Universidade Federal do Rio de Janeiro
A CONTÍSTICA DE CARLOS FUENTES E A NARRATIVA MEXICANA MODERNA: A
IMAGINATURA DO TEMPO
BRUNO DA CRUZ FABER
2013
Faculdade de Letras/ UFRJ
A CONTÍSTICA DE CARLOS FUENTES E A NARRATIVA MEXICANA MODERNA: A
IMAGINATURA DO TEMPO
BRUNO DA CRUZ FABER
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Literaturas Hispânicas.
Orientador: Mariluci da Cunha Guberman
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2013
A contística de Carlos Fuentes e a Narrativa Mexicana Moderna:
a imaginatura do tempo
Bruno da Cruz Faber
Orientador: Mariluci da Cunha Guberman
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em Literaturas Hispânicas.
Examinada por:
_______________________________________________________________
Presidente, Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman – UFRJ
_______________________________________________________________
Professora Doutora Sônia Cristina Kapps Reis – UFRJ
_______________________________________________________________
Professor Doutor Antonio Ferreira da Silva Júnior – CEFET-Rio
_______________________________________________________________
Professora Doutora Maria Lizete dos Santos – UFRJ
_______________________________________________________________
Professora Doutora Debora Ribeiro Lopes Zoletti – UFRRJ
Avaliação: .....................................
Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 2013.
FABER, Bruno C.
A constística de Carlos Fuentes e a Narrativa Mexicana Moderna: a imaginatura
do tempo / Bruno da Cruz Faber. – Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2013.
XIII, 235f.: il.; 31cm.
Orientador: Mariluci da Cunha Guberman
Dissertação (Mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-
Graduação em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas), 2013.
Referências bibliográficas: p.141-145.
1. Carlos Fuentes. 2. Narrativa Mexicana Moderna. 3. Literatura da Revolução
Mexicana. 4. Tempo. I. Guberman, Mariluci da Cunha. II. Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas
(Literaturas Hispânicas). III. Título.
RESUMO
A contística de Carlos Fuentes e a Narrativa Mexicana Moderna:
a imaginatura do tempo
Esta dissertação investiga a inserção do escritor mexicano Carlos Fuentes na
denominada Narrativa Mexicana Moderna e como a imaginação do tempo constitui
um elemento essencial em contos do escritor mexicano Carlos Fuentes. À luz dos
pressupostos da literatura memorialística, argumentamos que o tempo está
intimamente relacionado com a memória e junto com o mito estes três elementos
constituem uma tríade inextricável. Em consequência disso, analisamos os
procedimentos técnicos que Carlos Fuentes emprega nos seus contos para construir
essa cosmologia do tempo. Acrescentamos, também, que a memória a serviço da
ficção tenta reconectar as várias partes da realidade e construir o que Carlos Fuentes
denomina como real. Assim, averiguamos como a imaginação do tempo, aliada ao
mito e à memória, estrutura as narrativas dos livros de contos Los días enmascarados,
Cuentos sobrenaturales e Todas las familias felices.
Palavras-chave: Carlos Fuentes; Literatura da Revolução Mexicana; Narrativa Mexicana
Moderna; Tempo.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2013
Resumen
La cuentística de Carlos Fuentes y la Narrativa Mexicana Moderna:
la imaginatura del tempo
Esta tesis de maestría investiga la inserción del escritor mexicano Carlos Fuentes en la
denominada Narrativa Mexicana Moderna y cómo la imaginación del tiempo
constituye un elemento esencial en cuentos del escritor mexicano Carlos Fuentes. A la
luz de los presupuestos de la literatura memorialística, argumentamos que el tiempo
está íntimamente relacionado con la memoria y junto con o mito estos tres elementos
constituyen una tríada inextricable. A consecuencia de tal hecho, analizamos los
procedimientos técnicos que Carlos Fuentes emplea en sus cuentos para construir esa
cosmología del tiempo. Agregamos, también, que la memoria a servicio de la ficción
intenta reconectar las varias partes de la realidad y construir lo que Carlos Fuentes
nombra como real. Así, averiguamos cómo la imaginación del tiempo, aliada al mito y
la memoria, estructura las narrativas de los libros de cuentos Los días enmascarados,
Cuentos sobrenaturales y Todas las familias felices.
Palabras-clave: Carlos Fuentes; Literatura de la Revolución Mexicana; Narrativa
Mexicana Moderna; Tiempo.
RÍo de Janeiro
Febrero de 2013
SINOPSE
Análise da Narrativa Mexicana Moderna.
Estudo da Literatura da Revolução
Mexicana. Constatação do tempo como
elemento estruturador nos contos de Carlos
Fuentes.
Esta pesquisa foi integralmente financiada pela Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
DEDICATÓRIA
À Vida, pelas oportunidades dadas.
Ao México, por fazer-me descobrir uma nova vida.
A Carlos Fuentes, pela paixão compartida do México e da
Literatura.
AGRADECIMENTOS
Todo ato genesíaco tem o seu início, o primeiro cair das peças enfileiradas de
um dominó. Por isso, gostaria aqui de rememorar alguns eventos marcantes durante
minha trajetória. Divido em duas partes: peças-chaves do meu percurso acadêmico na
Faculdade de Letras da UFRJ e amigos que sempre estiveram comigo. Começando pelo
primeiro, eis o germe-fundador: os cursos de Teoria Literária ministrados pela profa.
Maria Lucia Guimarães de Faria, mais conhecida como Maluh. A ela devo o meu amor
pela literatura, pois foi ela que me iniciou no estudo avassalador da literatura.
Pergunto-me se por acaso eu não tivesse estudado com ela se eu teria seguido os
estudos literários. Aqui fica meu muito obrigado mais que especial a ti, Maluh.
Com o avançar dos períodos da graduação tive o privilégio de estudar com
professores que me engrandeceram, não só como estudioso, mas como pessoa.
Citando alguns: Luis Maffei (Poesia Portuguesa), Eucanaã Ferraz (Poesia Brasileira),
Ronaldes de Melo e Souza (Prosa Brasileira) e Manuel Antônio de Castro (Teoria
Literária). Não poderia deixar de mencionar a professora com quem realmente posso
dizer “aprendi espanhol” e que me devolveu o prazer pela língua espanhola e,
portanto, me influenciou de forma indireta aos estudos literários hispano-americanos:
Letícia Couto Rebollo. Não tenho nem palavras para agradecer o que fizeram por mim,
ainda que não saibam o que exatamente fizeram.
Em especial e em destaque, trago à esta seleção a profa. Mariluci da Cunha
Guberman. Se os já mencionados foram os responsáveis (direta ou indiretamente) pelo
meu caminhar em Literatura, Mariluci com certeza foi aquela que me arrebatou para
as veredas da literatura hispano-americana. Com ela aprendi o quão riquíssima é esta
literatura e com ela nasceu o desejo de estudá-la. E o fruto disto é a presente
dissertação, já pensada desde o tempo da iniciação científica. Muito obrigado pela
compreensão e carinho nesses quatro anos de convivência, seja eu como aluno ou
como orientando.
Por fim, não poderia deixar de lembrar e agradecer a dois professores que
conheci no curso de mestrado da UFRJ que me auxiliaram de forma crucial nesta
dissertação: a professora Cláudia Luna (Literatura Hispano-americana) e a professora
Angélica Soares (Teoria Literária).
Porém, essa minha trajetória não teria sido possível sem a presença de pessoas
alheias ao universo acadêmico. Sou eternamente grato a minha mãe, Maria da
Conceição, e a meu avô, José de Oliveira, pela paciência e pelo apoio desde a época da
graduação. Se cheguei aonde cheguei, foi por causa deles. Agradeço a meus amigos
Camila Pinheiro, Carolina Gomes e Úrsula Antunes por terem me aguentado durante
esse tempo.
Um agradecimento muito especial para Caio Castro, o melhor amigo, por ter se
responsabilizado pelas minhas coisas no Brasil enquanto passei uma instância no
México. Foi e é meu braço direito. Aproveitando que mencionei o México, não poderia
me esquecer do professor da UNAM, Jorge Muñoz Figueroa, que me auxiliou nos
estudos literários mexicanos.
E por último, o meu carinho em especial para Gabriel Franco Willword e Luis
Rodrigo Castro Macias. Vocês são dois que valem por muitos. Ninguém sofreu mais a
tensão da escrita da dissertação que vocês. Obrigado por sempre me apoiar e
reconfortar. Espero que ainda haja paciência para suportar-me no doutorado. Thank
you. Gracias.
Fiz este “percurso dedicatório” apenas para ilustrar bem que esta dissertação é
o resultado do trabalho de muitas mãos, de muita ajuda, de muita orientação etc. É
para eles que também dedico esta dissertação.
En el fondo es América misma que escribe su propia nueva, su novela, a través de la carta, el testimonio, las “historias veraderas”. […] la gran literatura hispanoamericana volverá reinteradamente a nutrirse de su propia tradición de cultura. El reconocimiento de sus tradiciones no es entre nosotros tarea libresca o erudita sino nuevo impulso hacia la experiencia viva, la aventura, la política o la mística. […] La lectura hermenéutica impone una mirada de conjunto que puede revelar las constantes de la novela latinoamericana. Para esa mirada de conjunto la primera constatación es la del mundo mítico-simbólico que si bien es convocado en la literatura por palabras, queda más allá de éstas y pertenece al fondo imaginario de la cultura. […] La analogía de los mitos hizo posible el sincretismo americano, importante para comprender el perfil de la cultura hispanoamericana. […] Hablaremos de una trasmodernidad americana para aludir al tiempo americano, a su cultura entretejida entre la contemplación y la acción. […] Las escrituras postulan a América como recomienzo de la Historia. América mismo es una novela.
Graciela Maturo (2010)
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SUMÁRIO
Introdução ...................................................................................................................... 16 Primeira Parte: Antecedentes da Prosa Mexicana Moderna - romantismo, realismo, naturalismo e modernismo ............................................................................................ 20 1. O romantismo mexicano: a supermacia do nacionalismo ......................................... 22
1.1. O romantismo plasmado nas pinturas .................................................................. 22 1.2. Primeira fase do romantismo literário ................................................................. 25 1.3. Segunda fase do romanstimo literário ................................................................. 28 1.4. Terceira fase do romanstimo literário .................................................................. 30 1.5. Recapitulando ...................................................................................................... 32
2. Realismo e Modernismo nas letras mexicanas: a musa vira-lata ............................... 33 2.1. Realismo/Naturalismo plástico ............................................................................ 33 2.2. Realismo/Naturalismo literário............................................................................ 34 2.3 Modernismo nas letras mexicanas ........................................................................ 35 2.4. México finessecular: do cosmos ao caos no Porfiriato ....................................... 37 2.5. Recapitulando ...................................................................................................... 39
Segunda Parte: Literatura da Revolução e Narrativa Mexicana Moderna: as letras mexicanas nos séculos XX e XXI ...................................................................................... 40 3. Pós-modernismo e Revolução Mexicana ................................................................... 42
3.1. Pós-modernismo: continuidade e divergência ..................................................... 42 3.2. Inquietude artística: a revolução no campo da arte plástica mexicana ................ 43 3.3. O Ateneu da Juventudade .................................................................................... 45 3.4. José Vasconcelos e sua revolução intelectual...................................................... 47 3.5. A mexicanidade como arte nacional: o movimento muralista ............................ 50 3.6. Recapitulando ...................................................................................................... 52
4. Da Narrativa da Revolução Mexicana à Narrativa Mexicana Moderna ..................... 53 4.1. A neo-escritura da Revolução Mexicana: Los de abajo, de Mariano Azuela ..... 55
4.1.1. Realismo crítico ............................................................................................ 56 4.1.2. A prosa como cronista da barbárie ............................................................... 57
4.2. Al filo del agua, de Agustín Yáñez: a obra inaugural da Narrativa Mexicana Moderna ...................................................................................................................... 63
4.2.1. Poética da Prosa Mexicana Moderna ........................................................... 63 4.2.2. A topografia espiritual em Al filo del agua .................................................. 68
4.3. Pedro Páramo e a mitografia rulfiana da morte .................................................. 71 4.3.1. Os dois eixos narrativos: a história do Pai e do Filho .................................. 72 4.3.2. A mitografia da morte .................................................................................. 74
4.4. Recapitulando ...................................................................................................... 80 Terceira Parte: A contística de Carlos Fuentes e a imaginatura do tempo .................... 82 5. A poética do conto em Carlos Fuentes ....................................................................... 85
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5.1. O conto moderno ................................................................................................. 85 5.2. O fantástico .......................................................................................................... 88 5.3. Recapitulando ...................................................................................................... 91
6. A gênese do tempo mítico em Los días enmascarados ............................................. 92 6.1. A duplicidade da máscara nos contos: memória e esquecimento ........................ 93
6.1.1. Sobre o conceito de memória ....................................................................... 94 6.1.2. O tempo quadridimensional ......................................................................... 96 6.1.3. Da memória individual ................................................................................. 97 6.1.4. Da memória coletiva..................................................................................... 98 6.1.5. Das memórias e o tempo .............................................................................. 99
6.2. “Chac Mool” e a tríade inextricável mito-tempo-memória .............................. 101 6.3. A relação de interdependência entre Mito e Natureza ....................................... 108 6.4. "Tlactocatzine, del jardín del Flandes": a natureza subermegida no mito......... 109 6.5. Recapitulando .................................................................................................... 113
7. Cuentos sobrenaturales: a conjugação entre mito e história .................................. 115 7.1. Mito, história e ficção ........................................................................................ 115 7.2. O tesouro do passado: "Un fantasma tropical" e a (des)memória coletiva........ 118 7.3. Recapitulando .................................................................................................... 120
8. A dissonância poética do tempo em Todas las familias felices................................ 122 8.1. Cosmologia mesoamericana: a concepção do tempo ........................................ 122 8.2. O estatuto irônico da (in)felicidade: a desconstrução urdida nos contos .......... 126 8.3. Fragmentação espaço-temporam em "Una familia de tantas" ........................... 126 8.4. "Madre dolorosa": a árdua tarefa da desconstrução .......................................... 130 8.5. Memória fragmentadas em "El padre eterno": entre a lembrança e o esquecimento ............................................................................................................ 134 8.6. Recapitulando .................................................................................................... 137
Conclusão...................................................................................................................... 139 Referências bibliográficas ............................................................................................ 141
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Introdução
De la fusión de imaginación y literatura surge el término ‘imaginatura’, concepto que pretende repensar la relación entre ambas y señalar sus implicaciones socioculturales no ajenas a la memoria. No existe literatura sin imaginación, ni imaginación sin memoria, por lo que consideramos que la recuperación de acontecimientos a través de la ficción escrita, implica, a su vez, la reinterpretación y reinvención de un pasado que suele “actualizarse” con tono y color que reclama erigirse como “verdad”.
Carlos Huamán (2010)
Nesta dissertação nos propomos a estudar a constística do escritor mexicano
Carlos Fuentes à luz da teoria memorialística (Bosi, 1994; Bergson, 1999; Candau,
2010). Também a inserção do mesmo no contexto da Narrativa Mexicana Moderna.
Carlos Fuentes, por ter escrito muitos livros ao longo de sua vida, possui uma obra
muito vasta que não poderemos abarcar aqui em sua totalidade. Por isso,
selecionamos para analisar criticamente os contos do referido escritor mexicano
(“Chac Mool”, “Tlactocatzine, del jardín de Flandes”, “Un fantasma tropical”, “Una
familia de tantas”, “Madre dolorosa” e “El padre eterno”), além do fato de haver
pouca pesquisa referente a sua contística, principalmente aos livros escritos neste
século.
Ao longo de nossa pesquisa comprovaremos que o tempo é um elemento
essencial na poética de Carlos Fuentes. O próprio não o nega, uma vez que agrupou
todos os seus livros em um projeto que ele denominou de “La edad del tiempo”.1
Carlos Fuentes dividiu seus contos e romances (o escritor não incluiu os ensaios), à
semelhança de Agustín Yáñez, conforme pode ser verificada nas orelhas dos últimos
livros publicados pela editora Alfagua. O escritor mexicano agrupou alguns livros sob
um título, às vezes com o mesmo nome de algum livro ou com nome diferente.
Algumas divisões apenas comportam um livro e é este que dá nome à divisão feita por
Fuentes.
1 “A idade do tempo” (Tradução nossa).
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Nome da agrupação
Nome dos livros
01
El mal del tiempo
Aura Cumpleaños Una familia lejana
02
Tiempo de fundaciones
Terra nostra El naranjo
03
El tiempo romántico
La campaña La novia muerta El baile del Centenario
04
El tiempo revolucionário
Gringo viejo Emiliano en Chinameca
05 La región más transparente La región más transparente
06 La muerte de Artemio Cruz La muerte de Artemio Cruz
07 Los años com Laura Díaz Los años com Laura Díaz
08 La voltundad y la fortuna La voltundad y la fortuna
09
Dos educaciones
Las buenas conciencias Zona sagrada
10
Los días enmascarados
Los días enmascarados Constancia Instinto de Inez Carolina Grau
11
Fronteras del tiempo
Cantar de ciegos Frontera de cristal Todas las familias felices
12
El tiempo político
La cabeza de la hidra La Silla del Águila El camino de Texas
13 Cambio del piel Cambio del piel
14 Cristóbal Nonato Cristóbal Nonato
15
Crónicas de nuestro tiempo
Diana o la cazadora solitaria Aquiles o el guerrillero y el asesino Prometeo o el precio de la libertad
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Para poder compreender a poética de Carlos Fuentes, isto é, sua cosmovisão
literária, dentro da Narrativa Mexicana Moderna, dividimos essa dissertação em três
partes. Na primeira parte estudamos os antecedentes literários da Prosa Mexicana
Moderna que a influenciaram: o romantismo, o realismo e o modernismo mexicano.
Assim, no primeiro capítulo faremos uma revisão da produção romântica e
constataremos a literatura sob a ideologia da independência do México. No capítulo
dois averiguaremos como se dá o passo do romantismo ao realismo e ao modernismo.
Com respeito à segunda parte do nosso trabalho, estudaremos no capítulo três
o pós-modernismo e a Revolução Mexicana. Esta mudará drasticamente o panorama
político, social, cultural e literário (Gallegos, 2010). Comprovaremos que é da
revolução que nasce o México Moderno e, por conseguinte, a Narrativa Mexicana
Moderna (Molano Nucamendi, 2011). No quarto capítulo assentaremos as bases que
formam a Literatura da Revolução Mexicana e de que forma essa literatura deslocou
todas as demais para a periferia da cultura literária vigente. De dita escola
analisaremos Los de abajo, de Mariano Azuela. Depois constataremos as profundas
mudanças nos romances Al filo del agua, de Agustín Yáñez e Pedro Páramo, de Juan
Rulfo. Com Yáñez veremos o início da Prosa Mexicana Moderna.
Na terceira parte da pesquisa, nos centraremos na figura de Carlos Fuentes. No
entanto, no capítulo cinco estudaremos o conceito de conto e de literatura fantástica
que serão fundamentais para entender a tessitura dos contos do referido escritor
mexicano. No sexto capítulo analisaremos a gênese do tempo mítico, isto é, como
Carlos Fuentes constrói o mito, associado ao tempo e à memória e aplicados nos
contos “Chac Mool” e em “Tlactozatzine, del Jardín de Flandes”. Também estudaremos
a relação dialética que há entre mito e natureza. Para tanto, faremos um breve estudo
das principais aportações ao conceito de memória e de mito.
No capítulo sete estudaremos a relação existente entre memória e história e de
que forma a memória poética busca a totalidade do real. A título de exemplificação,
aprofundaremos nosso tema em “Un fantasma tropical”. No último capítulo
averiguaremos como se faz a cosmologia indígena do tempo na tessitura dos contos
“Una familia de tantas”, “Madre dolorosa” e “El padre eterno”. Constataremos que, ao
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longo da terceira parte da pesquisa, a imaginação do tempo é o eixo central dos
referidos contos. Como não há literatura sem imaginação, buscamos compreender a
imaginatura do tempo nos contos do escritor Carlos Fuentes em consonância com seu
contexto literário.
Para delimitar bem o objeto de estudo desta dissertação, faz-se necessário
lançar mão das negativas, afirmar o que aqui não se pretende realizar e, por fim,
dizermos o que nos propomos a estudar. Primeiramente, não realizaremos um estudo
sobre toda a obra do escritor mexicano Carlos Fuentes. Escolhemos trabalhar com a
contística. Segundo, não estudaremos todos os contos deste escritor. Não se trata de
um estudo quantitativo. Aqui realizaremos um estudo sobre três livros de contos de
Fuentes: Los dias enmascarados, Cuentos sobrenaturales 2 e Todas las familias felices.
Terceiro, não abordaremos todos os contos dos livros supracitados.
Selecionamos aqueles que consideramos mais emblemáticos para o tema do nosso
estudo e que permitem um diálogo com outros contos de Fuentes. Ou seja,
selecionamos contos que fazem elo entre o tema do tempo e da imaginação na
construção doscontos do referido escritor: a imaginatura fuentiana. Quarto, o critério
empregado na seleção dos contos se deu na medida em que eles apresentavam
elementos míticos do pensamento pré-hispânico. Mas não iremos fazer uma análise
histórica ou social da mitologia pré-hispânica e nem tão pouco um estudo contrastivo
desses elementos, seja dos contos dentro de um livro ou inter-livros. Esta dissertação
realiza um estudo do entrelaçamento da imaginação do tempo do pensamento mítico
pré-hispânico com a tessitura poética dos contos fuentianos a partir das próprias
estratégias estabelecidas.
2 Este livro não se encontra presente na listagem que o próprio Carlos Fuentes realiza sobre sua obra por se tratar de um livro que agrupa contos anteriormente publicados. No entanto, para o referido livro, Fuentes escreveu dois novos contos que, até onde pudemos constatar, não se repete em nenhum outro livro de contos.
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PRIMEIRA PARTE
ANTECEDENTES DA PROSA MEXICANA MODERNA - ROMANTISMO, REALISMO,
NATURALISMO E MODERNISMO
Todo gran escritor, todo gran crítico, todo gran lector, sabe que no hay libros huérfanos: no hay textos que no desciendan de otros textos.
Carlos Fuentes (2011, p.132)
No México do século XIX há um conglomerado de fatos políticos de suma
importância que afetarão o discurso e a produção literária da época. De acordo com a
pesquisadora Guadalupe Gómez-Aguado (2010), dito século possui como principais
características políticas (i) o movimento de Independência que abarca os anos de
1810-1821; (ii) o primeiro império que vai de 1822 a 1823; (iii) a disputa entre o
federalismo e o centralismo entre 1824 e 1846; (iv) a invasão dos Estados Unidos
iniciada em 1846 e, consequentemente, a perda de parte do território até então
mexicano dois anos depois; (v) a ditadura de Antonio López de Santa Anna entre 1852
e 1855; (vi) as Leis de Reforma promulgadas por Benito Juárez entre o período 1856-
1867; (vii) a reconstrução da República de 1867 a 1876 e, por fim, mas não menos
importante, (viii) o porfiriato que engloba desde a última data referida até 1910, ano
em que inicia a revolução mexicana que retira do poder a Porfirio Díaz.
Esta primeira parte da dissertação tem como meta estabelecer a herança sócio-
literário-cultural que influi na obra do escritor mexicano Carlos Fuentes e que pertence
à Prosa Moderna Mexicana. Nesta primeira parte, temos dois capítulos, o primeiro
referente ao contexto sócio-cultural da primeira metade do século XIX cuja corrente
literária vigente era o romantismo. No segundo capítulo abordaremos o estilo de
época predominante no final do século XIX, a saber, realismo/naturalismo e
modernismo. O estudo dessas épocas é importante para poder averiguar como Carlos
Fuentes absorve essa herança sócio-literária, isso se faz necessário porque
21
entendemos que os movimentos literários são confluências de estilos e pensamentos
entrelaçados com a cultura e o imaginário da época. Procuramos também rastrear os
pilares fundadores da Prosa Mexicana Moderna nos dois estilos literários
antecedentes, a saber: o quadro de costumes e o realismo, embora este seja para ser
criticado na denominada Narrativa da Revolução Mexicana.
22
O romantismo mexicano: a supremacia do
nacionalismo
Neste capítulo buscamos assentar as bases do movimento romântico mexicano.
Procuramos compreender quais as principais transformações que sucederam nesse
movimento no campo artístico e quais as principais aportações às futuras gerações de
escritores e poetas. Averiguaremos que, igualmente ao movimento insurgente em prol
da independência mexicana, os escritores da referida época estavam carregados da
ideologia libertária: escritores com a caneta em uma mão e a espada na outra. Antes
de entrarmos ao estudo literário, faremos um panorama da arte na época do México
Independente para que possamos vislumbrar através da pintura o que os escritores
tentavam representar com as palavras.
1.1. O romantismo plasmado nas pinturas
No México e em grande parte da América Hispânica temos durante o século XIX
como movimento literário predominante o Romantismo. Como apontam Valenzuela e
Rodríguez (2010), um fato importante no século XIX no que se refere às artes, em
especial às artes plásticas, é a fundação da Real Academia de San Carlos na Cidade do
México, porque “...foi um acontecimento fundamental para regular a formação
artística oficial de uma maneira profissional e sistemática” 3 (2010, p.186). A Academia
seguia os padrões neoclássicos em detrimento do até então barroco exuberante. No
entanto, com o movimento insurgente e a consolidação da Independência do México,
a Academia de San Carlos ficou à deriva uma vez que era apegada ao modelo
ideológico e econômico do período colonial.
A historiografia da arte mexicana se voltou, principalmente, para o estudo das
artes plásticas regionais de Jalisco e Puebla. Vemos neste contexto o florescimento da
3 No original: “fue un acontecimiento fundamental para regular la formación artística oficial de una manera profesional y sistemática”. (Tradução nossa)
1
23
pintura de retrato em que podemos citar como maiores ícones desse período a José
María Estrada, Rafael Aspeitia e Hermenegildo Bustos (1832-1907), este último como
maior expoente e cuja obra foi admirada por Diego Rivera. O principal recurso utilizado
por Bustos foi a pintura de costume. Esta técnica depois será reaproveitada pelo
Romantismo e pelo Realismo mexicano.
Outro fenômeno que sucedeu nessa época foi a impressão de álbuns
litográficos e revistas literárias ilustradas. Ainda de acordo com Valenzuela e Rodríguez
(2010, p.202), devido à Independência do México em relação à Espanha, “Tanto nos
álbuns quanto nas caricaturas se abordaram assuntos relacionados com a identidade
mexicana” 4. Por isso, entre as publicações realizadas nesse período podemos
destacar: El mosaico mexicano o colección de amenidades curiosas e instructivas
(1837), Monumentos de México, tomados del natural y litografiados por Pedro Gualdi:
pintor de perspectiva (1841), Álbum Mexicano. Periódico de Literatura. Artes y Bellas
Letras (1849), e Los mexicanos pintados por sí mismos. Tipos y costumbres nacionales
(1854).
Nessas obras “...é óbvia a idealização sobre seus objetos de representação, a
imitação da natureza pretende ser fiel, quase científica no caso das paisagens” 5
(VALENZUELA & RODRÍGUEZ, 2010, p.202). O curioso neste caso é que estas pinturas já
possuem marcas do romantismo – como se nota na idealização dos objetos – e do
realismo – na tentativa de fazer um retrato fiel da natureza. No entanto,
academicamente ainda não se pode falar de realismo porque este data da segunda
metade do século XIX. Mas podemos mencionar que o realismo começa a ganhar
corpo já na primeira metade do referido século.
Em 1843, graças aos decretos emitidos pelo ditador Antonio López de Santa
Anna, a Academia de San Carlos pôde ser resgatada. No obstante, ao ser reerguida a
Academia, mais uma vez, se mostra um tanto quanto defasada em relação com
contexto artístico mexicano. Enquanto, desde 1837, já se começa a produzir uma arte
romântica com tons realistas, cinco anos depois a Academia de San Carlos enfoca,
principalmente, no romantismo e em particular nos nazarenos.
4 No original: “Tanto los álbumes como en las caricaturas se abordaron asuntos relacionados con la identidad mexicana”. (Tradução nossa) 5 No original: “...es obvia la idealización sobre sus objetos de representación, la imitación de la naturaleza pretende ser fiel, casi científica en el caso de los paisajes”. (Tradução nossa)
24
A partir de 1855 surge o segundo grande momento da pintura paisagística.
Confome o estudo de Velenzuela e Rodríguez (2010, p.229): “...os projetos culturais e
as pessoas do meio artístico no México logo entenderam a necessidade imperiosa de
que na Academia de San Carlos se impulsionasse de maneira moderna a criação de
uma cátedra independente de paisagem” 6. Com a criação do curso independente de
paisagismo, a Academia conseguiu finalmente exprimir uma arte moderna dentro do
contexto sociocultural mexicano.
A princípio as obras tinham uma forte influência do idealismo romântico (que já
se produzia particularmente a partir de 1843), mas com o passar do tempo foi
ganhando tons mais naturalistas, o que já era de se esperar tendo em vista que esse
modelo de naturalidade era próprio “...de uma era mecanicista e da visão sobre o
progresso e o conhecimento científico no âmbito filosófico do positivismo” 7
(VALENZUELA & RODRÍGUEZ, 2010, p.221).
Este grupo de escultores paisagistas fundou o que atualmente se conhece como
a Escuela Mexicana del Paisaje. Como grande figura dessa Escola temos a José María
Velasco (1840-1912). Esse importante pintor conseguiu plasmar nas suas telas duas
tendências quase que antagônicas: o romantismo com os elementos teórico-práticos
do paisagismo clássico. Velasco é considerado um dos fundadores da Arte Mexicana
Moderna que abarcou até o período denominado Escuela Mexicana de Pintura
Contemporánea, uma vez que foi professor de alguns dos ícones do nacionalismo pós-
revolução como, por exemplo, Diego Rivera.
Até agora fizemos um panorama de como está configurada artisticamente a
primeira metade do século XIX no México. A título de recapitulação vimos que no início
desse século, ainda no México Colonial, temos a fundação da Academia de San Carlos,
responsável por determinar as diretrizes e a educação aos artistas plásticos de até
então. No seu início possuía um estilo muito neoclássico que sufocou o até então
fortemente presente, o barroco mexicano.
6 No original: “...los proyectos culturales y la gente del medio artístico en México pronto entendieron de la necesidad imperiosa de que en la Academia San Carlos se impulsara de manera moderna la creación de una cátedra independiente de paisaje”. (Tradução nossa) 7 No original: “...de una era mecanicista y de la visión sobre el progreso y el conocimiento científico en el ámbito filosófico del positivismo”. (Tradução nossa)
25
Com o início do movimento de independência e durante umas três décadas
depois, a Academia perdeu sua importância, uma vez que sempre esteve ligada à
aristocracia espanhola e sua ideologia. Com isso floresceu a pintura de retratos e os
quadros costumbristas, que ainda seriam utilizados no romantismo e no realismo.
A Academia San Carlos apenas volta à ativa no governo de Santa Anna. A partir
desse momento a Academia se volta para o romantismo de estilo mais religioso,
denominado pela historiografia plástica de nazareno. A partir de 1855 é que a
Academia dá um salto evolutivo e cria a cátedra de Paisagismo e dela surge um dos
maiores pintores mexicanos da história, José María Velasco, que reúne em suas obras
os estilos clássico e romântico. Velasco é precursor da Escola Mexicana de Pintura
Contemporânea. A partir da segunda metade do século XIX o romantismo começa a
entrar em declive e surge um novo estilo artístico: o naturalismo pictográfico.
1.2. Primeira fase do romantismo literário: resgate do passado distante e a criação da
identidade mexicana
Passemos agora a um panorama da Literatura Mexicana no que concerne ao
romantismo. Veremos que o romantismo mexicano se divide em três etapas
cronológicas: (i) resgate do passado pré-hispânico e colonial; (ii) críticas e denúncias do
antigo regime e (iii) o nacionalismo literário, que na verdade é um período de transição
ao realismo.
Ao voltar à primeira metade do século XIX, temos o início do movimento
romântico na América Hispânica. Como ressalta o ensaísta Imbert (2010a), justamente
pelo espírito nacionalista aflorado pelas guerras de independência, os países rejeitam
qualquer forma de influência da Espanha e passam a se espelhar na França, isso
porque ”a literatura não podia ser mais uma extensão da espanhola” 8 (CASTRO
MEDINA, 2010, p.291).
Ainda de acordo com Imbert (2010a), os hispano-americanos adotaram a
França como madrasta. Justamente nas primeiras obras românticas escritas nos países
de língua espanhola temos forte influência do romantismo francês. No entanto, por 8 No original: “la literatura no podía ser más una extensión de la española”. (Tradução nossa)
26
mais que os escritores e poetas quisessem, o costume de ter como referência a
Espanha não pôde ter sido deixado de lado por muito tempo, e com o passar do tempo
também encontramos uma maior influência do romantismo espanhol nos escritores
hispano-americanos.
O teórico Imbert (2010a) divide, didaticamente, o romantismo em duas fases:
uma antes e outra posterior ao ano de 1850. A primeira fase se caracteriza por um
grande vigor ideológico e estético e a segunda fase pelo declínio da ideologia
romântica e a transição em direção a uma literatura realista.
Ainda de acordo com o estudo de Imbert (2010a), as principais características
que conformam a literatura romântica são: (a) o espírito libertador a respeito das
autoridades do passado; (b) o autor romântico se sente o centro do mundo e ao
mesmo tempo criatura do mundo; (c) a afirmação da inspiração livre e espontânea; (d)
defesa dos direitos a uma língua americana; (e) a busca por uma sintaxe romântica que
expressasse a imprecisão do pensamento; (f) a aquisição de novos sentidos a respeito
dos gêneros literários; (g) a descrição de paisagens reais ao cenário narrativo para dar
um tom de “cor local”; (h) e especialmente nos países com forte presença indígena
quando temos a idealização do indígena.
Em relação ao contexto cultural mexicano, Castro Medina (2010, p.293)
assinala que um fato de extrema importância para as letras mexicanas foi a fundação
da Academia de Letrán em 1836 porque esta foi a responsável por implantar, a partir
de uma associação de escritores, uma literatura nacional: “...correspondeu à geração
da Academia de Letrán a ‘criação’ de uma literatura mexicana ou, se desejar, nacional
ou republicana” 9. Isto é, essa Academia foi responsável por “mexicanizar” a literatura,
emancipando-a.
Para conseguir alcançar tal objetivo, a Academia de Letrán se focou, de acordo
com Castro Mediana (2010), em elementos próprios da nacionalidade mexicana
(linguagem, tema, paisagens, costumes) que incorporaram à poética literária os três
componentes históricos do México: o indígena, o colonial e o republicano.
Segundo a historiografia literária mexicana, encontramos como escritores de
referência da primeira fase do romantismo mexicano a Ignacio Rodríguez Galván
9 No original: “...a la generación de la Academia de Letrán le correspondió la ‘creación’ de una literatura mexicana o, si se quiere, nacional o republicana”. (Tradução nossa)
27
(1816-1842), que representa duas das máximas da narrativa romântica mexicana
(Imbert, 2010a): (i) assuntos históricos e (ii) aventuras e lances de amor. De acordo
com Castro Medina (2010), o escritor Rodríguez Galván é considerado o primeiro
romântico mexicano, se bem que é mais conhecido por seus poemas que por sua
prosa.
Outro escritor que merece destaque é o zacatecano Fernando Calderón (1809-
1845) que tem sua obra marcada pela ironia que ele realiza sobre os excessos do
próprio romantismo. Poderíamos chamá-lo, de acordo com Castro Medina (2010), de
escritor romântico ou anti-romântico por sua comédia A ninguna de las tres. Em geral,
suas obras apresentam um nacionalismo libertário (Imbert, 2010a, p.262-263).
