas dvidas; obteno de terras de m
qualidade; corrupo, por parte dos agentes pblicos, polticos e proprietrios de terras
interessados em vender seu patrimnio por valores acima do mercado (MEDEIROS, 2002).
Assim, a disputa poltico-ideolgica ocorre pela troca do instrumento de
desapropriao por interesse social pelo instrumento do acesso a terra via Crdito Fundirio.
O debate poltico no se d simplesmente por uma questo de escolha por instrumentos de
acesso a terra; envolve relaes de poder e o papel do Estado, que est na base de qualquer
processo de reforma agrria. Dessa maneira, corrobora-se Bittencourt (1999, p. 2) ao avaliar
que:
Os objetivos da reforma agrria no se resumem distribuio de terras para assentamento de famlias, devem contribuir tambm para a diminuio e/ou rompimento do poder do latifndio, que responsvel pelo atraso poltico, econmico e social de muitas regies brasileiras.
Vale salientar as discusses envolvendo questes mais amplas a respeito da
natureza, intensidade e extenso da poltica pblica de reforma agrria no Brasil. As
articulaes do mencionado frum retardaram a implantao do Banco da Terra por quase
dois anos e inviabilizaram o aporte de recursos do Banco Mundial a esse programa. Segundo
Pereira (2004), baseado em informaes do MDA, os recursos destinados ao Banco da Terra
vieram somente do Oramento Geral da Unio.
Previsto para ser implementado em quatorze Estados brasileiros (Regies
Nordeste e Sul, Esprito Santo e Minas Gerais, no Sudeste esse programa garantiu a excluso
das reas que poderiam ser desapropriadas e a incluso de mecanismos de participao e
controle social. Tal proposta, semelhante quelas j em implementao, recebeu um aporte
total de recursos de 436,4 milhes de Euros, dos quais 50% do Banco Mundial, 40% do
governo federal, 5% dos governos estaduais e 5% das associaes comunitrias, sob a forma
de trabalho (PEREIRA, 2004).
De certa forma o apoio da Confederao Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura (CONTAG) legitimou a proposta que vinha recebendo severas crticas de diversas
28
entidades civis e consolidou a implantao do crdito fundirio no pas. No governo Lula, a
proposta fundiu-se no Programa Nacional de Crdito Fundirio.
Entretanto, a unidade poltico-ideolgica do frum foi rompida quando a
CONTAG, no ano de 2000, incluiu em sua pauta de mobilizao Grito da Terra Brasil a
reivindicao de um programa de crdito fundirio, ou seja, a criao de um fundo com
recursos pblicos para financiar a compra de terras (SAUER; PEREIRA, 2006). Esse foi o
caminho aberto para que o Banco Mundial, mediante um sinal positivo do governo FHC e a
to desejada participao da sociedade civil, mudasse seu apoio financeiro, colocando
recursos no Crdito Fundirio e no mais no Banco da Terra. Em razo do apoio da
confederao, o frum retirou as contestaes e crticas a esse tipo de programa de sua pauta
de lutas e mobilizaes.
A luta contra esse modelo deixou de aglutinar as entidades de representaes do
campesinato contra as polticas liberais em curso no Brasil. Mesmo aqueles movimentos
contrrios a esse tipo de mecanismo relegaram esse embate a um plano secundrio,
enfatizando que a luta deve se concretizar contra o grande agronegcio e os processos de
explorao e expropriao realizados por esse setor no campo (SAUER; PEREIRA, 2006).
Aps diversas regulamentaes, iniciou-se efetivamente a implantao da
proposta do Banco da Terra somente no ano de 2000, sendo implementada at o ano de 2003,
quando foi substituda pelo Programa Nacional de Crdito Fundirio. Nesse perodo, apesar
das reaes contrrias a sua implantao, a procura pelo programa foi superior a sua
capacidade de financiamento (NUNES et al., 2005).
2.1.4 Programa Nacional de Crdito Fundirio
Em 2003, a Secretaria de Reordenamento Agrrio do Ministrio do
Desenvolvimento Agrrio (SRA/MDA) criou o Programa Nacional de Crdito Fundirio
(PNCF), concebido como um mecanismo complementar ao Plano Nacional de Reforma
Agrria. Tal programa possibilita aos trabalhadores rurais sem terra, minifundistas e jovens
rurais o acesso a terra por meio de financiamento para aquisio de imveis rurais.
