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20 x 40 (quarenta)

Versos Meliantes

20 x 40 (quarenta)

Versos MeliantesNo acaso vertigem das correntes...

FICHA TÉCNICA

EDIÇÃO: Vírgula (Chancela Sítio do Livro)

TÍTULO: Versos Meliantes – No acaso vertigem das correntes…

AUTOR: Luís Sá Fernandes

CAPA E PAGINAÇÃO: Paulo Silva Resende

1.ª EDIÇÃO

LISBOA, 2011

IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Agapex

ISBN: 978-989-8413-46-8

DEPÓSITO LEGAL: 330130/11

© LUÍS SÁ FERNANDES

PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO

Sítio do Livro, Lda.

Lg. Machado de Assis, lote 2, porta C — 1700-116 Lisboa

www.sitiodolivro.pt

“Se não gostam dos meus poemas, pelo menos reciclem-nos!”

In Cancioneiro de Mão

V E R S O S M E L I A N T E S 9

Bizarrias,Poemas sem pai nem mãe,Órfãos de mim,Ganham a levezaDe serem,Eles próprios:Vivos,Desprendidos eÚnicos...

Bizarria...Em querer associá-losAo Criador...Esse, vive longe de si...Perdeu-se nas luzes da ribalta, Entre efeitos natalícios...Falar dele, é dar-lheDemasiada importância...

(...)1

1 Sustenho a respiração... O sufoco sobe-me à garganta, explodindo...

10

Pertinente é, sim, o verso soltoQue foge, sujo, no campo da bola,Fintando outras crianças, Rimas que não rimam, no seuDesafino sincero emEstridentes assobios Que arranham o corpoE nos trespassam a alma...

(...)2

De bizarria, em bizarria,Ou a simples vontade de sonhar?

2 Segunda pausa... Coço a minha queixada, com barba de dois dias: “Preciso de uma finda... Ah, já sei!”

V E R S O S M E L I A N T E S 11

Coup d’OeilUm olhar fugazPor tua pele morena e cristalina,Em meus passos pesados,Ecoam pensamentos desnudados,Na tua voz de menina...

A cidade cerca-me em Labaredas de betão...Subterra-me o livre instintoDe versejar, Pregando-me ao chão...

Um breve piscar de olhos por teus lábios,Rasgam as ruas em avenidas,Num horizonte sem fundo,Levando-me a sobrevoarA planura alentejana...

Olho nos Olhos e grito:!

ECCE HOMO!

Homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen

1919-2004

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De novo aqui,Sobre o Etéreo,Cumpro meu destinoDe num só impulsoTocar o Sol augusto, Dando-me o alento de enfrentarA ferrugem Inveja do Mundo...

V E R S O S M E L I A N T E S 13

Albufeira – SetúbalPassageiros tiritam de frio,Na estação de Nenhures...O cálido bafo dos mesmosPurga os males das suas alma...

Tremo, também, na despedida...Meu Pai olha-me desconsolado...Parece, até, que vou para a guerra...E os dois, lado a lado, esperamosAquele dragão alado... Até que este rompe, atrasado, a profunda Escuridão, num chiar fumegante...

Subo para carruagem:O saco pesa a inutilidades...Busco o meu lugar, – L27 – Ordeiramente, na convencionalidadeDe cumprir o socialmente preestabelecido...

Às vezes, gostaria de andar contra a corrente, Tal como a truta que morre no levante do rio...

19h 30m, Outono de 2003(Ao meu Pai…)

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Enfim, Ouve-se um assobio...Iniciando-se a monótona cadênciaDa maquinal locomoção:

Pouca, terra! Muita terra!Muita sorte! Pouca sorte!

Procuro, em vão, o rosto de meu Pai...Desapareceu. Ficou para trás.Perdi-lhe o último olhar,O da despedida...E parto com essa culpa, Para as mesmasBatalhas mesquinhas,De dias sempre iguais aos outros,Ao ritmo da batuta do relógio...(Meu Pai não pode ganhá-lasPor mim... Apenas desejar...“- Sorte, muita sorte!”)

V E R S O S M E L I A N T E S 15

Encosto minha cabeça ao banco.Ao fundo da carruagem, Uma publicidade com a Rita Hayworth, No seu papel de Gilda...Mas, ainda alguém sabe, quemEla é? Duvido...

