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Zomia, lá onde o Estado não está
abril 25, 2014 por mateusbernardino
O que é e onde fica a Zomia (http://wiki.mises.org/wiki/Zomia)? Seria a Zomia outro exemplo territórioonde as sociedades presentes conseguiram fazer perdurar uma organização social que obteve sucesso emrejeitar o Estado? Este texto de Nicolas Delalande apresentou muito bem a obra do pensador anarquistaJames Scott, intitulada ‘Zomia, ou l’art de ne pas être gouverné’. Além de procurar fugir da rotina e dostemas habituais, o objetivo é fornecer em português uma descrição bem elaborada de um trabalhorelativamente recente envolvendo antropologia política e sociologia.
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Durante dois milênios, as montanhas da Zomia foram, segundo James Scott, uma zona‑refúgio para as populações do sudeste da Ásia. Grande centro de resistência ao Estado, elasseriam o espelho de nossa civilização devastadora e confiante nela mesma. Uma históriaanarquista que fascina e intriga.
Análise da obra: James C. Scott, Zomia, ou l’art de ne pas être gouverné, Paris, Seuil, trad. NicolasGuilhot, Frédéric Joly, Olivier Ruchet, 2013 [2009], 27 €. [The art of Not Being Governed. AnAnarchist History of Upland Southeast Asia, Yale University Press, 2009].
“O que nos mostram os Selvagens, é o esforço permanente de impedir os chefes de serem
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“O que nos mostram os Selvagens, é o esforço permanente de impedir os chefes de seremchefes, é a recusa de unificação, é o trabalho de conjuração do Um, do Estado. A história dospovos que têm uma história é, dizemos, a história da luta de classes. A história dos povos semhistória, diremos com tanta veracidade ou menos, é a história de sua luta contra o Estado.”
Pierre Clastres, La Société contre l’État. Recherches d’anthropologie politique, Paris, Éditions deMinuit, 1974, p. 186 (1). (traduzi a citação para o português)
{1} Desde seus primeiros trabalhos nos anos 1970 sobre a economia moral dos camponesesbirmanos e vietnamitas, o politólogo e antropólogo James C. Scott, nascido em 1936 e professorem Yale, consagrou‑se à análise das formas de resistências às quais os fracos, os povoscolonizados e os ‘deixados por sua conta’ tiveram recurso para contestar a dominação doEstado. Anarquista assumido (2), tão à vontade para pensar sobre as transformações dassociedades agrárias do Sudeste da Ásia quanto para criar galinhas em sua fazenda noConnecticut (3), Scott se esforçou pra, ao longo de uma obra singular e brilhante, encontrar aautonomia e dignidade dos dominados em sua luta contra as ambições predadoras do Estado,seja este pré‑colonial, colonial, ou pós‑colonial (4).
{2} Com seu novo livro, publicado em inglês em 2009 e recentemente traduzido em francêspelas editora Seuil, Scott prolonga um certo número de temas centrais a sua obra (a fuga, adissimulação e o “não‑dito” como formas privilegiadas de resistência à dominação), em umazona espacial inédita. Suas obras precedentes se baseavam ou sobre investigações detalhadas elocalizadas (Weapons of the Weak, publicado em 1985 e não traduzido em francês, resultara deuma estadia de dois anos que Scott realizou com sua família em um vilarejo malaio no final dosanos 1970), ou sobre extensos estudos comparativos nos quais o autor transpunha oscontinentes e os séculos para ilustrar suas teses (como em La domination ou les arts de larésistance, o primeiro de seus livros traduzido para o francês em 2007, ou Seeing Like A State,publicado em 1998). Em Zomia, ou a arte de não ser governado, Scott escolheu se concentrar sobreum espaço transnacional, ao mesmo tempo flácido e circunscrito, que ele estuda por umperíodo de quase dois milênios. Inútil, precisemos logo de entrada, procurar localizar a Zomiasobre um mapa ou planisfério. O termo, de invenção recente, significa “gente das montanhas”em diversas línguas tibeto‑birmanas (5). Um historiador holandês, Willem van Schendel,propôs em 2002 utilizar o termo para designar as terras altas da Ásia do sudeste, um vastoespaço de quase 2,5 milhões de quilômetros quadrados, cuja população atinge quase 100milhões de indivíduos, a cavalo, sobre ao menos seis Estados da região: da Birmânia à China,passando pela Tailândia, o Laos, o Camboja e o Vietnam. Verdadeiro mosaico de populações,estas terras altas têm ao menos um ponto em comum, segundo James Scott, ser habitadas porgrupos que não cessaram, ao longo da história, de se refugiar aí para escapar das presas doEstado.