Ao atribuir a sua poltica neoliberal de acesso a terra com a denominao de
reforma agrria de mercado, o Banco Mundial busca a resoluo do conflito histrico entre os
camponeses sem terra ou com pouca terra e os latifundirios em pases onde a concentrao
fundiria exacerbada. Segundo o banco, a reforma agrria tradicional, via desapropriao,
29
no possvel de ser implementada no momento atual porque as elites econmicas oferecem
bastante resistncia. Traduza-se em muito conflito. O objetivo no incomodar as elites com
as aes desapropriatrias, mas comprar as terras daqueles que esto dispostos a vend-las
pelo preo que pedirem (MARTINS, 2004). Ao mesmo tempo:
Os beneficirios desse programa adquirem uma pesada dvida com crdito usado para comprar a terra. O tamanho dessa dvida baseado no preo pelo qual a terra vendida. [...] Observamos que a terra comprada por pessoas pobres no apenas de m qualidade, mas tambm supervalorizada. Em alguns casos, esses programas tm contribudo para uma tremenda inflao no preo da terra. Ento, provavelmente seguro dizer que a reforma agrria de mercado tem sido mais benfica para os latifundirios, que podem vender terras de pouca qualidade a altos preos (ROSSET, 2004, p. 22-23).
Conforme os impactos das polticas agrrias do Banco Mundial tm demonstrado,
embora tal pacote agrrio tenha centralidade na reduo da pobreza, essa problemtica no
ser solucionada a partir do mercado, seja com a titulao alienvel das terras ou por
intermdio do crdito fundirio. Mencionado pacote de polticas j se encontra em curso em
diferentes pases. Na frica, podem-se citar os casos da frica do Sul, Malau e Zimbbue; na
sia, est implantado na Indonsia e ndia; e, por fim, na Amrica Latina, evidencia-se o caso
da Guatemala, Honduras, El Salvador, Mxico, Colmbia e Brasil (BARROS; SAUER;
SCHWARTZMAN, 2003).
Essa assertiva torna-se passvel de ser observada e externada pelos tcnicos do
Banco Mundial, que sadam a Reforma Agrria Solidria, implementada desde 1997 no
Estado do Cear, e concebida nos moldes do Modelo de Reforma Agrria de Mercado
(MRAM) da referida instituio, como uma experincia exitosa, a nica que o banco
considera como tal no contexto dos vrios programas e projetos por ele financiados ou
estimulados pelo mundo afora. A nica realidade (dos pases j citados) existente demonstra a
falncia da iniciativa, a qual, alm de no conseguir fixar e incluir socialmente o trabalhador
rural, ainda beneficiou os proprietrios de terras. Como observado, estes elevaram seus preos
nas localidades onde foi implementada, consubstanciando-se, dessa forma, uma verdadeira
mercantilizao da reforma agrria (PEREIRA, 2005).
Nesse sentido, importa enriquecer a discusso proposta com os textos produzidos
por diversos autores e organizados por Martins (2004) na obra denominada O Banco Mundial
e a terra: ofensiva e resistncia na Amrica Latina, frica e sia, sobressai a viso de
Resende e Mendona, os quais apontam a falncia sucessiva dos projetos concebidos e/ou
financiados pelo Banco Mundial, cujas etapas, no meio rural, passam pelo cadastro e
georreferenciamento dos imveis rurais; privatizao das terras pblicas e comunitrias;
30
titulao de posses; mercantilizao da reforma agrria; mercado de terras (o qual o Banco da
terra integra); e integrao dos camponeses ao agronegcio, pretensamente destinadas a
favorecer a reforma agrria. Na verdade, resultam na seguinte realidade: [...] o Estado abre
mo da sua obrigao de promover a desconcentrao fundiria por meio da distribuio da
terra e, em vez disso, estimula o controle do territrio agrrio por grandes empresas
(MARTINS, 2004, p. 7), impedindo, dessa forma, a realizao de uma ampla reforma agrria
com poder de transformao social.
Ainda Resende e Mendona (2004, p. 9) acrescentam:
Durante o governo FHC, o Banco Mundial iniciou trs programas que inauguravam uma trajetria de acesso a terra e uma concepo de desenvolvimento rural: Cdula da terra, Banco da terra e Crdito Fundirio de Combate Pobreza. Esses programas beneficiam o latifndio improdutivo com o pagamento vista da terra, com a aquisio de terras devolutas, muitas de m qualidade e com preo inflacionado. As associaes criadas para a compra das reas so muitas vezes organizadas pelosprprios latifundirios, e diversas terras adquiridas poderiam ser passveis de desapropriao.