(Película queimada de umFotograma esquecido...)

Lambo o olhar pelos outros lugares:Jovens estudantes tagarelamEm amena discussão.Tento ler-lhes os lábios,Mas não faço a mínima ideia Do que dizem...E, vindas do nada, passamPor mim umas coxas brasileiras – E Viva a Lusofonia!(...)

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Abro um livro.Não consigo passar da primeira página:A leitura oblíqua cansa-me a vistaE pesa-me nas ideias...Sinto o chumbo das pálpebras...

ZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZ!(Adormeço)

Acordo com um suave solavanco:“- O bilhete, por favor...”O seu picar ecoa nasMinhas têmporas como uma Ressaca mal curada...Todavia...Aquele lento embalar hipnotiza-me...Lá fora o breu...Dormi duas horas? Quase.

Pouca, terra! Muita terra!Muita guerra! Pouca guerra!

V E R S O S M E L I A N T E S 17

Mesmo agora, atravessámosA ponte férrea, sobre o Sado peregrino...Lá para trás, deixei ficar as luzes polvilhadas deAlcácer, naquele espelho de água sossegadoPelo fardo silencioso da solidão mourisca...Dirijo-me ao vagão-restaurante:Olhares cruzam-se, indiscretosNa empatia angustiante de umInício de semana...Sim, amanhã é Segunda,Porém, essa síndroma não me ataca...Detesto é Quarta,Pois estamos a meio do nada...À beira, mas longe do fim...-de-semana...Bebo um café aguado e retiro-me.

Ando aos encontrões nos corredores;Abro e fecho as irritantesPortinholas, que dividem as carruagens;

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Lá fora surgem sombras chinesas...No porto iluminado,o cais de desembarqueExpõe um formigueiro de estivadores,Descarregando a labuta de seus avós...E no ar...Um cheiro a podre, a couves cozidas,Das chaminés industriais – Cartão-de-visita, da cidade de Setúbal!

Mergulhamos no túnel;Penetramos nas entranhas do burgo;Chiam os carris na Estação do Quebedo...

Espera-me, no carro,O único amigo que me resta...Este leva-me a casa pelo caminhoMais longo, para pormos em diaA conversa...

V E R S O S M E L I A N T E S 19

De volta a casa!Ligo a luz da entrada.Aconchego a almofadaE tapo-me até às orelhas,Tacteando, em vão, os teus pés:Frios lençóis, amor ausente...(Saudades de tiE daquele olhar paterno,Esfumado na impossibilidadeDe voltar atrás, outra vez...)

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O Rubro Véu que a Encobria...(ou uma visão dantesca?)

Os Visionários dormem profundamente...No entanto, o seu sono não é tranquilo:Debaixo de suas pálpebras, os seus olhosAgitam-se freneticamente – Sonha-se,Por debaixo da linha de água...

R.E.M.

Vêem-se náufragos acenando por socorro,Lamentam-se por não terem vivido na Equidade ...A vida apenas passou por eles,Como se tratasse de uma praga de gafanhotos...E afogam-se, de novo em mágoas, lançando-seNo acaso vertigem das correntes...

Os navios, enferrujados, estalam As suas vísceras imundas:Jorram o salitre túmido de agonia,Caindo nos profundos precipícios da Inveja...

À minha cara-metade,Brites Teixeira

V E R S O S M E L I A N T E S 21

Porém, no meio de suas carcaças, efervesce um Virginal sorriso, um canto feminino:Verdes trepadeiras de algas,Puxadas por cupidos,Enlaçam-se na fuligem,Enquanto os corais, cor de sangue, Engastam-se nas rochas envolventes,Em filigranas de vida...

Pouco a pouco, gota a gota,Florescem centenas deAnémonas divagantesDe outras epopeias,Com sabor a açafrão...Cardumes, agora, esvoaçam por ali,Debicando bolhas pérolas flutuantes...

Das entranhas da terra, Sente-se um tremor...Um nó desfaz-se...

Ergue-se, enfim, um arquipélago,O dos Amores...

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Sonho de Voar...Ou de pintar um Botticelli?