{3} Mais do que uma realidade geográfica, a Zomia é uma construção política, por excelência olugar do refúgio à dominação. Se inspirando de Fernand Braudel e de seu célebre estudo sobreLa Méditerranée et le monde méditerranéen au temps de Philippe II(1949), Scott convida a ultrapassara linha e existência das fronteiras estatais para melhor captar a coerência de um espaço atéentão desconhecido ou, ao menos, pensado de maneira fragmentada na relação de suas partescom os diversos Estados‑nações da região. Longe de ser um conservatório dos arcaísmos, forada historia da civilização, a Zomia é fundamentalmente uma “consequência do Estado”, oproduto de estratégias conscientes das populações procurando resistir à opressão dos reinos edos poderes coloniais. As tribos que a compõem (Hmong, Miao, Wa, Tai, Karènes, Akha, etc.),
múltiplas e fluídas, são atores de uma história bimilenar da recusa ao Estado e suas
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múltiplas e fluídas, são atores de uma história bimilenar da recusa ao Estado e suasmanifestações, que se trate do imposto, da conscrição, dos recenseamentos ou do cadastro, etodas as tecnologias que procedem do desconforto próprio ao Estado consistindo em procurarrender as sociedades legíveis, mensuráveis e governáveis – tese que Scott desenvolviaextensivamente em Seeing Like A State. O analista político aproxima assim, através deste livro,os dois fios inseparáveis de sua reflexão: o apetite predador do Estado, sua dominação e suasexações; e as múltiplas vias pelas quais os “fracos” contestam sua autoridade, a partir deestratégias de dissimulação, de fuga ou de evitamento – vontade ou ato de procurar evitar, aoinvés de uma oposição direta e frontal.
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Uma terra de refugiados
{4} Para Scott, todos os Estados que sucederam‑se na região por mais de dois mil anos, desde asprimeiras dinastias chinesas até as dinastias dos Ming e dos Qing, os Birmanos e os Tais, oscolonos britânicos, franceses e neerlandeses, e os Estados‑nação derivando do processo dedescolonização, tiveram por obsessão fixar as populações nas planícies para submetê‑las aotrabalho. Esta necessidade decorreria do desequilíbrio, bem antigo na Ásia do sudeste, entre aabundância das terras e a escassez da mão de obra. Os Estados destas regiões foram sempremuito ricos em capital fundiário e em coerção, pobres em trabalho manual. A rizicultura, queexige uma mão de obra abundante e um povoamento denso, tem a vantagem de concentrar aspopulações facilitando assim o levantamento de impostos e o recrutamento militar. Para seapropriar da força de trabalho dos camponeses, os Estados tiveram recurso à violência, àsrazias ou incursões, ao escravismo, ver, nos casos dos Estados Tai e Birmano, à operaçõessistemáticas de tatuagem dos contribuintes.
{5} Mas suas ambições de contrôle foram impelidas pelo que Scott, sensível à influênciatopográfica nos processos de construção do Estado, chamou “fricções de terreno”. Nesta zonade alternância entre planícies e montanhas, a questão das distâncias quilométricas não temmais importância do que a questão temporal: quanto tempo seria necessário para aliar tal ou taloutro condado ou região? O Estado se define menos pelo contrôle de um território claramentedelimitado, do que por uma zona ou campo de força, uma zona de influência tendo contornos
fluídos e móveis, limitados tanto pela concorrência entre Estados vizinhos quanto pelos
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fluídos e móveis, limitados tanto pela concorrência entre Estados vizinhos quanto pelosacidentes do relevo. Confiar em uma estimação de curta distância entre dois pontos é um errose quisermos apreciar a capacidade de projeção da força estatal: uma zona de colinas situada aalguns quilômetros de um centro de poder pode gozar de uma autonomia bem maior do queuma vasta planície distante de muitos quilômetros religada ao centro por um rio. Em outrostermos, o poder do Estado não se propaga de maneira linear e contínua; ele encontra acidentesde relevo, contorna as cadeias de montanha, ele se precipita em vales, permanece nas planícies.Apenas uma representação em três dimensões poderia tornar visível a disposição das formasde organização social no sudeste da Ásia: entre 0 e 300 metros, o mundo do Estado‑rizicultor,do imposto, da soberania e do sedentarismo; acima dos 300 metros, e muitas vezes acima dos4000 metros, este das tribos, da etnicidade, da autonomia e do nomadismo (6).
