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ECONOMIA MONETÁRIA JOÃO SICSÚ SEGUNDA EDIÇÃO

Livro monetária

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ECONOMIA MONETÁRIAJOÃO SICSÚ

SEGUNDA EDIÇÃO

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ECONOMIA MONETÁRIAJOÃO SICSÚ

SEGUNDA EDIÇÃO

© 2012 Editora Campus Ltda.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei no 9.610 de 19/12/1998.Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora,poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados:eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.

CopidesqueMarco Aurélio Pina de Carvalho

Editoração EletrônicaEstúdio Castellani

Revisão GráficaIvone TeixeiraMarco Antonio Correa

Projeto GráficoElsevier Editora Ltda.Conhecimento sem FronteirasRua Sete de Setembro, 111 – 16º andar20050-006 – Centro – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Rua Quintana, 753 – 8º andar04569-011 – Brooklin – São Paulo – SP – Brasil

Serviço de Atendimento ao [email protected]

ISBN 13: 978-85-352-2360-6

1a Tiragem – 2000 4a Tiragem – 2003 7a Tiragem – 20052a Tiragem – 2001 5a Tiragem – 2003 8a Tiragem – 20053a Tiragem – 2002 6a Tiragem – 2004 9a Tiragem – 2006

Nota: Muito zelo e técnica foram empregados na edição desta obra. No entanto, podem ocorrer erros de digitação, impressão ou dúvida conceitual.Em qualquer das hipóteses, solicitamos a comunicação ao nosso Serviço de Atendimento ao Cliente, para que possamos esclarecer ou encaminhar a questão.

Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas a pessoas ou bens, originados do uso desta publicação.

CIP-Brasil. Catalogação na fonte.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

E22 Economia monetária financeira: teoria e política /Fernando J. Cardim de Carvalho... [et al.]. – Rio de Janeiro:Elsevier, 2007 – 9a reimpressão.

il.

Inclui bibliografiaISBN 978-85-352-2360-6

1. Moeda. 2. Política monetária. 3. Questão monetária.4. Finanças. I. Carvalho, Fernando J. Cardim de (FernandoJosé Cardim de), 1953-.

CDD 332.406-4468. CDU 336.74

a Fernanda e Thiago;

a Mara, Gabriel, Julieta e Celina;

a Christiana, Mary, Enéas, Beto e Marcia;

a Antonio e Aracy de Paula, Simone e Julia;

a Camila, Rafaella, Chistine, Marlene e Ricardo Studart.

PREFÁCIO E AGRADECIMENTOSÀ SEGUNDA EDIÇÃO

A nova edição de Economia Monetária e Financeira mantém o espírito e as intenções da primeira, mastraz consigo algumas mudanças importantes. Em parte, essas modificações suprem lacunas que, inevi-tavelmente, acabam por se revelar em um livro-texto com a amplitude de escopo do Economia Monetá-ria e Financeira. Por outro lado, a calorosa recepção que teve esse livro na comunidade universitáriamanifestou-se na profusão de sugestões de melhoria e aprofundamento que os autores e a editora rece-beram, pelo que são profundamente gratos. Finalmente, um trabalho sobre a operação dos sistemas mo-netário e financeiro não pode senão ser objeto de uma revisão constante em função das permanentesmudanças por que passam esses sistemas no mundo real.

Por essas razões, esperamos que a segunda edição do Economia Monetária e Financeira faça jus à re-cepção que teve, respondendo às principais demandas colocadas tanto pelos seus leitores e usuários quan-to pelos próprios desenvolvimentos econômicos verificados no período que a separa da primeira edição.O foco e os princípios orientadores de sua preparação não mudaram. Ao contrário, acreditamos que osprimeiros anos do novo milênio confirmaram a correção das escolhas feitas, especialmente a de tratar doproblema monetário em conexão com variáveis financeiras, opção exposta no prefácio à edição anterior.Mas procedemos a muitas correções, várias das quais sugeridas por leitores, atualizamos a descrição deprocedimentos quando necessário, como no capítulo sobre a operacionalidade da política monetária bra-sileira, e acrescentamos alguns novos capítulos dando conta de aspectos do tema que se mostraram impor-tantes nesses últimos anos. Dentre essas mudanças, pelo menos três consideramos ser muito importantes.A primeira diz respeito à inclusão de um capítulo (Capítulo 11), sobre o Regime de Metas de Inflação.Quando a primeira edição foi escrita, em 1999 para lançamento em 2000, esse regime ainda não tinha sidopraticamente experimentado no país. A nova edição corrige essa lacuna, analisando sua teoria e prática. Asegunda modificação importante é a introdução de um novo capítulo sobre os Mecanismos de Transmis-são da Política Monetária (Capítulo 14), discutindo inclusive sua natureza no caso brasileiro. Finalmente,dada a importância que assumiu a questão cambial no Brasil, especialmente após a crise cambial de1998/99, decidimos tratar do problema de forma mais ampla e completa, introduzindo para isso um novocapítulo (Capítulo 25). Em vários capítulos, novos boxes foram alterados ou acrescentados.

A introdução de novos capítulos, além de sugestões recebidas de leitores, nos levaram a alterarmarginalmente a estrutura do livro, através de uma pequena redistribuição de seus capítulos.

A dívida dos autores para com amigos, colaboradores e, agora, leitores aumentou bastante nessesúltimos seis anos. A contribuição de todos os que citamos anteriormente continua sendo reconhecidacom gratidão. À lista anterior, temos agora de acrescentar mais alguns débitos. Primeiramente, quere-mos registrar a importância da colaboração de André Modenesi, Cecília Hoff e Rogério Sobreira napreparação desta nova edição. Sua contribuição, algumas vezes quase se tornando uma coautoria, foi

decisiva para que a nova edição pudesse se concretizar. Adriano Henrique Rebelo Biava preparou ex-tensa lista de sugestões que se mostraram extremamente úteis no planejamento desta edição. Maria deLourdes Mollo, José Benedito de Paula e Maria Cristina Penido de Freitas também contribuíram comcríticas e sugestões para que esta edição pudesse vir à luz. Finalmente, temos que reconhecer nossoimenso débito para com um grande número de leitores que se deram ao trabalho de nos encaminhar suasobservações sobre o livro, fundamentais para que pudéssemos tentar aperfeiçoá-lo. Infelizmente, a listadesses colaboradores é muito longa para poder ser citada aqui. É desnecessário dizer que temos a espe-rança e a expectativa de que a nova edição de Economia Monetária e Financeira continue a interessarseus leitores a ponto de motivá-los a verem neste livro-texto uma obra de criação coletiva dispondo-se aprosseguir participando de sua elaboração pelo encaminhamento de novas críticas e sugestões.

Um último agradecimento se faz necessário, dirigido à equipe da Editora Campus/Elsevier, lidera-da por Ricardo Redisch, pelo cuidado na preparação da primeira edição e, por que não reconhecer, pelapaciência exibida na consecução da tarefa de conseguir de cinco autores, todos envolvidos em múltiplasatividades, que coordenassem seus esforços na preparação desta segunda edição.

Rio de Janeiro, setembro de 2006

F.J.C.C., F.E.P.S., J.S., L.F.R.P. e R.S.

VIII Prefácio e Agradecimentos à Segunda Edição ELSEVIER

PREFÁCIO E AGRADECIMENTOSÀ PRIMEIRA EDIÇÃO

Este livro foi escrito para servir primariamente como texto básico para os cursos, obrigatórios pela pre-sente estrutura curricular dos programas de graduação em economia, de Economia Monetária I e Eco-nomia Monetária II, correspondentes aos antigos cursos de Teoria Monetária e Moedas e Bancos. Sãopoucos os manuais existentes no Brasil nesta área. Os livros-texto disponíveis no mercado brasileiro, adespeito da sua maior ou menor qualidade específica e da qualificação de seus autores, sofrem com al-gumas lacunas que, em nossa opinião, criavam o espaço para uma nova iniciativa nesta área. Por umlado, há manuais produzidos originariamente em outros países, notadamente os Estados Unidos, quetêm como principal limitação o espaço excessivo dedicado à descrição de instituições e mercados ope-rantes naqueles países, com pouca ou nenhuma atenção dada, como é natural, às condições brasileiras.O uso de manuais traduzidos do exterior, mesmo quando se adicionam capítulos ou apêndices sobreproblemas locais, é um velho problema sofrido por todos os que ensinam matérias mais aplicadas. Nocaso de teoria e política monetárias, o problema é ainda mais grave, dada a natureza necessariamenteinstitucional do tema.

Outros manuais apresentavam, a nosso ver, um problema diverso. Não se trataria propriamente deuma lacuna, mas de uma forma alternativa de abordagem do problema da moeda. Para alguns autores,como a emissão de moeda pode ser vista como uma forma alternativa de financiamento de gastos públi-cos, a questão monetária deveria ser tratada, consequentemente, como aparentada de forma mais próxi-ma a finanças públicas. Em outras palavras, nesta abordagem, o ângulo privilegiado de abordagem daquestão monetária deveria ser colocado através da chamada restrição orçamentária do governo.

Nesta obra, não discordamos, naturalmente, de que esta seja uma dimensão importante da questãomonetária, mas não consideramos que este seja o ângulo mais fértil para desenvolver o tema. Em nossavisão, o ângulo privilegiado deve ser a natureza da moeda como uma forma de riqueza, com caracterís-ticas muito particulares, e muitas vezes quase inacessíveis às primeiras investidas dos que se interessampelo assunto. Assim, a questão monetária é abordada neste livro como parte de um arcabouço teóricovoltado para o estudo da acumulação de capital, privilegiando, em consequência, temas como a deman-da por liquidez, o papel da moeda na operação dos sistemas financeiros, a dinâmica destes últimos, etc.Acreditamos, com isso, estarmos contribuindo para a estruturação da reflexão sobre problemas mone-tários colocando-lhe novas demandas e abrindo-lhe novas possibilidades, que, se não são excludentesem relação à abordagem citada acima, acrescentam-lhes dimensões cuja importância é crescentementereconhecida.

Adicionalmente, julgamos que se torna rapidamente obsoleto, nas condições atuais de rápida inte-gração monetária e financeira internacional, o privilégio dado, em praticamente todas as cadeiras deproblemas macroeconômicos, inclusive os monetários, à operação de economias fechadas. Por esta ra-

zão, julgamos indispensável pelo menos introduzir em nosso livro-texto as dimensões fundamentais daquestão cambial enquanto dimensão da teoria e política monetárias. De acordo com estas preocupa-ções, o usuário deste manual encontrará, nas seções IV, V e VI, discussões abrangentes e detalhadas,seja da operação de sistemas financeiros, seja da dimensão internacional da teoria e política monetárias.

Seção Capítulos

I 1 (Introdução ao Livro)

II 2 ao 5 (Demanda por Moeda)

III 6 ao 12 (Política Monetária)

IV 13 ao 18 (Sistema Financeiro)

V 19 e 20 (Intermediação Financeira)

VI 21 e 22 (Câmbio)

O propósito mais imediato deste manual, de qualquer modo, é auxiliar o ensino de graduação doscursos voltados para problemas monetários. Neste particular, procuramos cobrir todos os temas rele-vantes tradicionalmente explorados neste curso, oferecendo, porém, na diversificação de assuntosabordados, satisfazer demandas por caminhos alternativos de estruturação de cursos.

O programa mais tradicional de Economia Monetária I, a antiga Teoria Monetária, é coberto na seção II.Esta seção explora os modelos mais importantes e conhecidos de demanda por moeda, explorando em deta-lhe a teoria quantitativa tradicional (capítulo 2), onde são apresentadas as ideias de economistas como Fishere Wicksell, entre outros; os modelos de demanda por moeda apresentados por autores praticantes do que sechamou de “síntese neoclássica”, como James Tobin e William Baumol (capítulo 4), atualizada para intro-duzir também o debate acerca do fenômeno de racionamento de crédito, discutido pelos chamados “NovosKeynesianos”, como Stiglitz; e, ainda, a abordagem clássica “reconstruída” por Milton Friedman em mea-dos dos anos 50, que conduz depois aos economistas chamados de “Novos Clássicos” (capítulo 5).

Nesta seção, a principal inovação que tentamos introduzir foi a discussão das proposições feitaspelo economistas inglês John Maynard Keynes a respeito dos motivos para a demanda por liquidez(capítulo 3), que são, na maioria dos manuais disponíveis, confundidas com as ideias de autores queinterpretaram e reconstruíram a teoria original. Identificar automaticamente as ideias de Keynes e deeconomistas “keynesianos” pode não ser o modo mais produtivo de se refletir sobre estas questões.

Já o curso de Economia Monetária II (antes chamado de Moedas e Bancos) pode ser estruturado apartir da seção III e alguns capítulos da seção IV, dependendo da ênfase desejada pelo professor emuma visão mais teórica ou mais aplicada do problema. Em ambos os casos, a introdução ao problema dapolítica monetária poderia ser feita através da discussão do capítulo 6, onde se estuda o Banco Central,seguido pelo capítulo 14, onde se explora a natureza e a forma de operação de bancos comerciais. Jun-tas, estas instituições respondem pela criação dos meios de pagamento disponíveis em economias mo-dernas, que são o papel-moeda e os depósitos à vista. Após este início comum, cursos de ênfases maisaplicada podem enfatizar mais os capítulos 7, 8 e 17, explorando a operação das autoridades monetáriasenquanto formuladores de política monetária e reguladores/supervisores do sistema. Cursos maisorientados para a discussão teórica podem apoiar-se nos capítulos 9 a 12.

Este livro-texto está estruturado para permitir que estas estruturas básicas sugeridas para cursos degraduação possam ser complementadas com aprofundamentos desejados pelos professores e alunos emdiversas direções. Assim, por exemplo, tanto o curso mais teórico quanto o mais aplicado de políticamonetária podem ambos ser completados por reflexões sobre as restrições colocadas sobre esta políticapela abertura da economia, utilizando-se os capítulos 21 e 22. Já o curso de Economia Monetária I, so-bre demanda por moeda, pode completar a apresentação dos modelos básicos de teoria monetária peladiscussão das relações entre estes modelos e as teorias de demanda de ativos apresentadas na seção V.

X Prefácio e Agradecimentos à Primeira Edição ELSEVIER

Finalmente, um certo número de cursos opcionais pode ser estruturado também com base neste ma-nual. A adequada concepção de cursos opcionais deve, naturalmente, ser deixada aos professores que ve-nham a reger tais programas, mas algumas sugestões são, certamente, óbvias, como a possibilidade deestruturação de uma cadeira voltada para mercados e instituições financeiras, a partir das seções IV e V.

Este livro identifica cinco autores, mas, mais substantivamente, ele deve ser visto como um resulta-do do esforço coletivo que vem sendo desenvolvido há alguns anos por um grupo de economistas parti-cipantes do que se conhece como Grupo da Moeda e Sistema Financeiro, cujo centro de operações temsido principalmente o Instituto de Economia da UFRJ, apesar de abrigar professores e pesquisadores dediversas instituições. Assim, sem necessariamente torná-los cúmplices do resultado, não podemos dei-xar de registrar o apoio e as contribuições feitas, direta ou indiretamente, a este trabalho por AntonioJosé Alves, Jennifer Hermann, José Luiz Oreiro e Rogério Sobreira, participantes de primeira hora des-te grupo de pesquisa juntamente com os autores. Na verdade, apenas a aceitação de outros compromis-sos por parte de Antonio, Jennifer, José Luiz e Rogério explica o fato de não estarem listados neste livrocomo autores. Também temos de agradecer o convívio intelectual que viabilizou tanto esta, quanto mu-itas outras iniciativas deste grupo, de Gustavo Braga, Lavinia Barros de Castro, Natalia Sourbeck eHelder Ferreira de Mendonça. O apoio prestado por Manoel Carlos de Castro Pires e Cristina Barcellosà preparação deste texto foi de grande valia. Através dos anos, discussões com Antonio Barros de Cas-tro, Fernando Carlos Lima, Antonio Licha, Adriana Amado, Luis Fernando Cerqueira, Marcos Torres,Caio Cezar Lock Prates da Silveira, Fernando Ferrari Filho, Carmem Feijó, Gilberto Tadeu Lima e Ubi-ratan Iorio, bem como com Paul Davidson, Jan Kregel, Gary Dymski, Vicky Chick, Philip Arestis, Ju-lio Lopez e Steve Fazzari, em muito contribuíram para o amadurecimento das ideias, posições e teoriasque são apresentadas neste livro. O apoio de primeira hora e a orientação editorial de Ricardo Redisch eKátia Alves, da Editora Campus, foram elementos essenciais para viabilizar a produção deste texto.

De certa forma, os agradecimentos mais importantes, contudo, são dirigidos aos nossos alunos noInstituto de Economia da UFRJ, no Departamento de Economia da UFF, e das Faculdades CandidoMendes de Ipanema, que não apenas inspiraram estes esforços, como também nos permitiram, aindaque involuntariamente, testar formulações e estruturas alternativas de teoria e política monetária parainclusão neste livro.

Rio de Janeiro, agosto de 2000.

F.J.C.C., F.E.P.S., J.S., L.F.R.P. e R.S.

Prefácio e Agradecimentos à Primeira Edição XI

OS AUTORES

Fernando J. Cardim de CarvalhoProfessor Titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduado emEconomia pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (1975), Mestreem Economia pela Universidade Estadual de Campinas (1978) e Ph.D. em Economia por Rutgers, TheState University of New Jersey, nos Estados Unidos (1986). Ex-Secretário Executivo da AssociaçãoNacional de Centros de Pós-Graduação em Economia (ANPEC), de 1992 a 1994, e ex-membro do Co-mitê Assessor de Economia do CNPq, de 1996 a 1998. Tem vários artigos publicados em revistas espe-cializadas no Brasil e no exterior, entre as quais Revista de Economia Política, Revista Brasileira deEconomia, Estudos Econômicos, Journal of Post Keynesian Economics, Cambridge Journal of Econo-mics e Banca Nazionale del Lavoro Quarterly Review.

Francisco Eduardo Pires de SouzaProfessor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor emEconomia pela Universidade Estadual de Campinas, com pós-doutorado na London School of Eco-nomics and Political Science. Coautor do livro Economia Brasileira em Marcha Forçada, agraciadocom o Prêmio Jabuti de melhor livro em Ciências Sociais em 1987. Tem artigos e capítulos em li-vros publicados no Brasil e no exterior e artigos em revistas especializadas como a Revista de Eco-nomia Política, Revista Brasileira de Economia, Estudos Econômicos e Revista de EconomiaContemporânea.

João SicsúProfessor-doutor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IE-UFRJ.Coorganizador e autor dos livros Macroeconomia do emprego e da renda: Keynes e o Keynesianismo(Editora Manole, 2003), Agenda Brasil: políticas econômicas para o crescimento com estabilidade depreços (Editora Manole: 2003) e Novo-desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento comequidade social (Editora Manole, 2005). É coorganizador e autor também de livros publicados pelaEditora Campus-Elsevier, entre eles, destaca-se Câmbio e Controles de Capitais. Possui vários artigospublicados em revistas acadêmicas nacionais e internacionais, como: Revista de Economia Política,Revista Brasileira de Economia, Estudos Econômicos, Economia & Sociedade, Nova Economia, Re-vista Análise Econômica, Economia Aplicada e Journal of Post Keynesian Economics. É pesquisadornível 1 do CNPq e consultor ad hoc da Capes, da Faperj e do CNPq.

Luiz Fernando de PaulaProfessor Adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro(FCE/UERJ). É doutor em Economia pela UNICAMP, com pós-doutoramento pelo St Antony’s Colle-ge, Universidade de Oxford. Tem publicado extensamente em diversas revistas acadêmicas, como Re-vista de Economia Política, Estudos Econômicos, Revista Brasileira de Economia, Revista deEconomia Contemporânea, Economia e Sociedade, Journal of Post Keynesian Economics, Revista dela CEPAL e Banca Nazionale del Lavoro Quarterly Review. É coorganizador e autor de diversos livros,entre os quais destacam-se “Monetary Union in South America: Lessons from EMU” (Edward Elgar,2003), “Agenda Brasil” (Manole, 2003), “Globalização Financeira: Ensaios de Macroeconomia Aber-ta” (Vozes, 2004) e “Novo-desenvolvimentismo” (Manole, 2005). É pesquisador nível 1 do CNPq econsultor ad hoc da Capes e CNPq.

Rogério StudartProfessor Adjunto licenciado do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ), é atualmente Diretor Executivo para Brasil e Suriname no Banco Interamericano de Desenvol-vimento (BIRD). Graduado em Economia pela Faculdade de Economia e Administração da UFRJ(1983), Mestre em Economia pelo Instituto de Economia Industrial da UFRJ e Ph.D. em Economia pelaUniversity of London, Londres, Inglaterra (1992). Sua tese de Doutorado recebeu o Sayers Prize comoa melhor tese na área de Economia Monetária pela Universidade de Londres no biênio 1992-1993, ten-do sido publicada como livro, com o título Investment Finance in Economic Development, pela editoraRoutledge, Londres e Nova York (1995). É coautor de outros quatro livros e tem artigos publicados emrevistas especializadas no Brasil e no exterior, entre as quais Revista de Economia Política, EstudosEconômicos, Journal of Post Keynesian Economics, Review of Political Economy e Revista Investiga-ciones Económicas.

Os Autores 385

A MOEDA E O SISTEMAMONETÁRIO

INTRODUÇÃO

O primeiro objetivo deste capítulo é definir o que é moeda, identificar as suasfunções e características essenciais. A moeda, em economias capitalistas mo-dernas, deve desempenhar as funções de meio de troca, unidade de conta e re-serva de valor. Para tanto, deve possuir algumas características físicas eeconômicas que possibilitam o desempenho de tais funções. Posteriormente,mostra-se que não somente o Banco Central, mas também os bancos comer-ciais podem criar moeda. Define-se, então, que o conjunto de instituições cria-doras de meios de pagamento constitui o sistema bancário ou monetário deuma economia.

Importantes questões são ainda tratadas no capítulo, entre elas o significa-do do termo liquidez, que é o atributo que qualquer ativo possui, em maior oumenor grau, de conservar valor ao longo do tempo e de poder ser convertidoem moeda. Por último, apresentam-se algumas definições cujo entendimentoé essencial para o bom desempenho em um curso de economia monetária e fi-nanceira. São apresentados os conceitos de base monetária, encaixes bancá-rios e operações de redesconto. Todas essas definições são estudadas atravésde argumentos econômicos e através do uso de balanços estilizados dos ban-cos comerciais.

1.1. A MOEDA E SUAS FUNÇÕES

A moeda é um objeto que responde a uma necessidade social decorrente da di-visão do trabalho. A divisão social do trabalho característica da economia ca-pitalista moderna especializou unidades de produção e indivíduos. Os agenteseconômicos se tornaram, assim, extremamente interdependentes. Necessitamfazer inúmeras compras e vendas em períodos, às vezes, bastante curtos. Umasociedade sem moeda teria uma vida econômica pouco ágil. O tempo para seconcretizar uma transação comercial aumentaria demasiadamente, e o desgas-te físico e mental para se realizar tal operação seria, talvez, insuportável. Porexemplo, diante de uma chuva inesperada, um indivíduo desejoso de adquirir

CAPÍTULO

1

um guarda-chuva e que tivesse um excedente em laranjas teria que encontrar alguém que tivesse um ex-cedente de guarda-chuvas e que desejasse trocar, naquele momento, uma parcela desse excedente porlaranjas. Esse tipo de coincidências é chamado de coincidência mútua e complementar de necessida-des. Elas podem ocorrer, mas certamente são raras e sua busca desgasta física e mentalmente os interes-sados em transações tão específicas.

As trocas diretas somente seriam eficazes em sociedades com economias primitivas, onde os indi-víduos e/ou grupos familiares fossem basicamente autossuficientes; isto é, onde a divisão do trabalhopraticamente inexistisse: uma sociedade em que cada indivíduo produzisse o que necessita e transacio-nasse somente quando houvesse um excedente, eventual, não planejado da sua produção. Nessa socie-dade, um indivíduo não necessita realizar transações para se proteger do frio, para comer, para acendero fogo. Quando (e se) a transação do seu excedente produtivo ocorrer, ele pode obter uma satisfação ex-tra, além das suas necessidades básicas. O agente não depende da realização de uma transação paraatender as suas necessidades. A produção individual ou familiar garante a satisfação de necessidades.As transações, quando realizadas, gerariam satisfação extra. Assim, no regime de trocas diretas, umatransação é, ao mesmo tempo, venda de uma mercadoria e compra de uma outra.

Em uma economia monetária, os agentes recebem suas remunerações em moeda e podem, portan-to, fazer planos mais flexíveis. Adquirem liberdade para comprar o que desejarem e quando desejarem,em geral, sem qualquer perda de tempo ou o desgaste físico e mental com as dificuldades em realizartransações que requerem coincidências muito específicas. Quando desejam comprar guarda-chuvas,utilizam moeda, que possui aceitação geral a qualquer tempo. A troca com intermediação monetária se-para as transações comerciais em operações de compra e operações de venda, permitindo um sistema detrocas indiretas. É muito mais fácil vender mercadorias e/ou serviços por moeda e, posteriormente,comprar outras mercadorias e/ou serviços pagando em moeda do que trocar coisas diretamente por coi-sas diferentes. A função de intermediário de trocas é uma função básica da moeda. Ao permitir quevendas e compras sejam feitas em datas diferentes, a moeda exerce a função de meio de pagamento. Amoeda possui além desta função, mais duas: unidade de conta e reserva de valor. A importância da fun-ção meio de troca/meio de pagamento já foi destacada: é a função que elimina as fricções das transaçõescomerciais que seriam marcantes em sociedades rudimentares.

A função unidade de conta é extremamente importante. Nas sociedades capitalistas modernas, a di-visão do trabalho transformou a produção de mercadorias e serviços em um processo complexo. Por ve-zes, inúmeras firmas participam da produção de uma única mercadoria (automóveis, por exemplo).Assim sendo, é necessário que existam instrumentos que coordenem as decisões de produção desses di-versos agentes econômicos. São os contratos estabelecidos entre tais agentes que possibilitam a refina-da coordenação que é necessária entre os participantes desse complexo processo produtivo. Os contra-tos entre os trabalhadores e as firmas fixam as tarefas que serão desempenhadas, o número de horas dajornada de trabalho, o salário-monetário a ser recebido, entre outros quesitos. Os contratos entre as fir-mas estabelecem as datas de entregas de insumos, as suas especificações técnicas, o valor monetáriodos pagamentos a serem feitos pelo comprador etc. Os contratos entre as firmas e os bancos fixam o li-mite de crédito entre as partes, a taxa de juros, os pagamentos mínimos que podem ser efetuados pelaempresa e muito mais. Percebe-se, assim, que há algo que é comum a todos os contratos: a unidade demedida monetária da economia.

Os contratos estabelecem fluxos de mercadorias e/ou serviços contra o pagamento em moedaem uma determinada data. Os contratos não poderiam existir sem uma unidade de conta que possi-bilitasse a determinação da quantidade de unidades monetárias que liquidariam as suas obrigações.Consequentemente, a divisão acentuada do trabalho e o aumento da produtividade não teriam ocor-rido sem um apurado sistema de coordenação, que é executado pelo conjunto de contratos de umaeconomia. Este, por sua vez, depende da função unidade de conta da moeda para existir. Tal funçãotambém é essencial para as transações à vista. Elas envolvem um contrato informal de recebimentode um produto e/ou serviço e um pagamento em unidades monetárias. As transações à vista ocor-rem, por exemplo, em um restaurante, em um supermercado ou, ainda, em um salão de cabeleireiro.O fato de não existir algum documento assinado não isenta as partes de suas obrigações; o dever da

2 A Moeda e o Sistema Monetário ELSEVIER

parte que está obtendo a mercadoria e/ou serviço é fazer o pagamento de acordo com a unidade deconta estabelecida a priori.

A forma de liquidar uma obrigação contratual (que se refere ao pagamento de um número determi-nado de unidades monetárias) é através do uso da moeda corrente. A moeda de conta, ou unidade deconta contratual, é a representação intangível da moeda; a moeda como meio de troca ou meio de paga-mento é sua representação concreta. A função moeda de troca deriva da função moeda de conta. A exis-tência da moeda de troca é requerida porque se atribuem a todas as mercadorias, serviços e ativos deuma economia valores na forma de moeda de conta. A moeda de conta que aparece no conjunto de con-tratos estabelece qual será a moeda corrente de uma economia. Assim, a moeda é aceita, em geral, portodos em todas as transações. Caso existam substitutos perfeitos para a moeda, tal como os depósitos àvista nos bancos comerciais (que permitem pagamentos com cheques), tais substitutos também terão apropriedade de liquidar dívidas contratuais, e também serão considerados moeda.

A função unidade de conta da moeda, que aparece em todos os contratos de uma economia, expressaa ideia de que o valor da quantidade de moeda que é capaz de liquidar a dívida estabelecida no contrato,em uma determinada data futura, possuirá aproximadamente a mesma capacidade de compra do presente(no momento da assinatura do contrato). Portanto, a unidade de conta, enquanto representação de valoraos olhos do público, deve ser estável. Consequentemente, a moeda pode se tornar também reserva de va-lor. A função reserva de valor decorre da existência de amplos mercados futuros e à vista na economia.No momento em que um agente econômico recebe recursos na forma monetária, ele ganha o direito de re-ter poder de compra, em tese, indefinidamente sem temer perdas. A função reserva de valor dá ao detentorde moeda a possibilidade de reter recursos por períodos longos sem que tal atitude lhe imponha qualquercusto (de carregamento). Contrariamente, em uma economia em estado hiperinflacionário, a moeda perdeesta função de reserva de valor. Reter moeda nessa economia seria uma atitude custosa ao agente detentor,pois a moeda perderia poder de compra ao longo do tempo. Em uma economia hiperinflacionária, riquezaem forma monetária perde poder de compra na mesma proporção da variação dos preços.

1.1.1. AS CARACTERÍSTICAS FÍSICAS E ECONÔMICAS DA MOEDA

Para desempenhar suas três funções, a moeda deve possuir algumas características que são essenciais.Características físicas e econômicas são necessárias ao desempenho das funções meio de troca, unidadede conta e reserva de valor. Como foi dito, a unidade de conta que aparece nos contratos se torna moedacorrente, mas para isso é necessário que este objeto que será moeda corrente possua os seguintes atribu-tos econômicos: custo de estocagem e custo de transação negligenciáveis (aproximadamente nulo). Otrigo, por exemplo, tem reduzidas chances de se tornar moeda em uma economia desenvolvida porqueo seu custo de estocagem não é desprezível e seu custo de transporte ao mercado (custo de transação)pode ser elevado. O trigo, o sal, a soja, dentre outros, se eleitos socialmente como moeda, onerariam emdemasia seus possuidores.

A moeda deve também possuir determinadas características físicas. Deve ser divisível, durável,difícil de falsificar, manuseável e transportável. A divisibilidade é necessária porque a moeda deve po-der ser fracionada em múltiplos e submúltiplos, para que as transações que exigem valor fracionado outransações que movimentem grandes valores sejam realizadas sem custos adicionais. A moeda deve serdurável, isto é, deve manter suas características físicas, para que a sua condição de ser aceita de formageneralizada seja mantida e não prejudique o seu último detentor. A moeda deve ser, na medida do pos-sível, difícil de falsificar – já que tal característica aumenta a confiança do público de que não há repro-dução indevida – auxiliando consequentemente a sua aceitação generalizada. A moeda deve ser manu-seável e transportável, para que a função meio de troca não seja prejudicada, impondo ao seu detentorcustos de transação.

Quando uma moeda possui as características físicas que são essenciais, pode-se dizer que está habi-litada a desempenhar as suas três funções típicas: meio de troca, unidade de conta e reserva de valor.Contudo, possuir tais características não garante necessariamente o desempenho das funções. Por

A Moeda e o Sistema Monetário 3

exemplo, no Brasil, durante o período de inflação alta e crônica, nas décadas de 1980 e na primeira me-tade dos anos 90, a moeda oficial não era utilizada como unidade de conta do sistema de contratos. Ade-mais, somente para períodos bastante curtos (três dias ou, no máximo, uma semana) a moeda desempe-nhava a função de reserva de valor. A moeda oficial era somente meio de troca. Com a instituição doReal, em 1994, e o fim do processo inflacionário, a moeda oficial recuperou todas as suas funções.

Por último, cabe ressaltar que, com o acelerado desenvolvimento tecnológico, particularmente noscampos da informática e telecomunicações, as características necessárias ao bom desempenho das fun-ções típicas da moeda podem existir em objetos de diferentes formas, especialmente em cartões magné-ticos e microchips. Assim, esses objetos podem ser transformados no chamado dinheiro eletrônico. Ocartão de débito automático em conta-corrente é hoje a forma mais comum de dinheiro eletrônico. Háuma tendência mundial de redução de operações com recursos monetários físicos em favor de opera-ções eletrônicas. Os pedágios em estradas e as compras em supermercados, entre muitos outros, podemser facilmente pagos com a utilização de dinheiro eletrônico.

1.2. A CRIAÇÃO DE MEIOS DE PAGAMENTO E O SISTEMA

MONETÁRIO

A moeda de uma economia, ou seja, o conjunto de meios de pagamento, consiste na totalidade de ativospossuídos pelo público que pode ser utilizado a qualquer momento para a liquidação de qualquer com-promisso futuro ou à vista. Sendo assim, os meios de pagamento (MP) somam mais do que o pa-pel-moeda (e a moeda metálica) em poder do público (PMPP); englobam também os depósitos à vistanos bancos comerciais (DVBC). Então:

MP = PMPP + DVBC

O papel-moeda (e a moeda metálica) em poder do público (PMPP) também é chamado de moedamanual. Os depósitos à vista nos bancos comerciais (DVBC) são chamados de moeda escritural. Logo,pode-se dizer que a soma da moeda manual com a moeda escritural de uma economia é igual aos seusmeios de pagamento, isto é:

MP = Moeda Manual + Moeda Escritural

Os saldos de cartões de crédito não são considerados meios de pagamento porque são tidos apenascomo um meio de se obter crédito, que deverá ser honrado com moeda escritural ou manual em umadata futura. Como será visto, nem toda criação de crédito significa criação de moeda – e o pagamentofeito através do uso de um cartão de crédito significa tão-somente a obtenção de crédito sem qualquercriação de moeda.

O Banco Central tem o poder instituído legalmente para emitir papel-moeda. Entretanto, nem todoo papel-moeda emitido (PME) transforma-se em PMPP. O PME menos a caixa do Banco Central (CBC)é igual ao montante de papel-moeda em circulação (PMC), ou meio circulante. Os bancos comerciaisretêm parte do PMC para fazer seu caixa. Assim, o PMC menos o caixa dos bancos (Et), também cha-mado de encaixe técnico, é que é igual ao PMPP. Então:

PME – CBC = PMC

PMC – Et = PMPP

PME = CBC + Et+ PMPP

4 A Moeda e o Sistema Monetário ELSEVIER

1.2.1. A CRIAÇÃO DE MOEDA ESCRITURAL

Os bancos comerciais são instituições autorizadas pelo Banco Central a receber depósitos à vista. Seuma instituição está autorizada a receber depósitos à vista, que são geralmente aceitos para liquidaçãode pagamentos, verdadeiramente ela está autorizada a criar moeda escritural. Quando um indivíduotoma um empréstimo junto a um banco, essa instituição realiza uma operação contábil de criação dedepósitos à vista. Para conceder um crédito no valor de 5.000 unidades monetárias (u.m.), o banco lan-ça no lado do ativo do seu balancete “empréstimo no valor de 5.000 u.m.”. No lado do passivo, lança“depósito à vista no valor de 5.000 u.m.”. O banco simplesmente abre uma conta-corrente com saldo novalor do empréstimo concedido e emite um talão de cheques para uso do devedor. O banco, ao concedero crédito, criou meios de pagamento. O talão de cheques em posse do devedor, em si, não é moeda, maslhe dá o direito de usar o valor de 5.000 u.m. para fazer pagamentos, exatamente como poderia fazer setivesse em mãos moeda manual. O banco pode criar depósitos à vista com uma simples operação con-tábil porque nem todos aqueles que possuem direito de saque irão exercer esse direito simultaneamen-te. Este mecanismo será estudado, em detalhes, no Capítulo 16. Por ora, basta apontar que há um índiceestatisticamente considerado seguro da relação entre reservas técnicas em moeda que um banco devepossuir para atender as operações de saque e os depósitos à vista existentes. Logo, o montante de depó-sitos à vista pode ser muito maior que o montante de reservas bancárias em moeda. Essa é a explicaçãode como um banco pode criar depósitos à vista, ou seja, como pode criar moeda. O Quadro 1.1 mostracomo esta operação é contabilmente realizada.

O sistema formado pelas instituições que podem criar moeda é chamado de sistema monetário.Então, o sistema monetário (ou sistema bancário) de uma economia é formado pelos seus bancos co-merciais e pelo seu Banco Central. Os primeiros criam moeda escritural, o último cria moeda manual.As demais instituições financeiras não autorizadas a receber depósitos à vista, tais como bancos de de-senvolvimento, bancos de investimento, sociedades de poupança (cadernetas de poupança), formam osistema financeiro não monetário.

1.3. OS AGREGADOS MONETÁRIOS E O CONCEITO DE LIQUIDEZ

As autoridades monetárias (o Banco Central) emitem papel-moeda. Contudo, somente parte da quantida-de dos recursos emitidos se encontra em poder do público; uma parcela se encontra no interior do próprioBanco Central e outra parcela está no interior dos bancos comerciais. A rigor, dentre o total emitido peloBanco Central, apenas o valor que vai para o caixa dos bancos e para as mãos do público não bancário éque se constitui em emissão monetária. O que permanece no caixa do Banco Central não é, legalmente,

A Moeda e o Sistema Monetário 5

Ba lance te Es t i l i zado do Banco Comerc ia l

Ativo Passivo

(1) Empréstimos novo 5.000 u. m.

(2) Saldo das demais contas

(1) + (2)Total do Ativo =

Depósitos à vista novo 5.000 u. m. (3)

Saldo das demais contas (4)

(3) + (4)Total do Passivo =

QUADRO 1.1Uma Operação Contábil-Bancária de Concessão de Crédito e de Criação de Meios de Pagamento

moeda. As emissões de moeda são um item do passivo do Banco Central em favor dos bancos ou do pú-blico não bancário. Nenhuma instituição emite passivos a seu próprio favor, por isso, papel pronto a serlançado como moeda, mas que ainda não tenha sido, é apenas papel, não é moeda. Assim, a quantidade demoeda manual é menor do que a quantidade de papel-moeda criada pelo Banco Central. É importante no-tar que somente se considera moeda manual a quantidade de recursos emitidos que não está no interior dosistema monetário, ou seja, a quantidade que efetivamente está em poder do público não bancário.1 Caberessaltar ainda que a estatística da quantidade de PMPP engloba os recursos que estão em posse dos go-vernos (central, regional e local), assim como das instituições financeiras não monetárias, dentre outras.

A capacidade de demanda de produtos e serviços de uma sociedade é, a princípio, representada pelasoma da quantidade de moeda manual com a de moeda escritural presente na economia. Entretanto, tem setornado díficil precisar com exatidão a capacidade potencial de demanda do público, porque existem ativosfinanceiros que podem ser convertidos em moeda com um custo de transação desprezível e em tempo bas-tante curto. Tais ativos são, por exemplo, os depósitos a prazo que possuem formas, regras de aplicação e re-munerações diversas. Em princípio, um depósito a prazo não poderia ser resgatado a qualquer data. Contu-do, como estão lastreados em ativos financeiros que possuem um mercado secundário (de revenda) organi-zado, tais ativos podem ser revendidos e o detentor do depósito a prazo pode transformá-lo em depósito àvista (em tempo bastante curto e com algum custo, em geral, inferior à remuneração auferida).

Os meios de pagamento (PMPP + DVBC) são ativos com plena liquidez, isto é, desempenham emsua plenitude a função reserva de valor e podem, em qualquer momento, liquidar dívidas estabelecidasem contratos formais ou obrigações advindas de transações realizadas em mercados à vista. Todo ati-vo que possui essas características especiais é considerado moeda. A liquidez, portanto, é o atributo quequalquer ativo possui, em maior ou menor grau, de (i) conservar valor ao longo tempo e (ii) ser capaz deliquidar dívidas.

Nos Estados Unidos, os títulos emitidos pelo Tesouro são ativos considerados líquidos porque con-servam valor e podem ser facilmente convertidos em dólares com o intuito de liquidar dívidas. Em con-traste, um bem de capital (máquinas e equipamentos) é geralmente considerado um ativo ilíquido por-que seu valor de revenda pode estar muito abaixo do valor original de aquisição e dificilmente será con-vertido em moeda, com o objetivo de saldar compromissos, dada a dificuldade de haver potenciais de-mandantes. Uma questão importante deve ser observada. Há uma tendência recente dos mercados fi-nanceiros de criação de ativos com alta liquidez, o que torna quase equivalente possuir um depósito aprazo lastreado nesses ativos ou um depósito à vista, com a vantagem de que o primeiro paga juros aoseu detentor. O Box 1.1 apresenta uma taxonomia de ativos segundo graus de liquidez.

As estatísticas de diversos agregados monetários e financeiros são, dessa forma, necessárias. Sãoúteis, por exemplo, para se avaliar qual a força dos agentes econômicos para gerar inflação devido a suacapacidade de demanda. Com essas estatísticas, pode-se saber qual é o portfólio (carteira de ativos) dopúblico em cada momento. Podem ser definidas inúmeras estatísticas dessa natureza. Em geral, defi-ne-se como meios de pagamento a soma do papel-moeda em poder do público com o total de depósitosà vista. Tal estatística é chamada de M1. O Box 1.2 resume as estatísticas M1, M2, M3 e M4, segundo ametodologia do Banco Central do Brasil.

Em regimes de alta inflação, tal como ocorreu no Brasil até 1994, M1 tende a ser bastante reduzidoem relação a M2, M3 e M4, porque o público busca abandonar os depósitos à vista em favor de aplica-ções em fundos lastreados em títulos, públicos e privados, incluídos nos agregados M2 a M4. Com a es-tabilização de preços, por outro lado, M2, por exemplo, se reduziu e M1 aumentou (M2, à época, era asoma de M1 com os depósitos a prazo mais os títulos públicos). A análise da relação M1/M2 foi neces-sária para auxiliar o cálculo do processo de remonetização da economia brasileira no início do PlanoReal, em 1994. Monetizar significa elevar o estoque de meios de pagamento de uma economia. O Box1.3 informa onde podem ser encontradas as estatísticas de agregados monetários e financeiros da eco-nomia brasileira; e o Box 1.4, por sua vez, mostra a evolução de M1 e M2 durante o ano de 1994, o anode implementação do Plano Real (de acordo com a definição de M1 e M2 que vigoravam à época).

6 A Moeda e o Sistema Monetário ELSEVIER

1. Estas relações já foram apresentadas nas equações: PME – CBC = PMC e PMC – Et = PMPP.

A Moeda e o Sistema Monetário 7

O economista inglês John R. Hicks, em seulivro Critical Essays in Monetary Theory,publicado pela editora da Universidade deOxford em 1967, classificou os ativos daeconomia, segundo os seus graus de liqui-dez, em três categorias:

Ativos plenamente líquidos. Incluem amoeda e quaisquer outros ativos que pos-sam, eventualmente, ser convertidos emmoeda sem perda de tempo e a uma taxade conversão fixa e conhecida. Assim, ati-vos plenamente líquidos são todos aque-les objetos que são reserva de valor e quepodem ser utilizados para cumprir obriga-ções contratuais e realizar transações àvista. Por exemplo, os depósitos à vista(que podem ser transferidos em paga-mento através de cheques ou com cartõesde débito).

Ativos líquidos. Incluem, entre outros,títulos públicos, ouro e obras de arte. Estesobjetos são transacionados em mercadosbem organizados, isto é, mercados cujoslocal e horário de funcionamento são co-nhecidos e possuem uma quantidade bas-tante ampla de potenciais demandantes.Quando um indivíduo adquire um ativo lí-quido, é porque possui planos de revenda.Sabe que incorrerá em algum custo demanutenção e/ou carregamento do ativo,mas espera obter ganhos na venda do ati-vo que sejam superiores a esses custos.

Ativos ilíquidos. Os mais importantessão as máquinas (ativos de capital) adqui-ridas pelas empresas e os bens duráveisdemandados por consumidores. As em-presas demandam tais objetos porque es-

peram obter lucros compensadores com avenda das mercadorias que suas máqui-nas produzem. Os consumidores adqui-rem bens duráveis porque objetivam au-mentar a sua satisfação com o fluxo deserviços que tais objetos podem gerar du-rante períodos mais longos. Quando umativo ilíquido é adquirido, seu possuidornão possui planos de revenda. Tais ativossão transacionados em mercados pobre-mente organizados. Em geral, quando seconsegue revendê-los, seus preços estãomuito aquém dos preços de aquisição.

Paul Davidson, em seu livro Money andthe Real World, publicado pela Macmillanem 1972, ressaltou que certamente asfronteiras entre essas classes de ativosnão são claras, absolutas e imutáveis aolongo do tempo. O grau de liquidez de umativo depende do grau de organização domercado onde é transacionado, o que,por sua vez, depende das característicasdo mercado. As práticas sociais e a exis-tência de instituições determinam, em últi-ma instância, o grau de liquidez de um ati-vo. A própria moeda pode deixar de serconsiderada um ativo plenamente líquido.Em economias com hiperinflações agu-das, tal como a alemã no início da décadade 1920, a moeda nacional, o marco, dei-xou de ser aceita como intermediária detrocas, reserva de valor e unidade de con-ta. A moeda perdia liquidez na mesma ve-locidade em que a inflação aumentava. Ainflação alemã, apenas no mês de outu-bro de 1923, foi de aproximadamente29.500%.

A LIQUIDEZ DOS ATIVOS DA ECONOMIA

BO

X1

.1

M1 = PMPP + depósitos à vista

M2 = M1 + depósitos especiais remunerados + depósitos de poupança + títulos

emitidos por instituições depositárias

M3 = M2 + quotas de renda fixa + operações compromissadas registradas no Selic

M4 = M3 + títulos públicos de alta liquidez

Fonte: Banco Central do Brasil, nota técnica “Reformulação dos Meios de Pagamento – notas meto-dológicas”, de julho de 2001.

AS ESTATÍSTICAS MONETÁRIAS

BO

X1

.2

1.4. A BASE MONETÁRIA, OS ENCAIXES E O REDESCONTO

A base monetária (B) é a soma do papel-moeda em poder do público (PMPP) com as reservas totais dosbancos comerciais (ET). A base monetária é, então, igual ao total de moeda colocada em circulação peloBanco Central. É, por vezes, chamada de estatística M0 (eme zero). Então:

8 A Moeda e o Sistema Monetário ELSEVIER

O Banco Central do Brasil divulga diversas es-tatísticas de agregados monetários. São divul-gadas pelo Boletim do Banco Central, que épublicado mensalmente, e podem ser acessa-

das, também, via Internet (o endereço é http://www.bcb.gov.br). São divulgados mensalmen-te o total de meios de pagamento, as estatísti-cas de M2, M3 e M4, entre muitas outras.

AS ESTATÍSTICAS MONETÁRIAS DA ECONOMIA BRASILEIRA

BO

X1

.3

A EVOLUÇÃO DE M1 E M2 EM 1994

BO

X1

.4

Antes do Plano Real Após o Plano Real

Antes do Plano Real Após o Plano Real

Evolução de M1 – 1994

0

5000

10000

15000

20000

25000

EmMilhõesde

Reais

EmMilhõesde

Reais

Evolução de M2 – 1994

0

50000

100000

150000

200000

11 22 33 44 55 66 77 88 99 1010 1111 1212

Distribuição dos Agregados Jan/94

M19%

M291%

Distribuição dos Agregados Dez/94

M276%

M124%

Distribuição dos Agregados Jan/94

M2 – M190%

M110%

Distribuição dos Agregados Dez/94

M132%

M2 – M168%

B = PMPP + ET = PMC

Os bancos comerciais mantêm reservas (ou realizam encaixes, Et) para poderem honrar seus compro-missos com o público e, consequentemente, gerar confiança na conversibilidade dos seus depósitos. Osbancos realizam também encaixes junto às autoridades monetárias. Tais encaixes são impostos externa-mente, ou encaixes compulsórios; e aqueles que são decididos internamente, ou encaixes voluntários.

As reservas compulsórias (Ec) são determinadas pelas autoridades monetárias, que estabelecem umpercentual dos depósitos à vista a ser recolhido ao Banco Central na forma de moeda. Historicamente,essa obrigação tem sido exigida por regulamentação das autoridades monetárias, objetivando mostrarao público que os bancos são capazes de saldar seus compromissos com os clientes e, assim, evitar pâ-nicos e corridas de saques contra os mesmos. As reservas bancárias (o caixa dos bancos, Et) são de outranatureza. São decididas pelos próprios bancos para que possam operar diariamente. Em verdade, osbancos buscam manter a razão encaixe técnico/depósitos à vista em um determinado intervalo que con-sideram seguro, de modo a garantir a manutenção das suas operações de saques quotidianamente.

Os encaixes dos bancos, junto às autoridades monetárias, portanto, podem ser de caráter voluntá-rio. Recursos são mantidos no interior das agências bancárias (Et) para cobrir diferenças entre saques e de-pósitos que, porventura, possam ocorrer. Recursos podem também ser enviados voluntariamente (Ev)para a câmara de compensação de cheques (que está sob a responsabilidade da autoridade monetária) evisam a cobrir eventuais diferenças entre cheques emitidos a favor e contra o banco. Assim como, emuma parte do dia, podem ocorrer mais saques do que depósitos nas agências de um determinado banco,em um determinado dia, podem ocorrer mais cheques emitidos contra esse banco (saques) do que che-ques emitidos a favor (depósitos). Em resumo, o encaixe total dos bancos (ET) possui três componentes:

ET = Et + Ec + Ev

RELAÇÕES FUNDAMENTAIS

PME – CBC = PMC

PMC – Et = PMPP

PME = CBC + Et+ PMPP

Como B = PMPP + ET e ET = Et + Ec + Ev

então: B = PMPP + Et + Ec + Ev

B = PMC - Et + Et + Ec + Ev

Logo:

B = PMC + Ec + Ev

PME = Papel-moeda emitidoCBC = Caixa do Banco CentralPMC = Papel-moeda em circulaçãoPMPP = Papel-moeda em poder do públicoET = Encaixe total dos bancos comerciaisEt = Encaixe técnico dos bancos comerciais (o caixa dos bancos)Ec = Encaixe compulsório dos bancos comerciais junto ao Banco CentralEv = Encaixe voluntário dos bancos comerciais junto ao Banco Central

A Moeda e o Sistema Monetário 9

Quando os bancos encontram-se em dificuldades, por exemplo, quando a razão encaixe técnico/de-pósitos à vista está muito baixa, podem pedir auxílio ao Banco Central. Genericamente, tem-se chama-do tal auxílio de operação de redesconto. Contudo, é necessário distinguir uma operação propriamentedita de redesconto de uma operação de concessão de crédito. O resdesconto ocorre quando o BancoCentral compra títulos de um banco. Esta é uma operação de crédito, colateralizada por um ativo fi-nanceiro. O Banco Central empresta ao banco tomador um valor inferior ao do ativo dado em garantia.Quando o banco for saldar o empréstimo, recomprará o ativo pelo seu valor pleno. A diferença entre osdois valores exprime a taxa de redesconto, isto é, o custo para o tomador do empréstimo feito pelo Ban-co Central. A aquisição de títulos por parte do Banco Central expande, a princípio, os encaixes do bancoque necessitou ser socorrido. O processo alternativo é, simplesmente, um empréstimo direto do BancoCentral ao banco que se encontra em dificuldade. A função do Banco Central conhecida como empres-tador de última instância é exercida através dessas operações. Tal função será apresentada no Capítulo2 e detalhada em outros capítulos do livro.

Um ponto crucial dessas operações é a determinação da taxa (de juros) de redesconto que pode serfixada em um patamar punitivo. Uma taxa punitiva é aquela que é maior do que a taxa de juros que re-munera os ativos que o banco socorrido possui. A compra por parte do Banco Central de títulos (ou aconcessão de um empréstimo) com taxas punitivas desestimula o banco que recebeu o auxílio a mantera posse dos ativos cuja compra reduziu as suas reservas. Assim, haveria um incentivo à venda dessesativos e, consequentemente, a recomposição de reservas para um patamar mais seguro. A manutençãodesses ativos em carteira transformaria tal estratégia em uma posição que geraria perdas cumulativaspor parte do banco que estaria pagando taxas de juros punitivas ao Banco Central.

1.5. O BALANCETE DOS BANCOS COMERCIAIS

E A CRIAÇÃO DE CRÉDITO E MOEDA

Os bancos possuem as seguintes fontes de recursos: os recursos próprios ou patrimônio líquido, os de-pósitos à vista e a prazo, os empréstimos tomados no exterior, os auxílios do Banco Central (redescon-tos e empréstimos) e outras fontes menos importantes. Esse é o passivo bancário. O ativo dos bancos(suas aplicações) é constituído principalmente por: empréstimos ao setor privado, encaixes, títulos pú-blicos e privados, imobilizado bancário (ou seja, suas instalações físicas) e outras aplicações de menorrelevância. O Quadro 1.2 mostra de forma estilizada o balancete dos bancos comerciais.

O mecanismo de criação de moeda por parte dos bancos comerciais já foi apresentado anteriormen-te. Entretanto, devido a sua importância, repete-se tal explicação com novos detalhes. Agora, pode-se

10 A Moeda e o Sistema Monetário ELSEVIER

Ativo Passivo

(1) Empréstimos

(2) Reservas bancárias

(3) Títulos públicos e

privados

(4) Imobilizado

(5) Outras aplicações

Passivo Monetário

Passivo Não monetário

Depósitos à vista (6)

Depósitos a prazo (7)Empréstimos internos e do exterior (8)

Redescontos e empréstimos (9)

Outras fontes (11)Patrimônio líquido (10)

Total do Ativo Total do Passivo

QUADRO 1.2Balancete Estilizado de um Banco Comercial

refletir sobre tal operação já tendo conhecimento das principais aplicações e fontes dos bancos co-merciais. Quando um banco concede um empréstimo a um cliente, realiza uma operação meramentecontábil no seu balanço. O banco abre uma conta-corrente em nome do seu cliente-tomador do emprés-timo e realiza todos os procedimentos regulares, tais como a emissão do talão de cheques e do cartão depagamento (ou cartão de débito). Faz um lançamento na conta depósitos à vista no valor do empréstimo(do lado do passivo) e faz um lançamento de mesmo valor na conta empréstimos (do lado do ativo). Aconversibilidade dos depósitos à vista em meio circulante, se desejada, é suposta pelos demais agenteseconômicos, sem qualquer dúvida. Por isso, estes aceitam liquidar dívidas e vender mercadorias e/ouserviços recebendo em contrapartida a titularidade sobre um depósito.

Um banco, portanto, ao conceder crédito, criou depósitos à vista, criou moeda escritural. É impor-tante destacar que não é necessário que um banco receba depósitos anteriormente à operação de em-préstimo para que possa realizar tal operação: basta que seja autorizado pelo Banco Central a receber(criar) depósitos à vista e os certificados desses depósitos (seus cheques e seu cartão de débito) gozemde credibilidade perante os demais agentes. É importante ressaltar, ainda, que toda vez que um bancoconcede crédito está criando moeda. Contudo, crédito pode ser concedido por qualquer agente econô-mico. Um estabelecimento comercial que aceita parcelar suas vendas com cheques pré-datados conce-de crédito. Uma mercearia que aceita que seus clientes paguem seus gastos ao final de cada mês conce-de crédito. Entretanto, somente a concessão de crédito bancário é criação de moeda.

RESUMO

1. Em condições ideais, a moeda oficial de uma economia deve possuir três funções. A função meio de trocaé decorrente da acentuda divisão do trabalho que é uma das mais importantes características das econo-mias capitalistas modernas. O sistema de contratos é necessário para coordenar a produção realizada sobtais condições. A função unidade de conta é necessária para que contratos sejam firmados entre as partes.A função reserva de valor concede ao agente detentor de moeda a liberdade para adiar gastos e/ou reini-ciá-los.

2. É considerado moeda em uma economia todo ativo capaz de liquidar quaisquer dívidas contratuais futuras ouà vista. Portanto, todo ativo com plena liquidez é considerado moeda, isto é, meio de pagamento. A liquidez éo atributo que qualquer ativo possui, em maior ou menor grau, de conservar valor ao longo do tempo e de sercapaz de liquidar dívidas.

3. O conceito de base monetária é equivalente ao conceito de papel-moeda posto em circulação pelo Banco Cen-tral mais os depósitos (voluntários e compulsórios) dos bancos junto às autoridades monetárias. A base mone-tária é, portanto, o somatório do papel-moeda em poder do público com o total de reservas dos bancoscomerciais. Os bancos mantêm reservas técnicas, compulsórias e voluntárias. Quando um banco está em difi-culdade em virtude da falta de reservas, o Banco Central pode socorrê-lo através de operações de redescontode títulos e/ou empréstimos diretos.

4. Quando um banco concede um empréstimo, realiza uma operação meramente contábil no seu balancete. Fazum lançamento na conta “depósitos à vista” no valor do empréstimo (do lado do passivo) e faz um lançamentode mesmo valor na conta “empréstimos” (do lado do ativo). Assim, os agentes econômicos aceitam liquidardívidas recebendo em contrapartida a titularidade sobre um depósito à vista. Um banco, portanto, ao concedercrédito, criou meios de pagamento, criou moeda escritural.

5. Os bancos comerciais e as autoridades monetárias podem, portanto, criar meios de pagamento. O Banco Cen-tral cria a chamada moeda manual. Os bancos comerciais criam a moeda escritural. Sendo assim, o sistema fi-nanceiro pode ser dividido em dois grandes blocos: (a) sistema monetário, que é formado pelas instituiçõesque criam meios de pagamento e (b) sistema não monetário, que é formado pelas instituições financeiras quenão estão autorizadas a receber depósitos à vista (isto é, que não podem criar moeda).

A Moeda e o Sistema Monetário 11

TERMOS-CHAVE

� Moeda � Meio de Troca � Unidade de Conta� Reserva de Valor � Contratos Futuros � Meios de Pagamento� Depósitos à Vista � Moeda Manual � Moeda Escritural� Reservas Bancárias � Crédito � Liquidez� Base Monetária � Redesconto/Empréstimos � Agregados Monetários� Sistema Financeiro � Sistema Monetário � Sistema Não monetário

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Galbraith, J.K. (1997). Moeda: de onde veio, para onde foi. São Paulo: Editora Pioneira.Keynes, J.M. (1971 a 1989). Treatise on Money. In: The Collected Writings of John Maynard Keynes, coleção

em 30 volumes, volume V. Moggridge, D. (editor). London: Macmillan.No primeiro capítulo, Keynes mostra que a moeda e o sistema de contratos de uma economia estão íntima e

inevitavelmente relacionados. Ressalta a importância da função unidade de conta para o entendimento do quedeve ser considerado como moeda em uma economia. Tal abordagem é bastante distinta das visões que explicama existência da moeda como decorrência exclusiva da necessidade de um intermediário de trocas na economia ca-pitalista.

Tobin, J. (1992). Money. In: The New Palgrave Dictionary of Money and Finance. Newman, P., Milgate, M.& Eatwell (editors). London: Macmillan.

Em um verbete, criativo e que confronta ideias divergentes, vários aspectos sobre o tema moeda são aborda-dos. Alguns estão relacionados diretamente com o conteúdo deste capítulo, tais como a moeda como uma conven-ção social e as funções da moeda. Outros vão além do seu escopo, entre eles a teoria quantitativa da moeda e a suaneutralidade (que serão abordados em capítulos posteriores deste livro).

12 A Moeda e o Sistema Monetário ELSEVIER

O BANCO CENTRAL E OSISTEMA MONETÁRIO

INTRODUÇÃO

Inicialmente o capítulo apresenta as funções típicas do Banco Central, quesão: emissor de papel-moeda e controlador da liquidez da economia, banquei-ro dos bancos, regulador do sistema financeiro e depositário de reservas inter-nacionais do país. Busca-se mostrar, na medida do possível, como essasfunções podem ser expressas através de um balanço estilizado do Banco Cen-tral. Estudado esse balanço, discute-se com mais detalhes o conceito de basemonetária apresentado no Capítulo 1. Agora são destacadas as operações quefazem com que o volume de base monetária e a quantidade de meios de paga-mento que circulam na economia sejam alterados.

Por último, é deduzido o chamado multiplicador monetário. Ao longo docapítulo conclui-se que os meios de pagamento são um múltiplo da base mo-netária. Portanto, torna-se necessário conhecer o multiplicador monetário daeconomia, que é a razão meios de pagamento/base monetária pois, assim, po-de-se mensurar qual o impacto sobre o total de meios de pagamento de umacontração ou expansão da base monetária.

2.1. O BANCO CENTRAL E SUAS FUNÇÕES TÍPICAS

O Banco Central possui algumas funções típicas: emissor de papel-moeda econtrolador da liquidez da economia, banqueiro dos bancos, regulador do sis-tema financeiro e depositário de reservas internacionais do país. A seguir cadauma dessas funções é apresentada. No Box 2.1 é feita uma breve descrição so-bre a origem histórica dos bancos centrais.

Emissor de Papel-moeda e Controlador de Liquidez. O Banco Central detémo monopólio de emissão de papel-moeda e de cunhagem de moedas metálicas(uma proposta alternativa à manutenção do monopólio de emissão pelo BancoCentral é apresentada no Box 2.2). O Banco Central pode, ainda, controlar aquantidade de papel-moeda em circulação, isto é, o tamanho da base monetá-

CAPÍTULO

2

14 O Banco Central e o Sistema Monetário ELSEVIER

A história mostra que os bancos centraismodernos descendem de bancos priva-dos que financiaram o Estado e o desen-volvimento econômico, em troca de fa-vores especiais e do monopólio de emis-são. Estes bancos foram criados origina-riamente para dar elasticidade ao crédi-to, adquirindo graus de autonomia e ob-jetivos diferenciados em vários períodos.Este é o caso, por exemplo, do Banco daInglaterra e do Federal Reserve, nosEstados Unidos.

O Federal Reserve System (FED) foi cria-do em 1913, com o objetivo de facilitar odesconto de títulos comerciais e realizar ainspeção dos bancos privados, numa épo-ca em que os fluxos monetários irregula-res e a escassez de moeda e crédito difi-cultavam o crescimento econômico. A obri-gação de manter a estabilidade de preçosnão estava entre os objetivos iniciais dobanco. Tal objetivo somente aparece naforma de lei em 1977. Mas está implícitodesde o início que, além de propiciar con-dições favoráveis ao crescimento econô-mico e à redução do desemprego, o FEDdeveria combater tanto a inflação quantoa deflação.

A crise de 1929 levou a uma série demudanças fundamentais nos estatutos doFED, as quais tiveram como objetivo forta-lecer a sua autoridade e a independênciado sistema, em virtude dos fortes interes-ses econômicos e pressões políticas parti-culares. Os bancos privados, tidos comoresponsáveis pela grande depressão e porsuas severas consequências, tiveram suasinfluências sobre as decisões do FED redu-zidas a partir de então.

O Banco da Inglaterra foi fundado em1694, por um ato do Parlamento, com oobjetivo explícito de emprestar dinheiroao Governo, que se encontrava em difi-culdades financeiras. Desde o começo desuas atividades, o Banco da Inglaterradesenvolveu uma estreita associaçãocom o Governo, obtendo grande ascen-dência sobre os demais bancos devidoaos privilégios de que gozava como, por

exemplo, o privilégio da emissão de no-tas bancárias.

O Banco continuou a exercer as suasatividades privadas de banco comercial,assumindo paulatinamente as funçõesde um Banco Central. A facilidade de en-tendimento entre o Governo e o Bancoda Inglaterra é uma das característicasda história monetária inglesa, em quetradicionalmente se procurou resolver asdesavenças antes de anunciar publica-mente qualquer decisão.

Entretanto, foi quando deixaram de serprivados e se tornaram instituições públi-cas que os bancos centrais passaram a sercriticados pela excessiva proximidade emrelação aos governos. Esta proximidade,segundo os seus críticos, tornaria a moedarefém de grupos políticos e criaria, sobre-tudo nas democracias, ameaças inflacio-nárias permanentes.

Para conter essas ameaças inflacio-nárias, difundiu-se, a partir dos anos 80,a tese da independência do Banco Cen-tral que se apoia, em grande medida, nacrença de que existiria uma verdadeirafunção original e natural das autorida-des monetárias, que é perseguir unica-mente a estabilidade de preços. A crençade que existe uma função natural e origi-nal dos bancos centrais não é, contudo,corroborada pela história, tal como foivisto.

É necessário examinar cuidadosamen-te as experiências nacionais para se en-tender as causas que explicam a evoluçãode grande parte dos bancos centrais, ouseja, entender a evolução, desde a épocaem que eram financiadores do desenvol-vimento, aos dias de hoje, em que algunsse tornaram instituições autônomas e sededicam acima de tudo a garantir a esta-bilidade de preços. A tese da autonomiados bancos centrais será discutida em de-talhes no Capítulo 10.

Elaborado com a colaboração de Inês Patrício.

A ORIGEM DOS BANCOS CENTRAIS

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ria. Pode também, como será visto, neste capítulo e nos Capítulos 12 e 13, inibir a criação de moeda pe-los bancos comerciais. Sendo assim, pode controlar a liquidez da economia.

Banqueiro dos Bancos. O Banco Central é responsável pela compensação de cheques, realiza o trans-porte de cédulas e moedas metálicas aos bancos, mantém parte das reservas dos bancos, entre outras ati-vidades de auxílio ao sistema bancário. A função de emprestador de última instância é uma funçãodecorrente da posição de banqueiro dos bancos e que, portanto, deve zelar pela saúde do sistemafinanceiro. O Banco Central deve socorrer os bancos comerciais e as instituições financeiras em difi-culdade, concedendo liquidez aos mesmos através de empréstimos ou redescontando títulos.

Regulador do Sistema Monetário e Financeiro. Muitos bancos centrais regulam as operações dos ban-cos comerciais e de instituições financeiras, tais como os bancos de investimento. Supervisionam osnegócios bancários para proteger os depósitos dos clientes e para garantir a solvência de cada banco emparticular de forma a impedir possíveis crises sistêmicas. O Banco Central pode exigir capital mínimopara a instalação de um banco, pode estabelecer limites para certas operações com o intuito de impedirque os bancos se exponham excessivamente a situações de risco, pode restringir ou impedir certas ope-rações, pode realizar inspeções regulares e intervenções em instituições mal administradas etc.

O Banco Central e o Sistema Monetário 15

Friedrich A. Hayek, considerado um dosmais importantes pensadores liberais doséculo XX, apresentou uma curiosa pro-posta em seu livro Denationalisation ofMoney, publicado em 1976, pelo Institu-te of Economic Affairs. Hayek consideraque os grandes males do capitalismo,tais como a inflação e as instabilidadesmacroeconômicas, são provocados porgovernos indisciplinados em relação àemissão de moeda e seus gastos. Têmorigem, portanto, na capacidade deemissão de moeda que é exclusiva dogoverno. Sua proposta é, então, que omonopólio governamental de emissãode moeda seja substituído pela livreemissão, que seria realizada por bancosprivados.

Hayek considera que é impossível seconstituir um governo responsável e dis-ciplinado em relação à emissão de moe-da porque os interesses políticos indivi-duais dos dirigentes se sobrepõem ao in-teresse público. Avalia, também, que amoeda em nada difere de outros produ-tos. Assim, seu abastecimento seria me-lhor efetuado por meio da competiçãoentre bancos que têm interesse em pre-servar a boa qualidade do seu produto,ou seja, o valor da moeda que emitem.Seriam vitoriosas na competição aquelasmoedas cujo valor se mantivesse estável

ao longo do tempo. São ilustrativas aspalavras de Hayek:

“Caberia a cada emissor de uma moe-da distinta regular sua quantidade deforma a torná-la mais aceitável para opúblico – e a competição o forçaria aagir dessa forma. Realmente, o emissorsaberia que a penalidade por fracassarem atender às expectativas desperta-das seria a ruína de seus negócios. (...)Parece que, nessa situação, o mero de-sejo de lucro já poderia produzir umamoeda melhor do que a que o gover-nor emitiu.”

O argumento a favor das moedas com-petitivas descende diretamente da corren-te de pensamento econômico denomina-da escola austríaca. Hayek foi o principaldivulgador das ideias dessa escola, desdeo início da década de 1930, quando foi le-cionar na London School of Economics. Lá,divulgou as obras de outros importantesexpoentes austríacos, entre eles, Von Mi-ses e Böhm-Bawerk. A principal mensa-gem da escola austríaca é que um am-biente de total liberdade para o indivíduoeconômico (sem qualquer interferência dogoverno, de monopólios privados ou desindicatos) é a única via que, de fato, con-duz ao desenvolvimento.

A DESESTATIZAÇÃO DA MOEDA: A PROPOSTA DE HAYEK

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Depositário de Reservas Internacionais. O Banco Central pode deter grande parte das reservas interna-cionais do país. Os agentes econômicos residentes e não residentes realizam transações. O Banco Cen-tral deve reter moeda estrangeira para atender a demanda daqueles que têm compromissos a saldar noexterior e evitar possíveis situações de escassez de divisas, que elevam demasiadamente a taxa de câm-bio e que, no limite, impõem a decretação de moratória (suspensão temporária do pagamento de com-promissos no exterior). Ademais, possuindo uma quantidade considerável de reservas, o Banco Centralpode, em certa medida, tentar controlar a taxa de câmbio realizando operações de compra ou venda nomercado de divisas internacionais. Cabe destacar, entretanto, que com a globalização desses mercados,tal possibilidade de controle foi bastante reduzida. É importante saber, ainda, que parte das reservas emposse do Banco Central são investidas, por exemplo, em títulos do Tesouro Americano, com objetivode obter ganhos de juros e aumentar a quantidade total de divisas.

2.2. O BALANCETE DO BANCO CENTRAL E DO SISTEMA

MONETÁRIO

Entre os recursos monetários, a mais importante rubrica é a quantidade de papel-moeda emitido. Con-tudo, se tal conta fosse registrada no passivo, implicaria lançar a conta-caixa das autoridades monetári-as no lado do ativo. Como já foi visto, a quantidade de recursos emitidos menos a caixa do BancoCentral é igual à base monetária; então, optou-se por escriturar essa última conta que aparece no lado dopassivo do balancete do Banco Central – tal como é mostrado no Quadro 2.1. A base monetária pode serdividida em duas subcontas: papel-moeda em poder do público e encaixes totais em moeda dos bancos(ou reservas bancárias). O Banco Central também pode tomar empréstimos no exterior. As principaiscontas do ativo do balancete do Banco Central são as seguintes: reservas internacionais, títulos públi-cos, redescontos e empréstimos aos bancos. Todas as contas mencionadas aparecem no balancete estili-zado do Banco Central que é mostrado no Quadro 2.1.

Algumas das funções típicas do Banco Central são expressas nas contas do seu balancete. A funçãode emissor de papel-moeda é expressa pela conta base monetária. A função de emprestador de últimainstância aparece na conta redescontos e empréstimos. A função depositário das reservas internacionaisé expressa na conta reservas internacionais, com valor expresso em moeda nacional de acordo com ataxa de câmbio. É importante notar ainda que é através da aquisição de títulos públicos comprados dire-tamente do Tesouro Nacional que o Banco Central pode desempenhar eventualmente a função de fi-

16 O Banco Central e o Sistema Monetário ELSEVIER

Ativo Passivo

(12) Reservas Internacionais

(13) Títulos Públicos

(14) Redescontos e Empréstimos

(15) Outras Aplicações

Total do Ativo

Base Monetária (16)Papel-moeda em Poder do Público (16.1)

Reservas Bancárias (16.2)

Empréstimos do Exterior (17)Outras Fontes (18)

Total do Pasivo

QUADRO 2.1Balancete Estilizado do Banco Central

nanciar o governo. E, como será visto nos capítulos referentes à teoria e operação da política monetária,é através da aquisição ou venda de títulos em carteira que o Banco Central pode controlar a taxa de jurosda economia e a quantidade de meios de pagamento.

O sistema monetário é aquele conjunto de instituições que pode criar meios de pagamento, isto é, oBanco Central e os bancos comerciais. O balancete do sistema monetário é a soma algébrica do balan-cete do Banco Central com o balancete dos bancos comerciais – tal como aparece no Quadro 2.2. O ba-lancete de um banco comercial foi apresentado no Capítulo 1 (Quadro 1.2). O balancete do conjuntodos bancos comerciais de uma economia possui a mesma estrutura do balancete apresentado no Capítu-lo 1. Assim, pode-se efetuar a soma algébrica deste balancete (considerando-o como representativo doconjunto de bancos) e o balancete do Banco Central apresentado no Quadro 2.1. Quando se efetua oagrupamento das contas, percebe-se que as rubricas (2) e (14) do ativo têm o mesmo valor das contas dopassivo (16.2) e (9), respectivamente. Portanto, podem ser excluídas. As contas (16.1) e (6) podem seragrupadas em um única conta, os meios de pagamento. As demais contas do passivo se constituem nosrecursos não monetários do sistema bancário.

2.3. O MULTIPLICADOR MONETÁRIO

A quantidade ofertada de base monetária é estabelecida pelo Banco Central. A demanda pela basemonetária é realizada pelo público e pelos bancos. Os bancos demandam base pela necessidade demanter reservas (encaixes). O público demanda base para transformá-la em meios de pagamento. Aquestão relevante é que a quantidade total de meios de pagamento é um múltiplo da base monetária.A explicação para esse fato é que não é somente o Banco Central que cria meios de pagamento, osbancos comerciais também o fazem. Os bancos possuem essa prerrogativa porque o público aceita osdepósitos à vista (moeda escritural) como meios de pagamento. Então, como os bancos sabem quenem todos os clientes desejam sacar ao mesmo tempo seus depósitos, criam moeda escritural em umaquantidade superior às reservas que possuem. Consequentemente, os meios de pagamento tornam-seum múltiplo da base monetária. O Gráfico 2.1 apresentado a seguir descreve essas relações entre abase monetária e os meios de pagamento e entre as reservas bancárias (os encaixes) e os depósitos àvista. A parte da base monetária que é demandada pelo público (papel-moeda) não é multiplicada,mas os bancos multiplicam a parte que demandam.

O Banco Central e o Sistema Monetário 17

Ativo Passivo

(1) Empréstimos

(3) + (13) Títulos Públicos e Privados

(4) Imobilizado

(12) Reservas Internacionais

(2) Reservas Bancárias

(14) Redesconto e Empréstimos

(15) + (5) Outras Aplicações

Total do Ativo

Meios de Pagamento

Passivo Não monetário

Total do Pasivo

Papel-moeda em Poder do Público (16.1)Depósitos à vista (6)

Redescontos e Empréstimos (9)Reservas Bancárias (16.2)

Depósitos a Prazo (7)Empréstimos internos e do Exterior (17) + (8)

Patrimônio Líquido (10)Outras Fontes (11) + (18)

QUADRO 2.2Balancete Estilizado do Sistema Monetário

O multiplicador monetário é a razão meios de pagamento/base monetária. É positivo e, em geral,maior que 1 (um). Pode ser encontrado pelo desenvolvimento apresentado a seguir. Os meios de paga-mento são definidos por

MP = PMPP + DVBC

então:

PMPP = MP – DVBC

A base monetária é definida por

B = PMPP + ET

então:

PMPP = B – ET

Logo,

PMPP = MP – DVBC = B – ET B = MP – DVBC + ET

Dividindo-se cada termo desta última equação por MP, obtém-se:

B / MP = 1 – (DVBC / MP) + (ET / MP)

Dividindo-se e multiplicando-se o último termo por DVBC, tem-se:

B/MP = 1 – (DVBC / MP) + (ET / MP) * (DVBC / DVBC)

18 O Banco Central e o Sistema Monetário ELSEVIER

BASEMONETÁRIA

Encaixes dosBancos

PMPP

PMPP(Moeda Manual)

Depósitos à Vista(Moeda Escritural)

MEIOS DEPAGAMENTO

$

$

45�

GRÁFICO 2.1Relações entre a Base Monetária e os Meios de Pagamentoe entre as Reservas Bancárias e os Depósitos à Vista

Chamando-se a razão DVBC/MP de d e a razão ET/DVBC de e, pode-se reescrever esta última equa-ção da seguinte forma:

B / MP = 1 – d + ed

B / MP = 1 – d(1 – e)

MP = B / [1 – d(1 – e)]

Assim, o multiplicador monetário é:

α ��

1

1 1– ( )d e

Logo, uma variação da base monetária multiplicada por α é igual à variação dos meios de pagamen-to, isto é,

�MP = �B

Por exemplo, se o multiplicador monetário de uma economia é 1,54 e o Banco Central fez a basemonetária variar em 100 milhões de unidades monetárias, então, os meios de pagamento foram expan-didos em 154 milhões de unidades monetárias. O Banco Central do Brasil divulga mensalmente o valordo multiplicador monetário. A seguir, no Box 2.3, são reproduzidos os valores do multiplicador mone-tário e das razões d e e da economia brasileira nos anos de 1997 e 1998.

O multiplicador monetário é função de duas variáveis d e e. Quanto maior o valor de d, maior será omultiplicador. Quanto maior o valor de e, menor será o multiplicador. Assim, pode-se dizer que:

= f(d, e) d > 0 e < 0

O entendimento econômico dessas relações é muito importante. Quando a quantidade de reservasbancárias em relação ao total de depósitos à vista (e) é aumentada, dada uma quantidade de depósitos àvista em relação ao total de meios de pagamento (d), menor será o multiplicador α. Isto pode ocorrerquando, por exemplo, o Banco Central decide elevar as reservas compulsórias dos bancos. Assim, comuma quantidade menor de reservas livres para realizar negócios, os bancos tendem a reduzir a oferta decrédito ao público, independentemente da sua demanda.

O coeficiente e representa o percentual fixado legalmente de quanto dos depósitos à vista devemser recolhidos ao Banco Central e, além disso, reflete a aversão dos bancos a ter que recorrer a auxíliosdo Banco Central em virtude de uma eventual insuficiência de encaixes de negócios. Logo, se as taxasde juros das operações de redesconto tornam-se punitivas e as reservas compulsórias se elevam, o co-eficiente e aumenta e o multiplicador α diminui. Pode-se dizer então que o coeficiente e é representati-vo das decisões do Banco Central (em relação ao percentual de reservas compulsórias) e da decisão decomo os bancos administram os seus ativos (a concessão de empréstimos) e seus passivos (a emissãode depósitos à vista).