O romantismo mexicano, conforme já alertara Imbert (2010), em sua análise
das características da literatura romântica, vai em busca do ser indígena, porque “...é
com o romantismo que a literatura se abre à velha cultura indígena, se bem que a
porta que se abre é essa por onde entram e saem a fantasia, a improvisação e o
entusiasmo fácil” 10 (IMBERT, 2010a, p.265). Não obstante, “...o romance romântico
idealizou ao índio apresentando-lhe como personagem poético ou exótico ou lendário
ou histórico” 11 (IMBERT, 2010a, 265). É o caso do poeta José María Roa Bárcena
(1827-1908) que se inspirou nas lendas indígenas, na colorida vida popular, nas
paisagens mexicanas. Este fato é muito importante pois também será uma
característica da prosa moderna mexicana, no entanto, não mais o indígena como
idealizado, mas como símbolo do moderno.
A respeito da prosa romântica mexicana, encontramos como uma das principais
características o quadro costumbrista que, à diferença do século XVIII, assim se
apresenta: “o escritor está mais interessado na trama do romance do que no
ambiente. Além de que o tema e o ambiente lhe interessam mais do que a sátira
social” 12 (IMBERT, 2010a, p.279). Não podemos deixar de citar a Vicente Riva Palacio
(1832-1896), que reclama atenção dentro do romance histórico mexicano. Além do
10 No original: “...es con el romanticismo que la literatura se abre a la vieja cultura indígena, si bien la puerta que se abre es ésa por la que entran y salen la fantasía, la improvisación y el entusiasmo fácil”. (Tradução nossa) 11 No original: “...la novela romántica idealizó al indio presentándolo como personaje poético o exótico o legendario o histórico”. (Tradução nossa) 12 No original: “...el escritor está más interesado en la trama de la novela que en el ambiente. Además, tema y ambiente le interesan más que la sátira social” (Tradução nossa)
28
fato de que ele foi “[depois de Roa Bárcena] o fundador do conto mexicano” 13
(IMBERT, 2010a, p.281).
Havia uma disputa entre clássicos e românticos pela preferência do público
leitor mexicano. De acordo com um artigo publicado na revista El Mosaico Mexicano,
“Clássicos e românticos disputam hoje a porfia a preferência na república das letras.
[Clássicos] Suas obras são em comum relimadas e polidas, mas em troca disso estão
geralmente desnudas de entusiasmo” 14 (ANÓNIMO, 1837, p.285-286). Ainda segundo
o autor desconhecido, os românticos “se entregam exclusivamente a mãos da sua
imaginação e de seus sentimentos. [...] embora algumas vezes sejam incorretos,
também são comumente mais originais e mais ricos” 15.
1.3. Segunda fase do romantismo literário: crítica do passado recente e a disputa
entre liberais e conservadores
A partir de 1850, conforme observa Imbert (2010a), o romantismo começa a
entrar em declive porque os escritores passam a se preocupar mais com o romântico
que o estético, que foi a causa da ruptura provocada pelo romantismo alemão com a
tradição literária até então (ABRAMS, 2010). Segundo palavras do próprio ensaísta
Imbert (2010a, p.289), “o romantismo não tem já os brilhos teóricos de antes. [...] Faz-
se literatura romântica sem ostentar deliberadamente suas fórmulas estéticas” 16.
Embora a data de 1850 seja emblemática para Imbert (2010a), no México dois
eventos foram importantes para a manutenção da crítica romântica e das formulações
do quehacer literário: o Ateneu Mexicano e o Liceu Hidalgo. Devido à disputa entre
conversadores e liberais, estes últimos fundaram associações e agrupações para
difundir seus ideais. Por isso, em 1840 temos a criação do Ateneu Mexicano, fundado
13 No original: “[después de Roa Bárcena] el fundador del cuento mexicano”. (Tradução nossa) 14 No original: “Clásicos y românticos disputan hoy a porfía la preferencia en la república de las letras. [Clásicos] Sus obras son por lo común relimadas y pulidas, pero en cambio de eso están generalmente desnudas de entusiasmo”. (Tradução nossa) 15 No original: “...se entregan exclusivamente en manos de su imaginación y de sus sentimientos. […] aunque algunas veces sean incorrectos, también sean por lo común más originales y más ricos”. (Tradução 16 No original: “el romanticismo no tiene ya los brillos teóricos de antes. (...) Se hace literatura romántica sin ostentar beligerantemente sus fórmulas estéticas”. (Tradução nossa)
29
por Ángel Calderón de la Barca que tinha como principal objetivo “a discussão sobre o
papel, importância e utilidade da literatura” 17 (CASTRO MEDINA, 2010, p.311). Por
problemas políticos e econômicos o Ateneu Mexicano só perdurou por quatro anos.
No entanto, em 1850 o escritor e general José María Tornel funda o Liceu
Hidalgo, que possuía caráter institucional uma vez que sempre recebeu apoio do
governo e sua inauguração foi precedida pelo presidente da República mexicana, José
Joaquín Herrera. Com a ascensão de Porfirio Díaz ao poder, há o apaziguamento entre
a luta de liberais e conservadores, ou seja, de românticos e clássicos, e
consequentemente o Liceu Hidalgo perde seu foco e objetivo, fechando as portas
definitivamente em 1893.
Apesar do surgimento do Ateneu Mexicano e do Liceu Hidalgo, de fato se nota
uma mudança na produção literária da época e esta se deu devido aos fatores
históricos de grande importância que mudaram a história do país cujos “mexicanos
que viveram entre 1848 e 1867 foram atores e testemunhas de ações dramáticas” 18
(CASTRO MEDINA, 2010, p.307). Podemos destacar, segundo o estudo de Zoraida
(2010), (i) o império de Maximiliano, (ii) a restauração da república e a ditadura de
Santa Anna, (iii) a guerra e a perda de parte do território para os Estados Unidos, (iv) a
elaboração da Constituição de 1857 que acarretou (v) a Guerra da Reforma.
Estes fatos fizeram com que muitos escritores se dividissem entre a espada e a
pena para escrever. No meio deste jogo de reviravoltas políticas temos a dois atores
históricos: os conservadores e os liberais, e não é possível negar que esta luta pelo
poder influenciou as tendências literárias da época. Como verificamos em Castro
Medina (2010, p.310), “O gosto romântico servia como bandeira aos liberais enquanto
que a formação clássica era preferida pelos conversadores” 19.
No tocante à segunda fase romântica mexicana, na poesia encontramos a
poetas “chapados de tradição. A tradição era clássica de espírito virgiliano” 20 (IMBERT,
2010a, 290), conforme se pode notar em Los Murmullos de la selva, de Joaquín Arcadio 17 No original: “la discusión sobre el papel, importancia y utilidad de la literatura”. (Tradução nossa) 18 No original: “mexicanos que vivieron entre 1848 y 1867 fueron actores y testigos de sucesos dramáticos”. (Tradução nossa) 19 No original: “el gusto romántico servía como bandera a los liberales, mientras que la formación clásica era preferida por los conversadores”. (Tradução nossa) 20 No original: “chapados de tradición. La tradición era clásica de aliento virgiliano”. (Tradução nossa)
30
Pagaza (1839-1918). No campo da prosa encontramos já a formação de uma literatura
mais realista, que ao invés da romântica “foi reduzindo mais e mais o voo da fantasia.
À filosofia romántica da história sucedeu o positivismo” 21 (IMBERT, 2010a, p.308), o
qual no contexto histórico mexicano se encaixa na ideologia do governo ditatorial de
Porfirio Díaz.
A segunda fase romântica mexicana se deve ao apelo político dos escritores
envolvidos, não mais para fundar e criar a nacionalidade mexicana, voltando-se ao pré-
hispânico, mas agora temos a liberais e conservadores escrevendo obras de críticas
mútuas (Castro Medina, 2010). Podemos citar neste contexto a dois grandes
escritores: José María Lafragua (1813-1875) e Luis de la Rosa (1804-1856), ambos
usaram o quadro costumbrista em suas narrações, cujo fundo crítico era questionar as
atrocidades do antigo regime, neste caso, controlado pelos conservadores.
Igualmente concernente à segunda fase, encontramos o romance de folhetim.
La hija del judio, escrita por José Turrisa, anagrama de Justo Sierra O’Reilly (1814-1861)
e publicada entre primeiro de novembro de 1848 e 25 de dezembro de 1849, é
considerada o primeiro romance de folhetim. Novamente encontramos um tom crítico
ao antigo regime, porque toda a obra “É uma argumentação em favor da separação de
Yucatán, por isso, para distanciar-se do passado opressor e do anárquico presente que
obrigava ao nosso país a aceitar a derrota e a perda do território perante Estados
Unidos” 22 (CASTRO MEDINA, 2010, p.317). Chamamos atenção para o quadro
costumbrista, que pouco a pouco, passará de estratégia romântica a artifício do
movimento realista.
1.4. Terceira fase do romantismo literário: exaltação do presente e o nacionalismo
positivista
21 No original: “fue reduciendo más y más el vuelo de la fantasía. A la filosofía romántica de la historia sucedió el positivismo”. (Tradução nossa) 22 No original: “Es una argumentación a favor de la separación de Yucatán, por eso, para alejarse del pasado opresor y del anárquico presente que obligaba a nuestro país a aceptar la derrota y la pérdida del territorio ante Estados Unidos”. (Tradução nossa)
31
Por fim, para concluir o romantismo mexicano, passemos a sua terceira fase.
Esta fase está intrinsecamente relacionada com o lado político mexicano, mais que as
anteriores. Explicamo-nos: a primeira fase advém do espírito libertário provocado pela
Guerra de Independência. Esse inquietamento literário foi suprimido pela estética
romântica, mas ainda assim teve influência alemã, inglesa, francesa e espanhola. A
segunda fase veio do confrontamento (armado e literário) entre liberais e
conservadores; no entanto, essa fase importou o modelo do romance de folhetim,
mantendo o quadro costumbrista como recurso estético. Por sua vez, a terceira fase
foi marcada pelo porfiriato, sendo o pensamento positivista e as obras praticamente
escritas a mando de Porfirio Díaz, como veremos mais adiante.
De acordo com Elisa Speckman (2010, p.209), o Porfiriato, período que vai de
1876-1911, sob o poder do ditador Porfirio Díaz, marca uma importante etapa da
história mexicana, porque “foi tal seu domínio sobre a vida pública nacional que o
referido período histórico leva seu nome: o Porfiriato, também conhecido como o
Porfirismo. Nenhum outro período de nossa história se identicia com o nome de seu
governante” 23, ou seja, Porfirio Díaz.
Sua importância política se deu porque pôs fim aos constantes que o país vivia
em constantes conflitos políticos por causa da disputa entre conservadores e liberais
pelo poder. Porfirio, representante dos liberais, manipula a máquina política e eleitoral
e consegue reeleições sucessivas, tornando-se assim um clássico ditador. Porfirio era
adepto do pensamento positivista e isso se vê refletido em suas obras e atitudes
políticas.
A política de Porfirio chega até os intelectuais da época, influenciando inclusive
a literatura desse período espelhada em seus ideais. Conforme destaca Castro Medina
(2010, p.323), entre 1867 e 1889 “O romance ganhou importância como forma de
reconhecimento e afirmação de valores nacionais” 24. Podemos caracterizar essa
época, conforme Martínez (2010), como “concórdia nacionalista”. O romance passa a
ser o veículo de transmissão do espírito nacionalista inflamado pela filosofia
23 No original: “Fue tal su dominio sobre la vida pública nacional que dicho periodo histórico lleva su nombre: el Porfiriato, también conocido como el Porfirismo. Ningún otro periodo de nuestra historia se identifica con el nombre de su gobernante”. (Tradução nossa) 24 No original: “la novela cobró importancia como forma de reconocimiento y afirmación de valores nacionales”. (Tradução nossa)
32
positivista: “O romance foi o gênero que permitiu imaginar o país de acordo com os
seus sentimentos patrióticos e ideais liberais” 25 (CASTRO MEDINA, 2010, p.328). Esta
etapa romântica, a terceira, é a que marca a transição do romantismo para o realismo
mexicano.
Um escritor que representa esta transição do romântico ao realista é Ignacio
Manuel Altamirano (1834-1893) que em seu romance El Zarco apresenta concessões
românticas, tais como o jogo de simetria e idealização dos bons e maus personagens,
mas que na verdade é uma obra realista, porque não existe a vinculação do estado de
ânimo dos personagens com a natureza, não usa a cor local, lança mão da ironia e da
moral da época. Os temas desse romance, como as demais obras do período realista
no México, são o caciquismo, o militarismo, o clericalismo, a burocracia, a corrupção, a
politiqueira, dentre outros (Imbert, 2010a, p.312).
1.5. Recapitulando
De forma sintética, vimos que o romantismo mexicano se divide em três fases,
a primeira caracterizada por transformações ideológicas e o resgate do passado
indígena como berço da identidade mexicana. A segunda fase já é marcada pela
disputa entre políticos e escritores liberais e conservadores, mas que ainda mantém
viva a crítica literária do fazer poético (Academia de Letrán e Liceu Hidalgo). Por fim, a
terceira fase se caracteriza pelo nacionalismo e pelo positivismo, frutos do regime
ditatorial de Porfirio Díaz e que começa a apresentar traços mais realistas que
românticos, ou seja, trata-se de uma fase de transição.
O que queremos destacar deste período romântico, no que concerne ao
México, é (i) a busca de uma nova estética; (ii) a defesa da língua americana; (iii) a
criação de uma sintaxe romântica e (iv) os primeiros sinais da representação do
indígena dentro do campo literário. Atentamos para o fato de que esses quatro
elementos de alguma forma estarão presentes na gênese da narrativa mexicana
moderna.
25 No original: “La novela fue el género que le permitió imaginar al país de acuerdo com sus sentimientos patrióticos e ideas liberales”. (Tradução nossa)
33
Realismo e Modernismo nas letras
mexicanas: a musa vira-lata
Com o aparente apaziguamento político no México, vimos que a última fase do
romantismo mexicano estava em prol da ideologia positivista do regime autoritário de
Porfirio Díaz. No entanto, essa “farsa artística” não foi apreciada por todos os
intelectuais da época e, de tal fato, surgiram obras que denunciam o que o porfiriato
quis ocultar. Em tom de protesto, surgem os movimentos realista e modernista. Ao
invés de se atentarem às paisagens exuberantes ou à vida cotidiana dentro do lar, os
escritores e poetas pertencentes a estes movimentos literários vão voltar seus olhos
para a rua: lugar onde transitam a luxúria e a pobreza. Sai de cena a musa palaciana e
entra a musa vira-lata.
2.1. Realismo/Naturalismo plástico
Nesta seção apontaremos resumidamente para a força do realismo nas artes
visuais. Como vimos, durante o positivismo houve a exaltação dos elementos pátrios
que (con) formavam o imaginário da identidade nacional. Manuel Ocaranza (1841-
1882) foi um dos pintores que refletiu esse pensamento positivista. De acordo com
Valenzuela e Rodríguez (2010, p.242), este pintor seguiu “a exigência do entorno
histórico-artístico pelo desenvolvimento do gênero costumbrista contemporâneo” 26.
O quadro Flor de colibrí marca bem esse momento de transição, em que já se nota os
motivos relacionados aos códigos morais próprios do fim do século XIX, mas ao mesmo
tempo apresenta traços emotivos e sentimentais.
De grande importância para a época foi o pintor mexicano José Obregón (1838-
1902) que tentou imprimir uma história e uma memória oficiais com o fim de
impulsionar os projetos culturais que o governo liberal queria legitimar. Por isso há em
26 No original: “la exigencia del entorno histórico-artístico por el desarrollo del género costumbrista contemporáneo”. (Tradução nossa)
2
34
suas obras, como El descobrimiento del pulque, temas pré-hispânicos, como forma de
forjar uma identidade nacional.
2.2. Realismo/Naturalismo literário
Antes de iniciar este estudo, fazemos uma ressalva: o realismo e o modernismo
no México tiveram poucos anos como movimento literário vigente, porque com o
advento da Revolução Mexicana, em 1910, as produções artísticas e literárias se
transformariam. Quando nos detivemos no estudo do movimento realista,
constatamos que é um período de difícil compreensão, pois teve uma vida muito curta,
no México, enquanto estilo predominante (1890-1910), no entanto verificamos que
esse movimento continua presente até os dias atuais. Conforme o estudo de Imbert
(2010a), as duas tendências literárias vigentes por grande parte do século XIX,
clássicismo e romantismo, anulam-se mutuamente. Intelectuais cansados dessa carga
política, principalmente a da terceira geração romântica no México, caracterizada pelo
nacionalismo exacerbado, se voltam contra a idealização, seja ela clássica ou
romântica.
De fato, realismo e naturalismo não se diferenciam enquanto propostas
estéticas, mas ao contrário, “os termos realismo e naturalismo foram usados como
sinônimos no México” 27 (CASTRO MEDINA, 2010, p.352). Segundo Imbert (2010a), o
naturalismo criou flores sórdidas de estranha fealdade e que não poucas vezes
adentrou na estética modernista. Por isso há de ressaltar que concomitantemente ao
realismo temos, no México, a presença do modernismo. Igualmente surgiu por causa
do esgotamento literário que houve tanto por parte de românticos quanto de
clássicos.
No entanto, uma diferença crucial entre ambas as correntes literárias é que no
modernismo “o que conta é o sujeito-contemplador” 28 e no realismo “o que conta é o
objeto-contemplado” 29 (IMBERT, 2010a, p.439). Mas não devemos esquecer que as
27 No original: “los términos realismo y naturalismo fueron usados como sinónimo en México”. (Tradução nossa) 28 No original: “lo que cuenta es el sujeto-contemplador”. (Tradução nossa) 29 No original: “lo que cuenta es el objeto-contemplado”. (Tradução nossa)
35
duas escolas possuem clara influência da cultura literária francesa, porque o
Modernismo, como aponta Imbert (2010a), é a fusão do parnasianismo com o
simbolismo francês 30. Por outra parte, o realismo/naturalismo vem importado
diretamente da poética literária fundada por Émile Zola (1840-1902) na França e por
Leopoldo Alas y Ureña (Clarín) na Espanha. Percebemos que tanto o realismo quanto
o modernismo tem uma forte influência das correntes literárias francesas (o que já
percebemos desde o romantismo).
Uma característica da estética modernista na prosa, como destaca Imbert
(2010a), é a falta da presença de “cor local”, elemento fundamental do romantismo.
Podemos dizer que o realismo substituiu a cor local pela “cor temporal”. Agora o que
se busca é descrever e fazer uma análise crítica da sociedade e do mundo moderno
(apregoado por Porfirio Díaz se pensarmos no contexto mexicano). Segundo Imbert
(2010a), dos escritores realistas podemos destacar a Angel del Campo Micros (1868-
1908), com uma obra marcada pela presença de contos e narrações curtas de estilo
costumbrista, que já estudamos e é uma herança que veio do romantismo. Não
podemos deixar de mencionar o escritor Rafael Delgado (1853-1914), pois para
ele “...se bem que o romance é história e cópia exata da vida mexicana, não deixa de
ser cópia artística da verdade” 31 (CASTRO MEDINA, 2010, p.352).
2.3. Modernismo nas letras mexicanas
O modernismo, conforme vimos anteriormente, tem ecos do parnasianismo e
do simbolismo, daí a confusão do termo Modernismo, conforme assinala o
pesquisador Armando Pereira (2004, p.318), que “...surge em certa medida, de
pretender incluir numerosos movimentos finisseculares tanto hispânicos quanto
30 Na América Hispânica, o maior expoente do modernismo foi Rubén Darío (Oviedo, 2011; Imbert, 2010a). 31 No original: “...si bien la novela es historia y copia exacta de la vida mexicana, no deja de ser copia artística de la verdad”. (Tradução nossa)
36
europeus em uma caracterização unívoca e generalista que se denomine
Modernismo”. 32
Este estilo literário de certa forma retomou o espírito libertário do romantismo,
especificamente da sua origem, porque “...a poesia e outros gêneros como o conto e a
crônica retiraram as ataduras formais que lhes estorvavam para se incorporarem às
correntes que defendiam a arte pela arte” 33 (CASTRO MEDINA, 2010, p.353). Cabe
ressaltar que no que concerne ao contexto mexicano, o Modernismo não se opôs
frontalmente ao romantismo como o fez o movimento realista.
Embora, seja verdade, o Modernismo se inicia como um movimento contra os
excessos do romantismo. Também acresce o fato de que dentro do movimento
modernista cabia tanto o novo quanto o velho (Pereira, 2004). Vemos por exemplo
que, segundo Castro Medina (2010), na obra de Manuel Payno (1820-1894) temos a
presença de relatos carregados de sentimentalismo, de tom declamatório e de
digressões. Além do mais, este mesmo escritor retoma o recurso literário do quadro de
costumes.
Os poetas e escritores modernistas verdadeiramente agitaram as letras
mexicanas. Ao serem levados pelo tom cosmopolita e eclético, no México tornou-se
necessário a criação de associações e de revistas para discutir o papel da literatura
modernista. Uma das publicações mais importantes foi a Revista Azul, fundada em
maio de 1894, cuja origem esteve vinculada como caderno dominical do jornal El
Partido Liberal (Pereira, 2004). Seu impacto nas letras mexicanas foi grande,
principalmente, porque um dos seus redatores e fundadores foi o poeta Manuel
Gutiérrez Nájera, considerado o precursor do modernismo mexicano e também um
dos maiores poetas mexicanos do século XX.
Também de grande relevância foi a Revista Moderna: Arte y Ciencia, cuja
primeira publicação data de primeiro de julho de 1898. Ao total, esta revista alcançou
96 números e 16 tomos, sendo seu último ano de edição 1911, nos primeiros meses da
Revolução Mexicana. Cabe ressaltar que, segundo Pereira (2004, p.435), a Revista
32 No original: “...surge en cierta medida, de pretender incluir numerosos movimientos finiseculares tanto hispánicos como europeos en una caracterización unívoca y generalista que se denomine Modernismo”. (Tradução nossa) 33 No original: “...la poesía y otros géneros como el cuento y la crónica se quitaron las ataduras formales que les estorbaban para incorporarse a las corrientes que defendían el arte por el arte”. (Tradução nossa)
37
Moderna veio a ocupar o espaço deixado havia dois anos pelo findar da Revista Azul,
no entanto, “A Revista Moderna rompeu tacitamente com a união de literatura e
sociedade que havia adotado sua antecessora, a revista Azul” 34.
Justamente quando Manuel Caballero resolve publicar o que será a segunda
época da revista Azul (PEREIRA, 2004, p.397), cria-se um choque de ideologias literárias
e assim instaura-se a primeira polêmica literária do século XX no México entre a
segunda etapa da Revista Azul e a Revista Moderna, ambas reclamando para si a
autenticidade do movimento Modernista.
Sobre os escritores modernistas, de acordo com Imbert (2010a), podemos
destacar a Federico Gamboa (1864-1939) que já produzia romances experimentais que
estudavam seriamente a sociedade mexicana. Segundo Castro Medina (2010),
Gutiérrez Nájera (1859-1895) foi um dos expoentes da literatura modernista. Este
escritor criticava completamente o estilo romântico e a sua estética de se fechar sobre
si mesmo por causa do espírito nacionalista. Ele considerava que a aversão ao
estrangeiro havia sido contraproducente para a literatura não só mexicana, mas como
espanhola, dentre outras. De Gutiérrez Nájera cabe destacar a visão transmitida em
suas obras que ele tem da Cidade do México como cidade moderna, com o surgimento
da nova burguesia e dos novos espaços pelos quais a musa vira-lata passearia.
Chama-nos a atenção a preferência que os artistas têm pela rua, tanto realistas
como modernistas “...amam a cidade pecaminosa de cantina e bordéis” 35 (CASTRO
MEDINA, 2010, p.386). Por isso intitulamos este capítulo de “musa vira-lata”. Enquanto
a musa clássica morava no esplendor da cultura de referência greco-latina, a musa
romântica vivia nos grandes salões de festas e saraus. Por outro lado, a musa realista e
modernista se encontrava na rua, sem classe e estudos. Por isso havia de investigá-la.
2.4. México finissecular: do cosmos ao caos no Porfiriato
No fim do século XIX o México se encontrava em um regime autoritário sob a
governança de Porifirio Díaz. Os problemas enfrentados por Díaz em seus últimos anos
34 No original: “La Revista Moderna rompió tácitamente con la unión de literatura y sociedad que había adoptado su antecesora, la Revista Azul”. (Tradução nossa) 35 No original: “...aman la ciudad pecaminosa de cantina y burdeles”. (Tradução nossa)
38
de governo, conforme Matute (2010), obscureceram seus sucessos passados, criando
uma atmosfera de descontentamento por parte da sociedade civil que já clamava por
mudanças. Mas a mudança não chegava, porque Porfirio Díaz sempre era reeleito
através das fraudes eleitorais.
Segundo José Roberto Gallegos (2010), ainda que Porfirio Díaz tenha obtido
êxitos ao longo dos seus mandatos presidenciais, isso não foi suficiente para acalmar a
nação que se encontrava em condições de grande pobreza dentro de um contexto de
um país basicamente rural, o que resultou que “um asfixiante sistema político que não
se renovava” 36 (GALLEGOS, 2010, p.23), provocada pela sexta reeleição de Porfirio
Díaz (1904-1910), “foi o detonador que terminou por dividir a sociedade entre um
movimento democrático (anti-reeleicionista) e um conservador (o reeleicionista)” 37
(HERNÁNDEZ, 2000, p.19). A grande ironia é que o movimento democrático pacificou o
México no último terço do século XX.
Temos que ter em conta, como observa Hernández (2000), que esse
descontentamento não era algo recente, pois houve antecedentes para que os fatos
chegassem a tal ponto, como, por exemplo, a viva oposição política por parte dos
liberais constitucionalistas, os grupos protestantes, o clero católico renovado, os
anarcosindicalistas e o “reyismo”. Todo esse conjunto de fatores fez com que a eleição
de 1910 fosse tensa.
Chegada a data da eleição presidencial, junho de 1910, como era esperado,
Porfirio Díaz foi reeleito com a ajuda de fraude eleitoral. O outro candidato, Francisco
Ignacio Madero, tomado pela vontade de modificar a situação política do país, se
levanta em armas contra o Governo Federal com o “Plan de San Luis”. Este fato foi o
embrião da Revolução Mexicana: tudo começou com o movimento maderista
“antirreleccionista”.
A Revolução Mexicana irá modificar profundamente as estruturas políticas,
sociais, culturais e literárias. O modernismo e o realismo/naturalismo terão uma
brusca ruptura que resultou em uma escassa produção literária desses movimentos se
comparado com as longas décadas do romantismo mexicano. Sai de cena o
36 No original: “un asfixiante sistema político que no se renovaba”. (Tradução nossa) 37 No original: “fue el detonador que terminó por dividir la sociedad entre un movimiento democrático (el antirreeleccionista) y uno conservador (el reeleccionista)” (Tradução nossa)
39
modernismo, porque diante de um evento tão importante quanto a Revolução
Mexicana não houve espaço para enaltecer a cidade moderna. O que se descobriu foi
o México mostrando a sua outra face: a rural.
Tampouco há espaço para uma literatura tipicamente realista. Com o
desenrolar da Revolução, vários fatos viraram mentiras e várias inverdades tornaram-
se fatos reais. A noção de verdade e de realidade ficou defasada. Com isso, a literatura
realista também ficou defasada. A saída não foi mais descrever e criticar a realidade,
mas descrever e criticar o próprio conceito de verdade. Entra em cena o realismo
crítico e com ele se funda a Narrativa da Revolução Mexicana.
2.5. Recapitulando
Ao longo deste capítulo constatamos que a idealização romântica se agotou e
se tornou supérflua e política, o que fez com que escritores se agrupassem e
criticassem essa idealização. Desses movimentos surgem os intelectuais realistas, que
procuravam denunciar os delitos e as mentiras surgidas no porfiriato. Por outro lado,
os modernistas buscavam uma arte autônoma, livre das amarras sociais. Realistas e
modernistas brigavam entre si determinar o que realmente deveria ser considerada a
“vanguarda” intelectual do país. Ambas movimentos não conseguiram se livrar
suficientemente do social, e este colocou pesadas algemas em ambas as correntes: o
movimento revolucionário mudou drasticamente o destino de tudo no México
(Fuentes, 2009).
40
SEGUNDA PARTE
LITERATURA DA REVOLUÇÃO E NARRATIVA
MEXICANA MODERNA: AS LETRAS MEXICANAS
NOS SÉCULOS XX E XXI
Los héroes se convierten en monstruos, la leyendas en mitos y los mitos en novelas.
Christopher Domínguez (1996, p.12-13)
A narrativa mexicana antes da Revolução mexicana se encontrava sob a ótica
dos movimentos literários do realismo/naturalismo e do modernismo 38 e, embora se
conservasse partes destes horizontes poéticos após a revolução, a narrativa mexicana
começava a apresentar mudanças que resultariam em uma nova poética: a revolução
histórica provocaria uma revolução linguístico-cultural (Fuentes, 2011).
A revolução mexicana, afirma Carlos Fuentes no seu ensaio El espejo enterrado
(2009), desvela rostos que haviam sido ocultos no regime de Porfirio Díaz. Mostra a
face pobre, humilde e indígena, mas combatente, lutadora e desejosa de que o país
saiba de sua existência para não serem mais esquecidos. O encontro de Emiliano
Zapata e Pancho Villa não é só um encontro político-revoluciónario, mas também
sócio-cultural: o norte do México e o sul se conectam novamente depois de muitas
décadas (e até séculos) isolados.
Novos atores entram no cenário político e cada um deles leva consigo uma
visão do México e uma visão de verdade. Ou seja, o realismo/naturalismo já não
consegue suster-se por muito tempo porque quanto mais passa o tempo mais se
descobrem que há outras verdades e realidades. O poeta ou escritor tentará conectar
toda essa rede de realidades múltiplas e com isso acabará criando o romance total
38 Na primeira parte desta dissertação, o termo Modernismo, ao menos no México, é ao mesmo tempo generalizante e redutor uma vez que congrega dentro de si atitudes poéticas muito díspares entre si: parnasianos, simbolistas, decantentistas, dentre outros (Pereira, 2004). Não é demais lembrar que a Revista Azul e a Revista Moderna brigaram entre si pelo título de verdadeiros modernistas (Castro Medina, 2010; Pereira, 2004).
41
(SOSNOWSKI, 2010) 39. Desde então, surgem as denominadas Narrativas da Revolução
Mexicana (MOLANO, 2010). Porém, não podemos esquecer que o realismo continuou
vigente, mas agora elevado à categoria de realismo crítico (ZAVALA, 1991).
39 De acordo com o teórico Saúl Sosnowski (2010), o romance total se caracteriza por tentar compreender o evento narrado a partir de vários ângulos. Como exemplo, citamos o primeiro romance de Carlos Fuentes, La región más transparente, onde o
escritor tenta descrever através de vários personagens as transformações do espaço urbano da Cidade do México no período pós-revolucionário.
42
Pós-modernismo e Revolução Mexicana
…muy pronto, la Revolución se convirtió también en un fenómeno cultural
José Miguel Oviedo (2001, p.158)
3.1. Pós-modernismo: continuidade e divergência
De acordo com o estudo de José Miguel Oviedo (2001), o pós-modernismo é
fundamental para poder compreender os novos movimentos literários que surgem na
primeira metade do século XX. Entretanto, apesar do pós-modernismo ser um evento
importante no contexto das literaturas hispânicas, ele é pouco entendido,
primeiramente porque este termo pode ser interpretado de duas formas: (i) a fase de
crise e declínio do movimento modernista e (ii) a etapa posterior ao modernismo não
importando o estilo que seja. Outro motivo que nos aponta Oviedo (2001) é a
imprecisão dos teóricos em definir o ano em que irrompe o pós-modernismo: 1910
com o advento da Revolução Mexicana ou 1914 com o início da Primeira Guerra
Mundial.
No que concerne ao contexto mexicano, o pós-modernismo está
intrinsecamente conectado com a Revolução Mexicana, pese que a Revista Moderna,
máximo expoente do pensamento modernista à sua época, fechou as portas com o
estopim da revolução. Na sua última edição, de julho de 1911, acaba “desejando que
se reestabeleça a paz no país e que a revista possa renascer” 40 (PEREIRA, 2004, p.437),
vontade essa que nunca se concretizou. Com a queda da Revista Moderna e com o
surgimento da revolução, a literatura mexicana se abre frente a um novo horizonte.
Embora a literatura mexicana avance, ela continua atada ao modernismo.
40 No original: “deseando que se restablezca la paz en el país y que la revista pueda renacer”. (Tradução nossa)
3
43
É justamente esse caráter complexo do posmodernismo que Oviedo (2001,
p.12) destaca: “O posmodernismo é duas coisas ao mesmo tempo: um estilo literário
cujas fontes estão no modernismo, mas que se processam de modos diferentes” 41.
Por isso o pós-modernismo é continuidade e divergência – contínuo por causa da ainda
busca da arte pela arte e divergente porque “Os pós-modernistas querem menos
enfeite e mais substância” 42 (OVIEDO, 2001, p.13). O pós-modernismo, enquanto
ruptura, condena o uso do parnasianismo e passa a procurar outras formas de
expressar a arte pela arte, por isso afirma Oviedo (2001) que o pós-modernismo é o
precursor dos movimentos de vanguarda.
O pós-modernismo no México se reflete, como já vimos, principalmente pela
Revolução Mexicana que muda completamente os paradigmas da época. Como aponta
Gallegos (2010), nem toda revolta é uma revolução. Para que seja uma revolução é
preciso que os movimentos conjuntamente modifiquem profundamente a estrutura
sócio-político-econômico-cultural da época desde a sua base. Outro fator é que as
ações provoquem uma ruptura drástica, ao invés de uma reforma que pressuponha
uma transição paulatina. Diz-se revolução também pela ruptura abrupta e violenta
com o antigo regime. Por isso se considera a Revolução Mexicana como a primeira
revolução em continente americano (no quesito nomenclatura porque não se pode
esquecer dos movimentos de independência). Os fatos históricos alteraram o rumo da
narrativa mexicana.
3.2 Inquietude artística: a revolução no campo da arte plástica mexicana
El nacionalismo artístico mexicano surge con un interés de los pintores por abordar temáticas de la realidad social, para generar un arte autónomo y original que busca desprenderse de la imitación de modelos clásicos.
Ana M. Torres Arroyo (2010, p.95)
41 No original: “El posmodernismo es dos cosas distintas a la vez: un estilo literario cuyas fuentes están en el modernismo, pero que se procesan de modo diferente”. (Tradução nossa) 42 No original: “Los posmodernistas quieren menos adorno y más sustancia”. (Tradução nossa)
44
Como na política, a Arte no México seguia os padrões positivistas do regime de
Porfirio Díaz. Segundo Torres Arroyo (2010, p.96), “O positivismo foi a filosofia que os
liberais utilizaram para deixar de lado as explicações religiosas e metafísicas” 43. Em
seu afã de afrancesar o México, os intitutos nacionais de educação, inclusive das artes
plásticas, copiavam os modelos exportados pela Europa. Por tal motivo, afirma Torres
Arroyo (2010, p.99): “na Escola de Belas Artes se levavam ao cabo métodos de
aprendizagem anacrônicos e obsoletos” 44. Em suma: não se produzia, se reproduzia.
Contrariamente a este idealismo do porfiriato, em 1906 alguns intelectuais se
agruparam sob a gremiação Ateneo de la Juventud. Dito Ateneu cimentou as bases
culturais do século XX no México. Destaca-se por sua posição patriótica em defesa da
cultura e da arte local: “Com o fim de celebrar o primeiro centenário da
Independência, a associação organizou conferências sobre a obra de pensadores e
literatos latino-americanos” 45 (PEREIRA, 2004, p.41). Com a derrocada de Porfirio Díaz
e com o início da Revolução Mexicana, os ateneístas pensavam que, enfim,
conseguiriam transformar a mentalidade do mexicano tendo como base a educação –
isto, se pode dizer, foi o lev motiv da vida e obra do intelectual José Vasconcelos 46.