{6} A Zomia flutua, por assim dizer, acima das planícies, ao abrigo das barreiras e postos decontrôle das fronteiras e das identidades nacionais. É então uma zona‑refúgio, um lugar onde opoder do Estado não se exerce, ou muito pouco. Não se trata, no entanto, de zonas sem relaçãocom o Estado. Tudo ou quase tudo aí é determinado pela presença vizinha destes poderescentralizadores. Os habitantes da Zomia têm relações de comércio com os Estados dasplanícies, lhes fornecendo, notadamente, preciosas matérias primas originárias das florestas.As populações não cessaram de circular das planícies em direção às montanhas, einversamente, na medida em que as condições políticas permitiram. Mas o mais importante,para Scott, é que as sociedades das colinas são como a imagem inversa das sociedades estatais.Para melhor compreender o Estado, ele convida a uma viagem em seu inverso, lá onde aspopulações procuraram dele se premunir.
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Elogio ao Nomadismo
{7} As tribos da Zomia, incrivelmente heterogêneas, multiplicaram as estratégias paracontornar e escapar do Estado e seu poder. Tudo o que, de maneira clássica, é colocado comoforma de barbárie, uma incapacidade de assimilar‑se à civilização – definida como osedentarismo, a escritura, a distinção entre Estado e sociedade, a adoção de identidades fixas,etc. – decorre para Scott de escolhas conscientes e deliberadas dos povos das colinas para evitar
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sedentarismo, a escritura, a distinção entre Estado e sociedade, a adoção de identidades fixas,etc. – decorre para Scott de escolhas conscientes e deliberadas dos povos das colinas para evitaro Estado, na falta de poder desafiá‑lo ou derrubá‑lo. A Zomia, precisa o autor, não é semdúvida única na história. Ele esboça inúmeras vezes paralelos entre ela e outras populações‘flutuantes’, tais quais os Cossacos, Berberes, os Ciganos, os escravos marrons ou índios daamérica, que se refugiaram nas florestas para escapar da submissão ao trabalho forçado nasreducciones católicas.
{8} A primeira destas estratégias repousa na adoção de um modo de vista itinerante. Para Scott,a cultura das zonas queimadas e a colheita não têm nada de arcaicas, mas procedem de umavontade de opor a mobilidade a todos os esforços que o Estado desloca para cercear aspropriedades, as privatizar e as consignar nos registros do cadastro. O que poderia prelevar ofisco se a agricultura não é concentrada? Da mesma forma, a escolha de certas variedades deplantas ou tubérculos, como a batata doce ou a mandioca, se explicaria por suas qualidadesintrínsecas (crescimento rápido, fraca intensidade do trabalho, enterro e dispersão dasrecoltas), bem adaptadas à itinerância. Não é então surpreendente, aos olhos do autor, que esta“agricultura fugitiva” seja criticada ao título de seus efeitos negativos sobre o meio ambienteou erosão dos solos: isto é uma reflexão dos administradores das planícies, que procuramdescreditar as práticas e as populações sobre as quais eles não têm nenhum domínio.
{9} Mais fundamentalmente, Scott considera que a ausência de escritura, tradicionalmenteassociada a uma incapacidade de entrar na história, é na verdade um fato e escolha voluntáriadas tribos, que privilegiam a cultura oral por oposição às logicas escriturais do Estado. Elelembra que as populações das montanhas não se distinguem fundamentalmente, nisto, damaioria dos habitantes das planícies, massivamente iletrados até o século XX. Nas diversastribos, por exemplo os Akha ou os Wa, as lendas contam como a escritura, conhecida em outrostempos, foi perdida ou roubada na ocasião de uma fuga, desintegração ou desagregação dogrupo. Sem escritura, os homens das montanhas são também homens sem história, o que ospreservaria de alguns dos males associados à identidade e a residência fixa. As históriascontadas entre eles e as genealogias que eles improvisam permitem que eles entretenham, emcontrapartida, uma relação leve e flexível com a cultura, assim como ajustar sem pena seusrecitos a novas circunstâncias e alianças políticas.