Quando a quantidade de depósitos à vista em relação ao total de meios de pagamento (d) é aumenta-da, dada uma quantidade de reservas bancárias em relação ao total de depósitos à vista (e), maior será omultiplicador α. Isto pode ocorrer quando, por exemplo, os bancos comerciais adotam políticas de con-cessão de crédito mais agressivas. Se existem tomadores de crédito insatisfeitos, tal política creditíciade oferta mais ampla aumentará a quantidade de meios de pagamento da economia. Em outras palavras,aumentará a quantidade de depósitos à vista em relação ao papel-moeda em poder do público. Pode-sedizer, portanto, que o coeficiente d é representativo da decisão de como os bancos administram os seusativos (a concessão de empréstimos) e os seus passivos (a emissão de depósitos à vista), assim como dadecisão do público de demandar meios de pagamento na forma de depósitos à vista (isto é, demandarempréstimos).

O Banco Central e o Sistema Monetário 19

Em suma, o Banco Central pode controlar a quantidade de meios de pagamento da economia (deacordo com a fórmula Bα = M) de duas formas isoladamente ou utilizando-as de maneira complemen-tar. Em primeiro lugar, o Banco Central pode controlar diretamente a base monetária tal como será vis-to a partir da próxima seção. Em segundo lugar, pode tentar controlar o multiplicador monetário fazen-do-o diretamente através da variação do percentual das reservas compulsórias em relação aos depósitosà vista, isto é, controlando diretamente o valor da razão e.

O Banco Central pode também interferir indiretamente sobre o valor da razão d, impondo taxas pu-nitivas nas operações de redesconto e empréstimos aos bancos comerciais. Com taxas punitivas em vi-gor, é provável que os bancos comerciais adotem políticas creditícias mais cautelosas (reduzindo o va-lor de d) em função do encarecimento em obter reservas junto ao Banco Central, quando necessárias.As taxas das operações de socorro oficial também podem influenciar indiretamente e. Sob condiçõesem que vigoram taxas punitivas, é possível que os bancos adotem políticas mais conservadoras de re-tenção de reservas de negócios (elevando o valor de e) para evitar que sejam obrigados a incorrer em o-perações de redesconto e empréstimos.

A relação entre a base monetária e o multiplicador pode ser representada graficamente. No eixovertical do Gráfico 2.2 estão representados os meios de pagamento e, no eixo horizontal, a base monetá-ria. A inclinação da função M está relacionada com o valor do multiplicador, que é no mínimo de 45o,isto é, igual a 1 (um). Pela fórmula do multiplicador, pode-se concluir que o multiplicador somente seráigual a 1 (um), quando d for igual 0 (zero) ou quando e for igual a 1 (um). O significado econômico de dser igual a 0 (zero) é que não existem depósitos à vista nesta economia. O significado econômico de ocoeficiente e ser igual a 1 é que o total de depósitos à vista existentes é plenamente conversível em pa-pel-moeda para todos os clientes simultaneamente. É improvável que uma economia tenha o seu multi-plicador monetário igual a 1 (um).

ELSEVIER20 O Banco Central e o Sistema Monetário

D = DVBC/MP e = Et/DVBC α = multiplicador monetário

2004 d e α 2005 d e α

Jan 0,61 0,36 1,45 Jan 0,61 0,36 1,45

Fev 0,61 0,35 1,46 Fev 0,61 0,36 1,46

Mar 0,62 0,35 1,48 Mar 0,62 0,35 1,47

Abr 0,62 0,35 1,47 Abr 0,62 0,36 1,46

Mai 0,62 0,35 1,50 Mai 0,61 0,36 1,45

Jun 0,62 0,36 1,47 Jun 0,61 0,35 1,47

Jul 0,62 0,35 1,48 Jul 0,61 0,36 1,46

Ago 0,61 0,35 1,50 Ago 0,61 0,35 1,46

Set 0,62 0,34 1,49 Set 0,61 0,35 1,45

Out 0,62 0,34 1,47 Out 0,61 0,34 1,46

Nov 0,62 0,36 1,46 Nov 0,61 0,35 1,46

Dez 0,60 0,34 1,41 Dez 0,60 0,34 1,45

Fonte: Boletim do Banco Central.

O MULTIPLICADOR MONETÁRIO DA ECONOMIA BRASILEIRA

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2.4. CRIAÇÃO E DESTRUIÇÃO DA BASE MONETÁRIA

O balancete do Banco Central apresentado neste capítulo é útil para a compreensão de quais operaçõesrealizadas pelas autoridades monetárias fazem variar a base monetária e, consequentemente, o estoquede meios de pagamento – dado um multiplicador monetário. Uma regra prática é visualizar a base mo-netária como uma conta-resíduo no seu respectivo balancete. Assim, uma variação da base monetáriasomente ocorrerá como resultado da diferença entre variações no valor das contas que estão do lado doativo e variações do valor das contas do passivo não monetário do balancete do Banco Central. O Box2.4 resume esta regra prática.

A base monetária será expandida quando, por exemplo, o Banco Central compra dólares (e não rea-liza nenhuma operação que altere a magnitude do seu passivo não monetário). Quando o Banco Centralvende títulos públicos (e não promove nenhuma alteração do seu passivo não monetário), reduz o tama-nho da base monetária. Quando não se utiliza a regra prática da conta-resíduo, pode-se incorrer no errode avaliar que um aumento dos encaixes compulsórios aumentaria a base monetária (dado que a basemonetária é a soma de encaixes totais bancários com papel-moeda em poder do público). Um aumentodos encaixes compulsórios não altera diretamente a base monetária porque não alterou o valor de qual-quer conta do ativo do Banco Central, nem o valor de qualquer conta do seu passivo não monetário.Uma outra regra prática importante é que deve haver uma transação que envolva moeda para que a basemonetária possa ter seu valor modificado.

O Banco Central e o Sistema Monetário 21

Uma variação da base monetária nomontante de x-y implica uma variaçãode (x-y) dos meios de pagamentoonde > 1 (um).O multiplicador monetário é, em geral,maior que 1 (um).Não tendem a ocorrer situações em que,por exemplo, não existem depósitos àvista e/ou os bancos mantêm reservasno valor do montante de depósitos àvista.A inclinação de M depende dos valoresde e .

��

d e�

MP em $M

� �> 45 => > 1º

B em $y x

GRÁFICO 2.2Relações entre a Base Monetária, os Meios de Pagamento e o Multiplicador Monetário

Para se avaliar se houve variação da basemonetária deve-se observar o balancete doBanco Central. Neste balancete, quando:

a) uma variação positiva do montante dascontas do ativo é maior que uma varia-ção positiva do montante das contas dopassivo não monetário, tem-se uma ex-pansão da base monetária;

b) uma variação negativa do montantedas contas do ativo é maior que uma

variação negativa do montante dascontas do passivo não monetário,tem-se uma contração da base mone-tária; e se

c) uma variação positiva (negativa) domontante das contas do ativo é iguala uma variação positiva (negativa) domontante das contas do passivo nãomonetário, então, não há contraçãonem expansão da base monetária.

VARIAÇÃO DA BASE MONETÁRIA

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2.5. CRIAÇÃO E DESTRUIÇÃO DE MEIOS DE PAGAMENTO

Não somente o Banco Central pode alterar o estoque de moeda da economia quando realiza uma opera-ção de ampliação da base monetária – dado um multiplicador. Os bancos comerciais podem alterar di-retamente o estoque de meios de pagamento. A regra prática utilizada para se verificar se uma operaçãoqualquer alterou o estoque de meios de pagamento é semelhante àquela utilizada para se verificar sehouve alterações da base monetária. A regra prática é visualizar os meios de pagamento como uma con-ta-resíduo no balancete do sistema monetário. Portanto, uma variação dos meios de pagamento somen-te ocorrerá como resultado da diferença entre variações no valor das contas que estão do lado do ativo evariações do valor das contas do passivo não monetário do balancete do sistema bancário. O Box 2.5 re-sume esta regra prática.

O estoque de meios de pagamento é reduzido quando, por exemplo, um banco comercial reduz suasoperações de crédito com o público (e não há nenhuma alteração do passivo não monetário no balancetedo sistema bancário). Os meios de pagamento aumentam quando os bancos comerciais compram títu-los privados (e não realizam nenhuma operação que altere a magnitude das contas do passivo não mo-netário). Qualquer operação que altere os meios de pagamento deve ser realizada entre agentes quecompõem o sistema monetário da economia e agentes que estão fora desse sistema e, além disso, taloperação deve envolver pagamentos em moeda (manual ou escritural).

Operações que aumentam o estoque de meios de pagamento são chamadas de operações de moneti-zação da economia. Um Banco Central pode, eventualmente, se ver obrigado a comprar dólares. Entre-tanto, não desejaria monetizar a economia. Então, vende títulos ao público em magnitude idêntica àoperação de compra de divisas internacionais que está obrigado a realizar. Esta operação, simultanea-mente, amplia e enxuga meios de pagamento da economia. Tal operação casada, que evita que a econo-mia seja monetizada, chama-se operação de esterilização.

2.6. OPERAÇÕES DE CRIAÇÃO E DESTRUIÇÃO DE MEIOS

DE PAGAMENTO

A seguir são apresentados dez exemplos em que são discutidas as possibilidades de variação do estoquede meios de pagamento da economia:

22 O Banco Central e o Sistema Monetário ELSEVIER

Para se avaliar se houve variação do esto-que de meios de pagamento deve-se ob-servar o balancete do sistema monetário.Neste balancete, quando:

a) uma variação positiva do montantedas contas do ativo é maior que umavariação positiva do montante dascontas do passivo não monetário, en-tão, tem-se uma expansão do estoquede meios de pagamento;

b) uma variação negativa do montantedas contas do ativo é maior que uma

variação negativa do montante dascontas do passivo não monetário, en-tão, tem-se uma contração do estoquede meios de pagamento; e se

c) uma variação positiva (negativa) domontante das contas do ativo é igual auma variação positiva (negativa) domontante das contas do passivo nãomonetário, então, não há contraçãonem expansão do estoque de meios depagamento.

VARIAÇÃO DO ESTOQUE DE MEIOS DE PAGAMENTO

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1. Ao fim de um dia, um empresário se dirige a um banco comercial com a receita do seu negócio e fazum depósito à vista. Nesta operação não houve criação nem destruição de meios de pagamento. Ne-nhuma conta do ativo do balancete do sistema monetário teve seu valor alterado, assim como ne-nhuma conta do passivo não monetário.

2. Um empresário se dirige a uma empresa de factoring e troca todos os cheques pré-datados que rece-beu por recursos em moeda manual. Nesta operação não houve criação nem destruição de meios depagamento. Não houve nenhuma operação que envolvesse o setor monetário da economia e o públi-co não bancário.

3. Um indivíduo vende ações ao banco comercial de que é cliente e recebe como pagamento um depó-sito à vista na sua conta-corrente. Houve criação de meios de pagamento. Houve uma variação posi-tiva do valor do ativo do sistema bancário, que resultou de uma operação entre o setor monetário daeconomia (o banco comercial) e o público não bancário (o cliente) e que envolveu um ativo não mo-netário (as ações) e um ativo monetário (o depósito à vista).

4. Um banco de investimento compra dólares de um exportador. O pagamento é feito em moedacash. Nesta operação não houve criação nem destruição de meios de pagamento. Tal operaçãonão foi realizada entre o setor monetário da economia e o público não bancário, mas sim entre osetor financeiro não monetário (o banco de investimento) e o público não bancário (a empresaexportadora).

5. Uma empresa vende os títulos públicos que possui a um banco comercial. O pagamento é feito emmoeda manual. Nesta operação houve criação de meios de pagamento. Houve uma variação positi-va do valor do ativo do sistema bancário que resultou de uma operação entre o setor monetário daeconomia (o banco comercial) e o público não bancário (a empresa) e que envolveu um ativo nãomonetário (os títulos) e um ativo monetário (moeda manual).

6. Um banco comercial vende parte dos imóveis que possui a um banco de investimento. O pagamentoé feito em moeda cash. Nesta operação houve destruição de meios de pagamento. Houve uma varia-ção negativa do valor do ativo do sistema bancário, que resultou de uma operação entre o setor mo-netário da economia (o banco comercial) e o público não bancário (o banco de investimento) e queenvolveu um ativo não monetário (os imóveis) e um ativo monetário (moeda manual).

7. Os donos de uma empresa da área de informática dividem a sua propriedade vendendo ações aosseus empregados. A compra das ações é feita em cheques. Nesta operação não houve criação nemdestruição de meios de pagamento. Não houve nenhuma operação que envolvesse o setor monetárioda economia e o público não bancário.

8. O Banco Central realiza uma operação de empréstimo direto a um banco comercial que está em difi-culdade. Nesta operação não houve criação nem destruição de meios de pagamento. Não houve ne-nhuma operação que envolvesse o setor monetário da economia e o público não bancário.

9. Taxas de limpeza urbana são recolhidas por um banco comercial que deposita esses recursos na con-ta da prefeitura. Nesta operação não houve criação nem destruição de meios de pagamento. Nenhu-ma conta do ativo do balancete do sistema monetário teve seu valor alterado, assim como nenhumaconta do passivo não monetário.

10.Um banco comercial vende dólares a importadores. O pagamento é feito em moeda corrente. Nestaoperação houve destruição de meios de pagamento. Houve uma variação negativa do valor do ativodo sistema bancário que resultou de uma operação entre o setor monetário da economia (o banco co-mercial) e o público não bancário (empresas de importação) e que envolveu um ativo não monetário(reservas internacionais) e um ativo monetário.

O Banco Central e o Sistema Monetário 23

RESUMO

1. O Banco Central possui algumas funções típicas: emissor de papel-moeda e controlador da liquidez da econo-mia, banqueiro dos bancos, regulador do sistema financeiro e depositário de reservas internacionais do país. Afunção de emprestador de última instância é uma função decorrente da posição de banqueiro dos bancos. OBanco Central deve socorrer os bancos comerciais e as instituições financeiras em dificuldade realizando ope-rações de redesconto.

2. A mais importante rubrica do passivo do Banco Central é a base monetária (que pode ser dividida em duassubcontas: papel-moeda em poder do público e encaixes totais em moeda dos bancos). O Banco Central tam-bém pode obter recursos tomando empréstimos no exterior. As principais contas do ativo do balancete doBanco Central são as seguintes: reservas internacionais, títulos públicos, redescontos e empréstimos aos ban-cos.

3. O sistema monetário é aquele conjunto de instituições que pode criar meios de pagamento, isto é, o BancoCentral e os bancos comerciais. O balancete do sistema monetário é, assim, a soma algébrica do balancete doBanco Central com o balancete dos bancos comerciais. Quando se efetua o agrupamento das contas, perce-be-se que as rubricas reservas bancárias e empréstimos e redescontos do ativo também aparecem no passivo.Assim, devem ser excluídas. As contas papel-moeda em poder do público e depósito à vista podem ser agru-padas em uma única conta, que conformam o total de meios de pagamento.

4. A quantidade ofertada de base monetária é estabelecida pelo Banco Central. A demanda pela base é realizadapelo público e pelos bancos. Os bancos demandam base pela necessidade de manter reservas (encaixes). O pú-blico demanda base para transformá-la em meios de pagamento. A questão relevante é que a quantidade totalde meios de pagamento é um múltiplo da base monetária. A explicação para esse fato é que não é somente oBanco Central que cria meios de pagamento, os bancos comerciais também o fazem. Sendo assim, pode-se de-finir o multiplicador monetário, que é a razão meios de pagamento/base monetária que é positiva e, em geral,maior que 1 (um).

5. Uma regra prática para se avaliar variações da base monetária e dos meios de pagamento é visualizar tais ru-bricas como contas-resíduo nos seus respectivos balancetes. Assim, uma variação da base monetária (ou dosmeios de pagamento) somente ocorrerá como resultado da diferença entre variações no valor das contas queestão do lado do ativo e variações do valor das contas do passivo não monetário do balancete do Banco Cen-tral (ou do sistema monetário).

TERMOS-CHAVE

� Banqueiro dos Bancos� Multiplicador Monetário� Contração da Base Monetária

� Emprestador de Última Instância� Conta-resíduo� Expansão dos Meios de Pagamento

� Sistema Monetário� Expansão da Base Monetária� Contração dos meios de Pagamento

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Goodhart, C. (1992). Central Banking. In: The New Palgrave Dictionary of Money and Finance. Newman, P.,Milgate, M. & Eatwell (editors). London: Macmillan.

–– (1992). Monetary base. In: The New Palgrave Dictionary of Money and Finance. Newman, P., Milgate, M.& Eatwell (editors). London: Macmillan.

Toniolo, G. (editor) (1988). Central Banks’ Independence in Historical Perspective. Berlin: Walter deGruyter.

Esta é uma interessante coletânea sobre a história dos principais bancos centrais do mundo. Cada Banco Cen-tral, por exemplo, da Alemanha ou da Inglaterra, é discutido tendo como foco o tema da independência, desde suacriação até as últimas décadas.

24 O Banco Central e o Sistema Monetário ELSEVIER

APÊNDICE

O MULTIPLICADOR MONETÁRIOCOM PROGRESSÃO GEOMÉTRICA

O multiplicador monetário também pode ser encontrado utilizando-se progressões geométricas. Quan-do o Banco Central realiza uma operação de ampliação da base monetária (por exemplo, compra títulosdo público), a primeira variação dos meios de pagamento que ocorre é da mesma magnitude da comprafeita pelas autoridades monetárias, ou seja, é igual à variação da base monetária (ΔB). Com mais recur-sos monetários, o público aumenta a sua quantidade de depósitos nos bancos comerciais. A quantidadede depósitos que os bancos recebem é igual ΔB.d. Uma parte desses novos depósitos se transformaráem reservas bancárias, o que possibilitará aos bancos conceder mais empréstimos. As reservas bancá-rias seriam aumentadas de (ΔB.d) e. Os empréstimos adicionais seriam de (ΔB.d) (1– e). Esses emprés-timos ampliam os meios de pagamento. Com mais recursos monetários, o público realiza novosdepósitos, que originará novos empréstimos, no valor de (ΔB.d) (1 – e) × (1 – e) d, que gerará novos de-pósitos, e assim sucessivamente. Logo, a variação total de meios de pagamento, resultante da operaçãooriginal realizada pelo Banco Central será de:

ΔM = ΔB + (1 – e) d . ΔB + (1 - e)2 d2 . ΔB + (1 – e)3 d3 . ΔB + . . .

ΔM = ΔB [1 + (1 – e) d + (1 – e)2 d2 + (1 – e)3 d3 + . . .]

Calculando-se o limite do somatório que multiplica a variação da base monetária:

� limk

k k

k 1

1 (1– e) d 11 d(1– e)�

� ��

obtém-se o multiplicador monetário,

� �� �

11 d(1 e)

O Banco Central e o Sistema Monetário 25

A TEORIA QUANTITATIVADA MOEDA

INTRODUÇÃO

Este capítulo analisa as teorias de demanda por moeda em sua versão clássica, mais co-nhecida como teoria quantitativa da moeda. Em realidade, tal teoria já havia sido formula-da por vários autores no decorrer dos séculos XVIII e XIX, e esteve por detrás de váriosdebates ocorridos na Inglaterra, como, por exemplo, na famosa controvérsia bullionistaque envolveu o Relatório da Comissão do Ouro em 1810. Contudo, foi na elaboração doeconomista americano Irving Fisher, em 1911, através das equações de troca, que a teoriaquantitativa ficou conhecida e popularizada. Também o debate que veio resultar na LeiBancária de 1844, na Inglaterra, entre as chamadas Escolas do Meio Circulante, Bancáriae de Bancos Livres, no qual estava em discussão a administração monetária do Banco daInglaterra, foi permeado pela teoria quantitativa. Este capítulo analisa ainda os desenvol-vimentos teóricos realizados pelo economista sueco Knut Wicksell (1851-1926), que de-senvolveu uma teoria monetária, ainda que dentro da tradição da teoria quantitativaclássica, mas mais sofisticada do que esta. Wicksell realizou uma análise das operações deuma economia dotada de um sistema bancário, em que os bancos tinham um papel impor-tante no processo cumulativo que ele viria a desenvolver. Em particular, identificou nataxa de juros o elo entre o setor real e o setor monetário na economia.

O capítulo está dividido em seis seções. Na Seção 3.1 mostram-se, resumidamente, osantecedentes e primórdios da teoria quantitativa, contextualizando-a no debate monetárioocorrido nos séculos XVIII e, principalmente, XIX. Na Seção 3.2, analisa-se a teoriaquantitativa da moeda em sua forma mais conhecida: a versão de transação de Fisher. NaSeção 3.3 focaliza-se a abordagem de saldos de caixa, proposta por economistas de Cam-bridge, de particular importância, já que foi considerada por Milton Friedman como a pri-meira elaboração de uma teoria de demanda por moeda. A Seção 3.4 explora os traços co-muns às duas tradições de teoria quantitativa. A Seção 3.5, em seguida, explora a visão deWicksell e sua abordagem do chamado processo cumulativo. A Seção 3.6 debate se a in-clusão de Wicksell no campo quantitativista é realmente adequada.

CAPÍTULO

3

3.1. OS PRIMÓRDIOS DA TEORIA QUANTITATIVA:

O DEBATE MONETÁRIO NOS SÉCULOS XVIII E XIX

Em seu livro Critical Essays in Monetary Theory, o conhecido economista inglês John Hicks mostrouque, desde seus primórdios, o desenvolvimento da teoria monetária esteve relacionado à necessidade dedefinição de diretrizes políticas para aplicação no mundo real. O debate sobre assuntos monetários eravoltado principalmente para as dificuldades sentidas pelas autoridades responsáveis pelo controle damoeda, que tentavam seguir uma rota segura entre pressões inflacionárias e deflacionárias. Em particu-lar, na Inglaterra, no início do século XIX, o perigo da inflação estaria associado fundamentalmente àpossibilidade de emissão excessiva de papel-moeda. De fato, os melhores trabalhos de teoria monetáriaforam, via de regra, diretamente inspirados por episódios específicos vividos por cada autor, especial-mente aqueles derivados de desarranjos monetários.

Até as primeiras décadas do século XX, quando a preeminência no desenvolvimento da teoria eco-nômica deslocou-se para os Estados Unidos, o principal berço da teoria monetária foi a Inglaterra. Amoderna teoria monetária britânica surge da controvérsia gerada pelas tentativas de suprimento das ne-cessidades anormais de emissão de moeda e de criação de crédito, geradas pelas prolongadas guerrascontra a França, no final do século XVIII e no princípio do século XIX. Em particular, os problemasmonetários emergiram quando as notas de papel, especialmente as notas dos bancos, começaram acompetir com a moeda metálica como meio de troca, levantando as restrições técnicas que mantinham aoferta de moeda limitada. A ruptura ocorreria a partir de 1797, quando o Banco da Inglaterra cortou ovínculo automático entre suas notas e os metais preciosos, que eram em princípio conversíveis, suspen-dendo assim os pagamentos em espécie (metal).

O debate iria ganhar vigor ao longo da primeira década do século XIX, quando, em várias ocasiões,o valor cambial da libra, em termos de ouro, deteriorou-se. Foi então que se buscou, pela primeira vez,uma explicação monetária para as flutuações na taxa de câmbio. O debate iria resultar no Relatório daComissão do Ouro (Bullion Committee’s Report) de 1810, e continuaria até a Inglaterra retornar à con-versibilidade e ao padrão-ouro formal, a partir de 1844. O que estava em jogo na controvérsia bullionis-ta,1 como ficou conhecido o debate gerado ao redor do Relatório da Comissão de Ouro, era uma expli-cação para a depreciação da libra.

Os bullionistas atribuíam a elevação no preço do ouro em barra a uma emissão excessiva de pa-pel-crédito (notas bancárias), devida à má administração monetária do Banco da Inglaterra, enquantoque os antibullionistas encontravam uma explicação circunstancial nos efeitos das maciças despesasexternas efetuadas pelo governo inglês devido às guerras, acompanhadas pela desaceleração das expor-tações na primeira década do século XIX. Como para os bullionistas a principal causa da depreciaçãoda libra em termos de ouro era a política inflacionária do Banco da Inglaterra, ao emitir demasiadamen-te papel-moeda, a única maneira de restaurar a estabilidade monetária seria impor ao Banco uma restri-ção de resgatar suas notas em ouro, ou seja, um retorno à conversibilidade e ao vínculo entre notas ban-cárias e metais preciosos.

A posição bullionista era assumida por Thornton, Ricardo, Horner e Malthus, entre outros, sendoassim majoritária entre os principais economistas da época, enquanto que o ponto de vista oposto foidefendido pelos diretores do Banco da Inglaterra e por alguns importantes ministros do Gabinete in-glês, que negavam ser possível que as notas fossem emitidas acima das necessidades dos negócios, sobo argumento de que os tomadores de crédito tomariam emprestado somente o que pudessem usar lucra-tivamente. Além disto, estas notas eram garantidas por “papéis reais”, o que asseguraria a liquidaçãodos empréstimos.

O debate entre a Escola do Meio Circulante (Currency School), cujos membros que mais se desta-caram foram McCulloch, Lloyd, Longfield, Norman e Torrens, a Escola Bancária (Banking School), li-

A Teoria Quantitativa da Moeda 27

1. Para uma análise mais detalhada da controvérsia bullionista, ver Deane, P. A Evolução das Ideias Econômicas, cap. 4. Riode Janeiro: Ed. Zahar, 1980.

derada por Tooke, Fullarton e John Stuart Mill, e envolvendo em menor grau a Escola dos Bancos Li-vres (Free Banking School) de Parnell, Gilbart e Scrope – que se iniciou nos anos 20 do século XIX eacabou resultando na Lei Bancária de 1844 – foi, em certa medida, uma continuação da controvérsiaanterior, com a primeira escola seguindo uma posição semelhante à linha inflexível ricardiana (verBox 3.1) e a segunda (Tooke, em particular) tomando posições mais próximas às de Thornton. A dis-cussão, neste caso, centrou-se mais diretamente na questão do descontrole monetário, ou mais propria-mente na emissão excessiva de notas por parte do Banco da Inglaterra; se este deveria centralizar ou nãoo monopólio de emissão de moeda; e ainda, se deveria (ou não) haver regras de emissão.2

A Escola do Meio Circulante procurava encontrar um nível de preços que fosse o mesmo tanto parauma oferta de moeda completamente metálica quanto para uma moeda mista, incluindo notas bancáriase moeda metálica. Para esta escola, os fluxos de ouro, em um padrão monetário puramente metálico,têm efeito imediato sobre o aumento ou diminuição da moeda em circulação. Por outro lado, um au-mento no nível de preços e uma queda nas reservas em moeda metálicas, em um regime de moeda mistaeram sintomas de emissão excessiva (overissue) de notas bancárias. Neste sentido, a Escola considera-va tanto o Banco da Inglaterra quanto o Banco da Escócia como responsáveis pela emissão excessiva demoeda. Para resolver esta questão, a Escola do Meio Circulante defendia a adoção de uma regulação es-tatutária rígida sobre os bancos que assegurasse que o estoque de papel-moeda não fosse nem excessivonem deficiente. Assim, era essencial encontrar uma técnica que permitisse tornar a circulação de papelnão meramente resgatável em ouro, mas sim rigidamente atada ao estoque nacional de ouro de modoque a emissão de notas passasse a variar automaticamente de acordo com as flutuações no estoque deouro. A adoção de regras do padrão-ouro exigia que a moeda corrente mista se comportasse exatamentecomo se fosse uma moeda corrente puramente metálica. Consequentemente, não haveria necessidadede regular as atividades bancárias, mas apenas a emissão monetária.

Para a Escola Bancária, contudo, o volume das notas em circulação é determinado pela demanda –contraindo-se quando os negócios declinam e expandindo-se quando estes prosperam, variando, assim,em função das necessidades do comércio. Para tanto, os bancos deveriam variar seus coeficientes de re-serva para acomodar uma maior ou menor emissão de notas. A questão da emissão excessiva era irrele-vante na medida em que a expansão monetária era possível somente por períodos limitados, uma vezque as notas deveriam retornar ao banco emissor no momento de repagamento dos empréstimos. Ade-mais, as obrigações de depósitos e notas bancárias não seriam nunca excessivas se os bancos restringis-sem seus ativos lucrativos a letras de câmbio reais. Os defensores desta escola, ao contrário da Escolado Meio Circulante, não tinham um programa legislativo para reformar o sistema monetário, pois, paraeles, o bom gerenciamento bancário não poderia ser legislado. Eles se contentavam em supor que a con-versibilidade bastaria para salvaguardar a emissão de notas e manter o balanço de pagamentos em equi-líbrio a longo prazo, salientando que as letras de câmbio e os cheques eram meios de troca da mesmaforma que as notas bancárias e a moeda metálica o eram.

A Escola dos Bancos Livres, por sua vez, defendia uma posição distinta das outras duas, defenden-do uma visão favorável ao livre comércio na emissão de moeda conversível em espécie. Os membrosdesta escola eram favoráveis a um sistema monetário-financeiro tal como era o sistema bancário esco-cês, onde os bancos competiam em todos os serviços bancários, incluindo a emissão de notas, e nenhumbanco tinha o monopólio na emissão destas. Para esta escola, um sistema bancário descentralizado ecompetitivo não emitia sem limites, mas sim fornecia uma quantia estável de moeda. Isto porque a es-tratégia competitiva dos bancos requer a manutenção da confiança do público em suas emissões (umaversão mais moderna destes argumentos está no Box 3.2). Ademais, um sistema de compensação inter-bancário opera para eliminar emissões em excesso de um banco individual. Assim, a emissão excessivaé um fenômeno que o monopólio do Banco da Inglaterra encoraja, mas um sistema competitivo – talcomo o escocês – desencoraja. Em outras palavras, em um sistema bancário competitivo, o problema deemissão excessiva não se coloca.

28 A Teoria Quantitativa da Moeda ELSEVIER

2. Para um balanço deste debate, ver Schwartz, A. “Banking School, Currency School, Free Banking School”. In Newman, P.et alli (ed.). The New Palgrave Dictionary of Money & Finance. London: Macmillan, 1992.

A Teoria Quantitativa da Moeda 29

As discussões monetárias nos séculos XVIIIe XIX estiveram relacionadas à necessida-de (ou não) de um controle monetário ecreditício mais efetivo, sendo que por de-trás desta discussão estava a causalidadeentre oferta de moeda, nível de preços ecrescimento do produto. A evolução dopensamento econômico, na área da teoriamonetária, esteve relacionada direta-mente ao desenvolvimento do sistema mo-netário e financeiro, passando da moedametálica para o papel-dinheiro, até alcan-çar o dinheiro creditício. Tal evolução exi-giu continuamente uma revisão na teoriamonetária.

De fato, David Hume, em seu ensaioOf Money de 1752, foi dos primeiros aanalisar a relação entre as variáveis mo-netárias e as variáveis reais na economia.Hume teorizava sobre um dinheiro pura-mente metálico, pois ainda que o sistemade crédito já estivesse se desenvolvendo,seu desenvolvimento era muito inferior aoque puderam contemplar Thornton, Ricar-do e outros, já no século XIX. Como podeser visto nas passagens a seguir, Hume jáestabelecia claramente o que ficou conhe-cido como teoria quantitativa clássica,indo além de uma análise simplista de queuma mudança da oferta de moeda provo-ca uma mudança proporcional no nívelabsoluto de preços, como frequentementeé veiculado:

“É verdade que a indústria tem-se in-crementado em todas as nações da Euro-pa desde o descobrimento das minas naAmérica... e isto pode ser atribuído, entreoutras razões, ao aumento do ouro e daprata. Assim, pois, vemos que em um rei-no onde começa a fluir dinheiro em maiorabundância do que antes, tudo muda; otrabalho e a indústria se avivam; o comer-ciante se torna mais empreendedor, e atéo agricultor maneja o seu arado com maiorentusiasmo e atenção...”

“Para explicar este fenômeno devemosconsiderar que ainda que o novo preçoalto das mercadorias é uma consequêncianecessária do aumento do ouro e da pra-ta, tal aumento não ocorre de imediato;ao contrário, deve transcorrer certo tempopara que o dinheiro circule por todo oEstado e até sentir seu efeito sobre todaclasse de pessoas. A princípio não se per-cebe nenhuma alteração; gradualmente

os preços vão subindo, primeiro o de algu-mas mercadorias, logo o de outras, atéque o total alcança a proporção de au-mento apropriada à nova quantidade dedinheiro que há no reino. Em minha opi-nião, é somente no intervalo, no períodointermediário entre a aquisição do dinhei-ro e o aumento dos preços, que o aumen-to na quantidade de ouro e prata favorecea indústria”.*

Fica claro, então, que para Hume a teo-ria quantitativa é válida como uma condi-ção de equilíbrio de longo prazo; mas nocurto prazo, enquanto a oferta de moedaaumenta, se pode produzir um estímuloreal no nível de atividade econômica.

No início do século XIX, o sistema credití-cio britânico já tinha se desenvolvido signifi-cativamente, sendo o sistema monetáriocomposto pelo Banco da Inglaterra, que erao único emissor de notas na metrópole,pelo Banco da Irlanda e por três bancos es-coceses, além de vários bancos provinciais.Neste contexto, em que a conversibilidadeem espécie foi suspensa, o papel do Bancoda Inglaterra era central e ainda observa-va-se uma divergência entre o preço demercado e do preço de cunhagem do ouroem barra – o que acabou levando à consti-tuição da “Comissão do Ouro”.

Henry Thornton, um ativo banqueiro deLondres e membro do Parlamento, foi oprimeiro a realizar uma exposição siste-mática da teoria da moeda e do crédito,em seu livro Investigação sobre a Naturezae os Efeitos do Papel-Crédito da Grã-Bre-tanha, de 1802. Em sua análise do siste-ma credíticio, ele mostrou, tal como Hu-me, que a curto prazo os fatores monetári-os podem ter efeitos reais, assim como osfatores reais podem ter efeitos monetári-os. Um crescimento do produto e do co-mércio estimularia o volume de créditoconcedido e da moeda corrente em circu-lação, na medida em que o sistema decrédito expande-se quando o volume denegócios aumenta. Thornton, ao contráriode Ricardo, defendia que o sistema credití-cio devia ser controlado ou dirigido atra-vés de uma emissão discricionária de no-tas administrada por um Banco Centralque ajustaria sua circulação.

* Hume, D. Essays, Moral, Political and Literaly.Citado por Hicks, J. Critics Essays in MonetaryTheory. Oxford: Clarendon Press, 1967, cap. 9.

A TEORIA QUANTITATIVA DA MOEDA DE HUME E RICARDO

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X3

.1

As Escolas do Meio Circulante e Bancária estavam de acordo que um Banco Central com o direitoexclusivo de emissão era essencial para zelar pela saúde da economia, mas diferiam quanto à necessida-de de uma regra para emissão de notas: a Escola do Meio Circulante defendia uma regra-limite para aautoridade monetária, enquanto que a Escola Bancária propunha uma autoridade sem regras. Por outrolado, a Escola dos Bancos Livres desaprovava tanto uma regra-limite como uma autoridade sob a formade Banco Central, defendendo um sistema emissor de notas competitivo que seria autorregulado.

A Lei Bancária de 1844 (Bank Charter Act) reconheceu a necessidade de centralizar o controle daoferta de moeda e estabeleceu formalmente o Banco da Inglaterra como autoridade monetária princi-pal, fixando um máximo para emissão de notas pelos bancos provinciais (que viriam a ser absorvidospelo Banco da Inglaterra) e dividindo o banco em dois departamentos: o Departamento Bancário, emque o Banco da Inglaterra funcionava como um banco comercial; e o Departamento de Emissão, emque todas as notas em circulação deveriam ser lastreadas em ouro – com o Banco da Inglaterra pas-sando a funcionar como uma espécie de Conselho da Moeda (currency board). A Inglaterra adotava,assim, as regras do padrão-ouro, que obrigavam o governo de um país a responder automaticamenteaos sinais gerados pelo seu balanço de pagamentos: se as divisas em ouro apresentassem uma tendên-cia de saída, o governo deveria elevar sua taxa de desconto, de modo a frear a saída de divisas; toda-via, se o fluxo de ouro aumentasse demasiadamente, a taxa de desconto deveria cair, para desestimu-lar a entrada de ouro.

O que se observou, na prática, é que, em períodos de crise bancária, o pânico era contido com o go-verno inglês autorizando a suspensão temporária dos limites legais sobre a emissão fiduciária. A ado-ção de um regime de moeda corrente lastreada em ouro e plenamente automático se encaixava com a fi-losofia prevalecente do laissez-faire no comércio, servindo particularmente à economia inglesa que ti-nha um superávit comercial normalmente elevado e em que a suspensão temporária das limitações au-tomáticas sobre a política de crédito interno só raramente foi exigida. Em geral, um aumento relativa-mente modesto das taxas de juros era suficiente para compensar a drenagem de ouro.

30 A Teoria Quantitativa da Moeda ELSEVIER

David Ricardo procurou dar uma expli-cação monetária mais simples aos proble-mas monetários da Inglaterra, descartan-do a noção de que um aumento na emis-são de notas de alguma forma pudesseaumentar o estoque nacional de capitalprodutivo. Para ele a inflação dos temposde guerra, mais do que uma inevitávelconsequência da guerra, era causadapela “política frouxa” do Banco da Ingla-terra, que levava a uma depreciação damoeda (valor do câmbio internacional dalibra-papel) nos mercados cambiais es-trangeiros. Assim, Ricardo colocava a res-ponsabilidade pela inflação e pela depre-ciação da taxa de câmbio diretamente so-bre os ombros dos diretores do Banco:

“Se os diretores do Banco... tivessemprocedido de acordo com o princípio quedeclaravam ter sido o que regulava suasemissões, quando eram obrigados a pa-gar as suas notas em espécie, a saber, li-mitar suas notas àquele montante que im-

pediria o excesso de mercado acima dopreço de cunhagem do ouro, não devería-mos estar agora expostos a todos os malesde uma moeda corrente depreciada e emperpétua variação”.*

Ricardo e seus seguidores buscaram, as-sim, regras mecânicas para o controle docrédito, num esquema parecido ao que mo-dernamente se conhece como currencyboard, defendendo que o sistema trabalha-ria bem se fosse encontrada uma forma emque o crédito funcionasse tal como o dinhei-ro metálico. De certa forma, pode-se dizerque a Lei Bancária de 1844 foi ricardiana,ao dividir o Banco da Inglaterra em dois de-partamentos: um departamento de emis-são, funcionando como um currency board,e um departamento bancário, funcionandocomo um banco comercial normal.

* Ricardo, D. The High Price of Bullion, a Proof oftrhe Depreciation of Banknotes. Citado por De-ane, P. A Evolução das Ideias Econômicas, p. 79,op. cit.

A TEORIA QUANTITATIVA DA MOEDA DE HUME E RICARDO

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3.2. TEORIA QUANTITATIVA: VERSÃO DE TRANSAÇÕES

DE FISHER

A teoria quantitativa da moeda (TQM) estabelece que os preços variam diretamente com a quantidadede moeda em circulação, considerando que a velocidade de circulação da moeda e o volume de transa-ções com bens e serviços não se alteram. Outra forma de expressar a TQM é dizer que uma mudança noestoque de moeda, num certo período de tempo, não tem efeito permanente sobre as variáveis reais, masresulta em uma mudança proporcional nos preços dos bens e serviços. Ou seja, o valor da moeda ou po-der de compra varia inversamente com o nível de preços, pois quanto mais baixos (ou altos) forem ospreços dos bens e serviços, maiores (menores) as quantidades que podem ser compradas por uma dadaquantia de moeda e, portanto, mais alto (baixo) o poder de compra da moeda.

Como vimos na seção anterior, a TQM veio sendo desenvolvida desde o século XVIII, mas sua ver-são mais famosa foi a versão de transações formulada inicialmente por Simon Newcomb, em 1885, epopularizada por Irving Fisher, em seu famoso livro de 1911, The Purchasing Power of Money. Seuponto de partida é estabelecer a identidade entre o total de pagamentos em moeda e o total de bens e ser-viços transacionados. Parte-se, portanto, de que, em cada ato de compra e venda de bens e serviços, ospagamentos em moeda e o valor dos bens e serviços trocados são idênticos. Assim, o total de moedapaga nas transações é igual ao valor total dos bens e serviços comprados. O evento elementar é umatransação, uma troca em que um agente econômico transfere bens e/ou serviços para outro agente e re-cebe uma transferência de moeda em troca.

A equação de troca é uma relação, na forma matemática, do total de transações efetivadas em umcerto período, sendo obtida somando as equações envolvidas em todas as trocas individuais no período.Assim temos que:

MV = PT ouMV + M’V’ = PT

(1)(2)

em queM = quantidade de moeda em circulação;V = velocidade de circulação da moeda;M’ = total de depósitos sujeitos a transferência de cheque;V’ = velocidade de circulação correspondente a M’;P = preços correspondentes dos bens e serviços;T = quantidade de transações físicas de bens e serviços.

O lado direito da equação – correspondente aos bens e serviços transacionados – é composto pelasquantidades de transações de bens e serviços trocados multiplicado pelos seus respectivos preços, numdeterminado período de tempo. O lado esquerdo – correspondente ao total de moeda utilizada parapagamentos durante um certo intervalo de tempo – é composto pela quantidade de moeda multiplicadapor sua velocidade de circulação. A equação de troca representa, portanto, uma aplicação da contabili-dade de partidas dobradas, em que cada transação é registrada simultaneamente em ambos os lados daequação. Segundo Fisher, a inclusão de depósitos bancários – que ele denominou de crédito circulante– na equação de troca, tal como na equação 2, não perturba a relação quantitativa entre moeda e preços,na medida em que a quantidade de depósitos ou crédito em circulação M’ tende a manter uma relaçãodefinida com M, a quantidade de moeda em circulação. Em outras palavras, os depósitos são normal-mente mais ou menos um múltiplo definido da moeda.

Uma versão modificada da equação de trocas foi formulada posteriormente, em que, para lidar comproblemas conceituais e estatísticos envolvidos na determinação do nível de preços e das quantidadestransacionadas, substitui-se o volume total de transações reais na economia com bens finais pelo Produ-to Interno Bruto (PIB), que só considera o produto final, e o nível de preços da economia. Assim:

A Teoria Quantitativa da Moeda 31

MV = Py (3)

em queM = oferta de moeda;V = velocidade renda da moeda;y = PIB real;P = nível de preços.

Na TQM, de forma geral, a moeda é tratada como um estoque e não como um fluxo. A velocidadede circulação ou a rapidez de giro (turnover) da moeda representa a taxa de utilização da moeda, ouseja, o quão rápido ou quantas vezes a moeda muda de mãos durante um período de tempo nas transa-ções realizadas. Instituições e hábitos determinam a velocidade agregada, cuja magnitude é fixada pe-las taxas de velocidade de circulação dos retentores individuais de moeda. Ela pode ser calculada peloquociente obtido pela divisão do total de pagamentos de bens em moeda no curso de um período (umano) pela quantia média de moeda em circulação através do qual estes pagamentos são efetuados. Combase nas equações 1 e 3 temos que:

V =PT

MV

Py

Mou � (4)

Os preços devem, como um todo, variar proporcionalmente com a quantidade de moeda (M) e coma velocidade de circulação (V) e inversamente com as quantidades de bens trocados. Assim, ao se do-brar a velocidade de circulação da moeda, o mesmo ocorrerá com o nível de preços, caso a quantidadede moeda em circulação e a quantidade de bens trocados por moeda permaneçam constantes. Por outrolado, ao se dobrar a quantidade de bens trocados, o nível de preços cairá pela metade, se a quantidade demoeda e sua velocidade de circulação permanecerem as mesmas. Caso haja uma mudança simultâneaem duas ou todas as três variáveis – quantidade de moeda, velocidade de circulação e quantidade debens transacionados – o nível de preços resultará dessas três influências. Se, por exemplo, a quantidadede moeda é duplicada, e sua velocidade de circulação diminui à metade, enquanto a quantidade de benstransacionados permanece constante, o nível de preços não se alterará. A equação de trocas mostra queum aumento em uma das variáveis de um lado da equação requer, de modo a preservar a igualdade, umaumento proporcional no outro lado.

Contudo, a TQM considera que, no equilíbrio de longo prazo, o volume dos bens transacionados édeterminado ao nível de sua plena capacidade por forças reais, incluindo a qualidade e quantidade daforça de trabalho, a magnitude do estoque de capital e o nível de tecnologia. A Lei de Say, que estabele-ce que “a oferta cria sua própria procura”, e que portanto toda produção gera o seu poder de compra cor-respondente, assegura (juntamente com outras hipóteses) que o produto y estará no nível de pleno em-prego a longo prazo. Assim, salvo em períodos de transição, quando todas as variáveis da equação detrocas podem interagir, as forças reais e o nível de negócios são independentes das outras variáveis daequação. A velocidade da moeda é considerada uma variável estável, que muda vagarosamente no tem-po, dependente que é de fatores institucionais, como frequência, regularidade e correspondência entrerecebimentos e gastos. Deste modo, tal como o volume de negócios, ela é independente das outras va-riáveis da equação de troca. Daí segue-se que as mudanças de equilíbrio no nível de preços ocorrem de-vido a mudanças no estoque de moeda. O nível de preços P, portanto, é considerado uma variável passi-va determinada pela oferta de moeda.

Em síntese, a teoria quantitativa diz que – uma vez que a velocidade de circulação e o volume de co-mércio sejam constantes – um aumento na quantidade de moeda em circulação faz com que os preçosaumentem na mesma proporção. A TQM se apoia, portanto, na ideia fundamental de que a moeda nãotem nenhum poder de satisfazer os desejos humanos, exceto o poder de comprar bens e serviços. A moe-da é apenas um meio de troca usado como ponte do hiato entre recebimentos e gastos dos agentes.

32 A Teoria Quantitativa da Moeda ELSEVIER

3.3. A TEORIA QUANTITATIVA NA VERSÃO

DOS SALDOS MONETÁRIOS DE CAMBRIDGE

O aspecto principal da moeda enfatizado na abordagem de transações é que, para um ato de venda poderser separado de um ato de compra, é preciso haver alguma coisa que sirva como moeda, que todos osagentes aceitem como poder de compra geral. Na abordagem dos saldos monetários (“cash-balance”),por outro lado, a moeda serve como uma residência temporária para o poder de compra, no intervalo detempo entre a venda e compra de mercadorias. Para qualquer agente individual, seja um consumidor ouuma empresa, pagamentos e recebimentos não têm por que se dar nas mesmas datas. Isto torna necessá-ria a existência de um objeto que cada um de nós possa usar para transportar poder de compra da dataem que o recebemos (por exemplo, quando vendemos alguma coisa) para aquela em que o gastaremos(na compra de bens e serviços, ou de ativos financeiros, ou de pagamento de impostos etc.). A moeda éexatamente este veículo na abordagem dos saldos monetários da TQM.

Quanta moeda as pessoas ou empresas irão querer reter em média, como uma residência temporáriado poder de compra? Como uma primeira aproximação, supõe-se normalmente que a quantidade retidade moeda deva ter alguma relação com a renda, no pressuposto de que a renda afeta o volume de com-pras potenciais em razão das quais o indivíduo ou a empresa desejam reter saldos de caixa. Assim,

M = kPy (5)

em quek = razão do estoque de moeda em relação à renda nominal (k = 1/V, 0 � k ���)M = quantia desejada de moeda.

A variável k é conhecida como constante marshalliana e é numericamente igual ao inverso de V. Aequação 5 é na realidade derivada da equação 3.

Note-se que, em qualquer das equações 3, 4 ou 5, M representa um estoque (medido, por exemplo,em reais) e Py um fluxo (reais por unidade de tempo). Segundo Friedman,3 a equação 5 pode ser consi-derada como uma função demanda por moeda, com P e y do lado direito sendo duas das variáveis deque a quantidade de moeda demandada depende e k simbolizando todas as outras variáveis. A versão deCambridge expressa a demanda por moeda como uma proporção k do nível de renda. A relação propor-cional entre moeda e preços depende da estabilidade da velocidade de Circulação ou k.

Como a oferta de moeda (MS) é considerada exógena pela TQM, para que haja equilíbrio no merca-do de moeda, a quantidade ofertada deve ser igual à quantidade demandada. Assim:

M = Md = MS (6)

Como visto, uma das diferenças entre a versão de transações e a abordagem dos saldos monetáriosrefere-se a ênfases distintas na definição da moeda. Tal diferença, contudo, é mais metodológica do quede resultados, pois a versão de Cambridge parte também da Lei de Say, argumentando que y deverá es-tar no nível de pleno emprego a longo prazo e que k é estável e independente da oferta de moeda. Comok permanece constante, tal versão resulta na mesma relação proporcional entre oferta de moeda e nívelde preços, uma vez que mudanças na oferta de moeda causam mudanças diretas nas decisões de gastodos agentes. Assim, a oferta de moeda deveria crescer de modo suave ao longo do tempo, para satisfazeras necessidades básicas da economia representada pelo crescimento da renda real. Qualquer aumento

A Teoria Quantitativa da Moeda 33

3. Friedman, M. “Quantity Theory of Money”. In: Newman, P. et alli (ed.). The New Palgrave Dictionary of Money & Finan-ce. London: Macmillan, 1992.

maior no estoque de moeda do que aquele determinado pelo crescimento da renda real acarretaria umaumento correspondente no nível de preços.

Pela teoria quantitativa, o único motivo para uma economia experimentar inflação ou deflação resultade desvios na oferta de moeda de seu nível de equilíbrio de longo prazo. Daí por que se pode interpretar aTQM como uma teoria da inflação, em que a taxa de crescimento de preços é determinada pela expansãodos meios de pagamento acima do crescimento do produto real. Assim, a taxa de inflação pode ser obtidapela diferença entre a taxa de expansão monetária e a taxa de crescimento do produto real.

3.4. A TEORIA QUANTITATIVA DA MOEDA

E SEUS POSTULADOS BÁSICOS4

Os principais postulados que estão implícitos na teoria quantitativa da moeda são: equiproporcionali-dade entre moeda e preços; causalidade da moeda para preços; não neutralidade de curto prazo e neutra-lidade da moeda no longo prazo; independência entre oferta e demanda por moeda; dicotomia preçosrelativos/preços absolutos. Vejamos cada uma delas separadamente.

3.4.1 EQUIPROPORCIONALIDADE ENTRE MOEDA E PREÇOS

A proposição básica da TQM é que “uma mudança na quantidade de moeda normalmente causa umamudança proporcional no nível de preços”, pois como visto, o volume de bens transacionados e a velo-cidade de circulação da moeda são independentes do estoque de moeda no longo prazo. Neste sentido,se, por exemplo, a oferta de moeda aumenta 10%, o nível de preços aumentará também em 10%, porqueV e y são independentes da oferta de moeda no longo prazo e permanecerão constantes.

A proporcionalidade entre moeda e preços se assenta na proposição de que o comércio e a velocida-de são mantidos fixos. No tempo histórico real, contudo, ambos experimentam mudanças seculares, in-dependentemente do estoque de moeda. Por isso, a proporcionalidade refere-se mais propriamente aoefeito da moeda sobre preços.

3.4.2 CAUSALIDADE DA MOEDA PARA PREÇOS

A causalidade da moeda para preços é assegurada à medida que nenhuma das variáveis da equação detrocas – V e y – pode absorver permanentemente o impacto da mudança em M. A variação da oferta demoeda transmite seu efeito completo aos preços através de um mecanismo de ajustamento como o dis-cutido na seção anterior: em um esforço para restaurar a velocidade da moeda ao seu nível desejado, ospossuidores de moeda aumentarão sua taxa de gasto; o gasto aumentado exercerá – posto que o produtoé fixado em seu nível de plena capacidade – uma pressão para cima dos preços.

3.4.3 NÃO NEUTRALIDADE DE CURTO PRAZO E NEUTRALIDADE

DA MOEDA NO LONGO PRAZO

Para a TQM, um aumento na oferta de moeda não pode aumentar de forma permanente o nível de pro-duto, já que este depende da disponibilidade dos fatores de produção. Assim, a independência entre onível de produto e a quantidade de moeda significa que a moeda não pode influenciar de forma perma-nente a atividade real.

34 A Teoria Quantitativa da Moeda ELSEVIER

4. Esta seção está baseada em Humphrey, T. “Fisher and Wicksell on the Quantity Theory.” Federal Reserve Bank of Rich-mond Quaterly, vol. 83/4, outono 1997, seção 1.

3.4.4 INDEPENDÊNCIA ENTRE OFERTA E DEMANDA POR MOEDA NA VERSÃO FISHER

Para economias operando no padrão-ouro, tal como era o caso da Inglaterra na ocasião em que a TQMfoi elaborada por Fisher e outros, o estoque de moeda em uma economia aberta é determinado exogena-mente por um dado estado do balanço de pagamentos, resultante de um certo nível de preços externosem relação ao doméstico. Por isso, a oferta é considerada independente da demanda por moeda.

3.4.5 DICOTOMIA PREÇOS RELATIVOS/PREÇOS ABSOLUTOS

Esta dicotomia está vinculada ao fato de que se atribuía a variações nos preços relativos mudanças nasvariáveis reais, como PIB, emprego etc, enquanto que os movimentos nos preços absolutos eram atribuí-dos a causas monetárias. As mudanças no nível de preços não podem ser causadas por alterações noscustos de produção, como em caso de forte militância sindical, de poder de monopólio das firmas, deescassez de mercadorias etc. Tais forças afetam preços relativos, mas não preços absolutos. Em outraspalavras, dado o estoque de moeda, a velocidade da moeda e o nível de troca de bens, as mudanças in-duzidas por um choque real em preços relativos produzem mudanças compensatórias em outros, dei-xando o nível de preços absolutos inalterado.

3.5. WICKSELL E O PROCESSO CUMULATIVO

O processo cumulativo de Wicksell considera tanto o mecanismo direto de transmissão monetáriaquanto o indireto, o que lhe permitiu uma apresentação da teoria quantitativa da moeda de forma maisrefinada do que aquela desenvolvida por seus contemporâneos. Por mecanismo direto referimo-nos aoefeito do aumento da oferta de moeda diretamente sobre a demanda por bens. Este mecanismo será su-posto funcionar do seguinte modo: vamos assumir que consumidores e empresas, ao decidir a quantida-de de moeda que desejam reter, levem em conta apenas o seu valor real, isto é, apenas o poder de compraefetivo representado por uma dada quantia de dinheiro. Quando a oferta de moeda é aumentada, estesconsumidores e empresas veem-se com mais poder de compra do que desejariam, dados os preços cor-rentes dos bens. Assim, estarão retendo saldos reais em excesso. Estes agentes tentarão livrar-se do po-der de compra excedente ao desejado do modo mais simples: gastando-o na compra de bens e serviços.Como estamos assumindo que o produto desta economia já esteja em seu máximo, o aumento da de-manda causado pelo gasto dos saldos reais excessivos fará os preços subirem. A esta sequência de acon-tecimentos chamaremos efeito saldos reais. Por exemplo, a descoberta de ouro (em um país sob oregime padrão-ouro) acarreta uma demanda excedente de bens, que, por sua vez, eleva os preços inter-nos. Já o mecanismo indireto se apoia no reconhecimento da existência de uma relação entre a demandapor moeda (e sua velocidade) e a taxa de juros, na qual um aumento (diminuição) na oferta de moeda re-duz (aumenta) primeiro a taxa de juros, elevando-se depois a demanda por bens, causando então um au-mento (diminuição) do nível de preços.

3.5.1. A ECONOMIA DE MOEDA PURA

Em uma economia hipotética de moeda pura, de pagamento à vista em meio circulante – onde não exis-te nenhum banco para emitir depósitos transferíveis por cheque e todas as transações são mediadas intei-ramente por moeda metálica – o aumento da oferta de saldos reais de ouro assegura que os preçosmovem-se proporcionalmente à quantidade de moeda no equilíbrio de longo prazo. Assim, a descober-ta de ouro em uma economia fechada tornaria, aos preços inicialmente vigentes, os saldos reais maioresque desejados. Os detentores de moeda gastarão este poder de compra excedente (efeito saldo real),pressionando para cima os preços, que acabam por aumentar proporcionalmente ao aumento do estoque

A Teoria Quantitativa da Moeda 35

de ouro monetário. Em outras palavras, numa economia hipotética de moeda pura, valem inteiramentetodas as premissas da teoria quantitativa da moeda, expostas nas seções precedentes.

3.5.2. A ECONOMIA MISTA DE MOEDA-CRÉDITO E O PROCESSO CUMULATIVO

Para Wicksell, a teoria quantitativa clássica, aplicável às economias de moeda pura, parecia estreita eantiquada, pois omitia a existência de bancos e de depósitos criados como contrapartida de emprésti-mos. Assim, ele procurou suplementar a teoria quantitativa com a descrição do mecanismo através doqual o equilíbrio monetário é inicialmente perturbado e depois restaurado em uma economia mista demoeda-crédito, ou economias de moeda-depósito, através de sua análise do processo de desequilíbriocumulativo. Tratava-se, portanto, de adotar uma premissa mais realista do que a de uma economia hipo-tética de moeda pura.

Sua análise atribui os movimentos no nível de preços às discrepâncias entre duas taxas de juros:

a) Uma taxa de juros de empréstimos ou de mercado, cobrada pelos bancos pelos créditos que ofere-cem, que é determinada no mercado de crédito pelo sistema bancário;

b) Uma taxa natural de juros, que é a taxa de equilíbrio que iguala ex-ante a poupança desejada com oinvestimento planejado a pleno emprego – sendo, portanto, determinada pela demanda existente decapital e pelo volume de poupança – e que corresponde à produtividade marginal ou taxa interna deretorno sobre unidades novas criadas de capital físico. Como à taxa natural de juros a poupança seráigual ao investimento, a oferta agregada da economia será igual à demanda agregada, e o nível depreços será estável.

No Gráfico 3.1, a taxa natural de juros (rn) deriva da intercepção entre as curvas de poupança (S) ede investimento (I). Quando a taxa de juros de mercado é igual a essa taxa natural de juros, a economiaestará em equilíbrio monetário. Contudo, a taxa de juros de mercado não é fixada por um leiloeiro wal-rasiano, mas pelo sistema bancário, e, por isso, só por acaso será igual à taxa natural.

Quando a taxa de empréstimo permanece abaixo da taxa natural – por exemplo, em r0 – tal que ocusto do capital é menor que a produtividade marginal do capital, o investimento planejado excederá apoupança. Os empresários investidores procurarão financiar os novos projetos de investimento, dese-jando tomar emprestado dos bancos em um valor maior do que aquele que o público depositou nos ban-cos. Os bancos podem acomodar esta demanda adicional de crédito, por exemplo expandindo o volume

36 A Teoria Quantitativa da Moeda ELSEVIER

S, I

I (r)S (r)r

r1

rn

r0

GRÁFICO 3.1Determinação da Poupança e do Investimento

de depósitos. Esta expansão, ao viabilizar o excesso desejado de demanda agregada implícita no hiatoinvestimento-poupança, o transforma em excesso efetivo de demanda agregada, que transborda para omercado de bens, colocando uma pressão para cima nos preços. Deste modo, a expansão dos depósitosproduz um aumento persistente e cumulativo nos preços, enquanto o diferencial de juros durar. A infla-ção resulta, assim, do fato de os bancos não terem aumentado a taxa de juros de mercado tanto quantonecessário para manter estável a demanda agregada na economia. A inflação persistirá enquanto semantiver o diferencial de taxa de juros.

O que levaria a taxa de juros de mercado a ficar abaixo da taxa natural? Segundo Wicksell, a condiçãoindispensável era que afluísse permanentemente novo ouro para o sistema bancário, ou, mais moderna-mente, que o Banco Central, por algum motivo, expandisse endogenamente a oferta de moeda na econo-mia. Consequentemente, haveria um aumento no nível de reservas dos bancos, que, assim desejariam am-pliar sua oferta de empréstimos e de depósitos bancários; só poderiam fazê-lo, no entanto, baixando a taxade juros que cobram sobre os empréstimos em relação à taxa natural, provocando, assim, uma variaçãocumulativa no volume de moeda bancária e nos preços. Isto porque a taxa de juros menor torna mais ren-tável a contratação de empréstimos para o empresário investidor comprar bens de capital, gerando um ex-cesso de demanda no mercado de bens, que resultaria em um aumento no nível de preços.

Da mesma forma, os bancos podem teoricamente provocar uma queda ilimitada dos preços, man-tendo uma taxa de juros acima da normal. Assim, quando a taxa de empréstimo permanece acima dataxa natural – por exemplo, em r1 – tal que o custo do capital é maior que a taxa de retorno esperada docapital, a poupança excederá o investimento planejado. De acordo com o funcionamento do mecanismoindireto de transmissão, o resultado final será uma demanda agregada menor e, consequentemente, umnível de preços menor, já que haveria mais estímulo a poupar do que a investir.

Seria, todavia, o processo cumulativo do mecanismo indireto de Wicksell explosivo? A resposta énegativa, pois Wicksell supôs a existência de um fator estabilizador. O aumento nos preços causadopelo diferencial de taxas de juros gera a necessidade de criação adicional de moeda para satisfazer a de-manda transacional real de moeda. A conversão por parte do público de depósitos em meio circulante ea resultante drenagem das reservas bancárias induzem os bancos a aumentar sua taxa de juros de em-préstimos até que elas se igualem à taxa natural. Este último passo baixa as reservas dos bancos e, à me-dida que isto ocorre, também diminui o desejo dos bancos de prover empréstimos. Se os bancos nãopossuem reserva em excesso e tiverem, por isso, que restaurar as reservas ao seu nível inicial, eles con-tinuarão a aumentar a taxa de mercado em direção à taxa natural, até que os preços retornem ao seu ní-vel preexistente. Resumindo, para Wicksell, o fator responsável pelo qual a taxa de empréstimos con-verge eventualmente para o nível de equilíbrio natural é a perda de reservas, que acaba afetando a ofertade empréstimos e de depósitos bancários, já que os bancos se defrontam com a necessidade de elevar ataxa de juros para proteger suas reservas.

Contudo, para Wicksell, a taxa natural de juros não é fixa, na medida em que ela flutua conjunta-mente com as causas reais das flutuações econômicas. Assim, ela pode baixar quando aumenta o volu-me de capital devido à acumulação da poupança; pois sendo cada vez mais difícil o emprego rentável decapital novo, a concorrência com o capital existente reduz a taxa de juros, ao mesmo tempo que se ele-vam os salários e outras rendas. E pode se elevar, quando diminui o volume de capital, seja relativa-mente – por exemplo, devido a um incremento da demanda de capital maior do que a poupança normal– seja absolutamente, como consequência de uma guerra destrutiva ou qualquer catástrofe natural, ouainda por causa de uma descoberta técnica que abra novas perspectivas para o emprego de capital. Des-te modo, a taxa natural de juros está sujeita a mudanças por vezes muito intensas. Por isso, uma coinci-dência espontânea entre a taxa de juros de mercado e a taxa natural é pouco provável. Daí a importânciada manutenção do valor da moeda estável para Wicksell, por parte do sistema bancário, através do ma-nejo adequado das taxas de juros bancárias, reduzindo-as quando os preços estiverem declinando e ele-vando-as quando os preços estiverem subindo.

A Teoria Quantitativa da Moeda 37

38 A Teoria Quantitativa da Moeda ELSEVIER

Como visto nesta seção, para Wicksell acausa primária das flutuações de preços éa diferença que surge entre a taxa de jurosde empréstimo e a taxa natural de juros.

“Se os bancos cedem seu dinheiro emempréstimo com juros essencialmentemais baixos (...) do que os juros normais,então será afetado o espírito da poupançae por esse motivo se produzirá um aumen-to da demanda presente de bens de con-sumo e de serviços. Em segundo lugar,aumentarão as perspectivas que se abrempara os empresários de obter maiores lu-cros; e a demanda de bens e serviços (...)será incrementada no mesmo sentido.Devido à maior renda que recebem os tra-balhadores, os proprietários de terra, osproprietários de matérias-primas etc., ospreços dos bens de consumo começarão asubir, ainda mais agora que os fatores deprodução de que dispúnhamos anterior-mente se retiraram para a produção futu-ra. Será alterado o equilíbrio do mercadode bens e serviços”.*

“O movimento ascendente dos preços,seja grande ou pequeno no primeiro mo-mento, não pode cessar enquanto a taxade juros se mantiver abaixo de sua taxanormal, isto é, a taxa consistente com aprodutividade marginal do capital real en-tão existente. Quando todos os preços dasmercadorias tiverem aumentado, ter-se-áformado um novo nível de preços, o qualpor sua vez servirá de base para todos oscálculos para o futuro, e para todos oscontratos. Portanto, se a taxa bancáriaagora subir para seu patamar normal, onível de preços não cairá (...); se a taxabancária permanecer mais baixa do queseu patamar normal, seguir-se-á um novoímpeto forçando os preços para cima, eassim por diante. O oposto de tudo issoocorrerá quando a taxa de juro tiver setornado alta demais em proporção ao lu-cro médio (...)”.**

Os bancos têm um papel central naanálise de Wicksell, devido a sua capaci-dade de concessão de empréstimos, quenão é limitada pelo seu próprio capital oumesmo de terceiros:

“Em suas atividades de empréstimos,os bancos não só não estão limitados porseu capital próprio; eles não estão, pelomenos imediatamente, limitados por ne-nhum capital; concentrando em suas mãos

quase todos os pagamentos, eles próprioscriam a moeda necessária, ou, o que é amesma coisa, eles aceleram ad libitum avelocidade de circulação da moeda. (...)Em nossos dias, a demanda e a oferta demoeda se tornaram quase a mesma coisa,com a demanda criando em grande medi-da sua própria oferta”.***

O processo cumulativo, contudo, não éexplosivo, havendo um fator estabilizadorque é interno:

“Quando o juro for baixo em propor-ção à taxa de lucro existente, e se, comoafirmo, os preços subirem por isso, então,certamente, o comércio exigirá mais pa-pel-moeda e moeda bancária, e portantonem todas as somas emprestadas voltarãoaos bancos, mas parte delas permaneceránas caixas e carteiras do público; em con-sequência, as reservas bancárias diminui-rão, enquanto o montante de suas obriga-ções muito provavelmente terá aumenta-do, o que os forçará a elevar sua taxa dejuros. O inverso disso, é claro, ocorreráquando a taxa de juros tiver se tornadoacidentalmente muito alta em proporçãoao lucro médio sobre o capital”.****

Para Wicksell, o valor da moeda podeser mantido estável através do manejoadequado das taxas bancárias:

“(...) O problema de manter o valor damoeda estável, o nível médio dos preçosmonetários em um patamar constante – oque evidentemente deve ser consideradocomo o problema fundamental da ciênciamonetária – seria solucionável teórica epraticamente em qualquer lugar. E osmeios de solucioná-lo não precisam serbuscados em algum esquema mais oumenos fantástico, como aquele de um ban-co emissor central para todo o mundo,como às vezes é proposto, mas simples-mente em um manejo apropriado das ta-xas bancárias gerais, reduzindo-as quandoos preços estiverem caindo, e elevando-asquando os preços estiverem subindo”.*****

* Wicksell, K. Lições de Economia Política. SãoPaulo: Nova Cultural, 1985, p. 276.** Wicksell, K. “A influência da taxa de juro so-bre os preços.” In Carneiro, R. (org.). Os Clássi-cos da Economia, v. 1. São Paulo: Ed. Ática,1997, p. 273-4.*** Idem, p. 272.**** Idem, p. 272-3 (grifos no original).***** Idem, p. 276.

O PROCESSO CUMULATIVO, SEGUNDO WICKSELL

BO

X3

.2

3.5.3. A ECONOMIA DE CRÉDITO PURO

O processo cumulativo será explosivo somente no caso especial e extremo de uma economia de créditopuro ou dinheiro endógeno em sua totalidade. A economia de crédito puro é um caso hipotético e extre-mado, em que todo o dinheiro assume a forma de depósitos bancários e os bancos não conservam ouronem nenhuma outra forma de dinheiro como reserva, ou seja, todos os pagamentos são feitos por trans-ferências nos registros bancários. Consequentemente, os bancos seriam capazes de fornecer a qualquermomento empréstimos a qualquer taxa de juros, sem serem constrangidos por qualquer perda de reser-vas, podendo conservar permanentemente sua taxa de juros por debaixo da taxa natural. Ou seja, osbancos poderiam satisfazer sempre qualquer demanda por empréstimos com juros baixos, o que signi-fica que a quantidade de moeda é determinada endogenamente pela sua demanda.

Com a oferta de depósitos bancários idêntica à demanda a todos os preços, não há – em uma econo-mia de crédito puro – um único nível de preços de equilíbrio ou de quantidade de depósitos. Ao contrá-rio, há uma infinidade de equilíbrios preço-quantidade. O nível de preços é, assim, indeterminado.

3.6. ERA WICKSELL UM QUANTITATIVISTA?

Como visto na seção anterior, Wicksell desenvolveu uma formulação teórica bem mais complexa e re-finada do que aquela desenvolvida pela teoria quantitativa clássica. Talvez, por isso, autores de matri-zes teóricas distintas, como o monetarista Milton Friedman e o keynesiano James Tobin tenhamencontrado similaridades entre seus argumentos teóricos sobre moeda e taxa de juros e os de Wicksell.

Mas, afinal, era Wicksell um quantitativista? Não se pretende nesta seção dar uma resposta final aesta questão, mas apenas levantar argumentos favoráveis e contrários ao enquadramento deste autorcomo um teórico quantitativista.

Como visto na seção anterior, Wicksell desenvolveu uma teoria monetária muito peculiar, em quediferenças entre a taxa de juros de empréstimos e a taxa natural de juros afetam o equilíbrio monetárioda economia, com impacto sobre o nível de preços. Ainda que dentro do processo cumulativo haja for-ças que fazem com que a taxa de empréstimos não se afaste indefinidamente da taxa natural, nada ga-rante que estas duas coincidam. Assim, para ele, as mudanças no nível de preços derivam diretamentedo diferencial de taxa de juros ao invés de causas monetárias primárias.

Para aqueles que veem o modelo de processo cumulativo de Wicksell consistente com a teoriaquantitativa – como Humphrey – são na realidade os choques monetários que causam o diferencial detaxas que dá início ao processo cumulativo. Isto porque – argumenta-se – a alteração no nível de preçosnunca poderia ocorrer sem ser acompanhada por uma mudança na oferta de depósitos que dá suporte aela. Ou seja, o diferencial de taxas sozinho não poderia sustentar mudanças no nível de preços, na medi-da em que alguma coisa deve financiar o excesso de demanda por bens que mantém os preços se elevan-do. Nesta linha de raciocínio, o fator-chave que permite no esquema analítico de Wicksell os movimen-tos nos preços é a expansão de depósitos e não os diferenciais de taxas ou mesmo choques reais, sob aforma de guerras, progresso técnico e inovações que afetam a taxa natural de juros. Um aumento nospreços causado pelo diferencial de taxas necessita de moeda adicional para satisfazer o aumento da de-manda transacional real. Logo, em última instância, o esquema de Wicksell resulta na mesma proposi-ção básica da teoria quantitativa, de que o nível de preços varia diretamente com a quantidade de moedaem circulação.

Contudo, há outros autores5 que dizem que Wicksell sustentava que a teoria quantitativa só seriaverdadeira sob a assunção de uma velocidade constante de circulação da moeda, que seria o caso extre-mo do sistema de moeda pura sem crédito. Todavia, com a existência do crédito, a velocidade de circu-lação tornar-se-ia variável, sendo impossível provar satisfatoriamente e de forma exata a relação entre a

A Teoria Quantitativa da Moeda 39

5. Steiger, O. “Monetary equilibrium.” In: Eatwell, J. et alli (ed.). The New Palgrave: a Dictionary of Economics. London:Macmillan, 1987.

quantidade de moeda e o nível de preços. Assim, Wicksell estaria levando em conta em sua análise aexistência de um sistema bancário desenvolvido, em que – de acordo com suas próprias palavras – “osbancos, ao contrário dos particulares, não só podem emprestar seus próprios fundos, mas também asquantidades disponíveis que foram depositadas em poupança (...) [dispondo] de um fundo para emprés-timos que oferece sempre uma grande elasticidade, e que, segundo certos pressupostos, é inesgotável”.6

Portanto, “em suas atividades de empréstimos, os bancos não só não estão limitados por seu capital pró-prio; eles não estão, pelo menos imediatamente, limitados por nenhum capital; concentrando em suasmãos quase todos os pagamentos, eles próprios criam a moeda necessária, ou, o que é a mesma coisa,eles aceleram ad libitum a velocidade de circulação da moeda”.7 O sistema bancário, devido a sua capa-cidade de oferecer “elasticamente” empréstimos aos demandantes de crédito, é – segundo esta linha deargumentação – mais do que um mero intermediador de recursos, podendo financiar um gasto adicional(consumo ou investimento), criando moeda bancária própria.

40 A Teoria Quantitativa da Moeda ELSEVIER

6. Wicksell, K. Lições de Economia Política. São Paulo: Nova Cultural, 1985, p. 276.7. Wicksell, K. “A influência da taxa de juro sobre os preços”, op.cit., p. 272.

APÊNDICE

FORMALIZANDO O PROCESSOCUMULATIVO DE WICKSELL8

Assume-se, inicialmente, que toda poupança é depositada nos bancos e que todo investimento é financia-do pelos bancos e que estes emprestam somente para financiar investimento, e ainda que o pleno empregoprevalece tal que mudanças na demanda agregada afetam preços mas não o produto real. Então o modeloreduz-se às seguintes equações que relacionam as seguintes variáveis: investimento I, poupança S (ambosde magnitude planejada, ex ante), taxa de juros de empréstimo i, taxa de juros natural r, demanda por cré-dito LD, oferta de crédito LS, excesso de demanda agregada E, mudança no estoque de depósitos sujeitos acheque dD/dt, mudança no nível de preços dP/dt, e mudança na taxa de mercado di/dt.

A primeira equação diz que o investimento planejado excede a poupança quando a taxa de jurosde empréstimo cai abaixo de seu nível de equilíbrio natural (o nível que equilibra poupança e investi-mento):

I – S = a(r – i) (1)

onde o coeficiente a relaciona o hiato poupança-investimento à respectiva taxa diferencial.A segunda equação estabelece que o excesso de investimento sobre a poupança iguala os novos de-

pósitos adicionais sujeitos a cheque criados para financiá-lo:

dD/dt = I – S (2)

Em outras palavras, os bancos criam novos depósitos transferíveis por cheque através de emprésti-mos, tal expansão de depósito ocorre quando os bancos emprestam aos investidores mais do que eles(bancos) recebem dos poupadores. Assim, a equação 2 admite a seguinte derivação. Denote a demandade investimento por empréstimos como LD = I (i), onde I (i) é a relação entre o gasto com investimentoplanejado e a taxa de juros de empréstimo. Similarmente, denote a oferta de crédito como a soma depoupança mais os novos depósitos criados pelos bancos para acomodar as demandas por crédito. Emresumo, LS = S(i) + dD/dt. Igualando a oferta e demanda por crédito e resolvendo pelo hiato resultanteentre investimento e poupança tem-se a equação 2.

A terceira equação diz que os novos depósitos, sendo gastos imediatamente, transbordam no mer-cado de bens sustentando o excesso de demanda agregada por bens E, derivado do hiato entre investi-mento e poupança:

dD/dt =E (3)

A quarta equação, por sua vez, diz que o excesso de demanda agregada pressiona para cima os pre-ços, que aumentam na proporção do excesso de demanda:

dP/dt = bE (4)

onde o coeficiente b é o fator de proporcionalidade entre mudança no nível de preços e excesso de de-manda.

A Teoria Quantitativa da Moeda 41

8. A formalização feita neste anexo foi extraída de Humphrey, T. “Fisher and Wicksell on the Quantity Theory”, op. cit.,p. 79-81.

Substituindo as equações 1, 2 , e 3 em 4, e 1 em 2, obtém-se

dP/dt = ab(r – i) (5)

e

dD/dt = a(r – i) (6)

isto é, conjuntamente, a variação de preços e o crescimento dos depósitos originam-se da discrepân-cia entre as taxas de juros de mercado e natural.

Finalmente, já que os banqueiros devem em algum ponto aumentar suas taxas de juros de emprésti-mo para protegerem suas reservas em ouro da inflação, uma última equação

di/dt = gdP/dt (7)

fecha o modelo. Esta equação diz que os banqueiros, tendo se livrado do excesso de reservas, agora au-mentam suas taxas de juros na proporção da taxa de mudança de preços (sendo g o fator de proporciona-lidade). A equação assegura que a taxa de juros de empréstimos eventualmente converge para seu nívelde equilíbrio natural, como pode ser visto substituindo a equação 5 na fórmula acima para obter

di/dt = gab(r – i) (8)

Com a passagem do tempo, a taxa de empréstimo converge para a taxa natural. Neste ponto, o equi-líbrio monetário é restaurado. Poupança iguala-se ao investimento, o excesso de demanda desaparece, aexpansão de depósitos cessa e os preços se estabilizam em um novo nível, porém mais alto.

RESUMO

1. Este capítulo analisou as teorias de demanda por moeda em sua versão clássica, conhecida como teoria quanti-tativa da moeda. A TQM foi formulada por vários autores no decorrer dos séculos XVIII e XIX, mas só viriaganhar a sua forma definitiva, tal como ficou conhecida, através da equação de troca popularizada por Fisher(MV = PT) e da versão dos Saldos Monetários de Cambridge (M = kPy). Esta última formulação, segundoMilton Friedman, constituiu-se na primeira teoria de demanda por moeda.

2. No debate monetário ocorrido na Inglaterra na primeira metade do século XIX, seja na controvérsia bullionis-ta, seja no debate entre as Escolas do Meio Circulante, Bancária e de Bancos Livres, o que estava em discussãoera, no primeiro caso, uma explicação para a depreciação do valor cambial da libra e, no segundo, o controlemonetário por parte do Banco da Inglaterra. Este debate resultou na proposta do Relatório da Comissão doOuro de se restaurar a estabilidade monetária através da imposição ao Banco da Inglaterra de uma restrição deresgate de suas notas em ouro (retorno à conversibilidade) e, mais tarde, na Lei Bancária de 1844, que estabe-leceu uma regra para emissão de notas por parte do Banco da Inglaterra, tal como havia sido defendido pelaEscola do Meio Circulante.

3. A proposição central da teoria quantitativa da moeda é que o nível de preços varia diretamente com a quanti-dade de moeda em circulação, considerando estáveis no longo prazo a velocidade de circulação da moeda e ovolume de transações com bens e serviços. Sua identidade básica é a existência de uma identidade entre umfluxo de pagamentos em moeda e um fluxo de bens e serviços em que, em cada evento de compra e venda debens e serviços, a moeda e os bens trocados são equivalentes.