Abre-se a vieira em jardins suspensos...Dá à costa um novo Continente,

O Nascimento de Vénus!”

V E R S O S M E L I A N T E S 23

A noite ganhou vida... A plaza, lá fora, transformara-se num formigueiro de gente. Espanha saiu à rua... Corpos femininos pavoneiam a vaidade, deleitando-se nas tapas gordurosas de bodegas luxuosas...Bebo um chocolate quente de saudade, trincando cuidadosamente uns churros atrevidos... Mesmo à minha frente, neste dia de finados, a alegoria da humana senilidade – um casal de idosos verbalizam um diálogo mudo. Ela dormita semi-erecta, num balançar de cabeça frontal; ele, na sua surda miopia, balbucia-lhe bolorentas querelas, velhos amores e consequentes sequelas...Peço uma caneta ao empregado de mesa e aponto no guardanapo:

Valadolide, Plaza Mayor,

Café del Norte, 01/11/02, 23h:00m.

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InfanticídioSempre este jogoDo gato e do rato...À procura de uma falsa Glória... Aonde estás tu, Meninice?“- Despida na praia, numa desbotada fotografia,Nua de juízos e preconceitos...” Então, tudo parecia irreal, inconcreto...A maior dúvida tinha resposta simples:“–A Lua está vazia, pois está estagada!” Aonde estás tu, Meninice?“- Corrompida pelo inevitável crescimento;Pela tomada de consciência;Pelo declínio do faz-de-conta;Pelo peso da responsabilidadeE pela vitória da mentira!” Enfim,Choro.Não por cair do baloiço,Mas por cair em Mim!

V E R S O S M E L I A N T E S 25

Arcanjo GabrielNo sinuoso relevo paisagem de seu rosto,Vêem-se campos de amendoeiras, em flor;Seus lábios suspiram os lamentosDos castanheiros, empedernidos pela idade...

Seus olhos nogueira trespassam-me, agudos,Enquanto vozes anciãsPerdidas pelas leiras, clamamO seu regresso à modesta Casa da aldeia...

Sua pele, febril, fermenta O mosto labor da vindimaQue madruga bem cedo e só Descansa ao sol-posto...

Suas mãos, em concha,Amolecidas pela doença,Cheiram aindaAos fornos a lenhaE em verdes delírios,Varejam as oliveiras...

Em memória deEmília Fernandes,

minha avó.1920-2004

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Gabriel, Esguio, aquilino e etéreosorri-lhe...

(Serena,Rendida à sua sorte,Estende-me, em vão,Na despedida,Seus braços inertes,Apenas querendo afagarOs lisos cabelos de seu neto...)

Subitamente, num impulso,Ascendem...

V E R S O S M E L I A N T E S 27

EgoSou a herança do meu passado,Moldando-me àquilo que ainda pretendo ser...E se, eventualmente, o não atingir,Por fraqueza ou força do destino...Não faz mal,Pois fui o que fui,Nada mais do que eu próprio:Imperfeito, na Minha humana singularidade...

?

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Ψ Diabolique3

Torres de Babel construídas em vigas de papel;Betoneiras que digerem pedaços de conversas, lançandoInsinuações de índole eufemística...Sensacionalismos martelados em cruzes suásticas,

Fotografados por grandes angulares indiscretas,Espalhando a negra fome de boatos...Chacais filmando o tiro na cabeça; o juiz-sem-pressa,O político espumado na soberba, o corrupto exilado,

O ansioso no desemprego, o menino abusado,Através de vis gravações em prime-time...E as Torres de Babel que, ao Caírem pelo o seu próprio peso,

3 Escrito em 1999, poema reciclado, porém assustadoramente profético...

V E R S O S M E L I A N T E S 29

Esmagam a próxima vítima, a multidão,No próximo furo, nesse círculo de fogoQue se extingue em cinzas de medo...O escorpião crava, por fim, no

Seu tenro dorso, o seu timbre ferrão...Heis o poder pútrido da sopa de letras,Da imagem saturada, Sobre o grito silenciado...