{10} Esta série de reviravoltas interpretativas conduz finalmente Scott a pleitear por um“construtivismo radical” em matéria de análise das identidades étnicas. As tribos não devemmais ser pensadas como entidades primitivas, anteriores ao Estado e à civilização, mas comoconstruções estratégicas, formas de representação que os povos das montanhas fizeram evoluirna medida em que evoluíram suas relações com os Estados das terras baixas. O autor inspira‑seaqui, diretamente, do antropólogo Pierre Clastres, de quem ele retoma as teses sobre acapacidade das sociedades indígenas da américa de se organizar de tal maneira que nenhumaforma de poder político possa se emancipar ou se exteriorizar a partir delas. Sem chefesdesignados, as tribos se protegeriam da tentação que poderiam ter alguns de seus membros decolocar‑se enquanto intermediários de negociação com Estados predadores. Assim seexplicaria, segundo Scott, o mosaico étnico da Zomia. Se dividindo e se dispersandoinfinitamente, as tribos teriam deliberadamente produzido esta espécie de “caos etnográfico”destinado a contrariar as veleidades classificatórias dos administradores das planícies: “Acriação de tribos e identidades étnicas representam um meio típico a partir do qual os povossem Estado fazem escutar suas reivindicações quando entretém interações com os Estados” (p.347). Por outro lado, é pelo acolho favorável e reservado às aspirações milenaristas e aos
profetas de todo gênero que os povos das colinas teriam expressado sua coesão, notadamente
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profetas de todo gênero que os povos das colinas teriam expressado sua coesão, notadamenteao longo de revoltas dirigidas contra os Estados vizinhos, como na China durante os anos de1850‑1860 (revoltas dos Taiping e dos Miao).
Todos ‘Zomianos’?
{11} A celebração das virtudes de adaptação e de malícia dos povos das montanhas, a qualJames Scott nos convida, não constituem portanto mais do que uma apoteose fúnebre. Desde asprimeiras páginas de seu livro, o autor adverte que a Zomia não existe mais, ao menos naforma política que ele descreve em seu livro. Desde a metade do século XX, estas zonasmontanhosas foram incorporadas aos Estados‑nação, os quais se apoiam doravante detecnologias de anulação da distância suficientemente poderosas para se liberar das “fricções doterreno”. A lógica de predação se estendeu a estas regiões que por longa data haviam sepreservado, reduzindo os ‘zomianos’ à escala de meros zumbis (7), minorias ofertadas aosturistas maravilhados por tantas cores bonitas e dialetos pitorescos. A Zomia enfim descobriu acivilização, dirão alguns; ela sobretudo fez a difícil aprendizagem da subalternização aoEstado, conclui o antropólogo, com um certo brio de amargura.
{12} A Zomia está morta, mas ela chegou a existir verdadeiramente? A questão poderia parecerabsurda uma vez terminada a leitura das mais das quinhentas tão densas e apaixonantespáginas do livro. A astúcia do livro de Scott, além de sua ode à inventividade contestadora dospovos das montanhas, reside no reconhecimento intelectual e político que ele confere a umaregião deixada de lado pelos radares da história. Poderíamos imaginar, em um futuro não muidistante, que os estudos zomianos encontrem lugar nos departamentos de história,antropologia ou sociologia, como uma nova unidade de análise transnacional. Permanece queo termo Zomia ele próprio foi forjado há pouco mais de uma dezena de anos, e que ele não fazunanimidade entre os especialistas da região. A palavra nunca foi, ao que parece, utilizadapelas populações locais, o que torna pouco provável que elas tenham consciência decompartilhar elas próprias uma experiência comum de resistência ao Estado (8). Os sábios nãoestão em acordo sobre a extensão desta zona, por definição móvel. Scott se concentra sobre aparte oriental da Zomia, enquanto que van Schendel estende a aplicação muito mais ao norte eao oeste, até os confins do Uzbequistão e do Afeganistão. Antropólogos sensíveis as realidadesdescritas por Scott, tal qual o canadense Jean Michaud, preferem falar de “Massivo da Ásia doSudeste”, se resguardando um vocábulo topográfico mais neutro sobre o plano político (9).