4. Da proposição central acima, deriva, para a TQM, o postulado da neutralidade da moeda no longo prazo, umavez que um aumento na quantidade de moeda em circulação não pode aumentar de forma permanente o nívelde produto na economia, mas apenas temporariamente. O nível de produto é determinado, no equilíbrio de

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longo prazo, ao nível de sua plena capacidade por forças reais, relacionadas à disponibilidade de fatores deprodução (mão de obra, capital e tecnologia). Assim, a oferta de moeda deve crescer de modo suave ao longodo tempo para satisfazer as necessidades básicas da economia representadas pelo crescimento da renda real.Um aumento maior no estoque de moeda do que aquele determinado pelo crescimento da renda real acarreta-ria um aumento correspondente no nível de preços.

5. Wicksell desenvolveu uma teoria monetária mais refinada e complexa do que a teoria quantitativa da moeda,analisando uma economia dotada de um sistema bancário desenvolvido. Ele trabalha com três hipóteses: eco-nomia de moeda pura, economia de crédito puro e economia mista de moeda-crédito. As duas primeiras sãohipotéticas, enquanto que a terceira é mais adequada à realidade. Somente para a primeira hipótese – econo-mia de moeda pura – valem todas as premissas da teoria quantitativa da moeda.

6. Sua análise parte da existência de duas taxas: uma taxa de juros de empréstimos ou de mercado, determinadano mercado monetário pelo sistema bancário; e uma taxa natural ou normal de juros, que é a taxa de equilí-brio que iguala ex-ante a poupança com o investimento planejado a pleno emprego.

7. Wicksell deesenvolveu uma análise do processo cumulativo em que os movimentos no nível de preços sãoatribuídos à discrepância entre as duas taxas de juros. Em particular, quando a taxa de juros de empréstimospermanecer abaixo da taxa natural, o investimento planejado excede a poupança. Isto resultará num aumentono nível de preços, uma vez que os bancos acomodem a demanda adicional de crédito, gerando um excesso dedemanda agregada que pressiona os preços para cima. Da mesma forma, a taxa de empréstimos menor que ataxa natural, com a poupança excedendo o investimento planejado, resulta numa demanda agregada menor eum nível de preços mais baixo.

8. Há controvérsia se Wicksell foi ou não um teórico quantitativista. Aqueles que acham que sim dizem que o di-ferencial de taxas só resulta em inflação se houver emissão monetária para satisfazer a demanda real de transa-ção. Aqueles que pensam que não, destacam que num sistema misto de moeda-crédito a velocidade decirculação da moeda torna-se variável, não se estabelecendo uma relação exata entre a quantidade de moeda eo nível de preços.

TERMOS-CHAVE

� Moeda Metálica� Escola Bancária� Emissão de Moeda� Versão de Fisher� Velocidade de Circulação da Moeda� Processo Cumulativo� Taxa Natural de Juros

� Escola do Meio Circulante� Escola dos Bancos Livres� Teoria Quantitativa da Moeda� Versão dos Saldos Monetários� Constante Marshalliana� Crédito Puro� Taxa de Juros de Mercado

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Schwartz, A. “Banking School, Currency School, Free Banking School”. In: Newman, P. et alli (ed.). The NewPalgrave Dictionary of Money & Finance. London: Macmillan, 1992.

Trata-se de uma boa e didática exposição do debate entre a Banking School, Currency School e Free BankingSchool, ainda que sua leitura do debate não seja imparcial, revelando a filiação monetarista da autora. É interes-sante notar no texto de Schwartz que muitas das questões que foram discutidas na Inglaterra, na primeira metadedo século XIX, ainda continuam no centro do debate da teoria monetária contemporânea.

Hicks, J. Critical Essays in Monetary Theory. Oxford: Clarendon Press, 1967, cap. 9.Neste capítulo de seu conhecido livro, Hicks analisa a evolução da teoria monetária “clássica”, de David Hume

a Stuart Mill, tomando como ponto de partida que “os melhores trabalhos da teoria monetária têm sido diretamen-te provocados por episódios particulares, pelas experiências da época do autor”.

Friedman, M. “Quantity Theory of Money”. In: Newman, P. et alli (ed.). The New Palgrave Dictionary of Mo-ney & Finance. London: Macmillan, 1992.

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Humphrey, T. “Fisher and Wicksell on the Quantity Theory”. Federal Reserve Bank of Richmond Quaterly,vol. 83/4, outono 1997.

Wicksell, K. A influência da taxa de juro sobre os preços. In: Carneiro, R. (org.). Os Clássicos da Economia, v.1. São Paulo: Ed. Ática, 1997.

Steiger, O. “Monetary equilibrium”. In: Eatwell, J. et alli (ed.). The New Palgrave: a dictionary of Economics.London: Macmillan, 1987.

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A DEMANDA POR MOEDA,A ESCOLHA DE ATIVOSE A PREFERÊNCIA PELALIQUIDEZ EM KEYNES

INTRODUÇÃO

Neste capítulo analisa-se a teoria da preferência pela liquidez formulada peloeconomista inglês John Maynard Keynes (1883-1946), que trata, segundo opróprio autor, de uma visão alternativa à teoria monetária clássica, dominantena época em que estava escrevendo suas obras. Embora sua teoria tenha sidoformulada principalmente em seu clássico livro A Teoria Geral do Empregodo Juro e da Moeda, publicado em 1936, utilizamos outras obras e textos deKeynes, anteriores ou posteriores à publicação de sua Teoria Geral (TG),como o seu Tratado sobre a Moeda, publicado em 1930, pois entendemos serfundamental incluirmos os desenvolvimentos feitos por ele em outras obras,além da TG, para o melhor entendimento de sua contribuição teórica.

Foi no Tratado sobre a Moeda – embora Keynes ainda estivesse a meiocaminho da revolução teórica que iria realizar na TG – que o autor desenvol-veu o embrião de sua teoria monetária. No Tratado, o economista inglês iden-tificou dois circuitos de circulação monetária – o industrial e o financeiro. Oreconhecimento deste último circuito distinguia claramente a abordagem deKeynes da teoria quantitativa da moeda, ao reconhecer que reter moeda erauma alternativa a acumular outros ativos, e que, portanto, não deveria ser vistasomente como uma forma temporária de riqueza. Este insight fundamental deKeynes seria desenvolvido na TG, onde o autor formula explicitamente suateoria da preferência pela liquidez. Neste livro, Keynes formulou uma aborda-gem mais geral em que procurou enfatizar os motivos (transação, precaução eespeculação) pelos quais o público demanda liquidez. Procuramos destacarneste capítulo que, enquanto na maior parte da TG trabalhou-se num mundodicotômico, com apenas duas classes de ativo (moeda e títulos), no capítulo 17desse livro Keynes elaborou uma teorização mais elaborada e completa, usan-do uma estrutura mais diversificada de ativos, em que sua teoria da preferênciapela liquidez pôde ser generalizada para uma teoria de precificação de ativos.Por fim, acrescenta-se ainda um novo motivo para demandar moeda – o moti-vo financeiro (finance) – que Keynes introduziu logo após a publicação da TGem seu debate com o economista sueco Bertil Ohlin.

CAPÍTULO

4

O capítulo está dividido em duas seções, além desta introdução. Na primeira seção, são apresenta-das brevemente algumas ideias básicas da teoria monetária de Keynes, com destaque para o papel damoeda como uma forma específica de riqueza, a não neutralidade da moeda, inclusive no longo perío-do, e uma introdução à sua teoria da preferência pela liquidez. Na seção seguinte são analisados os cir-cuitos monetários formulados no Tratado sobre a Moeda; os motivos para demandar moeda elaboradosna TG, acrescentando ainda, como já feito referência, o motivo financeiro, e, ainda, a teoria da precifi-cação de ativos de Keynes, tal como desenvolvida no capítulo 17 da TG.

4.1. ECONOMIA MONETÁRIA DE KEYNES

Na economia monetária desenvolvida por Keynes – ao contrário do que preceituava a teoria quantitati-va da moeda – não é possível definir posições de equilíbrio, seja no curto ou no longo períodos, sem seconsiderar o comportamento da moeda e da política monetária. Isto porque a moeda, nesta concepção,não é apenas um meio de troca, mas também uma reserva de valor, pelo seu atributo de transportar a ri-queza no tempo. Portanto, ela é mais do que uma forma conveniente de estabelecer a ponte entre os flu-xos de entrada e saída de recursos, como estabelecia a teoria clássica. Para Keynes, a moedadesempenha um papel duplo de meio de pagamento e forma de riqueza. Seu retorno vem na forma deum prêmio de liquidez em vez de uma compensação pecuniária, já que possui o maior prêmio de liqui-dez entre os ativos. Neste sentido, o insight fundamental do novo paradigma que Keynes (em relação àteoria clássica vigente na época em que escreveu sua Teoria Geral) procurou desenvolver é o reconheci-mento de que, em uma economia monetária, a moeda torna-se um ativo, ainda que dotada de atributosque lhe são específicos (ver Box 4.1 e também Seção 4.2.3 deste capítulo).

Pelo seu atributo de liquidez por excelência, a moeda acalma as inquietações dos agentes diante dasincertezas do futuro, que são características de uma economia monetária. Assim, quanto maior a incer-teza percebida pelos agentes, maior tenderá a ser a retenção de moeda por parte dos mesmos, para fazerfrente à imprevisibilidade de um futuro que depende das decisões e comportamentos de todos os outrosagentes que operam nesta economia. Quando as expectativas dos agentes são pessimistas, eles podemdemandar segurança e flexibilidade no presente para enfrentar o futuro, representadas por um ativo se-guro que é a moeda. A posse da moeda permite aos agentes manter opções abertas perante a incertezado futuro. Logo, coeteris paribus, quanto mais incerto é o futuro, maior é a preferência pela liquidezdos agentes. Note-se que para Keynes incerteza não se confunde com risco probabilístico, pois refe-re-se a determinados fenômenos econômicos para os quais “não existe qualquer base científica paraformar cálculos probabilísticos”.

Para Keynes, a moeda não é um mero “véu” nas transações feitas com mercadorias, pois ela afetaos próprios motivos e decisões dos agentes. Caso a renda não consumida seja usada para comprar ri-queza não reprodutível – como no caso da moeda e outros ativos líquidos – pode haver deficiência nademanda efetiva na economia. Consequentemente, a não neutralidade da moeda mesmo no longo pe-ríodo, proposta por Keynes, repousa na proposição de que a moeda e ativos não reprodutíveis são for-mas de acumulação de riqueza alternativas à acumulação de bens de capital, e que, portanto, o agentereter moeda (e outros ativos líquidos) como um ativo, em momento de maior incerteza, é um ato ra-cional.1

Keynes, ao elaborar o que ficou conhecido como teoria da preferência pela liquidez, criticou a tra-dição clássica (teoria dos fundos emprestáveis), segundo a qual a taxa de juros é o “preço” que equilibraa demanda por recursos para investir (determinada pela produtividade marginal do investimento) e apropensão de abster-se do consumo imediato. Em outras palavras, a taxa de juros seria o fator equili-

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1. Não neutralidade da moeda no longo período significa que a moeda afeta as posições de equilíbrio da economia no longo pe-ríodo, uma vez que em momentos de maior incerteza o agente pode (e normalmente prefere) aplicar seus recursos em ativosnão reprodutíveis, como moeda e outros ativos líquidos – ao invés de ativos reprodutíveis – como ativos de capital.

A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes 47

No capítulo 17 de sua Teoria Geral, Keynesdesenvolveu alguns atributos característicose especiais da moeda (e outros ativos líqui-dos) em economias monetárias modernas,que a distinguem de outros ativos. Suaspropriedades essenciais são duas:

a) A elasticidade de produção da moe-da é zero (ou muito pequena), significan-do elasticidade de produção a resposta dovolume de mão de obra dedicado a pro-duzi-la (moeda), diante de um aumentona quantidade de trabalho que se podeobter com uma unidade da mesma. Istoquer dizer que a oferta de moeda nãocresce facilmente quando a demanda pormoeda aumenta, pois os empresários nãopodem aplicar à vontade trabalho paraproduzir dinheiro em quantidades cres-centes, à medida que o seu preço sobe.Ou, em outras palavras, a moeda nãocresce em árvores, pois ela não pode serproduzida por empresários privados, con-tratando trabalhadores desempregadospara colhê-la nas árvores, sempre que aspessoas demandarem manter ativos líqui-dos adicionais como reserva de valor, emvez de gastarem todas as rendas correntesnos produtos da indústria.

b) A elasticidade de substituição entre to-dos os ativos líquidos (incluindo a moeda)com relação aos bens produzíveis é zero, oque significa que quando o valor da moedasobe não surgirá nenhuma tendência parasubstituí-la por algum outro fator. Isto de-corre da particularidade da moeda de teruma utilidade derivada apenas do seu va-lor de troca. Consequentemente, não hásubstituição bruta significativa entre ativoslíquidos não produzíveis e os produtos daindústria. Keynes quer dizer que como autilidade da moeda é servir para compraroutros bens, seu valor depende do poderde compra da moeda. Quando o preço deum bem qualquer – manteiga, por exemplo– sobe, os consumidores tendem a substi-tuí-la por margarina. Este é o princípio dasubstituição. No caso da moeda, quandosua demanda aumenta, os preços das mer-cadorias caem (deflação). Se o poder decompra da moeda sobe, porém, os seusdetentores são estimulados a guardá-laainda mais, ao invés de gastá-la. Assim,quando o preço do dinheiro sobe, ele nãoé substituído por bens e o princípio dasubstituição não funciona. Quanto mais ovalor da moeda subir, mais interessante é

guardá-la ao invés de gastá-la. Deflaçõesnão são autocorretivas, tanto quanto infla-ções também não são.

Concluindo, não somente é impossívelempregar mais mão de obra na produçãode moeda quando o seu preço sobe emrelação à mão de obra, como também amoeda constitui um poço sem fundo parao poder de compra quando a sua deman-da cresce, já que não existe um valor aci-ma do qual esta demanda é desviada paraoutras coisas. Qualquer acréscimo na de-manda por liquidez (ou seja, por ativosnão reproduzíveis a serem mantidos comoreserva de valor) que induza um acrésci-mo nos preços dos ativos líquidos não des-viará a demanda por liquidez para umademanda por bens ou serviços.

Mas por que a moeda tem de ter essascaracterísticas em uma economia moder-na? Para Keynes, a resposta é porque elassão responsáveis pela liquidez da moeda.A moeda tem máxima liquidez porque elaestá sempre sendo demandada. Há sem-pre alguém disposto a dar alguma coisaem troca dela. Se as quantidades de moe-da pudessem variar livremente, sua ofertapoderia saturar a economia, reduzindosempre sua demanda e, portanto, sua li-quidez. Algo que pudesse ser produzidosem limites, poderia ter também seu valorreduzido sempre que houvesse excesso deprodução. Se isso acontecesse com a moe-da, ninguém confiaria nela, não haveriacontratos em dinheiro e modernas econo-mias de mercado entrariam em colapso.

Uma vez que moeda não pode ser pro-duzida livremente pelo setor privado, parapreservar seu valor e sua liquidez, quandosua demanda aumenta, reduz-se a de-manda por outras coisas na economia.Este é o princípio da demanda efetiva pro-posto por Keynes: é a possibilidade deacumulação de riqueza sob forma mone-tária que subtrai a demanda por outrosmeios de acumulação, como bens de capi-tal, cuja produção, se realizada, gerariaempregos. Os empregos perdidos porquebens de capital são produzidos em menorquantidade não são compensados peloaumento do emprego na produção de di-nheiro. Assim, a demanda por moeda re-duz a demanda por bens e serviços e cau-sa o desemprego que Keynes chamava de“involuntário”.

ALGUNS ATRIBUTOS ESPECÍFICOS DA MOEDA, SEGUNDOKEYNES

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brante que determina a igualdade entre a demanda de poupança, resultante do investimento novo quepode ser realizado a uma determinada taxa de juros, e a oferta de poupança, estabelecida a partir da pro-pensão da comunidade a poupar. Para Keynes, em contraste, a taxa de juros é definida como uma re-compensa por abrir-se mão da liquidez e, portanto, da riqueza na forma monetária, uma vez que a moe-da é o ativo com o maior prêmio de liquidez dentre todos os ativos. Deste modo, é o preço mediante oqual o desejo de manter a riqueza em forma líquida se concilia com a quantidade de moeda disponível.A taxa de juros, portanto, ao invés de ser a recompensa pela “espera”, pelo adiamento do consumo, é,segundo Keynes, a recompensa por não entesourar; ou seja, a taxa de juros é o que se ganha não porquese poupa, mas porque se aplica esta poupança em outros ativos (como, por exemplo, ativos financeiros)que não a moeda. Neste sentido, a determinação da taxa de juros é tomada como um fenômeno eminen-temente monetário – determinado pela preferência pela liquidez dos agentes e pela política das autori-dades monetárias (enquanto gestoras da política monetária) – ao invés de ser explicada por fatores reais(tais como as preferências intertemporais dos agentes e a produtividade do capital), como estabelecia ateoria clássica.

A preferência pela liquidez, portanto, determina a quantidade de moeda que o público desejará re-ter quando a taxa de juros for dada. Como veremos nas seções seguintes, as expectativas quanto ao futu-ro da taxa de juros, fixadas pela psicologia dos agentes, têm reflexos na preferência pela liquidez. Acondição necessária para a existência de preferência pela liquidez por parte dos agentes é a existênciada incerteza quanto ao futuro da própria taxa de juros. Mudanças na preferência pela liquidez, devidas,por exemplo, a uma alteração nas informações disponíveis, que ocasionem uma revisão nas expectati-vas dos agentes, são frequentemente descontínuas, causando, consequentemente, mudanças tambémdescontínuas na taxa de juros. Assim, a cada conjunto de circunstâncias e de expectativas corresponde-rá uma taxa de juros apropriada.

Em síntese, a moeda, para Keynes, é uma forma de riqueza e a taxa de juros o preço que guia a esco-lha entre as formas líquida e ilíquida de riqueza, ao invés da escolha entre consumo presente e consumofuturo, concebida pelo teoria clássica. Dado que a taxa de juros – a qual, como vimos, é o que se recebequando se adquire títulos financeiros ao invés de acumular moeda – nunca é negativa, “por que alguémpreferiria guardar sua riqueza de forma que rende pouco, ou nenhum juro, ao invés de conservá-la deoutra forma que renda algo?” (TG, p. 138). Foi procurando responder esta pergunta que Keynes desen-volveu sua teoria monetária.

4.2. DEMANDA POR MOEDA E PREFERÊNCIA PELA LIQUIDEZ

4.2.1. CIRCUITOS INDUSTRIAL E FINANCEIRO

Foi visto na Capítulo 3 que, segundo a teoria quantitativa da moeda (TQM), a demanda por moeda emseu conjunto é proporcional ou mantém uma relação determinada com a renda. A quantidade de moedarequerida para desempenhar a função de meio de troca ou depositário temporário de valor dependia daretenção média dos saldos monetários por parte do público, isto é, da velocidade da moeda. No seu livroTratado sobre a Moeda, publicado em 1930, Keynes começou a desenvolver sua teoria monetária alter-nativa à TQM, dando os primeiros passos para a superação da teoria clássica marshalliana, então preva-lecente.

No Tratado sobre a Moeda, Keynes distinguiu dois circuitos de circulação monetária:

a) Circulação industrial: Refere-se à quantidade de moeda necessária para dar suporte ao giro de bense serviços produzidos na economia. Esta quantidade, por sua vez, depende do intervalo médio du-rante o qual a moeda é retida entre transações por parte do público, isto é, da velocidade da moeda. Acirculação industrial incorpora uma visão de moeda e suas funções muito próximas às da TQM, aodestacar a necessidade da existência de meios de circulação na economia para permitir que as tran-sações com bens e serviços ocorram.

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b) Circulação financeira: Inclui operações com ativos financeiros, isto é, cobre as necessidades demoeda para a realização de compras de ações, títulos de dívida etc., não relacionadas ao giro da ren-da corrente. Neste circuito, porém, ao contrário do anterior, a moeda não é apenas um meio de circu-lação, podendo tornar-se ela própria objeto de retenção, como um ativo. Confrontados com a expec-tativa de perdas de capital sobre os ativos financeiros, caso se espere uma alta das taxas de juros nohorizonte de decisão, os agentes preferirão reter moeda a títulos, de modo a evitar as perdas espera-das de capital; enquanto aqueles que esperam uma queda nas taxas futuras de juros preferem com-prar títulos agora, ao invés de reter moeda para obter ganhos de capital, mesmo que tenham que seendividar para fazê-lo. Keynes, apropriando-se da linguagem utilizada nos mercados financeirosanglo-saxões, chama o primeiro grupo de agentes de ursos, isto é, aqueles que apostam na alta de ju-ros e, portanto, na baixa dos preços de mercado dos títulos financeiros. O grupo que, ao contrário,aposta na baixa de juros e, assim, na valorização dos títulos, é chamado de touros. Ursos preferemreter moeda e põem os títulos que possuem à venda. Touros demandam títulos e usam seus saldosmonetários para comprá-los. As taxas de juros correntes mover-se-ão de acordo com a predominân-cia de um ou outro grupo, até que a demanda por moeda e por títulos iguale-se à disponibilidade deambos os tipos de ativo.

O circuito financeiro não tem lugar na TQM, uma vez que a abordagem clássica ignorava a possibi-lidade de entesouramento ou retenção de saldos inativos por duração indefinida, sendo a moeda vistasomente como uma forma temporária de riqueza, uma conveniência, mas não como um ativo. A carac-terística mais distintiva deste circuito é seu descolamento da circulação de bens e serviços, já que osmotivos por detrás das operações financeiras têm pouco a ver com as atividades geradoras de renda,quebrando qualquer relação de proporcionalidade entre a quantidade total de moeda em circulação e arenda agregada, que é a pedra angular da TQM. O reconhecimento de que reter moeda é uma alternativaem relação à retenção de outros ativos é a base da teoria monetária que Keynes iria desenvolver em suaA Teoria Geral do Emprego do Juro e da Moeda, publicada em 1936, segundo a qual a moeda não éneutra, mesmo no longo período. É também a hipótese de não neutralidade da moeda que leva Keynes aformular seu princípio da demanda efetiva (ver o Apêndice do Capítulo 7).

4.2.2. MOTIVOS PARA DEMANDAR MOEDA

Já na Teoria Geral (TG), Keynes deixou de lado a dicotomia entre circulação industrial e circulação fi-nanceira em favor de uma abordagem mais geral, em que procurou enfatizar os motivos pelos quais opúblico demanda moeda. No novo enfoque, a circulação industrial dá lugar à demanda transacionalpor moeda, como demanda por saldos ativos, enquanto que a circulação financeira é transformada nasdemandas precaucionária e especulativa por moeda, próximas à noção de saldos inativos.

Saldos monetários ativos � Retidos em antecipação da realização de uma transação futurajá definida

Saldos monetários inativos � Retidos em antecipação de compras futuras possíveis, mas aindanão decididas

Motivo Transação

Relacionado ao intervalo entre recebimentos e despesas de renda (pagamentos contratuais, como paga-mentos de salários pelas empresas, os juros e aluguéis ou despesas relacionadas à aquisição de bens ouserviços), o motivo transação refere-se à retenção de moeda para realização de um ato definido de com-pra numa data especificada. O volume de moeda demandado para a realização de transações dependedo montante da renda e da duração normal do intervalo entre o seu recebimento e o seu desembolso, ou

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seja, das compras projetadas e dos hábitos de pagamento dos agentes (daí sua natureza rotineira). A fre-quência destas despesas pode variar, mas o padrão global é bastante previsível, podendo ser planejadassem grandes riscos para serem saldadas com o fluxo monetário de entrada, de acordo com um “períodode renda” (intervalo entre recebimentos e despesas). Em termos agregados, estas despesas podem seraproximadas pelo nível de renda corrente. Por isso, o motivo transação, tal como na circulação indus-trial, incorpora uma visão de moeda e de suas funções muito próxima da TQM, ou seja, de que a moedaé necessária para que se façam compras e vendas de bens e serviços, sendo a demanda por moeda paratais fins uma fração da renda.

Motivo Precaução

Os agentes podem reter moeda por precaução para atender às contingências inesperadas e às oportuni-dades imprevistas na realização de negócios vantajosos, já que a moeda é um ativo seguro que servepara atravessar um futuro incerto e nebuloso. Em livros-texto, os saldos para estes fins têm sido associ-ados exclusivamente a gastos inesperados, como contas de hospital, embora Keynes tenha claramentetambém enfatizado que os agentes podem desejar reter moeda para aproveitar barganhas futuras.

Pode-se argumentar que é em relação a essa demanda por moeda que a especificidade da visão deKeynes sobre a moeda como um ativo deve ser ressaltada. Quando Keynes sugeriu que a moeda é umadefesa contra a incerteza que domina os agentes quando simplesmente nós não sabemos o que pode virà frente e que a moeda acalma nossa inquietude, ele estava certamente se referindo ao sentimento de se-gurança que a moeda confere ao seu possuidor diante das dificuldades imprevistas no futuro. A deman-da precaucionária relaciona-se ao grau de ignorância sobre o futuro, com a moeda sendo o ativo quepermite aos agentes refazerem rapidamente suas estratégias, caso desejem ou julguem necessário.

Keynes, contudo, simplificou a função demanda precaucionária, estabelecendo que a quantiamédia de gastos inesperados estava correlacionada com a renda, permitindo, assim, que os saldos porprecaução pudessem ser adicionados aos saldos para transação num mesmo período de renda. O pres-suposto é que, embora o padrão de pagamentos seja irregular num único período de renda, ele é previ-sível durante vários períodos seguidos de renda. Enquanto todos os saldos mantidos para o motivotransação são gastos dentro do período em que a renda é recebida e, por isso, não são consideradospoupança, a característica distintiva dos saldos por precaução é que eles não são gastos no mesmoperíodo de renda em que são acumulados. Em outras palavras, a intenção de acumular saldos mone-tários por motivo precaução é uma intenção de transportar a moeda de um período de renda para ou-tro.2 Neste sentido, o mecanismo de agrupar as demandas por precaução e transação num mesmo pe-ríodo de renda apresenta, do ponto de vista técnico, problemas. Ao se fundir a demanda transacionalcom a demanda precaucionária, sendo ambas função da renda, as mudanças imprevistas na preferên-cia pela liquidez decorrentes das mudanças no grau de incerteza percebido pelos agentes foram colo-cadas de lado, levando muitos analistas à simplificação de postular funções demanda por moeda está-veis, similares à proposta na teoria quantitativa da moeda. Para evitar tais problemas, seguidores deKeynes, tais como Richard Kahn, explicitamente afirmaram que a quantidade de moeda demandadapara o motivo-transação depende da renda nominal, enquanto aquela relativa ao motivo precauçãodepende das incertezas em relação ao futuro.

Motivo Especulação

Este motivo – que segundo Keynes é um dos menos compreendido e de grande importância entre osmotivos para demandar moeda, porque é o canal por onde agirá a política monetária – está relaciona-do à incerteza quanto ao comportamento futuro da taxa de juros. Deste modo, a demanda por moedapara satisfazer o motivo especulação varia de modo mais ou menos contínuo sob o efeito de alteraçõesgraduais na taxa de juros de mercado.

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2. Chick, V. Macroeconomics after Keynes. Cambridge (Mass): MIT, 1983.

Como uma primeira aproximação ao motivo especulação, tracemos no Gráfico 4.1 uma curva rela-cionando as variações na demanda por moeda para satisfazer o motivo especulação com aquelas queocorrem na taxa de juros, devidas às variações no preço dos títulos e nas dívidas de vencimento diver-sos. A curva de preferência pela liquidez mostra que a demanda por moeda aumenta à medida que a taxade juros se reduz. Note-se, contudo, que a curva de preferência pela liquidez, a partir de um determina-do ponto, torna-se horizontal, ou seja, a demanda por moeda torna-se infinitamente elástica a algum pa-tamar baixo da taxa de juros, fenômeno que ficou conhecido como armadilha da liquidez. Isto podeocorrer porque há a possibilidade de que tão logo a taxa de juros tenha baixado a certo nível, a preferên-cia pela liquidez dos agentes se torne absoluta, no sentido de que os mesmos provavelmente irão prefe-rir manter recursos líquidos a conservar uma dívida que rende uma taxa de juros tão baixa.

Segundo Keynes, há diversas causas que explicam por que a taxa de juros vai decrescendo à medi-da que a oferta de moeda aumenta:

a) Em primeiro lugar, se o nível de renda é dado, e, a partir dele, é estabelecida a demanda transacionalpor moeda, um aumento na oferta de moeda contribui para satisfazer a demanda por moeda dos ur-sos, sem que estes tenham que colocar títulos à venda, evitando pressionar os preços dos títulos parabaixo e elevar a taxa de juros.

b) Em segundo lugar, cada redução da taxa de juros pode aumentar a quantidade de moeda que certosindivíduos desejam conservar, porque seus pontos de vista quanto à taxa de juros diferem das ava-liações do mercado (este ponto é desenvolvido na exposição que se segue).

A incerteza quanto às variações futuras na taxa de juros é o fator determinante que explica a deman-da especulativa por moeda e, consequentemente, justifica a conservação de recursos líquidos. ParaKeynes, o que importa não é o nível absoluto da taxa de juros, mas o seu grau de divergência quanto aoque se considera um nível razoavelmente seguro dos juros. O valor observado deste, por sua vez, depen-de em boa medida do valor futuro que se lhe prevê. Neste contexto, os agentes formam expectativas es-pecíficas a respeito do futuro da taxa de juros, mas que não são necessariamente corretas. Todo agenteque opera com ativos no mercado financeiro tem uma avaliação subjetiva, dada sua própria experiênciae seu acesso à informação, do que constitui uma taxa normal de juros, que ele espera que prevaleça de-pois que se descontem as flutuações observadas nessa variável no curto prazo. Essa taxa funciona comouma âncora para suas expectativas com relação aos movimentos futuros da taxa de juros de mercado(ou corrente). Ela define se o agente será urso ou touro, diante das taxas de juros correntes e, portanto,se demandará moeda ou títulos.

A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes 51

M (moeda)

r

L (r)

Taxa

dejuros

GRÁFICO 4.1A Função Demanda por Moeda Motivo Especulação

Considere um agente que tenha dois ativos a escolher para aplicar seus recursos: moeda, que é umativo seguro, e títulos, que não são tão seguros, mas rendem juros. Conforme a taxa de juros corrente es-teja situada acima ou abaixo da taxa normal, os agentes procurarão vender ou comprar títulos: eles com-pram títulos quando esperam que seu preço suba (e os juros caiam) e os vendem, obtendo dinheiro emcontrapartida, quando esperam que o seu preço caia (os juros subam). Assim, sendo rc a taxa (corrente)de juros de mercado, rn a taxa normal de juros e E (dr/dt), a expectativa em relação à taxa de juros, po-de-se estabelecer as seguintes regras de decisão para a demanda especulativa (Ms):

Ursos: rc – rn < 0 e E (dr/dt) > 0 � Ms > 0 (agentes preferem reter moeda)

neste caso, se os agentes têm expectativas de que a taxa de juros suba no horizonte de decisão, eles po-dem preferir moeda a aplicar em títulos. Se a taxa normal de juros (rn) for maior que a taxa de juros demercado (rc) – e assim, rn > rc – o agente reterá moeda ao invés de comprar títulos. Logo, a demanda pormoeda por motivo especulativo é uma demanda de ursos;

Touros: rc – rn > 0 e E (dr/dt) < 0 � Ms = 0 (a moeda é usada para comprar títulos)

neste caso, se os agentes esperam uma queda nas taxas futuras de juros, tenderão a comprar títulos a re-ter moeda. Se a taxa normal de juros (rn) for menor que a taxa de juros de mercado (rc) – e assim, rn < rc –o agente usará dinheiro para comprar títulos.

Combinando-se os motivos especulativo e precaucionário, observa-se que, enquanto a demandaespeculativa está relacionada com as expectativas específicas com respeito ao comportamento futuroda taxa de juros, o motivo precaucionário vincula-se ao grau de confiança nessas expectativas. Pode-sedizer que tanto a demanda precaucionária quanto a especulativa se definem por causa de incertezaquanto ao futuro e, neste sentido, a demanda precaucionária seria a demanda gêmea da demanda espe-culativa e não da demanda transacional.

Para estabelecer uma função demanda por moeda, Keynes simplificou o problema usando o nívelcorrente da taxa de juros – o que chamamos de taxa de juros de mercado – como um indicador das mu-danças esperadas da taxa, o que é válido, evidentemente, enquanto as avaliações a respeito de qual sejaa taxa normal mantiverem-se inalteradas. Por outro lado, como visto, ele estabeleceu que a demandaprecaucionária depende da incerteza dos agentes quanto ao futuro. Portanto, sejam M1 o montante de re-cursos líquidos conservado para satisfazer o motivo transação, M2 o montante conservado para satisfa-zer o motivo especulação e M3 o montante para satisfazer o motivo precaução, correspondente a trêsfunções de liquidez L1, L2 e L3, em que a primeira depende principalmente do nível da renda, a segundada relação entre a taxa corrente de juros (e o estado de expectativas quanto ao comportamento futuro dataxa de juros), e a terceira das incerteza quanto ao futuro. Assim, temos que:

Md = M1 + M2 + M3 = L1 (Y) + L2 (r) + L3 (•)

Onde L1 (demanda por moeda para fins de transação) é a função de liquidez correspondente à rendaY, que determina M1; L2 (demanda por moeda para fins especulativos) a função de liquidez referente àtaxa de juros r, que determina M2; e L3 (demanda de moeda para fins precaucionais) a função de liqui-dez relacionada diretamente à incerteza quanto ao futuro, aqui representada por (�), que determina M3.

Motivo FinanceiroEste motivo foi introduzido por Keynes após a publicação da Teoria Geral, em resposta a uma críticafeita por Bertil Ohlin à TG, ambos publicados na revista The Economic Journal em 1937.3 O motivo

52 A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes ELSEVIER

3. Parte deste debate foi publicada em português. Ver Keynes, J.M. “Teorias alternativas da taxa de juros” e “A teoria ex-anteda taxa de juros”; Ohlin, B. “Teorias alternativas da taxa de juro – réplica.” In Clássicos da Literatura Econômica. Rio deJaneiro, IPEA/INPES, 1988.

financeiro (finance motive) refere-se à demanda por moeda antecipada a alguma despesa discricioná-ria planejada, sendo o gasto deste tipo mais vultoso e menos rotineiro – o investimento em bens de ca-pital. Neste caso, saldos monetários são mantidos em antecipação à compra de bens de investimento.Esta demanda pode ser satisfeita pela venda de bens e serviços ou de ativos líquidos por parte do em-presário ou com dinheiro tomado emprestado junto aos bancos. O pressuposto é que o investimentoplanejado (ex-ante) pode precisar garantir sua provisão financeira antes que ocorra o investimento,gerando uma demanda temporária e antecipada de moeda para uma despesa excepcional. Consequen-temente, a demanda por moeda pelo motivo financeiro resulta – ao nível agregado – da taxa de inves-timento.

A retenção de fundos por parte das empresas, contudo, é provisória, uma vez que o dinheiro retornaà circulação monetária logo que a máquina ou equipamento são comprados, voltando parte dele aosbancos, formando um fundo rotativo, onde, em sua maior parte, o fluxo de novos recursos requeridospara o investimento ex-ante é suprido pelo financiamento liberado pelo investimento ex-post. Caso oinvestimento esteja se processando a uma taxa constante, o financiamento pode ser provido por um fun-do rotativo de quantidade mais ou menos constante, com o empresário tendo o seu financiamento resta-belecido para fins de um investimento projetado, enquanto que um outro empresário está pagando peloinvestimento que completou. Contudo, se as decisões de investimento estiverem crescendo, o financia-mento adicional envolvido constituirá uma nova demanda por moeda.

O motivo financeiro tem um elemento de demanda transacional – uma vez que, tal como esta, rela-ciona-se a um gasto planejado, um plano definido de gastos – mas com um comportamento diferente,dada a natureza não rotineira das despesas. É neste sentido que Keynes afirmou que a demanda finan-ceira fica a meio caminho entre os saldos ativos, tal como a demanda transacional por moeda, e os sal-dos inativos, tais como as demandas precaucional e especulativa. A demanda financeira por moedacresce quando os gastos discricionários prospectivos (como bens de capital) aumentam, e não a rendacorrente, como no caso da demanda transacional.

A introdução do motivo financeiro (função do investimento I) não altera a proposição fundamental dateoria da preferência pela liquidez de que a taxa de juros é um fenômeno monetário, sendo determinadapela interação entre demanda e oferta de moeda. Agora a demanda por moeda é descrita pela equação

Md = M1 + M2 + M3 + M4 = L1 (Y) + L2 (r) + L3 (•) + L4 (I)

O equilíbrio no mercado monetário é dado por

Ms = Md

Se Ms é fixada pela autoridade monetária, o nível de renda é determinado pela demanda agregadaesperada pelos empresários, e os planos de investimento são dados, então pode-se resolver a equaçãoacima para o valor de r de equilíbrio.

4.2.3. PRECIFICAÇÃO DE ATIVOS E PREFERÊNCIA PELA LIQUIDEZ

Na análise feita na seção anterior, tal como desenvolvida na maior parte da TG, trabalhou-se nummundo dicotômico, onde existem apenas duas classes de ativo: moeda e títulos. Neste contexto, hásomente uma escolha para quem aceita abrir mão da liquidez, que é o título, remunerado por uma taxade juros. Consequentemente, dependendo do nível da taxa de juros, o público desejará reter uma dadaquantidade de moeda. A taxa de juros é tida como o prêmio cobrado pelos agentes para abrir mão daliquidez. É, portanto, o preço que guia a escolha entre forma líquida e menos líquida de riqueza, sen-do os juros pagos pelos títulos uma compensação pelo seu menor grau de liquidez, comparado com amoeda.

A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes 53

54 A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes ELSEVIER

No capítulo 13 de seu livro A Teoria Geral doEmprego, do Juro e da Moeda, Keynes, critican-do a teoria clássica da taxa de juros (tradiçãomarshalliana), introduz o que ficou conhecidocomo a teoria da preferência pela liquidez:

“Deveria ser óbvio que a taxa de juros nãopode ser um rendimento de poupança ou da es-pera como tal (...). Pelo contrário, a simples defi-nição de taxa de juros diz-nos, literalmente, queela é a recompensa da renúncia à liquidez porum período determinado, pois a taxa de jurosnão é, em si, outra coisa senão o inverso da rela-ção existente entre uma soma de dinheiro e oque se pode obter desistindo, por um períododeterminado, do poder de comando da moedaem troca de uma dívida (...). [Ela] é a medida darelutância dos que possuem dinheiro em alienaro seu direito de dispor do mesmo. A taxa de jurosnão é o “preço” que equilibra a demanda de re-cursos para investir e a propensão de abster-sedo consumo imediato. É o “preço” mediante oqual o desejo de manter a riqueza em formalíquida se concilia com a quantidade de moedadisponível. Isto implica que, se a taxa de jurosfosse menor, isto é, se a recompensa da renún-cia à liquidez se reduzisse, o montante agregadode moeda que o público desejaria conservar ex-cederia a oferta disponível e que, se a taxa de ju-ros se elevasse, haveria um excedente de moedaque ninguém estaria disposto a reter”.

Ainda neste capítulo, o economista inglêspergunta:

“Dado que a taxa de juros nunca é negativa,por que alguém preferiria guardar sua riqueza deforma que renda pouco, ou nenhum juro, a con-servá-la de outra que renda algum? (...) Há, to-davia, uma condição necessária sem a qual nãopoderia existir a preferência pela liquidez comomeio de conservação da riqueza. Esta condiçãonecessária é a existência da incerteza quanto aofuturo da taxa de juros, isto é, quanto ao comple-xo de taxas de vencimentos variáveis a prevalecerem datas futuras.(...) Se a taxa corrente for positi-va para as dívidas de qualquer prazo, será sem-pre mais vantajoso adquirir uma dívida do queconservar a riqueza em forma de dinheiro líqui-do. Se, pelo contrário, a taxa futura for incerta(...), há o risco de se incorrer em perda na aquisi-ção de uma dívida de longo prazo ao convertê-ladepois em dinheiro, comparativamente a ter con-servado o dinheiro como tal (...). [Portanto], as ex-pectativas quanto ao futuro da taxa de juros, fixa-das pela psicologia de massa, têm seus reflexosna preferência pela liquidez; com o acréscimo,porém, de que o indivíduo, para quem as futuras

taxas de juros estarão acima daquelas previstaspelo mercado, tem motivos para conservar emcaixa dinheiro líquido, ao passo que quem diver-ge no mercado em sentido oposto terá motivospara pedir dinheiro emprestado a curto prazo, afim de adquirir débitos a prazo mais longo. Opreço do mercado se fixará no nível em que avenda dos ‘baixistas’ (ursos) se equilibrar com ascompras dos ‘altistas’ (touros)”.

No capítulo 15, quando analisa os incentivospsicológicos e empresariais para a liquidez, Key-nes defende que a determinação da taxa de ju-ros tem um forte componente expectacional epsicológico:

“A cada conjunto de circunstâncias e de ex-pectativas corresponderá uma taxa de jurosapropriada e nunca se verificará suspeitas de al-guém modificar suas reservas líquidas habituais.De modo geral, entretanto, uma alteração nascircunstâncias ou expectativas provocará um rea-juste nas reservas líquidas individuais – desdeque, de fato, uma mudança influa nas ideias dosdiferentes indivíduos de modo diverso, devido,em parte, às diferenças de meio ambiente e aomotivo que os levou a guardar dinheiro, e, emparte, às diferenças de conhecimento e interpre-tação da nova situação. Desse modo, a nova si-tuação de equilíbrio da taxa de juros estará as-sociada a uma redistribuição da retenção dos re-cursos líquidos (...). A variação da taxa de jurosé, comumente, o efeito mais importante da rea-ção a uma mudança nas informações. O movi-mento nos preços dos títulos e obrigações está,como costumam dizer os jornais, ‘fora de qual-quer proporção com a atividade dos negócios’”.

Já no capítulo 17 da TG, generaliza sua teoriada preferência pela liquidez como uma teoria deprecificação de ativos. Nesta, a peculiaridade damoeda – em comparação a outros ativos – é as-sim estabelecida:

“A característica fundamental do capital ins-trumental (por exemplo, uma máquina) ou do ca-pital de consumo (por exemplo, uma casa) é ofato de que seus rendimentos excedem, em geral,seu custo de manutenção e de que seu prêmio deliquidez é, provavelmente, desprezível (...). A ca-racterística da moeda, enfim, é ter um rendimen-to nulo, um custo de manutenção insignificante,porém um prêmio de liquidez substancial (...). É,porém, uma diferença essencial entre a moeda etodos os demais bens (ou a maioria) que, no casona moeda, o seu prêmio de liquidez exceda emmuito o seu custo de manutenção, ao passo queno dos outros bens seu custo de manutenção émuito maior que o prêmio de liquidez”.

PREFERÊNCIA PELA LIQUIDEZ, SEGUNDO KEYNES

BO

X4

.2

No capítulo 17 da Teoria Geral, Keynes elaborou uma teoria de precificação de ativos, utilizandouma estrutura mais diversificada de ativos, em que uma dada quantidade de ativos é demandada deacordo com sua taxa própria de juros, calculada segundo o preço corrente (à vista) dos ativos. Sua análi-se parte do mesmo princípio geral da teoria da preferência pela liquidez de que diferentes graus de liqui-dez devem ser compensados por retornos pecuniários que definem a taxa de retorno obtida pela possedos diferentes ativos, de modo a compensar sua relativa iliquidez comparada a um ativo de referência.Neste sentido, a teoria da preferência pela liquidez não somente pode ser compatibilizada mas tambémgeneralizada para uma teoria de precificação de ativos.

A taxa própria de juros de cada ativo é uma medida de seu retorno total esperado, medido não so-mente em termos do direito de renda implícito nele, mas também em termos da conveniência de suaposse e dos ganhos de capital que podem ser obtidos com sua venda. Assim, cada ativo oferecerá umadada taxa própria de juros e os investidores escolherão aqueles que oferecerem as mais altas taxas de re-torno possíveis. A competição entre os possuidores de riqueza para obter os melhores ativos determina-rá os preços destes ativos que, por sua vez, sinalizarão quais ativos são relativamente escassos e quaisestão com oferta excedente, determinando, assim, a composição da riqueza total acumulada por umacomunidade em um determinado período.

O retorno total esperado oferecido por um ativo – a sua taxa própria de juros – é calculado atravésdos valores assumidos por quatro atributos:

a) Taxa esperada de quase-renda ou, mais simplesmente, taxa de rendimentos que se espera ganharpela posse ou uso do ativo, como, por exemplo, máquinas dando origem a bens negociáveis que ge-rarão lucros, os juros pagos nos títulos, dividendos de ações etc.;

b) Custo de carregamento incorrido na retenção dos ativos, como estocagem, custos de seguro etc., demodo a manter o ativo em seu estado original;

c) Prêmio pela liquidez, que mede a facilidade de negociação de um ativo no caso de desejo de mudan-ça da composição do portfólio, já que alguns ativos são mais facilmente negociáveis do que outros,dando ao seu possuidor um retorno importante na forma de flexibilidade diante das mudanças ines-peradas na economia;

d) Taxa esperada de apreciação do ativo ao final de um período, uma vez que o possuidor de riquezapode ganhar (ou perder) com a apreciação (ou depreciação) dos preços de mercado daquele ativo en-tre a compra e o fim do período de retenção do mesmo.

A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes 55

Por fim, no capítulo 17, Keynes defende, ain-da, que a noção de liquidez depende de práticassociais e das instituições:

“É claro que não existe um padrão de ‘liqui-dez’ absoluto, mas simplesmente uma escala deliquidez – um prêmio variável que se tem de le-var em conta, além do rendimento do uso e doscustos de manutenção, ao calcular o atrativo deconservar diversas formas de riqueza. A noçãodo que contribui para a ‘liquidez’ é, em parte,vaga, modificando-se de tempos em tempos edependendo das práticas sociais e das institui-ções. Existe, entretanto, na ideia dos possuidoresde riqueza uma ordem de preferência bem defi-nida, na qual se exprimem em qualquer tempo o

que pensam a respeito da liquidez, e não preci-samos de mais nada para a nossa análise docomportamento do sistema econômico. Pode serque em determinadas circunstâncias históricasos possuidores de riqueza tenham pensado quea posse da terra se caracterizava por um altoprêmio de liquidez; e, visto que a terra participa-va com a moeda da particularidade de ter, emprincípio, elasticidades de produção e substitui-ção muito baixas, é concebível que tenha havidona história ocasiões em que o desejo de possuirterra haja desempenhado o mesmo papel que amoeda em tempos recentes, no sentido de man-ter a taxa de juros a um nível demasiado alto”.

PREFERÊNCIA PELA LIQUIDEZ, SEGUNDO KEYNES

BO

X4

.2

Partindo, portanto, da hipótese de que cada classe de ativos possui sua taxa própria de juros (ra), oretorno total esperado de um ativo, durante um certo período, pode ser definido, como a soma das se-guintes taxas esperadas:

ra = a + q – c + l

onde

a = apreciação do valor de mercado do ativo (taxa de apreciação);q = rendimento do ativo;c = custo de carregamento incorrido na conservação do ativo;l = prêmio pela liquidez.

Nesta abordagem, a preferência pela liquidez é refletida em termos do trade-off entre retornos es-perados (a + q – c) e o prêmio pela liquidez (l), causando substituições na estrutura de demanda porativos, que se diferenciam de acordo com combinações de retornos esperados e prêmio de liquidez queeles oferecem, sendo a liquidez valorizada quando a incerteza aumenta. A fórmula acima permite acomparação e escolha entre ativos que oferecem algum rendimento (q – c), ganhos de capital (a) ousimplesmente segurança e flexibilidade conferida pela liquidez (l).

De fato, o mais original dos atributos identificados acima por Keynes é o prêmio pela liquidez. Li-quidez é um conceito bidimensional, pois se refere simultaneamente à duração de tempo requerido parase negociar um ativo e à capacidade deste ativo de conservar seu valor ao longo do tempo. Portanto, umativo é líquido quando o tempo requerido para negociá-lo é pequeno e a mudança esperada em seu valortambém é pequena.

Combinando os atributos acima, pode-se simplificadamente estabelecer a seguinte taxonomia deativos, tal como está sintetizada no Quadro 4.1. Bens de capital têm nos rendimentos sua principal ca-racterística, mas são em geral ilíquidos e apresentam normalmente uma taxa de apreciação de capitalnegativa. Moeda tem rendimento nulo (e seu custo de carregamento é insignificante), uma taxa de valo-rização também nula, porém um prêmio de liquidez substancial. Por fim, os títulos e outros ativos fi-nanceiros são retidos por gerarem renda e possibilidade de apreciação de capital (o que não é garanti-do), mas com grau de liquidez variável (dependente da existência de mercados secundários organiza-dos), ainda que maior que a dos bens de capital e menor que o da moeda.

A ideia central é que, em equilíbrio, os rendimentos esperados a serem obtidos pelos proprietáriosdos ativos (não monetários) devem ser iguais à sua liquidez relativa quando comparados à moeda, demodo a igualar as vantagens marginais entre os ativos. Os preços se moverão até que as vantagens rela-tivas de um ativo sobre qualquer outro desapareçam. Em termos da fórmula da taxa própria de juros,para aqueles ativos que oferecem melhores retornos prospectivos, os preços correntes (que são o deno-minador de todos os elementos) aumentarão até que a e q – c sejam então reduzidos de forma que os ga-nhos extras que eram antecipados desapareçam. Naturalmente, o oposto ocorre com ativos de baixorendimento: os preços caem de forma que os valores de a e q – c se elevem.

Em geral, quando as expectativas dos agentes estão otimistas, e a incerteza é baixa, o atributo de li-quidez não é tão importante quanto a possibilidade de ter ganhos monetários. A taxa própria de juros de

56 A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes ELSEVIER

QUADRO 4.1Características dos Ativos

Ativos a q – c l

Bens de capital

Moeda

Títulos

Negativa

Zero

Positiva ou negativa

Positivo

Zero

Normalmente positivo

Baixo

Elevado (máximo)

Variável, masnormalmente alto

ativos líquidos torna-se mais baixa que as taxas próprias daqueles ativos que são esperados render ga-nhos em a ou em q – c, tais como bens de capital. Os agentes econômicos tentarão se livrar de moedapara obter bens de investimento, os preços à vista destes se elevarão e nova produção será estimulada.Alternativamente, se a incerteza é alta, o prêmio de liquidez da moeda será provavelmente mais alto queos rendimentos monetários oferecidos para outros ativos, tais como bens de capital e títulos. Agentestentarão manter portfólios líquidos, deprimindo os preços dos bens de capital e levando a uma contra-ção no setor produtor deste bem. (Esta seção será desenvolvida no Capítulo 22.)

RESUMO

1. Keynes desenvolveu sua teoria da preferência pela liquidez como uma teoria alternativa à tradição clássica,incluindo nesta a teoria dos fundos emprestáveis e a teoria quantitativa da moeda. Para a tradição clássica, ataxa de juros é o preço que equilibra a demanda por recursos para investir (determinada pela produtividadepotencial do investimento) e a propensão de abster-se do consumo imediato enquanto para Keynes ela é umfenômeno fundamentalmente monetário, determinado pela preferência pela liquidez dos agentes e pela políti-ca das autoridades monetárias.

2. Para Keynes, a moeda não é um mero veículo temporário das transações que se dão entre mercadorias, masum ativo com atributos específicos (entre eles o de ter o maior prêmio de liquidez entre os ativos), que lhe per-mite transportar a riqueza no tempo. A moeda é um ativo, uma forma específica de reter riqueza. A teoria dapreferência pela liquidez mostra que quando as expectativas dos agentes são pessimistas, eles podem deman-dar segurança e flexibilidade no presente para enfrentar o futuro, representado por um ativo seguro que é amoeda. A posse da moeda permite aos agentes manter opções abertas perante a incerteza sobre o futuro.

3. No seu Tratado sobre a Moeda, Keynes distinguiu dois circuitos de circulação monetária: a circuito indus-trial, relacionado à quantidade de moeda necessária para dar suporte ao giro de bens e serviços produzidos naeconomia, que incorpora uma visão de moeda e suas funções muito próximas da TQM; circuito financeiro,que inclui operações com ativos financeiros, não sendo relacionado diretamente à renda corrente. Neste cir-cuito a moeda não é apenas um meio de circulação, podendo tornar-se objeto de retenção como um ativo, oque é um primeiro passo para Keynes se diferenciar da TQM, já que esta ignorava a possibilidade de entesou-ramento ou retenção de saldos inativos.

4. Na Teoria Geral, Keynes formulou os motivos para demandar moeda: os motivos transação, precaução e espe-culação. O motivo transação está relacionado ao intervalo entre recebimentos e despesas de renda e dependedo montante da renda e da duração normal do intervalo entre o seu recebimento e o seu desembolso, ou seja,das compras projetadas e dos hábitos de pagamento dos agentes. O motivo precaução, por sua vez, refere-seao fato de que os agentes podem reter moeda por precaução para atender às contingências inesperadas e àsoportunidades imprevistas na realização de compras vantajosas, já que a moeda é um ativo seguro que servepara atravessar um futuro incerto e nebuloso. Por fim, o motivo especulação está relacionado à incerteza quan-to ao comportamento futuro da taxa de juros, como resultado de uma mudança nas informações no mercado.A expectativa dos agentes quanto às variações futuras na taxa de juros – que os definem como “ursos” e “tou-ros” – é o fator determinante que explica a preferência pela liquidez dos agentes e, consequentemente, justifi-ca a conservação de recursos líquidos para o motivo especulativo. Em artigo publicado pouco depois da TG,Keynes introduziu um novo motivo para demandar moeda: o motivo financeiro (finance), relacionado à de-manda por moeda antecipada a alguma despesa discricionária planejada, mas não rotineira, como é o caso doinvestimento em bens de capital.

5. A teoria da preferência pela liquidez pode ser vista como integrante da teoria de precificação de ativos, for-mulada no capítulo 17 da TG. Nesta abordagem, a preferência pela liquidez é refletida em termos do trade-offentre retornos monetários (a + q – c) e o prêmio pela liquidez (l), determinantes da estrutura de demanda porativos, que se diferenciam de acordo com combinações de retornos monetários e prêmio de liquidez que elesoferecem, sendo a liquidez valorizada quando a incerteza aumenta (e vice-versa).

A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes 57

TERMOS-CHAVE

� Prêmio de Liquidez� Preferência pela Liquidez� Circulação Financeira� Motivo Precaução� Motivo Financeiro� Touros

� Incerteza� Circulação Industrial� Motivo Transações� Motivo Especulação� Ursos� Taxa Própria de Juros

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Keynes, J.M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Mac Millan, 1936.Obra clássica da Economia em geral, em que o autor procura romper com a tradição clássica então prevalecen-

te, Keynes busca neste livro uma explicação convincente do porquê da existência de equilíbrio com desempregona economia, atribuindo as crises à insuficiência de demanda efetiva. Na TG a teoria monetária tem um espaçoimportante, devido à centralidade da proposição de não neutralidade da moeda na macroeconomia de Keynes.

Keynes, J.M. Treatise on Money, vol. 1 e 2. London: Macmillan, 1971.Nesta importante obra de Keynes, o autor ainda está a meio caminho da revolução teórica que iria realizar na

TG, no sentido em que, se por um lado, ainda está de alguma forma preso à tradição quantitativista, de outro já for-mula vários desenvolvimentos teóricos que superam a TQM e que antecipam vários desenvolvimentos posterio-res. A leitura deste livro, de dois volumes, permite elucidar alguns aspectos importantes da teoria monetária deKeynes, que não foram devidamente expostos na TG.

Carvalho, F.C. Mr. Keynes and the Post Keynesians. Aldershot: Edward Elgar, 1992.Chick, V. Macroeconomics after Keynes. Cambridge (Mass): MIT, 1983.

58 A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes ELSEVIER

MODELOS NEOCLÁSSICOSKEYNESIANOS DE DEMANDAPOR MOEDA

INTRODUÇÃO

Neste capítulo são analisados os modelos keynesianos neoclássicos de deman-da por moeda: o modelo de composição de carteiras de Tobin (demanda espe-culativa); a abordagem de estoques de Baumol-Tobin (demanda transacio-nal); assim como o modelo de racionamento de crédito de Stiglitz e outros,relacionado à oferta de crédito bancário. As contribuições teóricas de Tobin(1956, 1958) e Baumol (1952),1 feitas nos anos 50, mais do que um simplesdetalhamento da formulação original de Keynes, constituem-se na realidadeem uma reformulação profunda de suas proposições.

Enquanto Keynes definia – como visto no capítulo anterior – as demandasprecaucionária e especulativa por moeda em função da incerteza quanto ao futu-ro, no modelo de Tobin os agentes passam a tomar decisões orientados por cál-culos probabilísticos de risco. Ademais, na maior parte da Teoria Geral, Keynesformulou sua teoria da preferência pela liquidez num mundo dicotômico, emque o agente tinha duas opções excludentes: reter moeda ou adquirir títulos. To-bin, contudo, elaborou seu modelo de composição de carteira partindo da pre-missa de que a maior parte das pessoas prefere reter alguma combinação demoeda e títulos e que, portanto, dados os riscos envolvidos, é razoável supor quecarteiras mistas de ativos monetários e não monetários têm maior probabilidadede maximizar a satisfação de aplicadores individuais do que portfólios especia-lizados em um ou outro ativo. Por outro lado, no que se refere à demanda transa-cional, a contribuição de Baumol-Tobin procura mostrar que os agentes pode-rão num determinado período de renda aplicar parte de seus recursos em títulosque rendem juros e que, deste modo, a demanda por moeda para transação setorna também elástica com relação às mudanças na taxa de juros.

O capítulo aborda, ainda, a teoria de assimetria de informações e racionamen-to de crédito, elaborada por Stiglitz, Weiss, Jaffee e outros autores nos anos 70 e80. De fato, enquanto até os anos 60 a teoria keynesiana neoclássica esteve prati-

CAPÍTULO

5

1. Baumol, W.J. “The transactions demand for cash: an inventory theoretic approach”. QuaterlyJournal of Economics, vol. 66, novembro de 1952; Tobin, J. “The interest-elasticity of transacti-ons demand for cash”. Review of Economics and Statistics, vol. 38, agosto de 1956; “Liquiditypreference as behaviour towards risk”. Review of Economics Studies, vol. 25, fevereiro de 1958.

camente voltada apenas para o estudo da demanda por moeda, a partir dos anos 70 ela focalizou principal-mente a oferta de crédito, com implicações, evidentemente, sobre a oferta de moeda.

5.1. DEMANDA ESPECULATIVA: O MODELO DE COMPOSIÇÃO

DE CARTEIRA DE TOBIN

5.1.1 A CRÍTICA DE TOBIN A KEYNES

Tobin dedicou-se à discussão da relação entre taxa de juros e demanda por moeda em duas ocasiões.Em uma delas, que será discutida mais adiante neste capítulo, Tobin propõe a ideia de que a demandatransacional por moeda, apresentada no Capítulo 4, não depende apenas da renda dos agentes econô-micos, mas também da taxa de juros corrente, lançando as bases do que veio a ficar conhecido comoabordagem Tobin/Baumol. A outra ocasião em que Tobin voltou-se para problema semelhante foi em1958, quando publicou um artigo que se tornou clássico: A Preferência pela Liquidez como Comporta-mento em Relação ao Risco. Nesse artigo, cujas principais ideias serão expostas a seguir, Tobin analisaa demanda especulativa por moeda. Segundo Keynes, esta demanda, como visto no Capítulo 4, depen-dia precisamente da taxa de juros e esta relação demanda por moeda/taxa de juros era um importanteelemento para a formulação de política monetária. Tobin aceitou a ideia fundamental de Keynes quantoà existência de uma relação definida entre as duas variáveis, mas criticou o modo pelo qual Keynes ex-pôs este argumento. O resultado deste reexame foi a reformulação da demanda especulativa por moe-da, criando-se um novo modelo que se tornou um dos pilares da chamada síntese neoclássica, isto é, ateoria criada pelos economistas que se dispuseram a sintetizar os ensinamentos tanto da economia ditaclássica quanto da keynesiana que será apresentada com mais detalhes no Capítulo 8.

Enquanto a demanda transacional por moeda privilegia a função da moeda como meio de paga-mento, a demanda especulativa assume que a moeda é também uma reserva de valor, isto é, um ativoque pode ser acumulado como riqueza tanto quanto qualquer outro ativo, como ações de empresas, de-bêntures, máquinas, construções etc. A diferença entre a moeda e estes outros ativos reside, natural-mente, no fato de que estes rendem ao seu possuidor algum retorno tangível, enquanto a moeda não.Como vimos no Capítulo 4, Keynes havia argumentado que esta diferença é menos importante do queparece porque a moeda rende alguma coisa: ela dá segurança a quem a possui. Mas é inegável que esteretorno não é tangível: para aqueles que não passaram por necessidades no passado, e não tiveram delançar mão do benefício da segurança, a acumulação de dinheiro os deixa, ao final, com a mesma rique-za com que começaram, enquanto os que compraram ações ganharam possivelmente dividendos, osque compraram debêntures ganharam juros etc.

A demanda por moeda, porque ela é um porto seguro para quem navega na incerteza do futuro, échamada de precaucional. Mas, como vimos no Capítulo 4, é ainda possível considerar uma demandapor moeda como ativo em outra circunstância: quando se espera que ativos financeiros venham a des-valorizar no futuro. Neste caso, se a recompensa (em juros, por exemplo) que se vai receber por aplicaro dinheiro for menor do que a desvalorização esperada dos títulos que se está comprando, é melhor parao investidor, ao invés de investir naquele momento, esperar até que os preços caiam e estes papéis pos-sam ser comprados por um preço menor. Naturalmente, ninguém pode saber com certeza quando ospreços dos títulos cairão. Por isso, comprar ou deixar de comprar títulos em um determinado momentoé uma decisão especulativa, isto é, baseada numa expectativa, não em um fato objetivo. A demanda pormoeda que resulta desta decisão foi, assim, chamada de especulativa por Keynes.

Para Tobin, enquanto a lógica deste raciocínio está fundamentalmente correta, o detalhamento do ar-gumento feito por Keynes é falho. Tobin critica principalmente dois aspectos da proposta de Keynes. Porum lado, a existência de uma demanda especulativa por moeda parece depender de um comportamentoquase irracional e que, portanto, deveria desaparecer em equilíbrio. Em segundo lugar, a implicação em-pírica da teoria de Keynes parece contrariar a realidade. Examinemos cada um dos argumentos de Tobin.

60 Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda ELSEVIER

5.1.2. CRÍTICA À HIPÓTESE DE KEYNES SOBRE EXPECTATIVAS

Para Keynes, a demanda especulativa por moeda seria positiva sempre que os investidores mantives-sem a expectativa de que a taxa de juros viesse a subir no futuro próximo. O preço de mercado dos títu-los financeiros depende da taxa de juros. É fácil mostrar-se por quê.

Títulos financeiros são demandados porque são fontes de rendimento para seu possuidor. Em ou-tras palavras, compram-se papéis porque o detentor de papéis tem direito a auferir juros, dividendosetc., da mesma forma que um detentor de casas tem direito a receber aluguéis, o detentor de máquinastem direito a receber lucros, e assim por diante. Ora, quanto maior o rendimento esperado de um deter-minado título, maior será sua demanda e, portanto, o preço que os compradores estarão dispostos a ofe-recer por ele. Assim, podemos dizer que, ceteris paribus, o preço dos títulos depende diretamente dasanuidades (isto é, dos rendimentos) que se espera receber por esta aplicação. Mas é preciso avançarmais um pouco. Títulos financeiros são, na verdade, promessas de rendimento, isto é, eles oferecem aperspectiva de obtenção de um certo rendimento numa data futura. Um título federal de maturidade dedez anos, com pagamento integral ao final do período, representa uma promessa de recebimento deprincipal e juros daqui a dez anos!

Quando se leva isto em consideração, é preciso introduzir dois elementos. O primeiro deles, quenão discutiremos aqui, é o de que quando tratamos de expectativas, temos que considerar a possibilida-de de que elas estejam equivocadas, introduzindo-se assim a questão da incerteza que ronda decisõesorientadas por expectativas. O segundo elemento se refere ao fato de que a satisfação que a riqueza quetemos hoje nos dá é diferente se seu usufruto pode se dar imediatamente ou apenas daqui a um certo nú-mero de períodos. O mais comum é que nós prefiramos a disponibilidade imediata de uma dada riquezaà disponibilidade futura, mesmo que os valores sejam idênticos. Isto se justifica de diversas maneiras,mas a que nos interessa mais diretamente é a de que, se eu tiver acesso imediato a um determinado valor(ao invés de ter que esperar, digamos, cinco anos para usá-lo), eu posso investi-lo no presente, à taxacorrente de juros e chegar ao final de cinco anos com um valor ainda maior. Suponhamos que me sejadada a escolha de ganhar mil reais neste momento ou ganhá-los daqui a um ano, e que a taxa de jurosanual seja de 5%. Se eu esperar um ano para ganhar este dinheiro, ganharei R$ 1.000. Se eu recebê-loagora e investi-lo por um ano a 5%, chegarei ao final do ano com R$ 1.050. Deste modo, eu poderia serindiferente entre ganhar R$ 1.000 hoje ou R$ 1.050 daqui a um ano, mas nunca entre ganhar R$ 1.000hoje e R$ 1.000 no futuro. Nas condições descritas no exemplo, mil reais hoje são equivalentes a mil ecinquenta reais daqui a um ano se a taxa de juros é de 5% ao ano. Em linguagem financeira, diz-se que,se a taxa de juros anual é de 5%, R$ 1.000 é o valor presente de R$ 1.050 recebíveis daqui a um ano.

Neste exemplo podemos determinar imediatamente a influência da taxa de juros sobre o preço dostítulos. Suponhamos que um título financeiro que promete um pagamento de R$ 1.050 daqui a um ano écolocado à venda. Quanto será pago por este papel no mercado atual? A resposta depende da taxa de ju-ros. Vimos que se a taxa de juros for de 5%, poderemos pagar até R$ 1.000 por ele, porque quem tivermil reais à sua disposição no presente poderia ganhar exatamente R$ 1.050 em um ano aplicando nomercado financeiro. E se a taxa de juros, no entanto, subir hoje para 10% ao ano? Neste caso, é possívelganhar os mesmos R$ 1.050 daqui a um ano, aplicando hoje menos que R$ 1.000. Para sabermos o va-lor presente de R$ 1.050 quando a taxa de juros é 10% temos que fazer a seguinte operação:

1.050 = X (1 + r) em que r = 0,1 (isto é, 10%) e X é o valor do investimento necessário hoje para se obter1.050 reais daqui a um ano. Assim,X = 1.050/(1 + 0,1) = 1.050/1,1 = 954,55 (arredondando-se os centavos)

Vemos assim que quando a taxa de juros sobe, o valor de mercado do papel, seu preço de mercado, cai.Como o preço de mercado de títulos financeiros pode variar quando a taxa de juros muda, um in-

vestidor, ao decidir comprar ou não um papel, deve levar em conta dois elementos que determinam seuretorno total: a taxa de juros a ser paga no período em que ele reterá o papel em sua carteira e o valor derevenda deste papel ao final do período. Este valor de revenda ao final do período vai depender de qual

Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda 61

será a taxa de juros de mercado naquela data, porque ela determinará quanto outros investidores estarãodispostos a pagar pelo papel.

Vê-se, assim, que expectativas de taxas de juros são importantíssimas na decisão de aplicação emtítulos financeiros. A relação funcional precisa entre preço do papel e taxa de juros é dada pela fórmulado valor presente, dada em qualquer manual de matemática financeira. Tobin seguirá o procedimentousual de se valer de um título de características especiais, chamado de perpetuidade, que permite utili-zar uma fórmula bem mais simples.

Perpetuidades são títulos perpétuos, isto é, que não têm data para redenção, rendendo juros perpe-tuamente. Cada investidor pode vendê-los em mercados secundários, mas o seu emissor, normalmenteo Tesouro de algum país, não tem a obrigação de redimi-los. Quando a data de redenção é infinita, a fór-mula do valor presente de um título se resume a:

P = A / r, em que A é o valor da anuidade prometida (ou o valor do “cupom”) e r é a taxa de juros corren-te. Vê-se que quando a taxa de juros sobe, o preço do título deve cair.

A teoria da demanda especulativa por moeda assume que quando os investidores esperam que ataxa de juros venha a subir, eles preferem reter moeda e deixar para comprar papéis a preços meno-res mais tarde. O contrário ocorre quando a expectativa é de baixa de taxa de juros. A questão aquié: como se formam estas expectativas? Keynes argumentava que a expectativa de taxa de juros de-pendia do nível de taxa de juros que cada agente considerasse normal. Assim, se eu julgo que a taxade juros normal no Brasil é de 20% ao ano, e o mercado no momento está pagando uma taxa de 15%ao ano, minha expectativa é de que esta taxa venha a subir (para os 20% normais). Se outro agenteacha que o normal é 5% ano, suas expectativas quanto à taxa de juros no futuro serão de queda. Nes-te exemplo, que farão cada um dos dois investidores? O primeiro reterá moeda, para especulação, àespera que a taxa de juros suba. O segundo comprará títulos, à espera de que a taxa de juros desça eos títulos se valorizem.

É aqui que as objeções de Tobin se explicitam. Por um lado, diz ele, vamos supor que a taxa de ju-ros permaneça inalterada por um período mais ou menos longo. Neste caso, todos acabarão achandoque esta é a taxa normal e, portanto, a demanda especulativa por moeda será zerada. Ou seja, em equilí-brio, a demanda especulativa por moeda deve desaparecer, a não ser que os agentes sejam irracionais eincapazes de aprender com a realidade que testemunham.

O segundo problema apontado por Tobin percebe-se também do exemplo. Se eu acho que a taxa dejuros vai subir, e os preços dos títulos caírem, eu venderei agora todos os títulos que tenho e manterei sómoeda em carteira, para evitar perdas. O outro agente fará exatamente o contrário. Assim, cada investi-dor seria inteiramente especializado em um ou outro ativo e ninguém teria carteiras diversificadas, oque é negado pelos estudos empíricos.

A intenção de Tobin em seu trabalho de 1958 é reformular a teoria da demanda especulativa demodo a dar-lhe bases teóricas mais sólidas e melhorar seus resultados empíricos, diante do modo peloqual interpreta a teoria oferecida por Keynes.

5.1.3. O MODELO DE TOBIN

Tobin inicia seu artigo modelando o argumento que atribui a Keynes. Comecemos considerando que aremuneração esperada de um título para o seu detentor resulte de duas fontes:

a) o rendimento do título, A, sob a forma do pagamento que ele recebe como juros, normalmente ex-presso como uma percentagem do seu valor nominal;

b) o ganho de capital potencial, g, relacionado a um possível aumento do preço do título entre o mo-mento da compra e o da venda.

62 Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda ELSEVIER

A taxa de retorno de mercado do título, r, é a razão entre o seu rendimento e o seu preço, PT . Destemodo, como visto, a taxa de mercado (r) é dada por:

PT = A / r

O ganho de capital percentual esperado, g, é o aumento de preço, em percentagem, entre o preço decompra, PT, e o preço de venda esperado, Pe

T. Obtemos assim uma expressão para o ganho de capital es-perado, g = (Pe

T – PT) / PT. Sendo o rendimento do título, A, fixo, temos que ao preço esperado PeT cor-

responde uma taxa de juros esperada, re = A / PeT. Assim, em termos de taxas de juros esperada e corren-

te, o ganho de capital g é dado por

g = [(A/re ) – (A/r)] / A/r

Dividindo o numerador e o denominador por A e multiplicando por r, obtemos

gr

r e� –1 (1)

A taxa de retorno total de um título, e, será a soma da taxa de juros de mercado com o ganho de ca-pital. Assim, e = r + g, e substituindo g pela equação 1, obtemos uma expressão para a taxa de retornototal:

e rr

r e� � –1 (2)

Considerando uma remuneração esperada das obrigações, e, e uma remuneração nula dos ativosmonetários, será de se esperar que o detentor de ativos aplique a sua riqueza líquida em títulos se ele es-perar uma remuneração e superior a zero ou a aplique em ativos monetários se esperar “e” inferior azero.

Pode-se, agora, definir o nível de taxa de juros de mercado que Tobin chama de crítico, rc , isto é, oque zeraria a remuneração dos títulos (isto é, o valor de r que torna e = 0). Quando a taxa de juros cor-rente for superior àquele nível crítico, e assim r > rc , o indivíduo aplicará toda a sua riqueza líquida emtítulos; quando r < rc , ele transferirá todas as suas aplicações para ativos monetários. Esta, como vimos,seria, segundo Tobin, a abordagem de Keynes. Assim, para o investidor, a divisão dos seus saldos emativos líquidos e títulos é uma simples escolha, na base do “tudo ou nada”. Estas condições podem serexpressas em termos de um nível crítico da taxa de juros rc. De modo a encontrar aquele valor crítico der, rc , iguala-se a zero a remuneração total dos títulos, dada pela equação 2:

0 1� �rr

r e–

r (1 + re) = re

e por conseguinte

rr

rr

e

e c��

�1

(3)

Neste caso rc , o valor da taxa de juros de mercado r que torna e = 0, é dado por re / (1 + re). Note-seque a taxas de juros correntes acima de rc, tudo será aplicado em títulos, mas se r for menor do que rc,tudo permanecerá sob a forma de dinheiro.

Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda 63

O Gráfico 5.1 mostra a relação entre a demanda individual de saldos monetários em termos reais e ataxa de juros, sendo que o eixo horizontal representa a demanda por saldos monetários em termos reais(m = M/P). No gráfico, quando r é maior que rc, o possuidor de ativos aplicará toda a sua riqueza líquidaW em títulos, de modo que a sua demanda por moeda é nula. Quando r cai abaixo de rc, e consequente-mente e < 0, a perda de capital esperada dos títulos é superior ao rendimento que estes proporcionamsob a forma de juros, e o possuidor de ativos transferirá a totalidade da riqueza líquida para ativos mo-netários. Obtém-se, assim, uma curva de demanda por moeda do indivíduo com a forma de uma escada.Quando r for exatamente igual a rc, e = 0, é indiferente para o detentor de ativos aplicá-los em títulos ouem ativos monetários.

5.1.4 A ABORDAGEM DE ESCOLHA DE CARTEIRA DE ATIVOS DE TOBIN

A abordagem de escolha de carteira de ativos procura remover as limitações do modelo de Keynes queacabamos de ver: em um mundo com apenas dois ativos, cada indivíduo detém exclusivamente títulosou ativos monetários, nunca uma combinação de ambos – mostrando que, se os rendimentos dos títulosenvolverem riscos, então o investidor, ao se defrontar com o trade-off risco e rendimento, deverá agircompondo sua carteira detendo simultaneamente títulos e moeda. Consequentemente, as carteiras deativos dos indivíduos não serão constituídas por um único tipo de ativo, mas, em geral, por uma combi-nação de diferentes tipos, sendo, portanto, diversificadas.

Algumas características básicas do modelo de composição de carteira serão vistas a seguir, antes deanalisarmos o modelo propriamente dito:

a) O suposto básico do modelo é que o indivíduo, ao compor sua carteira, tem à sua disposição dois ti-pos de ativo – títulos e moeda –, o que lhe permite escolher entre diversas combinações destes ati-vos. Dado que o principal atributo da moeda é ser segura, e a dos títulos é ser rentável, é razoável su-por que um misto de ativos monetário e não monetário é o que maximiza a satisfação individual doagente econômico.

b) Em geral, quanto maior a proporção de títulos que o indivíduo mantém em sua carteira, maior o ris-co que o investidor assume e, ao mesmo tempo, maior o rendimento esperado. Normalmente, os in-divíduos só estarão dispostos a aceitar maiores riscos se, em troca, receberem um rendimento maior.Isto é assim porque, para a maior parte de nós, correr riscos é um custo, não uma fonte de satisfação.Em outras palavras, o normal é que os indivíduos sejam avessos a risco. Assim, os ganhos esperadosserão proporcionais ao montante de títulos na carteira do agente, sendo o rendimento total de umacarteira resultado da soma do rendimento do título sob a forma de juros, r, mais os ganhos de capital

64 Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda ELSEVIER

r

rc

M/P

WGRÁFICO 5.1Demanda Individual por Moeda no Caso de Ausência de Risco

esperado, g [sendo g =( r / re) – 1] . Assim, a remuneração percentual total (e) gerada por uma dadacarteira de títulos e moeda é, como anteriormente:

e = r + g (4)

c) Os indivíduos atribuem probabilidades aos ganhos de capitais esperados na aplicação de sua riquezalíquida em títulos, cuja média é assumida como o ganho mais provável. O desvio-padrão dos ganhosesperados, �g, servirá como a medida do risco associado à acumulação de riqueza sob a forma de tí-tulos. Tobin assumirá, por simplificação que, em média, g = 0.

d) Dada a distribuição de probabilidade dos rendimentos de cada um destes ativos, a tarefa do indiví-duo otimizador de uma função utilidade consiste em selecionar a combinação de moeda e títulos queproporcione uma posição ótima do ponto de vista do desejo de obter os maiores rendimentos aosmenores riscos.

e) Os agentes expressam suas preferências entre rendimento esperado e risco por intermédio de umconjunto de curvas de indiferença. Os pontos destas curvas correspondem às diferentes combina-ções entre rendimentos e riscos que proporcionam aos indivíduos um mesmo grau de satisfação. Su-põe-se, como é usual, que o objetivo do indivíduo é o de alcançar a curva de indiferença mais altapossível, dentre as disponíveis.

f) As combinações de risco e rendimento que um indivíduo pode obter mantendo a carteira em diferen-tes combinações de moeda e títulos correspondem às curvas de oportunidade, equivalentes a umarestrição orçamentária. As curvas de oportunidade correspondem, assim, às oportunidades disponí-veis aos indivíduos, enquanto que as curvas de indiferença aos seus objetivos e preferências.

g) A maximização da satisfação dos agentes econômicos com relação a uma carteira que proporcionauma determinada combinação de rendimentos e riscos ocorre no ponto de tangência entre a curva deoportunidade e a mais alta curva de indiferença possível.

O Modelo de Composição de Carteira

O modelo proposto por Tobin pretende descrever como um investidor individual faz sua escolha entredois tipos de ativos líquidos: moeda e títulos. O primeiro tipo de ativo, a moeda, não gera incertezas:seu retorno é zero, e não cria nenhum risco, isto é, a retenção da moeda dá ao seu possuidor um retornocerto igual a zero. O investidor, portanto, sabe de antemão que aquela parte do seu portfólio mantida emmoeda chegará ao fim do período exatamente com o mesmo valor com que começou. Já o segundo tipode ativo oferecerá um elemento de rendimento positivo, sob a forma de uma taxa de juros r, mas suaposse implicará um risco para o investidor, pois na hora em que este quiser revender este ativo, seu pre-ço de mercado pode ser menor que o originalmente pago. Assim, há um segundo elemento influencian-do a remuneração total obtida, que será o ganho (ou perda) de capital, g, que, como vimos, dependerádo comportamento da taxa de juros entre a data de compra do ativo e a data de venda.