Na Escola de Belas Artes começava a haver uma micro-revolução por causa do
descontentamento crescente da metodologia da Escola, a ponto de Gerardo Murillo
(mais conhecido como Dr. Atl) liderar o movimento de renovação, porque ensinava
novas teorias estéticas que ele havia aprendido na Europa, tais como os movimentos
de vanguarda. Nesta arte experimental já se encontrava o embrião da pintura mural,
por isso que Justo Sierra, ministro da Instrução Pública, havia oferecido o anfiteatro da
Escola Nacional Preparatória (hoje denominada de Antiguo Colegio de San Indefonso)
para decorar os muros. Porém, isto teve que ser postergado, porque se instaurou a
revolução armada.
Embora houvesse em 1910 a interrupção do que seria o movimento muralista
mexicano, não houve interrupção da mudança que aconteceria no campo da arte. Os
43 No original: “El positivismo fue la filosofía que los liberales utilizaron para dejar de lado las explicaciones religiosas y metafísicas”. (Tradução nossa) 44 No original: “en la Escuela Nacional de Bellas Artes se llevaban a cabo métodos de aprendizaje anacrónicos y obsoletos”. (Tradução nossa) 45 No original: “Con el fin de celebrar el primer centenario de la Independencia, la asociación organizó conferencias sobre la obra de pensadores y literatos latinoamericanos”. (Tradução nossa) 46 Pensador que estudaremos mais detalhadamente a seguir.
45
protestos contra o método de ensino ultrapassado e inadequado continuaram e foram
se intensificando ao ponto de acontecer entre 1911 e 1913 a greve estudantil da
Academia, principalmente contra o seu então diretor Antonio Rivas Mercado, um
porfirista.
Após a saída de Rivas Mercado da direção da Academia de Belas Artes, o pintor
Alfredo Ramos Martínez se postula como novo diretor e termina com a greve dos
estudantes em troca da promessa de uma reformulação dos planos de estudo da
Academia, e assim o fez. E um dos seus atos de transformação do ensino da arte
plástica foi a criação, em 17 de outubro de 1913, da Escuela de Pintura al Aire Libre,
conhecida como Santa Anita (Torres Arroyo, 2010).
A partir de então começa a existir uma mudança de perspectiva pedagógica,
porque a Escola de Pintura ao Ar Livre proporcionava maior liberdade artística aos
alunos, porque eram os discentes que tinham a livre decisão de escolher o que pintar e
como pintar, sendo a única regra a de ser uma pintura espontânea (Torres Arroyo,
2010). Os estudantes eram motivados a pintar o que realmente vissem e assim a
paisagem nacional entra em cena novamente. A última vez tinha sido com José María
Velazco no romantismo mexicano, século XIX. A partir da Escola de Pintura ao Ar Livre
começamos a ter a mexicanidade como símbolo de autenticidade e de modernidade.
3.3 O Ateneu da Juventude
El Ateneo significa que un nuevo grupo de hombres habían estrada en escena, desplazando el influjo de los “científicos” que rodeaban a Porfirio Díaz hasta sus últimos días y señalando su crisis.
José Miguel Oviedo (2001, p.128)
Quando se pensa nas diretrizes culturais que o México tomou na primeira
metade do século XX não podemos nos esquecer do Ateneu da Juventude. Por isso há
que retomar um pouco esse tema, porque deste Ateneu surgiram governantes,
políticos, artistas, escritores e pensadores como Alfonso Reyes e José Vascoscelos, este
46
último foi o primeiro reitor da Universidade Nacional Autônoma do México e o
primeiro ministro do recém-criado Ministério da Educação Pública 47.
Como aponta José Miguel Oviedo (2001, p.128), “O Ateneu foi o crisol onde se
forja um brilhante grupo de ensaístas, pensadores, críticos e criadores mexicanos cuja
contribuição é decisiva [...] para o desenvolvimento intelectual do país moderno” 48. O
Ateneu foi fundado em 28 de outubro de 1909, já no fim da época do porfiriato, como
uma forma de posicionamento contrário à ideologia positivista do referido período.
Contra o pensamento burguês europeizante de Porfirio Díaz, os ateneístas possuíam
um espírito latino-americanista porque “houve preocupação pela mexicanidade y pelo
hispano-americano, assim como uma atitude de ‘cultura livre’” 49 (PEREIRA, 2004,
p.43). Ou seja, os integrantes do Ateneu tinham uma visão integradora da cultura
nacional e americana (Oviedo, 2001).
O Ateneu da Juventude também apoiou o movimento madeirista e a revolução
mexicana. O ato de vivenciar a revolução modificou para sempre o pensamento dos
ateneístas, fazendo com que os grandes intelectuais do país dessem uma nova direção
à crítica porque “a fluidez e a irracionalidade dos acontecimentos políticos desafiavam
todos os esquemas intelectuais para explicá-los” 50 (OVIEDO, 2001, p.129). Tal fato
marcou a decadência do estilo realista no México, pelo menos aquele herdado do fim
do século XIX.
A partir do advento político-cultural da Revolução Mexicana se abria um novo
horizonte: descobrimento, afirmação e questionamento. Isto é, o México descobria
outros rostos que o porfiriato havia ocultado, cada líder revolucionário afirmava o seu
direito de governar 51. O realismo tal qual se fazia até então passou a ser obsoleto,
47 Empregamos o termo “Ministério” por ser o correlato vocabular mais preciso. No entanto, no México, o presidente escolhe os secretários para ocupar as mais diversas Secretarias enquanto que no Brasil o presidente nomeia os ministros para ocupar os Ministérios. Mesma função, podemos dizer, mas nomenclaturas distintas. 48 No original: “El Ateneo fue el crisol en el que se forja un brillante grupo de ensayistas, pensadores, críticos y creadores mexicanos cuya contribuición es decisiva […] para el desarrollo intelectual del país moderno”. (Tradução nossa) 49 No original: “hubo preocupación por lo mexicano y hispanoamericano, así como una actitud de ‘cultura livre’”. (Tradução nossa) 50 No original: “la fuidez y la irracionalidad de los acontecimientos políticos desafiaban todos los esquemas intelectuales para explicarlos”. (Tradução nossa) 51 Principalmente no que se refere na segunda fase da revolução, a mais sangrenta, que compreende desde o assasinato de Francisco I. Madero e a homologação da Nova Constituição em 1917. Neste período temos Venustiano Carranza, Álvaro Obregón, Emiliano Zapata e
47
porque o cenário era a capital, México D.F., e os temas, baseados nos quadros de
costumes, eram típicos da burguesia ou dos trabalhadores presos a ela. Mas a face
rural mexicana ganhava expressão e já não era mais a realidade objetiva, e sim a
realidade questionada. Assim se inaugura o período denominado “Narrativa da
Revolução Mexicana” 52 tendo como primeiro pilar fundacional o realismo crítico
(Pereira, 2004).
3.4. José Vasconcelos e sua revolução intelectual
La rebelión de las armas no fue seguida de la rebelión de las conciencias.
José Vasconcelos (2009, p.40)
Antes de entrarmos na abordagem literária propriamente dita, precisamos
tratar do grande ensaísta mexicano que definiu o rumo do pensamento do México
Moderno: José Vasconcelos (1882-1959). De acordo com Oviedo (2001, p.143), “pode-
se dizer que sua ação cultural gerou mudanças tão profundas que suas consequências
ainda podem ver-se no México de hoje” 53. José Vasconcelos foi um dos integrantes do
Ateneu da Juventude e um dos mais críticos opositores do governo de Porfirio Díaz.
O ateneísta Vasconcelos sabia da profunda transformação pela qual o México
passava por causa da Revolução. Por isso, seu ativismo intelectual esteve, em um
primeiro momento a serviço dos ideais revolucionários porque “suspendida a luta
armada, cresce a necessidade da ‘reconstrução’ nacional” 54 (OVIEDO, 2011, p.144). E
sem sombra de dúvidas Vasconcelos foi um dos reconstrutores de lo mexicano 55, pois
como afirma Fernándes Flores (2011, p.17) “à revolução democrática de Francisco I.
Pancho Villa que brigavam entre si pelo controle da revolução e automaticamente da presidência mexicana (Matute, 2010). 52 Na verdade, a crítica clássica denomina de “Novela de la Revolución Mexicana”, no obstante, os escritores que adentraram nesse campo literário são só escreveram romances, mas também romances curtos (novelas cortas) e contos. Atualmente se tem denominado de “Narrativa de la Revolución Mexicana” para poder agrupar todos os gêneros literários da prosa (Oviedo, 2001). 53 No original: “puede decirse que su acción cultural generó cambios tan profundos que sus consecuencias todavía pueden verse en México de hoy”. (Tradução nossa) 54 No original: “suspendida la lucha armada, crece la necesidad de la ‘reconstrucción’ nacional”. (Tradução nossa) 55 A mexicanidade.
48
Madero e a revolução agrarista de Emiliano Zapata, seguiu a revolução cultural de José
Vasconcelos” 56. Seu pensamento inspira a primeira fase do movimento muralista
mexicano e também influi na ideia de lo mexicano como símbolo de lo moderno.
Restringindo-nos mais à produção ensaística de Vasconcelos do que a literária,
assinalamos uma de suas obras mais importantes e que melhor representa a sua
cosmovisão: La Raza Cósmica, publicada em 1925. Neste livro, como se pode esperar,
critica o pensamento positivista, chamando-o de “microideologia del especialista”
(VASCONCELOS, 2009, p.13). Sua teoria das quatro raças entra em consonância com o
darwinismo genético, a evolução da espécie humana está intrinsecamente relacionada
com a mestiçagem das raças. Para o referido pensador, no mundo existem quatro
raças: branca, negra, mongol e indígena. Esta última seria, para Vasconcelos (2009), o
melhor elo entre as demais raças e, como na teoria da evolução das espécies, a
miscigenação entre as espécies provocaria que as características negativas seriam
elimanadas em prol da evolução da espécie humana. A raça mestiça seria uma raça
superior.
A tendência natural, segundo Vasconcelos (2009, p.14), é que “A civilização
conquistada pelos brancos, organizada por nossa época, pôs as bases materiais e
morais para a união de todos os homens em uma quinta raça universal, fruto das
anteriores e superação de tudo o que passou” 57. Há que ter em mente que para esta
quinta raça, a raça cósmica, se necessita da união das quatro raças por ele distinguidas.
Dentre essas raças se encontra a indígena. Por isso na visão vasconceliana, lo indígena
necessita ser resgatado porque uma civilização não se constrói do nada.
Isso vai de encontro com a sua tese de que a civilização “se deriva sempre de
uma longa, de uma secular preparação e depuração de elementos que se transmitem e
se combinam desde os começos da História” 58 e justamente por tal motivo “resulta
torpe fazer começar nosso patriotismo com o grito de independência do padre
56 No original: “a la revolución democrática de Francisco I. Madero y la revolución agrarista de Emiliano Zapata, siguió la revolución cultural de José Vasconcelos”. (Tradução nossa) 57 No original: “La civilización conquistada por los blancos, organizada por nuestra época, ha puesto las bases materiales y morales para la unión de todas los hombres un una raza universal, fruto de las anteriores y superación de todo lo pasado”. (Tradução nossa) 58 No original: “se deriva siempre de una larga, de una secular preparación y depuración de elementos que se transmiten y se combinan desde los comienzos de la Historia”. (Tradução nossa)
49
Hidalgo” 59 (VASCONCELOS, 2009, p.16-17). Assim, de acordo com Vasconcelos, o
patriotismo mexicano deve vir da sua mais íntima origem, ou seja, a cultura pré-
colombiana. A valorização do indígena nesse cenário cultural será um tema recorrente
graças ao pensamento deste grande ensaísta e escritor que deixou sua marca na
história mexicana.
José Vasconcelos insiste em seu ensaio que há que perseguir “os rastros do
sangue derramado” 60 (2009, p.21). Para este pensador, no que concerne ao contexto
mexicano, se a raça branca foi a responsável por conectar a todas as outras raças, a
raça indígena seria a ponte perfeita entre as outras três raças (branca, negra e mongol)
por não ser tão diferente das demais. Lo indígena é o elo e dessa ligação surgirá uma
raça superior, uma raça definitiva, uma raça síntese, uma raça integral, ou seja, uma
raça universal: a raça cósmica.
Este imaginário de José Vasconcelos repercutirá na arte e na escrita do período
pós-revolucionário, porque estando os artistas ainda à procura de uma direção para a
arte, Vasconcelos lhes dará um rumo. Pensando em uma arte que pudesse educar as
massas, José Vasconcelos permitiu que fossem pintados os muros da Escola Nacional
Preparatória, onde se vê plasmada, ainda hoje, a cosmovisão vasconceliana no
muralismo mexicano. Portanto, começou neste momento o movimento muralista no
México já que seus primeiros passos, que iam ser dados em 1910 a revolução
postergou para onze anos depois. De forma sintética, Desmond (1996, p.192) afirma
que “Durante a década de 1920, os acontecimentos sociais e políticos do México
formaram as bases sobre as quais os pintores evoluiram em direção a uma arte
pública, com imagens pintadas com uma grande ênfase desde a profunda veneração
do idealismo e a experiência” 61. Por isso, afirma Desmond (1996), o muralismo
mexicano, de uma forma global, pode ser dividido em duas fases, a primeira em que há
a presença da visão filosófica de José Vasconcelos e a segunda fase que representa
uma arte didático-político-populista.
59 No original: “resulta torpe hacer comenzar nuestro patriotismo con el grupo de independencia del padre Hidalgo”. (Tradução nossa) 60 No original: “la huella de la sangre vertida”. (Tradução nossa) 61 No original: “Durante la década de 1920, los acontecimientos sociales y políticos de México formaron las bases sobre las cuales los pintores evolucionaron hacia un arte público, con imágines pintadas con un gran énfasis desde el profundo venero del idealismo y la experiencia”. (Tradução nossa)
50
3.5. A mexicanidade como arte nacional: o movimento muralista
Todo arte realmente importante en México [...] exige actividades concretas y definidas de la producción plástica basada en una observación directa de la dinámica de la lucha popular y en una justa apreciación de lotos los valores plásticos autónomos e internacionales que sean aprovechables.
Ana M. Torres Arroyo (2010, p.139)
É importante revisar brevemente o movimento muralista porque o que esses
artistas plásticos tentaram plasmar nos muros foi o que muitos escritores buscaram
escrever em seus livros. Para começar, conforme já mencionamos, o movimento
muralista mexicano se divide em duas etapas. Na primeira etapa os artistas ainda
procuravam um motivo para pintar tendo em vista as profundas modificações
provocadas pela Revolução Mexicana.
Diante de tanta violência, massacre e instabilidade política, a estética
parnasiana ou simbolista se encontrava supérflua nesse contexto (Pereira, 2004). Por
isso foi importante a visão e a influência de José Vasconcelos, porque permitiu que os
artistas tivessem um caminho para trilhar até que os pintores fizessem seu próprio
caminho e isso é o que marca a segunda fase do muralismo mexicano.
José Vasconcelos, conforme vimos em La Raza Cósmica 62, possuía uma ideia
filosófica e idealista do ser mexicano e de sua mestiçagem, por isso, embora os
pintores quisessem retratar o mexicano, esse era representado de uma forma
idealizada, o mexicano da primeira fase do muralismo não é o mexicano concreto da
segunda fase. Destacamos deste período o mural de Diego Rivera La Creación (1923)
em que encontramos uma confluência entre as estéticas italianas e bizantinas
(Desmond, 1996).
O mural expressa a justaposição entre o masculino e o feminino, portanto,
podemos dizer que o eixo central do mural é o dualismo. Encontramos figuras como
62 Embora o livro de Vasconcelos, La Raza Cósmica, fosse escrito em 1925 e o primeiro mural de Diego Rivera pintado em 1923, as ideias de Vasconcelos já eram conhecidas no meio intelectual mexicano tendo em vista de como integrante do Ateneu publicou vários artigos em que já continha essa cosmovisão do mestiço ibero-americano.
51
Adão, Eva e as musas gregas. Como se pode notar, Rivera nessa obra aborda temas de
caráter universal e com personagens alheios à realidade mexicana. No centro do mural
temos um homem moreno, talvez uma representação do mestiço ibero-americano
idealizado por José Vasconcelos no seu mais famoso ensaio.
De igual abstração temos o mural Los elementos (1922) de Alfaro Siqueiros.
Neste mural vemos a representação da imagem de um anjo rodeado pelos quatro
elementos da natureza: terra, água, fogo e ar. Também em La Creación, de Rivera, o
mural Los elementos “se deriva mais da experiência e as lembranças europeias de
Siqueiros que de algo intrinsecamente mexicano” 63 (DESMOND, 1996, p.78). O mesmo
se pode dizer dos primeiros murais de José Clemente Orozco, como, por exemplo,
Maternidad (1971), no qual “a figura feminina de cabelo loiro e pele branca e o
menino rodado de figuras de anjos resulta anacrônica” 64.
Não obstante, esses três muralistas passaram por acontecimentos que
mudaram a perspectiva de todos eles, afastando-se dos ideais metafísicos e filosóficos
de Vasconcelos e aproximando-se à realidade social e histórica do México
revolucionário. A respeito de Diego Rivera, podemos comentar o mural La liberación
del peón, que plasma a figura de um peão despido e açoitado, sendo ajudado por dois
peões, enquanto um destes corta a corda e outro os observa. Neste mural já não
vemos personagens idealizados e com temáticas europeias, e sim peões que se
assemelham à realidade mexicana, assim como também a paisagem de fundo.
Percebe-se na obra de Rivera “o contraste entre a apologia da Revolução, seus
ideais e suas conquistas, e uma cáustica crítica de seus oponentes e detratores” 65
(DESMOND, 1996, p.148). Muitos desses serão plasmados por Rivera em seus murais
relacionados com a Revolução Mexicana, como La sangre de los mártires
revolucionarios fertilizando la tierra. Também haverá destaque em sua obra para
temas relacionados com o indígena e com o mundo pré-hispânico, como os murais
Tianguis e La fiesta del maíz, por exemplo.
63 No original: “se deriva más de la experiencia y los recuerdos europeos de Siqueiros que de algo intrínsecamente mexicano”. (Tradução nossa) 64 No original: “la figura femenina de cabello rubio y piel blanca y el niño rodeado de figuras de ángeles resulta anacrónica”. (Tradução nossa) 65 No original: “el contraste entre la apología de la Revolución, de sus ideales y logros, y una cáustica crítica de sus oponentes y detractores”. (Tradução nossa)
52
José Clemente Orozco igualmente transformará sua perspectiva artística em
direção a uma crítica social que se nota acentuadamente em seus próximos murais,
como em Ley y Justicia. Neste encontramos a figura quase tradicional da Justiça cega e
com a balança em suas mãos caminhando com um senhor em traje formal,
representando alguém com alto poder social e portando uma faca na mão. Orozco não
é indiferente ao tema da Revolução e também o pinta em seus murais, como em La
trinchera. A mestiçagem segue presente principalmente em seu mural Cortés y la
Malinche, retrato do primeiro casal espanhol-indígena que, historicamente deu início à
nação mexicana 66.
Dos três grandes muralistas, Alfaro Siqueiros foi o que artísticamente mais
avançou. Verifica-se em suas obras a influência das vanguardas europeias, como o
surrealismo, tão marcadamente presente em sua obra Entierro del obrero crucificado,
tema de crítica social. Mas Siquieros, assim como os demais, não aborda somente a
cidade, mas também o campo e o indígena como nos murais Madre campesina em
contraste com outro mural seu intitulado Madre proletaria.
3.6. Recapitulando
Em síntese, vimos que o muralismo mexicano se divide em duas fases:
vasconcelista e de poética suis-generis. A pintura mural buscou resgatar não só os
temas da Revolução Mexicana, mas também assuntos referentes à terra, ao indígena e
ao pré-colombiano. A Revolução Mexicana transformou em todos os sentidos a
sociedade mexicana e isso se refletiu na arte, tanto plástica quanto escrita. Finalizando
o estudo da arte plástica mexicana, verificamos que a greve estudantil da Academia de
San Carlos, a mudança ideológica dessa instituição, a criação da Escola de Pintura ao Ar
Livre e o surgimento do muralismo mexicano revelam como as mudanças foram
drásticas. Passemos agora ao estudo da Literatura da Revolução Mexicana.
66 Se formos para os dados históricos, talvez a primeira mestiçagem tenha sido a dos náufragos espanhóis anteriores a Hernán Cortés e que constituíram família entre os povos maias da península de Yucatán: Jerónimo (Gerónimo) de Aguilar e Gonzalo Guerrero (Bernal Díaz del Castillo, 2010).
53
DA NARRATIVA DA REVOLUÇÃO MEXICANA À
NARRATIVA MEXICANA MODERNA
(…) la novela de la Revolución Mexicana, que es la que renueva, transforma la prosa que se escribía en México y abre el camino a la nueva narrativa mexicana.
Edmundo Valadés (2008, p.220)
Hay una línea que va de Azuela (14.2.1.), pasa por Yáñez y llega a Rulfo (19.4.1.) y Fuentes (22.2.2.).
José Miguel Oviedo (2001, p.503)
Neste capítulo faremos uma breve cartografia do percurso da narrativa
mexicana a partir do advento da Revolução Mexicana. Conforme foi mencionado
anteriormente, as profundas transformações provocadas pela Revolução Mexicana
fará com que a própria literatura modifique seu perfil, provocando o descenso do
modernismo e do realismo/naturalismo surgidos no século XIX. Diversos críticos
apontam para a abertura de um novo movimento literário: a Literatura da Revolução
Mexicana. Primeiramente, cabe-nos explicitar o que se entende por este termo e quais
as suas subcategorias.
O termo mais difundido é Novela de la Revolución Mexicana 67 (Pereira, 2004),
no entanto o termo novela restringe demais a produção literária do período
supracitado porque em um primeiro momento exclui os demais gêneros literários. Por
isso alguns críticos têm ampliado o termo. Armando Pereira (2004) adota, por
exemplo, o termo Narrativa de la Revolución 68, porque esta denominação é mais
abrangente e, além dos romances, das novelas (novela corta) e dos contos, podemos
incluir as crônicas e a poesia. Este crítico ainda propõe outra categorização: Narrativa
de la Posrevolución 69. Em contra partida, para Jorge A. Muñoz (2012), melhor seria
67 Romance da Revolução Mexicana 68 Narrativa da Revolução Mexicana 69 Narrativa da Pós-revolução
4
54
nomear essa corrente literária de Literatura de la Revolución Mexicana 70 porque assim
seria possível incluir as novelas, os contos e até mesmo a poesia.
No entanto, Molano Nucamendi (2010) amplia e problematiza ainda mais o
termo porque, para este crítico, Literatura da Revolução é todo e qualquer texto que
tenha como contexto histórico da ficção a época correspondente ao processo
revolucionário. Portanto, desta definição já podemos traçar dois perfis de literatura da
revolução: aquela escrita durante a revolução e aquela escrita depois da mesma. Sob
essa ótica, podemos criar outra subdivisão: as narrativas da revolução podem ser
literaturas de testemunho ou não.
Em síntese, de acordo com Molano (2010), podemos classificar em três grandes
grupos a denominada Literatura da Revolução: (a) narrativa de testemunho, em que o
escritor, o narrador e o personagem são os mesmos; (b) narrativa da revolução, em
que o escritor que tenha vivenciado a revolução cria um narrador que conta a história
de um personagem revolucionário, isto é, o escritor se mascara por trás de um
narrador, ficcionalizando-se e eliminando os rastros de uma escrita testemunhal; e,
por fim, (c) narrativa sobre a revolução, neste caso, o escritor não presenciou os anos
revolucionários e escreve uma história tendo por base o que conhece sobre a
revolução, ou seja, narrativas reflexivas da Revolução.
Ainda segundo o estudo de Molano (2010), todas as narrativas da revolução
compartem várias características em comum. Podemos enumerar algumas, tais como
(i) o tom realista, que “tem como propósito oferecer uma versão dos fatos históricos”
71 (MOLANO, 2010, p. 187); (ii) a estética fragmentada, pois ao contrário do realismo,
não almeja apresentar uma visão global da revolução; (iii) tratamento original da
linguagem, geralmente manifestado na linguagem popular dos personagens; (iv) traço
vanguardista na medida em que usa técnicas inovadoras de outras culturas literárias;
(v) afirmação nacionalista, porque as obras “desencadeiam uma reflexão que conduz a
uma apreciação do que torna o México particular” 72 (MOLANO, 2010, p. 190), isto é, a
Literatura da Revolução Mexicana conflui para a conformação de uma identidade
70 Literatura da Revolução Mexicana 71 No original: “tiene como propósito ofrecer una versión de los hechos históricos”. (Tradução nossa) 72 No original: “desencadenan una reflexión que conlleva una apreciación de lo que hace particular a México”. (Tradução nossa)
55
mexicana. Outras caraterísticas são apontadas por Oviedo (2001): (vi) narrativa de
denúncia, (vii) de protesto e (viii) de caráter documental.
Retornando ao significativo estudo de Armando Pereira, que estabelece a
diferença entre a Narrativa da Revolução e a Narrativa da pós-revolução. A Narrativa
de la Revolución assim é definida: “Corrente de caráter épico e social herdeira da
tendência realista e da crônica, que sincretiza história e literatura” 73 (2004, p.332).
Esta definição é muito precisa e abarca os principais pontos que definem este tipo de
literatura. E a respeito da Narrativa de la Posrevolución, Armando Pereira (2004,
p.332) afirma que “Esta literatura surge uma vez terminado o movimento
revolucionário (...) Considera-se que é depois de 1940 quando se cria uma situação
literária nova” 74.
Armando Pereira (2004) aponta dois grandes fatores responsáveis por essa
transformação: (i) de ordem narrativo, o cenário ambientado à época da Revolução
Mexicana é apenas um fundo narrativo, ou seja, um pretexto para desenvolver temas
de ordem metafísico ou psicológico; (ii) de ordem estilístico, a literatura pós-revolução
utiliza técnicas da prosa moderna como o monólogo interior 75, o jogo de vozes
narrativas e temporais. Neste capítulo estudaremos três romances comumente
considerados Narrativa da Revolução: Los de abajo, de Mariano Azuela, Al Filo del
Agua, de Agustín Yáñez e Pedro Páramo, de Juan Rulfo. No que concerne à
categorização feita por Pereira (2004), apenas a primeira obra se enquadra na
Narrativa de la Revolución, já que as outras três se encaixam no perfil da Narrativa de
la Posrevolución.
4.1. A neo-escritura da revolução mexicana: Los de abajo, de Mariano Azuela
La revolución es el huracán, y el hombre que se entrega a ella no es ya el hombre, es la miserable hoja seca arrebatada por el vendaval… Mariano Azuela (2008, p.69)
73 No original: “Corriente de carácter épico y social heredera de la tendencia realista y de la crónica, que sincretiza historia y literatura”. (Tradução nossa) 74 No original: “Esta literatura surge una vez concluido el movimiento revolucionário (...) Se considera que es después de 1940 cuando se crea una situación literaria nueva”. (Tradução nossa) 75 Técnica esta que estudaremos posteriormente
56
4.1.1. Realismo crítico
A crítica literária tem contemplado o romance Los de abajo (publicado em
1915) de Mariano Azuela (1873-1952) como o fundador do novo movimento literário
mexicana proveniente do advento da Revolução Mexicana: Romance da Revolução 76.
Conforme estudado no capítulo anterior, com o passar do tempo os acontecimentos
da Revolução Mexicana provocaram a decadência da produção modernista e
realista/naturalista, perdendo a umportância no cenário mexicano. Por isso, tanto
Pereira (2004) quanto Molano (2010) apontam para o surgimento do realismo crítico.
Entende-se por realismo crítico a escola literária que critica o próprio realismo
porque questiona o próprio conceito de realidade. Parece um paradoxo, mas não é
difícil entender essa questão: as profundas transformações provocadas pela
Revolução, segundo Oviedo (2001, p.157) mudariam a percepção dos mexicanos sobre
seu país e sobre sua história, porque a Revolução mostrou “o melhor e o pior do
México, mas nos deu ao fim o seu verdadeiro rosto, oculto sob as capas da maquiagem
do porfirismo [...]: um país indígena, rural, ligado a tradições ancestrais, capturado por
suas próprias desigualdades sociais e econômicas” 77.
A “realidade” apresentada na primeira fase do realismo mexicano já não tinha
nada que ver com a difícil situação enfrentada naquele momento: a primeira fase do
realismo mexicano começa no fim do século XIX já contemporâneo do governo de
Porfirio Díaz conforme já estudamos no segundo capítulo. Ao criticar o que até então
se concebia como realidade, automaticamente se atacava de forma direta o
movimento realista. No entanto, o pensamento da época não permitia divagações nem
76 Já discutimos anteriormente as problemáticas dos termos Romance da Revolução, Narrativa da Revolução e Literatura da Revolução (isso sem considerar a também classificação feita por Armando Pereira de Narrativa da Pós-revolução). Para os efeitos desta dissertação, apenas abordaremos obras narrativas e dentro deste apartado apenas aos romances mencionados de Azuela, Yáñez e Rulfo. Por isso utilizaremos os termos “Romance da Revolução” ou “Narrativa da Revolução” se for o caso de incluir algum conto ou romance curto. 77 No original: “lo mejor y lo peor de México, pero nos dio al fin su verdadero rostro, ocultado bajo las capas de maquillaje del porfirismo (...): um país indígena, rural, ligado a tradiciones ancentrales, atrapado por sus propias desigualdades sociales y económicas”. (Tradução nossa)
57
coisas “supérfluas” na literatura, por isso decaíram o modernismo e o pós-
modernismo. E o realismo continuou, só que agora criticando a realidade apresentada
até então. Surgia o realismo crítico.
4.1.2. A prosa como cronista da barbárie
Vejamos como se aplica o conceito de realismo crítico no romance Los de
abajo. A narrativa de um modo geral se encontra em terceira pessoa, o que lhe dá um
grau de imparcialidade e de objetividade. No entanto, em algumas partes do livro a
narração não é explícita, mas sim subentendida. No capítulo VII da segunda parte do
livro temos uma narrativa entrecortada. Parece que há um sequestro de uma moça
por parte de Luis Cervantes para oferecê-la ao já então general Macias. Este capítulo
está subdivido: na primeira encontramos a tropa de guerrilheiros tentando decifrar o
que aconteceu, ou seja, como Camila, a jovem sequestrada, foi parar no
acampamento. Na segunda parte temos a Pintada, uma mulher guerrilheira e amante
do protagonista, que procura saber o que aconteceu pela boca de Camila, mas ela mal
consegue contar a história. Por fim, sabemos mais ou menos algo, mas não sabemos
de tudo. Essa marca rompe com o movimento realista do fim do século XIX.
A respeito do romance em si, ele foi publicado no Texas (EUA) em 1915 em
forma de folhetim para o jornal El Paso del Norte entre outubro e novembro do
referido ano. O livro foi escrito em três etapas, como aponta Oviedo (2001): (i) a
primeira compreende a estada de Azuela em Irapuato no estado de Guanajuato; (ii)
em dezembro de 1914 se translada a Guadalajara, no estado de Jalisco, junto com as
tropas villistas e aí continua a escritura do livro; (iii) e em 1915, em Chihuahua, escreve
a maior parte do livro e neste mesmo local o finaliza. No entanto, somente dez anos
depois o livro teve repercursão no México e foi considerada como a melhor obra
literária da Revolução: “Desde então o livro passou a ocupar um lugar central nas
letras mexicanas” 78 (OVIEDO, 2001, p.164).
78 No original: “Desde entonces el libro pasó a ocupar un lugar central en las letras mexicanas”. (Tradução nossa)
58
Revendo os temas essenciais à Literatura da Revolução que nos apresenta
Molano (2010), verificamos que Los de abajo se encaixa dentro do perfil literário
porque (i) possui um tom realista, marcado principalmente pela narração em terceira
pessoa que dá uma maior objetividade ao texto; (ii) o livro apresenta uma estética
fragmentada, citamos por exemplo o hiato de dias que há entre a segunda e a terceira
parte do livro, além de fragmentações em níveis mais profundos; (iii) tratamento
original da linguagem por inserir no romance fala típica popular como vemos em
“Güenos días le dé Dios, ña Fortuna...” (AZUELA, 2008, p.35); (iv) a obra possui traços
vanguardistas principalmente no que concerne aos personagens e suas peculiaridades
porque se assemelha a uma quadro fragmentado em que temos que montar; (v) e há a
afirmação nacionalista porque neste romance “está o México de Porfirio Díaz, o
México da Revolução e o México que surgiu da Revolução” 79 (IMBERT, 2010a, p.441).
Azuela não pretende fazer uma leitura da Revolução Mexicana, mas uma
releitura da mesma, porque foi este escritor que “mais que qualquer outro romancista
da revolução mexicana, levanta a pesada pedra da história para ver o que há ali
embaixo” 80 (FUENTES, 2011, p.111). O que se encontra abaixo é o inexplicável, porque
“a lógica do soldado é a lógica do absurdo” 81 (AZUELA, 2008, p.26). Em Los de abajo
encontramos a personagens vitimados, porque todos são vítimas dos sonhos e dos
pesadelos provocados pela Revolução Mexicana.
A revolução não foi feita só por pessoas de bem, mas também por assassinos
cruéis e covardes. No romance há a presença de ambos os perfis revolucionários, os
homens “admiravelmente armados e montados” 82 e o seu total oposto, porque alguns
dos “chamados revolucionários não eram senão bandidos agrupados agora com um
magnífico pretexto para saciar sua sede de ouro e de sangue” 83 (AZUELA, 2008, p. 32-
33). Um dado importante que Oviedo (2001) demonstra é que Los de abajo poderia ser
considerado em certa medida como um romance da terra (como são as obras do
79 No original: “está el México de Porfirio Díaz, el México de la Revolución, el México que surgió de la Revolución”. (Tradução nossa) 80 No original: “más que cualquier un otro novelista de la revolución mexicana, levanta la pesada piedra de la historia para ver qué hay allí abajo”. (Tradução nossa) 81 No original: “la lógica del soldado es la lógica del absurdo”. (Tradução nossa) 82 No original: “admirablemente armados y montados”. (Tradução nossa) 83 No original: “llamados revolucionarios no eran sino bandidos agrupados ahora con un magnífico pretexto para sacir su sed de oro y de sangre”. (Tradução nossa)
59
venezuelano Rómulo Gallegos e do colombiano José Eustasio Rivera). Mas com um
adendo: necessitamos acrescentar o fator político.
Oviedo (2001, p.168) aponta essa característica porque no romance há uma
forte presença telúrica se observamos os personagens: “são seres atados à pobre terra
que lhes dá o magro sustento, vivas emanações de um âmbito natural e em estado
selvagem, onde não mudou nada durante século e que agora é o cenário de grandes
acontecimentos históricos” 84. Os campos se esvaziam e homens sem rosto passam a
ocupar o papel de protagonistas históricos e literários.
O romance está dividido em três partes: (i) a primeira compreende os primeiros
vinte e um capítulos, (ii) os próximos quatorze capítulos configuram a segunda parte
do romance; (iii) e a terceira parte está conformada com os últimos sete capítulos do
livro. A unidade do romance se faz de acordo com os movimentos realizados por
Demetrio Macías, o protagonista. A primeira parte do livro pode ser dividida em
quatro segmentos: (i) o romance se inicia com a fuga de Demetrio de Limón em
direção às montanhas (capítulo um ao quatro), (ii) depois a história transcorre em uma
humilde casa e é lá que Demetrio conhece Luis Cervantes (capítulo cinco ao quinze);
(iii) o personagem principal agora marcha a Fresnillo e aí se une com outra força
revolucionária (capítulos dezesseis e dezessete), (iv) por fim termina a primeira parte
quando Demetrio recupera Zacatecas (capítulo dezoito ao vinte e um).