Com vistas, ao auxiliar o entendimento de como se verificou a transmutao do
discurso poltico atrelado ao Modelo de Reforma Agrria de Mercado, que, de acordo com
Deininger e Binswanger (1999, p. 249), era o de [...] promover a redistribuio de terra a
baixo custo, de modo a melhorar a eficincia econmica, favorecer a equidade social e
combater a excluso, sero chamados a contribuir com a anlise alguns outros autores, como
ficar evidenciado na sequncia.
O interesse do Banco Mundial nas questes ligadas a terra originou-se dos
seguintes motivos: estudos realizados pelos economistas da instituio revelaram que [...] a
distribuio muito desigual de bens, isto , da terra, retarda as taxas de crescimento
econmico e, conseqentemente, alguma redistribuio pode ajudar nesse crescimento
(ROSSET, 2004, p. 17), e o estmulo do fluxo de investimento em reas rurais poderia
contribuir significativamente para esse crescimento, considerado uma espcie de mantra
para a instituio.
Nesse sentido, configurou-se ento a oportunidade histrica para a aplicao do
novo modelo em sociedade de estrutura agrria muito desigual, em que a implementao de
reformas macroeconmicas e polticas de ajuste estrutural teriam provocado uma queda
substancial do preo da terra e reduzido os privilgios conferidos ao segmento de grandes
proprietrios, como bem observam Deininger e Binswanger (1999, p. 267):
A queda nos preos de terras associadas a reformas macroeconmicas, juntamente com a perda de privilgios conferidos a grandes fazendas por leis discriminatrias,
31
proteo comercial e crdito subsidiado, fornece a oportunidade para se programar uma reforma agrria menos nociva ao funcionamento dos mercados.
Trata-se de uma operao de compra e venda voluntria entre agentes privados, ou
seja, uma tpica operao de mercado, pelo fato de envolver o pagamento dos proprietrios
em dinheiro nos valores equivalentes aos de mercado, restando aos compradores, os
trabalhadores rurais sem terra ou minifundirios desprovidos de quaisquer condies para sua
subsistncia, assumir integralmente tanto os custos da aquisio da terra quanto o de
transao.
uma poltica distributiva, na qual ocorre a transferncia de recursos a fundo
perdido, de acordo com o caso, investimento em infraestrutura e produo. Dito de outra
forma trata-se de uma transao de compra e venda de terras entre agentes privados,
financiada pelo Estado, que fornece um subsdio maior ou menor, conforme o caso. Esse
modelo de acesso a terra se insere na estratgia de alvio da pobreza rural do Banco Mundial e
subordina-se s polticas pblicas dirigidas liberalizao e dinamizao de mercados de terra
(PEREIRA, 2005).
Como determina o Regulamento Operativo, o objetivo central do PNCF o [...]
de contribuir para a reduo da pobreza rural e para a melhoria da qualidade de vida, mediante
o acesso a terra e o aumento de renda dos trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra
(BRASIL, 2005b, p. 8).
Esse regulamento reuniu as aes e programas de reordenamento fundirio em
trs linhas bsicas de financiamento. Desse modo, o PNCF divide-se em linhas de
financiamento adequadas a cada pblico. A primeira delas o Programa de Consolidao da
Agricultura Familiar (CAF), que substituiu o Banco da Terra. Essa linha de crdito, assim
como o Banco da Terra, permite o financiamento individual ou coletivo e no dispe de
aporte de recursos do Banco Mundial, consequentemente, no aplica recurso a fundo perdido
para investimentos coletivos, mas beneficia agricultores sem terra ou com pouca terra. A
segunda linha de financiamento refere-se ao Projeto de Crdito Fundirio e Combate
Pobreza Rural ou simplesmente Combate Pobreza Rural (CPR). Essa linha a continuidade
do Programa de Crdito Fundirio e Combate Pobreza Rural (CFPC), criado no governo
Fernando Henrique Cardoso, que j contava com a participao da CONTAG e aporte de
recursos do Banco Mundial, e beneficia a populao mais pobre do meio rural. Para a
obteno desse financiamento obrigatria a formao de associaes ou cooperativas, e os
investimentos comunitrios (produtivos, infraestrutura e sociais) no so reembolsveis. A
terceira linha foi uma opo criada no governo Lula, em 2003, para atender o pblico jovem,
32
especialmente filhos de pequenos agricultores, Nossa Primeira Terra (NPT), que beneficia
jovens de 18 a 28 anos (BRASIL, 2005b).