O problema proposto por Tobin é, assim, o seguinte: em que proporções este investidor dividirá suacarteira de ativos entre moeda e títulos, ou, em outras palavras, entre o ativo seguro mas sem remunera-ção e o ativo pagante mas arriscado?

Chamemos de A1 e A2 as proporções em que uma carteira é dividida entre moeda e títulos, respecti-vamente. Naturalmente, A1 + A2 = 1. Nem A1 nem A2 podem ser negativos, mas um deles pode ser nulo,o que implicaria uma carteira inteiramente constituída de moeda ou de títulos. Tobin supõe que estasproporções são independentes do volume total de riqueza a ser investido.

O retorno total de uma carteira constituída de moeda e títulos é dado por:

R = A1 . 0 + A2 (r + g) = A2 (r + g) (5)

Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda 65

Dado que moeda não paga juros (isto é , a taxa de juros sobre a moeda é zero) nem oferece ganhosde capital, seu retorno é nulo. Por isso, o retorno total R de uma carteira é gerado apenas pelos juros eganhos de capital pagos pela proporção investida em títulos, A2.

Tobin assume que g é uma variável aleatória com valor esperado nulo e variância conhecida.Assim, o valor esperado do rendimento da carteira E(R) é

E(R) = E [A2 (r + g)] = A2r = �R (6)

O risco deste portfólio, por sua vez, é gerado pela parcela investida em títulos. Este risco é medidopelo desvio-padrão da distribuição de g, já que esta é uma medida de dispersão dos resultados possíveisquanto a ganhos de capital. Assim,

�R = A2 �g (7)E, portanto,

A2 = �R/�g (8)

Substituindo-se 8 em 6, obtém-se:

�R = (r/�g) �R (9)

Esta equação nos descreve a relação entre retornos esperados desta carteira, �R, e seus riscos, �R.Em outras palavras, ela nos diz quais níveis de riscos têm de ser aceitos para que um investidor possa al-mejar ganhar, em média, �R.

Para um dado �g, pode-se traçar a relação entre riscos e retornos através da curva de oportunidadesmostrada no quadrante superior do Gráfico 5.2. Esta curva descreve o trade-off entre riscos e retornosque cada investidor tem de considerar ao tomar sua decisão de aplicação.

Conhecido �g, é possível ainda determinar-se a relação entre A2, a proporção da carteira mantidapelo investidor, e o risco total do portfólio, �R. Com efeito, por 8 sabemos que

A2 = �R/ �g

Esta relação está descrita no quadrante inferior do Gráfico 5.2.

66 Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda ELSEVIER

mR

Inclinação = r/s g

0 s R

Inclinação = 1/s gB

W

M

Pode-se observar no quadrante inferiordo gráfico que quanto maior for a parteda riqueza W investida em títulos (B) maiorserá o seu risco ( ), e quanto maior fora parte da riqueza mantida em moeda (M),o inverso ocorrerá.A análise do quadrantesuperior será útil para as explicações quese seguem.

s R

GRÁFICO 5.2Curva de Oportunidades para um Ativo

Para encontrar o ponto de equilíbrio entre risco, �R, e remuneração esperada �R, do indivíduo, é ne-cessário confrontar a curva de oportunidades com a função utilidade do indivíduo, que, como visto, re-presenta os níveis de utilidade proporcionados pelas diferentes combinações de risco e retorno, sendo oinvestidor indiferente entre todos os pontos que compõem uma determinada curva de utilidade. A for-ma destas curvas de indiferença depende da natureza das preferências do investidor entre risco e retor-no, conforme será visto à frente.

Tipos de Preferências Individuais Possíveis

Os gráficos 5.3, 5.4, 5.5 e 5.6 mostram escolhas de portfólio descritos por três tipos de preferências in-dividuais possíveis: diversificador, jogador e amante do risco. As curvas de um diversificador – expres-sas no gráfico 5.3 – são representativas de um indivíduo avesso ao risco e, por isso, suas curvas deindiferença têm inclinação positiva e são convexas para cima em relação à reta orçamentária, indicandoque a pessoa exige, à medida que o risco aumenta, acréscimos crescentes de remuneração, ou seja, o di-versificador para aceitar incorrer em um risco maior o faz apenas em caso de esperar obter uma remune-ração maior. Como o diversificador busca, nestas circunstâncias, obter a otimimização de sua carteira,a remuneração esperada e o risco associado à sua carteira, μR, R , vão ser determinados pelo ponto detangência da sua reta orçamentária com a mais elevada curva de indiferença possível (ponto a do Gráfi-co 5.4). Este ponto corresponde a uma carteira diversificada composta em parte por títulos, no montanteB0, e em parte por ativos monetários, no montante M0.

Os Gráficos 5.4 e 5.6 mostram as curvas de indiferença de indivíduos denominados jogadores. Ojogador têm tipicamente um comportamento na base do “tudo ou nada”, pois ou ele não aplica qual-quer parcela de sua riqueza em títulos, mantendo-as sob a forma de ativos monetários (dinheiro); ou eleaplica totalmente seus recursos sob a forma de títulos e nada em ativos monetários. No Gráfico 5.4, ascurvas de indiferença do jogador são mais inclinadas do que a reta orçamentária, de modo que ele detémexclusivamente moeda, enquanto que no Gráfico 5.6 as curvas de indiferença são menos inclinadas do

Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda 67

μR

a

0 s RB0

W M0

GRÁFICO 5.3Carteira de um Diversificador

1/ s g

μR

a

0 s R

W

U0U1

U2

B0

GRÁFICO 5.5Carteira de um “Amante do Risco”

1/ s g

μR

0 s R

W

U0

U1

U2

GRÁFICO 5.4Carteira de um “Jogador”: Tudo em Dinheiro

1/ s g

μR

0 s R

W

U0

U1

U2

GRÁFICO 5.6Carteira de um “Jogador”: Tudo em Títulos

que a reta orçamentária, e, neste caso, no ponto em que a maior curva de indiferença tangencia a reta or-çamentária a carteira do jogador detém apenas títulos e nenhuma moeda, buscando maximizar retornoainda que as custas de um risco maior.

Já as curvas de indiferença de um amante do risco têm inclinação negativa (ver Gráfico 5.5), o quemostra um comportamento que busca uma maximização do risco, ou seja o indivíduo está disposto a acei-tar uma menor remuneração esperada a fim de ter a possibilidade de ganhos futuros de capital elevados,ainda que incorrendo em um risco maior. Também neste caso ele vai aplicar toda sua riqueza em títulos.

Tobin utiliza as curvas de indiferença referente aos diversificadores, situação representada no Gráfi-co 5.3, como base para constituição da demanda por moeda no seu modelo de composição de carteira deativos, já que ele parte do pressuposto que a maioria dos indivíduos são diversificadores. Para que se pos-sa deduzir uma função demanda por moeda é necessário analisarmos o que acontece neste modelo quandoas taxas de juros variam. Como visto, a inclinação da reta orçamentária é estabelecida por r/�g. Assim,quando r aumenta de r0 para r1 e para r2, tal inclinação aumenta, com a curva de oportunidades girandopara esquerda. A qualquer nível de risco dado, a remuneração aumentará quando r se eleva, fazendo comque a curva de oportunidade tangencie curvas de indiferença sucessivamente mais altas. Pode-se, ao unirestes pontos de tangência, obter uma curva de carteira ótima, tal como representada no Gráfico 5.7.

A expansão da taxa de juros atrai maiores parcelas de recursos para aplicação em títulos por partedos diversificadores, já que leva a maiores retornos esperados. Observe, contudo, que à proporção que rvai subindo, os pontos de tangência do diversificador deslocam-se para cima e para a direita, aumentan-do tanto a taxa de remuneração esperada quanto o risco a que está submetido, ainda que a níveis progres-sivamente menores já que o aumento no montante de riqueza aplicada em títulos vai diminuindo pro-gressivamente. Portanto, à medida que r se eleva com acréscimos constantes, a proporção de recursosaplicados em títulos, B, aumenta mas com acréscimos decrescentes, ao mesmo tempo que a demanda pormoeda deve diminuir em montantes sucessivamente menores, uma vez que B + M é igual à riqueza totalW. O Gráfico 5.8 mostra a função demanda por moeda para especulação, Ls = m(y0), que relaciona M e r,pressupondo um dado nível de rendimento real. Como pode ser visto, ao longo desta função, uma expan-são na taxa de juros, medida por �r, provoca uma diminuição maior na demanda por moeda quando a taxade juros se encontra em um nível baixo do que quando ela se encontra em um nível elevado. Isto porque ossaldos monetários tendem a diminuir por conta de um aumento da taxa de juros que leva os agentes a au-mentarem os riscos assumidos (�R) com aplicações em ativos não monetários.

Em outras palavras, dado que uma expansão da taxa de juros induz a liberação de maiores parcelasde ativos monetários para aplicação em títulos, e, por conseguinte, em maiores riscos e maiores retor-nos esperados, a função demanda por moeda para especulação reage inversamente à taxa de juros. Des-te modo, o modelo de carteira de ativos de Tobin permite a constituição de uma teoria de demanda por

68 Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda ELSEVIER

Curva dacarteira ótima r2

r1

r0

Inclinação =

0

B0

B2

W

B1

s g

r

s g1

mR

s R

GRÁFICO 5.7Escolha da Carteira com Taxas de Juros Crescentes

moeda para especulação, ao analisar a repartição do montante de riqueza líquida existente entre títulos emoeda, em função das taxas de juros e das expectativas com relação à remuneração e ao risco associadoaos ganhos de capital.

5.2. DEMANDA TRANSACIONAL: A ABORDAGEM

DE ESTOQUES BAUMOL-TOBINComo visto no capítulo anterior, Keynes considerou que a demanda por moeda para transações é pro-porcional à renda. A abordagem de Baumol-Tobin da demanda transacional procura mostrar que estademanda é função não somente da renda, mas também da taxa de juros. O pressuposto básico é que o in-divíduo, maximizador de uma função utilidade, durante um período de renda, terá um desejo de aplicarparte de sua renda em títulos (que rendem juros), deixando apenas uma parcela sob a forma de moedapara fazer frente às necessidades imediatas de transação, já que ele pode vender títulos quando necessá-rio para efetuar os seus pagamentos correntes. No limite, o indivíduo poderia colocar toda a sua riquezaem títulos e ir vendendo-os quando fosse necessário fazer pagamentos.

A resposta de Baumol a essa possibilidade limite é que um indivíduo maximizador de utilidade de-verá manter uma quantia de saldos monetários para transação não só porque os pagamentos podem seroscilantes como também, e principalmente, porque a existência de uma comissão de corretagem – queinclui não somente custos administrativos, mas ainda os custos incorridos pelas perdas de oportunidadeque resultam de se precisar negociar ativos exatamente no momento em que a moeda é necessária e quedeve ser paga quando se investe e desinveste em títulos – pode induzir a guardar parte dos recebimentosem moeda até que vençam os pagamentos. Assim, a existência de um custo de corretagem fornece a jus-tificativa para o indivíduo reter uma certa soma de dinheiro na forma de saldos para transações. Destemodo, a maior ou menor retenção de moeda para transações dependerá de uma comparação entre as re-ceitas derivadas das aplicações da riqueza líquida em títulos com os custos que resultam destas aplica-ções, ou seja, o ponto que irá maximizar a carteira dos agentes será aquele em que a receita marginal dasaplicações em títulos se igualar ao custo marginal. Em outras palavras, haverá um certo nível de reten-ção de títulos em que se maximiza a diferença entre os ganhos de juros e os custos da carteira.

Portanto, um indivíduo que aja racionalmente se comportará de modo a manter retenções mínimas deestoque monetário, que possibilitem ao mesmo tempo o giro normal de suas transações, mas tambémaproveitará os ganhos resultantes da aplicação do restante em títulos que rendem juros – já que os agentesbuscarão minimizar os custos de oportunidade relacionados à manutenção de saldos monetários ociosos.

Como as aplicações em títulos proporcionam um rendimento ao seu detentor, quanto maior for ataxa de juros que os títulos rendem, mais os indivíduos reduzirão os seus saldos monetários retidos paraatender o motivo transação, de modo a poderem aumentar as suas aplicações em títulos, já que isto per-mitirá um rendimento maior vis-à-vis os custos da carteira. Consequentemente, a demanda por moedapara transações é sensível, em alguma medida, à taxa de juros, pois a elevação desta provoca uma redu-

Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda 69

r r

Dr

Dr

B = W-M

r3

r1r0

0m (y )0 M

r2

s r Ls

GRÁFICO 5.8Demanda por Moeda para Especulação

ção da demanda por moeda para fins transacionais. Sinteticamente, é isto que a abordagem Bau-mol-Tobin quer dizer. Vejamos com mais detalhes este enfoque, procurando responder a seguinte per-gunta: como determinar o número ótimo de transações títulos-moeda para atender o motivo transação?

Como um primeiro passo, vejamos, tal como pode ser observado no Gráfico 5.9 a seguir, duas situa-ções:

a) No primeiro gráfico o indivíduo faz uma única transação no início do período (de um mês, porexemplo), transferindo seus recursos aplicados em títulos para a forma de dinheiro. Neste caso, eleinicia o período com Yn, que vai sendo gasto ao longo do mês até atingir a zero ao final deste. A mé-dia de caixa é, portanto, Yn/2.

b) No segundo gráfico o indivíduo faz duas retiradas de suas aplicações em títulos, sendo a primeiraYn/2 transformada em dinheiro no início do mês, reduzida a zero na metade deste, quando entãouma outra retirada de Yn/2 é transformada em dinheiro e totalmente gasta no decorrer do restante domês. Neste caso a detenção média é Yn/4, que é o valor médio retido nas duas metades do mês.

Os gráficos, contudo, não nos permitem aferir qual seria o número ótimo de transações que maxi-mizaria a satisfação de um indivíduo. Um exemplo numérico ajuda a ilustrar e entender como isto ocor-re, supondo que o montante de dinheiro de um indivíduo a ser gasto para fins transacionais em um pe-ríodo, aplicado inicialmente em títulos, é de R$ 100.000,00, e que a taxa de juros é de 3% no período(que supomos ser de um mês).2 Estamos assumindo que a renda é gasta a uma taxa constante, de modoque, no final do período, toda renda Y foi gasta.

Iniciando pelo lado da receita, para um indivíduo que não planeja efetuar qualquer transação de títu-los por moeda, não haverá retenção de títulos durante o período e, portanto, o seu rendimento será nulo.Se ele planeja efetuar uma transação, no meio do período, isto significa que irá aplicar metade de Y em tí-tulos a serem detidos durante meio mês, dividindo seu estoque inicial em dois lotes de R$ 50.000,00(como no segundo gráfico acima). Neste caso, a receita total, R, que ele irá receber será r0/2 vezes Y/2, ouseja, (r0Y)/4, como mostra o Quadro 5.1. Em nosso exemplo, isto proporcionará uma receita marginalde R$ 750,00 (3% de 100.000,00/4), e, consequentemente, uma receita total de mesmo valor.

No caso em que o indivíduo planeja realizar duas transações (dividindo sua renda em três lotes deR$ 33.333,00) como mostrado no esquema da página seguinte, normalmente ele começa a aplicar 2/3de Y em títulos e no décimo dia do mês ele pode trocar por dinheiro metade desses títulos, ou seja, 1/3de Y. Como cada título terá rendido r0/3, a receita obtida desta terça parte de Y será de (r0Y)/9. Dez diasmais tarde ele poderá converter em moeda a outra metade dos títulos, cujo rendimento unitário terá sido

70 Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda ELSEVIER

Retenção emdinheiro

Z = Yn

Z = Y /2n

0 1½ 0 1½

Tempo Tempo

GRÁFICO 5.9Volume de Dinheiro Retido Relacionado ao Número de Retiradas

2. Nos baseamos, para o exemplo que se segue, em Branson, W. Macroeconomia: teoria e política, cap.12. Lisboa: FundaçãoCalouste Gulbenkiah, 1979.

2r0/3, o que faz com que esta terça parte de Y proporcione uma receita total de (2r0Y)/9. A receita totalno caso de duas transações será, portanto, de (r0Y)/9 + (2r0Y)/9 = (r0Y)/3. O aumento na receita em rela-ção a uma transação (receita marginal) será de (r0Y)/12. Voltando ao nosso exemplo, isto proporcionaráuma receita marginal de R$ 250,00 (calculado por 3% de 100.000,00/12), e, consequentemente, umareceita total de R$ 1.000,00 (3% de 100.000,00/3).

Já no caso de três transações (com a renda dividida em 4 lotes de R$ 25.000,00), como é mostradono esquema da página seguinte, um quarto de Y renderá juros durante ¼ do mês, proporcionando umrendimento de (r0Y)/16, enquanto que ¼ renderá durante meio mês proporcionando (2r0Y)/16 e aindaoutro quarto renderá juros durante ¾ do mês, proporcionando um rendimento de (3r0Y)/16. Conse-quentemente, somando todos os rendimentos, a receita total será de (6r0Y)/16 ou (3r0Y)/8, sendo a re-ceita marginal (r0Y)/24. Em nosso exemplo, para três transações, isto proporcionará uma receita margi-nal de R$ 125,00, e, consequentemente, uma receita total de R$ 1.125,00 (3 vezes 3% de 100.000,00/8).

Observa-se, assim, que a receita marginal resultante do aumento do número de transações, n, é po-sitiva, mas decrescente quando este número se eleva. No Quadro 5.1, pode-se observar que à medidaque n aumenta, a queda da Rmg se atenua. No Gráfico 5.10, a curva Rmg (r0) representa a receita margi-nal como função do número de transações n, para uma dada taxa de juros r0.

Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda 71

QUADRO 5.1Receita Marginal e Custo Marginal

Número detransações (n)

Receitatotal

Receita marginal(Rmg)

Custo marginal(Cmg)

Receitatotal R$

Receita marginal(Rmg) R$

Custo marginal(Cmg) R$

0

1

2

3

....

0

r0Y/4

r0Y/3

3r0Y/8

....

0

r0Y/4

r0Y/12

r0Y/24

....

0

tc

tc

tc

....

0

750

1000

1125

....

0

750

250

125

....

0

250

250

250

....

$

total

0

3

Encaixesmédios

1/3 t 2/3 t tempo

$

Encaixesmédios

01/4 t 2/4 t 3/4 t tempo

total4

Do lado dos custos, admite-se, como visto inicialmente, que cada transação de conversão de títu-los em moeda tem um dado custo tc, relacionado ao custo do corretor ou ao custo implícito do tempogasto na operação de transação. Como o custo unitário é igual para cada transação, logo o custo mar-ginal é fixo (tc), sendo no exemplo igual a R$ 250,00. No Gráfico 5.10, adiciona-se a curva de customarginal, em que Cmg = tc. Combinando a curva de Rmg (r0) com a de Cmg, pode-se determinar onúmero n0 de transações que maximiza o ganho do indivíduo, correspondente ao ponto onde Rmg =Cmg. Evidentemente, enquanto que a Rmg estiver acima do Cmg, a aplicação em títulos é financeira-mente compensadora. No nosso exemplo, a maximização do resultado se dá no nível de duas transa-ções (ver Quadro 5.1).

O exemplo apresentado anteriormente mostra que um incremento do número de transações tende aaumentar o montante médio de saldos detidos sob a forma de títulos, ao mesmo tempo que reduz os sal-dos retidos sob a forma de moeda, em um determinado período. No caso de uma elevação na taxa de ju-ros – de r0 para r1 – tanto a receita total quanto marginal se alterarão para mais, o que resultaria no Gráfi-co 5.10 em um deslocamento da curva de receita marginal para cima – de Rmg (r0) para Rmg (r1). Au-menta, consequentemente, o número ótimo de transações, com a maior subdivisão em lotes do estoquemonetário inicial, desde que o custo marginal (Cmg) se mantenha o mesmo. Este aumento do númerode transações – de n0 para n1 – é efetuado tendo em vista elevar o saldo médio aplicado em títulos, demodo a se beneficiar da taxa de juros mais elevada.

A principal conclusão da abordagem de Baumol-Tobin para a demanda de moeda para transações éque as elevações da taxa de juros resultam numa ampliação do número de transações e consequenteaumento do montante de moeda aplicado em títulos. Logo, a demanda por moeda para fins transacionaisreage às mudanças nas taxas de juros, provocando um movimento inverso na demanda por moeda paratransação.3 Esta, portanto, está diretamente relacionada ao montante da renda mas inversamente rela-cionada à taxa de juros de mercado. Assim:

Lt = f (y, r); dLt /dy > 0 e dLt /dr < 0 (10)

No Gráfico 5.11 pode-se observar que enquanto alterações nas taxas de juros levam a uma mudançaao longo da curva de demanda por moeda transacional – já que uma expansão na taxa de juros acarretauma redução dos recursos retidos sob a forma de ativos monetários e concomitante expansão da carteirade títulos –, uma alteração no nível de renda leva a um deslocamento nesta curva, já que implica um au-mento na demanda por moeda para transações, dada uma taxa de juros r1.

72 Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda ELSEVIER

Rmg, Cmg

Cmg = R$ 250,00tc

Rmg (r )1

Rmg (r )0

n = 20 n1

GRÁFICO 5.10Determinação do Número Ótimo de Transações

3. Para uma formalização do argumento, ver Box 5.1.

Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda 73

Considere que o custo de oportunidadeem um período de manter a moeda (emtermos de juros não recebidos) é rC/2,sendo C/2 o encaixe monetário médio, euma taxa de corretagem igual a bY/C, oque dá um custo total (CT), relativo àquantia total que o indivíduo deverá pa-gar pela utilização da moeda corrente ne-cessária para fazer face às suas transa-ções, de:

CTbYC

rC� �

2

Como o indivíduo tem como objetivominimizar o custo total, a razão exige queele faça a um custo mínimo, isto é, que es-colha o valor mais econômico de C (quan-tidade de moeda sacada e gasta em cadasubperíodo). Assim, fazendo-se a deriva-da da razão acima com relação a C igual azero, pode-se chegar ao valor que minimi-za o custo da seguinte forma:

dCTdC

bY

C

r�

�� �2 2

0

Resolvendo para C, obtém-se:

CbYr

�2

Portanto, na situação simples aqui con-siderada, o indivíduo racional irá, dado o ní-vel de preços, procurar moeda na propor-ção da raiz quadrada do valor de suastransações. Uma taxa de corretagem maior(b) aumenta os saldos líquidos desejados,desestimulando as retiradas de valoresaplicados em títulos (e idas ao banco). Poroutro lado, uma maior taxa de juros sobreos títulos diminui os saldos médios de di-nheiro (cash) retidos, e estimula o indiví-duo a ir ao banco com mais frequência efazer saques menores (assim em média ossaldos retidos em dinheiro diminuem). Ogasto adicional com a taxa de corretagemé compensado pelos juros adicionais ga-nhos sobre os maiores saldos dos recursosaplicados a taxas de juros maiores.

Ademais, a equação acima mostratambém que a demanda por moeda paratransações aumenta com os acréscimosde renda. Portanto, o modelo de Baumolressalta que a demanda para transaçõesestá relacionada à raiz quadrada da ren-da, assim como com as taxas de juros.

A HIPÓTESE DA RAIZ QUADRADA DE BAUMOL

BO

X5

.1

r rY0

Y0

Y1Y2

0 Lt Lt Lt2 1 0 Lt Lt0 LtLt1 Lt2

GRÁFICO 5.11Efeitos de Mudanças nas Taxas de Juros e na Renda sobre a Demanda Transacional

5.3. ASSIMETRIA DE INFORMAÇÃO E RACIONAMENTO

DE CRÉDITO

Uma vez vistos os modelos neoclássicos keynesianos tradicionais, passemos, nesta seção, a analisar umaoutra teoria keynesiana de demanda por moeda relacionada à oferta e a demanda por crédito, desenvolvida,entre outros, por Stiglitz e Weiss, em um famoso artigo, de 1981, intitulado “Racionamento de crédito emmercados com informação imperfeita”. O ponto de partida dessa abordagem, conhecida como teoria do ra-cionamento de crédito, é analisar por que o mercado de crédito não funciona como um mercado competitivode bens e serviços, onde os desajustes entre oferta e demanda são “resolvidos” através do movimento dopreço da mercadoria. Ou seja, por que a taxa de juros cobrada nas operações de crédito não se comportacomo o preço de uma mercadoria qualquer, se elevando sempre que a demanda pela mesma aumenta?

A resposta a esta pergunta é a existência de assimetria de informações nos mercados financeiros, namedida em que um participante deste mercado com frequência não sabe o suficiente sobre outro partici-pante para tomar uma decisão mais precisa com respeito à transação. Por exemplo, um tomador de em-préstimo normalmente tem uma informação melhor do que o emprestador sobre os retornos potenciaise os riscos associados aos projetos de investimento para o qual os fundos são alocados. Esta insuficiên-cia ou assimetria de informações pode afetar o comportamento de cada tomador individual (risco mo-ral) ou o grau de risco do conjunto de tomares de crédito (seleção adversa), gerando um racionamentono crédito, situação em que os emprestadores se recusam a fazer empréstimos mesmo que os tomadoresestejam dispostos a pagar a taxa de juros estabelecida ou mesmo uma taxa maior. Em outras palavras, oracionamento de crédito é uma condição no mercado de empréstimos em que a oferta de fundos do em-prestador é menor que a demanda do tomador, às taxas de juros e termos contratuais correntes.

A falta (ou insuficiência) de informações pode acarretar um mau funcionamento do mercado decrédito antes ou depois de a transação financeira ser realizada. A seleção adversa, decorrente de umaelevação da taxa de juros, é o caso em que a informação assimétrica pode causar um problema antes quea transação ocorra. Ela decorre do fato de que o banco não consegue distinguir com precisão os bonsdos maus tomadores, ou seja, um tomador de empréstimo de alto risco de um de baixo risco. Por isso, ostomadores potenciais que normalmente produzem um resultado indesejável (com um elevado risco decrédito) são os que mais ativamente demandam crédito e são aqueles que normalmente são seleciona-dos. Quanto maior a taxa de juros que um determinado demandante se dispõe a pagar, maior o grau derisco associado ao mesmo, já que o tomador honesto, perante uma taxa de juros excessivamente eleva-da, capaz de tornar seu retorno líquido negativo, abdica do empréstimo. Assim, dado que a característi-ca dos tomadores individuais e seus projetos não podem ser devidamente identificados a priori, podeser uma boa política para o emprestador (um banco, por exemplo) estabelecer a taxa de juros de emprés-timo abaixo da taxa de equilíbrio do mercado, e, ao mesmo tempo, racionar o crédito, mesmo que exis-tam bons tomadores no mercado.

O risco moral (“moral harzard”), por sua vez, é o caso em que a informação assimétrica pode cau-sar um problema depois que a transação ocorre. Ele surge porque os tomadores individuais escolhemrealizar projetos mais arriscados a taxas de juros maiores, diminuindo a probabilidade de que os em-préstimos sejam pagos de volta. Isto acontece porque à medida que a taxa de juros se eleva só as firmasque desejam executar os projetos mais arriscados irão demandar crédito.

Os problemas causados pela seleção adversa e pelo risco moral são um importante impedimento aobom funcionamento dos mercados financeiros, acarretando um racionamento no crédito. Neste contex-to, os intermediários financeiros têm um papel importante em aprimorar a eficiência econômica, aju-dando os mercados financeiros a canalizarem fundos de poupadores para investidores, permitindo queestes possam aproveitar as oportunidades de investimento produtivo. O racionamento de crédito podeocorrer de duas formas:4

4. Conforme Mishkin, F.S. The Economics of Money, Banking, and Financial Markets. Reading, Mass., Addison-Wesley,1998, cap. 10.

74 Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda ELSEVIER

a) A primeira ocorre quando um emprestador recusa-se a fazer um empréstimo a qualquer taxa de ju-ros a um tomador, mesmo que o tomador esteja desejoso de pagar uma taxa de juros mais elevada.Mas por que, quando o tomador potencial representa um risco de crédito elevado, o emprestadornão oferece um empréstimo a uma taxa de juros maior? A resposta é que a seleção adversa impedeesta solução. Indivíduos e firmas com projetos de investimento de maior risco são exatamente aque-les que estão desejosos a pagar as taxas de juros mais altas. Cobrar uma taxa de juros mais alta so-mente faz a seleção adversa piorar para o tomador. O emprestador, portanto, pode preferir não fazerqualquer empréstimo a taxas de juros mais elevadas, racionando o crédito.

b) A segunda ocorre quando um emprestador deseja fazer um empréstimo mas restringe o tamanho doempréstimo a menos do que o tomador gostaria. Neste caso, as instituições financeiras garantemcrédito aos tomadores, mas não na magnitude que eles gostariam. Tal racionamento de crédito é ne-cessário porque quanto maior for o empréstimo, maior o benefício do risco moral, ou seja, cresce oincentivo de o tomador se engajar em atividades que diminuem a possibilidade de pagamento deempréstimo. Uma vez que os tomadores normalmente pagam seus empréstimos se a quantia de em-préstimo é pequena, instituições financeiras racionam crédito provendo os tomadores com emprés-timos menores do que eles procuravam.

A ocorrência desses efeitos no mercado financeiro depende evidentemente da existência de infor-mação imperfeita. Caso a informação plena estivesse disponível sem custos para o emprestador (umainstituição financeira), este seria capaz de selecionar com perfeição os tomadores, cobrando taxas de ju-ros adequadas para cada um deles, reduzindo, deste modo, o risco de crédito no nível mínimo e conse-quentemente, fazendo com que a demanda por moeda assumisse outra dinâmica.

Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda 75

Em um mercado de carros usados, nor-malmente o comprador não conseguecertificar-se com precisão da qualidade docarro que está examinando para comprar.Consequentemente, como é difícil o com-prador avaliar se o carro está em boascondições para uso, ele estará disposto apagar apenas o preço que reflete a quali-dade média dos carros no mercado. Nooutro lado do mercado, as pessoas quequerem vender seus carros, geralmentetêm informações acuradas a respeito domesmo e sabem se o carro está ou não emboas condições. Aqui aparece o problemade seleção adversa, derivado de uma assi-metria informacional, impedindo o funcio-namento adequado do mercado de carrosusados: enquanto o comprador está dis-posto a pagar o preço médio do mercadopor um carro, os vendedores de carros emboas condições acham que o preço devenda do seu carro está subestimado, damesma forma que os vendedores de car-

ros ruins poderão observar que os preçosde seus carros estão supervalorizados. Oresultado final é que não somente poucoscarros em bom estado serão vendidos,como também o volume total das vendasdeverá ser baixo, devido ao medo de secomprar um carro em estado ruim.

A solução para a superação do proble-ma de seleção adversa no mercado decarros usados é a existência de revende-doras, que atuam como intermediáriasentre vendedores e compradores de car-ros usados. Como as revendedoras que-rem manter uma boa reputação junto aseus clientes, elas acabam disseminandoas informações aos compradores, ven-dendo os carros (bons e ruins) a seu devi-do preço.

Fonte: Akerlof, A. “The market for ‘lemons’:quality uncertainty and the market mecha-nism”. Quaterly Journal of Economics, 84,1970.

SELEÇÃO ADVERSA EM UM MERCADO DE CARROS USADOS

BO

X5

.2

RESUMO

1. Neste capítulo foram analisados os modelos keynesianos neoclássicos de demanda por moeda – o modelo decomposição de carteiras de Tobin (demanda especulativa); a abordagem de estoques de Baumol-Tobin (de-manda transacional), e também o modelo de racionamento de crédito de Stiglitz e outros. No caso dos dois pri-meiros, a atenção esteve voltada para uma redefinição dos motivos para demandar moeda, elaboradosoriginalmente por Keynes, enquanto, no caso do último, a atenção voltou-se para o lado da oferta de crédito,procurando-se “microfundamentar” por que a assimetria de informações pode gerar racionamento de créditoe afetar a demanda por moeda.

2. Há diferenças nas premissas seguidas por Keynes e Tobin: enquanto Keynes definiu a demanda precaucionáriae especulativa em função da existência de incerteza quanto ao futuro, no modelo de composição de carteira deTobin os agentes passam a agir em função de um risco mensurável. Ademais, na maior parte da Teoria Geral,Keynes formulou sua teoria da preferência pela liquidez num mundo dicotômico em que o agente tinha duas op-ções excludentes: reter moeda ou adquirir títulos. Tobin, contudo, elaborou seu modelo de composição de carte-ira partindo da premissa que a maior parte das pessoas prefere, uma dada combinação de moeda e títulos e que,portanto, dados os riscos envolvidos, é razoável supor que um misto de ativos monetários e não monetários é quemaximiza a satisfação individual com relação à composição de carteira de um indivíduo.

3. A conclusão que se obtém no desenvolvimento teórico do modelo de Tobin é que, dado que uma expansão dataxa de juros induz a liberação de maiores parcelas de ativos monetários para aplicação em títulos, e, por con-seguinte, em maiores riscos e retornos esperados, a função demanda por moeda para especulação reage inver-samente à taxa de juros. Deste modo, o modelo de carteira de ativos de Tobin permite a constituição de umateoria de demanda por moeda para especulação, ao analisar a repartição do montante de riqueza líquida exis-tente entre títulos e moeda, em função das taxas de juros e das expectativas com relação à remuneração e aorisco associado aos ganhos de capital.

4. No que se refere à demanda transacional, que segundo Keynes é função da renda corrente, a contribuição deBaumol-Tobin procura mostrar que os agentes poderão num determinado período de renda aplicar parte de seusrecursos em títulos que rendem juros, deixando apenas uma pequena parte sob a forma de moeda para fazer fren-te às necessidades imediatas de transação, já que ele pode vender títulos quando necessário para efetuar os seuspagamentos correntes. A principal conclusão do modelo Baumol-Tobin para demanda de moeda para transa-ções é que as elevações da taxa de juros resultam numa ampliação do número de transações e consequente au-mento do montante de moeda aplicado em títulos. Logo, a demanda por moeda para fins transacionais reage àsmudanças nas taxas de juros, provocando um movimento inverso na demanda por moeda para transação.

5. O ponto de partida da teoria de racionamento de crédito é analisar por que o mercado de crédito não funcionacomo um mercado competitivo de bens e serviços, onde os desajustes entre oferta e demanda são “resolvidos”através do movimento do preço da mercadoria. Ou seja, por que a taxa de juros cobrada nas operações de cré-dito não se comporta como o preço de uma mercadoria qualquer, se elevando sempre que a demanda pelamesma aumenta? A resposta dada a esta pergunta é a existência de assimetria de informações nos mercadosfinanceiros, na medida em que um participante deste mercado com frequência não sabe o suficiente sobre ou-tro participante para tomar uma decisão mais precisa com respeito à transação. Por exemplo, um tomador deempréstimo normalmente tem uma informação melhor do que o emprestador sobre os retornos potenciais e osriscos associados aos projetos de investimento para o qual os fundos são alocados. Esta insuficiência ou assi-metria de informações pode afetar o comportamento de cada tomador individual (risco moral) ou o grau derisco do conjunto de tomadores de crédito (seleção adversa), gerando um racionamento no crédito, situaçãoem que os emprestadores se recusam a fazer empréstimos mesmo que os tomadores estejam dispostos a pagara taxa de juros estabelecida ou mesmo uma taxa maior. Em outras palavras, o racionamento de crédito é umacondição no mercado de empréstimos em que a oferta de fundos do emprestador é menor que a demanda dotomador, nos termos contratuais estabelecidos.

TERMOS-CHAVE

� Demanda por Moeda� Modelo de Composição de Carteira� Abordagem de Estoque da Demanda Transacional� Assimetria de Informações

� Racionamento de Crédito� Risco Moral� Seleção Adversa

76 Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda ELSEVIER

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Tobin, J. “The interest-elasticity of transactions demand for cash”. Review of Economics and Statistics, vol. 38,agosto de 1956; “Liquidity preference as behaviour towards risk”. Review of Economics Studies, vol. 25, feverei-ro de 1958.

Neste último artigo, James Tobin elabora seu modelo de composição de carteira para explicar a demanda espe-culativa por moeda. Trata-se de um texto de leitura relativamente difícil, requerendo do leitor um certo traquejomatemático e um bom conhecimento prévio de teoria monetária, mas fundamental para quem quiser se aprofun-dar no tema.

Stiglitz, J. & Weiss, A. “Credit rationing in markets with imperfect information”. American Economic Review,vol. 71, n. 3, June 1981.

Artigo clássico em que os autores desenvolvem um modelo de racionamento de crédito que inclui tanto o efei-to risco moral quanto o efeito seleção adversa. Tal como o texto acima, requer do leitor um certo traquejo matemá-tico, mas é imprescindível para quem quiser se aprofundar no tema.

Baumol, W.J. “The transactions demand for cash: an inventory theoretic approach”. Quaterly Journal of Eco-nomics, vol. 66, novembro de 1952.

Jaffee, D. “Credit rationing”. In P. Newman et alli (ed.). The New Palgrave Dictionary of Money & Finance.London: Macmillan, 1992.

Modelos Neoclássicos Keynesianos de Demanda por Moeda 77

A DEMANDA POR MOEDANO MODELO MONETARISTA:A NOVA TEORIAQUANTITATIVA DA MOEDA

INTRODUÇÃO

Este capítulo analisa o modelo de demanda por moeda formulado pelos monetaristas,que na realidade trata-se de uma retomada, em uma base mais elaborada, da teoriaquantitativa da moeda, em particular na abordagem de Cambridge. Ao contrário desta,o modelo monetarista, elaborado nos anos 50, particularmente por Milton Friedman, omais conhecido economista monetarista, inclui novas variáveis – como a taxa de jurosdos títulos – na função demanda por moeda. Contudo, a conclusão final do modelo ésemelhante à encontrada pelos antigos teóricos quantitativistas, ou seja, a de que a de-manda por moeda depende fundamentalmente da renda da comunidade, e que qual-quer aumento na taxa de crescimento da oferta de moeda acima da taxa de crescimentodo produto acarreta no longo prazo tão-somente um aumento no nível preços. Daí porque os monetaristas se autointitulam novos quantitativistas, e se posicionam de formacrítica à análise da demanda por moeda elaborada pelos keynesianos, em particular aabordagem Tobin-Baumol.

Deve-se destacar ainda que os monetaristas deram especial atenção ao comporta-mento da demanda por moeda na hiperinflação, conforme a análise clássica feita porPhilip Cagan, em seu artigo de 1956, The Monetary Dynamics of Hyperinflation. Odesenvolvimento deste modelo, como será visto neste capítulo, está de acordo com ospressupostos teóricos monetaristas, inclusive no que se refere à adoção da hipótese deexpectativas adaptativas.

O capítulo está dividido em 5 seções, além desta introdução. Na Seção 6.1 são feitas,de forma breve, algumas considerações sobre a teoria monetarista. Na Seção 6.2 é desen-volvido o modelo de demanda por moeda, tal como formulado por Milton Friedman, re-servando-se a seção seguinte para assinalar algumas diferenças entre a teoria monetaristae a keynesiana no que se refere à demanda por moeda. A Seção 6.4 aborda a análise de Ca-gan sobre o comportamento da demanda por moeda na hiperinflação.

CAPÍTULO

6

6.1. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEORIA MONETARISTA

As raízes do monetarismo remontam à teoria quantitativa da moeda (TQM), que formou a base da eco-nomia monetária clássica do século XVII, tal como visto no Capítulo 3 deste livro. Como destacado an-teriormente, a TQM explica as mudanças na renda nominal agregada em termos de variações noestoque de moeda e na velocidade de circulação da moeda, que a longo prazo é tida como estável. Nolongo prazo, o crescimento do volume físico do produto é determinado exclusivamente por fatores reais– como produtividade, tecnologia, acumulação de capital, crescimento populacional –, de tal forma queas mudanças monetárias influenciam apenas o nível de preços da economia. No curto prazo, o impactode mudanças na oferta de moeda é muito mais complexo e variado, influenciando preços e produto real,podendo, assim, ter efeitos, ainda que transitórios, sobre as variáveis reais da economia.

Milton Friedman sustenta que a TQM deve ser vista como uma teoria da demanda por moeda e queesta última está relacionada a um conjunto limitado de variáveis econômicas de uma forma previsível eestável, na qual a renda permanente é a mais importante. O modelo de demanda por moeda de Fried-man, que será visto a seguir, é um ressurgimento, em bases teóricas mais sofisticadas, da tradicionalabordagem quantitativa na sua versão de Cambridge (M = kPy). Contudo, ao invés de considerar kcomo essencialmente fixa, este economista assume k como uma função estável de um número restritode variáveis econômicas, o que permite postular ser o comportamento da velocidade-renda da moedaprevisível, ainda que ela não seja constante.

Uma vez que a demanda por moeda é uma função estável de um certo número de variáveis, altera-ções na oferta de moeda terão um impacto significativo mas previsível sobre o comportamento dosagentes, mesmo que exista algum movimento de compensação na velocidade de circulação da moeda.O estoque de moeda é visto como estando sob o controle do governo e, assim, a oferta de moeda é deter-minada exclusivamente pelas autoridades monetárias. Logo, a demanda por moeda deve mudar quandoa oferta de moeda for alterada pelas autoridades monetárias. Como o efeito substituição entre moeda eoutros ativos é tido pelos monetaristas como pequeno, ou seja, a elasticidade da demanda por moeda àtaxa de juros é baixa, é o nível de renda que deve se alterar para colocar a demanda por moeda em linhacom uma oferta de moeda maior.

A visão monetarista trata a moeda como um ativo que rende um fluxo particular de serviços para oseu possuidor e dependente de valores permanentes da riqueza, da renda e da taxa de juros. O tratamen-to dado à demanda por moeda é similar à demanda por estoque de outros ativos. Em particular, a de-manda por moeda depende do volume de transações, das frações da renda e da riqueza que o público de-seja manter sob a forma de saldos monetários e dos custos de oportunidade de reter moeda em vez deoutros ativos que produzem juros, como ativos financeiros, ativos físicos (bens de consumo duráveis,entre outros) etc. Neste modelo, é aceita a substitutibilidade da moeda em relação a um conjunto de al-ternativas.

6.2. O MODELO DE DEMANDA POR MOEDA DE FRIEDMAN

Milton Friedman propõe-se a construir uma teoria da demanda por moeda como se ela fosse um ramoda teoria do capital: trata-se de abordar a moeda como uma forma de riqueza, a ser retida da mesma for-ma que outras formas de riqueza. Que proporção de sua riqueza um indivíduo desejará reter em formamonetária dependerá: (a) do valor do próprio estoque de riqueza a ser retido (indivíduos pobres podempreferir meios seguros, para evitar a perda do pouco que têm, enquanto ricos podem ser mais ousados,porque têm menos, relativamente, a perder); (b) dos atributos da moeda diante dos atrativos das formasalternativas de riqueza.

É importante destacar dois aspectos que nos parecem distintivos na análise de Friedman sobre a de-manda por moeda: (a) sua análise da demanda por moeda por parte das unidades básicas detentoras deriqueza na sociedade é feita de forma análoga à análise da demanda por um bem de consumo, e, por

A Demanda por Moeda no Modelo Monetarista: a Nova Teoria Quantitativa da Moeda 79

80 A Demanda por Moeda no Modelo Monetarista: a Nova Teoria Quantitativa da Moeda ELSEVIER

Em seu clássico artigo “A teoria quantitati-va da moeda – uma reafirmação”, pu-blicado originalmente em 1956, MiltonFriedman estabelece assim as premissasde seu modelo de demanda por moeda:

“1. A teoria quantitativa é, em primeirolugar, uma teoria da demanda por moe-da. Não é uma teoria do produto, ou darenda monetária, ou do nível de preços.(...)

2. Para as unidades detentoras de ri-queza básica da economia, a moeda éuma espécie de ativo, uma maneira demanter riqueza. Para a empresa produti-va, a moeda é um bem de capital, umafonte de serviços produtivos que são com-binados com outros serviços produtivospara produzir os bens que a empresa ven-de. Consequentemente, a teoria da de-manda por moeda é um tópico especial dateoria de capital; enquanto tal, ela tem acaracterística muito incomum de combi-nar um pedaço de cada lado do mercadode capital, a oferta de capital (...) e a de-manda por capital (...).

3. A análise da demanda por moedapor parte das unidades básicas detentorasde riqueza na sociedade pode ser tomadacomo formalmente idêntica à análise dademanda por um serviço de consumo.Como na teoria usual da preferência doconsumidor, a demanda por moeda (ouqualquer outro ativo específico) dependede três conjuntos principais de fatores: a)a riqueza total a ser mantida de várias for-mas – o análogo da restrição orçamentá-ria; b) o preço dessa forma de riqueza e deformas alternativas e o retorno sobre elas;c) os gostos e preferências das unidadesdetentoras de riqueza. (...)

4. Do ponto de vista mais amplo e maisgeral, a riqueza total inclui todas as fontesde “renda” ou de serviços consumíveis.Uma dessas fontes é a capacidade produ-tiva dos seres humanos, e consequente-mente essa é uma das formas nas quais ariqueza pode ser mantida. Desse ponto devista, “a” taxa de juros expressa a relaçãoentre o estoque que é a riqueza e o fluxoque é a renda, de modo que se Y for o flu-xo de renda total, e r “a” taxa de juros, ariqueza total é

WYr

5. A riqueza pode ser mantida de nu-merosas formas, e a unidade básica de-tentora de riqueza deve ser consideradacomo dividindo sua riqueza entre elas(ponto [a] de 3), de modo a maximizar a“utilidade” (ponto [c] de 3), sujeita sejamquais forem as restrições que afetem apossibilidade de converter uma forma deriqueza em outra (ponto [b] de 3). Como éusual, isso implica que ela buscará umapartilha de sua riqueza tal que a taxa àqual ela pode substituir uma forma de ri-queza por outra é igual à taxa à qual elaestá exatamente disposta a fazê-lo. (...) Amanutenção de uma forma de riqueza emvez de outra envolve uma diferença nacomposição do fluxo de renda, e são es-sencialmente essas diferenças que sãofundamentais para a “utilidade” de umaestrutura de riqueza particular. Em conse-quência, para descrever completamenteas combinações alternativas de formas deriqueza que estão disponíveis a um indiví-duo, devemos levar em conta não só seuspreços de mercado (...), mas também aforma e o tamanho dos fluxos de rendaque elas produzem.

Basta que ressaltemos as principaisquestões que essas considerações susci-tam para considerar cinco formas diferen-tes nas quais a riqueza pode ser mantida:i) moeda (M), interpretada como unidadesde direitos ou de mercadorias que são ge-ralmente aceitas em pagamento de dívi-das a um valor nominal fixo; ii) títulos (T),interpretados como direitos a fluxos tem-porais de pagamentos fixados em unida-des nominais; iii) ações (A), interpretadascomo direitos a participações pro rata es-tabelecidas dos retornos das empresas; iv)bens físicos não humanos; v) capital hu-mano (H)”.*

* Friedman, M. “A teoria quantitativa da moeda– uma reafirmação”. In Carneiro, R. (org.). OsClássicos da Economia, vol. 2. São Paulo, Ed.Ática, 1997, p. 235-7. Publicado originalmenteem inglês com o título “The quantity theory ofmoney: a restatement”. In Friedman, M. Studiesin the Quantity Theory of Money. Chicago, TheUniversity of Chicago Press, 1956.

A RECONSTRUÇÃO DA TEORIA QUANTITATIVA DA MOEDAPOR FRIEDMAN

BO

X6

.1

isso, a moeda é um ativo que produz um fluxo de serviços para o seu possuidor; daí a importância deconsiderar a restrição orçamentária do agente detentor de riqueza, os preços e retornos dos ativos e osgostos e preferências dos agentes; (b) o ponto de partida do seu modelo de demanda por moeda é que amanutenção de uma forma de riqueza em vez de outra no portfólio do indivíduo envolve uma diferençana composição dos fluxos de renda gerados por um dado portfólio, e são essencialmente essas diferen-ças que são fundamentais para determinar o nível de utilidade oferecido por uma estrutura qualquer decarteira.

Os elementos determinantes da função demanda por moeda, nesta abordagem, são apresentados aseguir:

RiquezaFriedman considera a riqueza, W, como um dos determinantes da demanda por ativos em geral, e pormoeda, em particular. Valores para W, porém, são muito difíceis de se obter, especialmente pela difi-culdade de se avaliar estoques de gerações diferentes. Por isso, Friedman se vale da relação

Y = r.W (1)

onde r é a taxa de juros e que indica que a renda (Y) de uma sociedade é o retorno que se pode obter dasua riqueza acumulada (W). Friedman substitui W por Y/r, duas variáveis, em princípio, mais facilmen-te observáveis.

É preciso ter cuidado, porém, e observar que Y não é a renda que se observa efetivamente a cada pe-ríodo (como, por exemplo, o valor do PIB brasileiro publicado pelo IBGE), mas a renda permanente,ou seja, um conceito que mede a capacidade de usufruto permanente da riqueza existente, desprezan-do-se flutuações conjunturais. Para Friedman, isto é importante porque a demanda por moeda, sendoparte da escolha de portfólio, deve ser orientada por fatores de longo prazo, sendo pouco ou nada afeta-da por fatores transitórios ou conjunturais, como flutuações da renda observada. De qualquer forma, éimportante que nunca se perca de vista que enquanto a renda na TQM tradicional era um indicador dovolume de bens e serviços a ser transacionado em um dado período, na nova TQM de Friedman, a rendase torna uma variável usada para se obter uma aproximação do valor da riqueza social.

A riqueza total inclui todas as formas de riqueza, inclusive a moeda e os bens de capital físicos, pos-suídas diretamente pelas unidades econômicas. Trata-se de um conceito que terá um papel análogo aoda restrição orçamentária na teoria convencional de escolha do consumidor. Segundo Friedman, a ri-queza total é composta de riqueza humana, relacionada à capacidade produtiva dos seres humanos, e deriqueza não humana, que engloba riqueza material, como moeda, ativos financeiros (títulos, ações) eum conjunto heterogêneo de bens físicos (por exemplo, imóveis). A riqueza total é o valor presente detodas as rendas futuras provenientes da capacidade produtiva dos seres humanos (riqueza humana) e deoutros ativos, como títulos, moeda, propriedades e bens duráveis (riqueza não humana).

Para efeitos de estimação, a renda permanente será dada por uma média ponderada das rendas cor-rentes e passadas das unidades detentoras de riqueza.

A demanda por moeda das unidades detentoras de riqueza, Md, é uma função direta do nível de ren-da total (Y), o que significa que “efeitos renda”, indistinguíveis neste caso de “efeitos riqueza”, têm im-pacto positivo sobre a demanda por moeda. Assim:

Md = f (Y), sendo dMd / dY > 0 (2)

Relação entre Riqueza Humana e Não-humana

O ativo maior de muitos detentores de riqueza é sua própria capacidade de ganho pessoal, ou seja, seucapital humano. Contudo, enquanto a riqueza não humana pode ser comprada e vendida, o mesmo nãoocorre com a riqueza humana, pois não há mercado para esta forma de riqueza, o que a faz menos líqui-

A Demanda por Moeda no Modelo Monetarista: a Nova Teoria Quantitativa da Moeda 81

da do que a riqueza não humana. Assim, dado um determinado estoque de riqueza, quanto maior for aparticipação de riqueza humana no portfólio do indivíduo, maior deverá ser a demanda por moeda demodo a compensar a iliquidez da riqueza humana, e vice-versa. Por isso, considerando que w = Rh / Rnh ,em que Rh é a riqueza humana e Rnh a riqueza não humana, à medida que a proporção w aumenta, maiorse torna a necessidade de se reter moeda. Portanto, coeteris paribus,

Md = f (w), sendo dMd / dw > 0 (3)

Custo de Oportunidade de Retenção de Saldos MonetáriosSe o nível de preços permanecer estável, a moeda em si produzirá um retorno unicamente em espécie,na forma usual de comodidade, segurança etc. Seu custo de oportunidade, contudo, é medido em rela-ção às taxas de retorno dos ativos financeiros de renda variável e de renda fixa. Se os preços não foremestáveis, será preciso considerar também a taxa esperada da inflação. O pressuposto básico é que aomanter saldos monetários, o indivíduo perde um rendimento que poderia obter com um outro ativo quegera uma determinada renda. A taxa de retorno nominal sobre os outros ativos (que não sejam ativosmonetários) consiste de duas partes: (a) o rendimento corrente pago, tais como juros sobre títulos, divi-dendos sobre ações etc., ou custo, tais como custos de estocagem sobre ativos físicos; (b) uma mudançano preço nominal do ativo, particularmente sob condições de inflação e deflação.

O custo de oportunidade de se manter moeda no portfólio cresce quando a taxa de retorno (porexemplo, juros de um título) dos ativos não monetários se eleva, já que o montante de rendimentos per-dido cresce. Por isso, quando o retorno dos outros ativos – a taxa esperada de retorno dos títulos de ren-da fixa (ra) ou dos títulos de renda variável (rb) aumenta, a demanda por moeda tende a cair.

Da mesma forma, a taxa de inflação é um fator que também afeta o custo de retenção de vários ati-vos, particularmente a moeda. Variações positivas na taxa de inflação são um fator que afeta a utilidadedos saldos monetários, reforçando o efeito negativo de uma inflação mais alta sobre a quantidade demoeda demandada. Deste modo, se a inflação esperada for positiva, o valor real dos saldos monetáriosretidos diminui. Consequentemente, o custo de oportunidade de se manter moeda aumenta.

Em síntese, a demanda por moeda das unidades detentoras de riqueza, Md, é uma função inversa dastaxas de retorno dos ativos financeiros de renda fixa (ra), e de renda variável (rb) e da taxa esperada deinflação no tempo (1/P dP/dt):

Md = f (ra , rb, 1/P dP/dt) (4)

Outras Variáveis Relacionadas a Gostos e Preferências e Fatoresque Podem Afetar a Utilidade da Moeda

Os gostos e preferências das unidades detentoras de riqueza pelos fluxos de serviço oriundos de dife-rentes formas de riqueza influenciam o comportamento da função demanda por moeda. Por exemplo, érazoável supor que os indivíduos queiram manter uma fração maior de sua riqueza em forma de moeda– aumentando sua demanda por liquidez – quando estão se movimentando geograficamente ou estãosujeitos a uma incerteza incomum (por exemplo, instabilidade política) do que em outras condições.Outra variável importante que afeta a utilidade proporcionada pelo uso da moeda é o grau de estabilida-de econômica que se espera que prevaleça, uma vez que a instabilidade aumenta o valor dado pelos de-tentores de riqueza aos atributos vinculados à liquidez. Esta é a razão por que um aumento notável nossaldos reais frequentemente acompanha o desencadeamento de uma guerra.

Como normalmente (ainda que nem sempre) estes fatores ocasionam um aumento na demanda pormoeda, temos que:

Md = f (u), sendo dMd /du>0 (5)

82 A Demanda por Moeda no Modelo Monetarista: a Nova Teoria Quantitativa da Moeda ELSEVIER

A Função Demanda por MoedaComo em todas as análises de demanda baseadas na maximização de uma função utilidade definida emtermos de magnitudes reais, a equação de demanda por moeda deve ser considerada independente dequalquer sentido essencial das unidades nominais usadas para medir as variáveis monetárias. Assim, sea unidade na qual são expressos os preços e a renda monetária for alterada, o montante de moeda de-mandado deverá ser alterado proporcionalmente. Deste modo, temos uma função demanda por moedacuja equação expressa a demanda por saldos reais como uma função de variáveis reais, independentesdos valores monetários nominais:

M

P� f (w, ra, rb,

1

P

dP

dt, y, u) (6)

em que

M = estoque de moeda (quantia de moeda desejada pelo público);

P = nível de preços;

y = riqueza real total (Y/P), representada pela renda permanente;

w = relação entre riqueza humana e não humana;

ra = taxa esperada de retorno dos títulos de renda fixa (títulos);

rb = taxa esperada de retorno dos títulos de renda variável (ações);

1

P

dP

dt= taxa esperada de variação dos preços dos bens;

u = gostos e preferências e outros fatores que podem afetar a utilidade da moeda.

A função acima é uma equação M = kPy na forma expandida. Em princípio, uma mudança naoferta de moeda altera o equilíbrio preexistente, podendo resultar em mudanças compensatórias emqualquer das outras variáveis. Na prática, contudo, o impacto inicial normalmente ocorre sobre ariqueza total (y) e sobre as taxas esperadas de retorno dos ativos, mas o impacto final se dá predomi-nantemente sobre o nível de preços (P), tal como estabelecido pela teoria quantitativa. Isto ocorreporque, de acordo com Friedman, sob a hipótese de os preços permanecerem estáveis, as expectati-vas de mudanças na taxa de inflação são praticamente nulas, e ainda, tal como os estudos empíricosrevelaram no caso da economia americana, a elasticidade da demanda por moeda em relação à taxade juros é próxima de zero. Assim, a função demanda por moeda depende principalmente do nívelde riqueza total dos agentes (em nível agregado pode-se considerar a renda nacional como um indi-cador aproximado da riqueza total).

Demanda por Moeda das EmpresasExistem algumas diferenças entre a demanda por moeda das unidades básicas detentoras de riqueza (asfamílias) e a das empresas, mas essas diferenças não são de tal magnitude que venham a alterar signifi-cativamente a função demanda por moeda. Em primeiro lugar, as empresas veem a moeda como umelemento que interage com os seus fatores de produção e não apenas como um ativo líquido em sua car-teira, que pode ser transformado em outras formas de ativo (e vice-versa). Em segundo, como proxy dariqueza total das empresas podem ser usados alguns indicadores relacionados à produção, como valoradicionado líquido, valor bruto de produção, volume de vendas etc., ainda que nenhuma se revele umsubstituto perfeito para o conceito de riqueza total. Em terceiro, a divisão da riqueza entre a forma hu-mana e não humana não tem relevância especial para as empresas de negócio, já que elas normalmentecompram os serviços de ambas as formas no mercado. Isto porque a capacidade produtiva dos seres hu-

A Demanda por Moeda no Modelo Monetarista: a Nova Teoria Quantitativa da Moeda 83

manos (riqueza humana) pode ser “comprada” no mercado de trabalho pelos empresários enquanto umfator de produção disponível no mercado. Em quarto, as taxas de retorno da moeda e de ativos alternati-vos são altamente relevantes para elas, pois essas taxas determinam o custo da retenção de saldos mone-tários. Entretanto, as taxas particulares que são relevantes podem diferir daquelas que são relevantespara as famílias. Por exemplo, as taxas cobradas pelos empréstimos bancários são de menor importân-cia para as famílias, mas podem ser de extrema importância para os empresários, uma vez que os em-préstimos bancários podem ser uma forma pela qual eles podem adquirir capital. Por último, quanto àimportância para as empresas de negócio da variável u, um determinado subconjunto de variáveis –como expectativas sobre a estabilidade econômica e a variação do nível de preços – é normalmente co-mum, tanto para as empresas quanto para as famílias.

Em resumo, a função demanda por moeda das empresas é bastante próxima da função das unidadesfamiliares, sendo que as diferenças fundamentais relacionam-se ao conceito de riqueza total e à impor-tância (ou não) da divisão da riqueza total em riqueza humana e não humana, e as taxas de retorno deativos que são importantes para cada uma delas.

6.3. DIFERENÇAS DA TEORIA MONETARISTA

COM RELAÇÃO À TEORIA KEYNESIANA

Algumas diferenças entre os keynesianos (na abordagem neoclássica de Tobin-Baumol) e os novosquantitativistas, no que se refere à demanda por moeda, têm sido destacadas por monetaristas, comoMilton Friedman:

a) Os keynesianos consideram uma mudança na quantidade de moeda como afetando em primeira ins-tância “a” taxa de juros, identificando esta última como uma taxa de mercado sobre uma classe es-treita de obrigações financeiras, e consideram o gasto como afetado somente “indiretamente”, umavez que a nova taxa de juros altera a lucratividade e, assim, o gasto em investimentos reais, que atra-vés do multiplicador afeta, por sua vez, o gasto total. A ênfase é posta na análise das elasticida-des-juros da demanda por moeda e do gasto de investimento. Já os teóricos quantitativistas ressal-tam um impacto “direto” mais amplo do gasto, em que indivíduos procuram dispor de seus saldosmonetários em excesso pagando uma soma maior para compra de títulos, bens e serviços e aindapara o pagamento de suas dívidas.

b) A diferença entre teóricos quantitativistas e keynesianos seria, assim, menos de concepção da natu-reza do processo e mais do espectro de ativos considerados. Os keynesianos tendem a se concentrarem um espectro estreito de ativos negociáveis (moeda e títulos de renda fixa) e taxa de juros, en-quanto os quantitativistas consideram um espectro maior de ativos e de taxa de juros que devem serlevadas em conta, tais como bens duráveis e semiduráveis e outros ativos reais. Talvez, por isso, ofamoso economista keynesiano Franco Modigliani tenha dito em seu discurso presidencial da Ame-rican Economic Association, em 1976, que “não há nenhum desacordo analítico sério entre moneta-ristas e não monetaristas”.

c) Há divergências quanto ao papel da taxa de juros na função demanda por moeda: enquanto keynesi-anos criticam a TQM dizendo que mudanças na oferta de moeda e na velocidade de circulação (de-manda por moeda) não são independentes e que a mudança na oferta de moeda leva a uma alteraçãona quantidade de moeda demandada, como resultado de mudanças na taxa de juros, quantitativistasem geral não enfatizam o papel da taxa de juros e consideram-na como tendo um pequeno papel nafunção demanda por moeda.

84 A Demanda por Moeda no Modelo Monetarista: a Nova Teoria Quantitativa da Moeda ELSEVIER

6.4. DEMANDA POR MOEDA NA HIPERINFLAÇÃO

Philip Cagan, em seu clássico estudo sobre hiperinflações na Europa nos pós-guerras mundiais (Primei-ra e Segunda Guerra Mundial) – The Monetary Dynamics of Hyperinflation –, definiu que uma hiperin-flação “começa no mês em que o aumento dos preços ultrapassa 50% e termina no mês antes que o au-mento dos preços caia abaixo desse valor e que assim permaneça durante pelo menos um ano”. Estefenômeno ocorreu no primeiro pós-Guerra Mundial na Áustria, Alemanha, Hungria, Polônia e Rússia;e no segundo pós-Guerra Mundial na Hungria (país com hiperinflação recorde, com média de inflaçãode 19.800% ao mês, de ago./45 a jul./46!), China, Grécia e Taiwan. As sete experiências analisadas porCagan estão na Tabela 5.1. Depois destas experiências, o mundo ficou 34 anos, de 1949 a 1983, sem terhiperinflação. Contudo, na década de 1980, vários países (entre eles, Bolívia, Argentina, Peru e Brasil)tiveram inflações superiores a 100% num período de 12 meses, ainda que em muitos deles não tenhaocorrido o fenômeno da hiperinflação.

Segundo Cagan, aumentos extremos no nível de preços – típicos dos fenômenos hiperinflacioná-rios – não podem ocorrer sem aumentos correspondentes no estoque de moeda, que são normalmentemenos que proporcionais por causa da diminuição na demanda por saldos monetários reais (ver Tabe-la 6.1). Uma característica comum de todas as hiperinflações é que o aumento de preços é sempre ma-ior que o aumento da oferta monetária e, assim, os encaixes reais caem para níveis muito baixos. Go-vernos, segundo Cagan, recorrem à emissão de moeda rapidamente quando são incapazes de conter aexpansão das despesas orçamentárias e aumentam a tomada de empréstimos junto ao público. Em to-dos os casos verificados de hiperinflação, o crescimento do estoque de moeda é alto porque o déficitorçamentário é elevado. A criação de moeda é uma forma especial de tributação que é arrecadada so-bre os estoques de moeda em poder do público, fenômeno conhecido como senhoriagem, que é ex-presso da seguinte forma:

�M

M

M

P�

��

As emissões excessivas de moeda para financiar o orçamento do governo são agregadas ao gastoglobal na economia e ocasionam um aumento no nível de preços.

TABELA 6.1Sete Experiências Hiperinflacionárias nas Décadas de 1920 e 1940

PaísInício dahiperinflação

Fim dahiperinflação PT/P0

Taxa mensalmédia deinflação (%)

Taxa mensal média deexpansão monetária(%)

Áustria

Alemanha

Grécia

Hungria I

Hungria II

Polônia

Rússia

Outubro 1921

Agosto 1922

Nov. 1943

Março 1923

Agosto 1945

Janeiro 1923

Janeiro 1921

Agosto 1922

Nov. 1923

Nov. 1944

Fev. 1924

Julho 1946

Janeiro 1924

Janeiro 1924

70

1,0 x 1010

4,7 x 106

44

3,8 x 1027

699

1,2 x 105

47

322

365

46

19.800

82

57

31

314

220

33

12.200

72

49

PT/P0: nível de preços no último mês da hiperinflação dividido pelo nível de preços do primeiro mês.Fonte: Cagan, P. “The monetary dynamics of hyperinflation”, Tabela 1; in Friedman, M. (1956).

A depreciação da moeda durante a aceleração inflacionária aumenta enormemente o custo de re-tê-la. Embora as moedas depreciadas não sejam abandonadas completamente, o público empreende es-forços custosos para reduzir seus encaixes de uma moeda em rápida depreciação, inclusive com o uso

A Demanda por Moeda no Modelo Monetarista: a Nova Teoria Quantitativa da Moeda 85

de substitutos mais estáveis, como as moedas estrangeiras. Estes esforços resultam em uma enorme re-dução nos saldos monetários em termos reais e em um grande aumento na velocidade de circulação damoeda. Em outras palavras, à medida que a inflação aumenta, o custo de oportunidade de reter moedaaumenta, levando as pessoas a reduzirem seus saldos monetários reais, já que a demanda por encaixesreais depende do custo alternativo de se reter moeda. No caso da hiperinflação alemã de 1922/23, aquantidade de encaixes reais no auge da hiperinflação caiu a 1/20 do seu nível pré-hiperinflação.

O estudo de Cagan estimou a demanda por saldos monetários reais na hiperinflação como depen-dente inversamente da taxa esperada de inflação, resultado que é plenamente compatível com o modelode demanda por moeda de Friedman. Em condições anormais de aceleração inflacionária, a taxa esperadade inflação se torna o fator fundamental no comportamento da demanda por moeda. Expectativas sobreo futuro podem diferir das condições presentes e determinar a resposta do público à inflação. Cagan tes-tou a hipótese de que expectativas são formadas adaptativamente, onde valores esperados são ajustadosem proporção à sua discrepância dos valores efetivos.1 A implicação teórica é que a inflação esperadapode ser estimada como uma média ponderada exponencialmente das taxas de inflação passadas.

Se mantida por um longo período de tempo, uma taxa elevada de expansão monetária acaba por le-var a um aumento proporcional tanto da inflação corrente quanto da esperada e à diminuição dos saldosmonetários reais. Se o crescimento da oferta de moeda for maior do que a quantidade que maximiza asenhoriagem, o aumento na disponibilidade de moeda provocará a diminuição da senhoriagem. Com otempo, o governo perceberá que a expansão da oferta de moeda rende cada vez menos senhoriagem eque não poderá financiar um déficit orçamentário cada vez maior no longo prazo com uma taxa cons-tante de expansão monetária. Assim, a única forma de lograr êxito será aumentar de maneira contínua ataxa de expansão monetária. Por isso, as hiperinflações quase sempre se caracterizam pelo aumento dastaxas de expansão monetária e da inflação.

O Gráfico 6.1 mostra o comportamento da demanda por encaixes reais (M/P) em relação à taxa deinflação esperada. Pode-se observar no gráfico que quando a inflação aumenta, cresce o custo de opor-tunidade de detenção da moeda, o que leva a uma redução, por parte dos detentores de moeda, do volu-me de encaixes reais que escolhem reter. Esta redução nos encaixes reais é parte importante no processode ajustamento diante de um aumento no crescimento monetário, pois significa que em média os preçosdevem subir mais rápido do que a moeda.

86 A Demanda por Moeda no Modelo Monetarista: a Nova Teoria Quantitativa da Moeda ELSEVIER

E'

E

MP

MP

L( )pe

Encaixes reais

pe

Dp

( )1 ( )0

GRÁFICO 6.1Demanda por Encaixes Reais

1. Para um aprofundamento maior sobre a hipótese de expectativas adaptativas, ver Capítulo 9.

Formalmente, consideremos inicialmente que a demanda por moeda depende da taxa nominal dejuros (i). Uma taxa nominal de juros maior aumenta o custo de oportunidade de deter moeda em vez detítulos de dívida e faz com que as pessoas reduzam seus saldos monetários reais. Assim, temos que:

M

PL i� ( ) (7)

Considerando que a taxa nominal de juros (i) é aproximadamente igual à taxa real (r) mais a taxa deinflação esperada (πe), a função demanda de moeda pode ser representada da seguinte forma:

M

P= L (r + πe) (8)

Portanto, os saldos monetários reais dependem da taxa real de juros (r) e da inflação esperada (πe).Em períodos de inflação muito alta, as variações da taxa nominal de juros i são provocadas principal-mente por variações de πe em vez de variações de r, podendo esta ser considerada constante. Assim, en-quanto a taxa real de juros varia num período de tempo apenas alguns pontos percentuais, a taxa nomi-nal pode variar em centenas ou milhares de pontos percentuais. Consequentemente, como em períodosde hiperinflação o nível de demanda por encaixes reais depende principalmente do nível de inflação es-perada, podemos escrever a equação anterior da seguinte maneira:

M

P= L (r + πe) (9)

A barra sobre r significa que esta variável é considerada constante. Observe que, quando a inflaçãoesperada é alta, as pessoas querem manter os encaixes reais (M/P) em níveis baixos, pois o custo deoportunidade de manter o dinheiro (em vez de investi-lo, por exemplo, em um título que rende juros) émuito elevado. Assim, à medida que a inflação esperada cresce e a posse da moeda torna-se cada vezmais onerosa, as pessoas tendem a reduzir seus saldos monetários reais. Alternativamente, quando ataxa de inflação esperada πe for mantida baixa, os encaixes reais deverão ser mantidos em níveis cons-tantes.

RESUMO

1. Milton Friedman – o mais conhecido entre os teóricos monetaristas – sustenta que a teoria quantitativa da moe-da deve ser vista como uma teoria da demanda por moeda e que esta está relacionada a um conjunto limitadode variáveis econômicas de uma forma previsível e estável, entre as quais a renda permanente é a mais impor-tante. O modelo de demanda por moeda de Friedman, portanto, é um ressurgimento, em bases teóricas maissofisticadas, da tradicional abordagem quantitativa na sua versão de Cambridge (M = k.P.y). Contudo, ao in-vés de considerar “k” como essencialmente fixa, este economista assume “k” como uma função estável de umnúmero menor de variáveis econômicas, o que permite ver a velocidade-renda da moeda como previsível, ain-da que não constante.

2. Sua análise da demanda por moeda por parte das unidades básicas detentoras de riqueza na sociedade é feitade forma análoga à análise da demanda por um serviço de consumo, e, por isso, a moeda é um ativo que pro-duz um fluxo de serviços para o seu possuidor. Daí a importância de considerar a restrição orçamentária doagente detentor de riqueza, os preços e retornos dos ativos e os gostos e preferências dos agentes.

3. A demanda por moeda, de acordo com Friedman, é função da riqueza total – y (representada pela renda per-manente); relação entre riqueza humana e não humana – w; gostos e preferências e outros fatores que podemafetar a utilidade da moeda – u; taxa esperada de retorno dos títulos de renda fixa – ra; taxa esperada de retornodos títulos de renda variável – rb; e taxa esperada de variação dos preços – 1/P dP/dt; sendo a função direta-mente proporcional às três primeiras variáveis e inversamente proporcional às três últimas.

A Demanda por Moeda no Modelo Monetarista: a Nova Teoria Quantitativa da Moeda 87

4. A função demanda por moeda na teoria monetarista é uma equação M = kPy na forma expandida. Em princí-pio, uma mudança em qualquer das variáveis acima que venha a produzir uma mudança na oferta de moedaaltera o equilíbrio preexistente, podendo resultar em mudanças compensatórias em qualquer das outras va-riáveis. Na prática, contudo, o impacto inicial normalmente ocorre sobre a riqueza total (y) e sobre as taxasesperadas de retorno dos ativos, mas o impacto final se dá predominantemente sobre o nível de preços (P),tal como estabelecido pela teoria quantitativa original. Como a elasticidade da demanda por moeda em rela-ção à taxa de juros é baixa, a função demanda por moeda depende principalmente do nível de riqueza totaldos agentes.

5. Segundo o modelo de demanda por moeda na hiperinflação de Cagan, aumentos extremos no nível de preços– típicos dos fenômenos hiperinflacionários – não podem ocorrer sem aumentos correspondentes no estoquede moeda, que são normalmente menos que proporcionais por causa das diminuições na demanda por saldosmonetários reais. Uma característica comum de todas as hiperinflações é que o aumento de preços é sempremaior que o aumento da oferta monetária e, assim, os encaixes reais caem para níveis muito baixos. Governosrecorrem a emissão de moeda rapidamente quando eles são incapazes de conter a expansão das despesas orça-mentárias e aumentam a tomada de empréstimos junto ao público. Em todos os casos verificados de hiperin-flação, o crescimento da moeda é alto porque o déficit orçamentário é elevado.

6. Caso mantida por um longo período de tempo, uma taxa maior de expansão monetária acaba por levar a umaumento proporcional das inflações corrente e esperada e à diminuição dos saldos monetários reais. Se o cres-cimento da moeda for maior do que a quantidade que maximiza a senhoriagem, o aumento no crescimento damoeda provocará a diminuição da senhoriagem. Com o tempo, o governo perceberá que a expansão da moedarende cada vez menos senhoriagem e que não poderá financiar um déficit orçamentário cada vez maior no lon-go prazo com uma taxa constante de expansão monetária. Assim, a única forma de lograr êxito será aumentarde maneira contínua a taxa de expansão monetária. Por isso, as hiperinflações quase sempre se caracterizampelo aumento das taxas de expansão monetária e da inflação.

7. O estudo feito por Cagan estimou a demanda por saldos monetários reais na hiperinflação como dependenteinversamente da taxa esperada de inflação, resultado que é plenamente compatível com o modelo de deman-da por moeda de Friedman. Em condições anormais de aceleração inflacionária, a taxa esperada de inflação setorna o fator fundamental no comportamento da demanda por moeda.

TERMOS-CHAVE

� Demanda por Moeda� Demanda por Encaixes Reais� Teoria Quantitativa da Moeda� Monetarismo

� Renda Permanente� Hiperinflação� Expectativas Adaptativas� Taxa de Inflação Esperada

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Friedman, M. “A teoria quantitativa da moeda – uma reafirmação”. In: Carneiro, R. (org.). Os Clássicos daEconomia, vol.2. São Paulo: Ed. Ática, 1997.

Neste texto clássico de Friedman, o autor desenvolve de forma detalhada sua teoria de demanda por moeda,vista neste capítulo do livro. Leitura obrigatória para quem quer se aprofundar no assunto. O leitor brasileiro temdisponível uma boa tradução do texto, o que é raro em textos acadêmicos de economia no país.

Cagan, P. “The monetary dynamics of hyperinflation”. In: Friedman, M. (ed.). Studies in the Quantity Theoryof Money. Chicago: The University of Chicago Press, 1956.

Texto clássico quando o assunto é hiperinflação. O autor faz uso do instrumental econométrico para estabele-cer relações entre demanda por moeda, saldos monetários reais e senhoriagem, à luz da experiência em sete paísesque tiveram hiperinflação nos pós (1a e 2a)-guerras mundiais. Ademais, utiliza a hipótese de expectativas adapta-tivas para explicar estas relações, coerente com a abordagem monetarista.

Friedman, M. “Quantity theory of money”. In: P. Newman et alli (ed.). The New Palgrave Dictionary of Mo-ney & Finance. London: Macmillan, 1992.

88 A Demanda por Moeda no Modelo Monetarista: a Nova Teoria Quantitativa da Moeda ELSEVIER

A TEORIA DA POLÍTICAMONETÁRIA NO MODELODE KEYNES

INTRODUÇÃO

Segundo John Maynard Keynes, a política monetária é um importante instru-mento capaz de auxiliar na redução do desemprego. Contudo, os economistasseguidores das ideias de Keynes não formam um grupo completamente homo-gêneo. Alguns deles não acreditam que a política monetária seja eficaz parareduzir o desemprego. Entre esses, destacam-se os chamados velhos-keyne-sianos e os keynesianos horizontalistas. Entre os primeiros, merecem ser cita-dos os Prêmios Nobel Paul Samuelson e Lawrence Klein. A teoria e a políticamonetária dessas correntes keynesianas serão apresentadas no capítulo se-guinte.

Há, contudo, keynesianos que, tal como Keynes, consideram que a políti-ca monetária é eficaz para alterar variáveis reais. Entre estes estão, por exem-plo, Hyman Minsky, Paul Davidson, Jan Kregel e Victoria Chick. Esse grupode economistas ficou conhecido como os pós-keynesianos. Este capítulo apre-senta a teoria da política monetária dessa tradição keynesiana e é complemen-tar ao Capítulo 4. Será discutida detalhadamente a concepção sobre o papel damoeda na teoria de Keynes e dos pós-keynesianos. Na primeira seção, apre-senta-se a visão de Keynes e dos pós-keynesianos sobre o papel da moeda e dapolítica monetária na economia. Posteriormente, cada instrumento de políticamonetária e sua forma de operar são também discutidos com detalhes. Con-clui-se que uma expansão monetária que visa à redução do desemprego deveser prioritariamente realizada no open-market. E, na última seção, busca-seresponder à seguinte pergunta: “A política monetária sugerida por Keynes epelos pós-keynesianos será sempre eficaz?” A resposta é que a sua eficáciapara alterar variáveis reais dependerá da forma como os agentes econômicosdecidem alocar a sua riqueza.

CAPÍTULO

7

7.1. A TEORIA DA POLÍTICA MONETÁRIA

DE KEYNES E DOS PÓS-KEYNESIANOS

Os pós-keynesianos, que consideram que a política monetária é capaz de afetar o nível de emprego, seapóiam nos escritos originais de Keynes. Seu ponto de partida é a principal mensagem do conhecido ar-tigo A Monetary Production Economy, onde o economista inglês afirmou que:

“...a moeda joga um papel próprio e afeta motivos e decisões e é, em síntese, um dos fatores operati-vos na situação, de tal forma que o curso dos eventos não pode ser previsto seja no curto seja no lon-go período, sem o conhecimento do comportamento da moeda entre o último e o primeiro estágio. Eé isso que podemos dizer quando falamos de uma economia monetária.”