A respeito da segunda parte do livro, pode ser subdividida pelos movimentos
realizados pelo protagonista da narração, Demetrio Macias: (i) do primeiro capítulo ao
quarto capítulo da segunda parte encontramos a tropa de revolucionários em uma
pequena estância no povoado de Zacatenca, após a conquista do mesmo no capítulo
anterior; (ii) do capítulo cinco ao capítulo oito, os guerrilheiros marcham a Moyahua,
terra do cacique Mónaco, que é amigo de Demetrio Macias. Embora pela amizade não
permitisse o saque da casa do seu amigo Mónaco, o protagonista ordena a queima da
propriedade sem um motivo aparente; (iii) o terceiro movimento acontece quando
eles vão a Jalisco a perseguir os “orozquistas”, que são as tropas aliadas de Pascual
Orozco, ou seja, aqui já encontramos a disputa interna pelo poder entre os próprios
84 No original: “son seres atados a la pobre tierra que les da el magro sustento, vivas emanaciones de un ámbito natural y en estado salvaje, donde no ha cambiado nada durante siglos y que ahora es el escenario de grandes acontecimientos históricos”. (Tradução nossa)
60
revolucionários 85. Esses acontecimentos compreendem os capítulos nove e treze; (iv)
e o quarto deslocamento ocupa o último capítulo da segunda parte e narra a chegada
em Aguascalientes, onde haverá uma eleição não-oficial para eleger o novo presidente
uma vez que não reconhecem o golpe de estado dado por Victoriano Huerta.
Na terceira e última parte do livro, há somente dois deslocamentos, o que
chama muito a atenção em comparação com as duas partes anteriores. Na verdade,
como aponta Oviedo (2001), a última parte do livro funciona como epílogo em que
explica o que acontece depois de terminada a segunda fase da revolução já que se
encontram derrotados os líderes agrários Emiliano Zapata e Pancho Villa. O primeiro
capítulo da terceira parte se inicia com a carta de Luis Cervantes a Venancio, seu amigo
e companheiro de batalha. Neste episódio já se nota a dissolução de parte do exército
revolucionário de Demetrio Macias. Luis de Cervantes que se encontrava no Texas
(Estados Unidos) pede para que Venancio vá com ele e juntos possam construir um
negócio, já que a Revolução já não se encontra mais rentável. Encontramos nesse
trecho uma clara crítica aos chamados revolucionários, porque na verdade estão mais
para mercenários segundo a narrativa de Azuela.
Quando a tropa do protagonista recebe a carta, eles estão em marcha rumo a
Juchipila e nesse povoado são rejeitados pela população porque, na verdade, os
revolucionários muitas das vezes estavam lutando a seu favor e contra o povo. A
estância em Juchipila permanece em dois capítulos, do quarto ao quinto capítulo. O
último movimento de Demetrio Macias na verdade é um retorno às origens: quase
dois anos da saída do protagonista para lutar na Revolução, ele regressa para rever sua
esposa e seu filho, que nem mais o reconhece. No capítulo sete da terceira parte, que
é o último da narrativa, encontramos novamente o protagonista em uma batalha,
praticamente perdida porque todos os seus homens estavam mortos e ele, ferido,
segue atirando contra os federais.
Fazendo um contraste na macro-estrutura do livro, isto é, das suas partes,
vemos que a segunda parte do livro é um contrapeso em relação à primeira. Se nos
primeiros capítulos percebemos o tom vitorioso provocado pelos sucessos militares
85 Apesar da obra ter cunho realista, Mariano Azuela menciona raramente ao longo da narrativa em qual período da revolução a história se desenrolada. Neste trecho verificamos que a Revolução se encontra na sua segunda fase, que compreende após o assassinato de Francisco I. Madero. De acordo com Matute (2010), essa é a fase mais sangrenta da Revolução Mexicana.
61
empreendidos por Demetrio Macías, na segunda parte encontramos o desencanto
provocado pela corrupção e pela matança desnecessária. Na terceira parte, que
funciona como epílogo, mostra a derrota e o vazio provocados pela revolução nos
personagens. Fim da revolução e todos têm de voltar à vida como era antes: sonhos
mortos e vontades insaciadas.
Esse sentimento de vazio é impulsionado pelo sentimento de inércia, porque a
maioria dos revolunários, como denuncia Azuela, está isenta de ideais (Imbert, 2010a).
Por isso torna-se uma crítica irônica aos personagens Luis Cervantes e Alberto Solís,
intelectuais que quiseram participar da revolução, mas que suas ideias não penetraram
na revolução: ideais não matam tão eficazmente quanto uma bala. Intelectuais de
mãos atadas e revolucionários de ideias atadas. Não à toa a imagem-princips
(Bachelard, 1997), ou seja, a imagem poética que condensa todo o conteúdo do livro, é
a fumaça que Alberto Solís vislumbra (AZUELA, 2008, p.79):
Seu sorriso voltou a vagar seguindo às espirais de fumaça dos rifles e do pó de cada casa derrubada e cada teto que se afundava. E acreditou ter descoberto um símbolo da revolução naquelas nuvens de fumaça e naquelas nuvens de pó que fraternalmente subiam, se abraçavam, se confundiam e se apagavam.
86
De igual forma Mariano Azuela nos dá uma imagem-princips dos
revolucionários, já no final da narrativa quando Demetrio volta para sua casa e sua
esposa pede que ele fique e abandone o campo de batalha. O protagonista não
responde, não precisava responder. Sua esposa então lhe pergunta (AZUELA, 2008,
p.148):
- Por que ainda lutam, Demetrio? Demetrio, as sobrancelhas muitos juntas, pega distraído uma pedrinha e a
86 No original: “Su sonrisa volvió a vagar siguiendo a las espirales de humo de los rifles y la polvareda de cada casa derribada y cada techo que se hundía. Y creyó haber descubierto un símbolo de la revolución en aquellas nubes de humo y en aquellas nubes de polvo que fraternalmente ascendían, se abrazaban, se confundían y se borraban”. (Tradução nossa)
62
lança ao fundo do canhão. Mantem-se pensativo vendo o desfiladero, e diz: - Olha essa pedra como já não para...
87
Uma pedrinha lançada no vazio, eis a imagem do revolucionário: uma luta
muito das vezes sem sentido por homens que não sabem o que estão fazendo. Por isso
afirma o narrador do livro: “Se uma pessoa traz um fuzil nas mãos e as cartucheiras
cheias de tiros, com certeza é para lutar. Contra quem? Em favor de quem? Isso nunca
importou a ninguém” 88 (AZUELA, 208, p.135).
Por tal razão é que no romance de Azuela estamos diante de uma “crítica do
espectro histórico que se desenha sobre o conjunto de seus personagens” 89
(FUENTES, 2011, p.118). Em Mariano Azuela não há mito, há uma viagem de retorno às
origens que não leva a nada. O que há é desencanto e desilusão. O que há é uma
fumaça de pólvora e de fogo que queima tudo: as casas, os homens, a alma humana e
a revolução. Ao final, a revolução só dá benefício aos “de arriba” 90, pois para os de
abaixo “acabou a revolução, e acabou tudo” 91 (AZUELA, 2008, p.48). Mariano Azuela é
um marco para a narrativa mexicana. Ele é um dos precursores da prosa mexicana
moderna por justamente romper com o realismo até então vigente e fazer uma crítica
às verdades até então impostas. Segundo Fuentes (2011, p.121), “Graças a ele se pôde
escrever romances modernos no México” 92.
No que se refere ao tema desse nosso estudo, é graças a Mariano Azuela que se
abre um novo ciclo literário no México e isso se dá pela renovação do realismo
provocada pelas profundas transformações ocurridas com a Revolução Mexicana.
Além do mais, vemos que o indígena começa a entrar em cena na narrativa mexicana.
Sua estreia, como abordamos no primeiro capítulo, se deu na primeira fase do
romantismo mexicano, no entanto, como apontou Imbert (2010a), sua caracterização
87 “-¿Por qué pelean ya, Demetrio? / Demetrio, las cejas muy juntas, toma distraído una piedrecita y la arroja al fondo del cañón. Se mantiene pensativo viendo el desfiladero, y dice: / - Mira esa piedra como ya no se para…” (Tradução nossa) 88 No original: “si uno trae un fusil en las manos y las cartucheras llenas de tiros, seguramente que es para pelear. ¿Contra quién? ¿En favor de quienes? ¡Eso nunca le ha importado a nadie!” (Tradução nossa) 89 No original: “crítica del espectro histórico que se diseña sobre el conjunto de sus personajes”. (Tradução nossa) 90 “de cima” (Tradução nossa) 91 No original: “se acaba la revolución, y se acabó todo”. (Tradução nossa) 92 No original: “Gracias a él se ha podido escribir novelas modernas en México”. (Tradução nossa)
63
era idealista e afastada da realidade. Com o realismo e o modernismo, entrou em cena
a Cidade do México, surgiram narrativas cosmopolitas. Com o advento da Revolução
Mexicana a faceta rural e indígena cobrou sua presença, entretanto ocorreu de forma
paulatina. Já no próximo romance a ser estudado veremos que lo mexicano aparece
aprofundado em Los de abajo, mas verdadeiramente foi com Juan Rulfo que o
romance surgiu com sua carga máxima.
4.2 Al filo del agua, de Agustín Yáñez: a obra inaugural da Narrativa Mexicana Moderna
La conformidad es la mejor virtud en estas gentes que, por lo general, no ambicionan más que ir viviendo, mientras llega a la hora de una buena muerte. Entienden la existencia como un puente transitorio, a cuyo cabo todo se deja.
Agustín Yáñez (2008, p.12)
4.2.1. Poéticas da Prosa Mexicana Moderna
Vimos que o romance Los de abajo de Mariano Azuela deu início à Narrativa da
Revolução Mexicana, com estilo predominante do realismo crítico. No entanto, é com
Agustín Yáñez (1904-1980) e seu romance mestre Al filo del água, publicado em 1947,
que se inauguram as bases da Narrativa Mexicana Moderna. Como estudamos na
parte introdutória deste capítulo, Armando Pereira (2004) divide em duas etapas esse
período literário: Narrativa da Revolução e Narrativa da Pós-revolução, esta se
iniciando a partir de 1940 e tendo justamente uma das obras precursoras a Al filo del
agua. Como apontou este crítico, com o passar do tempo o realismo crítico vai
decaindo do gosto literário dos novos narradores, que passam a incorporar novas
técnicas narrativas. Por isso, expõe Carlos Fuentes (2011), encontramos uma ruptura
definitiva do realismo, além da implementação de inovadoras técnicas narrativas,
como o monólogo narrado e as múltiplas vozes narrativas que dão uma visão coletiva
do todo, mas nunca definitiva.
64
Averiguando a aplicabilidade do romance Al filo del agua na Narrativa da
Revolução Mexicana, retornaremos às caraterísticas dadas por Molano (2010): (i)
possui um tom parcialmente realista, apenas quando a narrativa se encontra em
terceira pessoa, o que nem sempre ocorre; (ii) o livro apresenta uma estética
fragmentada, mas no que tange ao psicológico, não nas ações dos personagens; (iii)
não há tratamento original da linguagem, apenas de estratégias discursivas; (iv) a obra
possui traços vanguardistas ao usar recursos como a refletorização; (v) e há a
afirmação nacionalista porque esta obra “é a pedra de fundação de uma topografia
espiritual do México” 93 (DOMÍNGUEZ, 1996, p.1014).
Como podemos perceber no enumerado acima, o romance de Agustín Yáñez já
não se encaixa perfeitamente nos padrões da Narrativa da Revolução. Por isso com
Yáñez temos o início da intitulada Narrativa Mexicana Moderna, como apontam os
teóricos e críticos (Oviedo, 2001; Imbert, 2010; Molano, 2010; Fuentes, 2011).
Portanto, cabe-nos então caracterizar o que se entender por Narrativa Mexicana
Moderna e quais as suas características. Primeiramente, segundo o nosso
posicionamento crítico, o que Pereira (2004) denomina como Narrativa da Pós-
revolução nós qualificamos como Narrativa Moderna. As características apontadas por
Pereira (2004) vão de encontro com as expostas pelos críticos supracitados. Por isso,
retornaremos um tema apontado por Pereira (2004): estas narrativas foram escritas
após a fase sangrenta da revolução, como foi o caso de Los de abajo. A Revolução
Mexicana apenas serviu apenas de pano de fundo para o desenvolvimento de temas
psicológicos e filosóficos.
Portanto, há que repensar nas bases que sedimentam a construção da
denominada Nova Narrativa Mexicana, que ainda de acordo com Molano (2010) são:
(i) novo papel do narrador; (ii) pontos de vistas diversos; (iii) monólogo interior; (iv)
refletorização; (v) fluxo de consciência; (vi) jogo com o tempo narrativo; (vii)
fragmentação da história narrada; (viii) inclusão do fantástico e do simbólico; (ix)
justaposição de planos narrativos e (x) papel ativo do leitor. No que se refere à obra
que comentaremos de Yáñez, nem todos os pontos serão abordados, mas é a obra que
93 No original: “es la piedra de fundación de una topografia espiritual de México”. (Tradução nossa)
65
influenciou as futuras narrativas modernas, cujo destaque está para a obra de Juan
Rulfo que preencherá todos os requisitos acima mencionados.
O realismo (crítico ou não) deixa de ser um recurso empregado, ao menos na
narrativa de Yáñez e em futuras obras da Narrativa Mexicana Moderna. Um dos
melhores exemplos em El filo del agua se encontra no capítulo cinco que pertence à
parte “Los Días Santos”, no qual o escritor lança mão de uma técnica narrativa
moderna: o monólogo narrado. Entendemos esse procedimento como o ato do mundo
psíquico do personagem, expresso na forma de narrador. Não é o narrador contando
ao leitor o que se passa na mente do protagonista, mas o narrador dando voz ao
personagem e ele próprio relatando-nos sua psique. De acordo com o crítico Ronaldes
de Melo e Souza (2010, p.11), “o monodiálogo é a forma ficcional em que se
representa o drama do personagem cindido consigo mesmo. A enunciação
monodialógica de um eu dividido entre duas vozes que lhe tumultuam a interioridade
anímica e o empuxam em direções contrárias”.
No mencionado capítulo, o povoado se encontra em sua liturgia católica que
rememora os atos bíblicos da Semana Santa culminando com a crucificação de Cristo
na Sexta-Feira da Paixão e a ressurreição no Domingo de Páscoa. Um dos personagens,
Luis Gonzaga, foi suspenso dessa festividade pelo padre Abundío por ter participado
de uma reunião espírita. Gonzaga, como ex-seminarista, irritado por não poder
participar da liturgia, realiza ele próprio na sua casa a encenação religiosa. Mas antes
de realizar essa cerimônia, o personagem se volta contra o padre: “Acusarei-o (…). E
agitarei o povo contra ele. Chega de tirania clerical!. Chega de obscurantismo!” 94
(YÁÑEZ, 2008, p.98).
O narrador, cindido sobre si mesmo, não sabe o que fazer, o que pensar e como
proceder. Mas ao fim, acaba ele mesmo repetindo a missa, o que demonstra que no
povoado por mais que se faça a crítica aos eventos, acaba-se por perpetuar a mesmice.
Entretanto, o narrador não nos conta essa parte da história, ela é contada pelas
orações em latim e ações imitativas realizadas por Luis Gonzaga. Temos uma narrativa
filtrada pelas ações e pensamentos de um personagem (YÁÑEZ, 2008, p.112):
94 No original: “¡Lo acusaré (...). Y agitaré al pueblo en su contra. ¡Basta de tirania clerical! ¡Basta de oscurantismo!”(Tradução nossa)
66
Ele gostaria de ir aos Ofícios, mas não dará seu braço a torcer. E se contentará em ler e imaginar a Missa dos Pré-santificados. Flectamus genua. Que sobre todas as outras ambicionava celebrar – talvez pelo seu ritual extraordinário –, quando pretendeu o sacerdócio. Levate. E ainda o faz pretendê-lo. As velas amárelas, apagadas; o altar, desnudo. Flectamus genua. O sacerdote com os ministros, profundamente prostados. Levate. No silêncio fúnebre, um canto surdo, sem título, sem resposta. Flectamus genua. Levate. E o diálogo de ministros e coro: Passio Domini Nostri Iesu Christi secundun Ioanem. Imitando as vozes, Luis canta: - Quem quaeritis? – Reponderunt ei. – Iesum Nazarenum…
95
Por tal motivo, José Miguel Oviedo (2001, p.504) em seu estudo afirma que em
Al filo del água “a ação externa, um tanto relaxada, importa menos que o que ocorre
dentro dos protagonistas” 96. O drama que se representa em suas memórias não é
individual, mas sim social. No povoado retratado por Agustín Yáñez, a ação quase não
transcorre, diferente do romance aqui anteriormente estudado, em que as ações e
deslocamentos narrativos têm estrita relação com as atitudes do protagonista. Mais
que drama de ações, o que busca Yáñez é o drama de paixões, ou seja, de
sentimentos. Para que isso seja possível, o escritor recorre à técnica narrativa da
refletorização.
Segundo o estudo de Ronaldes (2010, p.189), “a mediação dialética requer a
interação de dois mediadores, que são o narrador e o refletor ou o personagem que
reflete os eventos”, ou seja, o narrador anula-se na narrativa, não emite opinião,
apenas empresta sua voz de contador para o personagem contar os eventos segundo
sua ótica. Na obra Al filo del agua, encontramos capítulos narrados em terceira pessoa
(narrador) e em primeira pessoa (personagem). Não se pode dizer que o narrador é um
dos personagens da narrativa porque os discursos em primeira pessoa compreendem
mais de um personagem, às vezes a mudança de perspectiva se dá em um mesmo
95 No original: “Le gustaría ir a los Oficios; pero no dará su brazó a torcer. Y se contenta con leer e imaginar la Misa de Presantificados. Flectamus genua. Que sobre
todas las otras ambicionaba celebrar – quizá por su rito extraordinario –, cuando pretendió el sacerdocio. Levate. Y aún lo hace pensar en pretenderlo. Las velas amarrillas, apagadas; el altar, desnudo. Flectamus genua. El sacerdote con los ministros, profundamente prostados. Levate. En el silencio fúnebre, un canto sordo, sin título, sin respuesta. Flectamus genua. Levate. Y el diálogo de ministros y coro: Passio Domini Nostri Iesu Christi secundun Ioanem. Imitando las voces, Luis canta: -
Quem quaeritis? – Reponderunt ei. – Iesum Nazarenum…”. (Tradução nossa)
96 No original: “la acción externa, un tanto laxa, importa menos que lo que ocurre dentro de los protagonistas”. (Tradução nossa)
67
capítulo. Tal é o caso do capítulo seis que compõe a terceira parte da narrativa
intitulada “Ejercicios de Encierro” 97. Nesta parte da obra os personagens se preparam
para o ritual católico da Semana Santa. Assim, inicia-se o capítulo VI da mencionada
obra de Yáñez (2008, p.58):
Na segunda-feira, o dia todo meditaram no pecado; na terça-feira, na morte; na quarta-feira, no juízo final; na quinta-feira, no inferno; na sexta-feira, na paixão do Nosso Senhor e na parábola do filho pródigo, que foi – esta – da última distribuição da noite. Se levantavam às cinco e media da manhã, entrevam na capela para a meditação, às quinze para às seis, e seguia a missa [...]
98
Como percebemos, todo este trecho está narrado em terceira pessoa: o
narrador nos conta como os personagens se comportam, e como pensam e agem. Em
páginas posteriores o narrador segue descrevendo as emoções dos personagens:
“Passada a reação de pavor, o senhor Román Capistrán, já bem acordado, sentiu-se
completo” 99 (YÁÑEZ, 2008, p.61). Entretanto, umas linhas mais e percebemos a
mudança de foco narrativo, porque de uma narrativa em terceira pessoa (objetiva)
passamos à voz narrativa plural (nós) e, finalmente, chega à primeira pessoa
(subjetiva), como vemos neste fragmento (YÁÑEZ, 2008, p.63):
Era um dia de domingo – pensa, examinando-se, Francisco Legaspi –; seriam como as três da tarde, hora de voltar ao rancho, quando Pedrinho Ruiz, o tropeiro, nos encontrou, que vinha ao parecer pela rua San Antonio e nos disse que melhor déssemos uma volta pela rua de cima, porque aqui, na esquina do Pabellón Nacional estava Gumersindo bêbado, muito impertinente, apontando com uma pistola, que ninguém haveria de passar por ali, mais que qualquer outro motivo, pela curiosidade, não lhe dei importância e segui meus passos, ruas acima; não demorei em ouvir os cantos e os gritos desentoados do bêbado [...]
100 [grifos nossos]
97 “Exercícios de Fechamento” (Tradução nossa) 98 No original: “El lunes, todo el día, meditaron en el pecado; el martes, en la muerte; el miércoles, en el juicio; el jueves, en el infierno; el viernes, en la pasión de Nuestro Señor y en la parábola del hijo pródigo, que fue objeto – ésta – de la última distribución de la noche. / Se levantaban a las cinco y media de la mañana, entraban a capilla, para la meditación, a los tres cuartos para las seis, y seguía la misa […]”
(Tradução nossa)
99 No original: “Pasada la reacción de pavor, don Ramón Capistrán, ya bien despierto, se sentió colmado” (Tradução nossa)
68
Percebemos claramente a mudança de perspectiva no ato de narrar marcada
pelos grifos que destacamos: pronome pessoal do caso oblíquo (nos) e verbos
conjugados na primeira pessoa do singular (“hice”, “seguí” e “tardé”). Temos, então, a
narrativa pelo viés do narrado e pelo viés dos personagens. Uma leitura depurada da
obra nos aponta para uma conclusão: quando o escritor quer expressar a psique do
personagem o realiza através da refletorização e quando o escritor quer narrar a
memória coletiva do povoado lança mão do narrador em terceira pessoa. Por isso
afirma Oviedo (2001, p.504): “o narrador vai criando um verdadeiro grande
personagem coletivo: o povoado” 101.
Vimos até aqui que Agustín Yáñez introduz técnicas novas à narrativa que se
produzia até então. A mudança foi drástica, porque quebrou todos os laços que havia
com o realismo, não há mais objetividade, e sim o psicodrama dos personagens de Al
filo del agua, dos personagens individuais e do personagem coletivo: o povoado. Para
conseguir tal fato, Yáñez utiliza dois procedimentos inovadores e inerentes à prosa
moderna: (i) o monólogo narrado ou monodiálogo e (ii) a refletorização.
4.2.2. A topografia espiritual em Al filo del agua
Uma vez já esclarecido dois dos grandes procedimentos técnicos usados por
Agustín Yáñez, vamos ao estudo da trama em si de Al filo del agua. O próprio autor
explica o título da obra em um espécie de prólogo do livro: “Al filo del agua é uma
expressão camponesa que significa o momento de iniciar a chuva, e – em sentido
100 No original: Era un día de domingo – piensa, examinándose, Francisco Legaspi -; serían como las tres de la tarde, hora de volver al rancho, cuando Pedrito Ruiz, el arriero, nos encontró, que venía de cómo por San Antonio y nos dijo que mejor diéramos un rodeo por la calle de arriba, porque acá, en la esquina del Pabellón Nacional estaba Gumersindo, borracho, muy impertinente, moneando con una pistola, que nadie había de pasar por allí, más que por todo, por la curiosidad, no le hice caso a Pedrito y seguí mis pasos, calles arriba, no tardé en oír los cantos y los gritos desentonados del borracho […]” (Tradução nossa) 101 No original: “el narrador va creando un verdadero gran personaje colectivo: el pueblo”. (Tradução nossa)
69
figurado, muito comum – a iminência ou o princípio de um evento” 102. Esta explicação
nos é fundamental para poder entender a poética da história narrada. Mencionamos
anteriormente que as ações realizadas pelos personagens são mínimas: todo o livro
conta, fundamentalmente, a história da liturgia católica arcaica de um povoado
perdido no tempo e no espaço: “esse povoado sem categoria, de estranho nome e sem
referência nos mapas da República” 103 (YÁÑEZ, 2008, p.48).
O povoado se encontra perdido no tempo porque na verdade o tempo não
passa. O ar que paira sobre o povoado, graças à mente criadora de Yáñez, é que o
povoado está na iminência de algo que nunca acontece e por tal motivo as ações dos
personagens marcam um grande ciclo que se repetem ad infinitum. Por isso na
primeira parte do livro, intitulada “Acto Preparatorio”, encontramos as seguintes
definições para os personagens do livro (2008, p.3-13):
Povoado de mulheres enlutadas. [...] Pessoas e ruas abortas. [...] No coração dos aldeãos o igual hermetismo. [...] Povoado sem festa. [...] Povoado fechado. Povoado de mulheres enlutadas. Povoado solene. (...) Povoado conventual. [...] ouvi-lhes cantar em corda de gemido uma canção profana. [...] Povoado de eterna quaresma. [...] Povoado de almas. [...] Povoado de tremidas vozes. [...] Povoado seco.
104
Há um quê de romantismo no fragmento supracitado porque nele encontramos
uma correspondência entre homem e paisagem, especificamente no romance de
Yáñez, entre a população e o povoado. O enredo está ambientado em um povoado do
estado de Jalisco a inicio do ano de 1909, quando estoura a Revolução Mexicana. No
entanto, a população se encontra alheia a esses fatos, porque, como afirmamos
anteriormente, o tempo não passa e na mentalidade coletiva os personagens se
102 No original: “Al filo del agua es una expresión campesina que significa el momento de iniciarse la lluvia, y – en sentido figurado, muy común – la inminencia o el principio de un suceso”. (Tradução nossa) 103 No original: “ese pueblo sin categoría, de extraño nombre y sin referencia em los mapas de la República”. (Tradução nossa) 104 No original: “Pueblo de mujeres enlutadas. [...] Gentes y calles absortas. [...] En el corazón de los aldeaños el igual hermetismo. [...] Pueblo sin fiestas. [...] Pueblo cerrado. Pueblo de mujeres enlutadas. Pueblo solemne. [...] Pueblo conventual. [...] se les oye cantar en cuerda de gemido una canción profana. [...] Pueblo de eterna cuaresma. [...] Pueblo de ánimas. [...] Pueblo de tembladas voces. [...] Pueblo seco.”. (Tradução nossa).
70
encontram no século XIX porque temem a invasão dos liberais contra a Igreja Católica
da época, por causa das Leis de Reforma realizada por Benito Juárez entre 1854 e 1876
(Zoraida, 2010): “vai correndo o rumor de que vêm as tropas do governo a vigiar o
cumprimento das Leis de Reforma e impedir as procissões. O povoado se excita, queria
opor-se a mão armada” 105 (YÁÑEZ, 2008, p.105).
Como nada é eterno, por mais que possa parecer, finalmente irrompe algo
novo nesse povoado esquecido por todos: a invasão das tropas revolucionárias. Com
essa invasão, que acontece justamente no último capítulo, termina a narrativa.
Justamente porque para este autor não importam as ações em si, mas os dramas
internos dos personagens. Em Al filo del agua não importa o que acontecerá com o
povoado com a invasão das tropas, o que importa é a experiência litúrgica dos
capítulos anteriores e como isso se reflete em seus espíritos. Uma era chega ao fim e
outra começa.
Recapitulando o estudo de Al filo del agua, Agustín Yáñez rompe de vez o
realismo porque a narrativa se centra no drama das paixões. Para conseguir tal feito,
este escritor lança mão da técnica narrativa da refletorização e do monodiálogo. A
liturgia católica rege a vida dessa pequena população esquecida no espaço e no
tempo. Como Azuela, não se trata de um romance cosmopolita, trata-se de traçar uma
cartografia espiritual dos povos afastados da metrópole e como a fé, muitas vezes,
está repleta de paganismo, como relatado em algumas partes da obra de Yáñez.
Novamente temos a mexicanidade como tema estrutural de um livro, representada
nesta obra pelo sincretismo religioso da época colonial. Pouco a pouco os narradores
vão adentrando mais fundo no coração do mexicano: dos guerrilheiros aos povoados
ancestrais. Neste ambiente surgirá a obra que Carlos Fuentes (2011) qualifica como o
melhor romance mexicano de todos os tempos: Pedro Páramo, de Juan Rulfo.
105 No original: “va corriendo el rumor de que vienen tropas del gobierno a vigilar el cumplimiento de las Leyes de Reforma e impedir las procesiones. El pueblo se excita, quisiera oponerse a mano armada”. (Tradução nossa)
71
4.3 Pedro Páramo e a mitografia rulfiana da morte
Cálmase. Ya lo sentirá más fuerte cuando lleguemos a Comala. Aquello está sobre las brasas de la tierra, en la mera boca del Infierno. Juan Rulfo (2005, p.8)
A complexidade da obra de Juan Rulfo (1918-1986) não será abordada aqui em
sua plenitude, apenas iremos situá-la no campo da Narrativa Mexicana Moderna,
averiguar que pontos ele herda de seu antecessor Agustín Yáñez, cuja obra estudamos
na seção anterior, e quais as suas principais técnicas empregadas pela geração futura,
mais especificamente a de Carlos Fuentes, a quem estudaremos detalhadamente na
terceira parte deste trabalho. José Miguel Oviedo (2002, p.68) define Rulfo como “uma
figura absolutamente central no romance mexicano deste século e um dos grandes
mestres da narrativa hispano-americana” 106. E Rulfo publicou apenas duas obras: o
livro de contos El llamo en llamas (1953) e o romance Pedro Páramo (1955). Faremos
um pequeno estudo da última obra mencionada.
As obras de Juan Rulfo se encaixam perfeitamente no perfil elaborado por
Molano Nucamendi (2010) a respeito da Narrativa Mexicana Moderna: (i) em Pedro
Páramo encontramos um novo papel do narrador, que na verdade são dois
narradores: um morto e um desconhecido; (ii) pontos de vistas diversos, na verdade
temos confrontamentos provocados pela refletorização narrativa; (iii) monólogo
interior, principalmente no que se refere às inquietudes de Pedro Páramo e de seu
filho Juan Preciado; (iv) refletorização porque a narrativa se divide em dois eixos
narrativos distintos; (v) fluxo de consciência que quebra com a linearidade narrativa;
(vi) jogo com o tempo narrativo uma vez que Rulfo utiliza recursos como o flashback;
(vii) fragmentação da história narrada, pois como mencionamos, há dois eixos centrais;
(viii) inclusão do fantástico e do simbólico, inclusive essa é uma das marcas principais
da poética narrativa rulfiana; (ix) justaposição de planos narrativos, que em Pedro
Páramo se realiza em dois eixos temporais: presente e passado; e (x) papel ativo do
leitor que necessita unir as duas narrativas contadas.
106 No original: “una figura absolutamente central en la novela mexicana de este siglo y uno de los grandes maestros de la narrativa hispanoamericana”. (Tradução nossa)
72
Em Juan Rulfo, destaca Oviedo (2005, p.69), temos “o fim do romance
revolucionário como crônica e com uma posição ou julgamento histórico claramente
estabelecido” 107. Diferente de Yáñez, em que as ações são menos importantes que as
emoções, em Pedro Páramo temos os dois elementos completando-se porque na
verdade se trata de duas narrativas a princípio autônomas, mas co-dependentes, uma
narrativa nutrindo a outra como a famosa imagem de ouroboros. Em seguida
estudaremos os procedimentos técnicos e a estrutura do romance Pedro Páramo.
4.3.1. Os dois eixos narrativos: a história do Pai e do Filho
Uma primeira pergunta fazemos a respeito do livro: por que se intitula “Pedro
Páramo”? A resposta é simples: o livro está composto de sessenta e nove capítulos que
se dividem em dois eixos narrativos: a história de Juan Preciado e a história de Pedro
Páramo. Apesar de o livro iniciar-se com a história de Juan Preciado, o principal foco
narrativo é de Pedro Páramo, pai de Juan Preciado, isso porque a narrativa de Pedro
Páramo engloba um total de quarenta e cinco capítulos e a narrativa de Juan Preciado
abarca um total vinte e quatro capítulos.
Examinemos um por um os procedimentos técnicos empregados por Juan Rulfo
em Pedro Páramo. Primeiramente analisaremos o narrador desta obra. Diferente de
Mariano Azuela e Agustín Yáñez, Juan Rulfo utiliza dois narradores que contam duas
histórias distintas, mas que por sua vez se alimentam reciprocamente. Conforme já
mencionamos anteriormente, vinte e quatro capítulos é a história de Juan Preciado e
quarenta e cinco narram a trama de Pedro Páramo.
O primeiro narrador nos é conhecido: “Vim a Comala porque me disseram que
aqui vive meu pai, um tal Pedro Páramo” 108 (RULFO, 2005, p.5), essas são as primeiras
palavras do romance. A partir desse fragmento averiguamos uma narrativa em
primeira pessoa, que neste caso engloba o narrador da história e o protagonista. Trata-
se da história de Juan Preciado que está à procura de seu pai, Pedro Páramo. Toda essa
107 No original: “el fín de la novela revolucionaria como crónica y con una posición o juicio histórico claramente establecidos”. (Tradução nossa) 108 No original: “Vine a Comala porque me dijeron que acá vivía mi padre, un tal Pedro Páramo”. (Tradução nossa)
73
narrativa se encontra contada desde a perspectiva do presente: o narrador Juan
Preciado não nos conta os eventos narrados ao mesmo tempo em que eles ocorrem,
mas tempos depois: Juan Preciado realiza um exercício de rememorização.
Realizando uma leitura linear do romance, como se fosse uma primeira leitura,
no sexto capítulo do livro encontramos eventos narrados distintos ao que contava Juan
Preciado, isso ocorre porque houve a mudança de narrador e de eixo narrativo: nesse
momento o que se conta é a história de Pedro Páramo e eventos anteriores aos
narrados por Juan Preciado, porque Pedro Páramo já havia falecido, isso foi uma das
primeiras coisas que descobriu Juan Preciado ao chegar em Comala. Porém, essa
informação não nos é dada diretamente, porque o primeiro recorte narrativo de Pedro
Páramo em Juan Preciado ocorre entre os capítulos seis e oito, e justamente na
penúltima linha do oitavo capítulo temos a pista de a quem se refere essa narrativa: “-
Pedro! – lhe gritaram – Pedro!” 109 (RULFO, 2005, p.17).
Como podemos perceber no fragmento anterior, Pedro Páramo não conta a sua
história, essa segunda narrativa se dá em terceira pessoa, ou seja, o narrador e o
personagem são entidades literárias distintas. Aqui Juan Rulfo utiliza elementos
técnicos modernos como o monólogo narrado 110, como averiguamos em “Pensava em
você, Susana. Nos parques verdes” 111. O narrador abre espaço para a projeção do
pensamento do personagem, sabemos o que ele sente ou pensa por sua própria voz.
Igualmente observamos o uso da refletorização112 que se torna evidente porque temos
dois eventos distintos contados por narradores diferentes.
Em Pedro Páramo, se por um lado, se observa o ponto de vista de Juan
Preciado sobre Comala, uma narrativa próxima do presente; por outro lado se observa
o ponto de vista de Pedro Páramo sobre esse mesmo povoado, uma narrativa do
passado. Os procedimentos supracitados criam pontos de vistas diversos, em que se
tentam complementar a realidade. Uma versão abrangente da realidade será um dos
temas importantes para a prosa a partir de 1950 113.
109 No original: “-¡Pedro! – le gritaron -. ¡Pedro!”(Tradução nossa) 110 Cuja breve explicação teórica apresentamos no apartado anterior. 111 No original: “‘Pensaba en ti, Susana. En las lomas verdes’”. (Tradução nossa) 112 No aparto anterior fizemos uma discussão sobre o referido procedimento. 113 No referido período teremos a escrita dos chamados romances totais, como qualifica Sosnowski (2010)
74
O fluxo de consciência é o principal responsável pela ruptura da linearidade
narrativa, porque a consciência narrativa dos dois narradores aponta para direções
opostas. Enquanto na narrativa contada por Juan Preciado temos a história do
protagonista e a sua procura por saber histórias do seu pai em Comala, na narrativa
contada em terceira pessoa temos a história de como Pedro Páramo tornou-se cacique
de Comala, as atrocidades cometidas, a má-educação dada a seu filho Miguel Páramo
e como Pedro Páramo se apaixonou pela louca Susana.
Justamente por usar dois narradores que contam duas histórias diferentes,
Juan Rulfo consegue realizar um jogo com o tempo narrativo. Apesar das duas
narrativas se situarem no passado, a história de Pedro Páramo se encontra anterior à
de Juan Preciado e por causa disso cria-se o efeito de flashback. Se vemos por outro
ângulo, a história de Pedro Páramo é a predominante na obra e, por tal detalhe, o livro
assim se intitula. Por tanto, ao invés de olharmos a narrativa de Pedro Páramo como
flashback por ter como ponto de partida a história de Juan Precido, podemos fixar
como eixo central a narrativa de Pedro Páramo e assim a história de Juan Preciado
torna-se flashforward, ou seja, ao invés de mostrar fatos passados, apresenta fatos
futuros. Constata-se, assim, que em Pedro Páramo temos a justaposição de planos
narrativos.