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{13} Mas a linha de divisão entre a Zomia e as planícies, entre as tribos e os Estados, entre o
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{13} Mas a linha de divisão entre a Zomia e as planícies, entre as tribos e os Estados, entre omundo encantado da diversidade e o pesadelo da homogeneidade, não seria ela muito simplese bela para ser verdadeira? Scott não teria cedido às vertigens do pensamento esquemático, porvontade de demonstrar custe o que custar a capacidade de agir e a autonomia política dospovos das colinas? A exprobração, sem dúvida embasada, arrisca de errar seu alvo, pois oobjetivo de Scott é outro: para agitar as certezas e quebrar a hegemonia do Estado‑nação, nadamelhor que um pensamento claro e forte, ao invés de buscar ser sempre justo ou meio obscuro,ele se defende assim desde o início de seu livro. Monumento de erudição, o livro Zomia colocao leitor crítico face a um tremendo dilema, sobretudo quando este leitor não tem nada deespecialista da região: seja sublinhar o caráter binário e sistemático de argumentação, sejaesmiuçar os detalhes, cerceando os erros que tal síntese comporta inevitavelmente (10).Tentemos, em despeito disto tudo, avançar dois pontos de discussão, sobre os quais oraciocínio de Scott fascina ao mesmo tempo que intriga.
{14} Uma primeira interrogação nasce da propensão de Scott a tudo interpretar sob o ângulopolítico. Da cultura da batata doce até o analfabetismo (1), das estruturas de parentesco até arejeição da escritura, das migrações até a colheita, em sua análise tudo procede de escolhasconscientes e voluntárias das populações, cuja principal motivação, se não seria a única,consiste em esquivar do Estado. Tudo é político, então, o risco de minimizar o que obedeceria,ao menos parcialmente ou de maneira complementar, a outras lógicas ou explicações, deordem climática, geológica ou simplesmente sociológica. Na pluma do autor, a Zomia acessa oestágio de ator coletivo, dotado de razão e vontade, capaz de modular as formas de suaorganização para driblar a lógica predadora do Estado. Ela parece dispor ao mesmo tempo decoerência e sabedoria dignas de um ser livre e racional, ao mesmo tempo em que goza de umaplasticidade e adaptabilidade de um organismo vivo, como quando o autor retoma a metáforada “medusa”, viscosa e insaciável, para descrever a evolução das tribos. O peso das heranças edas instituições exerce bem poucos constrangimentos e limitações sobre os atores queconstroem e reconstroem sem cessar seus modos de organização para preservar suaautonomia. Uma ressalva tirada da própria obra de Pierre Castres, da qual Scott se inspiratanto, convida à precaução quanto ao risco que pode haver, a força de tanto procurá‑la ouenxergá‑la em todo lugar, de terminar por dissolver a política (11):
“Tudo cai então dentro do campo da política, todos os subgrupos e unidades (grupos deparentesco, classes etárias, unidades de produção, etc.) que constituem uma sociedade estãoinvestidos, a todas propostas e formas de propostas, de um significado político, o qual terminapor recobrir todo espaço do social e perder em consequência sua especificidade. Pois, se apolítica está em tudo, ela não está em lugar algum.” (Castres 1974, p. 18, traduzi do francês)
{15} Tudo é política, e tudo é reativo: cada transformação das tribos é concebida como umareação à ação do Estado, com a qual elas entretém uma relação simbiótica. É o segundo pontode discussão que chamou a atenção dos leitores da obra. Evidentemente, James Scott tem oimenso mérito de rejeitar toda análise que olharia as tribos como sociedades isoladas efechadas sobre elas mesmas. Portanto, a força de tudo imputar ou atribuir ao Estado, o autorminimiza o papel das dinâmicas internas aos grupos que ele estuda. O historiador VictorLiberman lembra assim que o conflito e a violência não eram ausentes na vida dascomunidades, que não eram também tão igualitárias quanto Scott parece frequentementeindicar (12). Inversamente, sua visão de Estado parece bastante monolítica e pouco histórica,mesmo se ele sublinha, por exemplo, a consequência dos deslocamentos de populações sobre aorganização do Estado e seu funcionamento móvel. No entanto, há mais de dois mil anos, as
manifestações de soberania estatal se mantiveram praticamente as mesmas, orientadas a um
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manifestações de soberania estatal se mantiveram praticamente as mesmas, orientadas a umobjetivo de identificação, de ‘sedentarização’ e apropriação das populações. As lógicas depensamento e ação do Estado evoluem pouco (salvo depois de 1945), em despeito dasmudanças técnicas e intelectuais. A soberania tal qual colocada por Scott parece assimimutável, e todavia nociva. Os Estados não aprenderam com seus erros durante este tempo? Asqualidades de leveza e adaptabilidade seriam elas o apanágio dos povos das montanhas, oupodemos imaginar que os Estados tenham adotado novas formas de governança, mais difusase contornadas, para superar a resistência das populações e não se colocar a seu serviço? Aresposta, mesmo que seja negativa, convida em todo caso a uma reflexão mais fecunda sobre asmutações recentes da soberania e as vias de sua déterritorialisation (13).