Como subproduto dessas afirmações, Keynes disse mais: “...não existe uma única posição de equi-líbrio de longo período igualmente válida sem se considerar o tipo de política monetária das autorida-des. Ao contrário, existem inúmeras posições que correspondem a diferentes políticas” (Keynes,CWJMK: 29, p. 55).1 Em suma, Keynes defendeu a ideia que a moeda não é neutra nem no curto nemno longo período e que, consequentemente, a política monetária pode ser eficaz para alterar variáveisreais. Os argumentos apresentados neste capítulo se apóiam nessas ideias de Keynes e nos seus progres-sos teóricos realizados pelos pós-keynesianos. No apêndice do capítulo, as principais ideias econômi-cas de Keynes são apresentadas.

Ao longo da apresentação feita neste capítulo está subjacente a existência de uma economia commercado de títulos públicos bastante organizado e que movimenta volumes consideráveis de recursos.Cabe destacar que Keynes elaborou sua teoria da política monetária baseando-se em economias comessas características institucionais, as economias inglesa e americana. Entretanto, para a visão de Key-nes e dos pós-keynesianos, o que importa é que a estrutura institucional existente e seus instrumentospossibilitem a realização de uma política que induza decisões de portfólio (o que será discutido detalha-damente nas Seções 7.2, 7.3 e 7.4). Em outras palavras, o relevante é a forma de operar da política mo-netária e não a existência de determinada organização institucional.

7.1.2. OS INSTRUMENTOS

As autoridades monetárias têm à sua disposição três instrumentos para atingir seus objetivos: (a) a fixa-ção compulsória de reservas bancárias; (b) a determinação da taxa de juros das operações de redesconto(e empréstimos de liquidez); e (c) as operações de compra e venda de títulos públicos. Os dois primeirosinstrumentos afetam a capacidade dos bancos comerciais de conceder crédito de curto termo para satis-fazer as necessidades de antecipação de receitas das firmas. As receitas são antecipadas para que sejamvalidados os compromissos com fornecedores de insumos e para que seja paga a folha salarial. Comodisse Keynes:

“...se uma firma decide empregar trabalhadores para utilizar o equipamento de capital para produzirmercadorias, deve possuir suficiente comando sobre recursos monetários para pagar os salários dostrabalhadores e comprar aquelas mercadorias que tem que adquirir de outras firmas durante o perío-do que se expira antes que o produto possa ser, convenientemente e economicamente, vendido pormoeda.” (Keynes, CWJMK: 29, p. 64.)

90 A Teoria da Política Monetária no Modelo de Keynes ELSEVIER

1. A notação CWJMK refere-se à coletânea das obras de Keynes intitulada Collected Writings of John Maynard Keynes orga-nizada por Donald Moggridge e publicada em 30 volumes pela editora MacMillan. O número que aparece após a notaçãoCWJMK refere-se ao volume da coletânea.

Em geral, esses recursos monetários são antecipados pelos bancos. Keynes acreditava que mesmoaquelas empresas que praticavam uma política de distribuição reduzida de lucros aos seus proprietáriosnão eram capazes de diminuir a sua dependência em relação ao sistema bancário. Portanto, qualquer ne-cessidade de recursos deveria ser atendida pelos bancos, já que os fundos acumulados por essas empre-sas dificilmente estariam sob a forma dos insumos necessitados ou de moeda, mas, sim, sob a forma deativos financeiros que raramente ofereceriam a possibilidade vantajosa de resgate no exato momentoque surgia a necessidade de recursos.

Logo, por parte das firmas existe a necessidade de antecipação de receitas e por parte dos bancos háo interesse em realizar esse tipo específico de empréstimo. Isto ocorre porque esse tipo de empréstimo ébastante líquido, dado que seus tomadores transformam rapidamente as mercadorias produzidas, gra-ças ao financiamento bancário, em moeda. Nesse sentido, os bancos desempenham uma função útil àprodução em uma economia monetária. Assim, a capacidade de antecipação de receitas dos bancos temuma relação direta com o volume de produto gerado pelas firmas. Através do controle de reservas com-pulsórias e da taxa de juros das operações de redesconto, as autoridades monetárias afetam diretamenteo volume de crédito ofertado pelos bancos e, consequentemente, as decisões empresariais relativas aovolume de produção (também chamadas sinteticamente de decisões de produção).

Para os pós-keynesianos, as operações de compra e venda de títulos públicos realizadas pelo BancoCentral podem afetar as decisões empresariais de investimento. Os potenciais investidores têm semprevariadas opções no momento em que decidem adquirir um ativo. Podem adquirir máquinas, títulos pú-blicos etc. Sendo assim, fazem uma comparação levando em consideração principalmente dois quesitosdos ativos em questão: rentabilidade esperada e liquidez. A liquidez de uma máquina é inferior à liqui-dez de um título público. Então, quando a taxa de juros dos títulos públicos é superior ao rendimento es-perado dos ativos de capital, os detentores de recursos monetários optam pela compra de títulos – e nãorealizam investimentos.

Uma máquina somente é adquirida quando o seu rendimento esperado é superior à taxa de juros, detal forma que a sua iliquidez relativa seja compensada pela sua eficiência marginal do capital (este ter-mo foi utilizado por Keynes no seu livro A Teoria Geral do Emprego do Juro e da Moeda para designara taxa de rendimentos esperados de um ativo de capital). Assim, como afirmou Keynes: “Uma queda nataxa de juros estimula a produção de bens de capital não porque reduz o seu custo de produção, mas por-que cresce o seu preço de demanda” (Keynes, CWJMK: 5, p.189). Em outras palavras, uma queda nataxa de juros tende a estimular a demanda por ativos de capital. Quando uma operação de compra de tí-tulos é realizada pelo Banco Central, as decisões das autoridades monetárias podem estimular as deci-sões de investimento, tal como é descrito a seguir, já que a traxa de juros pode ser reduzida para um pa-tamar bem inferior à eficiência marginal do capital.

O Gráfico 7.1 descreve uma operação de open-market que reduz a taxa de juros. O eixo vertical re-presenta a taxa de juros dos títulos públicos. O eixo horizontal representa a soma de moeda retida para acompra de títulos e a quantidade de títulos retida pelos agentes: da esquerda para a direita indica-se aquantidade de moeda (M), e da direita para a esquerda, a quantidade de títulos absorvida pelo mercado(B). A oferta de títulos, que é administrada pelas autoridades monetárias, é representada pela funçãoMB. A demanda por moeda e títulos dos agentes relacionada à taxa de juros é representada pela função

A Teoria da Política Monetária no Modelo de Keynes 91

M B

PL

i

M1 M2

i’

i”

MB MB’

compra de títulos peloBanco Central

GRÁFICO 7.1Uma Operação de Compra de Títulos Realizada pelo Banco Central

PL, também chamada de função preferência pela liquidez. A interseção dessas duas funções determinaa taxa de juros (i) e a quantidade de títulos e moeda retida no open-market. Uma operação de compra detítulos por parte do Banco Central é demonstrada pelo deslocamento da função MB para a direita (deMB para MB’). Essa compra reduz a taxa de juros (de i’ para i’’) e aumenta a quantidade de moeda (deM1 para M2) no mercado de títulos, consequentemente, torna a aquisição de títulos menos atrativa.

Na visão de Keynes e dos pós-keynesianos, a redução dos percentuais de reservas bancárias com-pulsórias e/ou a redução da taxa de juros das operações de redesconto por parte das autoridades monetá-rias com o objetivo de estimular decisões privadas de investimento poderia não ser bem-sucedida. Essaredução simplesmente poderia aumentar as reservas disponíveis dos bancos, mas não estimularia a to-mada de crédito que financiaria decisões de investimento. Nessas circunstâncias, os agentes privadosnão teriam motivos para alterar a composição dos seus portfólios adquirindo ativos ilíquidos – compa-rativamente, papéis financeiros, máquinas ou apartamentos alugados teriam seus retornos esperadosinalterados. A utilização do instrumento reservas compulsórias associada a uma redução da taxa de ju-ros das operações de redesconto pode aumentar a oferta de fundos para a concessão de empréstimos,mas não estimula necessariamente o aumento de demanda por esses fundos com a intenção de realiza-ção de compras de ativos de capital. Se as autoridades possuem o objetivo de promover o investimento,uma política monetária mais adequada seria aquela que desperta o interesse pela recomposição de port-fólios com o objetivo de torná-los mais ilíquidos (porém, mais rentáveis) e, simultaneamente, provêfundos à economia para que essa estratégia possa ser realizada. Tal política é descrita na próxima seção.

Uma redução das reservas bancárias compulsórias, ceteris paribus, reduz a taxa de juros de curtotermo. Tal diminuição pode estimular o aumento da produção corrente, dado que as firmas fazem partede uma franja de tomadores insatisfeitos de crédito. Keynes cunhou essa expressão no seu livro Trata-do sobre a Moeda para evidenciar o fato de que sempre existirão firmas com demandas de crédito nãoatendidas à taxa de juros corrente se a competição no mercado de crédito é imperfeita. Logo, o aumentoda oferta de crédito bancário e a diminuição da taxa de juros das operações de redesconto podem redu-zir o número de potenciais tomadores insatisfeitos e aumentar a produção corrente. Contudo, tal políti-ca monetária não pode diretamente induzir os empresários a realizar operações de investimento.

O investimento somente ocorreria se já existisse uma demanda reprimida por empréstimos para fi-nanciar a sua realização anterior ao aumento da disponibilidade de crédito bancário. Mas ainda assim,essa política monetária foi considerada por Keynes como limitada, que afirmou: “O processo de estí-mulo do investimento por esta via não pode ir além do ponto no qual não existe mais qualquer franja deinsatisfeitos...” (Keynes, CWJMK: 6, p. 327.)

7.2. A OPERAÇÃO DA POLÍTICA MONETÁRIA

O Banco Central opera suas políticas em uma economia monetária que pode ser sinteticamente definidacomo sendo uma economia de duas esferas de circulação da moeda: a industrial e a financeira. Keynesdescreveu essas esferas também no seu Tratado sobre a Moeda. Estes conceitos foram examinados emalgum detalhe no Capítulo 4. Na primeira esfera, a moeda exerce a sua função de meio de troca, faz gi-rar bens e serviços. O volume de produto e serviços, o nível de preços e a velocidade de circulação damoeda determinam o volume de meios de pagamento que satisfaz as necessidades dos agentes que rea-lizam transações nessa esfera. Na outra esfera, a da circulação financeira, a moeda faz girar ativos fi-nanceiros, isto é, papéis que possuem uma diversidade de graus de liquidez, exigem diferentes custosde manutenção e podem gerar diferenciados ganhos de juros e ganhos de capital. Nessa esfera, a moedatransforma-se em um ativo que possui os mesmos atributos dos ativos que faz girar. Em geral, seu custode manutenção é nulo, gera ganhos de juros e capital nulos, mas possui liquidez plena – tal como descri-to no Capítulo 1. Quando a moeda se transforma em um ativo, passa a concorrer com os demais ativospela demanda dos agentes.

As duas esferas descritas não são ilhas isoladas de uma economia monetária, conforme é apresenta-do na Figura 7.1. Existe uma ponte que liga essas duas ilhas. Nessa ponte, somente a moeda vai e volta.

92 A Teoria da Política Monetária no Modelo de Keynes ELSEVIER

O mesmo objeto, a moeda, quando vai à ilha da circulação industrial assume um papel de meio de troca;quando volta à ilha da circulação financeira, transforma-se num ativo – como qualquer outro produtocirculante nesse locus. A arte da política monetária sugerida por Keynes e pelos pós-keynesianos, quevisa ao aumento do produto ou, equivalentemente, à redução do desemprego, é conseguir transformarmoeda-ativo em moeda meio de troca. Em outras palavras, a arte é induzir a viagem de moeda da circu-lação financeira para a circulação industrial. Então, recomenda-se aumentar o estoque monetário da cir-culação financeira por meio de operações de mercado aberto para reduzir a taxa de juros dos ativos lí-quidos com o objetivo de estimular estratégias privadas de recomposição de portfólios. Em outras pala-vras, deve-se estimular a composição de portfólios que contenham itens comercializados na circulaçãoindustrial, que não são líquidos, mas que podem render lucros compensadores em relação aos juros ofe-recidos pelos ativos líquidos da circulação financeira.

Nesse sentido, a política monetária que objetiva o crescimento econômico visa, por um lado, à tro-ca de liquidez por iliquidez e, por outro, à troca de rendimentos de juros por lucros recompensadores,isto é, busca desestimular a posse de ativos financeiros e estimular a aquisição e uso de máquinas, porexemplo. Assim, esse tipo de política monetária, diferentemente de uma política fiscal de gastos, nãoage diretamente sobre o produto na circulação industrial. Simplesmente induz o vazamento de moedaem direção a essa circulação. Logo, a política monetária pós-keynesiana que visa ao aumento do inves-timento tem imediatamente à sua frente não o seu objetivo final, o produto, mas sim agentes que devemagir de acordo com as possibilidades sinalizadas pelo Banco Central.

7.3. A POLÍTICA MONETÁRIA PÓS-KEYNESIANA

SERÁ SEMPRE EFICAZ?

A política monetária, diferentemente da política fiscal de gastos, não age diretamente sobre o produtona circulação industrial. Simplesmente induz o vazamento de moeda em direção a essa circulação. Sen-do assim, a política monetária pós-keynesiana que visa ao aumento do investimento tem a sua frentenão o seu objetivo final, o produto, mas sim os agentes econômicos que devem agir de acordo com ossinais emitidos pelo Banco Central. Contudo, as decisões de recomposição de portfólio são tomadascom base em cálculos subjetivos, que envolvem variáveis esperadas, ou seja, expectativas de cenáriosfuturos. Portanto, a eficácia da política monetária não depende exclusivamente da utilização dos seusinstrumentos, mas é função, fundamentalmente, das avaliações sobre contextos futuros feitas pelosagentes econômicos. Foi por isso que Keynes disse na sua Teoria Geral que “...se, entretanto, nós esta-mos tentados a afirmar que a moeda é a bebida que estimula o sistema para a atividade, devemos lem-brar que podem existir alguns contratempos entre a taça e os lábios”.

Além das firmas e dos indivíduos, entre os agentes que tomam decisões a partir de uma política deoperações de mercado aberto, estão os bancos. Em geral, os bancos são os principais negociantes de pa-péis. Logo, uma compra de títulos por parte do Banco Central faz aumentar suas reservas. Essas reser-vas podem ser complementarmente aumentadas com uma redução da taxa do recolhimento compulsó-

A Teoria da Política Monetária no Modelo de Keynes 93

MOEDA

CIRCULAÇÃOINDUSTRIAL

CIRCULAÇÃOFINANCEIRA

A moeda faz girar bense serviços.

A moeda é meio de troca.

A moeda faz girar ativosfinanceiros.

A moeda torna-se um ativo.

FIGURA 7.1O Esquema de uma Economia Monetária

rio por parte das autoridades monetárias. Com reservas aumentadas, os bancos tomam decisões seme-lhantes a qualquer agente privado: (1) podem exercer a sua demanda por liquidez de forma plena, reten-do todo o acréscimo de moeda ou (2) compram papéis financeiros.

Além das opções 1 e 2 do parágrafo anterior, o público não bancário possui, ainda, uma terceira al-ternativa: (3) comprar ativos reais que geram rendimentos, isto é, ativos de capital. Se os agentes econô-micos, em geral, e os bancos, em particular, seguem a primeira opção, a política monetária teria efeitonulo sobre o produto. Em verdade, sob tais condições, recursos não vazariam da circulação financeirapara a circulação industrial. A despeito das ações do Banco Central, a recomposição de portfólios se da-ria pela troca de rendimentos de juros por rendimentos nulos compensados pela troca de ativos líquidospor ativos plenamente líquidos.

Se a segunda opção, de forma generalizada, fosse escolhida pelos bancos, pelas firmas e pelosindivíduos, a política monetária poderia produzir desde efeitos nulos até efeitos plenos sobre o pro-duto. Caso o aumento de reservas dos agentes econômicos fosse utilizado para a compra de papéisfinanceiros em mercados secundários, o efeito da política monetária seria nulo. Haveriatão-somente uma pressão altista sobre os preços dos itens financeiros já existentes. Isto poderia terocorrido porque, segundo avaliação geral, os ganhos de juros e a apreciação e o prêmio de liquidezdos ativos financeiros já existentes superariam os ganhos futuros de lucros dos ativos de capital.Então, como disse Keynes “... as expectativas referentes ao futuro afetam a situação hoje”. Dessaforma, os recursos injetados pelas autoridades monetárias não vazariam da circulação financeirapara a circulação industrial – somente produziriam uma recomposição de portfólio entre ativos lí-quidos. Cabe observar, entretanto, que se existissem firmas desejosas de investir, estas provavel-mente lançariam papéis novos no mercado primário com preços e remunerações para concorrercom os ativos financeiros já existentes. Logo, se os agentes optassem pela segunda via dificilmenteos resultados seriam completamente nulos.

Se, entretanto, a compra de papéis é feita integralmente em mercados primários de ativos delongo termo emitidos por empresas não financeiras, isto é, no balcão de firmas desejosas de inves-tir, a política monetária cumpriria integralmente o seu objetivo de reduzir o desemprego. As em-presas emitiriam papéis para financiar projetos de investimentos porque considerariam que o retor-no total esperado dos ativos financeiros já existentes não seria compensador quando comparadocom o retorno total esperado dos ativos de capital. Haveria, portanto, a transformação de moe-da-ativo em moeda meio de troca.

Contudo, se a compra de papéis fosse feita no balcão de empresas financeiras, o efeito da políticamonetária dependeria de como essas instituições utilizariam as reservas disponíveis. Tais instituiçõespoderiam reter os recursos monetários ou poderiam comprar ativos financeiros em mercados secun-dários ou primários de outras empresas financeiras ou de empresas não financeiras. Logo, quando a se-gunda opção é predominantemente escolhida pelos agentes, os efeitos reais (mais intensos ou menos in-tensos) da política monetária expansionista são função basicamente da intensidade das compras de ati-vos-papéis realizadas nos mercados primários de empresas não financeiras.

Se a terceira via fosse escolhida pelo público não bancário e os bancos comprassem nos mercadosprimários ativos financeiros das firmas desejosas de investir, a política monetária teria efeito pleno so-bre o produto e o emprego. O público não bancário recomporia seu portfólio preterindo papéis e prefe-rindo ativos de capital e os bancos emprestariam recursos às firmas investidoras. Portanto, os recursosinjetados pelas autoridades monetárias vazariam integralmente da circulação financeira para a circula-ção industrial.

Assim, a descrição das três vias demonstrou que a eficácia da política monetária que visa à reduçãodo desemprego dependerá, por um lado, das ações das autoridades monetárias e, por outro, das reaçõesdos bancos, firmas e indivíduos. Mais precisamente: dependerá em última instância da forma pela qualesses segmentos desejam compor os seus portfólios. A Figura 7.2 resume as três vias apresentadas, asdecisões de portfólio correspondentes e os efeitos da política monetária sobre o produto.

94 A Teoria da Política Monetária no Modelo de Keynes ELSEVIER

Opções

Três Vias

ComportamentoDecisões de Portfólio

Efeitosobre o Produto

1a retenção de moeda nulo

aquisição de ativos financeiros em mercados secundários nulo

2a aquisição de ativos financeiros em mercados primáriosde firmas não financeiras pleno

aquisição de ativos financeirosde firmas financeiras em mercados primários incerto

3aaquisição de ativos ilíquidos pleno

FIGURA 7.2Os Efeitos da Política Monetária e as Decisões de Portfólio

RESUMO

1. Keynes e os pós-keynesianos acreditam que a moeda afeta motivos e decisões e é, em síntese, um dos fatoresmais fundamentais em uma economia, de tal forma que não existe uma única posição de equilíbrio de longoperíodo igualmente válida sem se considerar a política monetária corrente. Ao contrário, existem inúmerasposições que correspondem a diferentes políticas monetárias. Em suma, Keynes e os pós-keynesianos defen-dem a ideia de que a moeda não é neutra nem no curto nem no longo período e que, consequentemente, a polí-tica monetária pode ser eficaz para alterar variáveis reais.

2. As autoridades monetárias têm à sua disposição três instrumentos para fazer uso com o intuito de atingirseus objetivos: (a) a fixação compulsória de reservas bancárias; (b) a determinação da taxa de juros das ope-rações de redesconto (e empréstimos de liquidez); e (c) as operações de compra e venda de títulos públicos.Os dois primeiros instrumentos afetam a capacidade dos bancos comerciais de conceder crédito de curtotermo para satisfazer as necessidades de antecipação de receitas das firmas, isto é, afetam as decisões deprodução. Com as operações de open-market, as autoridades monetárias podem afetar as decisões de inves-timento da economia.

3. O Banco Central opera suas políticas em uma economia monetária que pode ser sinteticamente definidacomo sendo uma economia de duas esferas de circulação da moeda: a industrial e a financeira. Na primeiraesfera, a moeda exerce a sua função de meio de troca, faz girar bens e serviços. Na outra, a moeda faz girarativos financeiros. Nessa esfera, a moeda transforma-se em um ativo que possui os mesmos atributos dosativos que faz girar.

4. A arte da política monetária sugerida por Keynes e pelos pós-keynesianos, que visa ao aumento do produto, étransformar moeda-ativo em moeda meio de troca. A arte é induzir a viagem de moeda da circulação financei-ra para a circulação industrial. Então, recomenda-se aumentar o estoque monetário da circulação financeirapor meio de operações de mercado aberto para reduzir a taxa de juros dos ativos líquidos com o objetivo de es-timular estratégias privadas de recomposição de portfólios mais ilíquidos e, ao mesmo tempo, que rendam lu-cros compensadores.

5. A política monetária não afeta diretamente o produto na circulação industrial. Simplesmente induz o vaza-mento de moeda da circulação financeira em direção à circulação industrial. Sendo assim, a política mone-tária pós-keynesiana que visa ao aumento do investimento se depara com os agentes econômicos quedevem agir de acordo com os sinais emitidos pelo Banco Central. Entretanto, as decisões de recomposiçãode portfólio são tomadas com base em expectativas de cenários futuros. Portanto, a eficácia da política mo-netária não depende exclusivamente da utilização dos seus instrumentos, mas é função, fundamentalmente,das avaliações sobre contextos futuros feitas pelos agentes econômicos e, consequentemente, das decisõesde portfólio daí resultantes.

A Teoria da Política Monetária no Modelo de Keynes 95

TERMOS-CHAVE

� Decisões de Portfólio � Instrumentos Monetários � Decisões de Produção� Decisões de Investimento � Circulação Financeira � Circulação Industrial� Preferência pela Liquidez � Mercado Primário � Mercado Secundário

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Cardim de Carvalho, F. (1999). Políticas Econômicas para Economias Monetárias. In: Lima, G., Sicsú, J. e DePaula, L.F. Macroeconomia Moderna: Keynes e a Economia Contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Campus.

Neste capítulo do livro Macroeconomia Moderna, o autor se contrapõe à onda conservadora que emergiu,principalmente, a partir do início dos anos 70. Esta onda tem como objetivo a crítica ao intervencionismo macroe-conômico. Finalmente, descreve as políticas econômicas que podem ser associadas às ideias de Keynes e é mos-trado que o economista inglês não era favorável à aplicação de qualquer política isoladamente, ou seja, todaintervenção tópica deveria fazer parte de um plano global em que as políticas deveriam agir de forma coordenada.

Keynes, J.M. (1987). The General Theory of Employment. In: The General Theory and After: Defence andDevelopment. Londres: Macmillan.

Nesse artigo, publicado em 1937, Keynes tentou responder aos críticos do seu livro A Teoria Geral do Empre-go, do Juro e da Moeda, lançado no ano anterior. Embora seja um texto cuja leitura não é fácil, torna mais claro al-guns pontos do seu livro. Especialmente, Keynes esclarece que as expectativas e as decisões sobre a forma como ariqueza monetária é alocada podem, de fato, afetar as variáveis reais da economia.

Feijó, C. (1999). Decisões Empresariais em uma Economia Monetária de Produção. In: Lima, G., Sicsú, J. e DePaula, L.F. Macroeconomia Moderna: Keynes e a Economia Contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Campus/Elsevier.

96 A Teoria da Política Monetária no Modelo de Keynes ELSEVIER

APÊNDICE

O PRINCÍPIO DA DEMANDA EFETIVA DE JOHNMAYNARD KEYNES

Keynes rejeitou a teoria do emprego da velha economia clássica. Rejeitou a utilização da tesouramarshalliana aplicada ao mercado de trabalho como instrumento útil à determinação do nível de empre-go. As curvas de oferta e demanda por mão-de-obra da tesoura marshalliana são sustentadas, segundoKeynes, por dois postulados da velha economia clássica. A curva de demanda por trabalho é derivadado primeiro postulado clássico (“o salário [real] é igual ao produto marginal do trabalho”) associado àhipótese de retornos marginais decrescentes. Assim, obtém-se uma curva de demanda por trabalho (Nd)negativamente inclinada no plano salário real (W/P) � nível de emprego (N) – tal como é mostrado noGráfico 7.2. Keynes aceitou esse primeiro postulado.

Keynes recusou o segundo postulado clássico: “A utilidade do salário [real] quando um dado volumede trabalho está empregado é igual à desutilidade marginal do montante de emprego.” Os motivos que olevaram a essa negação foram: (i) trabalhadores não podem determinar o salário real, mas simplesmentetêm influência sobre a determinação do salário nominal, já que os preços dos bens-salário (wage-goods)são determinados exclusivamente pelos empresários e (ii) trabalhadores não abandonam seus empregosquando há uma queda nos salários reais – ainda que fossem capazes de determinar o salário nominal emfunção de um nível esperado de preços durante o processo de barganha. A rejeição ao segundo postuladoconduziu Keynes a negar a existência da curva clássica de oferta de trabalho positivamente inclinada noplano do Gráfico 7.2. O fato é que Keynes não rejeitou a existência de qualquer função oferta, mas sim-plesmente negou a função clássica, dado que o comportamento dos trabalhadores não satisfaz essa curva.

Keynes supôs implicitamente que os trabalhadores preferirão trabalhar a não trabalhar, e que eles irãose ater a um contrato (que especifica salário nominal e jornada de trabalho) para uma ampla gama de salá-rios reais; isto é, trabalhadores irão manter seus empregos nos termos fixados nos contratos mesmo diantede uma queda do salário real. Essas suposições podem ser descritas por uma função oferta de trabalho re-presentada por uma área – ao invés de uma curva – tal como é mostrado no Gráfico 7.2. Para salários abai-xo de (w/p)1, os trabalhadores poderão se recusar a trabalhar – eles poderiam, por exemplo, entrar em gre-ve – dado que um salário inferior a (w/p)1 não seria nem suficiente para atender aos requisitos mínimos desobrevivência. A disponibilidade de mão-de-obra, independentemente do salário real, possui um limite fí-

A Teoria da Política Monetária no Modelo de Keynes 97

N

W/P

N*

(w/p)1

Nd

Ns

GRÁFICO 7.2O Mercado de Trabalho na Teoria de Keynes

sico. No Gráfico 7.2, tal limite é representado por N*. O Gráfico 7.2 mostra que existe um conjunto infini-to de pontos potenciais de equilíbrio que corresponde à curva Nd para N < N*. O nível de equilíbrio domercado de trabalho é, portanto, indeterminado. Uma equação adicional seria necessária para a determi-nação da incógnita N. Essa equação é fornecida pelo princípio da demanda efetiva.

Esse princípio pode ser resumido nas seguintes proposições: (i) a renda depende do nível de empre-go da economia e (ii) a quantidade de mão-de-obra que os empresários decidem empregar é função deduas quantidades, a saber: o valor monetário esperado que será gasto em consumo e o valor esperadoque será gasto na forma de novos investimentos. Portanto, dado um nível de renda e as condições daoferta de bens, o nível de emprego dependerá dos gastos esperados.

O Gráfico 7.3 é útil à continuação da explicação do princípio da demanda efetiva como determinantedo nível de emprego e produto da economia. Tal princípio é a negação da necessidade da hipótese da exis-tência de falhas de mercado (tal como a rigidez de preços e salários) para explicar o nível da renda e doemprego. Seja Z (do Gráfico 7.3) o valor monetário necessário e compensador das vendas para os diferen-tes níveis de mão-de-obra (N), dadas as condições técnicas da produção e o custo do trabalho. Então:

Z = Φ(N), dZ / dN > 0 (1)

Seja D (do Gráfico 7.3) o valor monetário esperado das vendas derivado dos gastos de consumo(D1) e dos gastos na forma de novos investimentos (D2). Assim, em função dos gastos esperados, os em-presários decidem qual o nível adequado de mão-de-obra a empregar. Então:

D1 + D2 = D = f (N), dD / dN > 0 (2)

O ponto A do Gráfico 7.3 em que as curvas de oferta e demanda agregada se interceptam foi chama-do por Keynes de ponto de demanda efetiva. Nesse ponto, dadas as condições de oferta e a demanda es-perada, obtém-se o nível de emprego da economia e, consequentemente, o produto (Y) que estamão-de-obra pode gerar.2 Portanto, o ponto A (de demanda efetiva) pode ser formalmente definidocomo: A: Z = D => N, Y.

98 A Teoria da Política Monetária no Modelo de Keynes ELSEVIER

Z = Nf

D = f (N)

N

Receitas necessárias ($) (Z)Receitas esperadas ($) (D)

Nf

A

GRÁFICO 7.3O Princípio da Demanda Efetiva

2. Pode-se perceber que a solução desse sistema depende das inclinações relativas das duas curvas: a inclinação da curva de deman-da deve ser menor que a da curva de oferta. Caso contrário, o princípio da demanda efetiva descreveria uma dinâmica da economiaque careceria de realismo. Quando houvesse a expectativa de uma oferta superior à demanda – a região à esquerda do ponto A – ha-veria um incentivo para se reduzir a produção e, quanto maior fosse essa redução, maior seria o incentivo para a economia aumentartal redução, até que a produção fosse nula. À direita de A, haveria o incentivo a aumentar a produção e, quanto maior fosse esse au-mento, maior seria a demanda em relação à produção ofertada: quanto maior fosse a oferta, muito maior seria a demanda (uma su-perlei de Say). Se as curvas tivessem, ambas, a mesma inclinação e fossem superpostas, a economia representada funcionaria deacordo com a lei de Say. E curvas paralelas não-coincidentes seriam representativas de um sistema sem solução.

Cabe, neste momento, dizer que para Keynes são as expectativas empresariais sobre a demanda fu-tura que determinam emprego e produto correntes. Uma questão deve ainda ser examinada no princípioda demanda efetiva, a saber, os fatores responsáveis pela determinação de D, os gastos esperados. Ini-ciar-se-á pelos gastos esperados com investimentos, D2. Tais gastos dependem de duas variáveis: a efi-ciência marginal do capital (emc) e a taxa de juros (i) – como indicado na equação 3,

D2 = (emc,i), ∂D2 / ∂emc > 0, ∂D2 / ∂i < 0 (3)

A eficiência marginal do capital é a taxa de rendimentos esperados do ativo de capital; portanto,quanto maior for emc, maior será D2. A taxa de juros é a taxa de rendimentos esperados dos ativos líqui-dos, logo, poderá produzir uma rejeição dos ativos de capital vis-à-vis os ativos líquidos. As duas variá-veis, que determinam o volume de gastos de investimento, são função, por sua vez, de outras variáveis.A eficiência marginal do capital depende do preço (de oferta) dos ativos de capital (Ps) e das rendas mo-netárias esperadas (Qe) provenientes das vendas futuras das mercadorias que serão produzidas a partirdo investimento realizado – tal como indicado na equação 4,

emc = (Ps,Qe), ∂emc / ∂Ps < 0, ∂emc / ∂Qe > 0 (4)

As rendas monetárias (Qe) dependem, por seu turno, dos preços esperados das mercadorias que osempresários investidores desejam vender no futuro (Pe) – como mostrado na equação 5,

Qe = (Pe), dQe / dPe > 0 (5)

A taxa de juros, a outra variável que influencia o volume de gastos com investimento, é determina-da pela quantidade de moeda (Mi) que está fora da circulação ativa (isto é, a circulação de bens e servi-ços) e pela preferência pela liquidez (PL). Então,

i = (Mi, PL), ∂i / ∂Mi <0, ∂i / ∂PL > 0 (6)

Como visto no Capítulo 3, quanto mais moeda inativa existir, dada uma preferência por reter moe-da, menor será a taxa de juros. A taxa de juros é o prêmio cobrado pelos agentes para abrir mão da liqui-dez que possuem. Portanto, quanto menos escassos são os recursos monetários inativos, menor é a taxade juros.

Dada uma velocidade de circulação da moeda razoavelmente estável, a quantidade de moeda que éutilizada na circulação de bens e serviços depende do nível nominal dos preços (P) e salários (W).Quanto menor for esse nível, dado um estoque de moeda, mais recursos se tornam ociosos e vazam dacirculação ativa para a retenção inativa e, quanto maior a quantidade de moeda inativa, menor será ataxa de juros, dada uma preferência por liquidez, tal como é mostrado na equação 7, que é:

Mi = (W, P), ∂Mi/∂W < 0, ∂Mi/∂P < 0 (7)

Preferência pela liquidez é sinônimo de propensão por reter ativos líquidos, especialmente a moe-da. Keynes argumentou que o futuro econômico é incerto, no sentido que não pode ser conhecido comantecedência nem ser estatisticamente prognosticado através de tábuas de probabilidades. Quando asexpectativas são pessimistas, os agentes demandam segurança no presente para enfrentar o futuro in-certo. Keynes mostrou que a moeda é o ativo mais seguro, aquele capaz de acalmar nossas inquietudesem relação ao futuro desconhecido e imprevisível. A preferência pela liquidez, decorrente das vagasconjecturas dos agentes sobre o desconhecido, pode ser estimulada por um número infinito de ar-

A Teoria da Política Monetária no Modelo de Keynes 99

gumentos: fatores políticos, fatores climáticos, fatores estritamente econômicos, dentre outros.Optou-se por representar esse conjunto infinito de argumentos geradores de incerteza pela notação ( . )da equação 8,

PL = ( . ), dPL / d( . ) > 0 (8)

que, dessa forma, deve ser lida: quanto mais incerto é considerado o futuro, maior é a preferência pelaliquidez no presente.

No que se refere a gastos com ativos de capital, a variação do volume de demanda esperada, isto é,um deslocamento do ponto de demanda efetiva, depende, como visto anteriormente, de duas variáveis,a eficiência marginal do capital e a taxa de juros. Contudo, tal variação depende também da variaçãodos gastos de consumo. Esse, por sua vez, é função da renda (Y) e da propensão a consumir da comuni-dade (c), como apresentado na equação 9,

D1 = λ(Y,c) ∂D1 / Y > 0 , ∂D1 / ∂c > 0 (9)

Merece destaque, portanto, a propensão a consumir da comunidade que pode ser decomposta napropensão a consumir dos trabalhadores (ct) e na propensão a consumir dos demais agentes (cd), empre-sários e rentistas. Então, a propensão a consumir da comunidade é uma média das propensões de cadasegmento ponderadas por suas participações na renda. Portanto, pode-se escrever a equação 10. Essaequação mostra que variações distributivas de renda podem influenciar a determinação do ponto de de-manda efetiva porque podem alterar a propensão a consumir da comunidade:

c = act + bcd a + b = 1 (10)

Em resumo, o nível de emprego e de renda, segundo o princípio da demanda efetiva, depende dosgastos esperados. Contudo, somente se pode esperar um nível de demanda efetiva mais elevado quan-do, dado um nível inicial de renda, ceteris paribus, houver um crescimento da eficiência marginal docapital ou uma queda da taxa de juros ou uma elevação da propensão marginal a consumir da comunida-de – tal como descrito na equação 11:

Z = D = (emc, i, c) ∂D / ∂emc > 0, ∂D / ∂i < 0, ∂D / ∂c > (11)

100 A Teoria da Política Monetária no Modelo de Keynes ELSEVIER

A TEORIA DA POLÍTICAMONETÁRIA NO MODELOKEYNESIANO

INTRODUÇÃO

Foi visto no capítulo anterior que, segundo John Maynard Keynes, a política mo-netária é um importante instrumento capaz de auxiliar na redução do desemprego.Contudo, como já foi dito, os seguidores das teorias de Keynes não formam umgrupo completamente homogêneo. A corrente denominada velho-keynesiana (ousíntese neoclássica) não acredita que a política monetária seja potente para alterarvariáveis reais da economia. São expoentes dessa corrente, entre outros, os Prê-mios Nobel, Paul Samuelson e Lawrence Klein. A teoria da política monetáriadessa corrente keynesianaa é apresentada neste capítulo.

Inicialmente, a visão dos velhos-keynesianos sobre a (im)potência da po-lítica monetária para alterar variáveis reais é apresentada conjuntamente como modelo IS-LM. Esse modelo é apresentado passo a passo com o objetivo dedescrever a ideia velho-keynesiana de que reduções da taxa de juros podemnão influenciar de forma considerável o aumento do investimento e, em con-sequência, a redução do desemprego. Por último, mostra-se que os velhos-keynesianos optam por utilizar a política fiscal como instrumento estabiliza-dor da economia.

É importante esclarecer que a apresentação do modelo IS-LM, apesar de serfeita com muitos detalhes, não objetiva discutir todas as questões referentes aesse instrumental. Por exemplo, o multiplicador dos gastos públicos não é trata-do, entre outros tópicos importantes. Tais elementos são essenciais, mas devemser tratados com maior atenção nos cursos e livros-texto de macroeconomia. Odesenvolvimento do modelo IS-LM no capítulo objetiva tão-somente apresen-tar a teoria da política monetária da corrente velho-keynesiana.

8.1. A TEORIA DA POLÍTICA MONETÁRIA

DOS VELHOS-KEYNESIANOS

O receituário de política monetária de Keynes é radicalmente diferente do rece-ituário sugerido pelos velhos-keynesianos, que formam a corrente que se tornou

CAPÍTULO

8

conhecida como síntese neoclássica. Embora reconheçam que teoricamente existem mecanismos capa-zes de explicar a influência de variações no volume de moeda sobre o produto, consideram que a políticamonetária possui uma potência reduzida, pelo menos quando comparada com a política fiscal. O receituá-rio proposto pelo velho-keynesianismo advém da constatação empírica de que a função demanda por bensde capital exibe uma baixa elasticidade-juros. O Gráfico 8.1 representa esta relação, onde o eixo horizon-tal mostra o volume de investimentos (I) e o eixo vertical denota a taxa de juros (i). A função investimentoB tem a forma semelhante à função que foi estatisticamente constatada pelos velhos-keynesianos. Portan-to, uma grande redução da taxa de juros provocaria tão-somente uma reduzida ampliação do investimen-to. A função A foi aceita apenas teoricamente. A esse respeito, as palavras de Lawrence Klein, em seulivro La Revolucion Keynesiana, publicado na Espanha em 1952, são ilustrativas:

“Keynes foi muito favorável à manipulação da taxa de juros com a finalidade de estimular o desejode investir. Tais medidas estão baseadas na suposição e na crença de que o investimento é sensívelàs mudanças na taxa de juros; porém,... todos os sinais indicam ... que a curva estática do investi-mento é inelástica aos juros hoje em dia. Observamos uma grande queda da taxa de juros de longotermo de 1932 a 1941 e, não obstante, não observamos um alto nível de investimento.”

Dessa forma, o velho-keynesianismo relegou a moeda e a política monetária a um papel secundárioem relação à política fiscal de gastos governamentais. Para essa corrente keynesiana, uma política mo-netária expansionista que reduza a taxa de juros drasticamente teria um impacto desprezível sobre asdecisões empresariais de investimento e, portanto, um reduzido efeito sobre o nível de emprego e renda.Como uma política de gastos públicos, por exemplo, causa impacto diretamente sobre essas variáveis, apolítica fiscal é sempre preferida à política monetária que requer um grande esforço (de redução da taxade juros) para obter resultados desprezíveis sobre o produto. Daí advém o caráter fiscalista do keynesia-nismo americano de L. Klein, W. Heller, G. Ackley, O. Eckstein, P. Samuelson, entre outros. Uma ex-ceção que merece destaque entre os velhos-keynesianos é o Prêmio Nobel James Tobin, que sempre de-fendeu que a política monetária é potente para alterar variáveis reais. Suas ideias são resumidamenteapresentadas no Box 8.1.

102 A Teoria da Política Monetária no Modelo Keynesiano ELSEVIER

I

iFunção Investimento B

Função Investimento A

GRÁFICO 8.1A Função Investimento Keynesiana

A Teoria da Política Monetária no Modelo Keynesiano 103

É através do coeficiente que ficou conhecido como q de Tobin que se pode explicar comoa política monetária pode afetar as variáveis reais da economia. O q de Tobin é definidocomo o valor de mercado das ações de uma firma, dividido pelo custo contábil do seucapital, tal como a seguir:

qV

C

F

R�em que

VF = valor de mercado de uma firma eCR = custo do seu capital.

Esta razão permite mensurar o hiato entre o valor real da empresa (avaliada pelomercado de ações) e o preço dos bens de capital possuídos pela firma (segundo omercado de bens de capital), constituindo-se um bom mecanismo para avaliar o re-torno de um novo investimento. Quando q é maior que 1 (preço de mercado da firmaé maior que o custo do seu capital), isto significa que adquirir novos bens de capital érecompensador se comparado com o valor de mercado da firma.

O q de Tobin possui uma lógica bastante convincente. O significado de um q superi-or à unidade é que o mercado reconhece que, nas mãos de uma firma determinada,aquele conjunto de equipamentos é capaz de gerar um excedente sobre seu própriovalor. Este excedente, VF, é o valor capitalizado dos lucros esperados no horizonte re-levante. Um valor superior a 1 para q agregado significa que a avaliação feita pelosinvestidores de que o conjunto de firmas desta economia é esperado ser capaz degerar excedentes. As empresas são estimuladas a investir, neste caso, não apenasporque têm expectativas de lucro, mas também porque a colocação de papéis juntoao público, para financiar estes investimentos, se torna mais barata.

A conexão entre a política monetária e o preço das ações pode ser compreendidacom o auxílio do esquema a seguir. Com um aumento na oferta de moeda, os agen-tes possuem mais recursos, o que leva a um aumento do dispêndio. Uma das possibi-lidades para a alocação dos recursos adicionais é o mercado de ações. Segundo a leida oferta e procura, uma maior demanda por ações culmina com o aumento dos pre-ços das ações. Sendo assim, há um aumento no q, o que por sua vez leva a um maiorinvestimento e consequente expansão no produto. E, em decorrência, as firmas comuma emissão pequena de ações podem obter recursos suficientes para adquirir umagrande quantidade de novos bens de investimento.

Elaborado com a colaboração de Helder Ferreira de Mendonça

JAMES TOBIN E A EFICÁCIA DA POLÍTICA MONETÁRIA

Elevação dode Tobinq

Expansãomonetária

Aumento dospreços das ações

Aumento doinvestimento

Crescimentodo produto

BO

X8

.1

8.2. O RECEITUÁRIO VELHO-KEYNESIANO E O MODELO IS-LM

John Hicks, em seu artigo “Mr. Keynes and the Classics: A Suggested Interpretation”, publicado na re-vista Econometrica em 1937, elaborou o modelo que ficou conhecido como IS-LM. Alvin Hansen, nasdécadas de 1940 e 1950, desenvolveu essas ideias. Os velhos-keynesianos consideram que esse mode-lo, posteriormente batizado de Hicks-Hansen, é o instrumental básico, que, embora simples, descreveos fenômenos essenciais da macroeconomia. Inicialmente, será descrita a curva IS. Posteriormente,será construída a curva LM e discutido o receituário de política econômica do velho-keynesianismo,tendo como base as duas curvas.

8.2.1. A CURVA IS

A curva IS é o conjunto de pontos de equilíbrio no mercado de bens (demanda igual ao produto oferta-do) representado no plano renda (Y) e taxa de juros (i). A curva IS é o conjunto de pares (Y, i) que man-têm a condição de equilíbrio, a qual é formalmente deduzida em seguida. A equação 1 afirma que arenda (o lado da oferta) é igual à soma do consumo (C) com os gastos com investimento (I), mais osgastos (G) governamentais (o lado da demanda). O investimento privado aparece na equação 1 comofunção da taxa de juros, tal como o indicado no Gráfico 8.1, então:

Y = C + I(i) + G (1)

O consumo é apenas parte da renda (Y), o restante da renda é a poupança e a arrecadação tributáriado governo, que é uma função crescente da renda. Assim, a renda menos a poupança (S) e a arrecadação(T) é igual ao consumo, tal como indicado na equação 2:

C = Y – S – T(Y) (2)

Então, substituindo-se 1 em 2, pode-se escrever a equação 3:

Y = Y – S – T(Y) + G + I(i) (3)

Da equação 3, pode-se deduzir a condição de equilíbrio em termos de I, S, G e T:

S + T(Y) = I(i) + G (4)

Portanto, pode-se dizer que a oferta de bens e serviços é igual à sua demanda quando a poupança(mais a arrecadação tributária) é igual ao investimento (mais os gastos governamentais).

Todas as relações até aqui apresentadas, que são passos para a dedução da curva IS, são representa-das no Gráfico 8.2 de quatro quadrantes. A numeração dos quadrantes obedece ao sentido anti-horário.No quarto quadrante, são representadas as relações da equação 2, em que parte da renda é poupada. Nosegundo quadrante, está representado o investimento privado como função decrescente da taxa de jurose os gastos públicos que dependem de decisões governamentais são, portanto, representados por umareta vertical. Neste quadrante, os valores de I e G são somados (horizontalmente), obtendo-se a curvaI + G como função de i. O terceiro quadrante estabelece a condição de equilíbrio. Traça-se uma retacom 45� de inclinação que permite igualar a poupança (mais a arrecadação tributária) ao investimento(mais os gastos governamentais).

A partir das relações apresentadas nesses três quadrantes (2o, 3o e 4o), pode-se deduzir a curva doprimeiro quadrante, que é a curva IS que representa pares (Y, i) sob a condição de equilíbrio do mercado

104 A Teoria da Política Monetária no Modelo Keynesiano ELSEVIER

de bens e serviços. Escolhe-se um determinado nível de renda a e percorre-se os três quadrantes (na se-guinte ordem, 4o, 3o e 2o), encontra-se, então, a taxa de juros a’ que corresponde ao nível a de renda.Esse par obedece à condição de equilíbrio estabelecida do terceiro quadrante. Então, o ponto A (a, a’)do primeiro quadrante é um ponto da curva IS. Um segundo ponto é necessário para que a curva IS pos-sa ser traçada. Realiza-se o mesmo procedimento a partir do nível b de renda e encontra-se o ponto B (b,b’). Com dois pontos, traça-se a curva IS negativamente inclinada no plano (Y, i).

8.2.2. A CURVA LM

A curva LM é o conjunto de pontos de equilíbrio no mercado monetário (demanda por moeda igual àoferta) representado no plano renda (Y) e taxa de juros (i). A curva LM é o conjunto de pares (Y, i) quesustenta a condição de equilíbrio, a qual é formalmente apresentada em seguida. A equação 5 indicaque a oferta real de moeda (M/P, em que M é a oferta nominal de moeda e P é um dado nível de preços) éigual à sua demanda, que, por sua vez, é composta pela demanda pelo motivo-transação (dt) que é fun-ção crescente da renda (Y) e pela demanda motivo-especulação (ds) que é função decrescente da taxa dejuros (i) (veja os Capítulos 4 e 5):

M

P= dt (Y) + ds (i) (5)

Estas relações monetárias, que são passos para a dedução da curva LM, são representadas no Gráfi-co 8.3 de quatro quadrantes. A numeração dos quadrantes obedece ao sentido anti-horário. No quartoquadrante, está representada a demanda por moeda motivo-transação como função crescente da renda.No segundo quadrante, está representada a demanda motivo-especulação como função decrescente dataxa de juros. No terceiro quadrante, traça-se uma reta com 45� de inclinação que permite estabelecer acondição de equilíbrio, oferta real de moeda igual à demanda total. M/P é a oferta real de moeda no ter-ceiro quadrante, então, se a demanda motivo-transação é igual a c, a demanda especulativa é igual aM/P menos c. As propriedades geométricas do triângulo-retângulo garantem que a condição de equilí-brio sempre será satisfeita. Qualquer ponto sobre a reta de 45� indica uma demanda por transação e umademanda especulativa que adicionadas serão sempre iguais à oferta real de moeda.

A partir das relações apresentadas nesses três quadrantes (2o, 3o e 4o), pode-se deduzir a curva doprimeiro quadrante que é a curva LM que representa pares (Y, i) sob a condição de equilíbrio do merca-do monetário. Escolhe-se um determinado nível de renda a e percorre-se os três quadrantes (na seguinte

A Teoria da Política Monetária no Modelo Keynesiano 105

Y

S + T

I + G

i

45°

Curva IS

3º 4º

G + I

G

a b

a’

b’

A

B

GRÁFICO 8.2A Curva IS

ordem: 4o, 3o e 2o) e encontra-se, então, a taxa de juros a’ que corresponde ao nível a de renda. Esse parobedece à condição de equilíbrio estabelecida do terceiro quadrante. Então, o ponto A (a, a’) do primei-ro quadrante é um ponto da curva LM. Um segundo ponto é necessário para que a curva LM possa sertraçada. Realiza-se o mesmo procedimento a partir do nível b de renda e encontra-se o ponto B (b, b’).Com dois pontos, traça-se a curva LM positivamente inclinada no plano (Y, i).

8.3. A IMPOTÊNCIA DA POLÍTICA MONETÁRIA E O FISCALISMO

Traçando-se a curva IS que representa as inúmeras situações de equilíbrio do mercado de bens e a curvaLM que representa as situações de equilíbrio no mercado monetário, obtém-se o Gráfico 8.4 a seguir. Ainterseção das duas curvas é o ponto E0, em que a economia está em equilíbrio no mercado monetário eno mercado de bens.

Com o instrumental IS-LM, pode-se facilmente verificar os efeitos das políticas monetária e fiscalsobre a renda e a taxa de juros. Contudo, alguns passos devem ainda ser dados. Iniciemos assumindoque as relações descritas na equação 5 são lineares, então:

106 A Teoria da Política Monetária no Modelo Keynesiano ELSEVIER

Y

i

45°

Curva LM

3º 4º

ba

A

c

b’

a’

B

ds

dt

M/P

M/P

GRÁFICO 8.3A Curva LM

LM

IS

E0

i

Y

GRÁFICO 8.4Equilíbrio nos Mercados de Bens e Monetário

M

P= kY – hi , k>0; h>0 (5a)

em que k é o parâmetro que reflete a sensibilidade-renda da demanda por moeda e h é o parâmetro quemede a sensibilidade-juros da demanda por moeda. A demanda por moeda motivo transação dependedo nível da renda, porque os agentes necessitam de recursos para pagar as suas despesas correntes. Ademanda por moeda depende também da taxa de juros. O custo de se reter moeda é o quanto se deixa deganhar se a opção fosse a aquisição de títulos que rendem juros. Assim, quanto mais alta é a taxa de ju-ros, menor é o estímulo para se reter moeda e maior o estímulo para se reter títulos. Logo, a retenção demoeda pelo motivo especulação é inversamente proporcional à taxa de juros. Isto justifica o sinal nega-tivo à frente do parâmetro h na equação 5a. E, resolvendo-se essa equação em função de i, tem-se que:

ikY

h

M

hP� � (5b)

Esta é a equação de LM. Percebe-se, então, que a oferta real de moeda é parte do coeficiente linear daequação. Portanto, um aumento do estoque nominal de moeda (M), ceteris paribus, aumentará esse coefi-ciente e deslocará a curva LM paralelamente para a direita, tal como mostrado no Gráfico 8.5. A economiase deslocará do ponto E0 para o novo ponto de equilíbrio E1. Essa política pode ter sido executada, porexemplo, por intermédio de uma compra de títulos públicos por parte do Banco Central no open-market.Tal operação reduziu a taxa de juros e, consequentemente, aumentou o investimento e a renda.

Como pode ser observado no Gráfico 8.5, a potência de uma política monetária expansionista de-pende também da inclinação da curva IS. Quanto mais inclinada a curva IS, menos potente será a políti-ca monetária que visa a uma ampliação da renda. Mas que variáveis influenciam a inclinação da curvaIS? Para responder esta pergunta é necessário deduzir a equação da reta IS e verificar a composição doseu coeficiente angular. Esta tarefa é agora realizada. Como fizemos no caso da LM, vamos simplificarum pouco o problema, assumindo que todas as funções tratadas são lineares.

A variável consumo que aparece na equação 1 pode ser descrita pela seguinte função:

C = C + c[Y – T(Y)] (6)

Há uma parte do consumo que independe da renda, que é C, chamado, portanto, de consumo autô-nomo. A outra parte, c[Y–T(Y)], depende não diretamente da renda, mas sim da renda disponível, que é

A Teoria da Política Monetária no Modelo Keynesiano 107

E0

E1

LM

IS

i

Y

LM’

Y Y’

i

i’

GRÁFICO 8.5Uma Política Monetária Expansionista

a renda líquida, depois de pagos os impostos. A arrecadação tributária é definida pela seguinte função:

T = tY (7)

A variável investimento (I) que aparece também na equação 1 pode ser representada por:

I = – bi + j (8)

em que b é o parâmetro que mede a sensibilidade do investimento aos juros e j é uma constante positiva.Agora, substituindo-se 6, 7 e 8 na equação 1, obtém-se:

Y = C + c(1 – t) Y – bi + j + G (1a)

E, resolvendo-se essa equação em função de i, obtém-se:

iY

b

C

b

G

b

j

b� � � � �

��

�(1b)

em que = 1/[1 – c(1 – t)]. A equação 1b é representativa da curva IS. Após ter sido deduzida essa fun-ção, pode-se identificar quais os parâmetros que explicam a sua inclinação. São eles: e b. O segundoparâmetro mede a sensibilidade-juros do investimento que, segundo os velhos-keynesianos, é muitobaixa. Então, a curva IS é, para eles, basicamente vertical, como mostra o Gráfico 8.6. Logo, a políticamonetária torna-se quase que impotente para alterar a renda. Em verdade, não é recompensador fazeruma expansão monetária, que provavelmente será custosa, já que precisa reduzir drasticamente a taxade juros para obter apenas reduzidos aumentos da variável renda. No Gráfico 8.6, a redução da taxa dejuros de i para i' obtém como resultado um pequeno aumento da renda de Y para Y'.

Resta, então, aos adeptos da síntese neoclássica, como instrumento de intervenção macroeconômi-ca, a política fiscal – que pode ser exercida através da variação dos gastos governamentais (no Box 8.2,mostra-se que tal política pode também ser exercida pela redução da alíquota dos impostos). Um au-mento dos gastos públicos desloca paralelamente a curva IS para a direita, já que a variável G é parte docoeficiente linear da equação 1b. Um aumento dos gastos governamentais, como mostra o Gráfico 8.7,eleva a taxa de juros (de i para i’) e a renda (de Y para Y’). O aumento da renda provoca um aumento da

108 A Teoria da Política Monetária no Modelo Keynesiano ELSEVIER

LM

IS

E0

i

i

Y

LM’

E1

Y Y'

i’

GRÁFICO 8.6A Impotência da Política Monetária

taxa de juros. Isto ocorre porque a demanda transacional por moeda aumenta. Dado que a oferta demoeda é fixa, a taxa de juros precisa aumentar para reduzir a demanda especulativa, liberando moedapara as transações.

Uma versão especial do receituário velho-keynesiano de política econômica emerge quando alémda função demanda por bens de investimento com baixa elasticidade-juros (isto é, o parâmetro b comvalor muito baixo), assume-se uma função demanda por moeda com elevadíssima elasticidade-juros(ou seja, o parâmetro h com valor muito alto). Dessa forma, a IS seria basicamente vertical e a LM, qua-se horizontal. Essa versão especial do modelo é caracterizada pelo pessimismo das elasticidades. Essetermo foi utilizado por Axel Leijonhufvud em seu artigo Keynes and the Keynesians: a suggested inter-pretation publicado na American Economic Review em 1967. O pessimismo das elasticidades caracte-

A Teoria da Política Monetária no Modelo Keynesiano 109

Walter Heller, um keynesiano, foi quemassumiu o cargo de chefe do Conselho deConsultores Econômicos (Council of Eco-nomics Advisers) do Governo de John Ken-nedy, no início da década de 1960. Fize-ram parte ainda do Conselho ou partici-param de uma consultoria informal aoGoverno: James Tobin, Otto Eckstein,Gardner Ackley, Paul Samuelson, ArthurOkun, entre muitos outros conhecidoskeynesianos.

Eles reconheciam que o maior proble-ma da economia capitalista era que exis-tiam flutuações de curto prazo na de-manda agregada que poderiam se agra-var e levar a economia para situações dedepressão e desemprego agudo. O re-médio era promover uma sintonia fina,basicamente através do uso de instru-mentos de política fiscal. A sintonia de-veria seguir a fórmula sugerida, porexemplo, por Otto Eckstein, em seu livroFoundations of Modern Economics, pu-blicado em 1964 nos Estados Unidos:“Quando o produto nacional bruto esti-ver abaixo do nível de pleno emprego, apolítica fiscal deve ser expansionista.Isso se pode fazer reduzindo as taxas dosimpostos ou aumentando os gastos;qualquer dessas medidas aumentará ademanda agregada. Quando a deman-da estiver demasiadamente elevada ...provocando inflação; a política fiscaldeve ser restritiva, aumentando impos-tos ou reduzindo o programa de gastos.”

A proposta inicial feita ao PresidenteKennedy foi a redução de impostos visan-do ao estímulo do investimento privado edo consumo. Contudo, entre os keynesia-nos que apoiavam a administração Ken-

nedy não havia um consenso em relação àproposição. John Kenneth Galbraith, em-baixador na Índia à época, propunha al-ternativamente um aumento dos gastosgovernamentais para satisfazer carênciassociais não atendidas pelo serviço público,por exemplo, a construção de hospitais eescolas. Mas a preferência da equipe che-fiada por Heller era sem dúvida pela redu-ção do que chamou sucção fiscal. Em seulivro Novas Dimensões da Economia Políti-ca, publicado no Brasil em 1969, ele dis-se: “Nossa maior confiança estava na re-dução de impostos.” E, esse foi o caminhoadotado.

Em verdade, os velhos-keynesianosamericanos estavam divididos em doisgrupos: os progressistas e os conserva-dores. Os primeiros propunham políticasfiscais através de gastos do governo queprovessem bens públicos aos segmentosde baixa renda. Os conservadores pro-punham a redução de impostos comoforma de fomentar a demanda agrega-da. Os conservadores argumentavamque a redução da carga tributária vitali-zava a livre iniciativa, tornando-a maisousada, porque os fundos internos quedeveriam ser acumulados para a realiza-ção de novos investimentos seriam maisfacilmente retidos. Ademais, tal medidaestimulava o consumo. Os progressistasargumentavam que a poupança acumu-lada poderia não se transformar em gas-tos. Alternativamente, uma política degastos atingiria diretamente e imediata-mente o produto e o emprego. Além doque, promoveria uma distribuição indi-reta de renda se escolas e hospitais fos-sem construídos.

O FISCALISMO AMERICANO DOS ANOS 60: AUMENTODE GASTOS OU REDUÇÃO DE IMPOSTOS?

BO

X8

.2

riza a situação conhecida como armadilha da liquidez, em que uma política monetária expansionistaproduziria efeitos desprezíveis sobre a renda. Na armadilha da liquidez, o público transforma todo au-mento de oferta monetária em encaixes inativos (fundos especulativos) e não em recursos ativos (fun-dos transacionais). Sob esta condição, somente uma política fiscal expansionista pode afetar considera-velmente a renda, tal como é mostrado no Gráfico 8.8.

RESUMO

1. O receituário de política monetária de Keynes é bastante diferente do receituário sugerido pelos ve-lhos-keynesianos. Embora reconheçam que teoricamente existem mecanismos capazes de explicar a influên-cia de variações no volume de moeda sobre o produto, consideram que a política monetária possui umapotência reduzida, pelo menos quando comparada com a política fiscal. O receituário proposto pelo velho-keynesianismo advém da constatação empírica de que a função demanda por bens de capital possui uma baixaelasticidade-juros.

110 A Teoria da Política Monetária no Modelo Keynesiano ELSEVIER

LM

IS IS'

E0

i

iE1

i’

YY Y’GRÁFICO 8.7A Eficácia da Política Fiscal

E0 E1

Y Y’

LM

IS

i

Y

IS’

GRÁFICO 8.8A Armadilha da Liquidez

2. O velho-keynesianismo relegou a moeda e a política monetária a um papel secundário em relação à políticafiscal de gastos governamentais. Uma política monetária expansionista que reduza a taxa de juros drastica-mente teria um impacto desprezível sobre as decisões empresariais de investimento e, portanto, um reduzidoefeito sobre o nível de emprego e renda. Como uma política de gastos públicos, por exemplo, impacta direta-mente essas variáveis, a política fiscal é sempre preferida à política monetária, que requer um grande esforço(de redução da taxa de juros) para obter resultados desprezíveis sobre o produto.

3. Os velhos-keynesianos consideram que o modelo IS-LM é o instrumental capaz de descrever os fenômenosessenciais da economia. A curva IS é o conjunto de pontos de equilíbrio no mercado de bens (demanda igualao produto) representado no plano renda (Y) e taxa de juros (i). A curva LM é o conjunto de pontos de equilí-brio no mercado monetário (demanda por moeda igual à oferta) representado no mesmo plano. A interseçãodas duas curvas é o ponto em que a economia está em equilíbrio no mercado monetário e no mercado de bens.

4. A curva IS é, para os velhos-keynesianos, basicamente vertical. Logo, a política monetária torna-se quase queimpotente para alterar a renda. Em verdade, não é recompensador fazer uma expansão monetária, que prova-velmente será custosa, já que precisa reduzir drasticamente a taxa de juros para obter apenas reduzidos au-mentos da variável renda. Resta, então, aos adeptos da síntese neoclássica, como instrumento de intervençãomacroeconômica, a política fiscal.

5. Uma versão especial do receituário velho-keynesiano de política econômica emerge quando associada à fun-ção demanda por bens de investimento com baixa elasticidade-juros vislumbrando-se uma função demandapor moeda com elevadíssima elasticidade-juros. Dessa forma, a IS seria basicamente vertical e a LM, quasehorizontal. Essa versão especial tornou-se conhecida como a armadilha da liquidez. Nessa situação, o públicotransforma todo o aumento de oferta monetária em encaixes inativos. Assim, somente uma política fiscal ex-pansionista poderia afetar consideravelmente a renda. Uma política monetária expansionista produziria efei-tos nulos sobre as variáveis reais.

TERMOS-CHAVE

� Elasticidade-juros � Elasticidade-renda � Curva IS� Curva LM � Demanda Transacional � Demanda Especulativa� Equilíbrio dos Mercados � Fiscalismo � Armadilha da Liquidez

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Branson, W. (1986). Macroeconomia, Teoria e Política. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.Nos capítulos 4 e 5 do seu Macroeconomia, Teoria e Política, Branson faz uma detalhada apresentação do mo-

delo IS-LM. Tal apresentação é comum em diversos livros de macroeconomia. Entretanto, o autor merece desta-que porque a cada passo de sua apresentação oferece um explicação matemática, gráfica (geométrica) eeconômica. Dessa forma, torna o funcionamento do modelo de fácil entendimento, assim como o seu significadoeconômico.

Heller, W. (1969). As Novas Dimensões da Economia Política. Rio de Janeiro: Zahar Editores.Walter Heller foi presidente do Conselho de Consultores Econômicos dos governos Kennedy e Johnson. No li-

vro, a experiência da equipe econômica velho-keynesiana é relatada. São descritas, com detalhes, as dificuldadesdos economistas acadêmicos keynesianos para enfrentar os problemas da realidade. É feita uma narração, inclusi-ve, de alguns diálogos e problemas econômicos que eram discutidos com o Presidente.

Hicks, J. (1937). “Mr. Keynes and the classics: a suggested interpretation”. Econometrica, abril, p.147-59. Re-publicado em português em Clássicos de Literatura Econômica. Rio de Janeiro: Ipea-Inpes, 1988.

Klein, L. (1952). La Revolucion Keynesiana. Madri: Editorial de Revista de Derecho Privado.Tobin, J. (1987). Policies for Prosperity. Brighton: Wheatsheaf Books.

A Teoria da Política Monetária no Modelo Keynesiano 111

APÊNDICE

A TEORIA DA POLÍTICA MONETÁRIAKEYNESIANA HORIZONTALISTA

A impotência da política monetária não foi sugerida apenas pela síntese neoclássica. Com argumentostotalmente diversos do velho-keynesianismo, Nicholas Kaldor, em seu livro The Scourge of Moneta-rism, defendeu também tal proposição. Kaldor concluiu que as autoridades monetárias devem tão-somente fixar uma taxa de juros (compatível, por exemplo, com uma taxa de crescimento econômico) econceder livremente liquidez ao sistema monetário para atender às demandas por reservas dos bancos.Nesse caso, a quantidade de moeda da economia seria determinada pela demanda por reservas dos ban-cos junto ao Banco Central, que resulta da demanda por crédito de consumidores e investidores juntoaos bancos. Assim, a função oferta de moeda da economia seria perfeitamente juros-elástica, tal comoindicado no Gráfico 8.9, em que Ms representa a oferta de moeda e Dm a demanda por moeda.

Como essa função horizontal sintetiza as linhas gerais do modelo representativo de uma das corren-tes keynesianas, Basil Moore, em seu livro Horizontalists and Verticalists, batizou tal corrente de hori-zontalista.

Segundo o horizontalismo, qualquer tentativa do Banco Central de modificar a taxa de juros e/ou aquantidade de moeda da economia (que é estabelecida pela demanda por moeda de investidores e con-sumidores) poderia: (a) criar excesso de reservas bancárias ou (b) afetar a solvência das instituições queconcedem crédito. Para essa corrente, uma política monetária expansionista poderia criar somente umexcesso de reservas bancárias, porque não seria capaz de despertar os espíritos empreendedores dosempresários. São motivos espontâneos (isto é, não monetários) – espírito inovador, por exemplo – queestimulam os empresários a tomar decisões de investimento. Inversamente, uma política monetáriacontracionista poderia ser prejudicial porque poderia afetar a solvência dos bancos.

Em suma, para os horizontalistas, a melhor política monetária que o Banco Central pode (e deve)praticar é aquela que mantém a taxa de juros constante e, ao mesmo tempo, concede reservas aos bancosde acordo com as suas necessidades. Para o horizontalismo, o instrumento de política econômica eficazseria tão-somente a política fiscal. Portanto, o horizontalismo é também uma corrente essencialmentefiscalista, tal como a síntese neoclássica.

112 A Teoria da Política Monetária no Modelo Keynesiano ELSEVIER

MS

Dm

i

MGRÁFICO 8.9A Oferta Monetária no Modelo Horizontalista

A TEORIA DA POLÍTICAMONETÁRIA DO MODELOMONETARISTA

INTRODUÇÃO

Em oposição à velha tradição keynesiana, Milton Friedman, o maior expoentedo monetarismo, tentou demonstrar durante as décadas de 1950 e 1960 que amoeda importa. Segundo Friedman, é possível reduzir a taxa de desempregocom políticas monetárias expansionistas, ainda que apenas temporariamente.Daí vem a denominação dessa corrente, o monetarismo, em oposição ao fisca-lismo keynesiano. Friedman apoia suas ideias no tripé: taxa natural de desem-prego, curva de Phillips e expectativas adaptativas.

Inicialmente, este capítulo apresenta a teoria que sustenta a hipótese daexistência de uma taxa natural de desemprego na economia que é o ponto departida para a construção da teoria da política monetária friedmaniana. Poste-riormente, apresenta-se a teoria da curva de Phillips com expectativas adaptati-vas, isto é, expectativas em que os agentes levam em conta somente as informa-ções sobre o passado. Uma versão especial da curva de Phillips, chamada deaceleracionista, também é tratada no capítulo. Por último, apresentam-se duasproposições friedmanianas. A primeira é que apesar de a política monetária sereficaz para alterar variáveis reais, ela não deve ser utilizada para este fim. A se-gunda, que todo processo inflacionário tem causa monetária e que, portanto,uma política monetária contracionista é a única solução desinflacionista, a qualterá como efeito, necessariamente, o aumento do desemprego.

9.1. A TAXA NATURAL DE DESEMPREGO

A hipótese da existência de uma taxa natural de desemprego é o ponto de par-tida para a construção da teoria da política monetária friedmaniana. Quando aeconomia está em repouso, isto é, não está sob o efeito de nenhuma interven-ção de política macroeconômica, a sua taxa corrente de desemprego é igual àtaxa natural. O termo natural foi usado, por Friedman, no sentido wicksellia-no: separar as causas de natureza estrutural e institucional das causas interven-cionistas-monetárias. Portanto, a taxa natural é aquela taxa de desemprego queincorpora as características estruturais e institucionais do mercado de trabalho

CAPÍTULO

9

e do mercado de bens, tais como a tecnologia, as imperfeições, as variações sazonais na demanda e oferta,o custo e o tempo de coletar informações sobre vagas disponíveis e o custo e o tempo de mobilidade deum emprego para outro – entre outras características. Quando a economia possui uma taxa de desem-prego igual à sua taxa natural, somente vigoram o desemprego friccional e o desemprego voluntário.Em seguida, o significado desses dois tipos de desemprego é explicado.

O desemprego friccional é aquele em que os trabalhadores estão apenas temporariamente de-sempregados, isto é, estão em transição entre um emprego e outro. Por um lado, os trabalhadorespossuem diferentes habilidades e anseios salariais, por outro, para os diversos postos de trabalhosão exigidos diferentes conhecimentos e são oferecidas diferenciadas remunerações. Contudo, asinformações entre os candidatos e os empresários que estão oferecendo as vagas com determinadascaracterísticas não são instantâneas. Há ainda que se considerar que a mobilidade geográfica dostrabalhadores e os processos de admissão das empresas não são imediatos. Assim, o desempregoexistente em função de incompatibilidades passageiras entre os trabalhadores e as vagas é chamadode desemprego friccional.

O desemprego voluntário é aquele em que os trabalhadores estão decididamente desempregadosporque consideram que não vale a pena trabalhar pelo salário real que lhes é oferecido. Tanto as horaslivres para o lazer proporcionado pelo desemprego quanto os bens adquiridos com o salário pago pelotrabalho proporcionam satisfação. Os trabalhadores cujas preferências indicam que a satisfação dashoras livres é maior que aquela que poderia ser proporcionada pelo salário real em vigor decidem vo-luntariamente por não trabalhar. Os trabalhadores que estão empregados têm preferências inversas.Eles avaliam que os bens-salário geram uma satisfação superior às horas de lazer devido à condiçãode desemprego voluntário. Enfim, quando a taxa de desemprego da economia é igual à sua taxa natu-ral, todos estão satisfazendo as suas preferências, empregados ou não. Não existe, então, desempregoinvoluntário.

Tanto Friedman quanto os novos clássicos (cujas ideias serão discutidas no próximo capítulo) enfa-tizam que a taxa natural não é imutável, nem inalterável. Muitas das características estruturais ou insti-tucionais de uma economia, incluindo as preferências dos agentes, podem mudar com o passar do tem-po, assim, mudando a taxa natural de desemprego. E muitas das características institucionais podem seralteradas, por exemplo, podem ser melhorados os processos de informação sobre a oferta de vagas dis-poníveis, alterando dessa forma a taxa natural de desemprego.

De acordo com o arcabouço teórico monetarista, a taxa corrente de desemprego corresponde à taxanatural de desemprego quando o conjunto de trabalhadores (empregados ou não) está obtendo satisfa-ção plena. A hipótese da taxa natural pode ser resumida na noção de que existe um único ponto de de-semprego (friccional e voluntário) de equilíbrio na economia em que os agentes têm as suas preferên-cias satisfeitas. Será visto que quando a economia se encontra em posição de desequilíbrio, isto é, a suataxa corrente de desemprego é diferente da taxa natural, existirão trabalhadores cujas preferências nãoestão sendo satisfeitas.

Como o ponto de equilíbrio econômico é único, diz-se que o equilíbrio possui a propriedade daunicidade. Diz-se ainda que o equilíbrio é estável ou, equivalentemente, que possui a propriedadeda estabilidade, porque a taxa corrente de desemprego converge em direção à taxa natural na ausênciade intervenções monetárias. Tal propriedade vigora, dado que o monetarismo considera que os merca-dos se equilibram via variações em preços e salários, que são considerados plenamente flexíveis. Todosos detalhes sobre esse processo de convergência serão discutidos nas duas próximas seções.

O Gráfico 9.1 resume algumas das ideias até aqui expostas sobre a taxa natural de desemprego. Ataxa natural de desemprego muda ao longo do tempo em função, por exemplo, de mudanças nas prefe-rências dos trabalhadores entre lazer e trabalho e de melhorias em outras condições, entre elas uma mo-bilidade geográfica maior dos trabalhadores ou a busca de empregos e empregados via Internet. O grá-fico mostra também que somente existe, para cada período t, um único ponto de equilíbrio econômico,o ponto em que existe a coincidência entre a taxa natural e a taxa corrente de desemprego. E, por último,pode-se perceber que a taxa corrente de desemprego gravita em torno da taxa natural de desemprego, oque indica que vigora a propriedade da estabilidade.

114 A Teoria da Política Monetária do Modelo Monetarista ELSEVIER

9.2. A CURVA DE PHILLIPS COM EXPECTATIVAS ADAPTATIVAS

No modelo monetarista, os trabalhadores formam expectativas de preços utilizando-se exclusivamentede infomações sobre o passado. A fórmula apresentada a seguir é um dos exemplos de processos de for-mação de expectativas consistentes com o modelo, que são chamadas genericamente de expectativasadaptativas:

� �P Pte

t� �1 (1)

Na equação 1, a expectativa de inflação para o período t é exatamente a inflação do período imedia-tamente anterior. No Apêndice deste capítulo, é desenvolvida uma fórmula, também compatível com omodelo monetarista, em que o agente forma suas expectativas de inflação com base na expectativa queteve para o período anterior e no erro que cometeu, isto é, faz uma média ponderada entre a sua expecta-tiva de inflação para o período anterior e a inflação efetiva nesse período.

Partindo-se de uma situação de equilíbrio, em que o estoque de moeda tenha sido mantido constan-te por vários períodos, uma expansão monetária provocará uma redução da taxa corrente de desempre-go em relação à taxa natural, se as expectativas são formadas tal como na equação 1. Caso haja uma ex-pansão monetária, os empresários podem oferecer um salário nominal mais elevado aos trabalhadoresque estão voluntariamente desempregados. Estes, por sua vez, pensarão que um salário nominal maiselevado representa um salário real mais elevado. Suas expectativas são de que não haverá inflação por-que os preços estavam constantes no passado, já que o estoque de moeda não foi alterado por vários pe-ríodos. No modelo monetarista, o nível de preços é função direta do estoque de moeda. Dessa forma, al-guns trabalhadores, antes ociosos, aceitarão trabalhar pelo novo salário esperado. Outros ainda conti-nuarão considerando que o salário real esperado mais elevado não proporcionará mais satisfação que ashoras de lazer e, então, continuarão a manter a sua condição de desemprego voluntário.

Dentre aqueles trabalhadores que até então estavam na condição de desempregados voluntariamen-te, alguns pensarão que o salário esperado gerará mais satisfação do que as horas de lazer que têm des-frutado, e, por isso, preferirão trabalhar, abandonando a condição de desempregados. A consequência éque a taxa corrente de desemprego torna-se menor do que a taxa natural. Entretanto, o salário nominalmais elevado não representará um salário real mais elevado porque os preços estão aumentando em fun-ção da expansão do estoque de moeda. Haverá uma decepção de expectativas – afinal, não havia expec-tativas de qualquer inflação, tal como mostra a equação 1.

A Teoria da Política Monetária do Modelo Monetarista 115

t

Un

Un

Ut

Ut

= Taxa Natural de Desemprego= Taxa Corrente de Desemprego

U

GRÁFICO 9.1A Taxa Natural de Desemprego e a Taxa Corrente de Desemprego

Os trabalhadores, contudo, somente perceberão que estavam sofrendo de ilusão monetária quandoestiverem realizando suas compras. Nesse momento, irão perceber que o salário que receberam não podeadquirir os bens e serviços que gerariam mais satisfação do que o lazer que estavam desfrutando enquantoestavam ociosos. A elevação de preços, somente percebida a posteriori, fez com que o aumento nominalde salários não representasse um aumento real. Desfeita a ilusão monetária, os trabalhadores decidem re-tornar ao desemprego voluntário que lhes proporcionava um nível mais elevado de satisfação do que oemprego é capaz de proporcionar. Em suma, uma expansão monetária (tal como esta que foi descrita) re-duz o desemprego. Entretanto, reduz também o nível de satisfação dos trabalhadores que estavam mone-tariamente iludidos. Por isso, quando a ilusão se desfaz, o desemprego se recompõe.

A chamada curva de Phillips versão Friedman, apresentada no Gráfico 9.2, pode expressar os resul-tados de uma política monetária expansionista em que se parte de uma situação de equilíbrio sem de-cepção de expectativas – o ponto A, onde a taxa corrente de desemprego é igual à taxa natural de de-semprego. Neste ponto, a inflação esperada é igual à inflação efetiva; portanto, a inflação do presente éigual à inflação do passado. Quando os trabalhadores subestimam a inflação futura em razão de uma polí-tica monetária expansionista, o desemprego se reduz, por exemplo, para o ponto B, onde a taxa correntede desemprego é menor do que a taxa natural. A curva de Phillips indica que quanto maior for a decepçãode expectativas, maior será a diferença entre a taxa corrente e a taxa natural de desemprego.

9.3. A CURVA DE PHILLIPS ACELERACIONISTA

Pode-se perceber que, após ter sido implementada uma política monetária que aumenta a taxa de inflaçãoe reduz o desemprego, os trabalhadores sempre acabam percebendo que foram iludidos e retornam à con-dição original de desempregados voluntariamente em que sua satisfação era maximizada. Percebe-se que,de fato, este equilíbrio é estável. O desemprego aumenta novamente e a taxa corrente volta a igualar-se àtaxa natural. Para que o desemprego permaneça abaixo da taxa natural é necessário que os trabalhadoressejam iludidos continuamente. Para tanto, é necessário que seja implementada uma política de aumentodas variações positivas do estoque de moeda. Tal política aumentará continuamente a taxa de inflação,isto é, irá acelerar a velocidade de crescimento do preços. Somente assim os trabalhadores subestimarão ainflação futura de forma permanente. A inflação presente será sempre maior do que a inflação passada e ataxa corrente de desemprego permanecerá em um nível inferior à taxa natural de desemprego.

A curva de Phillips versão Friedman aceleracionista, apresentada no Gráfico 9.3, é capaz de descre-ver a situação em que o desemprego permanece abaixo do desemprego natural. Na curva de Phillips K,

116 A Teoria da Política Monetária do Modelo Monetarista ELSEVIER

P – Pe• •

Un Ut

A

B

GRÁFICO 9.2A Curva de Phillips Versão Friedman

os trabalhadores possuem uma determinada expectativa inflacionária que é � ’P e � 0. A economia está,inicialmente, no ponto A, em que a inflação efetiva confirma as expectativas e a taxa de desemprego éigual à taxa natural. Se uma expansão monetária provoca uma taxa de inflação superior à inflação espe-rada, a economia se desloca, por exemplo, para o ponto B, em que a taxa corrente de desemprego (U*) émenor do que a taxa natural e a taxa de inflação efetiva é � �’ ’P P e� � 0.