Cabe ao leitor associar as duas histórias, conectá-las e averiguar que no fundo
se tratam da mesma história: uma narrativa é espelho da outra, não obstante, apenas
se entende uma ao olhar a outra. Juan Rulfo não nos apresenta uma visão total da
realidade narrativa, nos apresenta de forma fragmentada em dois eixos narrativos.
Essa novidade de Rulfo revoluciona a Narrativa Mexicana Moderna, que já havia se
iniciado com Agustín Yáñez na obra já estudada Al filo del agua. Passemos agora ao
estudo da interdependência narrativa das duas histórias e constataremos que o mito é
o elo de união de ambas.
4.3.2. A mitografia da morte
Lo que pasa con estos muertos viejos es que en cuanto les llega la humedad comienzan a moverse. Y despiertan.
Juan Rulfo (2005, p.84)
75
Muitos críticos, tais como Christopher Domínguez (1996), José Miguel Oviedo
(2005), Anderson Imbert (2010b), Molano Nucamendi (2010) e Carlos Fuentes (2011),
apontam para um dado em comum na obra de Juan Rulfo: a tentativa de resgate dos
mitos pré-hispânicos. Não só como mera menção, mas também empregando-os de tal
forma que os mitos fazem parte da gênese do livro. No caso de Pedro Páramo, a
simbiose entre as duas narrativas se dá pelo mito. Se a história de Juan Preciado e de
Pedro Páramo, em um primeiro momento, são os dois eixos narrativos fundamentais,
em um estudo mais aprofundado verifica-se que os dois verdadeiros eixos centrais do
livro são o mito e a linguagem (Fuentes, 2011).
Como esclarece Oviedo (2005), na obra Pedro Páramo encontramos duas
inovações técnicas: (i) a fragmentação do tempo narrativo e (ii) a percepção
mistificadora do mundo real. As duas se complementam e assim podemos estabelecer
um sentido narrativo à obra. Por isso afirma Carlos Fuentes (2011, p.135): “[Pedro
Páramo] é um romance extraordinário, entre outras coisas, porque se gera a si
mesmo, como romance mítico” 114. O fio condutor da narração é o mito, mas um mito
de vida e de morte, de aniquilação e renovação, mito que se remonta ao imaginário
pré-hispânico, como vemos na obra maia Popol Vuh (Anônimo, 2010) e na lenda dos
Cinco Sóis Astecas (Franch, 2008). A narrativa em Pedro Páramo possui ar fúnebre, por
tal razão José Miguel Oviedo (2005) qualifica a obra de uma narrativa ultratumba e,
por outro, lado Fuentes (2011, p.127) declara que “Para Juan Rulfo a cronotopia
americana, o encontro do tiempo e do espaço, não é rio nem selva nem cidade nem
espelho: é uma tumba” 115.
Deve-se esclarecer que os mitos presentes na referida obra não somente se
referem à cosmovisão pré-colombiana, mas também a diversos outros mitos de outras
culturas. José Miguel Oviedo (2005) destaca algum deles: ao principiar o romance,
temos a história de Juan Preciado em busca do seu pai Pedro Páramo. Esta cena nos
recorda um dos arquétipos clássicos - a Telemaquia de Odisséia – cujo tema se centra
114 No original: “[Pedro Páramo] es una novela extraordinaria, entre otras cosas, porque se genera a sí misma, como novela mítica”. (Tradução nossa) 115 No original: “Para Juan Rulfo la cronotopía americana, el encuentro de tiempo y espacio, no es río ni selva ni ciudad ni espejo: es una tumba”. (Tradução nossa)
76
na busca de Telêmaco por seu pai Ulisses. A citação que abrimos o primeiro tópico do
estudo da obra rulfiana, narra a ida de Juan Preciado a Comala, que na descrição se
apresenta como a boca do inferno nos faz lembrar de outro mito: a descida de Orfeu
ao inferno. Ainda nos dois primeiros capítulos há a presença do personagem tropeiro
que conduz o protagonista Juan Preciado a Comala, ou seja, ao “inferno”, à
semelhança de Virgilio em A Divina Comédia.
Como o nosso trabalho se centra no imaginário pré-hispânico como
composição literária e símbolo de modernidade narrativa, analisaremos as relações
que há em Pedro Páramo com os mitos pré-hispânicos. Condensando a história do
livro, chegamos a um paradoxo: o que dá vida aos personagens narrados é a morte. Na
história de Pedro Páramo os personagens estão vivos e na história de Juan Preciado
estão mortos, mas mortos com vida. E nem o narrador-protagonista Juan Preciado
escapa à morte: ele conta a sua história à sua amiga vizinha de tumba Dorotea, ambos
mortos. Um personagem é fundamental nas duas histórias – na de Juan Preciado e de
Pedro Páramo –: o murmúrio.
Poderíamos classificar o murmúrio como um elemento, mas se assim fosse
também deveríamos denominar igualmente o povoado que estudamos em Al filo del
agua. Se nesta obra a população conforma um personagem coletivo, como Oviedo
(2001) mencionou, no romance analisado de Juan Rulfo, à semelhança, podemos
classificar o murmúrio, porque é ele quem interage, influencia e direciona as ações dos
personagens. O murmúrio nada mais é que a lamúria dos mortos: “Parece um uivo
humano, mas não para ser de nenhum humano” 116 (RULFO, 2005, p.93).
Também constatamos, no décimo primeiro capítulo do livro e no capítulo de
número sete da narrativa de Juan Preciado, um curto diálogo entre o narrador-
protagonista e a personagem Eduviges que lhe oferecera sua casa para acolhê-lo
(RULFO, 2005, p.26):
116 No original: “Parece ser un aullido humano, pero no parece ser de ningún ser humano” (Tradução nossa)
77
- Escutou alguma vez a lamúria de um morto?, perguntou a mim - Não, dona Eduviges. - Melhor assim.
117
Ironicamente, a conversa estabelecida entre Juan Preciado e Dona Eduviges já é
uma conversa com os mortos. Entretanto, só saberemos desse detalhe em capítulos
posteriores, mais especificamente no capítulo dezesseis do livro e no nove da história
de Pedro Páramo em que o padre Rentería se lembra de um fato passado (RULFO,
2005, p.33): “Ainda tenho frente aos meus olhos o olhar de María Dyada, que veio me
pedir que salvasse a sua irmã Eduviges” 118. A salvação nesse caso é da alma, porque
Eduviges havia se suicidado. Os murmúrios ou ecos dos mortos se fazem sentir por
todo Comala, como percebe a personagem Damiana Cisneros, já morta, em uma
conversa com Juan Preciado (RULFO, 2005, p.44):
- Este povoado está cheio de ecos. Tal parece que se estivessem presos no oco das paredes o debaixo das pedras. Quando se caminha, sente-se que vão te pisando os passos. Ouve-se lamúria. Risadas. Umas risadas já muito velhas, como cansadas de rir. E as vozes já desgastadas pelo uso. Tudo isso se ouve. Penso que chegará um dia em que estes sons se apaguem.
119
Ao longo da obra, os murmúrios passam a ser cada vez mais frequentes ao
ponto de já ser possível escutar músicas: “Ruído. Vozes. Rumores. Canções distantes”
120 (RULFO, 2005, p.49). O personagem-narrador Juan Preciado, de tanto interactuar
com esses murmúrios, enfim crê realmente nos fantasmas. Não apenas isso, mas a
interactuação passa a outro nível como se observa no capítulo trinta e cinco do livro
que é o capítulo dezoito da narrativa de Juan Preciado (RULFO, 2005, p.61):
117 No original: “- ¿Has oído alguna vez el quejido de un muerto?, me preguntó a mí. / - No, doña Eduviges. / - Más te vale”. (Tradução nossa) 118 No original: “Todavía tengo frente a mis ojos la mirada de María Dyada, que vino a pedirme salvara a su hermana Eduviges”. (Tradução nossa) 119 No original: “Este pueblo está lleno de ecos. Tal parece que estuvieran encerrados en el hueco de las paredes o debajo de las piedras. Cuando caminas, sientes que te van pisando los pasos. Oyes crujidos. Risas. Unas risas ya muy viejas, como cansadas de reír. Y voces ya desgastadas por el uso. Todo eso oyes. Pienso que llegará el día en que estos sonidos se apaguen”. (Tradução nossa) 120 No original: “Ruido. Voces. Rumores. Canciones lejanas” (Tradução nossa)
78
Saí à rua para procurar ar, mas o calor que me perseguia não se descolava de mim. É que não havia ar, só a noite entorpecida e quieta, acalorada pela canícula de agosto. Não havia ar. Tive que absorver o mesmo ar que saía de minha boca, o detendo com as mãos antes de que fosse embora. Sentia-o ir e vir, cada vez menos; até que se fez tão fino que se filtrou em meus dedos para sempre. Digo para sempre.
121
O narrador-protagonista desmaia e quando recobra a consciência, já se
encontra enterrado em um túmulo ao lado de Dorotea, a quem lhe conta a sua
história. Portanto, só percebemos, na metade do livro, a verdadeira história
escamoteada pela primeira leitura do romance: Juan Preciado, morto e vivo ao mesmo
tempo, conta a sua história a sua vizinha de túmulo, Dorotea (RULFO, 2005, p.62):
- (...) De não haver tido ar para respirar essa noite de que falas, nos haveriam faltado forças para te levar e além para te enterrar. E você já percebe, te enterramos. - Tem razão, Doroteo. Você disse que se chama Doroteo? - Dá o mesmo. Embora meu nome seja Dorotea. Mas dá o mesmo. - É certo, Dorotea. Mataram-me os murmúrios.
122
Por que há seres do outro mundo viventes? Quem são eles? A explicação se
encontra no segundo eixo narrativo do livro: a história de Pedro Páramo.
Superficialmente, o que se conta aqui é a história do amor irrealizado entre o coronel
123 de Comala, Pedro Páramo, e sua amada Susana. Nestes fragmentos também
sabemos sobre a mãe de Juan Preciado, Dolores Preciado, mas que apenas Pedro
121 No original: “Y es que salí a la calle para buscar el aire; pero el calor que me perseguía no se despegaba de mí. / Y es que no había aire; sólo la noche entorpecida y quieta, acalorada por la canícula de agosto / No había aire. Tuve que sorber el mismo aire que salía de mi boca, deteniéndolo con las manos antes de que se fuera. Lo sentía ir y venir, cada vez menos; hasta que se hizo tan delgado que se filtró entre mis dedos para siempre. / Digo para siempre.” (Tradução nossa) 122 No original: “ - (…) De no haber habido aire para respirar esa noche de que hablas, nos hubieran faltado las fuerzas para llevarte y contimás para enterrarte. Y ya ves, te enterramos. - Tienes razón, Doroteo. ¿Dices que te llamas Doroteo? - Da lo mismo. Aunque mi nombre sea Dorotea. Pero da lo mismo. - Es cierto, Dorotea. Me mataron los murmullos.” (Tradução nossa) 123 Em espanhol, o termo é “cacique”. Refere-se ao líder político de um povoado que conseguiu esse posto por meio das armas. No contexto histórico do romance de Rulfo, Pedro Páramo é filho de um revolucionário que arrebatou para si o comando de Comala. Com a morte do pai, Pedro Páramo assume o controle desse povoado.
79
Páramo se casou com ela por causa do dinheiro de Dolores e assim poder possuí-lo e
pagar as dívidas dele.
Bartolomé San Juan, pai de Susana, há muito havia percebido como de verdade
era Pedro Páramo: “É, segundo eu sei, a pura maldade. Isso é Pedro Páramo” 124
(RULFO, 2005, p.89). A narrativa de Pedro Páramo se situa na fase mais sangrenta da
Revolução Mexicana, assim como o romance de Azuela que estudamos: “Chegaram
uns feridos a Comala. (...) Parece que se encontraram com umas pessoas que se
declaram villistas” 125 (RULFO, 2005, p.108). Mas no romance o que menos importa é o
contexto histórico, ele apenas serve de pano de fundo para justificar a presença de
Pedro Páramo no poder de Comala. Justamente por essa tirania, o povo desse
povoado sofreu muito, porque Pedro Páramo governava com mão de ferro: impiedoso
e inflexível, muitos morreram por sua causa e os que não morreram, sofreram direta e
indiretamente a consequência de seus atos.
Por tal motivo, a população morta não tem descanso. Baseando-se na mitologia
asteca, como aponta Oviedo (2005, p.73), a morte não é o fim da vida: “A morte abre
as portas de outra vida superior, pois está em contato com a sacralidade” 126. Os
mortos, ainda vivos, habitam Comala. O próprio Pedro Páramo toma consciência desse
fato aos poucos. Com a morte de sua amada Susana, o coronel de Comala perde a
vontade de viver. Quer se vingar de Comala por esta terra ter matado a sua amada,
porque Pedro Páramo não aceita que sua própria culpa.
Ao fim da vida, já velho e cansado, Pedro Páramo perde as forças e vislumbra o
final, o que acontece no último capítulo do livro. Aqui podemos ver uma justaposição
narrativa: se o livro começa com a história do morto-vivo Juan Preciado, o filho; no
último capítulo temos o fim da história do vivo quase morto Pedro Páramo, o pai.
Pedro Páramo, às vésperas da morte, observa Comala e vislumbra “A terra em ruínas
estava na frente dele, vazia” 127 (RULFO, 2005, p.131). Por fim, Comala se congela no
124 No original: “Es, según yo sé, la pura maldad. Eso es Pedro Páramo”. (Tradução nossa) 125 No original: “Llegaron unos heridos a Comala. (...) Parece que se encontraron con unos que se dicen villistas”. (Tradução nossa) 126 No original: “La muerte abre las puertas de otra vida superior, pues está conectada con lo sagrado”. (Tradução nossa) 127 No original: “La tierra en ruinas estaba frente a él, vacía”. (Tradução nossa).
80
tempo, assim como o coração do coronel Pedro Páramo: “Logo seu coração se detinha
e parecia como se também se detivesse o tempo. E o ar da vida” 128 (RULFO, 2005,
p.131). Assim morre Pedro Páramo nas mãos de outros revolucionários que invadem
Comala.
A meneira pela qual Pedro Páramo vê Comala pela última vez é a maneira pela
qual vê seu filho, Juan Preciado, quando este chega a Comala, narrada na ultratumba
por sua vizinha de morte Dorotea: “Depois de atravessa uns morros, baixamos cada
vez mais. Tínhamos deixado o ar quente lá encima e íamos-nos fundindo no puro calor
sem ar. Tudo parecia estar na espera de algo” 129 (RULFO, 2005, p.8). A descida de Juan
Preciado foi mais funda: não só desceu em direção a Comala, mas também desceu à
morte e da morte à vida. Os murmúrios mataram Juan Preciado. Veio o silêncio. Mas
todo silêncio é o principio do som. Pode-se dizer que o silêncio é o som em emanência
de vir. Como acontece com a morte, ela é a emanência da vida.
Juan Rulfo, através dessa magnífica obra, acrescentou de maneira brilhante
inovações técnicas à Narrativa Mexicana Moderna. Graças a Rulfo temos novos
leitores e novos escritores. E na próxima parte do nosso trabalho comprovaremos que
Carlos Fuentes é um herdeiro literário de Juan Rulfo. Mas antes disso precisamos
rememorar o que estudamos até agora da Prosa Mexicana Moderna.
4.4. Recapitulando
Começamos o quarto capítulo apresentando a Narrativa da Revolução
Mexicana, que rompe com o tradicional realismo e funda o realismo crítico no México,
conforme vimos na obra inaugural desse movimento literário: Los de abajo, de
Mariano Azuela. A seguir a obra estudada foi Al filo del agua, de Agustín Yáñez e a
128 No original: “De pronto su corazón se detenía y parecía como si también se detuviera el tiempo. Y el aire de la vida”. (Tradução nossa). 129 No original: “Después de transtumbar unos cerros, bajamos cada vez más. Habíamos dejado el aire caliente Allá arriba y nos íbamos hudiendo en el puro calor sin aire. Todo parecía estar en la espera de algo”. (Tradução nossa)
81
enquadramos dentro da Narrativa Mexicana Moderna, herdeira direta da Narrativa da
Revolução Mexicana. Destacamos dois procedimentos técnicos fundamentais
aplicados nesse romance: a refletorização e o monólogo narrado. Igualmente é
importante recordar que o realismo já não importa nesta narrativa: mais vale o que
passa dentro do personagem do que passa fora. Por último, analisamos Pedro Páramo,
de Juan Rulfo. Este escritor conseguiu ir mais fundo que Yáñez: estabeleceu dois eixos
narrativos codependentes para a compreensão do romance - a justaposição de planos
narrativos é uma das contribuições mais importantes feitas por Rulfo.
A respeito do lo mexicano como símbolo do moderno, no primeiro romance,
Los de abajo, constatamos a presença popular no romance, o que não acontecia antes,
no porfiriato, porque os romances ou eram cosmopolitas que reforçando a ideia de
modernidade que o governo positivista de Porfirio Díaz tentou imprimir ou eram
cosmopolitas que criticavam justamente a modernidade e o positivismo. A tentativa de
resgate do mexicano arcaico, antigo, começa a ter mais ênfase com a obra Al filo del
agua, conforme estudamos anteriormente. Mas é com Juan Rulfo e o uso da
cosmovisão pré-hispânica como elemento formal e estruturador do seu romance
Pedro Páramo que a mexicanidade passa a ser expressa como moderna. Algo
semelhante como aconteceu nas artes plásticas, conforme vimos no capítulo anterior.
Na próxima parte do nosso estudo, averiguaremos como Carlos Fuentes se tornou
herdeiro da Narrativa Mexicana Moderna e como o pensamento indígena mexicano
influi na obra deste escritor.
82
TERCEIRA PARTE
A CONSTÍSTICA DE CARLOS FUENTES E A IMAGINATURA DO TEMPO
Así, la novela crea un nuevo tiempo para los lectores. El pasado es rescatado
de los museos; el futuro, de convertirse en una inalcanzable promesa
ideológica. La novela convierte el pasado, en memoria, y el futuro, en deseo.
Pero ambos ocurren hoy, en el presente del lector que, leyendo, recuerda y
desea.
Carlos Fuentes (2012b, p.204)
A citação inicial nos é fundamental para poder compreender o pensamento de
Carlos Fuentes. Embora este pensador mexicano tenha escrito um número
considerável de livros de contos (Los días enmascarados, de 1954; Cantar de ciegos, de
1964; La frontera de cristal, de 1995; Todas las familias felices, de 2006; Cuentos
naturales, de 2007; Cuentos sobrenaturales, de 2007; Carolina Grau, de 2011; etc) em
nenhum de seus vários ensaios ele aborda a poética do conto, apenas a poética do
romance (La nueva novela hispanoamericana, de 1969; Cervantes o la crítica de la
lectura, de 1976; Valiente mundo nuevo, de 1990; Geografía de la novela, de 1993; La
gran novela latinoamericana, de 2011, dentre outros). No entanto, podemos afirmar
que a visão que Carlos Fuentes tem sobre o romance é a mesma que aplica em seus
contos. Por isso selecionamos a citação que abre os estudos da terceira parte.
Como percebemos, Fuentes afirma que o romance necessariamente estabelece
três temporalidades que são simultâneas e codependentes: o passado, o presente e o
futuro. O passado porque todo romance conta sobre algo e esse algo no momento da
leitura passa a ser passado, ainda que a narrativa use tempos verbais do futuro.
Especialmente para o romance hispano-americano, declara Fuentes (2012b, p.205)
que “O romance diz o que a história não disse, esqueceu ou deixou de imaginar” 130. O
ensaísta mexicano estabelece a superioridade do romance (e por extensão, da
130 No original: “La novela dice lo que la historia no dijo, olvidó o dejó de imaginar”. (Tradução nossa)
83
literatura em geral) em relação à história porque “O romance é uma re-introdução do
ser humano na história” 131 (FUENTES, 2012b, p.209).
Cabe recordar que a historiografia se divide em duas etapas: pré-história e
história, cujo ponto divisor é o surgimento da escrita. Ou seja, a história é aquilo que
se deixou registrado na escrita, por outro lado, a literatura é aquilo que ficou
registrado na memória, mas que (atualmente) contamos por meio de escrita: “A
imaginação e a linguagem, a memória e o desejo, são não somente a matéria viva do
romance, senão o lugar de encontro de nossa humanidade inacabada” 132 (FUENTES,
2012b, p.211). Aqui está um ponto chave do pensamento fuentiano: humanidade
inacabada, que em seus contos, como veremos, se reflete em personagens dissociados
com seu tempo. Carlos Fuentes não concebe ao ser humano como algo definido, mas
em vias de sê-lo, mas nunca se completa, porque no fim de toda a vida temos a morte:
“uma vida não basta. Necessitam-se múltiplas existências para integrar uma
personalidade” 133 (FUENTES, 2012b, p.196). Este é o problema com o qual o ser
humano se depara todos os dias.
O problema da finitude do ser é, para Carlos Fuentes (2012b, p.211), um dos
temas essenciais do romance, porque “o romance é uma perpétua re-definição do ser
humano como problema” 134. O romance então, semelhante ao que será nos contos de
Fuentes, deve refletir esse problema, ou seja, a literatura e o homem são um e o
mesmo. Chega-se a esta conclusão porque se a literatura está sobre o tripé presente-
passado-futuro, o homem se encontra na mesma condição. E como o homem é um ser
incompleto e a literatura também, uma vez que tenta demonstrar a complexidade
humana o faz por meio de um único sistema, a linguagem. De acordo com Fuentes
131 No original: “La novela es una re-introducción del ser humano en la historia”. (Tradução nossa) 132 No orriginal: “La imaginación y el lenguaje, la memoria y el deseo, son no sólo la materia viva de la novela, sino el sitio de encuentro de nuestra humanidad inacabada”. (Tradução nossa) 133 No original: “Una vida no basta. Se necesitan múltiples existencias para integrar una personalidad”. (Tradução nossa) 134 No original: “la novela es una perpetua re-definición del ser humano como problema”. (Tradução nossa)
84
(2012b, p.213) “A fatalidade da linguagem é depender de um meio sucessivo e
irreversível, a palavra” 135.
Tanto o homem quanto a literatura (e a arte em geral) tentam desvencilhar-se
dessa fatalidade, que na literatura é a finitude e no homem é a morte. Se a morte é a
interrupção do instante presente e a nossa permanência no passado, a memória é uma
forma de transladar-nos para o futuro: nossa memória resgata, do esquecimento,
acontecimentos e pessoas do passado e os atualiza no presente, projetando-os para o
futuro. Na literatura, a palavra, ao romper o silêncio da folha em branca, nasce em
plenitude, mas ao ser totalmente escrita, morre no mesmo espaço em branco: a
finitude da palavra se encontra nos dois espaços em branco que a permeiam. Porém,
se essa palavra é forte o suficiente para fixar-se na memória do leitor, ela ainda seguirá
vivendo. Temos horror ao esquecimento, por isso que, declara Fuentes (2012b, p.196),
“Querer sobreviver a todo preço é a maldição do vampiro que nos habita” 136.
Para não nos extendermos muito, constataremos nos próximos capítulos como
Carlos Fuentes funda essa problemática do homem incompleto e finito na sua
contística. Também estudaremos como o passado e o futuro formam parte dos
personagens fuentianos. Para tanto e para exemplificar o nosso tema de estudo,
selecionamos três livros de contos: Los días enmascarados, Cuentos sobrenaturales e
Todas las familias felices para exemplificar o nosso tema de estudo. O estudo de todos
os seus livros de contos e de todos os contos em si ultrapassaria os limites impostos
para uma dissertação. Não faremos uma análise quantitativa, mas qualitativa, que a
partir do horizonte teórico estudado nesta dissertação, pode servir para análises
posteriores dos demais contos. Antes, porém, necessitamos abordar sobre o tema da
poética do conto e do fantástico (capítulo 5), da inserção de Carlos Fuentes na
Narrativa Mexicana Moderna para poder, por fim, estudarmos os contos do referido
escritor mexicano (capítulos 6 ao 8).
135 No original: “La fatalidad del lenguaje es depender de un medio sucesivo e irreversible, la palabra”. (Tradução nossa) 136 No original: “Querer sobrevivir a todo precio es la maldición del vampiro que nos habita”. (Tradução nossa)
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A poética do conto em Carlos Fuentes
El cuento es un palacio de palabras donde se encuentran el escritor y el lector. Uno produce y el otro consume.
Enrique Anderson Imbert (2008, p.146)
Primeiramente, há que aclarar que nosso objetivo aqui não é teorizar a respeito
do conto, mas apontar alguns aspectos que o definem, de acordo com alguns teóricos
e críticos, e que estes mesmos aspectos se fazem presente na escrita dos contos de
Carlos Fuentes. Outro fator que é importante ressaltar é que o conto, em si, dissipado
de gênero literário, é impossível de datar porque, como afirma Herbet Ernest Bates
(2008, p.133), o conto “passou pelo mito e pela lenda, a fábula e a parábola, a anedota
e o esboço, e está aparentado inclusive com o que um cronista provinciano chamaria
‘boa piada’” 137. Por isso nosso estudo se baseia no denominado conto moderno.
5.1. O conto moderno
Temos ainda que esclarecer que, embora restringimos o estudo ao conto
moderno, há uma variedade extensa de definições possíveis dentro da literatura
especializada. Abordaremos alguns estudos sobre tal tema. De acordo com Cristina
Peri-Rossi (2008), o conto moderno caracteriza-se pela (i) consciência da multiplicidade
do eu, (ii) desintegração do espaço e do tempo como unidades fixas, (iii) capacidade de
simbolização, (iv) desconfiança perante a lógica e a razão como forma única de
conhecimento, (v) e o onírico, ou inconsciente, como epifania da realidade. Conforme
veremos na análise dos contos de Carlos Fuentes, todos esses elementos se
enquadram nas suas narrativas breves.
137 No original: “ha pasado por el mito y la leyenda, la fábula y la parábola, la anédocta y la semblanza, el esbozo, y está aparentado incluso con lo que un cronista provinciano llamaría ‘buen chisme’”. (Tradução nossa)
5
86
Se existe uma comparação plausível entre o conto e outra forma de arte esta
seria com a pintura e com a poesia. Com a pintura porque geralmente o conto “não
representa mais que uma cena” 138 (PERI-ROSSI, 2008, p.73) isso porque o que é
significativo no conto não é o que acontece, mas “a maneira de sentir, pensar, viver
esses fatos, isto é, sua interpretação” 139 (PERI-ROSSI, 2008, p.74). Ou seja, o
significativo do conto é como ele é narrado, não necessariamente o que se narra. Daí
provém sua semelhança com o poema. Para alcançar essa carga emocional, o escritor
lança mão da ambiguidade como provocação e estímulo da imaginação. Ainda segundo
Peri-Rossi (2008), o conto, enquanto relato, difere-se do romance porque este
desenvolve várias situações justapostas que passam uma ideia de tempo sucessivo e
aquele esgota, por intensidade, uma única situação. Isto é, o tempo no romance
predominantemente é sucessivo e o tempo no conto é em sua essência simultâneo.
Percebemos que para caracterizar o conto moderno Peri-Rossi (2008) vai desde
o mais “estrutural” (os elementos essenciais que perfaz o conto) ao mais “sublime” (as
sensações implicadas dentro do conto). Isso é inevitável, porque como afirma Nadine
Gordimer (2008), o conto, igual que o romance, nutre-se da experiência humana e
ambos têm por função comunicar essa experiência. Por tal razão, Guillermo Samperio
(2008, p.104) assim define o conto: “o conto é um relato breve que remove à
profundidade o espírito do leitor, deixando-lhe uma marca indelével e perdurável em
sua existência” 140, isso porque, segundo o mesmo, o conto é um gênero aparentado
da poesia, porque compartilha a brevidade do poema à rigidez estética do conto.
Ainda de acordo com Guillermo Samperio (2008), todo conto, assim como toda obra
de arte, gera um conflito interno e esse conflito tem que ser sentido pelo leitor.
Seria extenuante continuar a definir o conto e isso ultrapassaria o nosso foco
de estudo. Apenas para concluir este tema, nos referiremos ao estudo de Marco Tulio
Aguilera Garramuño (2008). Para ele, a obra de arte e o ser humano se fundam e se
complementam a tal ponto que já não podemos diferenciá-los, por isso que uma obra
138 No original: “no representa más que una escena”. (Tradução nossa) 139 No original: “la manera de sentir, pensar, vivir esos hechos, es decir, su interpretación”. (Tradução nossa) 140 No original: “el cuento es un relato breve que remueve a la profundidad el espíritu del lector, dejándole una marca indeleble y perdurable en su existencia”. (Tradução nossa)
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de arte impacta a uma pessoa, ou seja, na obra de arte se vê o humano e isso nos
choca. Justamente por tal fato é que os teóricos supracitados apontam o conto, o
romance, a literatura ou a arte como o “sentir, pensar e viver os fatos” (Peri-Rossi,
2008), a “comunicação da experiência humana” (Gordimer, 2008), “conflito”
(Samperio, 2008).
Ainda de acordo com Aguilera Garramuño (2008, p.250), “Cada contista, queira
ou não, imprime seu carimbo em seus contos. Sua arte é o resultado de uma
percepção particular e originalíssima do mundo” 141. Assim, cada escritor instala dentro
do seu conto a sua própria lógica. E isso nos leva a uma interrogante, com base em
Aguilera Garramuño (2008, p.250):
Mas o que é que une Cortázar a Poe, a Borges, a Rulfo, a Leônidas Andreiev, a Bradbury? Digamos, provisionalmente, que não o sabemos, deixemos a pergunta aberta e nos conformemos em afirmar que a única definição do conto é o conto mesmo. O conto não existe, existem os contos.
142
O melhor caminho para estabelecer uma poética do conto, não seria uma
definição, seria comparar os contos e tentar descobrir o seu denominar comum. No
estudo de Aguilera Garramuño (2008, p.251), um dos encantos provocados pelos
contos é “deixam um eco na mente do leitor, como um sino que segue ressoando” 143.
Outra característica apontada pelo ensaísta é que todo bom conto concebe o seu
próprio mundo e através dele, de certa forma, ensina-nos a viver porque cada relata
defende uma concepção do mundo, uma posição perante a vida. Outro marco é o
caráter inesgotável da sua leitura, pois a cada nova leitura não só se reitera o prazer da
leitura, mas também se abrem novos horizontes antes não percebidos. Ainda, um bom
conto deve fazer com que o leitor confronte sua vida e sua imaginação.
141 No original: “Cada cuentista, quiéralo o no, imprime su sello en sus cuentos. Su arte es el resultado de una percepción particular y originalísima del mundo”. (Tradução nossa) 142 No original: “Pero, ¿qué es lo que une a Cortázar con Poe, a Borges con Rulfo, a Leónidas Andreiev con Baldburry? Digamos, provisionalmente, que no lo sabemos, dejemos la pregunta abierta y conformémonos con afirmar que la única definición del cuento es el cuento mismo. El cuento no existe, existen los cuentos”. (Tradução nossa) 143 No original: “que dejan un eco en la mente del lector, como una campana que sigue resonando”. (Tradução nossa)
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Aguilera Garramuño (2008, p.255) também afirma que o conto “resume um
universo, o comprime em uma passa apertada, densa, contida que, como a forma de
um átomo, deve estalar diante dos olhos do leitor e revelar amplos espaços” 144. Para o
nosso estudo dos contos de Carlos Fuentes, os estudos aqui assinalados de Perri-Rossi
(2008) e Aguilera Garramuño (2008) foram significativos para analisar criticamente a
poética de Carlos Fuentes.
5.2. O fantástico
lo fantástico es un camino perfecto para revelar tal extrañeza, para contemplar la realidad desde un ángulo de visión insólito.
David Roas (2011, p.14)
Cabe-nos agora fazer algumas considerações sobre o conto fantástico e para
tanto nos centraremos nas reflexões de David Roas (2011) sobre a literatura fantástica.
Para o ensaísta, o fantástico tem estrita relação com a realidade, pelo menos com a
(suposta) realidade sentida/percebida/acreditada pelo leitor. Um texto que possa
parecer impossível, não quer dizer que seja fantástico: “a simples presença do
impossível não implica obrigatoriamente que uma obra deva ser considerada
fantástica” 145 (ROAS, 2011, p.45). Um exemplo que podemos citar é a literatura da
Idade Média permeada por monstros, bruxas e seres fantásticos que formavam parte
da crendice popular e que, portanto, não eram vistas como relatos fantásticos, senão
como relatos reais. Por isso afirma David Roas (2011, p.111) que “o leitor reconhece e
se reconhece no espaço representado no texto” 146.
Um conto fantástico nos dias atuais tem que levar em conta a visão de
realidade que o leitor tem. A literatura fantástica depende do seu leitor imaginário ou
144 No original: “resume un universo, lo comprime en un una masa apretada, densa, contenida que, como la fuerza del átomo, debe estallar antes los ojos del lector y revelar amplios espacios”. (Tradução nossa) 145 No original: “la simple presencia de lo imposible no implica obligatoriamente que una obra deba ser considerada fantástica”. (Tradução nossa) 146 No original: “el lector reconoce y se reconoce en el espacio representado en el texto”. (Tradução nossa)
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inferido, porque senão não consegue produzir o efeito desejado: “o fantástico vai
depender, sempre por contraste, do que consideramos como real” 147 (ROAS, 2011,
p.15). O fantástico questiona a Razão como único paradigma explicativo fundamental
da realidade. Aponta David Roas (2011) que, desde o advento do Racionalismo do
século XVIII, a literatura tem dado o apoio ou a recusa de tal modelo único de
interpretação da realidade. A literatura que acolheu essa ideia incorporou os conceitos
de mimese e verossimilhança. Por outro lado, o romantismo lutou contra o
racionalismo do século XVIII, pois afirmavam que tanto a intuição quanto o imaginário
também eram ferramentas hábeis para o estudo da realidade.
Mas a “virada de mesa” viria dois séculos depois, como aponta David Roas
(2011). No século XX, a física quântica veio desmantelar todos os conceitos que
tínhamos da realidade. Para começar, porque nada do que vemos concretamente na
verdade é concreto, mas sim partículas de átomos em alta velocidade comprimidos
numa rede de forma que lhe confere a consistência de sólido. Ou seja, os olhos não
conseguem abarcar toda a realidade, há muitas coisas acontecendo que não nos
damos conta: há outra(s) realidade(s) sob essa nossa realidade aparente. Além disso,
declara David Roas (2011), em um experimento físico com partículas o científico
intervém no experimento, ou seja, ao simplesmente iluminar o experimento, as
partículas de luz influenciam as partículas estudadas. Por conclusão de tal dado se
pode afirmar que “a interação do observador modifica a realidade” 148 (ROAS, 2011,
p.22).
Assim, a literatura a partir da segunda metade do século XX tem recusado
piamente o contrato mimético, como declara Roas (2011, p.30) “[a obra literária] não
se remite à realidade, e sim se baseia em sua própria ficcionalidade” 149. Temos assim a
ficção como questionamento da realidade e vimos nesta assertiva, ao longo desta
pesquisa, sua repercursão nas letras mexicanas: (i) no romantismo temos a recusa da
realidade imediata, entra em ação a idealização e a procura pela identidade nacional,
147 No original: “lo fantástico va a depender siempre, por contraste, de lo que consideremos real”. (Tradução nossa) 148 No original: “la interación del observador modifica la realidad”. (Tradução nossa) 149 No original: “[la obra literaria] no se remite a la realidad, sino que se basa en su propia ficcionalidad”. (Tradução nossa)
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(ii) no realismo e no naturalismo temos como eixo central a realidade no estatuto da
mimese, (iii) no modernismo a literatura funde duas escolas: a parnasiana e a
simbolista, que determina seu caráter mais onírico que realista, (iv) no realismo crítico,
que advém com a Revolução Mexicana, temos que os narradores assumem o papel de
cronista da barbárie e tentam reproduzir o que de fato ocorre no campo de batalha, (v)
por fim vimos a Narrativa Mexicana Moderna, fruto da Narrativa da Revolução
Mexicana, que passa a ter um caráter mais subjetivo, o contexto histórico passa a ser
fundo narrativo (Yáñez) e com Rulfo temos a inserção do imaginário pré-hispânico
mexicano.