Dessas linhas, a de financiamento Combate Pobreza Rural a que visa atender
s camadas mais necessitadas da populao rural. O pblico por ela alcanado concentra-se,
sobretudo, na Regio Nordeste, em especial nos bolses de pobreza do semirido brasileiro.
Alm do financiamento do imvel rural, a linha CPR oferece recursos para investimentos
comunitrios na propriedade, possibilitando aos agricultores um impulso essencial para o
desenvolvimento da sua produo agropecuria e os devidos investimentos para moradia e
infraestrutura (BRASIL, 2005a).
A atuao do PNCF tem como base a participao ativa das comunidades
envolvidas. Adotadas de autonomia para elaborar propostas de financiamento, escolher
imveis e negociar preos. Com efeito, a participao social tem sido uma das principais
caractersticas do programa, desde sua concepo at sua efetiva atuao, no s por parte das
comunidades, mas tambm dos Estados, dos sindicatos representantes dos trabalhadores rurais
e dos demais parceiros. Dessa forma, por meio de uma gesto marcada pela descentralizao,
o PNCF atua de maneira transparente, e, assim, propicia aos diversos segmentos envolvidos
no programa exercerem o controle social das aes (BRASIL, 2005a).
Outra finalidade do programa consolidar e ampliar a agricultura familiar,
possibilitando a fixao definitiva das famlias beneficiadas no meio rural, contribuindo, desse
modo, para a reduo do xodo rural (BRASIL, 2005b).
Quanto s dificuldades para a implementao de uma poltica agrria que
contemple os interesses dos trabalhadores rurais sem terra, assalariados, rendeiros e mesmo os
pequenos proprietrios, cujo trao comum a utilizao predominante da fora de trabalho da
famlia, so conhecidas e, em certa medida, derivadas de uma concepo de modernidade que
no leva em conta seus resultados sociais e suas implicaes na construo de um regime
verdadeiramente democrtico.
Tem se tornado um lugar comum as afirmaes dos opositores reforma agrria
segundo os quais no basta a terra; h de se conceder os instrumentos para se produzir mais e
melhor. As variveis - chaves, aqui, so o crdito adequado, o apoio tcnico e a organizao
dos beneficirios. Essas ideias, como intenes, sempre fizeram parte dos programas
governamentais, porm, salvo as excees, sempre foram insuficientes, parciais e
descontinuas, resultando na impossibilidade do desenvolvimento pleno dos trabalhadores
33
rurais que tiveram acesso a terra e na sua vulnerabilidade s mudanas nas polticas pblicas
que, teoricamente, os beneficiariam.
No caso dos pases em desenvolvimento, sob democracias pouco participativas,
comum as polticas pblicas representarem a vontade de quem est no poder. Quando se
mudam os governantes, cessam tambm as atividades e os esforos na condio e construo
de uma determinada poltica pblica (STEIN, 2007).
Esses quatro projetos ou programas (Reforma Agrria Solidria, Cdula da Terra,
Banco da Terra e Crdito Fundirio), apesar de pequenas diferenas, constituem a
materializao da reforma agrria de mercado no Brasil. importante, no entanto, salientar
uma diferena em relao ao Fundo de Terras/Banco da Terra, o qual no se reduz a um
programa governamental, mas possui carter permanente, ganhando o status de Poltica de
Estado (PEREIRA, 2004). Conforme a mesma fonte, esse carter foi reforado em novembro
de 2003, quando o MDA criou o Programa Nacional de Crdito Fundirio, responsvel pela
gesto dos recursos do Fundo de Terras e da Reforma Agrria.
O Programa Nacional de Crdito Fundirio tinha como meta financiar a compra
de terras para 130 mil famlias, entre 2003 e 2006, segundo dados do II Plano Nacional de
Reforma Agrria (INCRA, 2003). A meta do programa de reforma agrria via desapropriao
por interesse social era assentar 400 mil famlias no mesmo perodo (INCRA, 2003), portanto,
esses projetos de mercado correspondiam a algo em torno de 30% das metas de assentamento
(PEREIRA; SAUER, 2006). Esse percentual sustenta o discurso oficial de que o programa de
compra de terras constitui um mecanismo complementar (BRASIL, 2004b, p. 9) aos
programas constitucionais de reforma agrria.