{16} Qualquer que seja o futuro da Zomia, a questão das zonas liminares e intersticiais nãoperderam nada de sua atualidade, a obra de Scott contribui a sublinhar toda sua importância,em termos tanto políticos quanto científicos. Em despeito da multiplicação dos Estados‑nação,zonas similares continuam existindo e tem um papel de primeira importância dentro doprocesso de mundialização, as vezes para o melhor, frequentemente para o pior. Quesondemos, por exemplo, as grandes zonas de conflito (zonas tribais pashtuns, Sahel), as águashostis onde vigora a pirataria (estreito de Malaca, costa somaliana), ou ainda, os ditos paraísosfiscais, refúgios que acolhem as grandes fortunas do planeta e redes de criminosos. Duranteséculos, os “fracos” tão bem estudados por Scott resistiram através das virtudes donomadismo, da fluidez e do jogo com suas identidades. Não seriam estas as armas modernasque utilizariam os mais poderosos para escapar aos constrangimentos dos soberanos ou àsexigências da solidariedade? Os Estados, decididamente, teriam também muito a ensinar àZomia…
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Considerações do Tradutor
Quanto ao artigo de Delalande, faça‑se aqui, abaixo, a apresentação de alguns sentimentos.
A primeira vista, não havia gostado muito deste texto. Não pela forma ou estilo de Delalande, que eu decerta forma aprecio, mas em qualquer medida pelo conteúdo. Embora Delalande aborde, apresente ecritique satisfatoriamente bem a obra de James Scott, e esta seja de fato a tarefa proposta pelo seu artigo,eu não me senti suficientemente convencido pela proposta original do livro. Posso dizer, mesmo, que nãoconcordo com muitas das considerações que o autor do livro teria proposto ali. Aliás, confesso que, alémdisso, de saída, não gostei da idéia de mais uma vez assimilar supostas experiências concretas e históricasde ‘anti‑estatismo’ à sociedades ultrapassadas ou subdesenvolvidas, zonas isoladas, em remotos tempospassados – ou contemporâneos, funcionando sob quadros institucionais contestáveis ou relativamenteindesejados etc. Não apreciei igualmente a idéia de assimilar esta suposta experiência ‘anti‑estatista’ emterritórios onde, de fato, existiam Estados estabelecidos, mesmo que precariamente. Em seguida, não tive
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indesejados etc. Não apreciei igualmente a idéia de assimilar esta suposta experiência ‘anti‑estatista’ emterritórios onde, de fato, existiam Estados estabelecidos, mesmo que precariamente. Em seguida, não tiveainda a oportunidade de ler o livro ao qual se faz menção no texto. Não gostaria de propor indiretamentea leitura de algo que ainda não li, e por mais que a idoneidade e a honestidade do autor não possa fazerobjeto de questionamento, repassar as considerações de Nicolas Delalande (autor cujo qual já pude leralgumas coisas) sobre a obra que ainda não li me pareceria precipitado. E isto ocorre, de fato, quandotraduzo um texto fazendo referência, apologia ou crítica de uma obra que não li.
O texto me parece demasiadamente politico, ou politizado: tenho certo preconceito e tendência a repudiaro que possa me parecer como algo demasiadamente ‘esquerdista’ ou ‘direitista’. No entanto, o que memotivou a traduzir este trabalho foi que o artigo me fez pensar algumas coisas. A primeira é que seria,talvez, interessante disponibilizar em português as considerações ali feitas, por mais que não partilhassedas idéias ali difundidas. Isto poderia incrementar, para os leitores lusófonos, a riqueza de conhecimento eo leque de sociedades utilizadas como referência quando se busca analisar experiências – ou proto‑experiências – do tipo ‘anti‑estado’ ou anarquistas, que teriam existido ao longo do tempo em diversosespaços. O presente texto servindo, então, de apresentação inicial para muitos leitores sobre o que ocorriana região abordada pelo autor. Outra coisa que me veio a mente é que, talvez, o texto ajudasse a contestaresta idéia, recorrente, de que uma zona de ‘não‑estado’ deveria forçosamente ser facilmente identificávelou delimitável sobre um mapa. Algo como: bom, seguindo as demarcações dos Estados existentes, temosaquela zona ali onde não existe estado.