Justamente com Juan Rulfo e Carlos Fuentes virão à tona os contos fantásticos,
uma vez que ambos escritores usam o fantástico para “desestabilizar esses limites que
nos dão segurança, problematizar essas convicções coletivas antes descritas,
definitivamente, questionar a validez dos sistemas de percepção da realidade
comumente admitidos” 150 (ROAS, 2011, p.35), dito de outra forma, a função básica do
relato fantástico é trans-tornar nossa percepção da realidade. Mas justamente aí
reside o paradoxo do relato fantástico: ele tem por função criticar a realidade, mas
depende fundamentalmente dela para criar o relato fantástico, porque como vimos
anteriormente, o leitor tem que se reconhecer no texto para que possa ocorrer um
efeito fantástico. Por isso a declaração de David Roas (2011, p.37) de que “o fantástico
recombina e inverte a realidade, mas não escapa deste, senão que estabelece com ele
uma relação simbiótica ou parasitária”. 151
Pelo exposto, quanto maior for esse “realismo” maior efeito causará o
fantástico sobre o narrador e/ou personagens e/ou leitores. Para criar tal efeito de
“realidade”, muitos escritores têm empregado nas suas narrativas tramas baseadas no
cotidiano. David Roas (2011) aponta algumas estratégias para se conseguir o efeito
fantástico no relato: (i) que o relato seja apresentado de forma autêntica, ou por meio
de testemunho ou como um documento verídico, (ii) a refletorização narrativa, ou
150 No original: “desestabilizar esos límites que nos dan seguridad, problematizas esas convicciones coletivas antes descritas, en definitiva, cuestionar la validez de los sistemas de percepção de la realidad comúnmente admitidos”. (Tradução nossa) 151 No original: “lo fantástico recombina e invierte lo real, pero no escapa de este, sino que establece con él una relación simbiótica o parasitaria”. (Tradução nossa)
91
seja, o narrador passa a ver o enredo narrado pela ótica de um ou mais personagens,
(iii) a narração polifônica, que consiste o narrador dá vozes aos personagens, (iv) o
jogo de ambiguidades, dentre outros recursos.
5.3. Recapitulando
Começamos o capítulo afirmando que o conto, enquanto ato de relatar algo, é
impossível de ser rastreado e que não nos competiria fazer tal estudo, por isso nos
centramos no conto moderno. Destacamos o estudo de Peri-Rossi (2008) como
fundamental para entender a poética de Carlos Fuentes porque este se enquadra
dentro das características definidas pela ensaísta. No entanto, há que ter em mente
que cada conto transmite um universo particular de um escritor, como afirma Aguilera
Garramuño (2008) e, portanto, nosso estudo se apliacará basicamete à contística de
Carlos Fuentes.
E a respeito do relato fantástico vimos, de acordo com o ensaísta David Roas
(2011), que o fantástico depende da realidade, primeiro porque se necessita criar um
ambiente narrativo em que o leitor reconheça e se reconheça, porque senão o
narrador de antemão suspeitará do texto e não acreditará no relato, depois porque
uma vez construída essa percepção do real, é necessário destruí-la com o objetivo de
fazer com que o leitor questione o seu próprio conceito de realidade. Veremos a seguir
que Carlos Fuentes emprega os mitos pré-hispânicos para atacar essa “realidade
comum”.
92
A gênese do tempo mítico em Los días enmascarados
No puede haber presente vivo con un pasado muerto
Carlos Fuentes (2012, p.277)
Neste capítulo estudaremos a poética que perfaz o livro de contos Los días
enmascarados, a primeira obra de Carlos Fuentes, publicada em 1954. Nossa análise se
pauta na afirmativa do escritor e ensaísta mexicano de que a América hispânica é uma
utopia, mas não no sentido do senso comum, e sim no seu sentido etimológico: u-
topus, ou seja, um não-lugar. Mas este não-lugar está entrelaçado com um não-tempo
(FUENTES, 1997). Realizando um levantamento sobre os elementos presentes na
contística de Fuentes, nota-se a clara influência dos mitos pré-hispânicos na narrativa,
criando assim tempos múltiplos e realidades diversas, formando uma cosmovisão de
um mundo complexo, distinto, porém não antagônico entre si. Isso acontece porque,
segundo o próprio Fuentes (1998a, p.55), a escrita poética propõe “ao mesmo tempo
múltiplas verdades antagônicas, uma visão realmente dialética da vida” 152.
Percebemos, durante esta pesquisa, que na produção literária de Carlos
Fuentes há um diálogo entre o presente e o passado, principalmente no que se refere
à memória coletiva do México Antigo, a cultura mesoamericana 153. Como declara o
referido escritor e ensaísta (FUENTES, 1994, p.203): “A cultura indígena do México,
capturada pelo tempo, serva do tempo, libera a si mesma, mediante a imaginação, a
obra de arte, o costume vital, se convertendo em ama (amante) do tempo” 154. A partir
do exposto, podemos afirmar que Carlos Fuentes busca compreender o presente
152 No original: "a un mismo tiempo múltiples verdades antagónicas, una visión realmente dialéctica de la vida". (Tradução nossa) 153 Este termo possui um sentido espaço-temporal compreendido entre o norte do México e o norte da América Central no que se refere ao tempo anterior da Conquista da América (ÁVILA ALDAPA, 2008). 154 No original: “La cultura indígena de México, capturada por el tiempo, sierva del tiempo, se libera a sí misma, mediante la imaginación, la obra de arte, la costumbre vital, convirtiéndose en ama (amante) del tiempo". (Tradução nossa)
6
93
tendo como base o passado. Ademais, se nota que na constística deste escritor
mexicano a literatura está fundada com o mito, ao qual se tenta resgatar por meio da
memória coletiva, apresentando assim o “passado-mítico”, porque “o tempo
mexicano, antigo e novo, está dentro desta velha memória” 155 (FUENTES, 1994, p.
208).
Portanto, pode-se afirmar que na obra de Carlos Fuentes se constata que tanto
o tempo quanto a memória são intrínsecos ao mito, formando assim uma tríade
inextricável. Por tal motivo, este trabalho pretende demonstrar como o imaginário
hispano-americano, em específico o do México, está subscrito na verdade poética da
memória-mítica de um tempo que é outro; formando, assim, uma cosmovisão
fuentiana. Selecionamos dois contos do escritor mexicano para realizarmos uma
análise crítica que nos abra horizontes sobre sua poética. Dentre os seis contos que
fazem parte do livro Los días enmascarados, selecionamos dois: “Chac Mool” e
“Tlactocatzine, del jardin de Flandes”. Primeiramente vamos rever os estudos críticos
sobre a memória e depois vamos aplicá-los aos referidos contos.
6.1. A duplicidade da máscara nos contos: memória e esquecimento
El arte de la memoria supone la utilización recurrente del bisturí del olvido.
Ricardo Forster apud Vicente Robalino (2010, p.43)
Chama-nos a atenção o título do livro “Los días enmascarados”. A pergunta que
nos inquieta é por quê o uso especifico da palavra “enmascarado”. Carlos Fuentes
poderia ter usado, talvez, o vocábulo “oculto” ou “desaparecido”, ou qualquer outro
do gênero. Mas empregou uma palavra derivada de “máscara”. Intriga-nos o título
porque a máscara por si só é um objeto intrigante. Los días enmascarados: o emprego
específico desta palavra põe em evidência o pensamento do escritor mexicano,
pensamento esse que se basea na dialética, assim quando se pensa na máscara. Tal
155 No original: "el tiempo mexicano, antiguo y nuevo, está dentro de esta vieja memoria". (Tradução nossa)
94
objeto apresenta duas faces: a face de dentro e a face de fora. Portanto, a máscara
não é somente a parte de fora ou a parte de dentro, ela compreende as duas
conjuntamente, dentro e fora, formando uma dialética da totalidade.
Esse pensamento vai de encontro com o pensamento de Patrick Charaudeau
(2008, p.5) que afirma que a máscara
...é o símbolo da identificação, a tal ponto de nela se confundirem o ser e o parecer, a pessoa e a personagem, tal como no teatro grego. Não há mais oposição entre o verdadeiro e o falso, o autêntico e o artifício, o vivido e o representado. Não há mais apenas um ser congelado em um momento de verdade, que faz unir a contingência do aqui-agora e a imutabilidade de uma natureza.
A máscara mostra a dualidade do ser: o que mostra e o que oculta. Da mesma
forma podemos aplicar essa dinâmica na memória: o que se lembra e o que se
esquece. O ato de rememorar e de esquecer é intrínseco à memória. E é da memória
que provem nossa concepção de realidade. A seguir faremos um recorrido pela teoria
memorialística.
6.1.1. Sobre o conceito de memória
Em última instância, é pela memória que o ser humano se configura como um ser passível de constituir mundo, ou melhor, mundos, na medida em que é pela memória que se estabelece a possibilidade de vigência da unidade.
Antonio Jardim (2005, p.124)
Na mitologia grega, as musas surgiram por vontade de Zeus para criar uma
força/entidade que iria “registrar a façanha [derrotar Cronos] na própria memória do
tempo” (PESSANHA, apud JARDIM, 2005, p.127). Aqui já encontramos uma diferença
entre tempo e memória, em que esta passa a ser, no mínimo, a condição de
possibilidade da constituição de um tempo que se confronta para além de um tempo
95
imediato. Ou seja, a memória torna-se o gérmen propiciador do tempo: sem a
memória não conseguiríamos apreender o passar do tempo.
Se as musas (memória) foram criadas para atualizar Zeus, assim, a memória é
uma atualização do ser. A memória poética, portanto, não é linear, um continuum, mas
um permamente fundante, ou seja, funda o homem no mundo. A memória,
compreendida desse modo, passa a representar a possibilidade de estabelecimento da
cultura. Em outras palavras, o tempo poetológico (em contraposição a cronológico)
tem como base a memória, que é, por excelência, um formador do mundo.
Até agora refletimos sobre o conceito de memória e tempo, entretanto, outro
conceito pode ser relacionado com ambos. Os gregos, segundo Jardim (2005),
entendiam a verdade por meio da palavra “aletheia” (ἀλήθεια), cuja raiz do nome é
“lete” (λήθε), que significa “esquecimento”. A esta raiz soma-se o “alfa privativo”, ou
seja, a verdade, compreendida a partir dessa interpretação, é como o des-
esquecimento / memória. A verdade, neste sentido, não é mais uma mera constatação,
mas sim um fruto desse processo fundante que é a memória. Neste perfil, se um mito
está subscrito na cultura de um povo, ele faz parte da realidade pertencente àquele
povo, àquela cultura.
A memória, portanto, não é um recorte da realidade, ela é uma unidade dos
invisíveis. A memória é o nexo do que é, do que já existe, ou ainda não existe. Ela é a
realização do que é antes mesmo de existir. Assim, o que faz distinguir recordação de
memória é que aquela é ter “presente no espírito” e esta é o constituir dos sentidos, é
“a potencialização da densidade do real” (JARDIM, 2008, p.157).
Assim, a memória é a condição de possibilidade de se estabelecer um todo
complexo temporal-espacial como unidade. Do mesmo modo como ocorreu com a
verdade, a memória passa a ser tomada como a razão do que foi, do que é, ou, em
especial, do que será. Ou seja, a memória, em última instância, aciona a própria
dinâmica da verdade quando entendida originalmente como des-velamento (des-
esquecimento).
96
6.1.2. O tempo quadridimensional
...futuro, passado e presente subsistem simultaneamente
Heidegger (1979, p.260)
O filósofo e ensaísta Emmanuel Carneiro Leão já havia atentado para a perda
da memória nos dias de hoje, a perda desta força dinamizadora. No artigo “O
Esquecimento da Memória” (LEÃO, 2003) há a denuncia de que a memória individual,
aquela que fixa conteúdos perceptivos; a memória coletiva, que é a experiência de
participação e a memória histórica, aquela que celebra a continuidade das
transformações e as consagras para o futuro. Esses conceitos contemplam algumas
ações, como: reter fatos, conservar dados e repetir padrões de combinação e
derivação. Esquecem-se da memória criativa, que é articulada tanto pela memória do
passado quanto pela memória do futuro e que, em conjunto, propicia a gênese da
participação do homem no mundo.
Podemos então, a partir das considerações acima, chegar à conclusão que o
tempo não é somente tripartição entre passado-presente-futuro, pois, partindo desta
compreensão tripartida do tempo, este é entendido como “o fluir da sucessão da
sequência de ‘agoras’” (HEIDEGGER, 1979, p.266) – um tempo calculado/cronológico.
Entretanto, há um presentificar que une estas três dimensões, ou seja, presente,
passado e futuro não são sucessivos, mas simultâneos. O que une em presença e em
ausência essas três dimensões é a memória, articulada pela dinâmica da memória do
passado e da memória do futuro. Portanto, o tempo, assim concebido, é
quadridimensional. Em que, verdadeiramente, a memória é a quarta dimensão quando
se trata da enumeração aqui feita, pois esta é a primeira, isto é, “o alcançar que a tudo
determina” (HEIDEGGER, 1979, p.265)
97
6.1.3. Da memória individual
A atividade da memória que não se inscreve em um projeto do presente não tem carga identitária e, com mais frequência, equivale a nada recordar.
Joël Candau (2011, p.149)
Saindo de um campo teórico ontológico, mas continuando no âmbito
metafísico, Bergson (1999) se propõe a uma teorização a respeito da memória. Como o
seu estudo é longo, apenas iremos nos apropriar de dois termos propostos pelo
filósofo francês. Para este há dois tipos de memória, a saber: a memória-hábito e a
imagem-lembrança. A primeira se refere aos hábitos costumeiros adquiridos ao longo
da vida. São ações realizadas em automático, que não passam por uma reflexão por
parte da memória. Partindo dessa premissa Ecléa Bosi (1994, p.11) afirmará que “A
memória-hábito faz parte de todo o nosso adestramento cultural”. Já o antropólogo
Joël Candau denominará de protomemória, porque é uma “memória de baixo nível”
(2011, p.21), pois introjetada no ser, tem caráter repetitivo e habitual, muitas das
vezes incorporada de valor social não questionado.
Candau afirma que “O habitus depende, em grande parte, da protomemória”
(2011, p.22). Entretanto, o antropólogo nos chama a atenção para o seguiente: “O
habitus como experiência incorporada é uma presença do passado – ou no passado – e
não a memória do passado” (2011, p.23). Enquanto ação repetitiva não questionada,
não podemos afirmar que é uma memória em si, porque o sujeito não percebe que
lembra. Por isso não se trata de uma memória do passado, apenas da presença do
mesmo. No conto “Chac Mool”, de Carlos Fuentes, nada será questionado até chegar o
ponto-chave do conto. Somente a partir de uma ação ativa do sujeito teremos a
memória e a representação da mesma (a metamemória).
Ao voltar a Bergson (1999), temos a segunda categoria de memória, que é a
imagem-lembrança. Esta funciona como um ato de revelação, porque conecta vários
elementos e deles extrai um sentido um tanto quanto transcendental. Isso acontece
porque, conforme Bosi (1994, p.11) a “imagem-lembrança traz à tona da consciência
um momento único, singular, não repetido, irreversível, da vida”. A teoria bergsoniana
98
tem como base a memória pura, ou seja, tudo o que foi vivido e experimentado é
“arquivado” no nosso espírito podendo vir à tona a qualquer momento, pois “toda
lembrança ‘vive’ em estado latente, potencial” (BOSI, 1994, p.14).
Contra esta continuidade da memória, Gaston Bachelard (1988) propõe a teoria
do repouso, dialetizando o conceito de memória, afirmando que esta é constituída de
lembrança e de esquecimento simultaneamente, pois só pode ser lembrado aquilo que
foi esquecido e só pode ser esquecido aquilo que foi lembrado. Como afirma a
pesquisadora Angélica Soares (2009, p.13), a memória é uma “permanente tensão
entre lembrar e esquecer, pensada aqui como um dos pilares do nosso dinamismo
existencial”.
6.1.4. Da memória coletiva
É que a história, com efeito, assemelha-se a um cemitério onde o espaço é
medido e onde é preciso, a cada instante, achar lugar para novas sepulturas.
Maurice Halbwachs (1990, p.55)
Seguindo nossa trajetória de discussão, passaremos do ontológico e metafísico
para a teoria psicossocial. De acordo com Maurice Halbwachs (1990, p.21), “não
podemos pensar em nós mesmo, senão pelos outros e para os outros”, ou seja, “o
homem se caracteriza essencialmente por seu grau de integração no tecido das
relações sociais”. Halbwachs afirma, portanto, que ninguém lembra por si próprio,
nossas lembranças estão conectadas com as dos outros, denominadas pelo teórico
como “as testemunhas”. Não nos lembramos de tudo, mas as testemunhas lembram
por nós e nunca se lembram exatamente aquilo que ocorreu.
Semelhante ao pensamento de Bachelard (1988), nossa memória é composta
de lembrança e esquecimento e muito do que esquecemos é “preenchido” pela
imaginação, pois “para algumas lembranças reais junta-se assim uma massa compacta
de lembranças fictícias” (HALBWACHS, 1990, p.28). De encontro a este pensamento,
99
Angélica Soares (2009, p.27) afirma que “na ação de lembrar contamos com a
imaginação, porque os fatos não se revivem, reconstroem-se, recriam-se nos
descontínuos e lacunares movimentos temporais da rememoração”.
Para esta pesquisa chamamos a atenção para a seguinte proposição de
Halbawachs (1990, p.31): “Há pessoas de quem dizemos que estão sempre presente
(...) Uma espécie de instinto vital lhes ordena desviar seu pensamento de tudo aquilo
que poderia distraí-las do que as preocupa atualmente”. Isto é, pessoas que só vivem o
presente e mal recordam do seu passado, assim, pouco a pouco se distanciam do que
eram inicialmente, uma vez que, para Candau (2011), tanto a memória enquanto
passado quanto a metamemória enquanto representação que cada um faz do seu
passado que definem a nossa identidade. Somos o que somos pelo que lembramos e
pelo que esquecemos e a forma como “costuramos” esta colcha de retalhos que é a
memória.
6.1.5. Das memórias e o tempo
Conforme fomos discutindo ao longo deste trabalho, a memória pode ser
estudada por vários ângulos. Sintetisando, toda memória é social, uma vez que
depende sempre dos indivíduos e dos ambientes com os quais interagimos.
Entretanto, o ato de lembrar é sempre pessoal/individual. Ainda que haja testemunhas
que relatem situações que não nos lembramos, nada garante que elas virão à tona. Em
cada indivíduo a memória realiza o seu trabalho. Sobre os trabalhos individuais da
memória, vimos que em Bergson (1999) ela pode ser manifesta em (i) memória-hábito
e (ii) imagem-lembrança. Já para Candau (2011) temos três tipos de realizações: a (i)
protomemória, que vem de encontro com a definição de memória-hábito proposta por
Bergson (1999), a (ii) memória em si, composta de esquecimento e de recordações, e a
(iii) metamemória, que é a representação da própria memória e esta representação
como a formadora de nossa identidade.
100
Vimos também que a memória está entrelaçada necessariamente com o tempo
e que a condição sine qua non da apreensão do tempo é a memória, sem esta não é
possível conceber a ideia de tempo. Segundo Heidegger (1979), o tempo é
quadridimensional: passado, presente, futuro e memória como quarto eixo, que
agrupa os três anteriores formando assim não um tempo linear, mas um tempo
concomitante. O esquecimento total, portanto, seria um ato de perda de identidade,
similar à morte, pois segundo Eliade (2010, p.109) "A fonte de Letes, o ‘esquecimento’,
faz parte integrante do reino da morte”.
O tempo, assim, não é concebido como uma linha que contem um começo e
um final, mais bem como um círculo, que embora tenha início e fim, eles estão
interligados, apagando desse modo essas fronteiras e criando uma perfeita
continuidade dos acontecimentos. Mircea Eliade constata que o pensamento que
predomina nessas concepções cósmico-mitológicas é "a repetição cíclica do que existiu
antes, ou seja, o eterno retorno" (1992, p.79).
Em Carlos Fuentes, especialmente, não se trata de uma narrativa de tempo
cíclico, esta ideia é apenas o ponto de partida; pois o escritor elimina as divisões do
tempo em "passado", "presente" e "futuro", constituindo tempos concomitantes. Na
contística do escritor mexicano este tema é muito recorrente. Como afirma Gonzalo
Celorio, em seu capítulo dedicado a Fuentes, “Os círculos do tempo é um subtítulo que
invoca o mito do eterno retorno” 156 (CELORIO, 2008, p.94), porque para este mesmo
crítico, na obra de Carlos Fuentes, “o tempo, aí, não transcorre, é” 157 (2008, p.95).
Na acepção de Guyau (2010, p.145) “A arte deve imitar a lembrança”, pois “Sua
finalidade deve ser a de exercitar, como ela, a imaginação e a sensibilidade”. Passemos
agora para o estudo do conto “Chac Mool” às luzes do horizonte teórico aqui
discutido.
156 No original: "Los círculos del tiempo es un subtítulo que evoca el mito del eterno retorno". (Tradução nossa) 157 No original: "el tiempo, ahí, no transcurre; es". (Tradução nossa)
101
6.2. “Chac Mool” e a tríade inextricável mito-tempo-memória.
[...] hasta qué grado siguen vivas las formas cosmológicas de un México perdido para siempre y que, sin embargo, se resiste a morir y se manifiesta, de tarde en tarde, a través de un misterio, de una aparición, de un reflejo.
Carlos Fuentes (2012a, p. 7)
Em “Chac Mool”, o conto que abre as narrativas do referido livro, temos a
história de Filiberto, protagonista do conto que morre ao começar a história. A morte
de Filiberto só é explicada quando se aproxima do final do conto, segundo a
informação encontrada no transcurso da narrativa. O conto inicia-se com a voz do
primeiro narrador, que surge para transportar o corpo do protagonista do lugar do
falecimento, Acapulco, até a casa do mesmo. Desse narrador, conforme se avança na
leitura do conto, percebe-se que ele é amigo de Filiberto.
O amigo/narrador, ao revirar os pertences do morto, encontra o diário de
Filiberto. A partir desse momento, o atual narrador, amigo de Filiberto, dará voz ao
citado diário do protagonista, o qual irá tornar-se o segundo narrador. O primeiro e o
segundo narrador se alternarão na narrativa do conto. Em questão de estrutura
narrativa, portanto, temos dois narradores, um vivo e outro morto, e saberemos o que
se passou com o falecido protagonista através do seu diário, encontrado pelo primeiro
narrador e amigo do protagonista.
Neste momento, o encontro do amigo do protagonista com o diário do mesmo,
encontramos a memória de dois integrantes do conto: a do amigo de Filiberto e a do
próprio Filiberto, presente no relato autobiográfico – o diário. Segundo Benjamin
(2008), a vida se constitui pelas lembranças, isto é, a vida lembrada. Ora, o diário é
uma forma de representação da vida lembrada, pois só se escreve o que se lembra –
como fragmentos da memória – não exatamente o que se viveu. E o narrador amigo
de Filiberto, no decorrer da história, irá questionar as “memórias” do diário a partir do
seu conhecimento de mundo (ou seja, a partir de sua “memória”). Entretanto, cabe
ressaltar que memória não só é o que se lembra, isto é, o consciente, mas também o
inconsciente, pois tudo o que experenciamos nessa vida fica retido em nós, ainda que
não percebamos.
102
O primeiro fragmento do diário começa assim: “Hoy fui a arreglar lo de mi
pensión. El licenciado, amabilísimo. Salí tan contento que decidí gastar cinco pesos en
un café” (FUENTES, 2012a, p.11). Como se nota, trata-se de lembranças rotineiras, do
dia-a-dia. Não à toa assim termina o referido fragmento: “¿Cinco pesos? Dos de
propina” (FUENTES, 2012a, p.12). No que se refere à criação do conto fantástico,
segundo vimos em David Roas (2011), a presença do diário é fundamental para de
certa forma objetivar a narrativa e dar um caráter testemunhal à trama, o que faz com
que o leitor creia em um primeiro momento no que se lê. Ademais, a descrição de
eventos rotineiros é, igualmente, importante, conforme apontamos anteriormente,
para a credibilidade do texto. Esta primeira parte do diário é o que Bergson (1999)
denomina de memória-hábito, pois se trata de ações adquiridas pela repetição, que
não passa pelo crivo crítico da memória, como ainda aponta Candau (2011).
Continuando com a trama do conto, Filiberto, ao beber o café, começa a
rememorar fatos do passado, agora sim uma memória de fato, pois começa a refletir
sobre os eventos rememorados. Afirma o protagonista que nestas memórias
“desfilaron los años de las grandes ilusiones [...]. Sentí la angustia de no poder meter
los dedos en el pasado [...]” (FUENTES, 2012a, p.12). Já se percebe por esse fragmento
que o protagonista é um ser em dissonância com o seu passado. O elo entre o
presente e o passado se encontra fragmentado, corrompido, desestabilizado.
Filiberto, através de seu diário, continua a narrar as suas lembranças. No
segundo fragmento surge na história, por um breve instante, Pepe, um amigo do
protagonista, que elabora uma hipótese significativa “si yo no fuera mexicano, no
adoraría a Cristo” (FUENTES, 2012a, p.13). Ou seja, na concepção de Pepe, Cristo e
México têm laços profundos. O personagem ainda cita Huitzilopochtli 158 como um
deus do passado. Isto é, atualmente, para os mexicanos, deus é Cristo; no México do
passado pré-hispânico, deus era Huitzilopochtli. Aqui percebemos a inferência da
cultura ocidental europeia, pelo viés da época da colonização, que se fundamenta pelo
parâmetro da comparação excludente, isto é, sou adorador de Cristo, ainda que seja
mexicano, pois vivo (me identifico) no presente, sou presente por não ser passado.
158 Deus do sol na cultura asteca, a quem este povo oferecia o sangue dos guerreiros capturados em batalhas (Ávila Aldapa, 2008).
103
Recordemos agora a divagação de Filiberto afirmando que em sua memória
desfilava um passado de ilusões. Mas se o passado era ilusório, como é que se
encontra o presente (se por ser mexicano adora a Cristo)? Nota-se, então, que há um
problema identitário na história, porque a memória não conecta passado com
presente e assim não projeta um futuro. A estrutura quadridimensional proposta por
Heidegger (1979) se encontra defasada no conto, pois o protagonista tem vivido uma
vida de enganos, conforme ele a posteriori afirmará.
O protagonista Filiberto nos conta que tinha um hobby, que consistia em
“aflicción, desde joven, por ciertas formas del arte indígena mexicano” (FUENTES,
2012a, p.14). E seu último desejo de compra era a aquisição de uma réplica de Chac
Mool, deus do panteão maia, existente também em outras culturas e religiões de
Mesoamérica. Ao obtê-lo, o protagonista guarda a estátua do Chac Mool no porão, um
lugar escuro, como o próprio Filiberto reconhece. E não poderia ser de outra forma,
porque o passado (figurado como Chac Mool) na vida de Filiberto está presente no
fundo do porão, lugar destinado às coisas velhas (Benjamin, 2008).
Ao dia seguinte, Filiberto se vê com problemas no encanamento da casa
fazendo com que a água escorra até o porão. Após o conserto da tubulação, advém
uma forte chuva que inunda o porão, cobrindo de lama a estátua do Chac Mool.
Depois de tirar o musgo da estátua, Filiberto percebe que com o passar do tempo o
Chac Mool não volta à consistência de pedra, mas se apresenta como a “textura de la
carne” (FUENTES, 2012a, p.18). Filiberto declara: “siento que algo circula por esa figura
recostada” (FUENTES, 2012, p.20).
Agora é importante que comentemos um pouco sobre essa divindade. De
acordo com o estudo de Thompson (1987, p.394),
“Os Chacs, ou Chaacs, deuses maias que simbolizam a chuva, recebem mais orações e oferendas , em um contexto pagão, que nenhum outro ser sobrenatural. [...] Seu culto é muito antigo[...] Chac Mool é representado por uma figura reclinada, de considerável tamanho, com os joelhos para cima, e em geral com uma chapa no estômago, que se supõe que seja para oferenda.”
159
159 No original: “Los Chacs o Chaacs, dioses mayas que sinbolizan la lluvia, reciben más oraciones y ofrendas, en un contexto pagan, que ningún otro ser sobrenatural. [...] Su culto es
104
O amigo de Filiberto volta a assumir a voz da narração somente para dizer-nos
que a partir do dia 25 de agosto a letra de Filiberto tinha mudado muito, a tal ponto,
que “parecía escrita por otra persona” (FUENTES, 2012a, p.17). Continuando com a
leitura do diário, percebemos agora o quão perturbado Filiberto se encontrava,
fazendo reflexões sobre a realidade. Primeiramente, notam-se espaçamentos maiores
entre os fragmentos do diário. Nestes fragmentos, o protagonista comenta que algo
por ser natural se passa por real. Filiberto declara (FUENTES, 2012a, p.19-20):
…todo es tan natural; y luego, se cree en lo real… pero esto lo es, más que lo creído por mí. […] Si un hombre atravesara el Paraíso en un sueño, y le dieran una flor como prueba de que había estado allí, y si al despertar encontrara esa flor en su mano… ¿entonces, qué…? Realidad: cierto día la quebraron en mil pedazos, la cabeza fue a dar allá, la cola aquí, y nosotros no conocemos más que uno de los trozos desprendidos de su gran cuerpo. Océano libre y ficticio, sólo real cuando se le aprisiona en un caracol. Hasta hace tres días, mi realidad lo era al grado de haberse borrado hoy: era movimiento reflejo, rutina, memoria, cartapacio. Y luego, como la tierra que un día tiembla para que recordemos su poder, o la muerte que llegará, recriminando mi olvido de toda la vida, se presenta otra realidad que sabíamos que estaba allí, mostrenca, y que debe sacudirnos para hacerse viva y presente.
Neste fragmento encontramos a metamemória, pois o narrador começa a
questionar a si próprio e seu entorno, sendo este questionar o verdadeiro trabalho da
memória, como vimos em Candau (2001): um confrontamento da sua representação
do seu passado com o seu presente. O verdadeiro passado vai sendo aos poucos
alertado ao longo do conto, porque ocorreram “coisas inusitadas”: “(o Chac Mool)
había cambiado de color en una noche”, “hay dos respiraciones en la noche”, “el
cuarto olía a horror, a incienso y sangre” (FUENTES, 2012a, p. 20). Na noite anterior a
estas reflexões, o protagonista conta que acendeu a luz do porão e encontrou o Chac
Mool, de pé e sorridente. Neste trecho, tem-se um aparente embate: o passado
ressurge no presente (passado versus presente). E começa a chover...
muy antiguo [...] Chac Mool es representado por una figurilla reclinada, de considerable tamaño, con las rodillas para arriba, y en general con una placa en el estomago, que se supone que sea para ofrendas”. (Tradução nossa)
105
O amigo de Filiberto retoma a narrativa expressando que havia rumores de
loucura por parte Filiberto e que por isso havia sido demitido do trabalho. Ou seja, o
atual narrador justifica de que tudo o que ocorreu com seu amigo não é da ordem da
realidade, e sim da loucura. Para provocar e rejeitar essa dicotomia, Carlos Fuentes
resolve fundir essas duas realidades no conto, ou melhor dito, por meio das reflexões
anteriores, Carlos Fuentes revela que não há esta dicotomia, o passado não anula o
presente nem vice-versa; o presente se funda com o passado, o presente é presente
por ser atualizado pela memória, pelo passado; somos hoje esta unidade que a
memória construiu. Parte da memória do passado pré-colombiano do México ressurge
nos dias atuais: o passado atualizando o presente. Temos aqui uma lembrança que
conecta situações, vivifica-as, pois tem um sentido singular e jamais repetido: a
imagem-lembrança.
Voltando à narrativa do conto, Chac Mool e Filiberto, o “aparente passado” e o
“aparente presente”, passam a morar na mesma casa. Entretanto, as anotações de
Filiberto saltam no tempo, quase um mês, pois ele só voltou a escrever no seu diário
em final de setembro. Filiberto comenta a fúria do deus maia com o mercador que lhe
vendeu, pois o havia untado com molho de ketchup para se passar por divindade
asteca, enquanto em verdade ele era maia. Isto é, utilizar-se do passado e moldá-lo
para ser útil ao presente, ainda que este passado forjado não seja verídico.
Com o passar do tempo na narrativa, o Chac Mool passa a assumir o controle
total sobre a casa e sobre a vida de Filiberto. O deus maia passa a dormir na cama do
protagonista e este a dormir na sala. Ademais, com a estiagem Filiberto tem que ficar
molhando a casa, trabalhando para o deus. Filiberto confessa “soy su prisionero [...]. El
Chac Mool está acostumbrado a que se le obedezca, desde siempre y para siempre; yo,
que nunca he devido mandar, sólo puedo doblegarme ante él” (FUENTES, 2012a, p.23-
24). Isto é, o passado ao “pseudo-ressurgir” no presente passa a controlá-lo, pois o
presente (Filiberto) nunca dominou o passado, mas o passado (Chac Mool) domina e
determina/atualiza o presente.
Entretanto, no desenrolar da narrativa, o Chac Mool passa a se interessar por
coisas do presente a ponto de obrigar, por exemplo, que Filiberto o ensine a usar
106
sabonete e loções de barba. E o protagonista nota algo curioso nesse processo de
modernização do passado: “hay algo viejo en su cara que parecía eterna” (FUENTES,
2012a, p.26). O passado (a memória) é grandioso por não ser cronológico, isto nos
leva a reflexão que o passado não pode se construir nem se modificar no presente,
pois assim se desfigura da memória.
Cansado dessa situação de serventia e de cárcere com o Chac Mool, Filiberto
decide partir de casa enquanto o deus maia faz uns passeios noturnos atrás de animais
para saciar a sua fome. E ainda deixa escrito no diário um desafio ao deus: “a ver
cuanto dura sin mis baldes de agua” (FUENTES, 2012a, p.26). Neste momento a
narrativa se torna cíclica, pois retoma exatamente os acontecimentos do início do
conto, terminando o diário de Filiberto e, consequentemente, o amigo do protagonista
voltando a narrar.
Perante tal história inacreditável, o amigo de Filiberto confessa: “...pretendi dar
coherencia al escrito, relacionarlo con exceso de trabajo, con algún motivo
psicológico” (FUENTES, 2012a, p.26). Entretanto, por mais razões que buscasse, ele
não consegue encontrar argumentos para explicar. O amigo de Filiberto nunca
conseguiria encontrar explicações humanas para o que leu, pois o narrado está muito
além da mera compreensão racional do homem. Aqui justamente jaz o truque da
narrativa fantástica, conforme vimos em David Roas (2011).
A narrativa prossegue com a chegada do cadáver e do amigo de Filiberto a casa
deste. Antes que o amigo colocasse a chave na porta, esta se abriu e “apareció un
indio amarillo” (FUENTES, 2012a, p.27). O atual narrador tenta explicar a situação, no
entanto, o “índio” interrompe sua fala e declara “No importa, lo sé todo. Dígale a los
hombres que lleven el cadáver al sótano” (FUENTES, 2012a, p.27). E assim termina o
conto, com um tom de dúvida no ar. Quem é o “índio” e como sabia de antemão a
morte de Filiberto? Notemos que ironia há nesse final, porque se antes era a estátua
de Chac Mool que estava no porão, agora quem se encontra aí é o cadáver do próprio
Filiberto, destinado a cair no esquecimento. Observemos um dado curioso: Filiberto foi
morto na água, o símbolo dos chacs, isto é, Filiberto morreu como oferenda ao Chac
Mool.