Ainda no ponto B, os trabalhadores percebem que a variação de preços superou as suas expectati-vas. Assim, a economia se deslocaria do ponto B para o ponto C, em que a taxa corrente de desempregoseria novamente igual à taxa natural de desemprego. A política monetária implementada deslocaria acurva de Phillips da economia de K para L. O novo ponto de equilíbrio da economia seria subótimo por-que os agentes teriam que conviver com uma taxa constante de inflação � ’P . Na curva L, as expectativasinflacionárias incorporaram a inflação que ocorreu no período em que a economia se deslocou de Apara B. A expectativa inflacionária da curva L é � ”P e .

Para que a taxa de desemprego permaneça no nível U*, antes que a economia retorne ao ponto deequilíbrio C, uma nova política com uma taxa de expansão monetária superior à taxa da política que feza economia se deslocar de A para B deve ser implementada. A política monetária deve ter essa caracte-rística expansionista porque é necessário que uma inflação superior a � ’P ocorra já que, agora, no pontoB, a expectativa inflacionária é a mesma do ponto C, isto é, � �” ’P Pe � .

Se, então, uma política monetária que provoque aceleração da inflação é implementada, a econo-mia se deslocará, por exemplo, para o ponto D (e não para o ponto C) em que a taxa de desemprego é in-ferior à taxa natural. Ainda no ponto D, os trabalhadores percebem que a variação de preços superou assuas expectativas. Assim, a economia se deslocaria do ponto D para o ponto E, em que a taxa correntede desemprego seria novamente igual à taxa natural de desemprego. Na curva M, a nova curva de Phil-lips da economia, as expectativas inflacionárias incorporaram a inflação que ocorreu no período em quea economia se deslocou de B para D. A expectativa inflacionária da curva M é � ’”P e . É importante ressal-tar que � � �’” ” ’P P Pe e e� � = 0. Se o mesmo procedimento monetário, isto é, uma política que torne a infla-ção crescente é implementado diante da situação expectacional do ponto D, a economia se deslocarádeste ponto para o ponto F e não para o ponto E.

Em resumo, para que a taxa corrente de desemprego (U*) seja mantida é necessário que os trabalha-dores sejam, de forma permanente, iludidos. Para tanto, o governo deveria ampliar a variação do esto-que de moeda que realizou no período anterior. Sendo assim, as expectativas dos trabalhadores subesti-mariam a inflação futura e o desemprego permaneceria abaixo da taxa natural.

A Teoria da Política Monetária do Modelo Monetarista 117

A

C

E

B

D

U

M(•Pe' ' ')

L(•Pe' ')

K(•P = 0)e'

•P'

•P' '

•P' ' '

•P

U* Un

F

GRÁFICO 9.3A Curva de Phillips Versão Friedman Aceleracionista

9.4. FRIEDMAN E O ATIVISMO MONETÁRIO

Como já visto, no modelo de Friedman, a variação do nível de preços é função direta da expansão mo-netária. Assim, salários reais esperados superiores aos vigentes seriam apenas uma ilusão passageirapara os trabalhadores. Estes abandonariam o desemprego voluntário porque estavam iludidos. Se ob-servaram alguma variação de preços, avaliaram que tal variação (decorrente do expansionismo monetá-rio) era relativa, mas em realidade era absoluta. Então, uma política monetária eficaz em relação aonível de emprego seria aquela capaz de iludir os trabalhadores. Mais ainda, a política monetária somen-te seria eficaz em relação ao desemprego durante o período de ilusão. Desfeita esta sensação, os traba-lhadores que foram iludidos retornariam à condição de desempregados voluntários, isto é, a economiaretornaria à posição original única de equilíbrio em que a taxa corrente de desemprego se igualaria àtaxa natural. Portanto, costuma-se dizer que, no modelo monetarista, a política monetária somente é efi-caz no curto prazo. No longo prazo, seria neutra, somente alteraria o valor nominal das variáveis preço,salário e outras. Como a política monetária não é capaz de alterar em definitivo a situação da economia,Friedman se opõe ao seu uso.

Para manter a taxa corrente de desemprego abaixo da taxa natural, como visto na seção anterior, osdirigentes do Banco Central deveriam manter os trabalhadores em permanente estado de ilusão mone-tária. Dado que no modelo friedmaniano os agentes econômicos formam expectativas do tipo adaptati-vas, isto somente seria possível se a inflação fosse crescente. Somente uma inflação em aceleração im-pediria a adaptação dos trabalhadores às variações de preços registradas – criando, consequentemente,um contexto de contínua ilusão monetária. Em tal contexto, os trabalhadores teriam suas preferênciasindividuais não satisfeitas em virtude dos cálculos incorretos que realizam quando comparam a satisfa-ção que os salários esperados podem oferecer e a satisfação proporcionada pelas horas de lazer. Já queuma política de expansionismo monetário pode reduzir o nível de satisfação individual dos trabalhado-res, Friedman se opõe ao seu uso.

Ademais, o monetarismo identificou dois tipos de defasagens, na condução da política monetária,que formam a base de outros de seus argumentos contrários à sua utilização. A primeira defasagem,também chamada de defasagem interna, refere-se ao intervalo de tempo que transcorre entre um cho-que econômico (que aumenta o desemprego, por exemplo) e a ação das autoridades monetárias em res-posta ao distúrbio. Tal defasagem ocorre porque há uma demora no reconhecimento do problema e naimplementação das medidas corretivas. A segunda, chamada de defasagem externa, é decorrente do in-tervalo que ocorre entre a implementação das medidas e os seus efeitos sobre a economia. Esta últimaacontece porque as políticas monetárias não exercem um impacto imediato sobre as variáveis reais daeconomia. Tais defasagens podem transformar a política monetária em uma fonte desestabilizadora.Por exemplo, em uma fase recessiva, implementa-se uma política monetária expansionista. Suponha-mos que as condições econômicas sejam favoráveis à recuperação da economia exatamente no momen-to em que os efeitos da política monetária começam a se tornar reais. O resultado é um superaquecimen-to. Nesse caso, segundo Friedman, a tentativa de estabilizar teria sido malsucedida: apenas teria inverti-do o sentido do desequilíbrio.

Enfim, “tarde demais e em demasia tem sido a prática geral” quanto à política monetária, segun-do Friedman, no seu célebre artigo intitulado The Role of Monetary Policy, publicado na AmericanEconomic Review, em março de 1968. Portanto, ele concluiu no mesmo texto que, apesar de eficaz, apolítica monetária pode ser perigosamente desestabilizadora. Friedman resumiu sua posição na se-guinte passagem:

“... a razão da propensão ao exagero parece clara: a falha das autoridades em não levar em conta o hia-to entre suas ações e os efeitos subsequentes sobre a economia. Elas tendem a determinar as suasações pelas condições de hoje – mas suas ações afetarão a economia unicamente seis, nove, doze ouquinze meses mais tarde. Então, elas se sentem impelidas a pisar no freio, ou no acelerador, confor-me o caso, de forma violenta.”

118 A Teoria da Política Monetária do Modelo Monetarista ELSEVIER

Alternativamente ao ativismo monetário (isto é, ao discricionarismo), a proposição de Friedman éque a autoridade adote regras para a gestão da moeda. Seu receituário é uma meta de expansão monetá-ria publicamente pré-anunciada, algo em torno de 3% a 5% a.a. Isto porque seria melhor ter uma taxafixa, que produziria, segundo Friedman, uma inflação ou uma deflação moderadas – desde que fossemconstantes – do que sofrer perturbações amplas e irregulares, que são uma decorrência inevitável dodiscricionarismo monetário.

9.5. OS CUSTOS DA DESINFLAÇÃO E A TAXA DE SACRIFÍCIO

Como os monetaristas acreditam que a inflação é um fenômeno essencialmente monetário, isto é, que ataxa de inflação é proporcional à taxa de variação do estoque de moeda da economia, sugerem que a infla-ção deve ser eliminada por intermédio da redução da taxa de crescimento do estoque monetário. Contudo,uma redução da taxa de expansão monetária resulta em aumento da taxa corrente de desemprego em rela-ção à taxa natural. O dilema enfrentado pelas autoridades monetárias é que quanto maior a contração mo-netária visando a uma redução drástica da inflação, maior será o desemprego corrente em relação aodesemprego expresso pela taxa natural. Se as autoridades desejarem combater a inflação com menorescustos sociais, terão que reduzir a inflação gradualmente. Esse problema é apresentado no Gráfico 9.4.

A seguir são apresentados dois exemplos de políticas anti-inflacionárias compatíveis com o modelomonetarista. No primeiro caso, é descrita uma política de redução drástica da inflação e em curto espaçode tempo e, no segundo, é dado um exemplo de redução gradual da inflação que consome um tempomaior. Cabe ressaltar que outras inúmeras políticas poderiam ser apresentadas, inclusive aquelas que ti-vessem como consequência uma redução de salários nominais e preços, pois é a plena flexibilidade des-sas variáveis que permite que tais políticas sejam bem-sucedidas.

A economia está, inicialmente, no ponto A com uma taxa de inflação � ’”P e com sua taxa corrente dedesemprego coincidindo com a sua taxa natural. Se as autoridades desejarem eliminar a inflação, terãoque estancar integralmente a variação do estoque de moeda que causa a variação do nível de preços � ’”P .Se isto é feito, os salários nominais não poderão ser reajustados. Esta variação nula dos salários nomi-nais será interpretada pelos trabalhadores como uma redução dos salários reais, já que suas expectativassão � ’”P e > 0. Isto provocará uma redução da oferta de trabalho e um aumento do desemprego, que teráuma taxa B que é muito maior do que o desemprego natural.

Se o governo decide, contudo, baixar gradualmente a inflação (reduzindo a variação do estoque mo-netário em relação ao período imediatamente anterior) de � ’”P para � ”P a economia se deslocará inicialmen-te para o ponto C’, onde o desemprego resultante dessa política terá taxa D que é maior que a taxa natural(mas é inferior a B). Posteriormente, a economia se deslocará para o ponto C. Se as autoridades desejaremeliminar a inflação, terão que estancar integralmente a variação do estoque de moeda que causa a variaçãodo nível de preços � ”P . Se isto é feito, os salários nominais não poderão sofrer qualquer reajuste. Estavariação nula dos salários nominais será interpretada pelos trabalhadores como uma redução dos saláriosreais, já que suas expecativas são � ”P e > 0. Isto provocará uma redução da oferta de trabalho e um aumentodo desemprego, que retornará à taxa D. Finalmente, a economia se deslocará para o ponto E de equilíbrioótimo, com o desemprego coincidindo com o desemprego natural e em que a taxa de inflação é zero.

Comparando-se o tratamento de choque com o tratamento gradualista, percebe-se que este últimoprovoca uma taxa de desemprego bastante inferior à política de choque monetário. Contudo, a transiçãoda economia que segue a sequência de pontos A-C’-C-D-E consome um tempo muito superior à se-quência A-B-E. Esse é o dilema que as autoridades monetárias têm que enfrentar: se desejam eliminarrapidamente a inflação, causarão um enorme desemprego; inversamente, se não desejam criar um ele-vado desemprego terão que aceitar a cura da inflação em tempo maior. Do que foi visto até o momento,pode-se escrever a seguinte equação:

� � ( )P P U Ut t t n� � � � ��1 0� � (2)

A Teoria da Política Monetária do Modelo Monetarista 119

A equação 2 diz que a desinflação somente pode ser alcançada com o aumento do desemprego emrelação a taxa natural. Se α for igual a 1 (um), t o período de um ano e a taxa natural de desempregoigual a 6%, pode-se dizer que, por exemplo, se a taxa de inflação é de 12%, então, a taxa corrente de de-semprego alcançará a taxa de 18%, caso o governo queira reduzir a taxa de inflação para 0% em únicoperíodo, isto é, de um ano para o outro. Esses cálculos são apresentados a seguir:

0% – 12% = –1(Ut – 6%)

– 12% = – (Ut – 6%)

12% = Ut – 6%

Ut = 18%

Caso as autoridades monetárias desejassem reduzir gradualmente a variação do nível de preços, po-deriam reduzir no primeiro ano a inflação, por exemplo, para 8%. O desemprego atingiria, então, nestaprimeira fase, 10%. No segundo ano, poderia reduzir de 8% para 4%; o desemprego atingiria novamen-te a taxa de 10%. No terceiro ano, poderia eliminar a inflação, e a taxa de desemprego voltaria a atingir10%. O dilema é exatamente esse. O governo pode acabar com a inflação de um ano para o outro, masfaria a taxa de desemprego crescer de 6% para 18%. Alternativamente, poderia zerar a inflação em trêsanos, somente provocando um desemprego de 10%, somente 4% além da taxa natural de 6%.

O que foi visto é precisamente o que é chamado de taxa de sacrifício (TS) que é a taxa que medequanto de desemprego além da taxa natural será necessário para se reduzir a inflação em um determinadomontante. Se no exemplo apresentado, com tratamento de choque, era necessário aumentar o desempregoem 12 pontos percentuais (além da taxa natural) para reduzir a inflação em 12 pontos percentuais, diz-seque a TS é igual a 1 (um). No exemplo visto, com tratamento gradualista – onde para se reduzir a inflaçãoem 4 pontos percentuais por ano é necessário criar um desemprego de 4 pontos percentuais acima da taxanatural – diz-se que a TS também é igual a 1 (um). Logo, pode-se escrever a seguinte equação:

TSP P

U Ut t

t n

��

���1 �

ou seja, a taxa de sacrifício é sempre igual a α se as expectativas são adaptativas.

120 A Teoria da Política Monetária do Modelo Monetarista ELSEVIER

D

J(•Pe'= 0)

L(•Pe' ' ')

K(•Pe' ')

•P'

•P' '

•P' ' '

Un

C’C

A

UE

B

•P

GRÁFICO 9.4A Curva de Phillips Versão Friedman: gradualismo e choque

RESUMO

1. A hipótese da existência de uma taxa natural de desemprego é o ponto de partida para a construção da teoria dapolítica monetária friedmaniana. Quando a economia está em repouso, isto é, não está sob o efeito de nenhu-ma intervenção de política macroeconômica, a sua taxa corrente de desemprego é igual à taxa natural. Quandoa economia possui uma taxa de desemprego igual à sua taxa natural somente vigoram o desemprego friccionale o desemprego voluntário.

2. No modelo monetarista, os trabalhadores formam expectativas de preços utilizando-se exclusivamente de in-fomações sobre o passado. A fórmula apresentada a seguir é um dos exemplos de processos de formação deexpectativas consistentes com o modelo, que são chamadas genericamente de expectativas adaptativas:� �P Pt

et� �1 .

3. A curva de Phillips com expectativas adaptativas pode mostrar por que a moeda não é neutra durante um de-terminado período de tempo. Se há uma expansão monetária, os empresários podem oferecer um salário no-minal mais elevado aos trabalhadores que estão voluntariamente desempregados. Estes, por sua vez,considerarão que um salário nominal mais elevado representa um salário real mais elevado. Dessa forma, par-te dos trabalhadores aceitará trabalhar pelo novo salário esperado.

4. Como os efeitos reais da política monetária somente permanecem durante o período em que os trabalhadoresestão sofrendo de ilusão monetária, para que o desemprego permaneça abaixo da taxa natural é necessário queos trabalhadores sejam iludidos continuamente. Para tanto, é necessário que a política monetária aumentecontinuamente a taxa de inflação, isto é, deve acelerar a velocidade de crescimento dos preços. Somente assimos trabalhadores subestimarão a inflação futura permanentemente. A inflação presente será sempre maior doque a inflação passada e a taxa corrente de desemprego permanecerá em um nível inferior à taxa natural de de-semprego.

5. Em um contexto de contínua ilusão monetária, os trabalhadores teriam suas preferências individuais nãosatisfeitas, em virtude dos cálculos incorretos que realizam quando comparam a satisfação que os saláriosesperados podem oferecer e a satisfação proporcionada pelas horas de lazer. Já que uma política de expansio-nismo monetário pode reduzir o nível de satisfação individual dos trabalhadores, Friedman opõe-se ao seuuso.

6. Como os monetaristas acreditam que a inflação é um fenômeno essencialmente monetário, isto é, que a taxade inflação é proporcional à taxa de variação do estoque de moeda da economia, sugerem que a inflação deveser eliminada por intemédio da redução da taxa de crescimento do estoque monetário. Contudo, uma reduçãoda taxa de expansão monetária resulta em aumento da taxa corrente de desemprego em relação à taxa natural.O dilema enfrentado pelas autoridades monetárias é que quanto maior a contração monetária visando a umaredução drástica da inflação, maior será o desemprego em relação ao desemprego expresso pela taxa natural.Caso as autoridades desejem combater a inflação com menores custos sociais, terão que reduzir a inflação gra-dualmente.

TERMOS-CHAVE

� Taxa Natural de Desemprego � Taxa Corrente de Desemprego � Desemprego Friccional� Desemprego Voluntário � Unicidade do Equilíbrio � Estabilidade do Equilíbrio� Expectativas Adaptativas � Curva de Phillips � Aceleracionismo� Neutralidade Monetária � Discricionarismo e Regras � Taxa de Sacrifício

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Friedman, M. (1968). The Role of Monetary Policy. American Economic Review, março, p. 1-17.Esse é o texto mais importante para o entendimento da teoria monetarista da política monetária. Nele, Fried-

man apresenta a hipótese da taxa natural de desemprego, critica as políticas keynesianas de cunho intervencionis-ta e mostra o que a política monetária pode fazer e o que ela não pode fazer.

A Teoria da Política Monetária do Modelo Monetarista 121

Friedman, M. (1988). Inflação e desemprego: a novidade da dimensão política. In: Clássicos de LiteraturaEconômica. Rio de Janeiro: Ipea-Inpes.

Parkin, M. (1992). Adaptative Expectations. In: The New Palgrave Dictionary of Money and Finance. New-man, P., Milgate, M. & Eatwell (editors). London: Macmillan.

Snowdon, B., Vane, H. & Wynarczyk (1994). A Modern Guide to Macroeconomics. Cheltenhan: EdwardElgar.

Esse livro é bastante interessante porque dedica cada um de seus capítulos a uma escola de pensamento ma-croeconômico. Como reconhecem seus autores no prefácio, “... a moderna macroeconomia é um tema excitante econtroverso”. O capítulo 4 do livro é dedicado a apresentar a corrente monetarista. A apresentação é feita a partirde três tópicos que são centrais para o monetarismo: (i) a curva de Phillips com expectativas, (ii) a teoria quantita-tiva da moeda e (iii) a abordagem do balanço de pagamentos e a determinação da taxa de câmbio.

122 A Teoria da Política Monetária do Modelo Monetarista ELSEVIER

APÊNDICE

A MATEMÁTICA DAS EXPECTATIVASADAPTATIVAS

As expectativas adaptativas que caracterizam o modelo friedmaniano podem assumir uma forma maisgeral do que aquela apresentada neste capítulo. Os trabalhadores podem corrigir suas expectativas le-vando em consideração o erro que cometeram no último período. Em outras palavras, as expectativaspodem ser formadas com base em uma média ponderada entre a expectativa e a inflação efetiva do últi-mo período, tal como indicado a seguir:

� � ( )( � – � )P P P Pte

te

t te� � � � �� � �1 1 11 0 1� �

� � �� �( ) � �1 1 1� �P Pt te

(2)

(2’)

Quando α = 0, os trabalhadores somente levam em conta a inflação do período anterior para for-mar suas expectativas de preço. Então, tem-se que � �P Pt

et� �1 , a equação 1. O parâmetro α não pode ser

igual 1. Neste caso, os trabalhadores teriam uma expectativa de inflação constante, o que é bastanteirrealístico.

Como mostram as equações 2 e 2’, os trabalhadores em cada período formam as suas expectativascorrigindo a expectativa que formaram no período anterior por uma fração do erro que cometeram nestemesmo período. Então, por repetidas substituições das expectativas de inflação em cada período, ob-tém-se das equações 2 e 2’, o seguinte resultado:

� �( )P Pte

j

� ��

11

� � jt jP––�1 (3)

Para se obter a equação 3, basta substituir a equação 4 (abaixo) que representa as expectativas queos agentes tiveram no período t–1 em 2’. Então, substituindo-se 4, que é

� � ( )( � � )P P P Pte

te

t te

� � � �� � � �1 2 2 21 � (4)

em 2’, obtém-se:

� ( ) � [ � ( )( � � ]P P P P Pte

t te

t te� � � � � �� � � �1 11 2 2 2� � �

� � � � � � �� � � �( ) � � ( ) � ( ) �1 1 11 2 2 2� � � � � �P P P Pt te

t te

� � � � � � �� ( ) � ( ) � ( ) �P P P Pte

te

t t� � � �� � � � � �12

2 2 11 1

� � � � �22 2 11 1� ( ) � ( ) �P P Pt

et t� � �� � � �

(5)

A Teoria da Política Monetária do Modelo Monetarista 123

Com mais um passo a equação 3 será facilmente deduzida. Agora, basta substituir a equação 6 (abai-xo) que representa as expectativas que os agentes tiveram no período t–2 em 5. Então, substituindo-se6, que é

� � ( )( � � )P P P Pte

te

t te

� � � �� � � �2 3 3 31 � (6)

em 5, obtém-se:

� [ � ( )( � � ] ( )( � �P P P P P Pte

te

t te

t� � � � � � �� � � �� � � �23 3 3 21 1 t�1 )

= � � � � � � � � � �23

23

23 21 1 1� ( ) � ( ) � ( )( � �P P P Pt

ete

t t� � � �� � � � Pt�1 )

� ( )( � � � ) �P P P P Pte

t t t te� � � �� � � �1 2

3 2 13

3� � � � �

Realizando-se mais uma substituição, tais como as duas anteriores, obter-se-ia:

� ( )( � � � � ) �P P P P P Pte

t t t t t� � � � �� � � � �1 34 3 2 1 4� � � � � �� � .

Então, se infinitas substituições são realizadas, obtém-se:

� ( ) �P Pte j

jt j� � �

�1 1

1

� �

que é a equação 3.

124 A Teoria da Política Monetária do Modelo Monetarista ELSEVIER

A TEORIA DA POLÍTICAMONETÁRIA NOVO-CLÁSSICA

INTRODUÇÃO

Milton Friedman havia promovido uma grande revolução antikeynesiana du-rante as décadas de 1960 e 1970. Robert Lucas, que ganhou o Prêmio Nobelem 1995,Thomas Sargent e Neil Wallace promoveram uma nova revolução jáno final da década de 1970. Esses se voltaram parcialmente contra Friedman eradicalmente contra as ideias dos keynesianos. Contra o primeiro, basicamen-te só discordavam da forma como os agentes formam suas expectativas: no lu-gar de expectativas adaptativas, esses economistas propuseram a hipótese dasexpectativas racionais. Contra os últimos, eram radicais no ataque a qualquertipo de intervenção macroeconômica.

O objetivo deste capítulo é apresentar a teoria e as proposições da escolade pensamento econômico fundada por Lucas, Sargent e Wallace, que é de-nominada novo-clássica. Inicialmente, mostra-se que a política monetária éineficaz para alterar variáveis reais. Somente em condições especiais haveráimpacto sobre tais variáveis: se houver um choque monetário. Para se alcan-çar essa conclusão apresenta-se em detalhes o significado econômico doprocesso de formação de expectativas racionais. Apresentam-se ainda asduas propostas mais em voga que estão apoiadas na teoria novo-clássica para aorganização institucional Banco Central (BC) e o enquadramento da políti-ca monetária, que são: a tese da independência do BC e o regime de metas in-flacionárias. Este último é tratado no Capítulo 11.

10.1. A INEFICÁCIA DA POLÍTICA MONETÁRIA

A corrente novo-clássica está baseada em muitas hipóteses monetaristas.Porém, o que diferencia basicamente as ideias de Lucas das de Friedman éque o primeiro acredita que se os agentes são maximizadores de satisfação,então, eles otimizam também a utilização das informações que recebem. Istoimplica que não formam expectativas olhando unicamente para trás (back-ward-looking), mas também olham para o futuro (forward-looking). As ex-pectativas não são adaptativas, mas são, sim, do tipo que ficou conhecida

CAPÍTULO

10

como racionais. É por isso que muitos chamam a escola novo-clássica de escola das expectativas ra-cionais.1

A maior implicação dessa mudança era que tanto os modelos keynesianos quanto os monetaristasexistentes não eram capazes de oferecer resultados confiáveis sobre as possibilidades de intervençõesmacroeconômicas. Em tais modelos, as expectativas e as variáveis futuras (afetadas pelas expectativas)eram influenciadas apenas por variáveis correntes e/ou passadas. Portanto, o que os modelos obtinhameram resultados em condições inconsistentes com as premissas desses mesmos modelos. Quando osagentes estão informados de que uma política econômica será implementada, eles devem alterar suasexpectativas, alterando o resultado esperado sob condições expectacionais do passado. Essa crítica aosmodelos macroeconométricos tornou-se conhecida como a crítica de Lucas.

Ao se afirmar que as expectativas são racionais supõe-se que todo e qualquer agente possui o mes-mo modo de entender a economia e que tal modo corresponde à verdadeira forma de operação da eco-nomia. Por exemplo, todos sabem que um aumento da oferta monetária provocará inflação, tal comosugere a teoria monetarista. Assim, um aumento da oferta de moeda anunciada pelo governo representaapenas uma mensagem de que preços e salários irão se elevar; então, a única reação dos agentes deveser se antecipar elevando os preços e salários da economia. Nada mais que isto ocorre. Em outras pala-vras, uma política monetária expansionista será ineficaz para alterar variáveis reais, por exemplo, o ní-vel de emprego e o produto.

10.1.1. O MODELO DE INEFICÁCIA DA POLÍTICA MONETÁRIA

A hipótese da existência de uma taxa natural de desemprego é o ponto de partida para a construção dateoria novo-clássica de que a política monetária é ineficaz para alterar variáveis reais. Quando a taxacorrente de desemprego coincide com a taxa natural, a economia encontra-se em posição de equilíbrio.Contudo, para a economia novo-clássica, independentemente da posição da taxa corrente de desempre-go em relação à taxa natural, a economia estará sempre em equilíbrio, já que as famílias e as firmas es-tão sempre agindo racionalmente, isto é, buscando maximizar, respectivamente, satisfação e lucro. Emoutras palavras, estão tomando decisões coerentes com os seus objetivos.

É através do estudo da chamada função oferta de Lucas, apresentada a seguir, que pode-se mostrarpor que a política monetária é ineficaz quando o objetivo do governo é reduzir a taxa corrente de desem-prego (Ut) em relação à taxa natural (Un). A equação 1 representa a função oferta de Lucas:

Ut = Un – ( � – � )P Pt te > 0 (1)

em que �Pt é a inflação no período t, �Pte é a inflação esperada para esse mesmo período e α é um parâme-

tro positivo. A função oferta de Lucas poderia ser representada por uma fórmula mais ampla que a equa-ção 1, por exemplo:

Ut = Un – ( � – � )P Pt te + (1a)

em que o termo β representa todos os outros fatores não monetários capazes de afastar a taxa de desem-prego corrente da taxa natural, tais como choques tecnológicos. Contudo, optou-se por utilizar uma for-ma mais restrita, a equação 1, dado o escopo do tema em discussão que refere-se exclusivamente àsvariáveis preço, moeda e expectativas.

126 A Teoria da Política Monetária Novo-Clássica ELSEVIER

1. O leitor deve, porém, ter cuidado: outras correntes de pensamento econômico também acabaram por adotar a hipótese de ex-pectativas racionais em seus trabalhos.

Pela equação 1, a taxa corrente de desemprego é igual à taxa natural quando a realidade confirma asexpectativas de inflação. No modelo novo-clássico, as esperanças sobre variações do nível de preçossão construídas de acordo com a hipótese das expectativas racionais (que é apresentada no Box 10.1),tal como mostra a equação 2:

�Pte = E ( �Pt / It–1) (2)

que deve ser lida da seguinte forma: a esperança de inflação para o período t leva em consideração todasas informações, I, obtidas até o período imediatamente anterior, t–1.

A Teoria da Política Monetária Novo-Clássica 127

John Muth, em seu artigo intitulado RationalExpectations and the Price Movements, pu-blicado na Econometrica em 1961, sugeriuque quando os agentes formam expectati-vas, eles o fazem construindo uma distribui-ção subjetiva de probabilidades para des-crever o comportamento da variável quedesejam prever. Pela hipótese de expectati-vas racionais esta distribuição subjetiva deprobabilidades deve coincidir com a distri-buição objetiva de probabilidades que efeti-vamente rege o comportamento daquelavariável. Cada agente forma uma funçãoprobabilidade para o evento que necessitaser previsto. Tal função probabilidade sub-jetiva baseia-se em todas as informaçõesque estão disponíveis. Como a informaçãoestá disponível para todos, isto significa quetodos construirão a mesma função probabi-lidade. Logo, as expectativas de todos osagentes são iguais, então, são ditas homo-gêneas. As expectativas são chamadas deracionais se são construídas através desseprocesso e não se são confirmadas pela rea-lidade, já que nem todas as informaçõespodem estar disponíveis, o que implicariadecepção de expectativas.

Um agente racional não comete o mes-mo erro sistematicamente. Isto implica quequalquer evento repetitivo permite ao agen-te ajustar a sua função probabilidade subje-tiva à função probabilidade real. Mesmoquando uma nova variável é introduzida nomodelo real, o que dificultará a confirmaçãodas expectativas, ainda assim as expectativassão consideradas racionais, pois o agentemaximizou a utilização da informação sobreas variáveis disponíveis. Por exemplo, nãoformam expectativas racionais os agentesque não sabem qual a implicação de um au-mento do estoque monetário, dado que esta

informação está disponível. Os agentes quesomente olham para trás preveem a inflaçãocom base na inflação e expectativas passa-das e não com base em uma informação so-bre a variação futura do estoque de moeda.Este processo de formação de expectativasnão é considerado racional pelos teóricos donovo-classicismo.

Não importa aos teóricos novo-clássicosse, de fato, os agentes conhecem a teoriaeconômica que, segundo eles, é capaz deexplicar os fenômenos reais. O que importaé que os agentes agem como se soubessemtal teoria. Por exemplo, para se saber o diaem que é seguro levar o guarda-chuva parao trabalho não é necessário conhecer avan-çados modelos de previsão meteorológicos.O mesmo pode ser dito em relação à eco-nomia. Não é necessário conhecer a teoriaquantitativa da moeda para se saber queum aumento do estoque de moeda provocainflação. Basta reagir elevando os preços eos salários todas as vezes que o governo in-flar a economia com moeda.

Robert Lucas, em seu livro Studies in Bu-siness – Cycle Theory, publicado em 1981pela MIT Press, reconheceu que a soluçãoapresentada por John Muth não é aplicávela situações em que emergem incertezas dotipo Keynes-knightianas, que se referem aprocessos que tendem a não ser repetiti-vos. O pós-keynesiano Paul Davidson, emseu artigo chamado Reviving Keynes’ Revo-lution, publicado em 1984 no Journal ofPost Keynesian Economics, mostrou que asdecisões econômicas mais relevantes, taiscomo as decisões de investimento, se dãoem ambientes cujas características tendema mudar com o passar do tempo. Tais am-bientes foram chamados por Davidson denão ergódicos.

O QUE SÃO EXPECTATIVAS RACIONAIS?

BO

X1

0.1

As informações são processadas pelos agentes tendo como base o verdadeiro modelo que afeta ospreços em uma economia que, segundo os monetaristas e os novo-clássicos, é:

�Pt = �M t + dt (3)

em que �M t é a variação do estoque de moeda e d é um aumento não esperado de demanda pelo produtono período t.

Então, as expectativas de variação do nível de preços estão diretamente relacionadas com as expec-tativas de variação do estoque monetário, como mostra a equação 4:

� �P Mte

te� (4)

em que �M te é a variação esperada do estoque monetário para o período t.

Das equações 2, 3 e 4 tem-se que se os agentes conhecem a regra de variação do estoque monetário,isto é, se � �M Mt

et� e supondo-se dt = 0, então, jamais haveria decepção de expectativas de preços. E,

substituindo-se as equações 3 e 4 na função 1, obtém-se:

Ut = Un – ( � – �M Mt te ) (5)

que indica que a taxa corrente de desemprego seria sempre igual à taxa natural se os agentes conheces-sem a regra de variação do estoque monetário e se não houvesse nenhum choque de demanda.

Pode-se, portanto, concluir que, segundo a teoria da política monetária novo-clássica, partindo-sede uma situação em que a taxa corrente de desemprego é igual à taxa natural e o governo anuncia um au-mento da oferta de moeda, os agentes reagiriam à decisão das autoridades exclusivamente aumentandoos seus preços, sem contratar qualquer trabalhador adicional. Assim, a taxa corrente de desempregopermaneceria repousada sobre a taxa natural. Em outras palavras, as decisões de políticas monetáriasexpansionistas conhecidas pelos agentes não provocam qualquer aumento no nível de emprego e doproduto real – causam simplesmente aumento do nível geral de preços equivalente ao aumento do esto-que de moeda. Esse modelo de ineficácia da política monetária é uma versão simplificada do modeloapresentado originalmente por Thomas Sargent e Neil Wallace em seu artigo Rational Expectationsand the Theory of Economic Policy, publicado em 1975.

10.2. A EFICÁCIA DA POLÍTICA MONETÁRIA DE SURPRESA

Sargent e Wallace mostraram, contudo, que unicamente as políticas monetárias que causam surpresapoderiam provocar efeitos reais na economia. Para tanto, bastaria que o governo adotasse um procedi-mento de expansão monetária, tal como a da função a seguir:

�M t= ψ (Ut–1 – Un) + φ (6)

em que ψ é um parâmetro positivo e φ é um elemento de política monetária somente conhecido pelosgovernantes e eventualmente utilizado. Logo, os agentes racionais formariam suas expectativas devariação do estoque monetário com base na regra conhecida, isto é, de acordo com a função a seguir:

�M te = ψ (Ut–1 – Un) (7)

Substituindo-se as equações 6 e 7 em 5, tem-se:

Ut = Un – > 0 (8)

128 A Teoria da Política Monetária Novo-Clássica ELSEVIER

A equação 8 mostra que a taxa corrente de desemprego somente não coincidirá com a taxa naturalquando o elemento φ for acionado pelos governantes, causando surpresa aos agentes porque, dessa for-ma, haverá decepção das expectativas de variação do estoque monetário e, consequentemente, de varia-ção do nível de preços. Portanto, qualquer conjunto de decisões individuais que possa afastar a econo-mia da taxa natural é necessariamente fruto de erros expectacionais. No modelo novo-clássico, agentesprivados erram porque são surpreendidos. A surpresa é sempre fruto da introdução de novas variáveisno mundo real ou da alteração inesperada da magnitude de variáveis já existentes. No caso de interven-ções monetárias discricionárias, a surpresa ocorre em função de alterações não antecipadas do estoquede moeda, que resultam em erros expectacionais e, consequentemente, em alguma discrepância entre ataxa de desemprego corrente e a taxa natural. Existem, contudo, economistas novo-clássicos que ava-liam que é impossível surpreender os agentes e que, portanto, a moeda é superneutra. Suas ideias sãoapresentadas de forma resumida no Box 10.2.

10.3. A CURVA DE PHILLIPS DE LUCAS E A MELHOR POLÍTICA

MONETÁRIA

Os empresários, com restrição informacional devido à utilização do elemento surpresa (φ) por parte dogoverno, ainda que formando expectativas racionais, entenderiam incorretamente o movimento de pre-ços decorrente de uma variação positiva do estoque monetário e expandiriam a sua produção contratan-do mais trabalhadores. Entenderiam que o aumento de preços não estaria sendo provocado por umaumento de oferta monetária, mas sim por um real aumento de demanda por seus produtos. Assim, esta-

A Teoria da Política Monetária Novo-Clássica 129

Até o início da década de 1980, a teoria novo-clássica era representada exclusivamentepelo modelo Sargent-Lucas, em que a surpresa monetária, isto é, a inflação não anteci-pada, era capaz de explicar as mudanças bruscas de patamar das variáveis reais. Essa eraa teoria novo-clássica que poderia ser chamada de teoria dos ciclos monetários. Poste-riormente, uma nova vertente novo-clássica mais radical surgiu. É a chamada teoria dosciclos reais, que tem como um dos seus maiores expoentes o economista americanoCharles Plosser.

Segundo Plosser, a capacidade dos governantes de implementar políticas de surpresadesaparece. Isto ocorre porque existe um modelo para orientar a tomada de decisão dosgovernantes que se torna conhecido por todos. Se os agentes formam expectativas racio-nais, incorporam também o modelo decisório dos dirigentes do Banco Central. Assim, asflutuações do produto não podem ser explicadas pela falta de informação. A equação 1a',reapresentada com a restrição apontada a seguir, sintetiza a ideia central da teoria dosciclos reais:

Ut = Un – � ( � � )P Pt te� � β restrição: � �P Pt t

e� � 0 (1a’)

Se não há decepção de expectativas de preços, a moeda torna-se superneutra. A ex-plicação dada pela teoria dos ciclos reais é que variações do produto e do emprego sãodecorrentes de choques tecnológicos e não de choques monetários. Os choques estão dolado da oferta e não do lado da demanda. Por exemplo, variações do produto podem serexplicadas por choques naturais (terremotos, enchentes etc.), mudanças de preços daenergia (preço do petróleo), problemas sociais e políticos (guerras, greves etc.) e choquesde produtividade. Este último é considerado o mais importante.

A SUPERNEUTRALIDADE DA MOEDA NA TEORIADOS CICLOS REAIS

BO

X1

0.2

riam estimulados a contratar mais trabalhadores, já que a regra de maximização de lucros que é pratica-da é: receita marginal é igual ao custo marginal. Se a receita marginal (isto é, o preço do produto)aumentou, pode aumentar o custo marginal (ou seja, o salário do trabalhador). Dessa forma, os empre-sários poderiam oferecer aos trabalhadores voluntariamente desempregados um salário real esperadomaior do aquele que rejeitam, dada a satisfação propiciada pelo lazer. Com todas as firmas contratandomais trabalhadores, a taxa corrente de desemprego seria menor do que a taxa natural.

Transcorrido o tempo necessário ao entendimento do verdadeiro movimento das variáveis estoquede moeda e preços por parte do conjunto de agentes da economia, parte dos trabalhadores retornaria àcondição de desempregados voluntariamente e a produção se reduziria para o patamar original corres-pondente à taxa natural de desemprego. Os trabalhadores perceberiam que o salário nominal maior nãosignificou um aumento real de salários e empresários perceberiam que o aumento de preços não era re-lativo a seu favor, mas sim que era um aumento absoluto e neutro. Consequentemente, a taxa correntede desemprego retorna ao seu nível considerado natural.

Essa dinâmica macromonetária pode ser também descrita por uma função oferta agregada e pelacurva de Phillips vertical versão Lucas (no Apêndice do capítulo é apresentada a evolução histórica eteórica da curva de Phillips). A curva de oferta vertical SLP do Gráfico 10.1 indica que no longo prazo,que é a situação em que, por definição, inexistem choques (de demanda ou monetário), o produto daeconomia é gerado pela quantidade de trabalhadores que estão empregados quando a taxa de desempre-go é igual à taxa natural. Portanto, no longo prazo, o produto da economia não pode ser alterado por in-termédio de políticas macroeconômicas. No mesmo gráfico, a curva de oferta SCP positivamente incli-nada indica que no curto prazo, que é a situação em que a economia pode sofrer, por exemplo, um cho-que de política monetária, o produto pode ser maior que o produto Y*. A política monetária pode alteraro produto somente no curto prazo.

Uma expansão monetária que utiliza o elemento surpresa de política (da equação 6) desloca a curvade demanda (de D para D’). Dessa forma, o produto aumenta de Y* para Y’. O Gráfico 10.2, que mostraa curva de Phillips versão Lucas, indica que a expansão monetária é capaz de reduzir o desemprego (deUn para U’) somente temporariamente. O Gráfico 10.1 também denota que a expansão monetária elevao nível de preços da economia. Quando tal elevação do nível de preços é percebida por empresários etrabalhadores, a produção é reduzida (a curva de oferta vai de SCP para SCP’) e o desemprego volta aoseu ponto original equivalente à taxa natural (de U’ para Un).

A economia novo-clássica sugere que o governo deve abster-se de implementar qualquer políticamonetária que não se paute por regras plenamente conhecidas e que, portanto, causam efeitos sobre asvariáveis reais da economia. Essa possibilidade de afetar as variáveis reais através do uso da políticamonetária é um incentivo à realização de políticas de surpresa, que criam um ambiente de incertezas edesconfianças em relação ao comportamento do governo. Se os agentes estão convictos de que o gover-no vai realizar uma política monetária expansionista, os preços da economia são reajustados. Neste

130 A Teoria da Política Monetária Novo-Clássica ELSEVIER

E1

Ex

E0

Y

D

D’

SCP

SLP

Y* Y’

SCP’P

GRÁFICO 10.1Curvas de Oferta de Curto e Longo Prazos

E1

Ex

E0

Un UU’

P.

GRÁFICO 10.2Curva de Phillips Vertical – Versão Lucas

caso, resta ao governo corroborar as expectativas para evitar a escassez de liquidez e, consequentemen-te, provocar uma recessão. Essas convicções altistas dependem diretamente do comportamento pre-gresso dos governantes. Se estes tenderam a surpreender os agentes no passado, terão que pagar peladesconfiança do público no futuro, tendo que administrar uma economia com a taxa corrente de desem-prego igual à taxa natural e com inflação.

A conclusão é, então, que é melhor não tentar enganar os agentes para não criar um ambiente de ex-pectativas inflacionárias nervosas, que têm como consequência a própria inflação. Sendo assim, muitosadeptos da economia novo-clássica se dedicaram nos últimos anos à elaboração de propostas de organi-zação do Banco Central e de condução da política monetária capazes de reduzir os estímulos à imple-mentação de políticas de surpresa monetária. As mais importantes propostas são a criação de bancoscentrais independentes e a utilização de metas de inflação como objetivo da política monetária. Taispropostas são discutidas logo a seguir e também no próximo capítulo.

10.4. A TESE DA INDEPENDÊNCIA DOS BANCOS CENTRAIS

Depois da onda inflacionária que agitou os países industrializados durante a década de 1970 e, particu-larmente, depois da assinatura do Tratado de Maastricht de unificação da Europa, surgiu uma volumosaliteratura em defesa da tese da independência dos bancos centrais (doravante IBC). Inúmeros artigossobre o assunto têm sido publicados nas mais importantes revistas especializadas em economia domundo. Ademais, esta proposição teórica tem tomado forma concreta nos fóruns políticos. A discussãopenetrou nos parlamentos e alguns países têm, de fato, aprovado leis que dão maior autonomia aos seusbancos centrais como, por exemplo, a Nova Zelândia e o Canadá.

Dentro da vasta literatura de defesa da tese da IBC, os trabalhos de Charles Goodhart e de AlexCukierman são os mais importantes. Este último elaborou diversos critérios com a intenção de medirquantitativamente o grau de autonomia das autoridades monetárias. Em outras palavras, criou um mé-todo de avaliação do grau de independência dos bancos centrais. O artigo Measuring the Independenceof Central Banks and its Effects on Policy Outcomes, elaborado em conjunto com S. Webb e B. Neyaptie publicado em 1992, resume grande parte dos estudos desse autor sobre o assunto.

Segundo Cukierman, existem três formas para se avaliar o grau de independência de um BancoCentral. O primeiro é o grau de rotatividade dos dirigentes. Quanto maior é o tempo de permanência doseu presidente, maior é o grau de independência. O autor, entretanto, impôs restrições a esse critério deavaliação. Reconheceu que um presidente pode permanecer por muitos anos à frente de um Banco Cen-tral sem que este fato seja um indicador de um grau de independência elevado. Um presidente pode sersubserviente às diretivas governamentais e, exatamente por este motivo, ser mantido no cargo por umlongo tempo.

O segundo critério são os estatutos do Banco Central que estabelecem o seu objetivo e os limitespara a interferência do executivo sobre a política monetária. A análise dos estatutos também é conside-rada por Cukierman com reservas. Primeiro, porque as leis são incompletas, isto é, não podem especifi-car com precisão regras claras de relação entre o Banco Central e o governo para todas as contingênciaspossíveis. Como consequência, os vácuos são preenchidos, por exemplo, pela força política. Em segun-do lugar, mesmo quando a lei é bastante detalhada, a prática real pode se afastar das regras estatutárias.O terceiro instrumento utilizado para medir o grau de independência é um questionário sobre os objeti-vos do Banco Central e sua relação com o governo, que é enviado a especialistas de cada país. Sobreeste critério, o autor parece demonstrar maior confiança, embora o índice que elaborou seja uma médiadas três medidas apresentadas.

Trabalhos empíricos, tais como os de Cukierman e seus dois colegas, atingem o seu ápice quandoestabelecem correlações (negativas) elevadas entre grau de independência e taxas de inflação dos últi-mos anos de diversos países. Alguns testes dessa natureza foram realizados. Por exemplo, A. Alesina eL. Summers, em seu artigo “Central Bank independence and macroeconomic performance: some com-

A Teoria da Política Monetária Novo-Clássica 131

parative evidence” publicado no periódico Journal of Money, Credit and Banking, em 1993, relaciona-ram o grau de independência dos bancos centrais de 14 países com a média das taxas de inflação do pe-ríodo 1955-88 destas economias. Como indica o Gráfico 10.3 construído pelos autores, existe um altograu de correlação entre as variáveis analisadas. Neste sentido, o argumento-chave de defesa da tese daIBC, hoje em dia, é a existência desses gráficos que mostram que quanto maior o grau de independênciado Banco Central, menor tende a ser a taxa de inflação.

Os defensores da tese da IBC reconhecem que são os pilares teóricos da economia novo-clássicaque sustentam a sua proposição. Goodhart reconhece que a curva de Phillips de longo prazo verticalcompõe os fundamentos teóricos da proposta de independência. Cukierman considera que políticasmonetárias discricionárias-ativas podem somente temporariamente reduzir a taxa de desemprego. Ocusto da melhoria temporária de variáveis reais é, contudo, a inflação. Segundo os novos clássicos, o re-sultado final de qualquer política monetária-ativa é sempre nulo: a economia retorna à posição originalde equilíbrio onde vigora a taxa natural de desemprego. Logo, Goodhart concluiu em seu artigo “WhatShould Central Banks do? What Should Be Their Macroeconomic Objetives and Operations?”, publi-cado no The Economic Journal, em 1994, que “...o melhor resultado sustentável que as autoridades po-dem alcançar através da política monetária é a estabilidade de preços”.

Cukierman, Webb & Neyapti esclareceram que a independência de um Banco Central não signi-fica tão-somente autonomia para realizar políticas monetárias sem a interferência do governo central;significa acima de tudo independência para perseguir o objetivo da estabilidade de preços, mesmoque esta busca represente sacrificar outros objetivos que podem ser mais importantes para as autori-dades políticas. Os proponentes da tese da IBC têm argumentado que um Banco Central independen-te deve assumir a tarefa estatutária única de guardião da estabilidade do poder de compra da moeda.Goodhart afirmou que se a política monetária possui mais de um objetivo e estes caracterizam umprocesso de escolha onde emerge um trade-off (inflação e desemprego, por exemplo), então, a deci-são sobre os rumos monetários será certamente uma decisão política – tomada fora do Banco Central.Consequentemente, nestes casos, o Banco Central tende a ser mais subserviente, portanto, menos au-tônomo. Segundo Goodhart, “maior autonomia é mais provável que ocorra quando os bancos centra-is buscam alcançar um único resultado macro, tal como a manutenção do padrão-ouro até 1914 ou aestabilidade dos preços hoje”.

Em suma, independência do Banco Central tem um claro significado para os seus proponentes:plena liberdade de ação para as autoridades monetárias com o objetivo único de combater a inflação.A base teórica dessa proposição são as relações fundamentais da curva de Phillips expectacional: amoeda não é capaz de alterar as variáveis reais da economia de forma definitiva; assim, a taxa naturalde desemprego prevalecerá na ausência de erros expectacionais. A proposição da IBC apoia-se tam-bém nas discussões estabelecidas em torno do trinômio credibilidade-reputação-delegação que é dis-cutido a seguir.

132 A Teoria da Política Monetária Novo-Clássica ELSEVIER

0

109876543210

0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4

Grau de Independência

Taxasde

Inflação

GRÁFICO 10.3Grau de Independência Taxa de inflaçãoFonte: Alesina & Summers (1993).

10.5. O TRINÔMIO CREDIBILIDADE-REPUTAÇÃO-DELEGAÇÃO

A tese da IBC tem se desenvolvido em torno do trinômio credibilidade-reputação-delegação estabeleci-do por alguns teóricos novo-clássicos. Afirmam os proponentes da IBC que existe um viés inflacioná-rio presente na economia que se expressa através da implementação de políticas monetárias que sãodinamicamente inconsistentes com a posição de equilíbrio correspondente à taxa natural de desempre-go. Os gestores da política econômica podem circunstancialmente avaliar que resultados imediatos epassageiros sobre o nível de produto são mais valiosos do que a credibilidade nas regras de política mo-netária. Motivados, por exemplo, por interesses eleitorais, podem flexibilizar a política monetária comações discricionárias expansionistas. Neste caso, os gestores implementam uma política monetária di-namicamente inconsistente e, consequentemente, perdem reputação perante os agentes privados. O ter-mo reputação deve ser entendido como a quantidade de graus de confiança dos agentes nos dirigentesdo Banco Central, a qual deve ser medida em relação ao seu comportamento pregresso. A tese da IBCobjetiva delegar a política monetária a um agente que mantenha a sua reputação, a credibilidade nas re-gras monetárias e, consequentemente, mantenha a inflação em patamar aceitável e reduza a variabilida-de do produto.

É importante destacar que, se as autoridades monetárias têm elevada reputação e suas políticas sãoconsideradas críveis, os custos da desinflação serão nulos. Sob essas circunstâncias favoráveis, se asautoridades monetárias anunciam que eliminarão a variação do estoque de moeda que causa a inflaçãoque deve ser anulada, os agentes acreditarão que tal política será implementada e desistirão de reajustarseus preços e salários – aceitando a eliminação da inflação existente. Os salários reais não se alterarão,dado que preços e salários não serão mais reajustados e o desemprego permanecerá compatível com onível da taxa natural. Em conclusão, se as autoridades possuem elevada reputação e os agentes acredi-tam que a política monetária contracionista anunciada será implementada, a desinflação ocorrerá semcustos sociais e sem perda de tempo, o que é um resultado bastante diferente das políticas anti-inflacio-nárias sugeridas pelo monetarismo friedmaniano (descritas no capítulo anterior). Tal conclusão no-vo-clássica reforça a tese de que o Banco Central deve ser independente.

Os mais interessantes trabalhos que sugerem formas de delegação da política monetária para con-ter o viés inflacionário são de K. Rogoff e de C. Walsh. Segundo Rogoff, se a política monetária for de-legada a um agente cujas preferências sejam mais avessas à inflação do que as preferências da socieda-de, seria possível sustentar uma taxa de variação do nível de preços mais baixa do que aquela que ocor-reria se o presidente do Banco Central tivesse as mesmas preferências sociais. Logo, um presidente doBanco Central com tais preferências reduziria as perdas de bem-estar social associadas a eventosinflacionários e à instabilidade do produto. Em suma, Rogoff sugere um presidente do Banco Centralconservador em relação às preferências sociais. Um presidente que necessariamente deve dirigir umaentidade independente para que possa fazer prevalecer suas decisões monetárias.

Walsh sugere que seja estabelecido um contrato entre o Banco Central e o governo. Esse contratodeve impor custos (perda do cargo, por exemplo) ao presidente do Banco Central e à sua diretoria quan-do a inflação ultrapassar o nível considerado ótimo pelo governo e/ou parlamento. Nesta abordagem, oBanco Central tem que ser independente para que seus dirigentes possam, sem restrições, tentar atingirseu objetivo: a taxa de inflação ótima (grafada em contrato) e, consequentemente, a manutenção dosseus empregos, salários e imagem profissional. Ademais, o Banco Central deve ser independente por-que contratos são necessariamente assinados entre partes, que por definição são independentes.

Segundo Stanley Fischer, em seu artigo Central-Bank Independence Revisited publicado na Ameri-can Economic Review, em 1994, o modelo Rogoff pode ser definido como um esquema de Banco Cen-tral com independência de objetivos e instrumentos, e o modelo Walsh como um esquema de BancoCentral com independência de instrumentos. No primeiro modelo, o Banco Central tem liberdade paradefinir a sua meta quantitativa de inflação e pode utilizar os instrumentos monetários com plena auto-nomia. No segundo modelo, o Banco Central pode livremente utilizar os instrumentos de política mo-netária visando a alcançar a taxa de inflação preestabelecida em contrato. Em ambos os arranjos, a teseda independência do Banco Central surge como decorrência do trinômio credibilidade-reputação-

A Teoria da Política Monetária Novo-Clássica 133

delegação e a questão central é a tentativa de se eliminar a possibilidade de implementação de políticasmonetárias consideradas dinamicamente inconsistentes. Em um caso tenta-se limitar as ações dos diri-gentes do Banco Central estabelecendo uma meta de inflação contratual; no outro, indica-se um presi-dente do Banco Central com comportamento conservador.

O modelo Walsh tem sido considerado mais adequado pelos adeptos da tese da IBC, isto é, possuivantagens sobre o modelo Rogoff. Sob as condições desse último modelo, todo candidato ao cargo depresidente do Banco Central tende a se mostrar mais anti-inflacionista do que realmente pode ser, poisisto é um pré-requisito para a manutenção das suas chances eleitorais. Assim, os candidatos tendem anão se diferenciar no quesito que é o mais importante. E, posteriormente, podem decepcionar o colégioeleitoral que o conduziu ao cargo revelando suas verdadeiras preferências, ou seja, conduzindo a políti-ca monetária de forma flexível, isto é, quebrando a credibilidade nas regras monetárias. Já o modeloWalsh está isento de influências subjetivas, tais como a personalidade ou as preferências inflacionáriasdos dirigentes do Banco Central, porque estabelece uma meta de inflação que deve ser perseguida pelosgestores da política monetária e, ao mesmo temo, estabelece uma punição aos mesmos caso a meta nãoseja alcançada. No Box 10.3 são apresentados alguns argumentos contrários à tese da IBC.

RESUMO

1. A corrente novo-clássica está baseada em muitas hipóteses monetaristas. O que diferencia basicamente asideias de Lucas das de Friedman é que o primeiro acredita que se os agentes são maximizadores, então, maxi-mizam também a utilização das informações que recebem. Isto implica que não formam expectativas olhandounicamente para trás (backward-looking), mas também olham para a frente (forward-looking). As expectati-vas não são adaptativas, mas são do tipo que ficou conhecida como racionais. É por isso que muitos chamam aescola novo-clássica de escola das expectativas racionais.

ELSEVIER134 A Teoria da Política Monetária Novo-Clássica

Inicialmente é importante ressaltar quenem todos os economistas que acreditamna existência de uma taxa natural de de-semprego e na curva de Phillips com ex-pectativas defendem a tese da IBC. Porexemplo, Milton Friedman opõe-se radi-calmente à tese. Ele avalia que é perigosoconceder a alguns indivíduos a liberdadepara acionar sem qualquer restrição ins-trumentos tão poderosos como são os ins-trumentos de intervenção monetária. Seassim fosse, seria dado a alguns a possibi-lidade de interferir sobre a vida de todos.Friedman sugere que no lugar da liberda-de monetária sejam estabelecidas regrasde expansão do estoque monetário. As-sim, indiretamente se controlaria o nívelde preços.

Os velhos economistas keynesianos,como James Tobin, e os pós-keynesianostambém são contrários à tese da IBC.Argumentam que a política monetária temefeito não somente sobre as variáveis no-

minais, mas também sobre as variáveisreais da economia. Portanto, a políticamonetária deve ser acionada de formacoordenada e não independente dasdemais políticas econômicas. O seu ob-jetivo deveria ser não exclusivo, isto é,controlar tão-somente a inflação, mastambém reduzir o desemprego. Dessaforma não há qualquer sentido em subu-tilizar a política monetária aprisionan-do-a em um Banco Central independenteque possui somente objetivos nominais.Tobin, no seu livro Essays in Economics,publicado em 1996 pela MIT Press, escre-veu: “Tenho argumentado que as autori-dades monetárias não deveriam, em ver-dade, não podem fugir da responsabili-dade por resultados macroeconômicosreais. E, para evitar mal-entendido, afir-mo com toda clareza que não estou advo-gando que elas não se preocupem comresultados nominais, níveis de preços etaxas de inflação.”

OS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À TESE DA IBC

BO

X1

0.3

2. Ao se afirmar que as expectativas são racionais, supõe-se que todo e qualquer agente possui o mesmo modo deentender a economia e que tal modo corresponde à verdadeira forma de operação da economia. Assim, um au-mento da oferta de moeda anunciado pelo governo representa apenas uma mensagem de que preços e saláriosirão se elevar, então, a única reação dos agentes deve ser se antecipar elevando os preços e salários da econo-mia. Nada mais que isto ocorre. Em outras palavras, uma política monetária expansionista será ineficaz paraalterar variáveis reais, por exemplo, o nível de emprego e de produto.

3. A taxa corrente de desemprego somente não coincidirá com a taxa natural quando os governantes implemen-tarem uma política monetária de surpresa porque, dessa forma, haverá decepção das expectativas de variaçãodo estoque monetário e, consequentemente, de variação do nível de preços. Portanto, qualquer conjunto dedecisões individuais que possa afastar a economia da taxa natural é necessariamente fruto de erros expecta-cionais. No modelo novo-clássico, os agentes privados erram porque são surpreendidos. A surpresa é semprefruto da introdução de novas variáveis no mundo real ou da alteração inesperada da magnitude de variáveis jáexistentes.

4. Muitos adeptos da economia novo-clássica se dedicaram nos últimos anos à elaboração de propostas de orga-nização do Banco Central e de condução da política monetária capazes de reduzir os estímulos à implementa-ção de políticas de surpresa monetária. As mais importantes propostas são a criação de bancos centraisindependentes e a utilização de metas de inflação como objetivo da política monetária.

5. A independência de um Banco Central não significa tão-somente autonomia para realizar políticas monetáriassem a interferência do governo central. Significa, acima de tudo, independência para perseguir o objetivo daestabilidade de preços, mesmo que esta busca represente sacrificar outros objetivos que podem ser mais im-portantes para as autoridades políticas. Os proponentes da tese da IBC têm argumentado que um Banco Cen-tral independente deve assumir a tarefa estatutária única de guardião da estabilidade do poder de compra damoeda.

TERMOS-CHAVE

� Expectativas Racionais� Curva de Phillips de Lucas� Choque/Surpresa Monetária� Delegação Monetária

� Crítica de Lucas� Neutralidade Monetária� Independência do BC� Credibilidade

� Curva de Oferta de Lucas� Reputação

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Cukierman, A., Webb, S., Neyapti, B. (1992). Measuring the Independence of Central Banks and its Effects onPolicy Outcomes. World Bank Economic Review, vol. 6, September, p.353-398.

Esse é o artigo que sintetiza as ideias de Cukierman sobre a tese da independência do Banco Central. Nele, osseus autores avaliam também o grau de independência de inúmeros bancos centrais de países desenvolvidos e emdesenvolvimento. A defesa da independência com argumentos teóricos, detalhadamente apresentados, é feita porCukierman em seu livro Central Bank Strategy, Credibility and Independence, publicado em 1992 pela MITPress.

Humphrey, T. (1986). A History of the Phillips Curve. Virginia: Federal Reserve Bank of Richmond.Humphrey busca mostrar na primeira parte do seu artigo que a ideia contida na teoria da curva de Phillips já es-

tava presente nas obras de David Hume (1711-1776), Henry Thornton (1760-1815), Irving Fisher (1867-1947),entre outros. Na segunda parte do texto, apresenta de forma bastante didática a evolução da teoria que sustenta acurva de Phillips e as implicações para a política monetária resultantes desta evolução.

Sargent, T. & Wallace, N. (1981) Rational Expectations and the Theory of Economic Policy. In: Lucas, R. &Sargent, T.(eds). Rational Expectations and Econometric Practice, Minneapollis: University of Minnesota Press.

A Teoria da Política Monetária Novo-Clássica 135

APÊNDICE

A ORIGEM E A EVOLUÇÃODA CURVA DE PHILLIPS

A. W. Phillips, que deu nome à curva, publicou em 1958 na revista Economica o artigo intitulado TheRelation between Unemployment and the Rate of Change of Money Wage Rates in the United Kingdon– 1861-1913, que era um trabalho meramente empírico. Phillips traçou um gráfico em que no eixo ver-tical estava representada a taxa de variação dos salários nominais e, no eixo horizontal, a taxa de desem-prego, no período 1861-1913. O Gráfico 10.4 mostra a relação encontrada por Phillips. Existia,certamente, alguma intuição teórica que orientou o seu trabalho. Entretanto, tal orientação não foi sufi-cientemente desenvolvida. A principal conclusão de Phillips foi tão-somente que havia uma relação hi-perbólica entre as variáveis analisadas.

Paul Samuelson e Robert Solow, economistas velhos-keynesianos, repetiram o exercício de Phil-lips para os Estados Unidos, utilizando os dados de 1900 a 1960. Entretanto, eles promoveram uma li-geira modificação no exercício original. Relacionaram inflação, ao invés da taxa de variação dos saláriosnominais, com a taxa de desemprego. Eles publicaram o resultado da sua pesquisa no ano de 1960, naAmerican Economic Review no artigo Analytical Aspects of Anti-inflation Policy, em que batizaram arelação estudada de Curva de Phillips. O Gráfico 10.5 mostra os resultados encontrados por Samuelsone Solow.

Assim, os dois economistas americanos concluíram que a inclinação negativa da curva de Phil-lips indicava que um aumento do nível de desemprego poderia moderar ou eliminar o aumento depreços. A teoria da curva de Phillips não vislumbrava nenhum cenário de reduzido desempregocom reduzida inflação. Existia, portanto, um dilema de escolha para a sociedade entre um nível dedesemprego e um nível de inflação. Excetuando períodos como o da Grande Depressão, os gover-nantes e sociedades dos diversos países poderiam escolher inúmeras combinações de desemprego einflação. Poder-se-ia atingir baixo desemprego à custa de uma inflação alta ou uma reduzida infla-ção à custa de um alto desemprego.

Durante a gestão da equipe econômica velho-keynesiana nos anos 60, nos Estados Unidos, a políti-ca macroeconômica foi orientada para a escolha do melhor ponto da curva de Phillips. Utilizando-se

136 A Teoria da Política Monetária Novo-Clássica ELSEVIER

D (%)

Taxa

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8

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-40 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

GRÁFICO 10.4A Relação Hiperbólica Encontrada por Phillips

dessa versão modificada da curva, Samuelson e Solow aconselharam o Governo americano a alcançarum desemprego de 4% que, segundo eles, era compatível com uma taxa de inflação menor que 3% aoano. Logo, a busca velho-keynesiana pelo pleno emprego significava na prática algum nível de desem-prego. Dessa forma, a administração de John Kennedy anunciou em 1962 uma meta de 4% para o de-semprego. A meta de 4% tornou-se, através de repetição nos meios de comunicação, a meta de plenoemprego. A relação sugerida pelos dois economistas americanos também ocorreu durante a década de1960, como mostra o Gráfico 10.6.

A partir de 1970, a relação entre desemprego e inflação na economia americana desapareceu, talcomo mostra o Gráfico 10.7. A nuvem de pontos demonstra que a relação encontrada entre a inflação eo desemprego poderia ter sido casual ou que não mais existiria. Como pode ser observado, em algunsperíodos, a relação entre a inflação e o desemprego é positiva, isto é, quando o desemprego aumentou, ainflação também aumentou – conformando a situação que ficou conhecida como estagflação. Os ve-lhos-keynesianos, Paul Samuelson e Robert Solow, não apresentaram nenhuma resposta para o proble-ma. É nesse contexto da ciência econômica e diante dessa conjuntura americana que entraram em cenaos argumentos elaborados por Milton Friedman, os quais são apresentados a seguir.

A Teoria da Política Monetária Novo-Clássica 137

-1

0

1

2

3

4

5

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7

8

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10

11

1 2 3 4 5 6 7 8 9

Taxa de Desemprego (%)

Taxa

deInflação(%

)

GRÁFICO 10.5A Curva de Phillips de Samuelson e Solow

1969

1968

19671966

1965 1964 1963

1962 1961

8

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4

2

02,8 3,5 4,2 4,9 5,6 6,3 7

Taxa de desemprego (%)

Taxa

deinflação(%

)

GRÁFICO 10.6A Curva de Phillips Americana na Década de 1960

Segundo os teóricos monetaristas, simplesmente o que tinha acontecido é que a curva de Phillips te-ria se deslocado para a direita, já que os agentes econômicos não tinham mais expectativas de que ospreços se manteriam inalterados. Alguma taxa de inflação positiva passou a integrar as expectativas dosagentes devido à inflação que ocorreu durante os anos 60 e início dos 70. E trabalhadores têm interesseno seu salário real, e não no seu salário nominal. Isto justifica o cálculo do salário futuro, levando emconta as expectativas de inflação. Então, a nuvem de pontos, em verdade, estaria descrevendo a existên-cia de diversas curvas de Phillips, tal como é mostrado no Gráfico 10.8.

Segundo Friedman, não seria qualquer inflação positiva que deslocaria a taxa corrente de desem-prego da taxa natural. Isto teria ocorrido no passado, porque as expectativas dos agentes eram de que ainflação seria aproximadamente zero. Assim, o eixo vertical do plano onde a curva de Phillips é descritadeve mostrar a diferença entre a inflação esperada e a efetiva. A partir dessa discussão empírica, Fried-man desenvolveu e apresentou a sua teoria da curva de Phillips que já foi descrita no capítulo anterior.Como foi visto neste capítulo, a evolução da teoria da curva de Phillips da versão Friedman para a ver-são Lucas ocorreu ao final da década de 1970. Cabe ressaltar, por último, que para os teóricos dos ciclosreais as análises realizadas nos dias de hoje utilizando-se a curva de Phillips não têm qualquer sentido,já que a variabilidade do produto não pode ser explicada por decepção de expectativas de preços. Paraeles, são os choques pelo lado oferta (e não pelo lado da demanda) que podem explicar o nível de produ-to e emprego da economia.

138 A Teoria da Política Monetária Novo-Clássica ELSEVIER

19691973

1970

1971

1972

1976

1975

1979

19771978

1974

1968

19671966

1965 19641963

13,0

10,0

7,0

4,0

1,00,0 2,0 4,0 6,0 8,0 10,0 12,0

Taxa de desemprego (%)

Taxa

deinflação(%

)

GRÁFICO 10.7A Curva de Phillips no Estados Unidos nas Décadas de 1960 e 1970

13,0

10,0

7,0

4,0

1,00,0 2,0 4,0 6,0 8,0 10,0 12,0

Taxa de desemprego (%)

Taxa

deinflação(%

)

GRÁFICO 10.8As Curvas de Phillips Segundo a Interpretação de Friedman

O REGIME DE METASDE INFLAÇÃO

INTRODUÇÃO

Nova Zelândia (1990), Canadá (1991), Reino Unido (1992), Finlândia (1993),Suécia (1993), Austrália (1993), entre outros, foram os primeiros países de-senvolvidos que adotaram o regime de metas inflacionárias. Os países em de-senvolvimento que adotaram tal regime foram: Chile (1991), Israel (1992),Polônia (1998), República Tcheca (1998), Colômbia (1999) e México (1999),entre outros. O Brasil aderiu ao mesmo regime no ano de 1999. Tal regimepropõe uma meta de crescimento para algum índice de preços, que é anuncia-da no início de um determinado período. A meta é estabelecida pelo governoe/ou parlamento e deve ser perseguida pelo banco central cuja política mone-tária passa a ter um único objetivo: alcançar a meta inflacionária determinada.

O capítulo analisa o regime de metas de inflação e, particularmente, des-creve o caso brasileiro. Para tanto, faz inicialmente uma apresentação dos ob-jetivos e aspectos operacionais do regime de metas de inflação para, em segui-da, descrever o regime brasileiro. Analisa ainda as controvérsias teóricas so-bre o tema; trata, ademais, o assunto tendo também como base algumas expe-riências internacionais.

11.1. OBJETIVOS E ASPECTOS OPERACIONAIS

O regime de metas de inflação, que foi implementado em vários países a partirda década 1990, tem como ponto de partida dois pressupostos. O primeiro estárelacionado ao fracasso da adoção do regime de regras de expansão monetáriaà la Friedman (tal como visto no capítulo 9), com destaque para as dificulda-des enfrentadas pela política monetarista adotada pelo Federal Reserve (FED)nos EUA a partir de 1979, em função, principalmente, da impossibilidade dese prever o comportamento da demanda por moeda em um sistema financeirocaracterizado por inovações financeiras e mobilidade de capitais. O segundo éo pressuposto teórico (tal como apresentado nos capítulos 9 e 10) de que a po-lítica monetária é inócua para afetar as variáveis reais da economia de formaduradoura, como os níveis de produto e de emprego, tomando como base a hi-

CAPÍTULO

11

pótese da existência de uma taxa natural de desemprego, determinada por fatores reais e institucionaise, portanto, longe da influência da política econômica.

Consequentemente, a adoção de um regime de metas de inflação tem como característica o reco-nhecimento explícito de que o objetivo da política monetária é a manutenção de uma taxa de inflaçãobaixa e estável. Em outras palavras, está implícito o compromisso institucional da busca de estabilidadecomo objetivo permanente da política monetária. Em versões mais flexíveis do regime de metas, o ob-jetivo de estabilidade de preços pode ser acompanhado do objetivo de manter a estabilização do produ-to corrente em níveis próximos da taxa potencial de crescimento mas somente naquelas condições emque a estabilidade de preços não seja violada.

Para atingir tal objetivo, uma meta numérica para inflação é anunciada, seja um ponto ou uma ban-da, assim como um horizonte de tempo para a meta inflacionária ser alcançada (que pode ser um ano oumais). Nesse sistema, a taxa de juros de curto prazo atua como principal instrumento de política mone-tária que deve ser calibrada para fazer com que a inflação tenda a convergir para a meta estabelecida. Ataxa de juros adotada, de acordo com a experiência de alguns países, poderia ser descrita por regras tipoTaylor (ver, a respeito, capítulo 12).

Tal estrutura de política monetária, segundo os defensores do regime de metas de inflação, aprimo-ra a comunicação entre o público, o setor empresarial e os mercados, por um lado, e os policy-makers,de outro. Também proporciona disciplina, prestação de contas ao público, transparência e alguma flexi-bilidade à política monetária. A chamada credibilidade é fundamental na condução da política monetá-ria para evitar problemas relacionados à inconsistência temporal, ou seja, busca de resultados imediatose temporários em termos de nível de produto em detrimento de perdas duradouras (isto é, mais infla-ção). Neste sentido, a adoção de um banco central independente proporcionaria uma maior credibilida-de junto aos agentes econômicos e sinalizaria um maior comprometimento da autoridade monetáriacom a baixa inflação.

De acordo com esta abordagem, a política monetária, ao mesmo tempo em que é vista como um dosprincipais instrumentos da política macroeconômica, não pode afetar a atividade econômica (empregoe produto) de forma duradoura. A política fiscal, por sua vez, deve estar submetida à política monetária.Não deve haver dominância fiscal, ou seja, a conduta da política monetária não pode ser ditada porconstrangimentos de ordem fiscal. Assim, a existência de déficits fiscais poderia conduzir a uma situa-ção de descontrole na emissão monetária e que, por sua vez, levaria ao recrudescimento da inflação,tanto por meio de mecanismos de transmissão diretos como por intermédio de expectativas de inflaçãoascendentes. A política monetária, portanto, é vista como um instrumento flexível e poderoso para al-cançar o objetivo da estabilização de preços.

No que se refere à questão de transparência e prestação de contas da condução da política monetária,alguns mecanismos devem ser implementados de modo a aprimorar a credibilidade relacionada ao fun-cionamento do regime de metas de inflação. Em particular, desponta a necessidade de aumento da comu-nicação entre a autoridade monetária e o público em geral, através, dentre outras medidas, da publicaçãode relatórios periódicos de inflação por parte do banco central, que pode incluir não somente uma avalia-ção sobre a inflação, como também sobre o comportamento do produto e de outras variáveis macroeconô-micas, de modo a permitir uma avaliação geral das condições econômicas do país. Adicionalmente, al-gum mecanismo de prestação de contas deve ser adotado: se a meta de inflação não for alcançada, devehaver procedimentos específicos que o banco central deve seguir, que pode incluir a publicação ou a sub-missão de uma carta da autoridade monetária explicando as razões pelas quais a meta não foi alcançada eque medidas pretende adotar para que a inflação retome a direção da meta perseguida.

Os defensores de tal regime argumentam que a simplicidade e a transparência do regime de metasde inflação possibilita ao público entender mais facilmente a intenção e os efeitos da política monetária,reduzindo assim a incerteza quanto ao comportamento futuro da inflação. E, dependendo do regime demetas de inflação constituído, uma política monetária mais flexível poderia ser adotada (ou seja, algu-ma discricionariedade poderia ser aceita) em relação à própria meta perseguida e no que diz respeito àscondições de desemprego e flutuações na taxa de câmbio, desde que tal flexibilidade não sacrificasse acredibilidade do banco central. Consideram, assim, que o regime de metas de inflação poderia não ser

140 O Regime de Metas de Inflação ELSEVIER

uma “regra de política” rígida, mas uma estrutura para a política monetária em que uma “discricionarie-dade limitada” poderia ser exercida. Contudo, para que o regime de metas de inflação seja adotado, énecessária a definição de alguns aspectos operacionais relevantes, que dependem de escolhas das auto-ridades econômicas e das especificidades de cada país.

A escolha de uma meta pontual e/ou uma banda: a questão se refere ao conhecido trade-off entrecredibilidade e flexibilidade. Por um lado, uma meta pontual é mais facilmente compreendida pelo pú-blico; por outro, a utilização de bandas, ainda que com uma meta pontual estabelecida, ou seja, o anún-cio de intervalos de confiança para a inflação (com teto e piso), tem a vantagem de conceder certa flexi-bilidade à política monetária diante da ocorrência de choques que possam causar impacto sobre a infla-ção (por exemplo, um aumento exacerbado do preço internacional do petróleo). A adoção de bandas(em torno de uma meta pontual) permite, assim, uma maior flexibilidade na estabilização da taxa decrescimento natural do produto e também acomodar movimentos indesejados da taxa de câmbio nomi-nal, um problema de particular relevância para os países em desenvolvimento sujeitos a maior volatili-dade dos fluxos de capitais e que possuem regimes de câmbio flutuante. Além da questão relevante dese determinar o valor pontual da meta de inflação, a utilização de intervalos de confiança (as bandas) re-quer que seja definida a amplitude desse intervalo, sendo a escolha da amplitude diretamente relaciona-da ao trade-off mencionado, isto é, quanto maior o tamanho da banda, mais reduzida seria a crença dopúblico no esforço do banco central para manter uma inflação baixa.

A escolha do período de tempo no qual a meta é esperada ser alcançada: neste particular, é impor-tante destacar que o horizonte da meta (no qual o banco central é esperado alcançar sua meta de infla-ção) não pode ser menor do que o horizonte de controle, sobre o qual a política adotada é esperada afe-tar a variável relacionada à meta. Quanto à definição do horizonte da meta, de novo se coloca o trade-offcredibilidade versus flexibilidade: a adoção de um horizonte mais curto (digamos, um ano) pode sinali-zar o maior compromisso da autoridade monetária com o objetivo de estabilidade de preços, além davantagem de ser mais claramente compreendida pelo público; já a adoção de um horizonte mais longo eflexível permite acomodar mais gradualmente ao longo do tempo os efeitos de choques sobre a infla-ção, reduzindo assim os efeitos negativos da política de estabilização de preços sobre os níveis de pro-duto e emprego. Propicia, portanto, uma reação menos agressiva da política monetária diante de choques.

A definição do índice de preços que será adotado como referência para a meta: neste caso, em ge-ral duas opções são usadas – um índice cheio, como no caso do índice de preços ao consumidor; ou umnúcleo de inflação (core inflation), que exclui do índice de preços ao consumidor os itens que causamperturbações transitórias ou autocorrigíveis, e que têm pouca relação com os movimentos mais perma-nentes dos preços. Se o uso do núcleo de inflação tem a vantagem de expurgar da inflação choques tem-porários e tornar mais exequível para o banco central atingir a meta de inflação estabelecida, sua adoçãopode eventualmente gerar perda de credibilidade em função de ser uma medida de difícil entendimentopor parte da população, já que embora a inflação possa estar existindo e, portanto, estar sendo sentidapelos agentes econômicos, o banco central poderá declarar o seu sucesso no alcance da meta.

11.2. O CASO DO BRASIL: UMA BREVE DESCRIÇÃO

E AVALIAÇÃO

O regime de metas de inflação foi instituído pelo Decreto no 3.088, de 2 de junho de 1999, ou seja, umpouco depois do País ter adotado um regime de câmbio flutuante após um período de forte pressão espe-culativa sobre o real, que ocorreu em janeiro daquele ano. Este decreto está reproduzido integralmenteno apêndice 1 do capítulo. No Brasil, as metas são propostas pelo Ministro da Fazenda, mas decididas eanunciadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que é constituído pelo Ministro da Fazenda,Ministro do Planejamento e o Presidente do Banco Central do Brasil (BCB). Além do centro da meta,expresso pela variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo IBGE, oCMN determina o intervalo de tolerância adotado, que tem variado entre 2% e 2,5% acima e abaixo da

O Regime de Metas de Inflação 141

meta central, de modo a permitir algum grau de flexibilidade à política monetária. No regime de metasde inflação adotado no Brasil não há o uso de um núcleo de inflação, já que, como visto, é utilizado umíndice de preços cheio (o IPCA).