Dito isto, gostaria de dizer que eu mesmo, particularmente, não tenho fixação com estado, tenho portantocom a curiosidade. E isto me motivou a traduzir o texto. Do ponto de vista sociológico e antropológico, osrelatos nele contidos podem ainda ter boa utilidade, o mesmo vale para um cientista político, historiador,ou ainda, um economista com interesse nos assuntos subsequentes ao tema. Sei que este texto foge umpouco do propósito deste sítio, mas enquanto relato histórico e estudo sociológico, talvez ele mereça umaoportunidade de ser armazenado e compartilhado. Enfim, disponibilizo aqui pra quem tiver interesse.
Ps.: Mais um caso histórico de experiência ‘anti‑estado’, além da Islândia, faroeste etc.? Mais do quenunca fica proposta: fujam pras colinas!!!
Notas
(1) A segunda parte desta citação serve de epigrafo para o livro que foi aqui analisado.
(2) Seu último livro, que acabou de sair nos Estados Unidos (Princeton University Press, 2012),se intitula Two Cheers for Anarchism, que ser traduzido como algo como Viva o Anarquismo (estafoi a tradução, feita por Delalande, que decorre da interpretação da expressão em francês).
(3) Ver aqui o porta retrato cativante que lhe foi consagrado pelo New York Times em Dezembrode 2012:http://www.nytimes.com/2012/12/05/books/james‑c‑scott‑farmer‑and‑scholar‑of‑anarchism.html?_r=0 (http://www.nytimes.com/2012/12/05/books/james‑c‑scott‑farmer‑and‑scholar‑of‑anarchism.html?_r=0)
(4) O leitor encontrará ao final desta análise uma lista de suas principais obras.
(5) Sublinhemos que o título escolhido pela editora francesa insiste sobre o aspecto espacial dareflexão de Scott, enquanto que o título da edição inglesa não menciona explicitamente aZomia.
(6) A título justo, e para não induzir o leitor ao erro sobre o papel da altitude, Scott ressalva que
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(6) A título justo, e para não induzir o leitor ao erro sobre o papel da altitude, Scott ressalva queeste esquema não tem nada de universal. Nos Andes, por exemplo, a relação entre altitude epoder do Estado é inversa: os Estados se deslocam sobre os altos planaltos e montanhas,enquanto que as húmidas terras baixas escapam a seu contrôle.
(7) Bernard Formoso, “Zomian or Zombies? What future exists for the peoples of the SoutheastAsian Massif?” Journal of Global History, vol. 5 (2), p. 313‑332, 2010.
(8) Tom Brass, “Scott’s Zomia, or a populist post‑modern history of nowhere”, Journal ofContemporary Asia, vol. 42 (1), p. 123‑133, 2012.
(9) Jean Michaud, “Editorial. Zomia and beyond”, Journal of Global History, vol. 5 (2), p. 187‑214.
(10) Alguns erros ou omissões, identificadas por especialistas da região, são todaviaproblemáticos do ponto de vista da argumentação geral do autor. Victor Lieberman, em seuartigo citado mais acima, evoca diversas vezes, que existe, de fato, poucos relatos, testemunhospermitindo a documentação da existência de migrações de fuga diante do Estado, algo queScott vê portanto como fato generalizado. Da mesma forma, os números que ele oferece sobreas taxas de alfabetização das sociedades das planícies no período de 1800 seria nitidamentesubestimados, o que contradiria o argumento segundo o qual a situação dos povos das colinase das planícies não teria em nada sido diferente, a esta época, do ponto de vista doconhecimento da escritura.
(1) O trecho ignora uma passagem importante. Na verdade a frase completa procuraria dizer:“Da cultura da batata doce até o “allettrisme” (termo que o autor substitui a este de “illettrisme”para sublinhar a dimensão voluntária), (…)” O termo utilizado em francês faz alusão àdiferença entre “allettrisme” – um neologismo – e o termo “illettrisme” que em português querdizer analfabetismo.
(11) Pierre Castres, La Société contre l’Etat. Recherches d’anthropologie politique, Paris, Editions deMinuit, 1974.
(12) Victor Lieberman, “A zone of refuge in Southeast Asia? Reconceptualising interior spaces”,Journal of Global History, vol. 5 (2), p. 333‑346, 2010.
(13) No sitio Vie des Idées, ver por exemplo a análise de obra feita por Stephen Sawyer sobre olivro de John Agnew, Globalization and Sovereignty, New York, Rowman and Littlefield, 2009,publicada no dia 24 de Fevereiro de 2010.