107
Ao final, o passado não morre com o fim da narrativa, ou melhor, sugere que
ainda que “despercebido” ele está entre nós, é a nossa reminiscência e por mais que
queiramos deixá-lo para trás, ele se faz presente no dia-a-dia, pois é este que nos
atualiza e nos funda no mundo. Realizando uma síntese sobre como Carlos Fuentes
recupera ao longo do conto a memória coletiva pré-colombiana do México,
encontramos como primeiro referencial a conversa de Pepe com Filiberto e a alusão a
Huitzilopochtli. Depois quando o próprio Filiberto confessa sobre o seu hobby de
colecionar peças de arte indígena do México. A terceira recuperação ocorre pelo
ressurgimento do Chac Mool através da estátua comprada por Filiberto.
Entretanto, o processo de “encarnação” é lento, pois Carlos Fuentes permite
que o leitor vá descobrindo pouco a pouco, através dos diversos sinais presentes no
conto, como: o problema no encanamento, as fortes chuvas, a inundação do porão,
além de sinais mais incisivos como os gemidos noturnos que Filiberto ouvia. Outro
sinal de “encarnação” é quando a letra de Filiberto muda drasticamente a partir do dia
25 de agosto. Outra referência a essa memória coletiva se dá quando se cita o nome
de Tláloc, o deus da chuva asteca.
O retorno do deus maia Chac Mool surge aqui como forma de vingança
paulatina e surpreendente. Carlos Fuentes introduz um ato fantástico no meio da
narrativa, que até aquele momento estava no âmbito no normal/cotidiano. A ideia do
retorno permite ao escritor resgatar simbolicamente a mitologia indígena do passado e
situá-la no mundo contemporâneo. Quando isso se estabelece na narrativa, o
protagonista Filiberto começa a refletir sobre o que é ilusão e o que é real e, assim, a
vida dele parece revelar-se plena de sentido. A verdadeira recuperação do passado e
da história (neste conto referente ao México) ocorre quando ela transcende do papel
(o relato autobiográfico de Filiberto) e passa a fazer parte do que somos hoje, do que
nos define e do que nos caracteriza (no caso do conto, o “tornar a ser mexicano”), ou
seja, a nossa unicidade. O que resta escolher, como Filiberto fez, é se a verdade
pertence ao plano do “real” ou ao plano do ficcional, da imaginação.
108
6.3. A relação de interdependência entre Mito e Natureza
O mundo em que reina a lonjura e o outrora, de um modo se pode dizer que está ele dentro de nós, de outro modo dizer se pode que estamos nós dentro dele.
Eudoro de Souza (1995, p.07)
Para continuarmos o estudo dos contos aqui propostos, faz-se necessário saber
o que é mito e como ele é compreendido. O mito, ao longo do tempo foi se
descaracterizando do seu sentido original, passando a ser entendido de modo geral
como alegorias que demonstram a relação do homem com o divino. O mitólogo
Eudoro de Souza rejeita essa concepção simplista do mito. No prefácio ao livro
Mitologia II: História e Mito (Souza, 1995, p.01), Fernando Bastos declara: “O mito não
é uma alegoria, mas tautegoria 160. O mito não é uma representação fantasiosa de uma
incapacidade da razão. O mito é tautegoria, relato simbólico das origens, sendo a
sensibilidade (e não a razão ou a inteligibilidade) seu vetor cognitivo”. Isto é, o mito na
verdade não é uma simples metáfora ou alegoria, mas uma forma de pensamento do
espírito humano, uma expressão de uma experiência intensamente vivida, com sua
realidade intríseca. Assim, o conceito de mito desmente o pensamento racionalista, o
mito como alegoria, ou seja, como representação. Para explicar a estrutura intrínseca
do mito, Eudoro de Souza (1995) emprega dois termos que nos farão compreender a
cosmovisão do mito: a lonjura e o outrora, justificando assim que o mito-poético é da
ordem da presença do passado que está além de qualquer distância e tempo.
De acordo com o mitólogo, “a lonjura é a indimensionável dimensão do espaço
– que não é espaço – de um além horizonte” (SOUZA, 1995, p.05) e o outrora seria “a
indimensionável dimensão do tempo – que não é tempo – de um além horizonte”
(SOUZA, 1995, p.06). Portanto, a partir de tais conceitos, pode-se afirmar que o mito é
da ordem do transobjetivo, pois está além do passado e da distância. Observemos que
160 De acordo com M. H. Abrams (2010), este termo foi proposto por Schelling justamente contra a ideia de mito como alegoria. Mito tautegônico seria a expressão espiritual de uma experiência altamente vivida, com uma realidade suis generis, manifestação unitária da vida e do pensamento.
109
o mito está fundado em uma dimensão de um não-lugar e de um não-tempo. O mito,
assim, é u-topus, definição dada por Carlos Fuentes ao continente americano.
Ainda de acordo com Eudoro de Souza, mito e natureza são inseparáveis e,
como esse realismo transobjetivo, “duas naturezas não são dois ‘aspectos’ da mesma
natureza, não são duas formas de parecer, mas duas modalidades de ser, não a de ser
o mesmo, mas a de uma vez ser uma de outra vez, ser outra” (SOUZA, 1995, p.35). Dito
de outra forma, mito e natureza não são o mesmo, se encontram na dupla face de uma
mesma moeda, que embora tenham duas faces, compõem uma unidade. Por isso,
pode-se dizer que o mito “mitifica a natureza” e a natureza “naturaliza o mito”.
Portanto, a natureza já é mítica, desde sempre e por isso ao londo da história tem
surgido cultos à chuva, ao sol, à terra, etc.
O mito e a memória, justamente por serem da ordem da lonjura e do outrora,
são abordados somente por intervenção da memória poética, que reúne o homem
com o divino-natural. Assim, o mito seria a linguagem da transcendência do sensível,
enquanto “mítico, sensibilidade e natureza são co-naturais” (SOUZA, 1995, p.53). A
natureza mítica-sensível reavivada pela memória que a resgata do tempo linear é um
tema recorrente na contística de Carlos Fuentes, como o próprio autor afirma (1998b,
p.67): "un pasado muerto quiere pasar por presente vivo y mitificaciones en las que un
presente vivo recupera, también, la vida del pasado".
6.4. Tlactocatzine, del jardin de Flandes: a natureza submergida no mito
En México, es fácil desplazarse simultáneamente en el tiempo y en el
espacio.
Carlos Fuentes (2012c, p.41)
O terceiro conto da coletânea Los días enmascarados é “Tlactozatzine 161, del
Jardín de Flandes” e nessa narrativa o escritor mexicano continua com a poética da
memória que presentifica o passado e re-atualiza o presente (conforme já visto no
161 É um termo náhuatl que significa “amado meu” (Matos Moctezuma, 2012).
110
estudo sobre o conto “Chac Mool”). Em “Tlactozatzine, del Jardín de Flandes”, o
protagonista declara, por meio de um diário, que trabalha como vigia em uma velha
mansão desabitada. Novamente temos a presença do diário como artifício narrativo,
que imprime confiança no leitor e, por meio desse procedimento, captura o leitor na
trama narrativa (David Roas, 2011).
A mansão, por si só, é um enigma: “19 Sept. ¡El licienciado Brambilla tiene cada
idea! Ahora acaba de comprar esa vieja mansión del Puente de Alvarado, suntuosa
pero inservible, construida en tiempos de la Intervención Francesa” (FUENTES, 2012a,
p.34). Chamam-nos a atenção os adjetivos empregados para caracterizar a mansão:
velha, suntuosa e inservível. Conforme vimos no conto anterior, Carlos Fuentes
emprega muitas vezes a representação de um objeto simbolizando o abstrato.
Conforme veremos no transcurso da análise deste conto, novamente teremos o
resgate dos mitos mesoamericanos. Portanto, a casa, simbolicamente, representa o
próprio México, mas não o atual, e sim o México Antigo, porque a casa é antiga. Se a
casa é suntuosa, por extensão o México pré-hispânico também o é, e os dois não têm
serventia. A casa não tem serventia porque está abandonada, e o passado glorioso
pré-colombiano também, de acordo com a narrativa de Carlos Fuentes.
O protagonista é designado pelo licenciado para que cuide da mansão por um
tempo, assim relatada pelo protagonista em vinte de setembro: “Menos de
veinticuatro horas entre estos muros, que son de una sensibilidad, de un fluir que
corresponde a otros litorales, me han inducido a um reposo lúcido” (FUENTES, 2012a,
p.37). Conforme percebemos, a mansão transmite algo para o nosso protagonista,
embora não saiba dizer exatamente o que seja, que se define pela sensibilidade a
ponto de deixá-lo em um descanso atento, o que por si só é uma afirmação paradoxal.
No entanto o narrador-protagonista não sabia o que lhe esperava ao entrar no
jardim da mansão, sentia a sensação de estar no centro pungente do todo: “Si ya en la
casa rozaba la epidermis de otro mundo, en el jardín me pareció llegar a sus nervios.
Esas siluetas de memoria, de inmicencia [...]” (FUENTES, 2012a, p.38). O jardim, que
simboliza a Natureza, se encontra mitificado. E desta natureza mitificada surgirá um
ser mítico. Mais uma vez há recorrência da chuva, cuja água purifica o espaço do
111
presente-histórico da narrativa, transformando-o, simbolicamente, no espaço do
passado histórico do México pré-colombiano. Assim, o jardim vai se transformando ao
longo da chuva.
Em 21 de setembro o narrador, ao observar o jardim, relata o seguinte
(Fuentes, 2012a, p.39-40):
Luego, sentí el ruido sordo, el zumbido que parecía salir de sí mismo, y levanté la cara. En el jardín, casi frente a la mía, otra cara, levemente ladeada, observaba mis ojos. Un resorte instintivo me hizo saltar hacia atrás. La cara del jardín no varió su mirada, intransmisible en la sombra de las cuencas. Me dio la espada, no distinguí más que su pequeño bulto, negro y encorvado, y escondí entre los dedos mis ojos.
De novo, no meio do cotidiano (vigiar uma casa), brota um acontecimento
inesperado: a presença de uma entidade no jardim. E o narrador segue narrando que,
ao dia seguinte a chuva continuava e novamente ele encontrou essa “outra cara”
(Fuentes, 2012a, p.40-41),
Estaba dormitando en el sillón, frente a la ventana, cuando me despertó la intensidad del olor a siempreviva. Sin vacilar; clavé la vista en el jardín – allí
estaba. […] Era una viejecita… tendría ochenta años, cuando menos, ¿pero
cómo se atrevía a entrar, o por dónde entraba? Mientras desprendía las flores, la observé: delgada, seca, vestía de negro. […] Solo pude distinguir los labios, sin sangre, que con el color pálido de su carne penetraban en la boca recta, arqueada en la sonrisa más leve, más triste, más permanente y desprendida de toda motivación. Levantó la vista; en sus ojos no habían ojos… era como si un camino, un paisaje nocturno partiera de los párpados arrugados, partiera hacia dentro, hacia un viaje infinito en cada segundo.
Este fragmento é de suma importância para a compreensão do conto, por isso
tivemos que transcrevê-lo quase em sua totalidade. Nele temos uma intensa carga
simbólica. Partamos do início: o protagonista é arrebatado do seu estado de
sonolência pelo cheiro forte de uma flor, cujo nome é “sempre-viva”. Não à toa temos
esse nome específico: a casa desabitada sempre esteve viva, a “outra cara” sempre
está viva e o México Antigo sempre estará vivo. Se não percebemos a vivacidade deles,
é porque estamos adormecidos e precisamos acordar.
112
O narrador ao sentir a presença da “outra cara”, que ainda não sabia se tratar
de uma anciã, acorda e a vislumbra no jardim catando flores. Já sem medo, como
acontecera na primeira vez que a viu, começa a analisá-la: idade, corpo e roupa. Por
sua descrição, poderíamos afirmar, resumidamente, que se trata de uma anciã magra
de roupa preta. Enquanto a vê, o narrador pensa em uma explicação lógica para a
aparição dessa mulher: trata-se de uma invasora, que pulou os muros ou entrou por
uma porta desconhecia para o protagonista. Mas nenhum argumento poderia explicar
o que viu o narrador ao olhar a cara da anciã: olhos que conduziam ao infinito, dois
buracos escuros, que transportavam o narrador mais além daquele espaço físico-
temporal onde se encontravam. Por fim a anciã desapareceu na chuva.
O protagonista, uma vez controlado seu medo, planeja comunicar-se com a
anciã, para tanto, o autor cria toda uma atmosfera de fantástico: a aparição e o
desaparecimento sem explicação da anciã, o piano toca melodias sozinho que cessam
quando se aproxima o narrador. Fatos inexplicáveis começam a questionar o conceito
de realidade que o protagonista tem. Conta-nos o narrador que no dia 23 de setembro
tentou abordar a anciã, para tanto, ao vê-la dando saltos no ar como se fosse uma
criança, o narrador atravessa uma barreira que nunca antes havia posposto: a porta
que dá acesso ao jardim. Adentra-o, então (Fuentes, 2012a, p.42-43):
Exactamente, no sé qué sucedió; senti que el cielo, que el aire mismo bajaban un peldaño, caían sobre el jardín; el aire se hacía monótono, profundo, y todo ruido se suspendía. La anciana me miró, su sonrisa siempre idéntica, sus ojos extraviados en el fondo del camino; abrió la boca, movió los labios: ningún sonido emanaba de aquella comisura pálida; el jardín se comprimió como una esponja, el frío metió sus dedos en mi carne…
Um contato direto na primeira tentativa não foi possível, pode-se dizer que o
tempo e o espaço se condensaram em um único tempo, em um instante, quando o
protagonista e a anciã estavam frente a frente, no centro da lonjura e do outrora. A
pressão do céu foi tão intensa no narrador, que nem mesmo pôde escutar o que a
anciã dizia. Ele desmaia e somente no dia seguinte acorda sem saber como foi parar na
poltrona da biblioteca.
113
Por fim o narrador consegue ter um contato direto com essa anciã: “y la
anciana me tomó de las manos, las besó, su piel apretó la mia. Lo supe por revelación:
sus manos en las mías, no tocaba sino viento pesado y frío […]” (FUENTES, 2012a,
p.44). Quando consegue escutar a voz da anciã, o narrador percebe que sua voz é
“coagulada, eco de las sangres vertidas que aún transitan en cópula con la tierra”
(FUENTES, 2012a, p.44). Encontra-se nessa descrição a tríade homem-natureza-
memória, pois a anciã representa o homem, mas não o homem de hoje, e sim o da
lonjura e do outrora, reavivada pela memória ao se entrelaçar com a natureza, pois a
voz dela [quem? da memória?] trazia o sangue vertido por aqueles que morreram no
passado, desde a sangrenta conquista do México. A anciã, então, declara ao
protagonista que tanto ela como ele formam um só, presos a essa terra, pois “ya
estamos juntos para siempre, los dos en este castillo” (FUENTES, 2012a, p.45).
6.5. Recapitulando
Nos dois contos aqui estudados de Los días enmascarados, é notória a busca
incessante de Carlos Fuentes, em sua obra, ao repensar o papel do imaginário indígena
pré-colombiano, para que os leitores percebam a realidade além do que se imagina
saber, e que o tempo flui entre passado e presente mais do que se pensa: Chac Mool
não é uma divindade do passado; nem a mansão, que plasma a anciã e que, por sua
vez, simboliza o passado. Eles representam a fundação [mito de fundação] do que
somos hoje.
O escritor mexicano, assim, quebra com a ideia ocidental do tempo e da
realidade. Isso vai de encontro com a citação que abrimos nesta análise crítica de
“Chac Mool”, em que o México Antigo resiste à morte, se manifesta por meio de um
mistério e de uma aparição, como é o caso desses dois contos de Carlos Fuentes aqui
analisados. Nos dois casos temos o “rapto” do presente: a morte de Filiberto e o
narrador de “Tlactocatzine, del jardin de Flandes” que é capturado pela anciã. No
114
primeiro conto vimos principalmente o papel da memória na construção da narrativa
e, no segundo, a conjunção entre mito e natureza.
Pelo que vimos em “Chac Mool” e “Tlactocatzine, del jardin de Flandes”, ambos
os contos se enquadram dentro da literatura fanástica, porque “...o fantástico se
constrói a partir da convivência conflitiva da realidade com a impossibilidade” 162
(ROAS, 2011, p.45). Para conseguir o efeito fantástico, conforme destacamos
anteriormente, nas duas narrativas, Carlos Fuentes reproduz o universo extraliterário
do leitor, para que ele possa se encaixar dentro do conto. A inserção de elementos
cotidianos faz com que a erupção do fantástico seja sentida intensamente na obra.
Para que o leitor “acredite” no que está sendo narrado, o autor emprega, em ambos os
casos, o relato autobiográfico em forma de diário, ou seja, através do testemunho os
narradores tentam convencer o leitor.
Por tudo o que vimos neste capítulo, verificamos que Carlos Fuentes faz parte
da denominada Narrativa Mexicana Moderna e que, igual a Juan Rulfo, incorpora a
cosmologia mesoamericana em sua poética. O pensamento do México Antigo é visto
como símbolo de modernidade, pelo menos de inserção do homem mexicano na
sociedade moderna, porque não se pode querer ir adiante sem reviver o passado. O
critério de seleção de ambos os relatos levou em conta os próprios títulos dos contos,
pois já era visível a presença do passado pré-hispânico.
No próximo capítulo continuaremos a investigar os vestígios do México Antigo,
mas fazendo um degradê desse imaginário. Nos contos já estudados é fácil perceber a
influência do imaginário pré-hispânico, no mínimo se nota nos títulos e nos
personagens. A seguir analisaremos os contos em que a ideia segue presente de forma
mais sutil, sem títulos com deuses ou expressões indígenas.
162 No original: “...lo fantástico se construye a partir de la convivencia conflictiva de lo real y lo imposible”. (Tradução nossa)
115
Cuentos sobrenaturales: a conjugação entre mito e história
México es el retrato de una creación que nunca reposa porque aún no
concluye su tarea.
Carlos Fuentes (2012b, p.189)
Gostaríamos de fazer uma pequena observação sobre o título da obra: Cuentos
Sobrenaturales. Ao nosso juízo e a partir do horizonte teórico até aqui discutido, não
quer se referir a algo que não seja natural, mas para algo que é mais que natural. Ou
seja, trata-se de um universo fantástico perfeitamente natural, porém além da
percepção que temos do “natural”. Novamente temos uma dialética: natural e
fantástico são dois e um ao mesmo tempo, assim como há a reversibilidade do tempo,
há uma reversibilidade de conceitos e ideias na obra de Carlos Fuentes.
7.1. Mito, História e Ficção
Cecília Graña, em seu estudo sobre a nova narrativa hispano-americana (2010,
p.681), afirma que com o boom surge outro tipo de romance que contém “...um tipo
de realismo no qual a história se une ao mito” 1. Ou seja, embora a utopia europeia
esteja morta, o u-topus do pensamento indígena pré-colombiano segue existindo.
Carlos Fuentes (1994) nos afirma que a história é construída sobre a visão dos
vencedores e que, assim, a história só tem uma percepção da realidade, uma única
perspectiva.
Portanto, o escritor quer resgatar simbolicamente parte desta memória
perdida, a memória dos vencidos e criar uma obra totalizadora, com a qual nos torna
1 No original: "...un tipo de realismo en el que la historia se une al mito". (Tradução nossa)
7
116
conscientes da verdadeira história. Isso acontece porque, segundo Carlos Fuentes
(1998b, p.18),
... criaram uma convenção representativa da realidade que pretende ser totalizante, assim que [o escritor] inventa uma segunda realidade, uma realidade paralela, finalmente um espaço para o real, através de um mito no qual se possa reconhecer tanto a metade oculta, mas não por isso menos verdadeira, da vida, como o significado e a unidade do tempo disperso.
2
Então, “História e ficção se propõem nestes casos como meio de conhecimento que se
articulam em diferentes níveis; servem para desenterrar leis para agregar-lhes algum
sentido às origens e, em última instância, para responder à incerteza do futuro.” 3
(SOSNOWSKI, 2010, p.754).
Observemos que dois termos, em princípio antagônicos (história e ficção), são
agora complementares para a constituição total da realidade do Novo Mundo, ou seja,
a América. Se a história é a construção de uma parte dos fatos acontecidos e a ficção é
recontar a outra parte da história que ficou esquecida, então temos uma dialética
entre os dois termos, pelo que a história passa a ser o imaginado e a ficção o real. A
imaginação do real cria, então, uma nova utopia, que a nova narrativa tentará
restaurar.
No entender de Carlos Fuentes (1998b, p.30), “Inventar uma linguagem é dizer
tudo o que a história calou” 4. Restringindo-nos ao contexto mexicano, alguns
escritores se apoiam no mito para recontar essa outra parte da história. A cultura pré-
2 No original: “...crearon una convención representativa de la realidad que pretende ser totalizante en cuanto [el escritor] inventa una segunda realidad, una realidad paralela, finalmente un espacio para lo real, a través de un mito en el que se puede reconocer tanta la mitad oculta, pero no por ello menos verdadera, de la vida, como el significado y la unidad del tiempo disperso”. (Tradução nossa) 3 No original: "Historia y ficción se proponen en estos casos como medios de conocimiento que se articulan en diferentes niveles; sirven para desentrañar leyes, para adjudicarles algún sentido a los orígenes y, en última instancia, para responder a la incertidumbre del futuro." (Tradução nossa) 4 No original: “Inventar un lenguaje es decir todo lo que la historia ha callado”. (Tradução nossa)
117
hispânica segue enraizada na cultura dos povos mexicanos integrando, assim, o
imaginário mexicano.
O escritor Carlos Fuentes realiza em sua obra um jogo entre a consciência e a
memória, em que esta passa a funcionar como o princípio formador de nossa
consciência. Portanto, a literatura mexicana, especificamente a moderna, tenta
resgatar a memória dos vencidos, o substrato indígena, para mostrar que a ficção é tão
real como a história e, assim, fazer-nos conscientes plenamente. Por isso a palavra
poética se parece a “relevação”, porque traz à tona essa “verdade oculta”, porque
como afirma Fuentes (1998b, p.85),
...só a palavra vertida [palavra poética, ficção] pode descolorar isso que se passa por ‘realidade’ para nos mostrar o real: o que a ‘realidade’ consagrada oculta: a totalidade escondida ou mutilada pela lógica convencional [a história] (por não dizer: de conveniência). A palavra vertida é a palavra inimiga.
5
Pelas considerações até aqui feitas, encontramos uma dialética entre memória
e ficção, onde há “...um duplo movimento entre a história e a ficção que se propõem
como ficcionalização da história” 6, como afirma Saúl Sosnowski (2010, p.766) em
relação à obra de Carlos Fuentes. Além do mais, acrescenta que “...só é possível aceder
à verdade história mediante a imaginação” 7 (SOSNOWSKI, 2010, p.768). Melhor dito,
como afirma o personagem Alejandro de um conto de Fuentes (1964, p.59): “O mundo
exterior e o mundo da obra de arte são iguais” 8. Ou nas próprias palavras de Carlos
Fuentes (1994, p.77): “a literatura fantástica latino-americana tem um problema e é
5 No original: “…sólo la palabra vertida [palabra poética, ficción] puede descolorar eso que pasa por 'realidad' para mostrarnos lo real: lo que la 'realidad' consagrada oculta: la totalidad escondida o mutilada por la lógica convencional [la historia] (por no decir: de conveniencia). La palabra vertida es la palabra enemiga”. (Tradução nossa) 6 No original: "...un doble movimiento entre la historia y la ficción en que se proponen como ficcionalización de la historia". (Tradução nossa) 7 No original: "...solo es posible acceder a la verdad histórica mediante la imaginación". (Tradução nossa) 8 No original: "El mundo exterior y el mundo de la obra de arte son iguales". (Tradução nossa)
118
que se torna literatura realista em alguns anos” 9. O veículo para essa ficção, conforme
anteriormente dito, é o mito em muitos casos. De acordo com Fuentes (1998b, p.20):
“o romance é mito, linguagem e estrutura” 10.
7.2. O tesouro do passado: Un fantasma tropical e a (des)memória coletiva
Y yo que era un muchachito curioso, pero así, reventando de curiosidad,
decidí aclarar el misterio de una vez por todas.
Carlos Fuentes (2007, p.125)
“Un Fantasma Tropical” trata da história de uma casa cuja única moradora “era
una mujer anciana que ya no salía nunca” e que “guardaba tesoros incalculables y
joyas finísimas en rincones secretos de su casa blanca”. (FUENTES, 2007, p.123). Com o
passar do tempo essa senhora nunca mais foi vista e as pessoas acreditavam que
estaba morta: “Como nadie la veía desde hacia diez años, la gente empezó a darla por
muerta. Y como nadie reclamaba su herencia, todos decidieron que el cuento de las
joyas era perfectamente fantástico, que la señora sólo tenía bisutería” (FUENTES,
2007, p. 123).
Tempos depois, com o contínuo pasar do tempo, essa história se tornou lenda,
porque “los más viejos decían haberla visto de joven” e não sabiam “si es que la señora
invisible de verdad se había muerto” (FUENTES, 2007, p.123). Segundo Maurice
Halbwachs (1990), as testemunhas já não mais atestam, o que leva a uma desmemoria
coletiva: se ninguém viu o que aconteceu, desacredita-se e já não é mais capaz de
resgatar a memória individual. Aqui temos um exemplo claro de que com o tempo a
história muda, às vezes, se “ficcionaliza” e através da ficção se pode tentar ascender a
uma verdade: a verdade poética.
9 No original: “la literatura fantástica latinoamericana tiene un problema y es que se vuelve literatura realista en unos cuantos años". (Tradução nossa) 10 No original: “la novela es mito, lenguaje y estructura”. (Tradução nossa)
119
O narrador do conto “Un Fantasma Tropical” é um jovem de doze anos que
provavelmente não viveu na mesma época da “lenda” e quer entrar na misteriosa casa
para comprovar se o que diz a “lenda” é verídico, se há ou não tesouros na casa. Ao
entrar na casa o narrador percebe que “entraba una luz que no era de la noche,
aunque tampoco de la mañana. Una luz propia, me dije, sólo de esta casa. Esas cosas
pasan en el trópico” (FUENTES, 2007, p.125). Carlos Fuentes uma vez mais se utiliza do
fantástico ao pôr a casa iluminada por uma luz desconhecida. O imaginado, o
desconhecido é a estratégia do narrador do conto, que ao provocar o leitor faz com
que ele raciocine e tente dar uma coerência ao fato: Prosseguindo com a história do
conto, o narrador-protagonista raciocina que “el mejor lugar para esconder algo es el
lugar más obvio, el más visible, que de tan visible se vuelve invisible” (FUENTES, 2007,
p.126). Aqui podemos retomar nossa discussão sobre a memória: ela é a que resgata a
história “invisível” (mito) por sobre a visível (história), a que põe em evidência aquilo
que nos atravessa e não nos deixa perceber a realidade. Voltando à narrativa, o
narrador por fim encontra o tesouro escondido dentro de um dicionário falso na
biblioteca (FUENTES, 2007, p.126):
Lo abrí y era lo que yo esperaba. Un libro hueco, una simple caja que abrí sin respirar apenas. Allí estaban las joyas de la vieja dama. Metí la mano para sacar la que más brillaba y allí debí conformarme. Pero ustedes ya saben lo que es la codicia cuando no hay conciencia y volví a meter la mano. Sólo que esta vez había allí otra mano que se me adelantó, tomó la mía con fuerza y me obligó a soltar el collar de perlas y mirar hacia la dueña de la mano helada, descarnada, que con tanta fuerza oprimía la mía.
O insólito novamente prorrompe na narrativa. Carlos Fuentes cria um clima de
suspenso no leitor em relação ao que vai acontecer, porque indica que algo incomum
ocorreu: “Metí la mano para sacar la que más brillaba y allí debí conformarme”
(FUENTES, 2007, p.126). O insólito não é o aparecimento da mão em si, mas da forma
que é percebida pelo narrador: “mano helada, descarnada” (FUENTES, 2007, p.126).
Mas um dado estranho ainda seria notado pelo narrador (FUENTES, 2007, p. 127):
Era un hombre. Calvo, anciano, macilento, maloliente. Pero vestía como mujer. Un traje largo, antiguo, con botones, cerrado hasta el cuello, una corbatilla que fue blanca, mugrosa, amarilla, y el camafeo de una mujer
bellísima, antigua, viva, muerta… ¿Quién sabe?
120
Nota-se aqui uma transformação: a mão ganha corpo, de homem passa a
mulher (ou de mulher passa a homem?), de morto passa a vivo (será?). O que é
realmente importante é que o narrador não duvida do que vê, mas do que não
consegue enxergar. Porém o narrador consegue trazer a joia que primeiro roubara e a
leva a um joalheiro judeu para que calcule o seu valor, descobrindo que a mesma não
tem valor algum. Por fim, o protagonista declara: “Agradézcame, que nuestras noches
van a ser largas y mañana quién sabe si sigamos vivos...” (FUENTES, 2007, p.127).
7.3 Recapitulando
Continuando o estudo sobre Carlos Fuentes, dissertamos sobre como o mito, a
história e a ficção ganham corpo na contística deste escrito mexicano. Ficção e história
não são termos antagônicos, mas complementares. Uma vez que a escrita é a história
e a visão parcial da realidade a partir dos vencedores, a ficção procura complementar
essa parcialidade da realidade com a visão dos vencidos e, assim, cria uma visão
totalizadora e integradora do que Fuentes denominou como o real.
O conto agora estudado, “Un fantasma tropical”, também se encaixa no rol da
literatura fantástica, porque cumpre com seu papel fundamental de questionar o
nosso conceito de realidade. Novamente Carlos Fuentes convence o leitor de que se
trata de algo real, porque reproduz o universo do leitor implícito e segue empregando
o artifício do testemunho para que seja mais crível a história, só que dessa vez por
meio de narrativa direta, sem diário ou anotações escritas dos personagens.
Ao partir para o campo do simbólico, em “Un fantasma tropical”, a casa
representa o mito, o tempo que é outro, mas que ainda é tempo e pertence ao nosso
tempo. Dentro deste tempo da lonjura e do outrora existem tesouros, mas que hoje
em dia não passa de lenda. E o narrador-protagonista, igual a um escritor, quer entrar
121
nesse reino do “proibido”. O escritor invade o tempo, invade a memória e invade a
história para ver o que há de oculto e, quando encontra, não se contenta com pouco e
quer mais. Porém esse mais não é possível, há tesouros que ficam guardados para
sempre, faz parte da sua magia. No entanto, esse pedaço de tesouro conquistado,
raptado do passado quando é trazido para o presente não vale muita coisa. O passado
é para ser vislumbrado, não saqueado. Mas o escritor quer trazer essa prova de que
esteve no “além”. Não representa muito, porém permite que a obra possa ser
estudada em busca da restauração desse verdadeiro tesouro.
Embora uma análise por esse viés pudesse ser realizada nos contos anteriores,
quisemos priorizá-lo no conto “Un fantasma tropical”, publicado em 2007, para que a
crítica literária sobre Carlos Fuentes não se restrinja ao século passado. Mas o que
queremos realmente comprovar é que desde o seu primeiro livro de contos, Los días
enmascarados (1954), Carlos Fuentes segue com a poética da memória e do mito
como composição artística.
E o nosso estudo segue um esquema de afunilamento inverso, ou seja,
partimos do mais específico no que se refere à tríade mito-tempo-memória e
aportamos ao mais geral. No próximo capítulo estudaremos três contos de Carlos
Fuentes em que não aparece qualquer ser sobrenatural ou insólito, mas que apresenta
o rastro do imaginário do pensamento pré-hispânico mexicano. Avancemos.
122
A dissonância poética do tempo em Todas las familias felices
La defensa del tiempo es por todo ello la defensa de la cultura y de la manera de vivirla en la historia. Esa defesa tiene un sitio. Se llama el presente, aquí y ahora. Porque el pasado ocurre hoy, cuando recordamos. Y el futuro ocurre también hoy, cuando deseamos.
Carlos Fuentes (2012b, p.277)
A cada novo capítulo do estudo da obra narrativa de Carlos Fuentes,
constatamos que o pensamento pré-colombiano se encontra enraízado nos mais
diferentes níveis narrativos. O último livro do nosso estudo, Todas las familias felices,
averiguaremos a concepção do tempo mesoamericano como eixo estruturador de
todos os contos do referido livro: é sobre esse conceito que todas as narrativas vão
girar explícita o implicitamente.
8.1. Cosmologia mesoamericana: a concepção do tempo
A nova linguagem hispano-americana é, conforme Carlos Fuentes (1998a, p.09),
“uma busca constante de nossa identidade nacional, mestiça, herdeira por sua vez da
civlização indígena e da civilização espanhola” 11. Portanto, a América reclama para si
uma identidade verdadeiramente americana. O mito indígena americano é uma de
suas marcas identitárias, sua raiz, muito anterior à chegada dos conquistadores. É
justamente isso que afirma Rojas, personagem do conto “Fortuna lo que ha querido”:
"la raíz helada y bárbara de la escultura indígena [...] la originalidad de México, el
margen mínimo pero absoluto de nuestras vidas, es lo que no ha sido tocado por el
Occidente" (FUENTES, 1964, p.52-53).
11 No original: “una búsqueda constante de nuestra identidad nacional, mestiza, heredera a la vez de la civilización indígena y de la civilización española”. (Tradução nossa)
8
123
Não é necessário que a narrativa seja sobre um mito, basta somente que a
gênese da composição literária esteja em conformidade com o pensamento pré-
hispânico 12. Isso é o que passa com a noção de tempo que contitui as narrativas de
Carlos Fuentes. O tempo cíclico já se fazia presente na cosmogonia mesoamericana,
como nas culturas maias, mexicas, olmecas, mixtecas, otomís, dentre outras (Ávila
Aldapa, 2008). Para eles, havia pelo menos dois calendários complementares que eram
usados simultaneamente e se conectavam em um ciclo de cada cinquenta e dois anos.
Chegamos, então, a uma interrogante: o que é o tempo e como este é percebido?
Referindo-se à primeira pergunta, Regina Schöpke (2009) realiza um extenso
estudo sobre o tempo e suas diferentes percepções ao longo da história. A priori, a
pesquisadora questiona se o tempo seria o correlato da morte (Schöpke, 2009, p.10):
“seria mesmo o tempo apenas um carrasco, um inimigo de todo ser vivo e de tudo o
que existe, aquele que sentencia todos à morte inexorável?”. Se isto é verdade, a
morte não seria apenas um castigo, senão também uma liberação, porque de acordo
com Schöpke (2009, p.11) o tempo “também é considerado o responsável pela
geração de todas as coisas e é igualmente aquele que nos liberta das dores e aflições”.
No entanto, o principal para a nossa discussão é que “não é possível pensar a
ideia das três dimensões (o presente, o passado e o futuro) como existindo
plenamente e por si mesma. Enfim, é preciso que um instante deixe de existir para que
outro ocupe o seu lugar” (SCHÖPKE, 2009, p.13). Esta concepção do tempo é uma
invenção do Ocidente para tentar deter o tempo a partir de uma medida, cuja base é a
duração das coisas. Daí, percebemos que o tempo não passa, mas que “as coisas”
passam (o fruto nasce, madura e morre, por exemplo). Porém, em nenhum momento,
nesta ideia de tempo apreendemos o tempo.
Em resumo, uma das teses de Schöpke (2009) sobre o presente é o “estar vivo
no mundo” e, assim, enquanto uma pessoa vive, toda a sua existência é um presente
por excelência. No entanto, o presente é transpassado por instantes, o que evidencia o
passar do tempo e estabelece o “antes” e o “depois”. Isto é, o viver é um eterno
presente que está constituído por pequenos instantes que criam o parâmetro de
12 Como exemplo, podemos citar Cien años de soledad, de Gabriel García Márquez e Pedro Páramo, de Juan Rulfo.
124
sucessão no tempo. O instante instaura uma anterioridade e uma posterioridade com
algum evento e isso cria um passado e um futuro dentro do presente da existência.