Para o ano de 1999, a meta de inflação estabelecida foi de 8% com tolerância de 2% para cima oupara baixo, isto é, foi estabelecida uma meta-intervalo de 6% a 10%. Para o ano de 2000, foi fixada umameta de 6% com intervalo de 4% a 8% e, para o ano 2001, uma meta de 4% com intervado de 2% e 6%.Em junho de 2000, o CMN estabeleceu a meta para 2002, que foi de 3,5% com intervalo de 2%, para cimaou para baixo. A meta de 2003 era inicialmente 3,25%, com intervalo de tolerância de 2%, sendo depoisalterada para 3,5%; posteriormente foi modificada de novo para o limite máximo de 8,5%, que ficouconhecida como “meta ajustada”. Esta meta foi proposta pelo próprio Banco Central em carta envia-da ao Ministro da Fazenda em 21 de janeiro de 2003, que aceitou a mudança. Para os anos 2004 e2005 as metas estabelecidas eram de 5,5% e 4,5%, respectivamente, com intervalo de tolerância de2,5% em ambos os anos. A Tabela 11.1 a seguir indica o centro da meta, o intervalo da meta e a infla-ção efetiva (variação percentual do IPCA) para cada ano.

TABELA 11.1Centro, Intervalo da Meta de Inflação e Inflação Efetiva – 1999-2005

Ano Centro da Metade Inflação

Intervalo da Metade Inflação

Inflação Efetiva(variação do IPCA)

1999 8% 6 a 10% 8,94%

2000 6% 4 a 8% 5,97%

2001 4% 2 a 6% 7,67%

2002 3,5% 1,5 a 5,5% 12,53%

2003 8,5%* 9,30%

2004 5,5% 3 a 8% 7,60%

2005 4,5% 2 a 7% 5,69%

2006 4,5% 2 a 7%

2007 4,5% 2 a 7%

* A meta do ano era inicialmente 3,25% (+/– 2%), depois foi alterada para 3,5% (+/– 2%); posteriormente foi modificadade novo para o limite máximo de 8,5%, que ficou conhecida como “meta ajustada”. Esta meta foi proposta pelo próprioBanco Central em carta enviada ao Ministro da Fazenda em 21 de janeiro de 2003 que aceitou a mudança.

Foi delegada a responsabilidade pelo cumprimento das metas de inflação ao Banco Central do Bra-sil. Em contrapartida, o governo delegou as decisões de política monetária, ou seja, o poder de determi-nar a taxa de juros básica da economia, aos dirigentes do BCB. O Comitê de Política Monetária(COPOM), que é composto pela diretoria do Banco Central, se reúne periodicamente (a cada 45 dias)para estabelecer a taxa de juros (a taxa Selic) que considera adequada ao cumprimento da meta de infla-ção. Além de determinar a taxa de juros, o COPOM estabelece também o chamado viés – que pode serde baixa, de alta ou neutro. Por exemplo, quando é estabelecida uma determinada taxa de juros com viésde baixa, isto significa que o presidente do BCB está autorizado pelo COPOM a reduzir a taxa de jurosse assim achar conveniente antes da próxima reunião ordinária deste organismo. Quando o viés é neu-tro, não há autorização concedida ao presidente do BCB. Contudo, o presidente do BCB sempre poderáconvocar uma reunião extraordinária do COPOM para alterar a taxa de juros.

Oito dias após a reunião do COPOM, o site do BCB disponibiliza a minuta da reunião realizada,que contém o sumário da discussão do COPOM e as decisões tomadas quanto a definição da taxa de ju-ros básica. Ao final de cada trimestre, o COPOM publica o Relatório da Inflação, que provê informa-ções detalhadas sobre a conjuntura econômica do país, assim como suas projeções para a taxa de infla-ção, que são levadas em conta pelo COPOM nas reuniões em que é definida a taxa de juros (para maio-res informações, ver o Box 11.1).

142 O Regime de Metas de Inflação ELSEVIER

O Regime de Metas de Inflação 143

O Copom foi instituído em 20 de junho de 1996, como objetivo de estabelecer as diretrizes da política mo-netária e de definir a taxa de juros. A criação do Comi-tê buscou proporcionar maior transparência e ritualadequado ao processo decisório, a exemplo do que jáera adotado pelo Federal Open Market Committee(FOMC) do Banco Central dos Estados Unidos e peloCentral Bank Council, do Banco Central da Alemanha.Em junho de 1998, o Banco da Inglaterra também ins-tituiu o seu Monetary Policy Committee (MPC), assimcomo o Banco Central Europeu, desde a criação damoeda única em janeiro de 1999.

Desde 1996, o Regulamento do Copom sofreuuma série de alterações no que se refere ao seu objeti-vo, à periodicidade das reuniões, à composição, e àsatribuições e competências de seus integrantes. Essasalterações visaram não apenas aperfeiçoar o processodecisório no âmbito do Comitê, como também refleti-ram as mudanças de regime monetário.

Destaca-se a adoção, pelo Decreto 3.088, em 21de junho de 1999, da sistemática de “metas para a in-flação” como diretriz de política monetária. Desde en-tão, as decisões do Copom passaram a ter como obje-tivo cumprir as metas para a inflação definidas peloConselho Monetário Nacional. Segundo o mesmo De-creto, se as metas não forem atingidas, cabe ao presi-dente do Banco Central divulgar, em Carta Aberta aoMinistro da Fazenda, os motivos do descumprimento,bem como as providências e prazo para o retorno dataxa de inflação aos limites estabelecidos.

Formalmente, os objetivos do Copom são “imple-mentar a política monetária, definir a meta da TaxaSelic e seu eventual viés, e analisar o Relatório deInflação”. A taxa de juros fixada na reunião do Copomé a meta para a Taxa Selic (taxa média dos financia-mentos diários, com lastro em títulos federais, apura-dos no Sistema Especial de Liquidação e Custódia), aqual vigora por todo o período entre reuniões ordiná-rias do Comitê. Se for o caso, o Copom também podedefinir o viés, que é a prerrogativa dada ao presidentedo Banco Central para alterar, na direção do viés, ameta para a Taxa Selic a qualquer momento entre asreuniões ordinárias.

As reuniões ordinárias do Copom dividem-se emdois dias: a primeira sessão às terças-feiras e a segun-da às quartas-feiras. Mensais desde 2000, o númerode reuniões ordinárias foi reduzido para oito ao ano apartir de 2006, sendo o calendário anual divulgadoaté o fim de outubro do ano anterior. O Copom écomposto pelos membros da Diretoria Colegiada doBanco Central do Brasil: o presidente, que tem o votode qualidade; e os diretores de Política Monetária, Po-lítica Econômica, Estudos Especiais, Assuntos Internaci-onais, Normas e Organização do Sistema Financeiro,Fiscalização, Liquidações e Desestatização, e Adminis-tração. Também participam do primeiro dia da reu-nião os chefes dos seguintes Departamentos do BancoCentral: Departamento Econômico (Depec), Departa-

mento de Operações das Reservas Internacionais (De-pin), Departamento de Operações Bancárias e de Sis-tema de Pagamentos (Deban), Departamento deOperações do Mercado Aberto (Demab), Departa-mento de Estudos e Pesquisas (Depep), além do ge-rente-executivo da Gerência-Executiva de Relaciona-mento com Investidores (Gerin). Integram ainda a pri-meira sessão de trabalhos três consultores e o secretá-rio-executivo da Diretoria, o assessor de imprensa, oassessor especial e, sempre que convocados, outroschefes de departamento convidados a discorrer sobreassuntos de suas áreas.

No primeiro dia das reuniões, os chefes de depar-tamento e o gerente-executivo apresentam uma aná-lise da conjuntura doméstica abrangendo inflação,nível de atividade, evolução dos agregados monetá-rios, finanças públicas, balanço de pagamentos, eco-nomia internacional, mercado de câmbio, reservasinternacionais, mercado monetário, operações demercado aberto, avaliação prospectiva das tendênci-as da inflação e expectativas gerais para variáveismacroeconômicas. No segundo dia da reunião, doqual participam apenas os membros do Comitê e ochefe do Depep, sem direito a voto, os diretores dePolítica Monetária e de Política Econômica, após aná-lise das projeções atualizadas para a inflação, apre-sentam alternativas para a taxa de juros de curto pra-zo e fazem recomendações acerca da política mone-tária. Em seguida, os demais membros do Copom fa-zem suas ponderações e apresentam eventuais pro-postas alternativas. Ao final, procede-se à votaçãodas propostas, buscando-se, sempre que possível, oconsenso. A decisão final – a meta para a Taxa Selic eo viés, se houver – é imediatamente divulgada à im-prensa ao mesmo tempo que é expedido Comunica-do através do Sistema de Informações do Banco Cen-tral (Sisbacen).

As atas em português das reuniões do Copom sãodivulgadas às 8h30min da quinta-feira da semanaposterior a cada reunião, dentro do prazo regulamen-tar de seis dias úteis, sendo publicadas na página doBanco Central na internet (“Notas da Reunião do Co-pom”) e para a imprensa. A versão em inglês é divulga-da com uma pequena defasagem de cerca de 24 horas.

Ao final de cada trimestre civil (março, junho, se-tembro e dezembro), o Copom publica, em portuguêse em inglês, o documento “Relatório de Inflação”, queanalisa detalhadamente a conjuntura econômica e fi-nanceira do País, bem como apresenta suas projeçõespara a taxa de inflação.

Normativo em vigor relacionado ao assunto:Circular no 3.297, de 31 de outubro de 2005 (Divul-ga novo regulamento do Copom).

Fonte: Informações extraídas do Banco Central do Bra-sil (http://www.bcb.gov.br/?COPOMHIST).

COMITÊ DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL DO BRASIL (COPOM)

BO

X1

1.1

Caso a meta de inflação – considerando inclusive o intervado de tolerância – não seja atingida ao fi-nal de cada ano, o presidente do BCB tem que enviar uma carta (que deve ser de conhecimento público)ao Ministro da Fazenda justificando as razões pelos quais a meta não foi cumprida, assim como as me-didas propostas para trazer a inflação para baixo, além do período de tempo no qual espera que as medi-das tenham efeito. As cartas dirigidas pelo Presidente do BCB ao Ministro da Fazenda estão disponíveisem http://www.bcb.gov.br/?CARTAMETA.

Em 1999 e 2000, a inflação efetiva ficou dentro da meta estabelecida. Em 2001 e 2002 vários cho-ques externos e domésticos – tais como a crise energética, efeitos dos atentados terroristas de11/09/2001, a crise argentina, e depois a crise de confiança relacionada às eleições presidenciais em2002 – afetaram a economia brasileira com impactos significativos sobre a inflação. Segundo estimati-vas do próprio BCB, a taxa de câmbio aumentou 20,3% e 53,5% em 2001 e 2002, respectivamente, e,como resultado, 38% do aumento da taxa de inflação em 2001 foi explicada pela desvalorização cam-bial, enquanto em 2002 a contribuição da taxa de câmbio foi de 46%. Já a elevada inflação de 2003 foiexplicada principalmente pelo efeito inercial da inflação do ano anterior. Em 2004, a variação do IPCAfoi de 7,6%, bem próximo do teto da meta do ano, enquanto que, em 2005, a inflação caiu ficando maispróxima do centro da meta, em função principalmente dos efeitos positivos sobre os preços domésticosda apreciação da taxa de câmbio real que ocorreu continuamente desde meados de 2004.

Um dos pontos críticos da persistência de uma taxa de inflação ainda desconfortável no Brasil (emcomparação com a inflação prevalecente em outros países) está relacionado ao peso dos preços admi-nistrados no cálculo do IPCA, que tem sido de cerca de 30%. Esses preços em geral têm crescido maisdo que os preços livres, pressionando o IPCA para cima. Preços administrados são definidos comoaqueles preços que são insensíveis à demanda e que são de alguma forma regulados pelo governo ouagências públicas, incluindo, neste grupo, produtos como petróleo e derivados, tarifas telefônicas, tari-fa de eletricidade e transporte público. Assim, a política monetária não é plenamente efetiva para con-trolar os preços administrados (ver a respeito o Apêndice 2 do capítulo).

11.3. TEORIAS MONETÁRIAS E CONTROVÉRSIAS

SOBRE O REGIME DE METAS DE INFLAÇÃO

Os defensores da adoção de metas de inflação, apoiados na hipótese da existência da taxa natural dedesemprego, na curva de Phillips expectacional e no chamado viés inflacionário acreditam que o principalobjetivo da política monetária é a manutenção de uma taxa de inflação baixa e estável; acreditam aindaque esta política não é um instrumento que pode estimular o investimento e, consequentemente, reduziro desemprego. Postulam que uma política monetária que aumente a liquidez da economia (e/ou reduzaos juros), objetivando estimular o crescimento, somente pode causar efeitos reais passageiros e efeitosinflacionários permanentes – tal como defendem, Robert Lucas, Robert Barro e David Gordon em inú-meros trabalhos. Alguns, como Finn Kydland e Edward Prescott, consideram que nem sequer efeitospassageiros seriam produzidos, somente inflação seria gerada. Assim sendo, a política monetária nãodeve ser utilizada para estimular o crescimento econômico de um país. Caso uma política monetária ati-va fosse implementada, estaria verdadeiramente sendo inócua e, adicionalmente, estaria dificultando ocrescimento duradouro, pois geraria um ambiente de inflação.

Os defensores do regime de metas consideram ainda que ministros, parlamentares e empresáriospossuem uma forte propensão a gerar inflação (o que chamam de viés inflacionário), já que tais seg-mentos clamam, frequentemente, por reduções das taxas de juros e por políticas de crédito fácil. Então,o regime de metas proposto é coerente com esta abordagem: um banco central deve tentar apenas con-trolar a inflação porque a política monetária não pode fazer nada além disto; metas inflacionárias de-vem ser fixadas porque se transformam em um eficaz remédio contra o vírus (ou viés) inflacionário queacomete ministros, parlamentares, empresários e, por fim, os gestores da política monetária.

Os proponentes da adoção de metas inflacionárias se apoiam em teorias monetárias que não sãoconsensuais entre os economistas. Alguns economistas que acreditam na existência da taxa natural dedesemprego e na curva de Phillips não são favoráveis à adoção do regime de metas de inflação. Dentre

144 O Regime de Metas de Inflação ELSEVIER

eles, destaca-se Milton Friedman, o maior expoente monetarista, que está entre aqueles que condenama concessão de plena liberdade aos dirigentes do banco central para alcançar o objetivo da estabilidadede preços – subjacente ao regime de metas de inflação. Outros autores críticos deste regime monetárioafirmam, grosso modo, que uma correta e responsável administração monetária, fiscal e cambial asso-ciada à instituição de regras eficientes são as âncoras que o nível de preços necessita.

Há muitos economistas que não acreditam no tripé – taxa natural de desemprego, viés inflacionárioe curva de Phillips expectacional – em que se apoia o regime de metas de inflação. O dissenso remontaao debate de John Maynard Keynes com os economistas clássicos na primeira metade do século XX. Jána segunda parte do século passado, Robert Eisner (ex-presidente da Associação Americana de Econo-mia), William Vickrey e James Tobin (laureados com o Prêmio Nobel), entre outros tão renomadoseconomistas, nunca aceitaram tais teorias monetárias. Grosso modo, a teoria econômica desenvolvidapor Keynes entre os anos de 20 e 40 postula que uma taxa de juros baixa e estável era necessária para es-timular o investimento produtivo porque desestimularia o investimento financeiro. A política monetá-ria, em conjunto com as demais políticas (fiscal e cambial) poderia criar um ambiente seguro que esti-mulasse os empresários a despertar o seu “espírito animal”. Em particular, a política monetária ao afetaro portfólio dos empresários – em favor de ativos mais ilíquidos – pode servir de instrumento capaz deestimular o investimento produtivo.

Assim, aos olhos de Keynes e seus seguidores, os resultados que poderiam ser obtidos por uma re-dução da taxa de juros seriam duradouros: mais fábricas, por exemplo, poderiam ser abertas e parte da-queles que estavam involuntariamente desempregados encontrariam trabalho. A política monetária po-deria, dessa forma, estimular o crescimento econômico.1 A redução do desemprego, portanto, tambémdeveria ser um objetivo da política monetária. Este raciocínio explicaria por que ministros, empresáriose parlamentares desejariam uma redução da taxa de juros em situações de desaquecimento econômico.Se políticas monetárias expansionistas inevitavelmente sempre gerassem, ao fim e ao cabo, somente in-flação, isto já teria sido aprendido por esses segmentos que não clamariam por algo que seria considera-do ineficaz e prejudicial. Seria ineficaz porque não estimularia o investimento real e a abertura de novospostos de trabalho. Seria prejudicial porque produziria inflação. Segundo os críticos do regime de me-tas de inflação acreditar em viés inflacionário de empresários é desconsiderar que o que desejam verda-deiramente é o crescimento econômico que amplia o leque de possibilidades de obtenção de lucro em-presarial. Eles afirmam ainda que acreditar em viés inflacionário de ministros e parlamentares é consi-derá-los em sua totalidade como irresponsáveis, seria o mesmo que avaliar que sempre estariam dispos-tos a trocar a situação corrente de estabilidade por benefícios passageiros e instabilidades permanentes.

T. Persson & G. Tabellini,2 dois autores que acreditam na existência do viés inflacionário, afirmaramque, muito embora o arcabouço teórico ortodoxo que sustenta a problemática da política monetária sejaimpecável, não é possível observar taxas de inflação consideráveis em todos os países e em todos os tem-pos como decorrência do viés inflacionário. Justificaram esse incômodo imposto pela realidade, aduzindoque “a razão pela qual observamos taxas de inflação relativamente baixas ... deve ser que sociedades têm acapacidade para desenvolver alguns mecanismos que minoram os incentivos [inflacionários] ...”. Assim,a questão não seria se uma economia possui (ou não) viés inflacionário e se possui (ou não) mecanismospara contê-lo, mas apenas se uma economia tem (ou não) inflação: se existem taxas de inflação considerá-veis é porque o viés inflacionário não é contido por mecanismos eficazes, se tais taxas inexistem é porqueo contrário vigora. Mas quais são esses mecanismos? Essa é a questão central. Diante dessa pergunta, osautores apenas afirmaram que “torna-se interessante estudar quais são exatamente esses mecanismos,particularmente porque ... a eficiência desses mecanismos parece variar através dos tempos e das socieda-des”. Em síntese, as conclusões de Persson e Tabellini (em relação à percepção de que existem economiasem que o viés inflacionário não se manifesta) levam apenas ao lugar comum, isto é, algo existe em certaseconomias que explica a ocorrência de taxas de inflação bastante baixas.

Por terem contestado o suposto consenso teórico estabelecido pelo mainstream da ciência econô-mica, Keynes e seus seguidores têm sido acusados de ser condescendentes com a inflação e de se preo-

O Regime de Metas de Inflação 145

1. Para um detalhamento da política monetária no modelo de Keynes, ver Capítulo 72. Persson, T. & Tabellini, G. (eds.) (1994). Monetary and Fiscal Policy - Credibility - vol.1. Cambridge (Mass): MIT Press.

cupar unicamente com o desemprego. Para afastar essa pecha, Keynes afirmou no seu livro Essays inPersuasion que a inflação é injusta e a recessão é inconveniente e, então, concluiu: “entretanto, não énecessário compararmos um mal com o outro. É necessário reconhecer que ambos são males que de-vem ser evitados”. Tobin, com o mesmo intuito de Keynes, no seu Essays in Economics escreveu: “te-nho argumentado que as autoridades monetárias não deveriam, em verdade, não podem fugir da res-ponsabilidade por resultados macroeconômicos reais. Para evitar mal entendido, afirmo com toda cla-reza que não estou advogando que não se preocupem com … a inflação”.

Muitos críticos do regime de metas de inflação dizem que, durante muito tempo, a grande lição em ter-mos de condução da política monetária foi dada pelo experiente Alan Greenspan, que presidiu o Banco Cen-tral americano (FED) por 14 anos (até o início de 2006): ele promoveu cortes profundos na taxa de jurospara evitar que o seu país viesse a ser atingido por uma onda de desaquecimento e desemprego; e elevou, quandonecessário, a taxa de juros sinalizando que estava disposto a combater pressões inflacionárias. Neste sen-tido, em seu editorial, o Financial Times (reproduzido na Gazeta Mercantil, 19/6/1999) afirmou:

Não é tarefa do Federal Reserve (Fed – o banco central dos EUA) esperar a inflação subir e só entãoaumentar a taxa de juros. Isto seria muito fácil. Sua tarefa é sustentar o crescimento, ao mesmo tem-po em que mantém a inflação baixa, o que é muito mais difícil. [Mas] o Fed tem trabalhado bem. Aexpansão norte-ameriacana dos anos 90 foi extraordinária.

Os críticos do regime de metas de inflação argumentam que a política monetária é uma das políticaseconômicas governamentais que podem ser utilizadas conjuntamente com as demais políticas para seatingir níveis socialmente aceitáveis (e tecnicamente sustentáveis) de emprego e inflação. Uma políticamonetária voltada somente para manter a inflação sob controle estaria, na verdade, sendo subutilizada.Desta forma, está sendo comandada a política monetária no Brasil, tal como afirmou um diretor do BancoCentral: “vamos mirar só a inflação, não temos objetivo de olhar a atividade econômica” (Gazeta Mer-cantil, 29/6/1999). Fica claro nesta passagem que o compromisso principal do Banco Central do Brasil,no contexto do atual regime de metas de inflação, é com a estabilidade de preços, o que significa que oBCB não utiliza a taxa de juros para facilitar taxas de crescimento do PIB ou a geração de empregos.

Defensores do regime de metas de inflação no Brasil sustentam que embora as metas de inflaçãonão tenham sido atingidas em alguns anos, em função de choques externos, tal regime tem contribuídopara uma redução a médio e longo prazos na taxa de inflação. O regime adotado no Brasil – argumen-tam – tem concedido alguma flexibilidade para acomodação de choques externos e, ao mesmo tempo,tem aumentado a credibilidade das autoridades monetárias.

Para aqueles que são favoráveis ao regime de metas de inflação, como já visto, a prioridade princi-pal da política econômica deve ser a estabilidade de preços. Mesmo que o governo seja tentado a fazerdiferente, por exemplo, adotando políticas ditas expansionistas, suas ações não serão eficazes, gerarãoapenas mais inflação. O melhor que o governo deve fazer é não atrapalhar: ao garantir a estabilidade depreços, permite que o mercado possa executar melhor seu papel na alocação de recursos na economia.Para eles, o crescimento econômico depende de fatores reais (relacionados ao capital humano, à tecno-logia etc.), e não, de fatores monetários.

O debate e o dissenso sempre acompanharam a evolução da história do pensamento econômico: oque é um suposto consenso hoje, pode não o ser amanhã. Não é diferente no que se refere ao aparentenovo consenso relacionado à adoção do regime de metas de inflação. Estudos internacionais não sãoconclusivos em mostrar evidências empíricas de que a adoção de um regime de metas de inflação sejanecessário à estabilidade de preços e a um nível de produto maior – como será visto na seção seguinte.Com relação ao novo consenso, Dani Rodrik, da Universidade de Harvard, afirmou em entrevista aojornal Valor (2/5/2006): “os ortodoxos defendem a meta de inflação, a independência do banco centrale a flutuação do câmbio. No entanto, isso é apenas um consenso do momento. Nada me diz que em cin-co ou seis anos as pessoas não vão mudar para uma estrutura monetária diferente”. Possivelmente oseconomistas ortodoxos diriam o mesmo do “consenso keynesiano” (ou síntese neoclássica, apresentadano capítulo 8) que predominou nos anos 50 e 60.

146 O Regime de Metas de Inflação ELSEVIER

11.4. EVIDÊNCIAS INTERNACIONAIS

Argumentos empíricos têm sido utilizados na defesa do regime de metas inflacionárias. É comum argu-mentar que o regime de metas tem sido bem sucedido nos países onde foi adotado. Frederic Mishkin(1999, p. 595),3 por exemplo, ao analisar a experiência internacional com diferentes regimes de políticamonetária, conclui que “o desempenho dos regimes de metas de inflação tem sido muito bom. Os paísesque o adotam parecem ter reduzido significativamente tanto a taxa de inflação quanto as expectativas in-flacionárias bem mais do que provavelmente teria ocorrido na ausência de metas de inflação”.

Realmente deve-se reconhecer que a inflação assumiu uma trajetória descendente durante os pri-meiros anos de adoção do regime de metas nos países desenvolvidos. A Nova Zelândia, em 1990, foi oprimeiro país a implementar o regime de metas, depois veio o Canadá, em 1991, o Reino Unido, em1992, a Suécia, a Finlândia e a Austrália, em 1993. Como mostram os Gráficos 11.1 a 11.7, a inflaçãode alguns países desenvolvidos, que adotaram o regime de metas inflacionárias, manteve a sua rota des-cendente após a implementação do novo regime comparativamente à década de 1980.

O Regime de Metas de Inflação 147

3. Minshkin, F. (1999). “International experiences with different monetary policy regimes”, Journal of Monetary Economics,vol. 43, p. 579-605.

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GRÁFICO 11.1Trajetória da Inflação na Nova Zelândia (1986-1998)

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1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998GRÁFICO 11.2Trajetória da Inflação no Canadá (1986-1998)

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1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997

GRÁFICO 11.3Trajetória da Inflação no Reino Unido (1986-1997)

Entretanto, é importante destacar que o regime de metas não pode ser apontado como responsávelpela trajetória descendente da variação do nível de preços nesses países. Com exceção do Canadá(como pode ser observado nos Gráficos 11.1 a 11.7), todos os demais países já possuíam uma trajetóriadescendente da inflação que é anterior à implantação do regime de metas de inflação, cujo início está

148 O Regime de Metas de Inflação ELSEVIER

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1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998

GRÁFICO 11.4Trajetória da Inflação da Suécia (1986-1997)

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GRÁFICO 11.5Trajetória da Inflação na Finlândia (1986-1998)

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GRÁFICO 11.6Trajetória da Inflação da Austrália (1986-1998)

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GRÁFICO 11.7Trajetória da Inflação da Espanha (1986-1998)

marcado em cada gráfico. F. Mishkin e A. Posen,4 dois economistas defensores desse novo regime, emum estudo sobre as três primeiras economias que adotaram as metas de inflação (Nova Zelândia, Cana-dá e Reino Unido), concluíram que a redução da inflação nesses três países foi resultado das forças quejá estavam em movimento antes da adoção das metas. Os autores reconheceram que “na Nova Zelândia,ocorria uma desinflação há quatro anos anteriormente à implementação das metas que foi acompanhadade um lento crescimento do PIB e, desde 1988, crescimento do desemprego”. Para os autores, o Canadáe o Reino Unido também enfrentavam cenários de desaquecimento econômico durante o período deadoção das metas.

F. Mishkin e A. Posen afirmam somente que o novo regime é o responsável pela manutençãodas taxas inflacionárias em patamares aceitáveis. Mas até mesmo essa conclusão pode não ser pla-usível, porque as demais economias (desenvolvidas ou em desenvolvimento) que não possuíammetas de inflação na época também mantiveram suas taxas em níveis aceitáveis, tal como é mostra-do a seguir.

A despeito das evidências indicadas nos Gráficos 11.1 a 11.7, não existem evidências suficiente-mente sólidas que garantam que a adoção de metas inflacionárias seja a responsável pela queda da in-flação. Países que adotaram o regime de metas de inflação e países que não o adotaram têm tido igual-mente sucesso no front da inflação. O Gráfico 11.8 mostra a trajetória da inflação média, à época, de pa-íses com economias desenvolvidas que não adotaram o regime de metas de inflação, que eram: EstadosUnidos, Japão, Noruega, Dinamarca, Bélgica, Holanda, Áustria e Portugal.5 Cada ponto do gráfico cor-responde à taxa de inflação de um determinado país em determinado ano. A inflação desse conjunto depaíses também apresentou uma tendência de queda durante a década de 1990 relativamente à década de1980, tal como os países que possuem metas de inflação.

Esses achados são corroborados por um estudo empírico feito por L. Ball e N. Sheridan (2003)6

que, comparando países da OCDE que adotaram com aqueles que não adotaram regime de metas deinflação, mostraram que de forma geral não há evidência de que este regime aprimorou o desempe-nho econômico, medido pelo comportamento da inflação, do produto e da taxa de juros. E concluemque “os aspectos formais e institucionais – o anúncio público das metas, relatórios de inflação e maior

O Regime de Metas de Inflação 149

4. Mishkin, F. & Posen, A. (1997). “Inflation Targeting: Lessons from Four Countries”, Economic Policy Review, vol. 3, n. 3,Federal Reserve Bank of New York.5. Áustria, Bélgica, Holanda e Portugal fazem parte hoje da “zona do Euro” e estão sob o comando do Banco Central Europeu.6. Ball, L. and Sheridan, N.(2003). “Does Inflation Targeting Matter?”, NBER Working Paper Series, 9577, p. 1-47.

–2%

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1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 19981985

GRÁFICO 11.8Inflação Média nos Países Desenvolvidos sem Metas de Inflação (1986-1998)

independência dos bancos centrais – não são importantes. Nada nos dados sugerem que [países] sebeneficiariam em adotar metas explícitas” (página 29). Uma possível explicação para esse fato foidada por Andrew Haldane (1995), do Banco Central da Inglaterra e um dos maiores defensores daadoção de metas inflacionárias:

metas de inflação têm sido propostas durante um período em que as pressões inflacionárias são be-nignas em comparação com os anos 70/80. Quanto da melhora na performance da inflação nos anos90 pode ser atribuída à boa sorte e quanto se pode atribuir à boa administração monetária permanececomo uma questão aberta em países com ou sem metas de inflação.

Haldane concluiu sua avaliação afirmando que não se pode ainda saber se o regime de metas de in-flação se transformará em uma caminhada segura ou perigosa durante os próximos anos. A onda mun-dial dos anos 90 foi de desaquecimento econômico e de desaceleração das taxas inflacionárias.

RESUMO

1. O regime de metas de inflação foi implementado em vários países ao longo das décadas de 1990 e de 2000. Aadoção de um regime de metas de inflação tem característica principal o reconhecimento explícito de que oprincipal objetivo da política monetária é a manutenção de uma taxa de inflação baixa e estável. Para atingirtal objetivo, uma meta numérica para inflação é anunciada (seja um ponto ou uma banda) assim como um ho-rizonte de tempo para alcançar a meta inflacionária (que pode ser um ano ou mais). Nesse sistema, a taxa dejuros de curto prazo atua como principal instrumento de política monetária que deve ser calibrada para fazercom que a inflação tenda a convergir para a meta estabelecida pela autoridade econômica.

2. Os defensores de tal regime argumentam que sua simplicidade e a transparência tornam mais fáceis ao públicoentender a intenção e os efeitos da política monetária, reduzindo assim a incerteza quanto ao comportamentofuturo da inflação. Esta estratégia também pode aumentar a prestação de contas em relação ao desempenho dainflação e permitir uma acomodação flexível da política monetária sem sacrificar a credibilidade da políticamonetária e a reputação dos bancos centrais.

3. O Brasil adotou o regime de metas de inflação em junho de 1999. No Brasil, as metas são propostas pelo Mi-nistro da Fazenda, mas estabelecidas e anunciadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que é constituí-do pelo Ministro da Fazenda, Ministro do Planejamento e o Presidente do Banco Central. A variação do índicede preços escolhida como meta para a inflação é a variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo(IPCA), calculado pelo IBGE. Além do centro da meta, o CMN determina o intervalo de tolerância adotado,que tem variado entre 2% e 2,5% acima e abaixo da meta central, de modo a conferir algum grau de flexibili-dade à política monetária.

4. Os proponentes da adoção de metas inflacionárias se apoiam em teorias monetárias que não são consensuaisentre os economistas. Alguns economistas que acreditam na existência da taxa natural de desemprego e nacurva de Phillips não são favoráveis à adoção do regime de metas de inflação. Dentre eles, destaca-se MiltonFriedman, o maior expoente monetarista, que está entre aqueles que condenam a concessão de plena liberdadeaos dirigentes do banco central para alcançar o objetivo da estabilidade de preços – subjacente ao regime demetas de inflação. Outros autores críticos deste regime monetário afirmam, grosso modo, que uma correta eresponsável administração monetária, fiscal e cambial associada à instituição de regras eficientes são as ânco-ras que o nível de preços necessita.

5. Cabe ressaltar que as economias desenvolvidas e em desenvolvimento que não aderiram ao regime de metastêm mantido a inflação em níveis aceitáveis. Como foi mostrado, não há evidências de que conceder ao bancocentral a tarefa única de alcançar uma meta de inflação seja necessariamente benéfico. Por exemplo, o FederalReserve System tem explicitamente dois objetivos, conter a inflação (sem qualquer meta fixada) e buscar opleno emprego.

6. Em suma, as evidências empíricas são inconclusivas em relação à adoção do regime de metas. Ademais, exis-tem controvérsias relevantes acerca da teoria que sustenta tal regime.

150 O Regime de Metas de Inflação ELSEVIER

TERMOS-CHAVE

� Taxa Natural de Desemprego� Curva de Phillips� Viés Inflacionário� Regime de Metas de Inflação

� Comitê de Política Monetária (COPOM)� Conselho Monetário Nacional (CMN)� Selic� IPCA

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Friedman, M. (1987). Should There Be an Independente Monetary Authority? In: The Essence of Friedman.Stanford: Hoover Institution Press.

Esse é um excelente artigo em que Friedman se revela contrário à independência do banco central e mostra suaoposição à ideia que o banco central deva ter como meta imediata o controle da inflação.

Haldane, A. (editor) (1995). Targeting Inflation. London: Bank of England.É uma coletânea de artigos muito boa. Cada capítulo do livro é dedicado a descrever experiências e, principal-

mente, dificuldades para a implementação do regime de metas em diferentes países.Bernanke, B., Laubach, T., Mishkin, F. e Posen, A. (1999). Inflation Targeting: Lessons from the Internatio-

nal Experience. Princeton, Princeton University Press.Esse livro combina uma análise teórica com estudos empíricos detalhados de alguns países onde o regime de

metas de inflação foi adotado. Os autores defendem que tal estratégia tem claras vantagens sobre as políticas eco-nômicas tradicionais. Trata-se de um livro fundamental para aqueles que procuram argumentos favoráveis à ado-ção do regime de metas de inflação.

Arestis, P. e Sawyer, M. (2004). Re-examining Monetary and Fiscal Policy for the 21st Century. Chelteham,Edward Elgar.

Esse livro realiza uma detalhada análise e crítica ao “novo consenso” na macroeconomia, segundo o qual aspolíticas monetária e fiscal estão atualmente circunscritas. Apresentam, ainda, políticas econômicas alternativas à“sabedoria convencional” predominante.

Modenesi, A.M. (2005). Regimes Monetários: Teoria e a Experiência do Real. Barueri: Manole.Este livro contém análise rigorosa dos fundamentos teóricos e da operacionalidade dos regimes de metas cam-

biais, monetárias e de Inflação. Também discute e avalia a política econômica adotada durante e após o PlanoReal. Recomendado tanto para o público especializado quanto não especializado.

O Regime de Metas de Inflação 151

APÊNDICE 1DECRETO NO 3.088, DE 21 DE JUNHO DE 1999

Estabelece a sistemática de “metas para a inflação” como diretriz para fixação do regime de políticamonetária e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84, inciso IV, daConstituição, e tendo em vista o disposto no art. 4o da Lei no 4.595, de 31 de dezembro de 1964, e no art.14, inciso IX, alínea “a”, da Lei no 9.649, de 27 de maio de 1998,

DECRETA:Art. 1o Fica estabelecida, como diretriz para fixação do regime de política monetária, a sistemática

de “metas para a inflação”.§ 1o As metas são representadas por variações anuais de índice de preços de ampla divulgação.§ 2o As metas e os respectivos intervalos de tolerância serão fixados pelo Conselho Monetário Na-

cional – CMN, mediante proposta do Ministro de Estado da Fazenda, observando-se que a fixação de-verá ocorrer:

I – para os anos de 1999, 2000 e 2001, até 30 de junho de 1999; eII – para os anos de 2002 e seguintes, até 30 de junho de cada segundo ano imediatamente anterior.Art. 2o Ao Banco Central do Brasil compete executar as políticas necessárias para cumprimento

das metas fixadas.Art. 3o O índice de preços a ser adotado para os fins previstos neste Decreto será escolhido pelo

CMN, mediante proposta do Ministro de Estado da Fazenda.Art. 4o Considera-se que a meta foi cumprida quando a variação acumulada da inflação – medida

pelo índice de preços referido no artigo anterior, relativa ao período de janeiro a dezembro de cada anocalendário – situar-se na faixa do seu respectivo intervalo de tolerância.

Parágrafo único. Caso a meta não seja cumprida, o Presidente do Banco Central do Brasil divulgarápublicamente as razões do descumprimento, por meio de carta aberta ao Ministro de Estado da Fazen-da, que deverá conter:

I – descrição detalhada das causas do descumprimento;II – providências para assegurar o retorno da inflação aos limites estabelecidos; eIII – o prazo no qual se espera que as providências produzam efeito.Art. 5o O Banco Central do Brasil divulgará, até o último dia de cada trimestre civil, Relatório de

Inflação abordando o desempenho do regime de “metas para a inflação”, os resultados das decisõespassadas de política monetária e a avaliação prospectiva da inflação.

Art. 6o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 21 de junho de 1999;178o da Independência e 111o da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSOPedro Sampaio Malan

152 O Regime de Metas de Inflação ELSEVIER

APÊNDICE 2OS PREÇOS ADMINISTRADOS E A EFICÁCIADA POLÍTICA MONETÁRIAANTI-INFLACIONÁRIA NO BRASIL (1999-2005)

POR ANDRÉ DE MELO MODENESI

OS PREÇOS ADMINISTRADOS E A REDUÇÃO DA EFICÁCIA

DA POLÍTICA MONETÁRIA

Desde a adoção, em 1999, do regime de metas de inflação até 2005, a política monetária foi considera-velmente restritiva: a Selic foi mantida em níveis muito elevados, principalmente se comparada com astaxas de juros internacionais. Nesse período, a Selic real média foi quase 11% a.a. Apesar da austerida-de monetária, o Banco Central do Brasil não alcançou as metas de inflação nos anos de 2001, 2002 e2003. Um dos principais motivos para o insucesso do BCB no cumprimento das metas é a alta participa-ção dos preços administrados no Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), cerca de 30%.7

Preço administrado é aquele que “de alguma forma [é] determinado ou influenciado por um órgãopúblico; [os preços administrados] variam independentemente das condições vigentes de oferta e de-manda”. (BCB, Relatório Anual, 1999, p. 192.) Uma elevação dos juros, ao desestimular o investimen-to privado e o consumo (notadamente de bens duráveis), determina uma contração da demanda agrega-da que, por sua vez, reduz a variação positiva do nível de preços. Como os preços administrados não sãodeterminados pela interação entre oferta e demanda agregada, eles se tornam insensíveis à taxa de juros;vale dizer, estão fora do controle do BCB. Segundo estudo do Banco Central do Brasil, os preços admi-nistrados nas três esferas de governo são aqueles listados no Quadro 11.1.

QUADRO 11.1Preços Administrados por Contrato que Compõem o IPCA

Âmbito municipal ou estadual Âmbito federal

1. Gás encanado2. Imposto predial e territorial urbano (IPTU)

1. Derivados de petróleo: (i) Gasolina, (ii) Óleo diesel, (iii)Óleo para veículos e (iv) Gás de botijão

3. Taxa de emplacamento/licenciamento de veículos 2. Tarifa de energia elétrica de consumo residencial4. Taxa de água e esgoto5. Transporte público: (i) Ônibus urbanos, (ii) Ônibusintermunicipal, (iii) Barca, (iv) Metrô e (v) Táxi6. Cartório

3. Tarifas de telefonia (fixa, móvel e pública) e de correios4. Pedágio5. Transporte público: (i) Passagens de avião, (ii) Ônibusinterestadual, (iii) Trem, (iv) Navio e (v) Barco6. Planos e seguros de saúde7. Produtos farmacêuticos8. Jogos lotéricos

Fonte: BCB.

O Regime de Metas de Inflação 153

7. Dentre outros fatores, vale citar a postura demasiadamente conservadora do Conselho Monetário Nacional (CMN) ao fixarmetas muito reduzidas para a economia brasileira no período considerado. O ponto central da meta, fixado em 8% para o anode 1999, se reduziu drasticamente para 3,25%, em 2003 (antes das revisões da meta para esse ano). O CMN confirmou essaavaliação ao desistir de impor um processo de desinflação mais acelerado, mantendo em 4,5% o ponto central da meta para osanos de 2005, 2006, 2007 e 2008.

O elevado peso dos preços administrados na composição do IPCA reduz substancialmente a eficá-cia do único instrumento de política econômica atualmente utilizado para combater a inflação no País: ataxa de juros. A existência de preços administrados, reduzindo a eficácia da política monetária, torna-semais problemática quando se observa o crescimento acelerado desses preços, mostrado a seguir.

O COMPORTAMENTO ADVERSO DOS PREÇOS ADMINISTRADOS

O fato de cerca de 1/3 do IPCA estar fora do controle do BCB, em si, já compromete a eficácia da políti-ca monetária no combate inflacionário. Este problema se torna ainda mais grave quando se verifica queos preços administrados têm crescido consideravelmente acima dos demais componentes do IPCA (oupreços livres). Entre os anos de 1999 e 2003, os preços administrados acumularam variação de 93%,muito acima da inflação medida pelo IPCA, acumulada em 53% no mesmo período.

O Gráfico 11.9 mostra que os preços administrados têm-se comportado sistematicamente de formamais adversa do que os preços livres. Isto é indesejável, pois o crescimento de reduzido conjunto depreços (os administrados) requer que os preços livres sejam mantidos suficientemente reprimidos paraque o IPCA (ou a média ponderada dos dois grupos de preços) permaneça em patamares minimamentecompatíveis com as metas de inflação.

A ELEVAÇÃO EXCESSIVA DA SELIC E SUAS CONSEQUÊNCIAS

NEGATIVAS PARA A ECONOMIA

Para assegurar o cumprimento das metas de inflação, é necessário que os preços livres – determinadospelas condições de oferta e demanda – sejam excessivamente represados para compensar a forte pres-são exercida pelos preços administrados sobre o IPCA. Ou seja, a Selic deve ser fixada em níveis dema-siadamente elevados para manter a demanda agregada suficientemente reprimida e, consequentemente,controlar a inflação. Isto é, para uma dada meta de inflação, a existência de preços administrados impli-ca que a Selic deve ser mantida em patamar superior àquele que seria necessário caso todos os preçosfossem livres. Essa é a conclusão de estudo do próprio BCB: “(...) a política monetária poderia ter sidoconsideravelmente mais amena caso os preços administrados apresentassem um comportamento seme-lhante ao dos preços livres”.8

Destacam-se duas consequências negativas desse fato: o desestímulo às decisões de investimento,comprometendo o crescimento econômico; e a elevação da despesa com os juros da dívida pública,convertendo o superávit primário em déficit nominal, temas tratados em seguida.

154 O Regime de Metas de Inflação ELSEVIER

0,005,0010,0015,0020,0025,00

1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005

IPCA Administrados Livres

Fonte: IBGE.

GRÁFICO 11.9Taxa de Variação do IPCA, dos Preços Administrativos e dos Preços Livres (1999-2005)

8. Figueiredo, F.M. e Ferreira, T.P. “Os Preços Administrados e a Inflação no Brasil”. Trabalhos para Discussão, BCB, n. 59,2002, p. 26.

O SUBAQUECIMENTO DA ECONOMIA

Entre os anos de 1999 e 2005, o PIB brasileiro apresentou taxa média de crescimento de apenas 2,3%a.a. Resultado ainda mais decepcionante se comparado com o desempenho dos países em desenvolvi-mento que, de forma geral, têm crescido a taxas consideravelmente superiores e de forma sustentável.Ainda que não se possa considerar a política monetária a única responsável pelo subaquecimento daeconomia, ela certamente figura dentre as principais causas desse problema. Por exemplo, em setembrode 2004, o Comitê de Política Monetária (Copom) viu-se forçado a iniciar um movimento de elevaçãoda Selic para reverter a trajetória de crescimento do PIB. Isto porque o aquecimento da economia amea-çava o cumprimento da meta de inflação no ano de 2005. Segundo o BCB,

... em meados do ano [de 2004], registrou-se crescente ocupação da capacidade instalada na indús-tria, cuja continuidade poderia ter provocado pressões inflacionárias e ameaçado a continuidade dociclo de crescimento. (...) o Copom interrompeu, em maio, o processo de redução da taxa de juros,mantendo-a em 16% a.a. até setembro, quando passou a ocorrer o processo de ajuste moderado dapolítica monetária (...). A opção por essa conduta, favorecendo a moderação do ritmo de expansãoda economia no segundo semestre, e a maturação dos investimentos em curso mostraram-se sufi-cientes para dissipar perspectivas pessimistas quanto à evolução dos preços... .

Notadamente em resposta ao processo de contração monetária, a taxa de crescimento do PIB caiude 4,9%, em 2004, para 2,3%, em 2005, como se vê no Gráfico 11.10.

A DOMINÂNCIA MONETÁRIA

A partir de 1999, tornou-se claro o efeito perverso da política monetária sobre as contas públicas: comoo pagamento de juros tem sido muito alto, verificaram-se déficits nominais superiores a 3,5% do PIB adespeito dos elevados superávits primários, cuja média foi de quase 4% do PIB. Ou seja, tem havidouma dominância monetária: a política monetária afeta de forma negativa as contas públicas. Isso ocor-re devido à elevada participação das Letras Financeiras do Tesouro (indexadas à Selic) na dívida públi-ca, cerca de 50%. Assim, a manutenção da Selic em níveis elevados resulta em um custo financeiroigualmente elevado: a despesa com juros da dívida foi em média 8,1% do PIB, de 1999 a 2005. Emsuma, o impacto fiscal da política monetária tem anulado o enorme esforço do setor público na reduçãode sua dívida líquida, que se elevou de 48,7% (1999) para 51,6% do PIB (2005), alcançando o pico demais de 57% do PIB, em 2003 (Tabela 11.2).

O Regime de Metas de Inflação 155

0,8

4,4

1,31,9

0,6

4,9

2,3

0,01,0

2,03,04,0

5,06,0

1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005

Fonte: IBGE.

GRÁFICO 11.10Taxa de crescimento do PIB (%) (1999-2005)

TABELA 11.2Indicadores Selecionados das Contas Públicas (% do PIB): 1999-2005

AnoDívida Líquida doSetor Público Superávit Primário

Pagamento de Juros(Nominais) Déficit Nominal

1999 48,7 3,19 8,97 5,78

2000 48,8 3,46 7,08 3,61

2001 52,6 3,64 7,21 3,57

2002 55,5 3,89 8,47 4,58

2003 57,2 4,25 9,33 5,08

2004 51,7 4,59 7,26 2,67

2005 51,6 4,83 8,11 3,28

Fonte: BCB.

156 O Regime de Metas de Inflação ELSEVIER

OPERACIONALIDADEDA POLÍTICA MONETÁRIA:OBJETIVOS E INSTRUMENTOS

INTRODUÇÃO

Este capítulo analisa os objetivos gerais, as metas (operacionais e intermediá-rias) e os instrumentos de política monetária. O enfoque dado, neste e no pró-ximo capítulo, é fundamentalmente operacional, uma vez que os aspectosteóricos da política monetária são examinados nos Capítulos 7 a 11. Cabe res-saltar ainda que alguns conceitos que apareceram nos Capítulos 1 e 2 serãoreapresentados e detalhados. É enfatizado, tanto quanto possível, o caso brasi-leiro, de modo a proporcionar ao leitor um entendimento geral do modus ope-randi da política monetária no País. Alguns quadros foram inseridos paraproporcionar informações adicionais sobre a operacionalidade da política mo-netária no Brasil, sobre os recolhimentos compulsórios sobre recursos à vista,sobre as linhas de assistência financeira de liquidez etc.

O capítulo está dividido em três seções além desta introdução. Na Seção12.1 é examinada e desenvolvida uma estrutura analítica básica de políticamonetária composta de objetivos finais da política monetária, instrumentos,metas intermediárias, metas operacionais e função de reação do Banco Cen-tral. Embora esta estrutura seja bastante simplificada, ela tem a vantagem deproporcionar ao leitor uma ideia geral de como funciona a política monetária.Na Seção 12.2, são apresentados alguns conceitos básicos – como mercado dereservas, conta de reservas, gerenciamento de liquidez etc. – importantes parao acompanhamento da análise que se segue. O detalhamento desses conceitos,contudo, é feito no próximo capítulo. Na Seção 12.3, por sua vez, examinamosos instrumentos clássicos de política monetária: recolhimentos compulsórios,assistência financeira de liquidez (ou redesconto) e operações de mercadoaberto. A análise mais detalhada deste último instrumento também é feita nopróximo capítulo.

CAPÍTULO

12

12.1. ESTRUTURA OPERACIONAL DA POLÍTICA MONETÁRIA:

OBJETIVOS FINAIS, METAS, INSTRUMENTOS E FUNÇÕES DE REAÇÃO

É útil – para entendermos o modus operandi da política monetária – partirmos de uma estrutura analíti-ca básica, dividindo a política monetária em objetivos, metas e instrumentos, de modo a permitir umavisualização mais clara do seu funcionamento. Em parte, tanto os objetivos finais da política como a es-colha das variáveis operacionais a serem privilegiadas estão relacionados ao quadro referencial teóricoadotado (em termos simplificados, o velho debate entre monetaristas e keynesianos). Como já assinala-do, estes aspectos teóricos da política monetária, contudo, são analisados nos Capítulos 7 a 11 e, porisso, serão apenas eventualmente referidos neste capítulo. A seguir, analisamos cada um desses aspec-tos da estrutura da política monetária.

12.1.1. OBJETIVOS FINAIS DA POLÍTICA MONETÁRIA

A definição dos objetivos finais para a política monetária é um tema particularmente controverso dateoria econômica, envolvendo discussões diversas, como a existência (ou não) de um trade-off manipu-lável entre inflação e desemprego – ou seja, de uma relação inversa, estável e instrumentalizável entrenível de desemprego e inflação (a conhecida Curva de Philips), como defendem alguns economistaskeynesianos ou, ainda, da validade da hipótese da taxa natural de desemprego (definida por fatoresreais, como imperfeições no mercado de trabalho, nível de concorrência do mercado, obstáculos/incen-tivos ao trabalho etc.), como querem os monetaristas e novo-clássicos. A aceitação dessas (e de outras)hipóteses teóricas tem consequências diretas sobre a condução da política monetária, pois resulta emaceitar ou não se esta tem capacidade de afetar a longo prazo (ou seja, de forma permanente) as variáveisreais da economia, como os níveis de produto e de emprego, ou se afeta apenas as variáveis nominais,como a inflação. Em outras palavras, o que está em jogo é saber o que a política monetária é capaz de fa-zer e, portanto, se ela deve ser conduzida de forma discricionária ou com base em uma regra.

O estatuto de muitos bancos centrais estabelece que seu objetivo principal (senão o único) é alcan-çar a estabilidade de preços. Na prática, contudo, nem sempre isto ocorre, pois muitas vezes prevaleceo pragmatismo na condução da política monetária. Considerando que, na realidade, bancos centraisperseguem vários objetivos, além da estabilidade de preços, pode-se supor que entre seus demais obje-tivos estejam: alto nível de emprego; maior crescimento econômico; estabilidade da taxa de câmbio(dadas as interações entre taxa de juros e taxa de câmbio); prevenção de falências bancárias e manuten-ção da saúde do sistema financeiro (papel de fiscalizador e emprestador de última instância do sistema);manutenção da confiança dos investidores estrangeiros etc. Como já assinalado, a compatibilidade en-tre estes diferentes objetivos, em particular entre buscar um alto nível de emprego/maior crescimentoeconômico e garantir estabilidade de preços, tem sido objeto de persistentes controvérsias.

12.1.2. INSTRUMENTOS DE POLÍTICA MONETÁRIA

Os instrumentos de política monetária são os métodos e meios usados na implementação desta políticaque afetam diretamente as variáveis operacionais, com vistas a alcançar as metas intermediárias deseja-das. Em geral, utiliza-se o multiplicador monetário para aferir o impacto das alterações na base monetá-ria sobre a oferta de moeda da economia. Trata-se de um conceito que pode ser útil operacionalmente,mas é bastante simplificador em termos da forma como opera a política monetária, já que pressupõeuma estabilidade e previsibilidade na demanda por moeda do público, o que nem sempre ocorre.

Os instrumentos clássicos de política monetária são três: recolhimento compulsório, redesconto deliquidez e operações de mercado aberto. O detalhamento de cada um desses instrumentos é feito na Se-ção 12.3 deste capítulo.

Instrumentos depolítica monetária

Variáveisoperacionais

Metasintermediárias

Objetivosfinais

158 Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos ELSEVIER

12.1.3. METAS DE POLÍTICA MONETÁRIA

Metas IntermediáriasA atuação da política monetária sobre a economia leva tempo para se completar. Entre o momento dadecisão política e a consecução ou não dos seus objetivos decorre, assim, um longo período de tempoem que a autoridade monetária não sabe o impacto efetivo de suas ações. Por isso, o Banco Central esta-belece metas intermediárias: são como sinais de estrada que servem para informar ao Banco Central sea política está a caminho de fazer efeito ou não. Duas, normalmente, são as metas intermediárias: (a)taxa de juros de longo prazo;1 (b) agregados monetários (várias medidas de volume de moeda ou decrédito bancário). A ideia central por trás do uso dessas metas é que é através delas – impactando noscustos e disponibilidade de crédito, no custo de oportunidade do dinheiro ou diretamente no nível dosgastos dos agentes – que as autoridades monetárias procuram influenciar os objetivos finais da política,já que estes últimos não podem ser afetados diretamente pela política monetária. O Capítulo 14 analisacom detalhes os canais de transmissão da política monetária.

As metas intermediárias funcionam como indicadores de política monetária, sumariando o impac-to da política passada sobre a economia, pois: (a) fornecem ao Banco Central informações imediatas econtínuas, importantes para verificar se os instrumentos estão tendo o impacto desejado; (b) mais espe-cificamente, permitem aferir se o impacto global das ações da política está na direção de uma políticaexpansionista ou contracionista.

Metas OperacionaisAs metas operacionais referem-se àquelas variáveis que são resultado direto da operacionalização deum instrumento de política monetária, sendo fortemente associadas às metas intermediárias e aos ins-trumentos de política. O Banco Central, através da mesa de operações de mercado aberto, pode atuar fi-xando preços, ou seja, a taxa de juros, com o mercado determinando a quantidade de reservas (demoeda); ou então, controlando a quantidade de reservas bancárias e, assim, o mercado determinando ataxa de juros. Portanto, são dois os tipos de metas operacionais: (a) determinação da taxa de juros bási-ca de curto prazo (como a taxa de overnight); (b) controle das reservas bancárias agregadas. Mudan-ças nas variáveis operacionais, através dos instrumentos de política, afetam as metas intermediárias. Napassagem das metas operacionais (reservas) para as intermediárias (agregados monetários) opera omultiplicador monetário, em que a base monetária é transformada em um dado volume de meios de pa-gamento.

É importante ressaltar que o Banco Central não pode controlar simultaneamente a taxa de juros bá-sica e o nível de reservas bancárias. Isto porque se o Banco Central pretende alcançar uma determinadameta de taxa de juros, ele deve abrir mão do controle sobre o nível de reservas, que neste caso funcionacomo a variável de ajuste; por outro lado, se o Banco Central tenta alcançar uma determinada meta mo-netária agregada, ele perde o controle sobre a taxa de juros, pois esta deve ser permitida variar de modoa alcançar o nível consistente com a meta monetária. Um exemplo ajuda a ilustrar o argumento.

Vamos assumir um aumento no gasto público financiado com emissão de dívida pública. O aumen-to na demanda agregada resultante conduz a um nível de gasto e de renda maior que, por sua vez, au-menta a demanda por moeda na economia. A primeira hipótese – ilustrada no Gráfico 12.1 – é que oBanco Central vai procurar manter uma determinada meta de taxa de juros básica em r1. Esta meta irárequerer uma mudança na oferta de moeda para compensar o deslocamento na função demanda pormoeda. O impacto inicial deste deslocamento é um aumento na taxa de juros para r2, enquanto que aoferta de moeda permanece em MS1. O Banco Central precisa então aumentar a oferta de moeda de MS1

para MS2 para compensar o deslocamento na demanda por moeda, de modo a manter a taxa de juros emr1. Assim, ter uma meta de taxa de juros implica uma perda de controle sobre a oferta de moeda na pre-

Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos 159

1. Para uma análise da formação das taxas de juros de longo prazo, ver Capítulo 14.

sença de um deslocamento na demanda por moeda.A segunda hipótese – visualizada no Gráfico 12.2 – é que o Banco Central está comprometido com

uma meta de oferta de moeda MS1, o que significa que ele terá que abrir mão do controle sobre a taxa dejuros, que neste caso passa a ser a variável de ajuste. A tentativa de manter a oferta de moeda em MS1

significará que o deslocamento na demanda de moeda de MD1 para MD2 requer que o Banco Centraldeixe a taxa de juros se mover de r1 para r2.

O quadro a seguir sintetiza a estrutura analítica de política monetária, tal como desenvolvida até omomento neste capítulo.

160 Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos ELSEVIER

r MS1 MS2

r2

r1

MD2

MD1

GRÁFICO 12.1Mantendo uma Meta de Taxa de Juros

r MS1

r2

r1

MD2

MD1

MGRÁFICO 12.2Mantendo uma Meta de Taxa de Oferta de Moeda

QUADRO 12.1Estrutura Analítica da Política Monetária

Instrumentos de políticamonetária

Metasoperacionais

Metas intermediárias Objetivos finaisde política monetária

Recolhimentoscompulsórios

Redesconto de liquidez

Operações de mercadoaberto

Taxa de juros de curtoprazo

Reservas bancárias

Taxa de juros de longoprazo

Agregados monetários

Inflação

Nível de atividadeeconômica

Taxa de desemprego

Estabilidade do sistemafinanceiro

Deve-se ressaltar que, ainda que alguns bancos centrais estejam voltados para o controle de agrega-dos monetários, eles conduzem a sua política monetária no dia a dia por meio da fixação da taxa de ju-ros de curto prazo, que é, portanto, na prática, a meta operacional de política monetária. A definiçãodessa taxa é feita pelo Banco Central, que, de acordo com seu desenho institucional, pode preanunciar ataxa com que vai operar em determinado período.

No caso dos EUA, a definição de metas para as taxas de juros dos fundos federais (custo das reser-vas no mercado interbancário, que serve de taxa básica de juros) é feita pelo Comitê de Mercado Aberto– FOMC (Federal Open Market Committee), formado pelos sete governadores do Conselho dos Gover-nadores do Federal Reserve (ver Box 12.1) e por cinco dos presidentes dos bancos regionais, que se re-vezam no comitê. Por tradição, o Presidente do FOMC tem sido o Presidente do Conselho dos Gover-nadores do FED, e o seu Vice-Presidente, o Presidente do Federal Reserve Bank de Nova Iorque. OFOMC se reúne oito vezes por ano e, nestas ocasiões, para fundamentar a tomada de decisão sobre ataxa de juros básica, é feita uma análise das condições econômicas e monetárias do país e do exterior, demodo a indicar qual política de juros básicos é mais adequada aos objetivos de política econômica.

No Brasil a taxa de juros básica, assim como seu viés ou tendência (alta, baixa ou neutra) – é defini-da pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central do Brasil (COPOM), que se reúne periodica-mente (oito vezes ao ano), com a participação do presidente do BCB, os sete diretores da instituição eoutros cinco chefes de departamento (estes sem direito a voto). A taxa de juros fixada na reunião do Co-pom é a meta para a taxa Selic (taxa média dos financiamentos diários, com lastro em títulos federais,apurados no Sistema Especial de Liquidação e Custódia), a qual vigora por todo o período entre reu-niões ordinárias do Comitê. Se o viés for de baixa, o presidente do BCB poderá reduzir a taxa de jurosantes da reunião seguinte, se considerar adequado; se o viés for de alta, os juros podem subir; e se o viés

Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos 161

O Sistema da Reserva Federal foi criado nosEstados Unidos em 1913 para funcionar como oBanco Central do país. Sua estrutura atual écomplexa, composta de um órgão central, oConselho de Dirigentes (Board of Governors) doFederal Reserve e 12 bancos regionais. A estru-tura organizacional foi montada para o FED fun-cionar como um Banco Central independente.Os setes governadores que formam o Conselhosão indicados pelo Presidente do país e aprova-dos pelo Senado, com mandatos de 14 anos. OPresidente e Vice-Presidente do Conselho sãotambém apontados pelo Presidente do país econfirmados pelo Senado, para um período de

quatro anos. O pressuposto básico é que o lon-go mandato dos governadores impede que ogoverno federal tenha influência sobre a com-posição do Conselho. Para que o governo nãotenha influência direta sobre o Banco Central,este não recebe verbas do orçamento federal,sendo suas operações financiadas pelo rendi-mento de ativos pertencentes ao Sistema da Re-serva Federal, através de sua carteira de ações etítulos.

Fonte: Board of Governors of the Federal ReserveSystem. The Federal Reserve System: purposes & functi-ons. Washington, FED, 2005.

SISTEMA DA RESERVA FEDERAL (FEDERAL RESERVE SYSTEM) DOS EUA

BO

X1

2.1

for neutro, isto significa que os juros não mudam até a próxima reunião ordinária. Contudo, isto somen-te pode ocorrer se for convocada uma reunião ordinária.

O capítulo 11 detalha o papel do COPOM na definição da taxa de juros em contexto de um regimede metas de inflação. Resta, contudo, analisar que tipo de regra pode ser utilizada pelo Banco Centralpara determinar a taxa de juros de curto prazo. A mais conhecida é a chamada “Regra de Taylor”, for-mulada inicialmente pelo economista norte-americano John Taylor, em 1993.2

12.1.4. FUNÇÃO DE REAÇÃO DO BANCO CENTRAL: A REGRA DE TAYLOR

A Regra de Taylor tem sido usada como uma espécie de função de reação do Banco Central na determi-nação da taxa de juros de curto prazo. Serve, assim, como um guia operacional que o Banco Centralpode seguir no processo decisório de política monetária. A regra relaciona a taxa de juros (básica) a: i)desvios da inflação presente (ou esperada) em relação à meta inflacionária (estabelecida pela autorida-de econômica); ii) ao hiato do produto (ou seja, o desvio do produto efetivo de um país com relação aoproduto potencial)3; e iii) à taxa de juros real de equilíbrio. Assim, temos que

it = �t + g(yt – y*)+ h(� – �*) + rf (1)

it = taxa de juros nominal de curto prazo�t = taxa de inflação�* = meta para taxa de inflação(yt – y*) = desvio do PIB (ye) com relação ao seu potencial (y*)(�t – �*) = desvio da taxa de inflação (�t) com relação à meta inflacionária (�*)rf = estimativa da taxa real de juros de equilíbrio da economiag, h > 0; esses parâmetros medem a sensibilidade da taxa de juros, respectivamente, ao desvio do PIBcom relação ao seu potencial e ao desvio da inflação com relação à meta.

A meta inflacionária pode ser explícita (no caso de um país que adote um regime de metas de infla-ção) ou implícita (isto é, o Banco Central trabalha com uma meta inflacionária não anunciada). Segun-do essa regra, o Banco Central eleva (ou diminui) a taxa de juros quando a inflação aumenta (diminui)em relação à meta de inflação almejada pela autoridade econômica e/ou quando o produto real efetivoda economia supera (ou está abaixo) o nível compatível com a taxa potencial do produto. Assim, sehouver a necessidade de se elevar a taxa de juros, o Banco Central, com base na decisão do Comitê dePolítica Monetária (FOMC nos EUA e COPOM no Brasil), deverá por intermédio da mesa de mercadoaberto (mesa do open) realizar vendas de títulos públicos, contraindo assim a base monetária o que, porsua vez, pressiona a taxa de juros para cima. O quadro abaixo sintetiza os movimentos da taxa de jurosem respostas a mudanças nas variáveis da Regra de Taylor.

se (yt – y*) = 0 e (�t – �*) = 0, então, it = �t + rf

se (yt – y*) > 0 e/ou (�t – �*) > 0, então, � it

se (yt – y*) < 0 e/ou (�t – �*) < 0, então, � it

162 Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos ELSEVIER

2. Taylor, J. “Discretion versus policy rules in practice”. Carnegie-Rochester Conference Series on Public Policy, p. 195-214,dezembro de 1993.3. Taylor (1993) utilizou como proxy para o produto potencial uma tendência linear do logaritmo do PIB real tendo como baseo período compreendido entre o 1o trimestre de 1984 e o 3o trimestre de 1994. No caso do Brasil, o Banco Central utiliza o cha-mado filtro HP, proposto por Hodrick e Prescott em estudo de 1997, que define uma tendência de longo prazo como uma médiaponderada da série em análise.

John Taylor sugere que os pesos dados pela autoridade monetária aos parâmetros g e h corres-pondam a 0,5, embora em outros trabalhos este economista reconheça que outras estimativas suge-rem pesos diferentes. Tomando como base esses parâmetros, supondo que a taxa de inflação acu-mulada no ano (�t) em determinado período seja 5,0%, a meta de inflação do período (�*) igual a4,0%, o produto real efetivo (yt) 5,0% e o produto potencial estimado (y*) 4,0%, e taxa real de jurosde equilíbrio (rf) 2,0%, então segundo a Regra de Taylor a taxa de juros nominal de curto prazodeve ser igual a 8,0%, já que it = 5,0 + 0,5 (5,0 – 4,0) + 0,5 (5,0 – 4,0) + 2,0.

Tal regra de política monetária na prática, segundo o próprio John Taylor, não deve ser utilizadade forma mecânica, sendo necessário que o Banco Central observe o comportamento de outras variá-veis econômicas relevantes na determinação da taxa de juros. Em particular, em momentos de cho-ques temporários de grande magnitude (por exemplo, uma quebra na safra agrícola elevando a infla-ção acima da meta e reduzindo o PIB abaixo do seu potencial), a taxa de juros não deve sofrer movi-mentos abruptos. Neste caso, a taxa de juros deve ser calibrada de forma gradual de modo que a infla-ção corrente convirja mais lentamente para a meta e o PIB também convirja gradualmente para o seupotencial. Tal procedimento leva em conta os custos do processo de ajuste em termos de produto eemprego. Ou seja, o Banco Central deve considerar a volatilidade do nível de atividade em sua toma-da de decisão, sem desconsiderar o objetivo de atingir as metas de inflação. Deve-se acrescentar, ain-da, que outros instrumentos de política econômica podem ser utilizados para atingir o objetivo de es-tabilidade de preços de forma a não sobrecarregar a taxa de juros em sua tarefa de combater a infla-ção, já que os custos do processo de ajuste pode ser demasiado elevado. Por exemplo, o governo podeadotar uma política de regulação de estoques de produtos agrícolas para evitar que eventuais quebrasde safra elevem excessivamente a inflação.

A regra de Taylor estimada para ser adotada pelo Banco Central do Brasil, segundo economistas doBCB,4 relaciona a taxa de juros de curto prazo a desvios da taxa de inflação esperada em relação a metade inflação – permitindo alguma suavização da taxa de juros – e, ainda, ao hiato do produto e aos movi-mentos da taxa de câmbio. Assim, temos que

it = �iit–1 + (1 – �1) [�0 + �2 (Et+�t+j– �*t+j)+ �3yt–1+ �4 �et–1 (2)

it = taxa de juros (Selic) estabelecida pelo COPOMEt�t+j = expectativas inflacionárias, referente a algum período no futuro�*t+j = meta de inflação no anoyt-1 = hiato do produto�et–1 = variação da taxa de câmbio nominal

O hiato do produto é obtido pela diferença entre produto atual e o potencial, sendo usado comoproxy do produto atual a produção industrial mensal medida pelo IBGE, e o produto potencial esti-mado através do filtro HP, no que resulta em resultados semelhantes às estimativas feitas com basena extração de uma linha de tendência. O Banco Central utiliza duas fontes para estimar as expecta-tivas inflacionárias. A primeira é a previsão de inflação do BCB apresentada no Relatório de Infla-ção trimestral, que assume uma taxa de juros constante igual àquela decidida na reunião prévia doCOPOM. A segunda fonte é obtida do survey diário que o Banco Central realiza entre as institui-ções financeiras e firmas de consultoria. Este survey pergunta o que as firmas esperam da inflaçãode períodos determinados.

Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos 163

4. Minella, A., Freitas, P.S., Goldfajn, I. e Muinhos, M.K. “Inflation targeting in Brazil: constructing credibility under exchan-ge rate volatility”. Working Paper Series n. 77, Banco Central do Brasil, julho de 2003.

12.2. UMA INTRODUÇÃO AOS CONCEITOS OPERACIONAIS

12.2.1. MERCADO DE RESERVAS BANCÁRIAS

Este mercado destina-se à negociação das reservas bancárias entre os bancos, e entre estes e o BancoCentral. O mercado de reservas bancárias é o espaço institucional onde o Banco Central executa a polí-tica monetária. Pode ser separado em dois mercados:

a) O mercado primário é aquele em que ocorre uma transação entre o Banco Central e os bancos, queocasiona a criação ou destruição de reservas. Um exemplo típico é a venda de títulos públicos porparte do Banco Central em leilões formais para instituições bancárias, que é considerada uma opera-ção de venda definitiva, que, como será visto, difere das operações compromissadas, usadas paraefetuar o controle discricionário da liquidez por parte do Banco Central.

b) O mercado secundário é aquele em que ocorre uma transação interbancária, que resulta numa per-muta de reservas entre bancos. Neste caso, não há criação ou destruição de reservas. Trata-se domercado conhecido como interbancário, que pode incluir operações compromissadas realizadas en-tre os próprios bancos.

Para as explicações que se seguem é importante saber que a conta reservas é a conta de depósito emespécie que todos os bancos mantêm junto ao Banco Central, com o objetivo de registrar e receber os re-colhimentos compulsórios dos bancos, a liquidação de transações entre cada banco e o Banco Central,além de efetuar a liquidação e compensação dos pagamentos e recebimentos entre os próprios bancos(transações interbancárias).

12.2.2. GERENCIAMENTO DIÁRIO DE LIQUIDEZ E SINALIZAÇÃO DO RUMO

DA POLÍTICA MONETÁRIA

O Banco Central gerencia diariamente a liquidez no mercado de reservas de modo a acomodar a deman-da dos bancos por reservas bancárias e manter estável a taxa de juros. Através do gerenciamento diáriode liquidez, normalmente (mas não exclusivamente) feito por intermédio das operações de mercadoaberto, o Banco Central procura contrabalançar os movimentos de liquidez decorrentes das variaçõesautônomas das reservas bancárias, causadas, por exemplo, por uma entrada anormal de capitais exter-nos no país em um determinado dia. O gerenciamento diário de liquidez objetiva neutralizar as oscila-ções da taxa de juros básica decorrentes dessas variações autônomas. Trata-se de uma estratégia denatureza defensiva, que tem como objetivo básico manter em equilíbrio o volume de reservas bancári-as, neutralizando assim os efeitos adversos sobre as reservas dos bancos resultantes de fenômenos sazo-nais (por exemplo, transferências de recursos da rede bancária para os cofres públicos), acidentais ou decomportamento inesperado da comunidade financeira, que possam prejudicar o funcionamento domercado e/ou causar instabilidade no mesmo. Para tanto, o Banco Central deve buscar realizar uma pre-visão dos fatores que levam a uma variação autônoma de reservas para guiar suas ações neutralizadorase compensatórias diante dos movimentos de reservas, seja injetando ou retirando liquidez do mercado.O pressuposto é que existe um nível de reservas bancárias que garante a estabilidade da taxa de juros e éeste nível que deve ser perseguido pelas ações compensatórias.

Por meio do gerenciamento diário de liquidez o Banco Central procura contrabalançar os movimentos deliquidez das variações autônomas das reservas bancárias, de modo a manter em equilíbrio o mercado dereservas, visando neutralizar as oscilações da taxa de juros básica decorrentes dessas variações.

164 Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos ELSEVIER

12.2.3. SINALIZAÇÃO DA POLÍTICA MONETÁRIA

Por fim, cabe ainda ao Banco Central efetuar a sinalização para o mercado do rumo da política mone-tária, buscando influenciar a estrutura de taxa de juros da economia por meio da variável operacionalbásica, ou seja, a taxa de juros de curto prazo. Neste caso, trata-se de uma estratégia dinâmica, em que oBanco Central realiza um conjunto de operações com a finalidade de atingir objetivos mais amplos depolítica monetária, relacionados a uma estratégia de prazo mais longo. Ou seja, o papel do Banco Cen-tral – neste caso – é ativo, no sentido de que não só atua numa perspectiva temporal mais dilatada, comobusca atingir as metas intermediárias almejadas, coerentes com os objetivos últimos da política mone-tária. Neste sentido, o Banco Central visa manter um certo grau de pressão no mercado de reservascomo um todo, com o objetivo de atingir uma determinada meta de política monetária mais geral e du-radoura. Por exemplo, na adoção de uma política monetária restritiva, o Banco Central deve colocar omaior volume possível de títulos junto ao mercado para alcançar uma redução das reservas bancárias e,consequentemente, um menor crescimento dos agregados monetários.

O Banco Central busca também efetuar a sinalização para o mercado do rumo da política monetária, demodo a influenciar a estrutura de taxa de juros da economia por meio da variável operacional básica,ou seja, a taxa de juros de curto prazo, com a finalidade de atingir objetivos mais amplos de políticamonetária, relacionados a uma estratégia de prazo mais longo.

12.3. INSTRUMENTOS DE POLÍTICA MONETÁRIA5

12.3.1. RECOLHIMENTOS COMPULSÓRIOS

Os recolhimentos compulsórios são depósitos – sob a forma de reservas bancárias – que cada banco éobrigado legalmente a manter no Banco Central em reserva bancária, sendo calculados como um per-centual sobre os depósitos. Tais depósitos podem ser efetuados em espécie (reservas bancárias) ou emtítulos indicados pelo Banco Central. Uma de suas principais funções na implementação da política mo-netária é estabilizar a demanda por reservas bancárias, de modo a facilitar a ação do Banco Central nafixação da taxa de juros.

Em geral, este instrumento é posto em prática com o cumprimento de uma obrigação média dos sal-dos diários da conta reservas bancárias. A apuração da quantidade a ser recolhida deriva do saldo dabase de incidência do recolhimento compulsório em um intervalo de tempo intitulado período de cálcu-lo. A obrigação do recolhimento compulsório, por sua vez, é cumprida, por meio do depósito do valorexigível no Banco Central, ao longo de um período de tempo denominado período de movimentação.

No que se refere à sobreposição entre o período de cálculo e o período de movimentação, o recolhi-mento compulsório pode ser classificado como contemporâneo e defasado.

No recolhimento contemporâneo, há sobreposição entre o período de cálculo e o período demovimentação, pois este último inicia-se antes do encerramento do primeiro, quando se estabelece oexigível. No recolhimento defasado, o período de movimentação inicia-se somente após o término doperíodo de cálculo, podendo inclusive começar alguns dias depois.

Na maioria dos países desenvolvidos, com exceção dos Estados Unidos, o recolhimento compulsó-rio é defasado, o que é mais adequado para a execução de uma política monetária que tem como variá-vel operacional a taxa de juros. Isto porque este tipo de sistemática é mais apropriado para a previsão da

Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos 165

5. Esta seção está baseada parcialmente em Torres (1999). Foram utilizados no caso brasileiro dados e informações contidos no GuiaOperacional do Mercado Financeiro da ANDIMA, de abril de 2006, além de normas regulamentares do Banco Central do Brasil.

necessidade diária de reservas do sistema, já que o recolhimento defasado permite conhecer previamen-te a demanda média por reservas ao longo do período de movimentação.

Formas de Recolhimento dos Depósitos CompulsóriosHá dois modos de cumprir a obrigação relativa ao recolhimento compulsório. No primeiro modo, o bancodeve, diariamente, durante todo o período de movimentação, encerrar o movimento bancário com saldopositivo na conta reservas bancárias que seja, no mínimo, igual ao exigível. Caso isto não ocorra, o bancoestá sujeito a penalidades pecuniárias e administrativas. Deve ser ressaltado que este procedimento podedificultar a gerência de liquidez dos bancos, na medida em que os obrigam a manter um excesso de recur-sos na conta reservas bancárias, para atendimento das reduções não previstas no saldo desta conta.

No segundo modo, o banco tem que cumprir o recolhimento compulsório pela média das posiçõesdiárias de depósito durante o período de movimentação, sendo definido um valor mínimo que o bancodeve manter depositado em todos os dias do período. Este procedimento proporciona à instituição ban-cária uma maior flexibilidade na gerência do seu fluxo de caixa, pois esta pode administrar os seus de-pósitos compulsórios, compensando insuficiências diárias no saldo da conta de reservas com posterio-res excessos, e vice-versa. Deste modo, em um determinado dia do período de movimentação, um ban-co pode sacar uma quantia de reservas bancárias do seu recolhimento compulsório, seja para zerar seucaixa, seja para fazer uma arbitragem com a taxa de juros no mercado interbancário. Todavia, nos ou-tros dias do mesmo período de movimentação o banco tem que manter um excesso de saldo que garan-ta, na média do período, o cumprimento do valor exigível.

A metodologia de recolhimento pela média das posições diárias exige do Banco Central menor ati-vismo no gerenciamento de liquidez, e, ao mesmo tempo, pode ser útil na estabilização da taxa de jurosdo mercado de reservas bancárias, já que proporciona aos bancos uma certa flexibilidade na administra-ção do fluxo de caixa com vistas ao enfrentamento de necessidades temporárias de reservas. Tais neces-sidades podem, inclusive, resultar de um erro na quantidade ofertada de reservas pelo Banco Central,por conta de uma falha na previsão da necessidade de liquidez do sistema.

Funções do Recolhimento CompulsórioEmbora o recolhimento compulsório seja normalmente visto como um instrumento utilizado para o contro-le de agregados monetários pelo Banco Central – via multiplicador monetário, onde a oferta de moeda é ummúltiplo da base monetária, podendo ser esta relação determinada pelo Banco Central através do controle dataxa de recolhimento compulsório sobre os depósitos –, tal função tem sido relegada a segundo plano, consi-derando, entre outros fatores, o fato de que a política monetária em quase todos os países tem objetivado ocontrole da taxa de juros no mercado monetário e não o controle de agregados monetários.

Atualmente, as principais funções do recolhimento compulsório são: (a) fornecimento de liquidezao sistema bancário, diminuindo a probabilidade de ocorrência de pânicos financeiros; (b) controle decrédito, através da influência nas condições em que o mesmo é concedido, uma vez que um aumento norecolhimento compulsório equivale a uma taxação sobre a captação de recursos, aumentando o custo deoportunidade na manutenção de encaixes ociosos; (c) estabilização da demanda por reservas bancárias,ao tornar mais fácil e estável o gerenciamento de liquidez por parte de cada banco.