Para ir além
– Um porta retrato de James Scott, antropólogo e fazendeiro, publicado em Dezembro de 2012no New York Times:http://www.nytimes.com/2012/12/05/books/james‑c‑scott‑farmer‑and‑scholar‑of‑anarchism.html?_r=0 (http://www.nytimes.com/2012/12/05/books/james‑c‑scott‑farmer‑and‑scholar‑of‑anarchism.html?_r=0)
– “ La montagne et la liberté”́, antigo artigo de James C. Sco氀현 sobre a Zomia, publicado emfrancês em Critique international (n° 11, p. 85‑104, 2001):http://www.cairn.info/resume.php?ID_ARTICLE=CRII_011_0085 (http://www.cairn.info/resume.php?ID_ARTICLE=CRII_011_0085)
– Vídeo de uma conferência pronunciada em 2009, por James C. Scott na Cornell
15/03/2016 Zomia, lá onde o Estado não está | MateusBernardino
https://mateusbernardino.wordpress.com/2014/04/25/zomialaondeoestadonaoesta/ 11/12
– Vídeo de uma conferência pronunciada em 2009, por James C. Scott na CornellUniversitysobre seu livro:The Art of Not Being Governed:http://www.cornell.edu/video/?videoID=625 (http://www.cornell.edu/video/?videoID=625)
– “Dans le dos du pouvoir”, uma entrevista da revista Vacarme, com James C. Scott, realizadaem 2008 por Gilles Chantraine e Olivier Ruchet, sobre o tema de seu livro sobre La Dominationou les arts de la résistance: http://www.vacarme.org/article1491.html(http://www.vacarme.org/article1491.html)
– O número especial doJournal of Global Historyconsagrado a uma reflexão sobre o conceito eespaço da Zomia (acesso reservado):http://journals.cambridge.org/action/displayIssue?decade=2010&jid=JGH&volumeId=5&issueId=02%20&iid=7807274(http://journals.cambridge.org/action/displayIssue?decade=2010&jid=JGH&volumeId=5&issueId=02%20&iid=7807274)
– Ao comentário sobre o livro de James C. Scott, disponível em linha, feito por Nicholas Tapp(Australian NationalUniversity):http://aseasuk.org.uk/v2/aseasuknews/%252Fbookreviews/47/Scott(http://aseasuk.org.uk/v2/aseasuknews/%252Fbookreviews/47/Scott)
– Ao debate, em inglês, em torno do livro de Scott, com os comentários da obra e críticas deMichael Dove, Hjorleifur Jonsson e Michel Aung‑Thwin:http://www.academia.edu/511756/States_lie_and_stories_are_tools_Following_up_on_Zomia(http://www.academia.edu/511756/States_lie_and_stories_are_tools_Following_up_on_Zomia)
– Uma leitura bastante crítica de Tom Brass sobre o livro de Scott, que assimila a posturaanarquista do autor de “fazer o jogo do neoliberalismo conservador”, “Scott’s ‘Zomia’, or apopulist post‑modern history of nowhere”, Journal of Contemporary Asia, vol. 42, n° 1, février2012, p. 123‑133 (accèsréservé)́:http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/00472336.2012.634646(http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/00472336.2012.634646)
Principais obras de James C. Scott
– The Moral Economy of the Peasant. Rebellion and Subsistence in Southeast Asia, Yale UniversityPress, 1976.
– Weapons of the Weak. Everyday Forms of Peasant Resistance, Yale University Press, 1985.
– Domination and the Arts of Resistance. Hidden Transcripts, Yale University Press, 1990 (trad. fr.:La Domination ou les arts de la résistance. Fragments du discours subalterne, Paris, EditionsAmsterdam, trad. Olivier Ruchet, 2009).
– Seeing like a State. How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed, YaleUniversity Press, 1998
– The Art of Not Being Governed. An Anarchist History of Upland Southeast Asia, Yale UniversityPress, 2009 (trad. fr.: Zomia, ou l’art de ne pas être gouverné, Paris, Seuil, trad. Nicolas Guilhot,Frédéric Joly, Olivier Ruchet, 2013).
– Two Cheers for Anarchism. Six Easy Pieces on Autonomy, Dignity, and Meaningful Work and Play,
15/03/2016 Zomia, lá onde o Estado não está | MateusBernardino
https://mateusbernardino.wordpress.com/2014/04/25/zomialaondeoestadonaoesta/ 12/12
– Two Cheers for Anarchism. Six Easy Pieces on Autonomy, Dignity, and Meaningful Work and Play,Princeton University Press, 2012.
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