Enquanto isso, o Ocioso coça asPartes baixas, sufocando-se, nas teias daNet, no zapping alucinante da TV por cabo,Barrasco engasgado, gaseificado em barris

De cerveja, deformado num sofá que Lentamente se afunda no doce tédio da Preguiça...Este, olheirento, de carão baço , debita:

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“- Estou neurologicamente viciadoPor essa avalanche incessanteDe notícias petrificantes,Desses flashes fulminantes

Que me cercam e me limitam a quatro paredes...Só me resta, então, esperar pelo final da emissão...Ou, talvez, ousar o silêncio, no simples desligarDe um botão... Atrever-me-ei?”CLICK...4

4 “- A electrostática lambe-me felinamente os dedos, despedindo-se através de um formigueiro de palavras sussurradas ao vento.”

V E R S O S M E L I A N T E S 31

O Peão que rodopiou, por ali, desajeitado,Entre os meus dedos, é a história da minha vida...

Sua guita, a força que até então o impelia,Desfiou-se em somatórios de futilidades...Agora, o tonto, jaz ali especado, inerte,

À espera da ilusória vertigem da espiralCentrífuga do Sonho...

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╧No estirador estende-se o Arquitecto:Descreve avenidas, becos e vielas,Traseiras, onde os putos, de azul e brancoE axadrezados, ainda jogam à bola...Nos outonais jardins, vazios, florescem margaridas,Distraídas no berro alucinado de um qualquer pavão...Os prédios, como estacas que se cravamNo chão, rivalizam com a Torre dos Clérigos... IP’s que rumam ao Portugal interior...

Cheira a francesinhas e a Revolução Liberal...

Já as Circulares circundam de novo a miséria,Abutres de olheiras escavadas pela heroína, No tráfego de sexta-feira, ao fim da tarde...Já a polícia deambula, por aqui, Nos Aliados, sem pressa...Abriu a época de caça à multaDo incauto que perdeu o tinoPela primeira vez se apaixonar...As vendedoras no mercado do BolhãoGritam no meio do seu pregão um “Carago”;

19/11/2004

V E R S O S M E L I A N T E S 33

Enquanto o desempregado sem tostão,Bebe um cimbalino conformadoNa inútil esperançaDe um dia ser alguém... de confiança...

O ArquitectoTraça assim, em esquadria,Em frias linhas, o peso da CidadeNa linha do horizonte que se afogaLentamente, em areias movediças...Mas...Por mais que as pontes férreas o tentem agrilhoar,O Douro escapa-lhe, audaz, em contracurvasE rumando à foz, num impulso,Mergulha no azul.

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Circunvagando aIlha dos Desamores...

♣♠♣O que fazer, quando o amor se acaba?Deitá-lo fora como uma beata?Esboçar um breve sorriso ou franzir as sobrancelhas?Protelar o seu fim, No ténue estertor do conformismo?

O que fazer, quando o amor se acaba?Queimá-lo numa pira de vaidades eEspargir suas cinzas no Ganges oblívio das correntes?Penitenciá-lo em mil mágoas eDeixá-lo, ali, em carne viva?

O que fazer, quando o amor se acaba?Empacotá-lo numa caixa, Num enchumaço de boas ou más memórias?Fulminá-lo com outra paixão, enterrá-lo,E rezar uma missa de 7ª dia?Só sei que...Quando o amor se acaba,

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A erosão do tempo,É o seu perfeito cangalheiro,Pois rasga-lhe a rotinaApaga-lhe os femininos rostos,Emudecendo todo e qualquer fatalismo,De toda e qualquer ninfa voz marinha,Numa estranha calmaria silenciosa Da sempre eterna, Ilha dos Desamores....

Canto IX(Eis-me aqui, de novo,No convés da razão,Fundeado na amorosa desilusão, Amarrado ao mastro,Escutando, ao longe, O doce canto das Tágides...

– Soltem-me, por favor, Ordeno-vos!)

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EpitáfioEnfim, nu, desmascarado do Socialmente correcto, Privado da humana Consciência,Aqui jaze o animal autêntico,A amarga Insatisfação deNão ter laçado o Sol,Ao menos, uma vez...

Tu, humano, observa o teuIrreversível destino...Teu futuro, ainda por diante;Meu passado, como um tiro,Repentino...