Nos termos em que foi reestruturado, o Fundo de Terras dever operar como um
instrumento de longo prazo. Pela estimativa das projees, sero trinta anos de ao
ininterrupta (PEREIRA, 2005). At 2010, o fundo dever receber, anualmente, cerca de
R$330 milhes do Tesouro Nacional e, a partir de 2012, j capitalizado pela aplicao no
mercado financeiro e pelo pagamento das prestaes dos muturios, poder devolver ao
Tesouro parte dos recursos aportados (BRASIL, 2003b, p. 15). Como observado, a
reestruturao fortaleceu o Fundo de Terras no s como a fonte oramentria de
contrapartida aos recursos do Banco Mundial, mas, especialmente, como uma poltica de
Estado de financiamento de compra de terras (PEREIRA; SAUER, 2006).
Conforme Alencar (2005, p. 244), a gesto do PNCF prev duas instncias. Uma,
o MDA, por meio da UTN, elabora o Plano Nacional de Implantao do Projeto (PNIP), para
34
um perodo de trs anos, no qual constam: objetivos, diretrizes, estratgias de implantao,
metas, difuso, origem dos recursos e aplicao.
A outra instncia refere-se operacionalizao do projeto em nvel estadual que,
nesse caso, necessita do Plano Estadual de Implantao do Projeto (PEIP), elaborado pela
Unidade Tcnica Estadual (UTE), que o encaminha para o Conselho Estadual de
Desenvolvimento Rural Sustentvel (CEDRS) para anlise, e este o envia para a Unidade
Tcnica Nacional (UTN) (ALENCAR, 2005).
Ademais, o PNCF, a partir de maro de 2009, passou a ser executado com
recursos do governo brasileiro, e cada Estado assume sua execuo, por intermdio da sua
Unidade Tcnica Estadual, no monitoramento e acompanhamento do desenvolvimento do
projeto, por meio da informatizao das atividades executadas.
A seguir, o Quadro 1 apresenta a evoluo da reforma agrria no Estado do Cear
no perodo de 1997 a 2008, conforme relatrio da Secretaria de Desenvolvimento Rural
(SDA, 2008).
FONTE DE
FINANCIAMENTO
DOS IMVEIS
CONTRATADOS
PERODO N DE
PROJ.
N DE
FAM.
REA (ha) VALOR SAT VALOR SIC VALOR
TOTAL DO
FINANCIAME
NTO
Projeto Piloto So Jos 1997 44 688 24.052,37 3.997.701,44 5.183.640,69 9.181.342,13
Projeto Piloto Cdula da Terra
Recursos
Conv.INCRA/ESTADO
1997 a
2000144 2000 72.484,81 10.550.355,60 11.121.338,48 21.671.694,08
Projeto Banco da Terra
Recursos Fundo de Terra e da
Reforma Agrria do Governo
Federal
2000 a 2002 112 1590 70.416,68 9.739.597,09 9.448.733,34 19.188.330,43
Projeto Crdito Fundirio
Acordo Emprest. 7037/BR2002 a 2008 192 2.317 67.428,65 15.857.472,36 22.979.071,04 38.836.543,40
Total Contratado -PNCF 462 6.364 227.269,41 40.145.126,49 48.732.787,55 88.877.914,04
Assentamentos Estaduais 1988 a 1996 40 698 29.226,00
Total Geral 502 7.062 256.495,41 40.145.126,49 48.732.787,55 88.877.914,04
Quadro 1: Evoluo da reforma agrria no Estado do Cear (1997 a 17/6/2008)Fonte: SDA, 2008.
Como se pode observar, no Estado do Cear, de 1997 a 2008, foram adquiridos,
pelos quatro projetos e/ou programas de compra e venda de terra, 502 imveis, que
correspondem a 0,38 % dos imveis rurais do Estado (134.782), ocupam 256.495,41 ha, ou
seja, 2,74% do territrio rural (9.351.858ha), e atendem a 7.062 famlias.