Porém, este presente é uma parte de um continuum de presentes anteriores, ou seja,
há um macropresente e um micropresente. O micropresente, como já abordamos, está
conectado ao viver e o macropresente é a reunião de micropresentes. Como afirma
Schöpke (2009, p.131), “o passado e o futuro só existem em relação ao corpo e com
esse presente, que não passa de um ‘agora’ dos corpos. Em poucas palavras, o
presente é a própria existência”.
Essa hipótese vai de encontro ao pensamento de Gaston Bachelard (2007, p.91)
quando declara que “pelo próprio fato de vivermos, pelo próprio fato de amarmos e
de sofrermos, estamos inscritos nos caminhos do universal e do permanente”. O viver
é o que nos faz estar no tempo presente, mas o presente só é assim porque antes
houve outros presentes, presentes-passados que fundaram o presente-atual. Passado
e presente, então, se articulam intimamente, já que ambos passam a ser um e dois ao
mesmo tempo.
Portanto, pode-se dizer que esse presente existencial foi fundado por outros
presentes, já passados, que são da ordem do outrora e da lonjura. Agora uma pergunta
nos é latente: como esses micropresentes estão inter-relacionados formando, assim,
um macropresente? O laço entre os presentes é a memória, que não nos permite
esquecer os fatos passados e, portanto, esses fatos seguem vivos na memória
individual e/ou coletiva. Isto é, ainda que já passados, através da memória eles são
“vivificados” e passam a ser presente, não o mesmo presente que o nosso atual, mas
um presente que forma parte daquele.
Desse modo, “a memória desempenha um papel fundamental. Através da
rememoração, da anamnesis, há uma liberação da obra do tempo” (ELIADE, 2010,
p.83). O passado-lonjura é resgatado pela memória que o faz “passado-presente” e
nos dá forma para o futuro. Por meio da memória, “nada muere por completo”, afirma
Carlos Fuentes (1994, p.206). O passado não morre, é vivificado, ou seja,
presentificado pela memória.
125
Quando falamos do tempo, falamos de uma das ideias comuns relacionadas a
ele, a morte, como vimos anteriormente em Schöpke (2009). Porém, o tempo não é a
morte, mas sim o esquecimento, como pontualmente observa Mircea Eliade (2010,
p.109): “A fonte de Letes, o ‘esquecimento’, faz parte integrante do reino da morte”.
A memória do passado cria os mitos, que são a experiência vital do sagrado – a
natureza em si mesma já é divina, como já estudamos em Eudoro de Sousa (1995) –
cria realidades, verdades e significações (Eliade, 2010) que transcendem o passado-
lonjura e cria, portanto, um presente contínuo, formado de passados e presentes, não
justapostos, mas em perfeita harmonia de coexistência. O futuro também forma parte
do micropresente, mas com uma pequena diferença do sentido comum que se tem
sobre o futuro: “O futuro não é o que vem em nossa direção, mas sim na direção em
que nos dirigimos” (Guyau apud BACHELARD, 2007, p.54).
Então, se o tempo pode ser compreendido como um macropresente, que é
uma reunião de micropresentes inter-relacionados na memória, não há sentido
estabelecer um início e um fim únicos para o tempo. Isto é, o tempo não é concebido
como uma linha que tem um começo e um fim, e sim como um círculo, que embora
tenha um início e um fim, eles estão interligados, apagando as fronteiras e criando
uma perfeita continuidade dos acontecimentos. Mircea Eliade (1992, p. 79) constata
que o pensamento que predomina nessas concepções cósmico-mitológicas é “a
repetição cíclica do que existiu antes, ou seja, o eterno retorno”.
Especialmente em Carlos Fuentes, não é que toda a sua obra seja uma narrativa
cíclica, o que acontece é que esta ideia é apenas o ponto de partida: o escritor
mexicano elimina as divisões do tempo “passado”, “presente” e “futuro”, constituindo
o que já nos referimos como macropresente. Já estudamos esse apagamento de forma
bem marcada nos contos “Chac Mool”, “Tlactocatzine, del jardin de Flandes” e menos
marcado em “Un fantasma tropical”. Passaremos agora ao estudo de três narrativas da
coletânea Todas las familias felices, originalmente publicada em 2006.
126
8.2. O estatuto irônico da (in)felicidade: a desconstrução urdida nos contos
Todas las familias felices se asemejan, cada familia infeliz lo es a su manera.
León Tolstoi apud Carlos Fuentes (2006, p.09)
Como em todos os livros de Carlos Fuentes que temos pesquisado e analisado,
Todas las familias felices apresenta uma dualidade provocada pela ironia entre o título
do livro e o conteúdo dos contos, previamente indicada pela epígrafe do livro que
aparece citada no início deste tópico. O singular que caracteriza cada família é sua
infelicidade. Ou seja, viver autenticamente é ir contra algumas práticas sociais que
procuram uniformizar o pensamento e as atitudes. A dialética pode-se estabelecer da
seguinte forma: feliz é a família infeliz, porque é singular; infeliz é a família feliz,
porque é comum.
O livro contém dezesseis contos e acompanha cada conto um coro. Desses
contos, nós selecionamos três, que se inserem na poética do tempo de Carlos Fuentes.
Se nos contos anteriores “garimpamos” a mito-poética fuentiana, em Todas las
familias felices necessitaremos escavar. Veremos que os três contos selecionados, em
maior ou menor grau, estão fundados na cosmogonia do macropresente. Comecemos
pelo primeiro conto do livro: “Una familia de tantas”.
8.3. Fragmentação espaço-temporal em Una familia de tantas
"¿Cómo se rechaza el pasado sin renegar del porvenir?"
Carlos Fuentes (2006, p.35).
Em “Una familia de tantas” temos a história da família Pagán, constituída por
quatro integrantes: o pai, Pastor; a mãe, Elvira; a filha, Alma; e o filho, Abel.
Praticamente é o estereótipo da família perfeita: um casal que tem um casal de filhos,
127
que um dia substituirão os pais quando estes morrerem. Porém nesta história estamos
mais para o caso da família im-perfeita.
A respeito da estrutura narrativa, o conto está dividido em partes, cada parte
corresponde a um personagem e toda a história está sob sua ótica, o que na verdade
corresponde à técnica da refletorização que já estudamos em Al filo del agua, de
Agustín Yáñez. Além da refletorização, temos o monólogo narrado, porque não só
observamos pela ótica do personagem, mas também pelo próprio pensamento do
personagem. Cada fragmento relatado é um parágrafo e estes vão se justapondo e
criando uma digressão narrativa, porque os temas e os ambientes mudam de acordo
com a perspectiva do personagem.
Sobre a história em si, um dado nos chama a atenção já no primeiro parágrafo
do texto, que corresponde à refletorização do pai Pastor, é que eles não moram em
“una gran mansión pero si una vivienda decente. Una relíquia de la lejana época
‘aztequista’ de la ciudad de México, cuando los arquitectos nacionalistas de los años
treinta les dio por construir casas con aspecto de pirámides indias.” (FUENTES, 2006,
p.12).
A filha vive no “cume”, na parte estreita e distante da casa e da vida cotidiana
da família e a sua volta, porque essa personagem vive em outra realidade, aqui
representada pela internet. Assim temos vida real versus vida virtual. O detalhe
curioso é a vida virtual representada pela parte superior da casa-pirâmide, a parte
mais perto do céu, mais próxima do “supramundo”, não à toa o nome da personagem
é “Alma”.
No entanto, a referida personagem “hizo un esfuerzo por acomodarse en el
mundo” (FUENTES, 2006, p.14), mas definitivamente não se integrava na sociedade.
Alma percebeu que para se “acomodar” no mundo teria que ser mais uma mera cópia
(Fuentes, 2006, p.14-15):
Un día reunió a las cinco compañeras de una función de beneficencia y se vio idéntica a ellas, todas igualitas entre sí, toda diferencia borrada. Eran clones la una de la otra. No tenían más destino que ser idénticas entre sí sin nunca ser idénticas a sí mismas, parecerse en la inmovilidad y luego desaparecer, jubiladas por la edad, los kilos o una media negra corrida.
128
Na tentativa de ser diferente, abandona o emprego e torna-se aeromoça,
depois de um tentativa de estupro em um voo noturno: “Por eso Alma se retiró de
toda actividad mundana y se instaló en el piso alto de la casa de sus padres con todo el
aparato audiovisual que de allí en adelante sería su universo seguro, cómodo y
satisfecho”. (FUENTES, 2006, p.15).
No térreo habitam os demais membros da família, mais perto da terra, do
“inframundo”. Talvez por isso seja a parte da família que mais passa por problemas. O
pai, trabalhador exemplar, uma vez pediu a seu chefe um aumento porque trabalhava
honestamente. Mas Pastor Pagán não contava com a reação do chefe: “Para el patrón,
todos eran corruptibles. […] ¿Cómo pretendía Pastor Pagán ser la excepción? El jefe
Barroso debió reír para sus adentros. Pastor no cometió la falta de pedir tajada,
cometió la falta de declararse honrado.” (FUENTES, 2006, p.18).
Na lógica do patrão, quando Pastor Patrán se apresentou como honesto,
acusou todos os demais como desonestos. Para Barroso, isso era uma falta de respeito
aos demais colegas de trabalho que comprometia o trabalho em equipe. Então, Pastor
foi demitido. Nota-se claramente a ironia de Carlos Fuentes neste ponto: a
honestidade nada vale, os valores estão invertidos. Por sua vez, o filho dele, Abel, sabe
muito bem disso. Não pensa duas vezes e ocupa a vaga deixada por seu pai.
Assim, o filho representa a continuidade do pai, embora possuam caráteres
diferentes: “lo insertaba en una secuela de actos desconocidos en la que el trabajo del
hijo era continuación del trabajo del padre.” (FUENTES, 2006, p.24). O filho quer
distanciar-se do pai, quer ser outro, viver outra vida: não a honesta e pobre do pai,
mas a desonesta, rica e cheia de luxo: “Después de todo, había escalado del mostrador
a la gerencia en menos de lo que canta un gallo” (FUENTES, 2006, p.24).
O filho nega o pai e a vida do pai constantemente. Porém, como seria possível
construir um futuro negando o passado? Como o narrador do conto pergunta:"¿Cómo
se rechaza el pasado sin renegar del porvenir?" (FUENTES, 2006, p.35). Abel Pagán
obtém o dinheiro, mas segue infeliz: “La medida de su ambición era constantemente
129
frustada por la abundancia de su êxito.” (FUENTES, 2006, p.25). Ao final, os dois
terminam desempregados, o filho como cópia do pai, compartilhando o mesmo
distinto: “Aunque no seas culpable, deberás expiar los pecados de tu padre.”
(FUENTES, 2006, p.27).
É preciso presentificar o passado, e a memória é um bom meio para essa
realização. Esta é a base, o que constitui o nosso presente e sustento do nosso porvir.
Como o filho quis esquecer o passado e, como vimos a morte como sinônimo de fim,
Abel “mata” seu futuro e, assim, termina sem trabalho e sem esperança igual a seu pai.
Pai e filho, descontinuamente contínuos: “ni el padre ni el hijo dominaban sus propias
vidas. Pastor carecía de energía. Abel tampoco tenía voluntad.” (FUENTES, 2006, p.28).
Mas ninguém na família é tão singular quanto a mãe deles, Elvira.
A matriarca da família, ao contrário do filho, vive no passado, na época em que
cantava na danceteria onde conheceu o seu atual marido. Ela sempre executou o
“ritual” de voltar à discoteca para sentir-se jovem e, assim, anular os efeitos que o
presente traz com o passar do tempo, ou seja, a velhice: “El bolero nos propone
amantes. Algunos son fatales. Viven esperando que cambie la suerte o venga la muerte
como bendición.” (FUENTES, 2006, p.20).
Mas quem quer viver só no passado, esquece de viver o presente. Então, a mãe
vivia tentando “Esconder la probable melancolía. Sepultar el indeseable desasosiego.”
(FUENTES, 2006, p.41). Elvira levava seu marido “a los bares con la ilusión de que no
había ‘antes’ nunca sino siempre puro ‘ahorita’.” (FUENTES, 2006, p.41). Há um
problema com Elvira, porque conforme já estudamos, o tempo não pode ser a negação
do passado, como fez o filho, nem tampouco a negação do presente, como acontece
com a mãe.
Em suma, nesse conto encontramos quatro personagens deslocados no tempo
e no espaço. Primeiramente, a história do pai, que por ser honesto foi demitido. Isso
repercute no filho, que não quer ser a continuidade do pai, negando-o
completamente. No entanto, ao negar o pai nega o passado que este representa. Não
é de forma gratuita que o nome do personagem seja Abel, personagem bíblico do livro
130
de Gênesis, que é morto por seu irmão Caim. Na verdade, Abel Pagán já se encontra
morto em vida.
Por outro lado, a mãe nega o presente e vive no passado. Renunciar o presente
é tão grave quanto renunciar o passado. Por fim, temos a filha que vive em outro
tempo, o tempo cibernético, por isso ela vive afastada da família. No conto, há a
desarmonia de uma família que não sabe viver em conformidade com o seu
micropresente, porque não o quer conectar com o macropresente. Portanto, um
passado sem presente é uma ilusão e um presente sem passado é um desengano.
8.4. Madre dolorosa: a árdua tarefa da reconstrução
Vivimos en constante encuentro de lo que no somos, es decir, con lo diferente. Descubrimos que sólo una identidad muerta es una identidad fija. Todos estamos siendo.
Carlos Fuentes (2012b, p.327)
O próximo conto do nosso estudo é “Madre Dolorosa”. A respeito da estrutura
narrativa, se tratam de cartas trocadas entre a senhora Vanina e José Nicasio. A
princípio não se sabe o porquê deles escreverem as cartas, mas ao longo da narrativa a
história é revelada. Esse intercâmbio de vozes narrativas é uma forma de digressão,
igual ao conto anterior. Justamente porque no conto temos dois personagens que
escrevem um ao outro, temos dois narradores em primeira pessoa conversando sobre
uma personagem em comum. Principiemos por analisar o personagem José Nicasio:
nasceu em uma comunidade indígena de Oaxaca, um dos estados mais pobre do
México, e com o tempo foi reconhecido como um grande pintor. Frequentava a alta
sociedade e até chegou a viver nos Estados Unidos. Por outro lado, a senhora Vanina é
de uma família europeia, que procurou refúgio no México por causa da Guerra Civil
espanhola.
O tema das cartas é Alessandra, filha da senhora Vanina: “¿Quién era mi hija?
No sé por donde empezar a contarle.” (FUENTES, 2006, p.113). Esta escreve a José
131
Nicasio contando sobre sua filha, para que ele a conheça... Conheça a pessoa a quem
assassinou. Por isso Elvira emprega o verbo no pretérito para se referir a sua filha:
“era”, já não é mais. Aqui outro dado: José Nicasio encontra-se preso nos EUA. Neste
conto se divisa o racismo, mas ao invés do tradicional. Comumente se espera que, no
México, o indígena seja quem sofra racismo, na verdade sofrem como o próprio José
Nicasio afirma “Nos gritan ¡indio! o nos gritan ¡prieto! cuando se vienen con nosotros.”
(FUENTES, 2006, p.123). A senhora Vanina não tem nenhum preconceito, como a
própria afirma em "Todos descendemos de otros. Todos venimos de otra parte.”
(FUENTES, 2006, p.113). O preconceito vem por parte de José Nicasio, no entanto, este
surgiu do preconceito que ele sofreu antes.
José Nicasio reconhece que Alessandra não tinha nenhum preconceito, como o
personagem afirma: “Era consciente de las hipocresías de nuestra sociedad y las
rechazaba.” (FUENTES, 2006, p.125). Mas isso não bastou, ao entardecer José Nicasio
matou Alessandra em Monte Albán. Aqui podemos fazer um breve comentário: Monte
Albán é um sítio arqueológico do estado de Oaxaca e que foi o berço das civilizações
pré-hispânicas zapotecas e mixtecas (Ávila Aldapa, 2008). Pode-se afirmar que há um
mito de sacrifício em relevo: um sacrifício humano praticado por um indígena.
Ambos os personagens-narrados, José Nicasio e a senhora Vanina, querem
saber o porquê da morte e através das cartas vão rememorando episódios passados
tentando montar esse quebra-cabeça. A primeira indagação que a mãe dolorosa
pergunta ao assassino é o motivo dele estar em Monte Albán se ele vivia nos Estados
Unidos: “Cuéntenme, ¿por qué estaba usted allí?” (FUENTES, 2006, p.114). José
Nicasio responde que já sentia nostalgia do seu povoado e por isso regressou. Porém,
ao estar de volta (FUENTES, 2006, p.117)
…me miraron con tanto rencor unos, avaricia otros, distancia los más señora, que decidí ya nunca volver al lugar de dónde salí. Pero ¿puede uno cortarse para siempre de sus raíces? ¿No nos queda algo que duele, como dicen que sigue doliendo un brazo amputado...? No podía regresar a mi pueblo. Podía solamente regresar a las ruinas de mi pueblo y desde allí contemplar serenamente a un mundo que era mío pero que ya no me reconocía.
132
Há elementos muito significativos no fragmento supracitado. José Nicasio não
contava que seu povoado iria rejeitá-lo, mas isso ocorreu porque de certa forma o
protagonista rejeitou a seu povo, pois ao subir socialmente foi afastando-se de suas
origens: “Tengo un corazón impaciente, señora. Subí, dejé detrás mi pueblo y mi gente
y esto me hace sentirme culpable, a decir verdad.” (FUENTES, 2006, p.122). Porém, o
próprio José Nicasio afirma que é impossível se separar totalmente de sua origem. Essa
é uma observação muito importante: cada um pode traçar o caminho que quiser e
puder, mas não pode desvencilhar-se de si próprio. E José Nicasio não conseguiu fugir
de si mesmo, do preconceito do qual sempre vivera.
Neste momento, trataremos de Alessandra, a assassinada. Assim descreve sua
mãe, a senhora Vanina: “Alessandra no participaba, no hacía amigos, vivía encerrada
en un globo de cultura.” (FUENTES, 2006, p.119). Alessandra é uma personagem de
berço, amante das artes e da filosofia que se sentia deslocada no mundo. Um tanto
diferente de José Nicasio, conforme observa senhora Vanina em carta a José Nicasio:
“Combatir la comodidad es más difícil que pelear con la penuria. Usted tenía que
lograr lo que no tenía. Ella tenía que alejarse de lo que ya tenía.” (FUENTES, 2006,
p.119).
Ainda de acordo com a senhora Vanina em carta dirigida ao assassino,
Alessandra “Era consciente de las hipocrisías de nuestra sociedad y las rechazaba”.
Segundo a mãe, não sendo José Nicasio atacado pelo racismo, ele foi atacado pelo
sexo: “Usted, usted no pudo despertar el deseo de mi hija. Usted, usted, aunque jamás
lo admita, deseó esa tarde a mi hija. Usted le hizo sentir que el sexo de un hombre la
amenazaba. Usted quería ser amado por una mujer que no lo deseaba.” (FUENTES,
2007, p.128). Seria a lógica diante da morte sem sentido de Alessandra, uma joven
bonita de classe média diante de um índio feio, como José Nicasio se refere a si
próprio. No entanto, o que levou à morte de Alessandra foi o medo que sentiu ao olhar
nos olhos de José Nicasio e perceber a incompletude da sua existência (FUENTES,
2006, p.30):
¿Me absuelve de mi incapacidad para pasarle la simpatía de mis ojos a la amargura de mis labios? Su hija me miró, señora, y yo hubiera querido decirle: “Sufro porque no puedo ayudar a nadie. (…) ¿qué voy a darles a los mexicanos mestizos que me detestan porque les recuerdo que en parte son
133
indios y corren el peligro que regresar a la tribu? ¿Qué puedo darles a los gringos que me usan de excusa para sentirse humanitarios? Soy cuota en todas partes, nunca un ser entero: ¿una cuota, una cantidad entre dos partes, nunca un ser entero?
O medo sentido por Alessandra, ao vislumbrar a inquietude de José Nicasio,
desperta a fúria do índio, como ele próprio afirma (FUENTES, 2006, p.131): “puedes
sentir lo que quieras de mi, repugnancia física, desprecio social, discriminación racial,
pero no sientas miedo, miedo no, por favor, por vida tuya, no me tengas miedo, si me
sigues mirando con miedo no podré soltarte […]”. Por fim Alessandra morre
estrangulada pelas mãos de José Nicasio.
A senhora Vanina por fim chega à seguinte conclusão: “Él te mató por miedo a
sí mismo, a su esfuerzo por salir de la oscuridad. Lo traicionaste con tu rechazo, hija.
[…] Viviré transformando tu muerte en mi reconciliación con el mundo que me dejaste
al morir” (FUENTES, 2006, p.135). Mas o mais importante é que a senhora Vanina
deduz que tudo na vida é um processo, é um desenvolvimento, inclusive do ser
humano. A existência é um mero instante suspenso entre dois nadas, conforme afirma
Gaston Bachelard (2007). Eis o fragmento crucial do conto para o nosso horizonte
teórico (FUENTES, 2006, p.133-134):
Somos libres porque nos movemos. Salimos de una herida que se llama la soledad y viajamos a otra herida que se llama la muerte. Hay un cruce de caminos entre el punto de partida y el puerto de llegada. En ese carrefour, mi niña adorada, encontramos siempre al otro, al que no es como nosotros, y nos vemos obligados a entender que si nos movemos y nos encontramos, debemos amarnos a partir del contraste.
Em síntese, vimos no conto que duas pessoas, a partir de suas próprias
memórias, tentam reconstruir um fato histórico, no caso, o assassinato de Alessandra.
As duas testemunhas, segundo a teoria memorialística, colocam em contraste duas
ideias de mundo: a da família de imigrantes europeus de classe média e a do indígena
José Nicásio que conseguiu subir na vida em troca de esquecer o passado, seu povoado
e sua gente. Justamente por tentar se esquecer de seu passado, que não foi possível,
José Nicasio é pego em fúria ao vislumbrar um olhar que o rejeita não pelo o que ele é,
134
mas pelo o que ele não é, ou seja, o que Alessandra viu foi um José Nicasio incompleto
e ver-se assim nos olhos de Alessandra foi o que enfureceu o seu assassino. A
incompletude de José Nicasio assustou a completude de Alessandra.
Portanto, o tempo interfere diretamente na vida de uma pessoa: como há
dimensões do tempo, há dimensões do ser. A existência só se dá através do tempo.
Entre as duas pontas do nada (“o que já não é” e “o que ainda não é”) está a nossa
árdua tarefa de construirmos e reconstruirmos. No caso do conto, tanto o assassino
quanto a mãe precisam reconstruir a vida deles, porque nesse vai-e-vem da vida, nesse
cruzamento, houve um embate.
8.5. Memórias fragmentadas em El padre eterno: entre a lembrança e o
esquecimento
El artista trata de reunir todo lo disperso. No importo el tema, dolor, muerte, nacimiento, revolución, poder, orgullo, vanidad, sueño, memoria, voluntad.
Carlos Fuentes (2012b, p.29)
O último conto de Todas las familias felices a ser estudado, nesta pesquisa, se
intitula “El padre eterno”. Trata-se da história de uma família rica formada pelo pai – o
dono da fortuna – e por suas três filhas, que se chamam Augusta, Genara e Julia. A
narrativa está composta de superposição de diálogos das filhas na (re)construção da
memória do pai. Para conseguir esse efeito, Carlos Fuentes lança mão das técnicas da
refletorização e do monólogo narrado. O conto gira em torno da reunião das três irmãs
por ordem testamentária (FUENTES, 2006, p.389-390):
Durante los diez años de que sigan de mi muerte, ustedes me velarán cada aniversario de mi nacimiento en el mismo humilde lugar donde nací: un viejo garaje junto al parque hundido. Esta es mi voluntad testamentaria. Quiero que recuerden de dónde viene la fortuna que heredarán. Desde abajo. Gracias al esfuerzo. […] No me importa lo que hagan durante el resto del año. […] Ahora van a sentir que heredar es algo más que un privilegio. Es una recompensa. No una lismona. […] Ya saben mi condición. Hagan lo que quiera pero no se casen. […] Y no tengan hijos.
135
A história do conto ocorre basicamente quando as três irmãs estão por velar
seu pai no último ano da década imposta. Ali as três irmãs já se encontram afastadas
uma da outra:
Las tres hermanas – Julia, Genara y Augusta – acuden al llamado del padre el día del aniversario. Durante el resto del año, ni se ven ni se hablan. Genara hace alfarería. Julia toca violín. Solo Augusta dirige un banco […]. Aunque no se busquen entre sí, las une el hecho de ser hijas del mismo padre y hacen lo que hacen para demostrarle al padre que ellas no necesitan de la herencia.
No velório as filhas falam, cada uma a seu modo, de suas vidas com relação ao
pai, o que gera conflitos, porque “cada una, en estos momentos, hace una de las dos
cosas. Recuerda o elimina memorias” (FUENTES, 2006, p.393). Todas moraram com o
pai até a data de falecimento do patriarca, no entanto, cada uma delas tem uma
representação diferente sobre o pai. E de certa forma é esse o desejo verdadeiro do
pai: “Él se encargó de no ser una pura memoria pía. Esta cerimonia anual lo mentiene
vivo.” – reflexiona Augusta (FUENTES, 2006, p.391).
A mais velha, Augusta, é a desobediente e tem uma visão tirana do seu pai, vê-
lo como aquele responsável por dificultar-lhes a vida sempre, inclusive depois de sua
morte: “‘Papá nos engaña. Siempre nos engañó. El engaño es su profesión’.”
(FUENTES, 2006, p.391). O método rigoroso do pai de educar faz com que a mais velha
diga: “- Yo diría que un padre puede ser una madre perversa.” (FUENTES, 2006, p.395).
Augusta se sentia incômoda com a herança moral do pai.
Genara é a que vê as atitudes do pai com um fim de ensinamento, embora as
lições aprendidas fossem ao contrário das que o pai queria. Genera é a típica filha que
não “bate-boca”, mas tampouco abaixa a cabeça: “¿Cómo iba a decirle al padre
‘papacito lindo’, como la hipócrita de la Julia, si no lo creia? No, no era floja. Evitaba
contradecir al padre, llenar sus expectativas respecto al cariño que merecía.”
(FUENTES, 2006, p.393).
136
E, por fim, a caçula Juliana “había sido la niña mimada y luego la defensora de
la imagen del padre” (FUENTES, 2006, p.409). Ainda segundo o narrador, “Julia se
sentía distinta. Devota del padre. Caso semejante a lo que la madre fue en vida. No lo
sabía. No conoció a mamá.” (FUENTES, 2006, p.400). De acordo com Genara, “Juliana
era buena por conveniencia, porque quería irse al cielo, cuando en realidad la gente
buena es la más numerosa población del infierno. Ser bondadosa puede engañar a
Dios pero no al Diablo” (FUENTES, 2006, p.397).
O mais importante desse conto, a nosso ver, é justamente esse jogo de imagens
que cada uma tem do pai, como um jogo de espelhismo, cada uma vê um reflexo, mas
nunca o total. O mesmo acontece com a realidade, como afirma Carlos Fuentes
(1998a, p.93): “Si la realidad se ha vuelto plurívoca, la literatura la reflejará sólo en la
medida en que obligue a la propia realidad a someterse a lecturas divergentes y a
visiones desde perspectivas variables”.
Isso acontece, entre outros fatores, porque temos noções da realidade com
base em experiência vividas, ou seja, não do entendimento desse instante, mas de
instantes anteriores que formam o passado que coabita no micropresente e que
também faz parte do macropresente. Assim, “o indivíduo é a expressão não de uma
causa constante, mas de uma justaposição de lembranças incessantes fixadas pela
matéria e cuja ligação não passa, ela própria, de um hábito que sobrepõe a todos os
demais.” (Gaston Roupnel apud BACHELARD, 2007, p.70).
Se ninguém apreende a realidade em sua totalidade (pois a apreendemos por
meio de instantes passados), como surge essa consciência da realidade? Aqui entra o
papel da memória, aquela que liga os instantes e, portanto, nos dá uma ideia de tempo
e, consequentemente, a noção de realidade. Este é o ponto-chave do conto: cada irmã
possui uma memória distinta do pai, assim cada uma apreendeu uma face dele.
Deduzimos, a partir da seguinte interrogante: “-¿Qué diferencia hay entre lo que era y
lo que fue? - La diferencia entre la conciencia y la memoria.” (FUENTES, 2006, p.408).
Um dos exemplos mais crassos da reconstrução da memória do pai se dá
quando Genara comenta (FUENTES, 2006, p.402):
137
- [...] Porque viéndolo bien, papá era algo tan simple como su olor a agua de colonia. - Olía a incienso – dijo insolente Augusta.- A tabaco, sonrió Julia. - A sudor – insistió Augusta –. A sudor agrio. - Era un hombre correcto, ceremonioso – pestañeó Julia. - Tieso, pretencioso – hizo una mueca Augusta. - ¿Muy trabajador? – inquirió Julia. - Hacía trabajar a los demás y se aprovechaba de ellos – dijo antipática Augusta.
Nessas reuniões não somente havia a (re)construção da memoria do pai, mas a
(re)construção das próprias irmãs: “Es cierto: había en estas reuniones anuales una
latente voluntad de consolación. Que las tres, tan diferentes entre sí, recordasen que
al cabo eran hermanas. Acaso las unía, con máscaras disímiles, la original y originario,
el poderoso y eterno padre.” (FUENTES, 2006, p.399). Ao fim da vigília, cada uma toma
para si as suas lembranças e fantasmas e partem em busca da herança.
8.6. Recapitulando
Começamos este capítulo abordando o estatuto irônico da ironia que perfaz
todos os contos da coletânea de contos Todas las familias felices. Nos contos
selecionados, averiguamos que a infelicidade dos personagens se encontra na
dissonância dos mesmos com seu tempo. Em “Una familia de tantas” temos a história
da família Pagán, todos infelizes porque todos os personagens negam o tempo e, ao
negar ao tempo, negam a si próprios. A filha nega o tempo presente e se refugia no
mundo virtual. O filho nega o passado porque nega o pai. A mãe nega o presente
porque não aceita mais ser jovem. Todos estão com sua humanidade inacabada
(Fuentes, 2012b).
“Madre dolorosa” narra a construção da memória dos últimos instantes de vida
de Alessandra, que foi morta pelo indígena José Nicasio porque este vivia em angústia
consigo mesmo por ter negado seu passado e seu povoado. O medo provocado em
Alessandra quando ela vislumbrou a angústia no olhar de Nicasio foi o que motivou o
138
indígena a matar Alessandra. Verifica-se nesta trama também a questão da
humanidade inacabada. No conto “El padre eterno” há um conflito entre as memórias
individuais e a memória coletiva das irmãs. As testemunhas (Halbwachs, 1990) tentam
chegar a um denominador comum sobre a memória que cada um tem do pai e, na
verdade, pode-se dizer que esse foi o objetivo do pai com a ordem testamentária tão
exótica: manter-se vivo na mente das filhas.
Todas compartem, segundo a teoria bergsoniana, a memória-hábito, ou seja, a
lembrança sobre hábitos rotineiros. No entanto, o que diferencia as irmãs é a
memória-lembrança, pois cada irmã experimentou de forma diferente a convivência
com o singular pai. As irmãs, em suas recordações, durante as reuniões familiares,
lançavam mão da metamemória (Candau, 2010), a representação da própria memória
e que constrói nossa identidade, no caso do conto, a identidade entre as irmãs e o
próprio pai delas.
Vimos que a linguagem de Carlos Fuentes abarca o complexo entendimento do
tempo, isto é, o tempo como elemento constituidor da sua produção literária. No
entanto, o tempo está intrinsecamente relacionado à memória, porque somente
através dela percebemos o passar do tempo.
139
Conclusão
Nesta dissertação, tivemos como proposta investigar a concepção do tempo na
constística do escritor mexicano Carlos Fuentes. Constatamos que o tempo, em sua
produção artística, é um elemento fundamental, tanto o tempo experimentado pelos
personagens quanto a conceção do tempo na trama narrativa. Ao justificar a inserção
de Carlos Fuentes na Narrativa Mexicana Moderna, como herdeiro de Mariano Azuela,
Agustín Yáñéz e Juan Rulfo, foi porque Carlos Fuentes, à semelhança desses escritores,
recupera o imaginário mítico mesoamericano como um símbolo de modernidade. Os
referidos escritores escreveram obras modernas porque antes de qualquer de tudo
escreveram sobre o México.
Carlos Fuentes e Juan Rulfo atingiram profundamente o pensamento pré-
hispânico e resgataram-no simbolicamente. Na obra fuentiana, comprovamos que este
pensamento representado pelo mito é recuperado pela memória. E eis aqui a
engrenagem do tempo: uma meta-memória - em palavras de Candau (2010) - funda a
identidade do ser. A memória, em Carlos Fuentes, é responsável por resgatar,
literariamente, o passado da ordem da lonjura e do outrora - em termos de Sousa
(1995) – que é representado pelos mitos pré-hispânicos. Só se vive plenamente quem
atualiza o seu presente com o passado para construir um futuro.
Por isso, foi necessário voltarmos um século antes de Carlos Fuentes, porque é
justamente no século XIX em que os pensadores se propõem a estabelecer e estudar o
passado mexicano, mais especificamente o pré-hispânico, que na época da Conquista e
Colônia foi renegado (Gómez-Aguado, 2010). O que destacamos no primeiro capítulo
foi a busca de uma nova estética; tengo como base a defesa da língua americana e a
criação de uma sintaxe romântica.
Já no início do século XX temos um evento que transformará o que até então
era o México: o movimento revolucionário que mudaria drasticamente o destino do
país. No campo artístico, decai as escolas realistas e modernistas, surge na pintura o
Movimento Muralista Mexicano e na literatua a escola denomidana de Literatura da
140
Revolução Mexicana. Da barbárie que surgiram escritores como Mariano Azuela, que
buscou ser um cronista da barbárie. É da aniquilação que surge o novo: a Narrativa
Mexicana Moderna.
O marco fundador dessa nova escola é Agustín Yáñez com o seu romance Al filo
del agua. A Prosa Mexicana Moderna incorporará técnicas de outras culturas literárias,
tais como a refletorização e o monólogo narrado. Por tanto, a produção literária da
época passa a se preocupar com o drama das paixões, não mais o drama das ações.
Paixões e mitos mexicanos é o que constatamos na obra Pedro Páramo, de Juan Rulfo.
A mexicanidade passa a ser o símbolo da Narrativa Mexicana Moderna. Averiguamos
que Carlos Fuentes foi um herdeiro dessa nova escola.
Nos seis contos analizados nesta pesquisa, chegamos a conclusão que o escritor
mexicano, quebra com a ideia ocidental do tempo e da realidade. Nos contos de Los días
enmascarados verificamos o rapto do presente. Em “Chac Mool” constatamos que o eixo
central da narrativa é a questão do tempo alidado ao mito e em “Tlactocatzine, del jardin de
Flandes” averiguamos a relação de interdependência que se estabelece entre mito e
natureza. Por sua vez, em “Un fantasma tropical”, de Cuentos sobrenaturales,
estudamos a complementariedade que existe entre mito e história. Ao fim e ao cabo,
comprovamos que a memória é o eixo central que articula os conceitos de tempo,
mito, ficção e história.
Na última parte desta pesquisa averiguamos como o pensamento pré-hispânico
mexicano é o articulador da trama narrativa em Todas las familias felices. Verificamos
nos contos analizados criticamente que todos os personagens em questão estão em
dissonância com a ideia do tempo complexo, isto é, não articulam devidamente o
passado, o presente e o futuro. Personagens que só vivem no presente ou que só
vivem no passado não são capazes de construir um futuro.
Constatamos que nos contos de Carlos Fuentes o retorno do tempo-lonjura,
explícito ou implicitamente na trama, está relacionado com a concepção de mito: mito,
tempo e memória criando um tripé de composição artística. A problemática da
memória leva ao questionamento do ser. Foi o que estudamos em “Chac Mool”,
“Tlactozatzine, del Jardín de Flandes”, “Un fantasma tropical”, “Una familia de tantas”,
“Madre dolorsa” e “El padre eterno”.
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