A paz, por fim, alcanceiE as vãs guerras, por fim, cessaramNo luto armistício de mim mesmo...Agora, sou Soldado Desconhecido Da ilusória perene existência...Só meus versos, aqui gravados,Perduram na marmórea Palidez da escrita...

À maneira de Gil Vicente

V E R S O S M E L I A N T E S 37

Fitas o traço dissimulado, feminino,Que mal se desvanece, na falsa proximidade,De arribar em terra firme...

Aqui, no Cabo, na contingência da queda,Sente-se a brisa intempérie, na angústia esfumada Dos nossos entes queridos, enquanto oRelevo agreste das falésias é esculpidoPelas vagas, que aí se desfazem em Cadentes rugidos...

Na contingência da queda,Quase te precipitas, no profundo marinho,Serpenteado por algas e Medusas que rondam a costa,Numa ameaça velada de Circe...

O estio ocaso boceja o seu último bafo,Num estertor aparente de despedida...E, tu, com as faces coradas Pelas falsas promessas de Ícaro,Viras as costas ao espelho argentinoQue se estende no eterno mosaico da ventura...De volta, serpenteias o asfalto, rumo à terra de Ulisses,Afagado pela doce dormência da rotina...

Na Contingênciada Queda

E finge-se a meio gás…

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Na impossibilidade de:Ao descer a escadaria,Pela manhãzinha,Perseguindo o odor a caféMesclado entre os teus caracóis,Não te encontrar...

Na impossibilidade de:Perder-te na rua,Apressada pelas tarefas,Sujeita ao relógio,Engarrafada no trânsito...

Na impossibilidade de:Sentir a tua pele aveludada,Arrepiada por um beijo,De chocolate e avelã...

Na impossibilidade de:Livres de curiosa observação,Rirmo-nos intimamente no ócioDescanso, de um final de semana;Por ali, comentando um filme cliché...

[À TUA MATERNIDADE!]

V E R S O S M E L I A N T E S 39

Na impossibildade de:Não viajar contigo pelas margensDa finis terra;De não ler um livro à tua beira;De não brincar em castelos de areiaDe pés molhados, Na espuma de uma quimera;Ouvindo ao longe, o canto Remoinho das sereias...

Gostaria de:Agradecer-te, Por no teu ventre carregarres A nossa intemporalidade, Através doTeu sangue e carne,Pelo meu salCondimento...

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Numa praia de um azul esverdeado, De cabelos arenosos, bastante extensos…(Talvez em St. André ou no Pego)

Que sensação… a liquida flutuação do meu corpo, sobrevoando as profundezas de corais arenosos – geografias submarinas dos sonhos desfeitos em naus destroços, por entre os cacos de ânforas de maus passadios...

Que sensação… a força da vaga, do imprevisto, que se desfaz abruptamente enrolada… Esta estende o seu pano em linho, numa mesa da perene vaidade, tocando as margens serenas de uma praia…

Que sensação… esse sopro de morte que explode num grito sobre mim, numa onda de choque atómica… Eu por baixo sustenho a respiração esperando que a vaga tormenta se acalme e se desfaça na rocha intemporal da esperança…

V E R S O S M E L I A N T E S 41

Que sensação… os meus pés cravados confortavelmente na areia, levantam âncora… Meu corpo, mastreando-se, emerge numa orgulhosa máscula verticalidade dando de caras com o astro (que tempera a tua face, loiça feminina, num tímido ósculo estio saline…)

Que sensação… revisitar o azul celeste, confrontá-lo num abraço e recuperar, enfim, o fôlego; enquanto que na orla, tu, minha mulher, a teu colo, meu filho, a bracejar, esperais-me, ansiosos de mim…

Que sensação… nadar ao vosso encontro!

4 de Maio de 2008,O nascimento

do meu filho, Mateus J

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Faiena de PalavrasAs meias palavras de coisa nenhumaEscondem-se por detrás De uma capa de subterfúgios,Em hesitações premeditadas…

Lançam-se foguetes, caiem as canas!

Paga-se um preço bastante alto pela frontalidade:É-se o Caras numa pega sangrada.Por vezes, levanta-se uma praça,Em revoluções de autenticidade…

Lançam-se foguetes, caiem as canas!