2.1.5 Programa Nacional de Crdito Fundirio na atualidade
35
Atualmente o PNCF se organiza com base nos princpios da reforma agrria de
mercado e conta com aporte financeiro do Fundo de Terras e da reforma agrria, passando a
ser desenvolvido com recursos da Unio, aps a assinatura do Decreto n 6.672, de 2 de
dezembro de 2008. Adaptaes foram implementadas em algumas de suas modalidades, com
vistas a ampliar sua abrangncia e direcionar a focalizao para as aes afirmativas do
governo federal (BRASIL, 2009).
O PNCF constitui-se em um mecanismo de acesso a terra, programa
complementar ao Plano Nacional de Reforma Agrria, que contribui para a ampliao e a
consolidao da agricultura familiar. Busca, como resultado, a criao de ocupaes
produtivas permanentes para as famlias beneficiadas, o aumento da renda e a consequente
melhoria das condies de vida da populao rural, por meio do acesso a terra, investimentos
produtivos e em infraestrutura (BRASIL, 2009).
Direcionado ao pblico prioritrio das polticas de combate fome e de incluso
social do governo federal, este programa atua com trs diferentes linhas de financiamento: 1)
Combate Pobreza Rural (CPR), dirigida aos trabalhadores rurais mais pobres, com renda
anual de R$9.000,00, patrimnio inferior a R$15.000,00 e com, pelo menos, cinco anos de
experincia na agricultura; 2) Consolidao da Agricultura Familiar (CAF), focalizada nos
agricultores familiares sem terra ou com pouca terra, com renda anual de at R$15.000,00 e
patrimnio de at R$30.000,00, com, pelo menos, cinco anos de experincia na agricultura e
rea de atuao em todo o Brasil; e 3) Nossa Primeira Terra (NPT), dirigida aos jovens
agricultores entre 18 e 28 anos, com renda anual de R$5.800,00 e patrimnio de at
R$10.000,00, que tenham frequentado a escola por, no mnimo, cinco anos. A rea de atuao
em todo o Brasil (BRASIL, 2009).
Conforme o Manual de operaes (BRASIL, 2009), os elementos essenciais do
PNCF so a descentralizao das aes para os Estados e a participao efetiva e voluntria
das comunidades. Para assegurar o controle social, o PNCF atribui um conjunto de decises
aos Conselhos de Desenvolvimento Rural, dando s associaes ampla autonomia,
envolvendo desde a seleo dos participantes at a escolha e negociao da terra. Cabe ao
governo de Estado a elaborao do Plano Operativo Anual, no qual sero definidos os
objetivos, as diretrizes, as metas, as regies prioritrias, o pblico e a estratgia de ao. A
esfera estadual (CEDRS) tambm avalia e aprova as propostas de financiamento dos
beneficirios qualificados. Os mecanismos de descentralizao e participao da sociedade
36
civil destinam-se a contribuir para uma maior sinergia com aes e programas locais de
desenvolvimento, como aqueles voltados para a infraestrutura, com vistas melhoria das
condies de vida da populao no combate pobreza rural.
Para isso, exige-se dos Conselhos de Desenvolvimento Rural Sustentvel exercer
seus papis, de modo que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentvel
(CONDRAF) estabelea, no mbito nacional, as diretrizes globais e as metas do programa,
alm de aprovar o Regulamento operativo e os Manuais de operaes, visando harmonia
entre este e os demais programas de reforma agrria e de desenvolvimento rural. Parte da sua
funo tambm se concentra na avaliao da execuo do PNCF (BRASIL, 2009).
Como determina o Manual de operaes do PNCF (BRASIL, 2009, p. 68):
Cabe ao Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural Sustentvel (CEDRS) apreciar e aprovar o Plano Operativo Anual (POA) [...], assegurar articulao com as demais polticas e programas existentes no Estado [...] e aprovar as propostas de financiamento de compra e venda de propriedades com recursos do PNCF.
Ainda como determina o referido manual (BRASIL, 2009, p. 69):
Cabe aos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentvel (CMDRS): a) emitir parecer sobre as solicitaes iniciais dos grupos de beneficirios, em particular no que diz respeito elegibilidade dos beneficirios [...]; [...] c) assegurar a articulao do PNCF com os demais programas e polticas pblicas [...]; [...].