Todavia, a meia palavra rabejada,Essa fuga de olhares trementes de hipocrisia,Levanta o pó da arena, Caindo sobre a vista do incauto…

Lançam-se foguetes, caiem as canas!

V E R S O S M E L I A N T E S 43

As hastes picam o mártir forcado,Sangrando-o mortalmente…Este cai exaurido no vão engano De alcançar as barreiras

Da íntima privacidade…O estertor, misturado com saliva e areia,Criam-lhe a ilusão de uma praiaFustigada pela brisa quente da lealdade…

Lançam-se foguetes, caiem as canas!

No entanto, expira pelo inuendo Da traição…

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Quando a palavra se torna nevoeiro,Se recheia ou se envolveEm filigranas e maneirismos,Perde-se o fio à meada,A raiz do pensamento;Perde-se o paladar e o olfacto,Anda-se ao sabor do tacto.

Quando a palavra se torna Estéril na interpretação, Tansforma-se no mostrengo da Finisterra, Anagrama, labirinto demagógicoDa má fama;Muralha que intransponivelSerpenteia os mares da Conutação...

Aos versos que nunca entendiOu que nunca me fizeram compreender...

V E R S O S M E L I A N T E S 45

Quando a palavra se tornaTraço, rabisco, salpico;Apaga-se, enfim, No areal mudo das águas…

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No trilho do BugioParalelo ao macadame serpenteado,Pelo esteiro da maresia, No chiar engasgadoDa linha férrea,Abrandando em cada curva,À bolina de um sorriso teu,Mareio nessa liquidezEfémera de felicidade…De reencontrar-te, talvez,À chegadaEm St. Amaro…

V E R S O S M E L I A N T E S 47

(ENQUANTO

A torre ciclópica Nos espreita,

La Bougie, No seu olhar IndiferenteBem por de cima do seu

Castiçal,Assentado no

Areal daCabeça Seca,

Ainda defendendo a Barra dos corsários…

E só, de quando em vez,Sonda o fervilhar

Da costa:Muitos daliPartiram,Muitos ali

Nunca arribaram…)

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Insubstituível a estocada de euforia de um recém-nado,Pedradas em elipse nas águas salubresDo egoísmo celibatário.

À nossa mercê, dá-se na sua pura autenticidade…Aquele corpo miniatura, por aquele olhar de entrega,Medra a sua verde e espessa folhagemEm ramas da incógnita incerteza,Do que ainda está por vir…Enquanto as suas raízes balançamNo desequilíbrio carregadoDos primeiros passos…

Escuta: O palrar, A gargalhada imatura, os sorrisos gratuitos,Despidos dos narcisos da sisuda maioridade…

V E R S O S M E L I A N T E S 49

Na paternidade regenera-te, de novo,Em Infante e faz-de-conta que gritasNo primeiro fôlego de mãos dadas com a sorte…E volta a brincar,Brinca, Como se fosse a tua Última vez! J

50

20x40(quarenta)Calculo que esteja à espera do vigésimo primeiro… desabafo...Porém, esgotou-se a força do “eu” da enunciação, essa mudez explodiu em silenciosos desacatos, em punhos batidos numa mesa, num “BASTA!”...Neste momento o n.º 21 está em fuga, na planície alentejana ou vive do trelo no nordeste transmontano...

As quatro faces deste cárcere rectangular, feito de papel, disse-me o próprio, eram demasiado claustrofóbicas, demasiado estéreis...

Cito: “Lá fora vive-se. Há a linha do horizonte, essa miragem que se estica como uma fisga, ao limite extremo, num estilo coloquial, num diálogo quase surdo, entre dois idosos, que se riem saudavelmente das suas brincadeiras de infância...”Que poderia eu fazer, com estes argumentos? Negar-lhe o ensejo? Dei-lhe a soltura...

V E R S O S M E L I A N T E S 51

Sendo a tinta, a sua grilheta, a caneta, o seu vigilante carcereiro, o n.º 21 já não lavrará mais aqui, à força, sob um céu abrasador da psique, nestas vis linhas, pré-fabricadas.

Nada mais havendo a tratar, esta página ficará, a partir de agora, definitivamente em branco... Adeusinho!

CONTADOR DE POEMAS: Vinte por quarenta anos de Idade, mais do que isso, cansa…