De acordo com o Manual (BRASIL, 2009, p. 63), a Unidade Tcnica Estadual
(UTE):
[...] o principal ente responsvel pela execuo do Projeto no respectivo estado, em todos os seus aspectos, incluindo a difuso, o acompanhamento da elaborao das propostas de financiamento, a tramitao e a anlise destas propostas, a anlise e aprovao dos subprojetos de investimentos comunitrios (SIC), a capacitao dos beneficirios e a assistncia tcnica, as liberaes de recursos e o monitoramento da execuo dos projetos pelas comunidades..
Portanto, a UTE gerencia e implementa o Programa Nacional de Crdito
Fundirio e tem como misso a anlise dos pedidos de financiamento para liberao dos
crditos e acompanhamento do programa (BRASIL, 2009)
A Unidade Tcnica Nacional se apresenta como o elemento de ligao entre as
UTEs e as diferentes instituies e instncias, tendo como atribuies o acompanhamento,
monitoramento, avaliao e elaborao de sugestes para alteraes normativas, e a
ampliao da rede de apoio do PNCF, como assistncia tcnica, ONGs, parcerias diversas, as
quais tambm se concretizam, em grande parte, por intermdio ou com o auxlio da UTN
(BRASIL, 2009).
J as associaes comunitrias so constitudas livremente pelos trabalhadores
rurais e tm uma grande responsabilidade, pois por meio delas que so elaborados os
37
projetos produtivos e os contratos com os agentes financeiros, consideradas as principais
bases de apoio ao PNCF.
Os beneficirios escolhem os imveis a serem financiados pelo PNCF dentre
aqueles que se encontrem nas seguintes condies: a) no sejam passiveis de desapropriao;
b) sejam imveis cujos proprietrios possuam ttulo legal e legtimo de propriedade e de posse
e sobre os quais no conste nenhuma dvida que impea sua transferncia legal; c) no se
situem em reservas indgenas ou em reas protegidas por legislao ambiental ou no
confinem com as referidas reas; d) tenham preos condizentes com os de mercado e
apresentem condies que permitam o seu uso sustentvel. Para auxiliar no processo, o PNCF
tem a sua disposio o Sistema de Monitoramento do Mercado de Terras (SMMT)
(SPAROVEK, 2006).
Dessa forma, o desafio da Secretaria de Reordenamento Agrrio (SRA) consistiu
em organizar um programa nacional que atendesse s diversas reivindicaes da sociedade e
abrisse oportunidade para novos pblicos, cuja ocorrncia requereu a realizao de amplos
debates sobre o tema do crdito fundirio como poltica pblica de acesso a terra. At o
primeiro semestre deste ano [2009], o total de famlias beneficiadas no Estado atingiu 2.317
famlias, em rea adquirida de quase 70 mil hectares (ALMEIDA, 2009, p. 19).
Como se percebe, no entanto, a partir de 1997, o governo do Estado do Cear
reduziu significativamente o processo de criao de assentamentos tal como previsto no
Estatuto da Terra e na Constituio Federal de 1988, enveredando para o processo de
aquisio de terras no mercado.
2.2 Consideraes da questo agrria no Cear
Como visto, os diversos programas de compra e venda de terra no Cear
aconteceram legalmente a partir de 1997, com o mercado de terras, o qual teve como
concepo fundante a reforma agrria assistida pelo mercado, desenhada pelo Banco
Mundial e desenvolvida na Amrica Latina (Mxico, Guatemala, Colmbia e Brasil), no
continente africano (Zimbbue e frica do Sul) e no continente asitico (Tailndia e ndia). A
execuo da experincia piloto no Cear antecedeu a implementao da poltica no Brasil.
Conforme Alencar (2000), a articulao da poltica de compra e venda de terra no
Cear comeou com a Conferncia Internacional sobre Impactos de Variaes Climticas e
Desenvolvimento Sustentvel em Regies Semi-ridas (ICID), ocorrida em Fortaleza, em
38
1992, resultando na elaborao do documento intitulado Projeto ridas: uma estratgia de
desenvolvimento sustentvel.
Atravs do Projeto ridas estava proposto no seu plano de metas que viabilizariam
o desenvolvimento sustentvel no Nordeste. Para este projeto, a reforma agrria seria
importante (BRASIL, 1995, p.133), desde que,
os esforos do governo e da sociedade sejam orientados para resultados objetivos, procurando conciliar os diversos interesses e baseando-se, na medida do possvel, em sistemas de incentivos e desincentivos