Deve ser assinalado que a tendência mundial nos últimos anos tem sido a de eliminação do recolhi-mento compulsório da execução da política monetária, sob o argumento de que ele diminui a competiti-vidade bancária, uma vez que seu custo recai normalmente sobre os bancos comerciais, e de que possuibaixa efetividade diante das inovações financeiras postas em prática pelos bancos, criando novos tiposde depósitos não sujeitos a recolhimento compulsório. Neste sentido, alguns países já deixaram de utili-zá-lo na condução de suas políticas, como México, Reino Unido, Canadá e Austrália. Note-se, contudo,que a eliminação ou diminuição dos recolhimentos compulsórios, se não forem acompanhadas de ou-tras medidas voltadas para um melhor gerenciamento das reservas, pode causar uma maior volatilidadeda taxa de juros básica, em decorrência de uma maior instabilidade da demanda por reservas.

166 Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos ELSEVIER

Recolhimentos Compulsórios no BrasilNo Brasil, a tendência geral tem sido de redução da importância dos recolhimentos compulsórios,como evidenciado pela redução paulatina das alíquotas de recolhimentos compulsórios nas diferentesmodalidades de depósitos (ver Quadro 12.2) e pela redução da incidência em algumas modalidades dedepósitos, que tiveram recentemente suas alíquotas zeradas, como depósitos a prazo de reaplicação au-tomática, depósitos judiciais e sobre garantia por fiança bancária e adiantamento sobre contrato decâmbio-exportação e em moeda nacional-importação. Ainda assim, as alíquotas sobre as principais for-mas de depósitos (à vista, a prazo e de poupança) são bastante elevadas no Brasil, sendo um dos fatoresresponsáveis pelos elevados spreads bancários6 praticados no país.

QUADRO 12.2Alíquotas de Recolhimento sobre Encaixes Obrigatórios

Período Recursosà vista

Depósitosà prazo

Depósitosde poupança

Operaçõesde crédito

1994 Jun 100 20 15 –Ago “ 30 20 –Out " " 30 15Dez 90 27 " "

1995 Abr " 30 " "Mai " " " 12Jun " " " 10Jul 83 30 " "Ago " 20 15 8Set " " " 5Nov " " " 0

1996 Ago 82 " " "Set 81 " " "Out 80 " " "Nov 79 " " "Dez 78 " " "

1997 Jan 75 " " "1999 Mar " 30 " "

Mai " 25 " "Jul " 20 " "Ago " 20 " "Set " 10 " "Out 65 0 " "

2000 Mar 55 " " "Jun 45 " " "

2001 Set " 10 " "2001 Jun " 15 " "

Jul " " 20 "2003 Fev 60 " " "

Ago 45 " " "2006 Jun " " " "

Fonte: Banco Central do Brasil – Relatório Anual 2005 e Guia Operacional da ANDIMA.

Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos 167

6. Spread bancário é a diferença entre a taxa (média) de empréstimos e a taxa (média) de captação do banco.

Este instrumento foi amplamente utilizado no início do Plano Real quando, com o receio de se criaruma “bolha de consumo”, típica do aumento de renda real gerada pelo sucesso inicial de um plano deestabilização, aumentou-se tanto a base de incidência (inclusive com a introdução de compulsórios so-bre as operações de crédito, já extintos) quanto a alíquota do recolhimento compulsório, com vistas aestabelecer um controle do crédito. A partir do final de 1999, há uma redução nas alíquotas do compul-sório, mas o movimento não tem sido uniforme, já que no ano 2001 houve um aumento na alíquota derecolhimento de encaixes relativos a depósitos a prazo e a depósitos de poupança. Consequentemente,o recolhimento compulsório sobre depósitos à vista, que não são remunerados, tem perdido importân-cia relativa para os recolhimentos remunerados (depósitos a prazo e de poupança) em termos de valoresrecolhidos junto ao Banco Central.

A estrutura dos recolhimentos compulsórios no Brasil tem as seguintes características:7

a) O recolhimento é defasado, com o período de movimentação iniciando-se após o término do períodode cálculo, com a defasagem de um dia. As instituições financeiras são divididas em dois grupos parafins do encaixe obrigatório sobre recursos à vista: “Grupo A” e “Grupo B”, sendo que ambos possuemo período de cálculo e de movimentação de cinco dias úteis, com defasagem de duas semanas entre osdois grupos (ver Quadro 12.3).

b) O cumprimento do exigível é feito com base na média das posições diárias de depósito durante o pe-ríodo de movimentação, sendo necessário manter um depósito mínimo diário de 80% do exigível nocaso dos recursos à vista.

c) A base de incidência é ampla, incluindo no caso de recolhimentos à vista: depósitos à vista, depósi-tos de aviso prévio, recursos em trânsito de terceiros, cobrança e arrecadação de tributos, chequesadministrativos, obrigações por prestação de serviço de pagamento e recursos de garantias realiza-das; e no caso de recursos a prazo: depósitos a prazo, recursos de aceites cambiais, células pignoratí-cias de debêntures, títulos de emissão própria e contratos de assunção de obrigações vinculadas aoperações com exterior.

d) O recolhimento compulsório sobre recursos à vista é cumprido em espécie e sem qualquer remune-ração pelo Banco Central. Já o recolhimento compulsório sobre depósitos a prazo é cumprido em tí-tulos públicos federais e o recolhimento sobre depósitos de poupança é cumprido em espécie, masremunerado por 80% da remuneração da poupança. Em todas as modalidades há penalidades legaispara o não cumprimento desta obrigação.

e) A base de cálculo da exigibilidade do recolhimento compulsório sobre recursos à vista correspondeà média aritmética do Valor Sujeito a Recolhimento (VSR) apurados no período de cálculo, deduzi-da de R$ 44.000.000,00. O período de cálculo tem início na 2a feira de uma semana e término na 6a

feira da mesma semana. A base de cálculo da exigibilidade do recolhimento compulsório sobre re-cursos a prazo, por sua vez, corresponde à média aritmética dos VSRs apurados no período de cálcu-lo, deduzida de R$ 30.000.000,00. O período de cálculo é de uma semana corrida.

f) A exigibilidade do recolhimento compulsório e do encaixe obrigatório sobre recursos à vista é apu-rada aplicando-se a alíquota de 45% sobre a base de cálculo de que trata o item anterior; alíquota de15% para recursos a prazo, e de 20% para depósitos de poupança.

168 Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos ELSEVIER

7As regras de recolhimentos compulsórios podem ser modificadas pelo CMN e pelo BCB a qualquer momento, ainda quetenham se mantido estáveis nos últimos anos. O leitor interessado em conhecer as regras vigentes deve consultar o GuiaOperacional da ANDIMA ou diretamente as normas estabelecidas pelo CMN e BCB no site do próprio Banco Central.

SEG TER QUA QUI SEX SEG TER QUA QUI SEX SEG TER QUA QUI SEX SEG TER

período de cálculo período de movimentação

período de movimentaçãoperíodo de cálculoGrupo B

Grupo A

QUADRO 12.3Período de Cálculo e Movimentação do Compulsório no Brasil

Operacionalidade da Política M

onetária: Objetivos e Instrum

entos169

QUADRO 12.4Regras sobre Recolhimentos Compulsórios

Tipo Base de Cálculo Alíquota Período de CálculoCumprimento daExigibilidade

Custo Financeiropor Deficiência Forma de Recolhimento

Recursosà Vista

Média dos saldos diários deduzidade R$ 44 milhões:

Depósitos à vista, depósitos de avisoprévio, recursos em trânsito deterceiros, cobrança e arrecadaçãode tributos, cheques administrativos,obrigações por prestação de serviçode pagamento e recursos degarantias realizadas etc.

45% I – Duas semanasconsecutivas, cominíciona 2a feira daprimeira semana etérminona 6a feira dasegunda semana

II – Defasagem deuma semana entreos grupos “A” e “B”

I – da 4a feira de segundasemana de cálculoaté 3a feira da segundasemana subsequente

II – Defasagem de umasemana entre os grupos“A” e “B”

Selic + 14% a.a Em espécie, semremuneração. A instituiçãofica isenta se a exigibilidadefor igual ou inferior a R$ 10mil

A instituição deve mantersaldo diário na contareservas bancárias de, nomínimo, 80% daexigibilidade apurada parao respectivo período demovimentação

Recursosa Prazo

Média dos saldos diários deduzidade R$ 30 milhões em cada períodode cálculo:

Depósitos a prazo, recursos deaceites cambiais, célulaspignoratícias de debêntures, títulosde emissão própria e contratos deassunção de obrigações vinculadasa operações com exterior

15% de 2a a 6a feira da 6a feira subsequenteao período de cálculoaté a 5a feira seguinte

(Selic +14% a.a.) / TR

Em títulos públicos federais.A instituição fica isenta se aexigibilidade for igual ouinferior a R$ 10 mil

Depósitos dePoupança

Média dos saldos diários de umasemana:

Depósitos de poupança e APE –Recursos de AssociadosPoupadores

20% de 2a a 6a feira da 2a feira subsequente aoperíodo de cálculo até a 6a

feira seguinte

(Selic +14% a.a.) /(TR+ 0,5%a.m.)

Em espécie, remuneradomensalmente por 80% daremuneração da poupança

ExigibilidadeAdicional(Recursos àVista, a Prazoe Poupança)

Soma, deduzida em R$ 100milhões, das seguintes parcelasapós aplicação de alíquotas:

Média do VSR dos recursos à vista

Média do VSR dos recursos a prazo

Média do VSR dos recursos depoupança

8%

8%

10%

de 2a a 6a feira da 2a feira subsequente aoperíodo de cálculo até a 6a

feira seguinte

Selic + 14% a.a Em espécie, remuneradopela Taxa Selic

Fontes: Guia Operacional da ANDIMA, abril 2006, e Banco Central do Brasil/Focus, 6/3/2003.

g) Em 2002, o Conselho Monetário Nacional instituiu uma “exigibilidade adicional sobre depósitos” quecorresponde à soma das parcelas de um adicional de 8% da média do VSR dos recursos à vista e dos re-cursos a prazo e 10% da média do VSR sobre depósitos de poupança, sendo deduzido R$ 100.000,00 dototal apurado. A exigibilidade adicional é cumprida em espécie e remunerada pela taxa Selic.

Maiores detalhes sobre a regulamentação relativa aos recolhimentos compulsórios podem ser vis-tos no Quadro 12.4, que apresenta as características principais deste instrumento de política monetáriano Brasil, incluindo a base de incidência, período de cálculo e período de movimentação. A mecânicade operação do recolhimento compulsório se assemelha àquela observada para o imposto de renda. Édefinida uma base de incidência, alíquotas, forma e data de pagamento.

O formato do compulsório no Brasil foi desenhado para dar suporte ao gerenciamento diário dereservas por parte do Banco Central, seja por permitir alguma flexibilidade na gerência de caixa dasinstituições financeiras, que contam com uma margem de saque diária de 20%, seja porque esta for-ma de recolhimento, sendo defasada e com base na média das posições diárias de depósito durante operíodo de movimentação, facilita o gerenciamento de liquidez tanto dos bancos quanto do BancoCentral, ajudando, desta forma, na estabilização da taxa de juros do mercado de reservas bancárias. Autilização deste instrumento no Brasil para o propósito de gerenciamento de liquidez se deve ao fatode que a existência de um volume expressivo de títulos públicos federais indexados à taxa Selic, ecom alta liquidez, de posse do setor bancário, cria dificuldades ao gerenciamento diário de reservaspor parte do Banco Central.

Sistemática de Operação do Compulsório sobre Recursos à Vista no BrasilA forma de cálculo do recolhimento compulsório sobre recursos à vista é bastante simples, como podeser visto no exemplo a seguir. Primeiramente, vale reiterar que o Banco Central dividiu as instituiçõesque são obrigadas a efetuar tal recolhimento em dois grupos, A e B. O objetivo é evitar uma contraçãoou uma expansão excessiva da liquidez no momento em que o compulsório for devido. Em segundo lu-gar, o recolhimento é feito em espécie, sem remuneração. Como já assinalado, a média dos saldos diáriosdeve ser deduzida de R$ 44 milhões e a instituição deve manter saldo diário de, no mínimo, 80% da exi-gibilidade apurada para o respectivo período de movimentação. Por fim, a alíquota sobre recursos à vis-ta é de 45% sobre a exigibilidade apurada.

Para melhor entender a operacionalização do compulsório no Brasil considere o seguinte exemplohipotético. Dois bancos, “a” e “b”, que fazem parte, respectivamente, dos grupos A e B, apresentaramos seguintes saldos diários das contas que sofrem a incidência de compulsório:

Saldos Diários (SD) em R$ milhõesBanco “a”

Dia 6a 2a 3a 4a 5a 6a 2a 3a 4a 5a 6a

SD 201 153 129 156 177 210 189 141 150 168 192

2a 3a 4a 5a 6a 2a 3a 4a 5a 6a 2a 3a

174 120 144 165 198 156 117 147 162 201 153 117

Banco “b”

Dia 6a 2a 3a 4a 5a 6a 2a 3a 4a 5a 6a

SD 147 159 198 160 159 216 171 192 216 180 135

2a 3a 4a 5a 6a 2a 3a 4a 5a 6a 2a 3a

162 132 150 165 189 171 126 135 165 192 150 117

ELSEVIER170 Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos

No caso do Banco “a”, o período de cálculo vai da 2a à 6a feira da primeira semana. Assim, a médiaaritmética dos saldos diários dos títulos (MASD) sujeitos à incidência de compulsório no primeiro pe-ríodo de cálculo vai ser igual a:

MASDBanco a =153 129 156 177 210

5

825

5165 0

� � � �� � ,

Como mostra o Quadro 12.4, esta média aritmética ainda não é a base de incidência (BI) do com-pulsório. Desta média, a instituição está autorizada a abater R$ 44 milhões. Assim, no caso do Banco“a”, a base de incidência do compulsório sobre depósitos à vista na primeira semana do exemplo seriaigual a R$ 121,0 milhões.

Vamos supor que os saldos diários do exemplo acima se refiram exclusivamente a depósitos à vista.Assim, sobre a média aritmética dos saldos diários deduzida dos R$ 44 milhões vai incidir uma alíquotade recolhimento compulsório de 45%. Logo, o valor sujeito a recolhimento (Exigível) será igual a

EBanco a = 0,45.BIBanco a = 0,45.R$ 121,0 milhões = R$ 54,5 milhões

O cálculo do compulsório é análogo para o Banco “b”. Assim, a média dos saldos diários, para oprimeiro período de cálculo, considera agora a segunda semana que vai da segunda à sexta-feira. Logo,

MASDBanco b =171 192 216 180 135

5

894

5178 80

� � � �� � ,

Abatendo-se os R$ 44 milhões, temos que a base de incidência (BI) para o Banco “b” é igual aR$ 134,8 milhões. Aplicando-se a alíquota de 45% temos o seguinte valor sujeito a recolhimento:

EBanco b = 0,45.BIBanco b = 0,45.R$ 134,8 milhões = R$ 60,7 milhões

Uma vez calculados os valores sujeitos a recolhimento, é possível analisar o período de movimen-tação. No caso do compulsório sobre depósitos à vista, a instituição financeira é obrigada a recolher ovalor devido à sua conta de reservas bancárias junto ao Banco Central até o final do período de movi-mentação, observando que o saldo diário desta conta nesse período não poderá ser inferior a 80% do va-lor devido como compulsório. No caso dos bancos do exemplo acima, supondo que tais instituições te-nham interesse em aplicar o máximo de suas reservas livres, poderíamos ter o seguinte comportamento(em valores em R$ milhões):

Banco “a”

E = 54,5 43,6** 43,6 43,6 43,6 98,1

6a* 4a 5a 6a 2a 3a

Banco “b”

E = 60,7 48,6** 48,6 48,6 48,6 109,10

6a* 4a 5a 6a 2a 3a

* Fim do período de cálculo** Saldo mínimo exigido nos dias anteriores ao fim do período de movimentação

Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos 171

O cálculo feito anteriormente é simples. No caso do Banco “a”, R$ 43,6 milhões representam 80%de R$ 54,5 milhões, sendo o mínimo que o banco é obrigado a recolher em cada dia de movimentação.Como o total a ser recolhido neste período de movimentação é R$ 272,50 milhões (5 � 54,5), conside-rando que o banco recolheu nos quatro primeiros dias R$ 174,4 milhões (4 � 43,6), então a instituição éobrigada a recolher no último dia de movimentação o valor de R$ 98,1 milhões (272,50 – 174,4). Omesmo cálculo deve ser feito para o Banco “b” para se obter o valor de R$ 109,10 milhões a ser recolhi-do no último dia de movimentação.

Por fim, vale notar que este recolhimento tem de ser realizado sempre em espécie e não recebe qual-quer remuneração. Além disso, no caso de a exigibilidade compulsória ser igual ou inferior a R$ 10 mil,a instituição fica desobrigada de efetuar seu recolhimento. Observe-se, também, que o Banco Centraldo Brasil estipula multas elevadas para aquelas instituições que descumprirem as exigências relativas àconta “reservas bancárias”. Neste caso, o custo financeiro é calculado tomando-se a taxa Selic mais osjuros de 14% a.a.

12.3.2. REDESCONTO OU ASSISTÊNCIA FINANCEIRA DE LIQUIDEZ

As operações de redesconto ou de assistência financeira de liquidez são empréstimos, na forma de cré-dito em reservas bancárias concedidos pelo Banco Central aos bancos, voltado normalmente para aten-der necessidades episódicas de reservas por parte das instituições bancárias. Há duas formas deassistência financeira de liquidez:

a) empréstimos com garantias: neste caso, o Banco Central concede crédito rotativo contra garantiasaté o limite de saque do tomador fixado pelo Banco Central, calculado, em geral, com base no passi-vo exigível do banco e fixado para um determinado período;

b) redesconto: neste caso, o Banco Central desconta títulos elegíveis, por ele definidos, à taxa de jurospreviamente definida para essas operações, sendo a escolha dos títulos elegíveis como garantias nasoperações de assistência de liquidez uma forma de criar demanda para esses papéis, em que os títu-los eleitos mais comuns são os de dívida pública.

Há alguns bancos centrais que mantêm mais de uma linha de financiamento de assistência de liqui-dez, formando a taxa de juros desses empréstimos uma espécie de corredor, com um teto e um piso, quefuncionam respectivamente como limites superior e inferior, no qual é permitido flutuar a taxa de jurosno mercado de reservas bancárias. Normalmente a linha de crédito concedido via taxa-piso é subsidia-da, estando abaixo da taxa de mercado interbancário de reservas.

É importante destacar que a iniciativa da quantidade de reservas a ser tomada é das instituições ban-cárias sendo, portanto, determinada pela demanda de reservas bancárias. Todavia, o Banco Central podeinfluenciar (para cima ou para baixo) a demanda por esta linha de financiamento ao limitar o acesso a essetipo de crédito, alterando a taxa de redesconto dos títulos ou os limites de operação (tetos quantitativos es-tabelecidos pelo Banco Central, podendo tomar como base os depósitos captados pelos bancos ou deter-minados títulos elegíveis) ou criando restrições quanto aos títulos que podem ser redescontados.

Portanto, nas operações de assistência de liquidez, o Banco Central geralmente fixa a taxa de jurosdestas operações e deixa a determinação da quantidade a cargo dos demandantes, mas há alguns forma-tos em que há racionamento de crédito via quotas individuais ou restrições administrativas estabeleci-dos pelo próprio Banco Central. A taxa de juros nas operações de assistência de liquidez pode ser: (a)fixa: neste caso ela é prefixada, e qualquer variação da taxa de juros do mercado de reservas altera ospread com relação à taxa de desconto, podendo induzir a uma maior ou menor tomada de empréstimode liquidez à medida que o diferencial aumenta ou diminui; (b) variável: neste caso a taxa de descontoestá ancorada na taxa de juros do mercado de reservas bancárias (por exemplo, a taxa Selic), podendoser adicionada uma taxa de juros fixa a ela; assim, quando a taxa de mercado subir ou descer, a taxa dosempréstimos de liquidez ajusta-se automaticamente, mantendo o diferencial constante.

172 Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos ELSEVIER

Apoio no Gerenciamento da Liquidez, Funcionandocomo “Válvula de Segurança”

A assistência financeira de liquidez tem funcionado em vários países como uma “válvula de segurança”colocada à disposição dos bancos para solucionar problemas de caixa individuais que eventualmentevenham a ocorrer ao final do dia ou ao final do período de movimentação do recolhimento compulsó-rio, evitando a existência de saques a descoberto na conta de reservas bancárias. Pressupondo-se que amaior parte da gerência de liquidez em geral é feita via operações de mercado aberto,8 cabe à assistênciade liquidez a função de promover o ajuste de fluxo de caixa individual, quando algum banco tiver ne-cessidade inesperada de reservas bancárias. Neste caso, o Banco Central também está atuando na suafunção de “emprestador de última instância” do sistema financeiro, ou seja, está visando a preservaçãoda saúde financeira do setor bancário.

Neste sentido, as operações de assistência financeira à liquidez são usadas indiretamente comoapoio no controle da liquidez, com vistas à maior estabilidade da taxa de juros no mercado monetário.Esses empréstimos do Banco Central, por sua característica de funcionar como uma “válvula de segu-rança” para solucionar desequilíbrios de fluxos de caixa não previstos, minimizam a possibilidade dealguns bancos pressionarem a taxa de juros em função de necessidades pontuais de reservas bancárias.Assim, ainda que possam ter um peso quantitativo relativamente pequeno no que se refere às operaçõesdo Banco Central, em termos qualitativos as operações de assistência de liquidez desempenham um pa-pel acessório que pode ser importante no gerenciamento de liquidez feito pelo Banco Central.

É importante destacar que a condição necessária para que a assistência financeira de liquidez funcio-ne como um “colchão de reservas”, contribuindo para a estabilização da taxa de juros de curto prazo, éque essas operações não sejam restritivas. Deste modo, quando houver um erro na gerência de liquidezpor parte do Banco Central, a taxa de juros do mercado monetário pode se movimentar – assim como ospread entre esta taxa e a taxa de redesconto deve flutuar – e equilibrar as reservas deste mercado. Emcaso de deficiência de reservas, o spread tende a aumentar, induzindo a saques nas linhas de assistênciade liquidez no Banco Central. Consequentemente, como a oferta de reservas se expande, a taxa de jurosdo mercado monetário acaba por cair, ajustando a demanda e oferta de reservas. No caso de excesso dereservas ocorre o inverso: o spread tende a cair, estimulando a quitação dos financiamentos via assistência de liquidez com recursos captados no mercado interbancário. O efeito resultante é contracionista,fazendo com que a taxa de juros do mercado suba até equilibrar de novo a demanda e oferta de reservas.Para a assistência financeira de liquidez funcionar como uma espécie de estabilizador automático eladeve, contudo: (a) estabelecer alguma forma de limite quantitativo nos saques feitos pelas instituiçõesbancárias; (b) a taxa de juros cobrada nesta operação deve ser maior que a taxa praticada nos leilões pri-mários de títulos pelo Tesouro Nacional, de modo a evitar uma arbitragem por parte dos bancos, toman-do recursos barato na assistência de liquidez e aplicando-os a taxas maiores em títulos do Tesouro.

Portanto, no caso em que o redesconto de liquidez envolva uma taxa punitiva, é requerida uma atua-ção mais ativa e frequente da mesa de open market para absorver as flutuações no mercado de reservasresultantes de oscilações mais bruscas na oferta e demanda por reservas, pois, do contrário, tais flutua-ções poderiam ocasionar um aumento na volatilidade da taxa de juros de curto prazo.

Instrumento de Sinalização de Política MonetáriaO anúncio da taxa de juros da assistência financeira de liquidez ao mercado pode ser um dos instrumen-tos usados pelo Banco Central para sinalização da política monetária, com impacto direto sobre as taxasde juros do mercado de reservas. Um aumento na taxa de desconto reduz a demanda por empréstimosno Banco Central, diminuindo, consequentemente, a oferta de liquidez, tendo normalmente um efeitoaltista sobre a taxa de juros no mercado interbancário; por outro lado, uma diminuição na taxa de des-conto tem efeito contrário, aumentando a demanda por empréstimos de liquidez, e o consequente incre-

Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos 173

8. Ver Seção 12.3.3, a seguir.

mento na oferta de liquidez tem efeito baixista sobre a taxa de juros no mercado interbancário. Éfundamental, contudo – e para que uma mudança na taxa de assistência de liquidez altere efetivamentea sinalização da política monetária –, que esta sinalização seja acompanhada pela mesa do open do Ban-co Central, pois do contrário pode-se gerar ruídos e descoordenação na política monetária.

Em alguns países a taxa de juros de assistência de liquidez é utilizada como sinalização da trajetóriapela qual a taxa de juros de overnight irá evoluir. Certos países – como Austrália e Suécia (e antes daformação do Banco Central Europeu, também a Alemanha) – têm utilizado a taxa de juros desses em-préstimos para formar corredores de taxa de juros, através dos quais caminha a taxa de juros de curto pra-zo, que serve de variável operacional, reforçando, assim, a sinalização da política monetária. A maiorou menor eficácia deste corredor na emissão de sinal de política monetária depende, em parte, da ampli-tude do intervalo, de flutuação, pois quanto maior este intervalo menor a qualidade do sinal emitido.

Redesconto Seletivo ou EspecialRedesconto seletivo ou especial são empréstimos feitos pelo Banco Central indiretamente ao setor pri-vado, normalmente sob a forma de refinanciamento de operações bancárias de longo prazo. Trata-se deoperações típicas de repasse, para os quais as autoridades monetárias concedem linhas especiais de cré-dito de longo prazo para promover o desenvolvimento de setores ou regiões, ou ainda uma atividade es-pecífica, sendo em geral operadas a taxas de juros favorecidas. Este tipo de modalidade de redescontofoi usado no Brasil, particularmente nos anos 70, através de fundos e programas especiais administra-dos pelo Banco Central, mas não tem sido mais utilizado.

Uma outra modalidade de redesconto seletivo são empréstimos especiais do Banco Central para fi-nanciamento de reestruturação bancária, seja para a realização de um ajuste patrimonial mais profundode uma instituição financeira, seja para incentivar processos de fusões e incorporações em momentosde crises bancárias. Um exemplo típico desta modalidade de redesconto foi o Programa de Estímulo àReestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeira Nacional – o PROER – instituído em3/11/1995, uma linha especial de assistência financeira do Banco Central do Brasil, com o objetivo deresguardar a liquidez e solvência do Sistema Financeiro Nacional. De fato, o setor bancário brasileiroesteve à beira de uma crise bancária no ano de 1995, como resultado da brusca elevação da taxa de jurosem março de 1995, do fechamento de dois grandes bancos varejistas (o Econômico e o Nacional) e dovirtual fim das receitas inflacionárias auferidas pelos bancos. O PROER foi um amplo programa de fi-nanciamento favorecido para absorção das instituições bancárias em dificuldades por bancos mais sóli-dos, com recursos originados dos depósitos compulsórios dos próprios bancos junto ao Banco Central.

Redesconto de Liquidez no BrasilA linha de assistência de liquidez no Brasil foi modificada, em setembro de 1999, quando foram extintas aTBC (Taxa Básica do Banco Central) e a TBAN (Taxa de Assistência do Banco Central), que funciona-vam respectivamente como piso e teto do custo do empréstimo de liquidez, formando um corredor queguiava a trajetória da taxa Selic. O modelo atual das operações de redesconto tem um caráter limitado edesencorajador em função das taxas de juros cobradas, o que requer um papel mais ativo das operações demercado aberto no gerenciamento de liquidez. Em outros palavras, as operações de redesconto atuam deforma apenas auxiliar no gerenciamento de reservas feito pelo Banco Central, que colocada à disposiçãodos bancos uma linha de assistência de liquidez que ajude a solucionar problemas de caixa individuaisque eventualmente venham a ocorrer ao final do dia ou ao final do período de movimentação do recolhi-mento compulsório, evitando a existência de saques a descoberto na conta de reservas bancárias.

Como pode ser visto no Gráfico 12.3 o volume de operações na linha de assistência de liquidez noBrasil tem sido normalmente baixo.9 No entanto, em determinados momentos verificam-se picos nos

174 Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos ELSEVIER

9. No Gráfico 12.1 os valores de vale (quase que simétricos aos valores de pico) correspondem aos pagamentos feitos pelosbancos dos empréstimos de assistência de liquidez por eles tomados no período imediatamente anterior.

volumes emprestados, revelando a importância da assistência de liquidez no processo de gerenciamen-to do fluxo de caixa dos bancos que, ao funcionar como válvula de escape, evita maiores pressões sobrea taxa de juros.

Com base no Quadro 12.5, pode-se observar que há duas modalidades de redesconto no Brasil: (i)uma feita com lastro em títulos públicos federais, outros títulos e valores mobiliários e créditos/direitoscreditórios através de operações compromissadas, sendo as modalidades mais comuns a intradia ou deum dia (que contemplam exclusivamente os títulos públicos federais) voltada para casos corriqueirosde descasamentos de fluxo de caixa; (ii) outra modalidade – intitulada redesconto – envolvendo o des-conto de títulos e de direitos creditórios, integrantes do ativo da instituição bancária.

Na primeira modalidade de redesconto (“compra com compromisso de revenda”), nas operaçõesintradia o preço de revenda é igual ao respectivo preço de compra; já nas operações de um dia útil oumais o preço de revenda é igual ao preço de compra mais a taxa Selic apurada em cada dia útil de opera-ção. Na segunda modalidade (“redesconto”, propriamente dito) a taxa cobrada (taxa de redesconto) évariável em função dos ativos redescontados e estabelecida, de acordo com critérios definidos peloBanco Central, levando-se em consideração o valor presente, o valor de mercado, o risco de crédito, oprazo de vencimento, a liquidez e a volatilidade do preço de cada ativo.

As operações de redesconto do Banco Central podem ser de:

a) intradia, destinadas a atender necessidades de liquidez de instituição bancária, ao longo do dia;

b) 1 dia útil, destinadas a satisfazer necessidades de liquidez decorrentes de descasamento de curtíssi-mo prazo no fluxo de caixa de instituições bancárias;

c) até 15 dias úteis, podendo ser recontratadas desde que o prazo total não ultrapasse 45 dias úteis, des-tinadas a satisfazer necessidades de liquidez provocadas pelo descasamento de curto prazo no fluxode caixa de instituição bancária e que não caracterizem desequilíbrio estrutural;

d) até 90 dias corridos, podendo ser recontratadas desde que o prazo total não ultrapasse 180 dias corri-dos, destinadas a viabilizar o ajuste patrimonial de instituição bancária com desequilíbrio estrutural.

Como visto acima (item “d”), o Banco Central do Brasil mantém uma linha de redesconto especial– com prazo de 90 dias corridos, podendo ser recontratada para o prazo máximo de 180 dias – para insti-tuições com dificuldades atípicas de caixa. Essa linha opera com custos reduzidos, mas que, em casosda manutenção prolongada de uma situação de desajuste patrimonial, pode resultar num processo de li-quidação ou aquisição. Isto porque esta linha só pode ser acessada mediante a entrega de um detalhadoplano de reestruturação da instituição e se o plano for aprovado pela Diretoria Colegiada do Banco Cen-tral, que passa a supervisionar o andamento do mesmo.

Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos 175

–80000

–60000

–40000

–20000

0

20000

40000

60000

80000

ago/02nov/02

fev/03

mai/03ago/03nov/03

fev/04

mai/04ago/04nov/04

fev/05

mai/05ago/05nov/05

fev/06

Fonte: Banco Central do Brasil.

GRÁFICO 12.3Assistência financeira à liquidez (R$ mil)

A movimentação financeira relativa às operações de redesconto é realizada na conta “reservas ban-cárias” mantidas pelos bancos no Banco Central do Brasil.

QUADRO 12.5Redesconto do Banco Central do Brasil (1)

Condições I – COMPRA COM COMPROMISSO DE REVENDA

Lastro – Títulos públicos federais registrados no SELIC, que integrem a posição de custódia própria dainstituição bancária;

– Outros títulos e valores mobiliários, crédito e direitos creditórios, preferencialmente comgarantia real, e outros ativos, a critério exclusivo do BCB.

Prazos – intradia, destinadas a atender necessidades de liquidez de instituição bancária, ao longo dodia; (2)

– 1 dia útil, destinadas a satisfazer necessidades de liquidez decorrentes de descasamento decurtíssimo prazo no fluxo de caixa de instituição bancária; (2)

– até 15 dias úteis, podendo ser recontratadas desde que o prazo total não ultrapasse a45 dias úteis, destinadas a satisfazer necessidades de liquidez provocadas pelo descasamentode curto prazo no fluxo de caixa de instituição bancária e que não caracterizem desequilíbrioestrutural; (3)

– até 90 dias corridos, podendo ser recontratadas desde que o prazo total não ultrapasse180 dias corridos, destinadas a viabilizar o ajuste patrimonial de instituição bancária comdesequilíbrio estrutural. (3)

Valor Limitado ao valor de avaliação, pelo BCB, dos ativos objeto de compra.

Preço de compra Preço unitário divulgado diariamente pelo BCB.

Preço de Revenda – operação intradia: igual ao respectivo preço de compra;

– operação de um dia útil ou mais: preço de compra adicionado de valor correspondente àaplicação, sobre o preço de compra e prazo da operação, da taxa obtida pela composição daTaxa Selic, apurada para cada dia útil de operação, com taxa fixada pela Diretoria Colegiadado BCB válida na data da realização da operação.

Condições II – MODALIDADE REDESCONTO

Envolve Títulos e valores mobiliários e direitos creditórios descontados integrantes do Ativo dainstituição bancária.

Prazos – até 15 dias úteis, podendo ser recontratadas desde que o prazo total não ultrapasse a45 dias úteis, destinadas a satisfazer necessidades de liquidez provocadas pelo descasamentode curto prazo no fluxo de caixa de instituição bancária e que não caracterizem desequilíbrioestrutural; (3)

– até 90 dias corridos, podendo ser recontratadas desde que o prazo total não ultrapasse180 dias corridos, destinadas a viabilizar o ajuste patrimonial de instituição bancária comdesequilíbrio estrutural. (3)

Taxa deRedesconto

Variável em função dos ativos e estabelecida, segundo critérios definidos pelo BCB,levando-se em conta o valor presente, o valor de mercado, o risco de crédito, o prazo devencimento, a liquidez e a volatilidade do preço de cada ativo.

Venda de AtivosRedescontados

Preço do redesconto adicionado de valor correspondente à aplicação, sobre o preço doredesconto e pelo prazo da operação, com taxa fixada pela Diretoria Colegiada do BCB eválida na data da realização da operação.

Notas: (1) Exclusiva de Bancos Comerciais, Múltiplos com Carteira Comercial e Caixas Econômicas. (2) As operações intradia e de umdia útil contemplam exclusivamente os títulos públicos federais, e são realizadas por intermédio de mensagens específicas constantesdo Catálogo de Mensagens do Sistema de Pagamentos Brasileiro. (3) O BCB deverá ser informado pela instituição bancária, até as 16hdo mesmo dia, sobre a eventual necessidade de utilização da operação. Regulamentação: Resolução no 2949/02, Circ. no 3105/02 eCarta/Circ. no 3009/02.

Fonte: Guia Operacional da ANDIMA, abril 2006.

176 Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos ELSEVIER

12.3.3. OPERAÇÕES DE MERCADO ABERTO (OPEN MARKET)

As operações de mercado aberto são – na prática – o instrumento mais eficaz para a realização do gerencia-mento de liquidez de que dispõe o Banco Central, já que opera diretamente sobre as reservas bancárias.Não é por outro motivo que, em todo o mundo, este instrumento tem sido objeto de aperfeiçoamentos. Atendência internacional revela o uso cada vez mais intenso deste instrumento, como forma de evitar avolatilidade na taxa de juros de curto prazo, sendo comuns os casos em que o Banco Central intervémdiariamente no mercado por meio de operações de curta maturidade. Para tanto, em geral, realiza leilõesinformais (go-arounds) diários – envolvendo compra ou venda de títulos públicos – com a finalidadede amortecer as pressões sobre a taxa de juros.

O open market funciona através da compra e venda de títulos públicos por parte do Banco Central,afetando diretamente o volume de reservas bancárias da seguinte forma:

a) se a venda de títulos é maior que o regaste num determinado dia, as reservas se contraem;

b) se o resgate de títulos é superior à venda num determinado dia, as reservas se expandem.

As operações de mercado aberto são realizadas de maneira competitiva por meio de leilões de títu-los ou dinheiro. O Banco Central pode operar com títulos públicos ou privados (o que é menos comum enão ocorre no Brasil), sendo fundamental que o título não só possua baixo risco como também um mer-cado secundário organizado de revenda que proporcione uma elevada liquidez ao mesmo. Em geral, os tí-tulos utilizados são prefixados (exceção do Brasil, onde os títulos indexados a Selic tiveram grande im-portância), obtendo o comprador do papel um rendimento sobre o valor de face no momento do leilão.

Este instrumento é recomendado tanto para a realização da gerência de liquidez, como para a sinali-zação da taxa de juros básica. Nessas operações, o sinal do rumo da política é enviado por intermédio dadivulgação da taxa de juros pela qual foram negociados os títulos ou reservas entre o Banco Central e omercado.

A utilização deste instrumento para reduzir a volatilidade da taxa de juros é justificada não so-mente por ser o instrumento mais ágil para fazer a sintonia fina de liquidez, pois atua diretamente so-bre as reservas bancárias, como também pelo fato de que a tendência mundial de redução dos recolhi-mentos compulsórios, ao aumentar a instabilidade da demanda por reservas, requer a utilização deum instrumento flexível para a realização do gerenciamento de liquidez. Em particular, o esforço dosbancos centrais em reduzir a volatilidade no mercado de reservas – com impactos sobre a taxa de ju-ros – tem levado à redução da maturidade das intervenções e, ao mesmo tempo, ao aumento de suafrequência. Para este fim, as operações compromissadas são o instrumento preferido pelos bancoscentrais na gerência de liquidez, já que possibilitam o ajuste de liquidez sem afetar o preço dos títulosutilizados como garantias.

No Brasil, a gerência de liquidez tradicionalmente tem sido feita principalmente por operações demercado aberto. O detalhamento das operações de mercado aberto, assim como a determinação da taxade juros básica com a sua utilização, é feito no próximo capítulo.

12.3.4. OUTROS INSTRUMENTOS

Além dos recolhimentos compulsórios, operações de assistência à liquidez e operações de mercadoaberto, há outros instrumentos monetários, não convencionais, que podem ser usados pelo Banco Cen-tral. Trata-se principalmente do estabelecimento por parte do Banco Central de controles diretos sobreo crédito, através do controle do volume, dos prazos e da destinação do crédito bancário, ou sobre ataxa de juros, estabelecendo, por exemplo, um teto para os juros. Esses instrumentos têm um forte con-teúdo discricionário, pois com eles se pretende determinar diretamente as variáveis que normalmente oBanco Central procura influenciar indiretamente pela manipulação das metas operacionais. As críticasque são feitas normalmente a tais instrumentos é que eles podem gerar distorções no funcionamento domercado de crédito, desestimulando a atividade de intermediação financeira.

Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos 177

Particularmente, dos anos 70 até o início dos anos 80, esses instrumentos foram usados fartamen-te no Brasil, mas nos últimos anos não têm sido mais usados, acompanhando a tendência internacio-nal de se utilizar e aperfeiçoar os instrumentos monetários convencionais para o exercício da políticamonetária.

RESUMO

1. Em termos didáticos é útil – para entender o modus operandi da política monetária – montar uma estruturaanalítica, dividindo a política monetária em objetivos, metas e instrumentos, pois isto permite uma visualiza-ção mais clara do seu funcionamento. Em boa medida, tanto os objetivos finais da política como a escolha dasvariáveis operacionais a serem privilegiadas estão relacionadas ao quadro referencial teórico adotado. Em ter-mos gerais, os objetivos ou metas finais da política monetária são: estabilização de preços, um nível de ativi-dade econômica elevado, uma baixa taxa de desemprego e maior estabilidade do sistema financeiro.

2. As metas intermediárias estão entre as metas finais de política e as ações do Banco Central através de seus ins-trumentos de política. Duas podem ser as metas intermediárias: (i) taxa de juros de longo prazo; (ii) agregadosmonetários. A ideia central do uso destas metas é de que é através delas – impactando nos custos e disponibili-dade de crédito ou diretamente no nível dos gastos dos agentes – que as autoridades monetárias procuram al-cançar os objetivos finais da política, já que estes últimos não podem ser afetados diretamente pela políticamonetária. Já as metas operacionais referem-se àquelas variáveis que são resultado direto da operacionaliza-ção de um instrumento de política monetária, sendo fortemente associadas às metas intermediárias e aos ins-trumentos de política. São dois os tipos de metas operacionais: (i) determinação da taxa de juros básica decurto prazo; (ii) controle das reservas agregadas.

3. A Regra de Taylor tem sido usada como uma espécie de função de reação do Banco Central na determinaçãoda taxa de juros de curto prazo. Serve, assim, como um guia operacional que o Banco Central pode seguir noprocesso decisório de política monetária. A regra relaciona o movimento da taxa de juros fundamentalmente adesvios da inflação presente ou esperada em relação à meta inflacionária estabelecida pela autoridade econô-mica e também ao chamado hiato do produto, ou seja, o desvio do produto efetivo de um país com relação aoproduto potencial. Tal regra de política monetária na prática não deve ser utilizada de forma mecânica, sendonecessário que o Banco Central observe o comportamento de outras variáveis econômicas relevantes na deter-minação da taxa de juros.

4. Os instrumentos de política monetária são os métodos e meios usados na operacionalização desta política queafetam diretamente as variáveis operacionais, com vistas a atingir as metas intermediárias. Os instrumentosclássicos de política monetária são três: recolhimento compulsório, redesconto de liquidez e operações demercado aberto.

5. Os recolhimentos compulsórios são depósitos – sob a forma de reservas bancárias – que cada banco é obriga-do legalmente a manter no Banco Central em reserva bancária, sendo calculados como um percentual sobre osdepósitos. Tais depósitos podem ser efetuados em espécie (reservas bancárias) ou em títulos elegíveis peloBanco Central. Sua principal função na implementação da política monetária é estabilizar a demanda por re-servas bancárias, de modo a facilitar a ação do Banco Central na fixação da taxa de juros. O formato do com-pulsório no Brasil foi desenhado para dar suporte ao gerenciamento diário de reservas por parte do BancoCentral, seja por permitir uma alguma flexibilidade na gerência de caixa das instituições financeiras, seja por-que esta forma de recolhimento, sendo defasada e com base na média das posições diárias de depósito duranteo período de movimentação, facilita o gerenciamento de liquidez tanto dos bancos como do Banco Central,ajudando, desta forma, na estabilização da taxa de juros do mercado de reservas bancárias.

6. As operações de redesconto ou de assistência financeira de liquidez são empréstimos, na forma de crédito emreservas bancárias, concedidos pelo Banco Central aos bancos, voltadas normalmente para atender necessida-des episódicas de reservas por parte das instituições bancárias. Este instrumento tem funcionado em váriospaíses como uma “válvula de segurança”, colocada à disposição dos bancos para solucionar eventuais proble-mas individuais de caixa ao final do dia ou ao final do período de manutenção do recolhimento compulsório,evitando a existência de saques a descoberto na conta de reservas bancárias. Neste sentido, as operações deassistência financeira à liquidez são usadas indiretamente como apoio no controle da liquidez, com vistas àmaior estabilidade da taxa de juros no mercado monetário. O modelo atual das operações de redesconto noBrasil tem um caráter limitado e desencorajador no acesso a essas operações, o que requer um papel mais ativo

178 Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos ELSEVIER

das operações de mercado aberto no gerenciamento de liquidez. Em outras palavras, as operações de redes-conto atuam de forma apenas auxiliar no gerenciamento de reservas feito pelo Banco Central, isto é, que colo-cada à disposição dos bancos uma linha de assistência de liquidez – com taxas normalmente acima da taxa dejuros básica (Selic) – que ajude a solucionar eventuais problemas individuais de caixa ao final do dia ou ao fi-nal do período de manutenção do recolhimento compulsório, evitando a existência de saques a descoberto naconta de reservas bancárias..

7. As operações de mercado aberto são realizadas através da compra e venda de títulos públicos por parte do Ban-co Central, afetando diretamente o volume de reservas dos bancos, sendo que: (i) se as vendas de títulos são maio-res que o regaste em um determinado dia, as reservas se contraem; (ii) se o resgate de títulos é superior à vendaem um determinado dia, as reservas se expandem. Este instrumento é recomendado tanto para a realização dagerência de liquidez, como para a sinalização da taxa de juros básica. Em particular, tem sido considerado comoo mais indicado e eficaz para a realização do gerenciamento de liquidez de que dispõe o Banco Central, pois atuadiretamente sobre as reservas bancárias. Por isso, a tendência internacional revela o uso cada vez mais intensodesse instrumento, como forma de evitar a volatilidade na taxa de juros de curto prazo.

TERMOS-CHAVE

� Metas Intermediárias� Metas Operacionais� Recolhimento Compulsório� Redesconto

� Assistência Financeira de Liquidez� Operações de Mercado Aberto� Regra de Taylor� Controles Diretos sobre a Taxa de Juros

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Bank for International Settlement (BIS). “Globalisation and monetary policy in emerging markets”, BIS Pa-pers n. 23, maio de 2005.

Esta publicação pode ser obtida no website do BIS (http://www.bis.org/forum/research.htm) e reúne vários ar-tigos que analisam os impactos da globalização financeira sobre a autonomia da política monetária em paísesemergentes.

Guia Operacional do Mercado Financeiro da ANDIMAEste guia é publicado e atualizado periodicamente pela ANDIMA. Contém, de forma esquemática, as normas

recentes relacionadas ao mercado financeiro brasileiro (adequação ao Acordo da Basileia, prazos mínimos deoperações ativas e passivas das instituições financeiras, fundos de investimentos, investimentos de não residen-tes, recolhimentos compulsórios, redesconto, TBF, TR, TJLP, conta de investimento etc.).

Torres, M.J.R. Operacionalidade da Política Monetária no Brasil. Tese de Doutorado. Campinas: UNICAMP/IE,1999.

Operacionalidade da Política Monetária: Objetivos e Instrumentos 179

OPERACIONALIDADEDA POLÍTICA MONETÁRIA:FORMAÇÃO DA TAXA DE JUROS

Em coautoria de Rogério Sobreira

INTRODUÇÃO

A política monetária é conduzida, na prática, com o propósito de influenciar o nível dataxa de juros de curto prazo através de mudanças na oferta de reservas bancárias. Aindaque a política possa não ser conduzida com o propósito exclusivo de fixar a taxa de juros,este objetivo constitui-se em importante meta operacional, viabilizando a consecução dasmetas finais, que podem ser estabilidade de preços e/ou sustentação de um nível desejadode produto e emprego, como visto no capítulo anterior.

Para atingir seus objetivos intermediários, o banco central atua fortemente no merca-do de reservas, tanto para definir uma oferta adequada de moeda, como para manter a de-manda por reservas das instituições financeiras em intervalos aceitáveis, evitando comisso uma volatilidade excessiva da taxa de juros.

A atuação da autoridade neste mercado – por intermédio das operações de mercadoaberto – se faz através de dois tipos básicos de operações: operações definitivas (leilõesprimários formais e leilões informais de títulos) e operações compromissadas (leilões in-formais de dinheiro e operações de compra de títulos com compromisso de revenda noâmbito do redesconto).

Este capítulo objetiva analisar o modus operandi das operações de mercado abertoe a determinação da taxa de juros básica no mercado monetário. Assim, na Seção 13.1é definido o mercado de reservas bancárias, apresentando-se também sua forma defuncionamento. A Seção 13.2 trata da previsão de liquidez neste mercado, feita coti-dianamente pelo Banco Central. Nas Seções 13.3 e 13.4 são discutidas as formas decontrole da liquidez pela autoridade monetária, com vistas ao alcance de suas metasquanto à taxa de juros. São apresentadas aqui as operações compromissadas, os leilõesinformais e os leilões formais. A Seção 13.5 trata da formação da taxa de juros de cur-to prazo. Mostra-se como o Banco Central, com base nas suas previsões de liquidez,combina as formas de controle da liquidez para obter o comportamento desejado paraa taxa de juros de curto prazo. Também é mostrada a importância da persuasão do mer-cado para que tais objetivos sejam atendidos.

CAPÍTULO

13

13.1. O MERCADO DE RESERVAS BANCÁRIAS

O sistema bancário tem como uma das suas principais funções manter um sistema de pagamentos ade-quado à liquidação das transações realizadas na economia. Neste sentido, ao receber depósitos e fazerpagamentos, bem como ao emprestar recursos e receber os pagamentos devidos por operações de crédi-to já realizadas, os bancos viabilizam a realização de todo tipo de transação comercial ou financeira dopúblico não bancário.

Desta forma, as operações realizadas por qualquer agente econômico com uma instituição financei-ra, ao utilizar papel-moeda, cheques ou outras formas de transferência eletrônica de fundos, vão modi-ficar as contas de depósitos dos agentes econômicos na instituição.

Assim como pessoas físicas, jurídicas ou governos mantêm depósitos à vista em uma instituição fi-nanceira, através da qual realizam pagamentos e recebimentos, inclusive fazendo aplicações financei-ras, os bancos, de forma equivalente, possuem contas-correntes no Banco Central, através das quais re-cebem débitos e créditos das demais instituições financeiras, do Tesouro Nacional e do próprio BancoCentral. Em outras palavras, é por este tipo de conta – chamada “conta de reservas” – que as instituiçõesfinanceiras realizam operações entre si e com a autoridade monetária.

Da mesma forma que quando uma pessoa faz um depósito de moeda em conta-corrente recebe umcrédito na sua conta, a instituição financeira, ao entregar papel-moeda ao Banco Central, também vaireceber um crédito equivalente na sua conta de reservas. Analogamente, se a instituição fizer um saquena sua conta de reservas, a mesma sofrerá um débito equivalente.

Quando o público faz um depósito em dinheiro numa conta-corrente ou numa conta de poupançaou, ainda, quando adquire um título privado utilizando papel-moeda, o volume de papel-moeda nasmãos da instituição financeira se eleva. Se este volume ultrapassar o nível considerado adequado porela para a gestão cotidiana de seus negócios (encaixes voluntários), a instituição repassará esse montan-te ao Banco Central, que fará o crédito equivalente na conta de reservas do banco.

Se ao invés de operar com papel-moeda o indivíduo realiza uma operação financeira com cheque eeste é depositado em um banco distinto daquele onde seu emitente mantém conta, a transferência de fun-dos entre os dois bancos ocorrerá na manhã do dia seguinte, após a compensação que ocorre à noite. Nes-tas operações, o resultado é uma mera transferência de saldo da conta de reservas bancárias da instituiçãofinanceira que foi sacada para a conta de reservas bancárias da instituição em que o cheque foi emitido.

Isso permite perceber que, diariamente, o saldo da conta de reservas bancárias de cada instituiçãofinanceira é afetado positiva ou negativamente, dependendo das operações realizadas tanto pela própriainstituição financeira como pela sua clientela. Em verdade, ao fornecer um adequado sistema de paga-mentos, as instituições financeiras vão estar zerando o fluxo de caixa dos agentes, isto é, os agentes vão,tipicamente, depositar o excesso de caixa nos bancos e sacar ou tomar emprestado para atender suas ne-cessidades de caixa.

Ao zerar o fluxo de caixa desses agentes, os bancos acabam por desequilibrar seu próprio fluxo,uma vez que dificilmente as entradas de recursos coincidirão com as saídas. Assim, a cada dia haveráum conjunto de bancos que possui um saldo líquido das entradas e saídas de recursos positivo e outrogrupo que apresenta saldo líquido negativo. Através do mercado monetário, as instituições bancáriastratam de ajustar entre si seus desequilíbrios, utilizando mecanismos do próprio mercado. O Fluxogra-ma 13.1 ilustra esse tipo de operação.

A princípio, os saldos positivos e negativos dos bancos são zerados de modo natural através detransações interbancárias, já que a manutenção de um saldo líquido positivo representaria um custo deoportunidade que poderia ser eliminado através da realização de empréstimos aos bancos deficitários.A taxa de juros vai ser determinada pela relação entre oferta e demanda de reservas. Quanto maior a ne-cessidade de reservas, maior a taxa de juros cobrada no mercado interbancário, o oposto ocorrendoquando a demanda pressionar menos a oferta.

Vale notar que, por conta de compromissos assumidos no passado, nem sempre o fluxo de reservasdos superavitários é equivalente às necessidades de recursos dos deficitários em um determinado dia.Além disso, por força de imperfeições de mercado, frequentemente os bancos não conseguem “fechar o

Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros 181

caixa” exclusivamente através do mercado interbancário. Deste modo, o papel do Banco Central, naqualidade de ofertante de reservas, torna-se fundamental para garantir um comportamento ordeiro dointerbancário, já que é a única instituição com capacidade para criar ou destruir liquidez no curtíssimoprazo (em prazos maiores, uma alteração nos parâmetros de preferência do público por retenção de moe-da pode também contribuir para a criação ou destruição de reservas).

Neste sentido, a autoridade monetária aparece como a única entidade capaz de criar ou destruir moe-da no curto prazo. Sendo assim, o Banco Central vai atuar não só de modo a prover reservas a fim deevitar desequilíbrios ou pressões indesejadas no mercado interbancário, como vai ser precisamenteatravés da calibragem da oferta às estimativas de demanda que o Banco Central vai estabelecer a taxa dejuros de curto prazo da economia.

Para tanto, além de prover os bancos com o volume de reservas compatível com seus objetivos depolítica, o Banco Central vai procurar moldar a demanda de modo a obter o nível requerido para a taxade juros, procurando evitar também flutuações excessivas que não só sinalizam de modo imperfeito ospropósitos da autoridade como dificultam a operação eficiente do mercado interbancário.

13.2. PREVISÃO DA LIQUIDEZ

Conforme observado anteriormente, de modo a garantir o nível e o adequado comportamento da taxade juros de curto prazo ao longo do dia e no período definido para sua vigência, o Banco Central temde estimar com razoável precisão a necessidade de liquidez do mercado interbancário a fim de poderdecidir quanto adicionar ou retirar do volume de reservas existentes no mercado. Enquanto que as va-riações não autônomas de reservas decorrem da ação do Banco Central como gerenciador de liqui-dez, por exemplo, através da determinação das exigibilidades compulsórias, as chamadas variaçõesautônomas na quantidade de reserva – isto é, aquelas não decorrentes das ações diretas do BancoCentral – são explicadas pelos seguintes fatores, tal como pode ser extraído do balancete consolidadodo Banco Central:1

a) variação dos ativos externos líquidos;

b) variação dos empréstimos ao governo;

c) papel-moeda em circulação (papel-moeda em poder do público);

d) depósitos do Tesouro Nacional no Banco Central

Assim, variações positivas nos ativos externos líquidos e nos empréstimos ao governo possuem umimpacto expansionista sobre as reservas bancárias, ao passo que variações positivas do papel-moeda

182 Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros ELSEVIER

BancoSuperavitário

BancoDeficitário

BancoCentral

oferta lance

(demanda)

Debita da contade reservado banco

superavitário

Transferereservas para aconta do banco

deficitárioFLUXOGRAMA 13.1Troca de Reservas entre Bancos

1. Se o leitor não estiver familiarizado com os mecanismos que serão explicados a seguir, sugere-se a leitura do Capítulo 2 des-te livro.

em circulação e dos depósitos do Tesouro Nacional afetam negativamente o total de reservas das insti-tuições financeiras. Em termos esquemáticos, temos que as variações autônomas das reservas bancáriassão função de:

Variações Autônomas das Reservas Bancárias = f ( Ativos Externos Líquidos,

�Empréstimos ao Governo, �Papel-moeda em Circulação,

�Depósitos do Tesouro Nacional)

Logo, a fim de obter o nível de reservas que garanta a estabilidade da taxa de juros, o Banco Centraltem de estar continuamente fazendo previsões sobre os fatores que compõem as variações autônomasde reservas. Neste sentido, a previsão de liquidez é o estágio inicial da implementação da política mo-netária, sendo a base para as decisões relacionadas ao volume, à frequência e à maturidade das opera-ções desenhadas para equilibrar o mercado de reservas.

Dentre os fatores que afetam as reservas, a demanda por papel-moeda do público segue certa rotinade sazonalidade, facilitando sua previsão pelo Banco Central. Assim, finais de semana, vésperas de fe-riado, finais de ano e dias de pagamento e recebimento são períodos característicos de saques, enquantoque no início da semana percebe-se um movimento na direção oposta.

No caso dos depósitos do Tesouro Nacional, o perfil temporal de gastos e arrecadação impossibilitaa movimentação sincronizada entre depósitos e saques, dificultando sua previsão pelo Banco Central.Tipicamente, nos dias de recolhimento de tributos e leilões de títulos há retirada líquida do sistema en-quanto nos dias de pagamento de salários ocorre injeção líquida de reservas.

Com relação aos ativos externos líquidos, as variações nos mesmos vão ser decorrência do resulta-do entre exportações e importações e entre compras e vendas financeiras. O Banco Central, no Brasil,pode atuar no mercado de câmbio, comprando ou vendendo moeda estrangeira (aos bancos) via leilões,de modo a manter a cotação no nível considerado adequado, sendo que essas operações sensibilizariamdiretamente a conta reservas bancárias. Esses leilões são de dois tipos: leilões no mercado à vista e lei-lões de swap cambial (ver Box 13.1). Vale notar, contudo, que o acréscimo ou decréscimo nas reservasinternacionais não é exatamente igual às compras ou vendas efetuadas via leilões. Isso porque existemoperações diretas do Banco Central, como o pagamento dos encargos da dívida externa, o pagamentode empréstimos de regularização junto ao Fundo Monetário Internacional, e as receitas das aplicaçõesdas reservas, entre outras, que não geram contrapartida no mercado monetário.

No caso do Brasil, os fatores que mais afetam a liquidez do sistema bancário estão abaixo listados.Os mesmos são objeto de previsão, com antecedência de 30 dias, por parte do Departamento de Merca-do Aberto (DEMAB) do Banco Central do Brasil:

a) emissão ou recolhimento de moeda;

b) operações com ouro ou câmbio;

c) recolhimento de tributos;

d) gastos do Tesouro Nacional;

e) transferências do orçamento oficial de operações de crédito e do orçamento geral da União;

f) financiamentos concedidos ou tomados pelos bancos e seu retorno;

g) resgates e colocações de títulos públicos;

h) recolhimentos ou liberações de depósitos compulsórios em geral;

i) saques ou depósitos sobre a média do recolhimento obrigatório.

Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros 183

Como se pode notar, a variação autônoma das reservas, apesar de acontecer via movimentaçãodas contas do balanço do Banco Central, é decidida fora de sua alçada. Assim, o Banco Central vaiestar diariamente estimando o impacto desses e de outros fatores no mercado de reservas bancáriasa fim de adotar políticas que visem à sua neutralização. Caso contrário, a taxa de juros pode ficarabaixo ou acima da meta definida pela autoridade, obrigando a mesma a implementar táticas decorreção que podem desestabilizar o comportamento dessa variável. Excetuando-se as situações

ELSEVIER184 Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros

A partir de fevereiro de 2002, o BancoCentral e o Tesouro Nacional passaram arealizar operações de swap cambial con-jugadas com ofertas primárias de LFT – Le-tras Financeiras do Tesouro. Tais opera-ções se constituíram em mais uma opçãoda autoridade para controlar a taxa decâmbio. Com isso, a autoridade econômi-ca buscou evitar intervenções mais fre-quentes no mercado de câmbio, bemcomo reduzir a volatilidade da taxa decâmbio, como ocorrido, por exemplo, noano de 2002. Nessas condições, o uso doswap cambial permite que o próprio mer-cado, mais do que o BC, possa ofertarhedge cambial às empresas. Adicional-mente, a nova sistemática visava reduzir aemissão de títulos indexados à taxa decâmbio, dando seguimento ao programade redução desses papéis tal como expos-to nos Planos Anuais de Financiamento(PAF) da Secretaria do Tesouro.

Os leilões de swap e LFT são realizadosno mesmo dia, em horários diferenciados,ocorrendo primeiramente a oferta doswap. A aquisição do swap para cada ins-tituição financeira está limitada ao volumefinanceiro das propostas aceitas na suaoferta de LFT.

Na apuração das ofertas públicas tantode LFT quanto de swap é utilizado o crité-rio de preço único, com as cotações míni-mas aceitas em cada evento aplicadas atodas as propostas vencedoras.

A nova sistemática pode ser resumidada seguinte forma:

(a) O Tesouro vende, em leilão, LFT àsinstituições financeiras e aos fundosde investimento. Conjugadamente, oBanco Central oferta swap cambial àsinstituições financeiras;

(b) As instituições financeiras negociam oswap cambial, na BM&F, com as em-presas interessadas em proteçãocambial.

Nessas operações as instituições finan-ceiras estão comprando fluxos variáveis (oCDI – Certificado de Depósitos Interban-cários) e ofertando, em contrapartida, flu-xos fixos (o US$) ao Banco Central. A com-pra da LFT faz com que o fluxo variável doswap esteja casado com o fluxo variáveldo título do Tesouro, reduzindo assim apossibilidade de perda das instituições fi-nanceiras na operação. Ao reduzir o riscode perda, o prêmio na operação de swaptenderá a ser menor. Do ponto de visto daautoridade econômica (Banco Central eTesouro Nacional), a operação atende aosobjetivos de oferta de hedge cambial aosagentes econômicos sem que o Tesouroseja obrigado a emitir títulos indexados aodólar.

Graficamente, podemos representaressa sistemática no fluxograma a seguir.

LEILÕES DE SWAP CAMBIAL

BO

X1

3.1

Tesouro/Banco Central

Fundos de Investimento

Instituições Financeiras

LFT

LFT

Passo 1

SWAP US$ SWAP US$InstituiçõesFinanceiras

Passo 1 Passo 2

EmpresasCDI CDI

Leilão de Swap Cambial com LFT

em que há previsão de grande vazamento ou injeção de reservas, o Banco Central pode falhar na suaprevisão sobre a demanda do mercado, o que obriga a intervenções corretivas ao longo do dia oumesmo ao final deste.

Neste sentido, a atuação da autoridade pode variar de direção ao longo do dia. O Banco Centralpode abrir o mercado como doador de recursos e, ao perceber que a liquidez está se elevando para alémdo requerido, passar a tomar recursos junto aos bancos.

No entanto, o Banco Central define sua posição doadora ou tomadora na abertura do mercado ape-nas quando suas previsões apontam claramente para um quadro de grande vazamento ou grande injeçãode reservas, respectivamente. Do contrário, sua posição não é definida de imediato na abertura do mer-cado, sendo moldada ao longo do dia com base nas informações colhidas pela mesa de operações domercado aberto da autoridade junto às instituições financeiras e em especial junto aos dealers. As ope-rações entre o Banco Central e as instituições financeiras são sempre cursadas no âmbito do Sistema Es-pecial de Liquidação e Custódia (SELIC) (ver Box. 13.2).

Em condições normais, portanto, o Banco Central só vai atuar no mercado de reservas quando suasestimativas de liquidez sinalizarem um impacto indesejado na taxa de juros. Evidentemente, as deci-sões quanto à oferta de fundos vão estar sempre sujeitas aos propósitos de política por parte da autorida-de, que pode se decidir por um determinado ajuste na liquidez a fim de atender suas metas de mais mé-dio prazo com relação à evolução dos agregados monetários e/ou da taxa de juros.

Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros 185

O SELIC – Sistema Especial de Liquidaçãoe Custódia é um sistema para registro ecustódia de transações com títulos públi-cos federais (títulos do Tesouro e do BancoCentral) e depósitos interfinanceiros.

O SELIC foi criado em 14 de novembrode 1979, em uma parceria do Banco Cen-tral do Brasil com a Associação Nacionaldas Instituições do Mercado Aberto –ANDIMA, como forma de dar mais trans-parência e segurança às negociações comtítulos públicos federais que crescia a cadaano. Atualmente, o SELIC custodia todosos títulos de emissão do Banco Central doBrasil, do Tesouro Nacional, dos Estados edos Municípios, bem como os depósitosinterfinanceiros cujos custodiantes sejambancos múltiplos com carteira comercial,bancos comerciais e caixas econômicas.

De acordo com a Circular no 3.316, de9 de março de 2006, podem participar doSELIC, na qualidade de titulares de contade registro de títulos, (a) bancos, caixaseconômicas, sociedades corretoras de tí-tulos e valores mobiliários e sociedadesdistribuidoras de títulos e valores mobiliá-rios; (b) demais instituições autorizadas afuncionar pelo Banco Central do Brasil; (c)fundos; (d) entidades abertas e fechadasde previdência complementar, sociedadesseguradoras, resseguradores locais, ope-

radoras de planos de assistência à saúde esociedades de capitalização; e (e) outrasentidades, a critério do administrador doSelic. Se o participante for titular de contaReservas Bancárias no Banco Central doBrasil, o mesmo é considerado liquidante.Na hipótese contrária, é considerado nãoliquidante. Neste caso, o não liquidantedeve eleger um único liquidante-padrãoatravés do qual suas operações são liqui-dadas.

A taxa de juros Selic é a taxa que balizaa troca de reservas entre as instituições fi-nanceiras. Especificamente, a Circular no

2.900, de 24 de junho de 1999, define ataxa Selic como a “taxa média ajustadados financiamentos diários apurados noSistema Especial de Liquidação e Custódia(SELIC) para títulos federais.” Com isso, fi-cam incluídas todas as operações de trocade reservas por um dia entre instituiçõesfinanceiras e entre essas e o Banco Cen-tral no cálculo desta taxa de juros.

Esta circular estabelece também que, apartir desta data, a política monetária pas-sa a ser regida pela fixação de metas paraa taxa Selic e seu eventual viés – elevaçãoou redução potenciais da meta da Selic –visando ao cumprimento da meta de infla-ção, conforme estabelecido pelo Decretono 3.088, de 21 de junho de 1999.

SISTEMA ESPECIAL DE LIQUIDAÇÃO E CUSTÓDIA (SELIC)E TAXA DE JUROS SELIC

BO

X1

3.2

Quando as estimativas da autoridade apontam para uma deficiência generalizada no mercado de re-servas, diz-se que o Banco Central está oversold, isto é, sobrevendido. Isto quer dizer que o volume dereservas bancárias disponível no mercado é menor do que o estoque de títulos públicos emitidos e man-tidos nas carteiras dos bancos. Neste caso, a estimativa da autoridade do saldo do fluxo de caixa das ins-tituições financeiras em termos globais é deficitária – isto é, o fluxo de saída de recursos da conta de re-servas de todas as instituições é maior que o fluxo de entrada –, indicando que o mercado necessita definanciamento para se zerar. Caso o Banco Central não deseje uma flutuação maior na taxa de juros demercado ele deve atuar fornecendo aos bancos os fundos necessários.

Quando ocorre o oposto, ou seja, há um excesso generalizado de reservas bancárias no mercado (ovolume de reservas é maior do que o estoque de títulos) diz-se que o Banco Central está undersold ousubvendido (ou, ainda, supercomprado) em reservas. Nestas circunstâncias, analogamente, o fluxo deentrada de recursos na conta de reservas dos bancos é maior que o fluxo de saída, indicando que o Ban-co Central deve atuar comprando o excesso de reservas a fim de evitar flutuações desnecessárias na taxade juros.

13.3. CONTROLE DA LIQUIDEZ: OPERAÇÕES COMPROMISSADAS

E LEILÕES INFORMAIS

A promoção dos ajustes compensatórios pelo Banco Central, mencionados acima, é feita principalmen-te através de operações no mercado aberto, em função de sua maior versatilidade para acomodar varia-ções diárias na liquidez. Como visto no capítulo anterior, o recolhimento compulsório pode cumprir umpapel importante na estabilização da demanda por reservas bancárias, facilitando a ação do banco cen-tral na fixação da taxa de juros. A assistência financeira de liquidez, por sua vez, pode ser usada no apo-io ao controle da liquidez, com vistas a proporcionar uma maior estabilidade na taxa de juros de curtoprazo, funcionando como uma espécie de “colchão de liquidez”. Assim, na operacionalização dessesinstrumentos, o Banco Central age sobre a disponibilidade e o custo das reservas bancárias, determi-nando em última instância as condições monetárias e creditícias da economia.

Normalmente, o Banco Central utiliza-se de operações discricionárias2 – mais especificamente,operações compromissadas – para promover o ajuste diário na liquidez. As operações compromissadas– conhecidas na literatura internacional como repurchase agreements – consistem na compra e vendade títulos em que o vendedor se compromete a recomprar o título a um preço acordado e em data especi-ficada, do comprador.

O preço do título neste tipo de operação pode variar de acordo com as condições vigentes no merca-do. Vale notar, inclusive, que a taxa de juros estabelecida na operação não guarda qualquer relação coma taxa de juros embutida no título. Em verdade, o que está sendo negociado em uma operação compro-missada são reservas onde o tomador entrega títulos em garantia. O detentor original do título – o Ban-co Central, por exemplo – em momento algum perde o direito de auferir os juros pagos pelo mesmo. OFluxograma 13.2 esquematiza a operação.

Estas operações são executadas com base na oferta pública de preços, isto é, através de leilão cha-mados de leilões de compromissadas (ver Box 13.3). Nessas operações, o Banco Central tipicamenteoferta recursos diretamente para as instituições demandantes, sem qualquer tipo de intermediação. Ataxa3 negociada vai ser determinada, entre outros critérios, pelos sinais que o Banco Central deseja emi-

186 Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros ELSEVIER

2Alguns bancos centrais, como era o caso até recentemente do Bundesbank, o Banco Central alemão, se utilizavam mais forte-mente de facilidades de crédito (standing facilities) para garantir o ajuste da liquidez, permitindo o saque de reservas na assis-tência de liquidez dentro de limites a uma taxa de juros subsidiada. O Banco Central Europeu, contudo, substituiu essa práticapela utilização das operações de mercado aberto, seguindo a tendência mundial. Para detalhes ver ECB (2000, cap. 3).3No caso do Brasil, essa taxa é denominada de taxa over, em alusão ao prazo típico utilizado, um dia (overnight), enquanto nosEstados Unidos esta mesma taxa é chamada de repo rate, posto que as operações compromissadas de um dia são usualmentedenominadas de repo.

tir a respeito da evolução da taxa básica. A taxa de juros contratada na operação compromissada podecair abaixo da taxa do mercado interbancário em função de um aumento da liquidez no mercado mone-tário. Nessas circunstâncias, os bancos podem encerrar os contratos firmados com o Banco Central afim de contratar uma operação de crédito overnight a uma taxa mais favorável.

Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros 187

Títulos (2 operação)a

Títulos (1 operação)a

BANCO CENTRAL DEALERS

Retorno das reservas + juros

reservas

FLUXOGRAMA 13.2Operações Compromissadas de Venda

COMUNICADO 14.627----------------------------------

Divulga oferta de venda de títulos comcompromisso de revenda assumido pelasinstituições credenciadas a operar com oDemab.1. O Banco Central do Brasil, tendo emvista o disposto no artigo 10, inciso XII, daLei 4.595, de 31/12/1964, torna publicoque acolhera, das 11h15min as 11h30minde 23/6/2006, propostas das instituiçõescredenciadas a operar com o Departa-mento de Operações do Mercado Aberto(Demab) para a realização da operaçãode que trata o inciso I do §1o do Comuni-cado 7.669, de 4/7/2000, consideran-do-se as seguintes informações comple-mentares:

I – títulos: Letras do Tesouro Nacional(LTN), com vencimento em 1/4/2007,1/7/2007, 01/10/2007, 1/7/2008 e1/1/2009;

II – quantidade máxima de títulos destaoferta: 2.000.000;

III – preços unitários de venda: os utili-zados pelo Banco Central do Brasil emsuas operações compromissadas, divulga-dos pelo Demab para a data da liquidaçãoda venda;

IV – divulgação do resultado: 23/6/2006, apartir das 11h30min;

V – liquidação da venda: 23/6/2006; eVI – liquidação da revenda: 22/9/2006.

2. Na formulação das propostas, limitadasa duas por instituição, deverão ser infor-madas a quantidade de títulos e a taxa dejuros, expressa sob a forma anual, comduas casas decimais, considerando-se252 dias úteis.3. As propostas das instituições credencia-das deverão ser encaminhadas ao móduloLeilão Informal Eletrônico de Moeda e deTítulos (Leinf) do Sistema Especial de Li-quidação e de Custódia (Selic).4. O resultado será apurado pelo critériode taxa única, acatando-se todas as pro-postas com taxa igual ou inferior à taxamáxima aceita pelo Banco Central do Bra-sil, a qual será aplicada a todas as propos-tas vencedoras.5. A instituição com proposta aceita deve-ra informar, ao Demab, os vencimentos eas respectivas quantidades de LTN, objetode sua compra, ate às 13 horas de23/6/2006.

Rio de Janeiro, 22 de junho de 2006.Departamento de Operações

do Mercado Aberto.

COMUNICADO DE LEILÃO DE OPERAÇÃO COMPROMISSADA

BO

X1

3.3

A frequência com a qual essas operações são realizadas, por outro lado, vai depender basicamenteda existência ou não das exigibilidades compulsórias que acomodam as necessidades de reservas. Nospaíses onde não existem recolhimentos compulsórios, o Banco Central realiza operações compromissa-das praticamente todos os dias.

Na realização das operações compromissadas, o Banco Central pode atuar através de instituiçõesdealers, as quais se encarregam de transmitir os efeitos das ações da autoridade para as demais institui-ções. Dealers são as instituições financeiras credenciadas a operar diretamente com o Tesouro e o Ban-co Central nas operações especiais da Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Consideram-se opera-ções especiais da STN:(a) as vendas de títulos públicos federais pelos preços médios apurados nas ofer-tas públicas do Tesouro Nacional; e (b) as compras de títulos públicos federais, a preços competitivos,previamente definidas como restritas às instituições credenciadas. A instituição dealer deve tambémfuncionar como um “fazedor de mercado” (market maker) atuando tanto nas ofertas primárias de títulospúblicos como nos mercados secundários, de modo a garantir a liquidez destes mercados (ver Box13.4). O rótulo operações compromissadas aplica-se também àquelas operações que envolvem duasinstituições trocando posições de reservas na qual a garantia é representada pela caução dos títulos.

As operações compromissadas também podem ser conduzidas no âmbito da assistência de liquidezou redesconto. Em termos formais, estas operações são praticamente idênticas às operações compro-missadas referidas acima, podendo ser tanto acordos de recompra de títulos ou acordos de revenda,através dos quais respectivamente se aumenta ou se diminui a liquidez do sistema bancário. A principaldiferença reside no fato de que a iniciativa não parte do Banco Central e sim da instituição financeira. OBanco Central mantém, assim, um canal através do qual pode ofertar reservas de acordo com a necessi-dade localizada de uma ou mais instituições financeiras que entregam títulos federais em garantia. Ape-sar da disponibilidade, esta forma de obter reservas é usualmente mais cara que o mecanismo tradicio-nal, qual seja, o mercado interbancário, além de contar com o franco desestímulo do Banco Central, quecria outros obstáculos, além do seu custo, à sua utilização frequente. A intenção da autoridade monetá-ria é, claramente, estimular a troca de reservas entre os bancos.

188 Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros ELSEVIER

Em 20 de março de 2003, o Banco Central doBrasil e a Secretaria do Tesouro Nacional edita-ram a Decisão-Conjunta 14, a qual dispõe sobreo credenciamento de instituições para operaremcom o Banco Central e a Secretaria do TesouroNacional. Este normativo foi emitido no âmbitoda reformulação da relação Tesouro-BancoCentral iniciada em novembro de 1999 e que,com a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal,impediu o Banco Central de emitir títulos públi-cos.

A Decisão-Conjunta classifica as instituiçõescredenciadas em dois grupos: dealers primáriose dealers especialistas. Os dealers primários vol-tam-se para as colocações primárias de títulosfederais e os dealers especialistas têm a funçãode estimular a negociação no mercado secundá-rio. O Tesouro e o Banco Central admitem até12 instituições no grupo de dealers primários edez no grupo de dealers especialistas. Apenas

quatro instituições podem pertencer aos doisgrupos simultaneamente.De acordo com o Ato Normativo Conjunto no 7,de 4 de agosto de 2005, as instituições são sele-cionadas com base em avaliação de desempe-nho semestral, a qual leva em conta suas opera-ções definitivas e compromissadas com o merca-do e ofertas públicas, para o caso de instituiçõescandidatas, mais as operações compromissadase definitivas com o Demab e o relacionamentocom o Demab e com a Codip, para as institui-ções credenciadas. Ao final da avaliação, sãodescredenciadas (a) a instituição de menor pon-tuação no grupo de dealers primários; (b) a insti-tuição independente – isto é, a corretora ou dis-tribuidora não pertencente a um conglomeradofinanceiro – de menor pontuação no grupo dedealers especialistas; e (c) a instituição não clas-sificada como independente de menor pontua-ção no grupo de dealers especialistas.

INSTITUIÇÕES CREDENCIADAS A OPERAR COM O DEPARTAMENTODE MERCADO ABERTO (DEMAB) E COM A COORDENAÇÃOGERAL DE OPERAÇÕES DA DÍVIDA PÚBLICA (CODIP)

BO

X1

3.4

No caso de operações conduzidas através do mercado aberto, o Banco Central também realiza lei-lões informais, também conhecidos como go-arounds, ficando caracterizada a natureza competitiva daoperação (Box 13.5). Os leilões informais podem ser tanto de títulos como de dinheiro, sendo este últi-mo mais frequentemente utilizado. Nos leilões informais de dinheiro, o banco central oferta moeda exi-gindo como garantia títulos, comprometendo-se a instituição a recomprar o título normalmente no diaseguinte ao da realização da operação.

Os go-arounds de títulos, por seu turno, são operações denominadas definitivas. O Banco Central vendeàs instituições títulos já emitidos que estão em sua carteira. O título, portanto, se incorpora à carteira da insti-tuição compradora. Não há neste caso uma operação compromissada entre o Banco Central e os bancos, en-volvendo acordo de recompra ou de revenda. As operações definitivas são particularmente indicadas quan-do o Banco Central quer fazer uma retirada de reservas no mercado de forma mais permanente, normalmen-te por ocasião da adoção de uma política monetária restritiva de mais longo prazo.

Nas atuações por go-arounds, o Banco Central opera somente com as instituições dealers. Nessaforma de atuação, o Banco Central não emite edital para divulgar o leilão, acionando os participantesatravés de telefone. O Banco Central solicita das instituições credenciadas propostas de preço (taxa dejuros) e de quantidade de títulos a serem vendidos ou comprados.

Para a realização de ajustes finos da liquidez, as operações compromissadas são preferíveis àsdefinitivas. A principal razão é que nas operações definitivas dificilmente o Banco Central possuiem carteira títulos com os prazos necessários para contrabalançar os fatores causadores da falta ouexcesso de liquidez do mercado bancário. Assim, se na data de repasse dos impostos ao Tesouro fi-cam com escassez de reservas – o Banco Central fica oversold – ao realizar uma operação definitivade compra de títulos, a autoridade vai atender a necessidade de financiamento das instituições fi-nanceiras naquele dia, mas vai produzir também um quadro de excesso de reservas nos dias seguin-

Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros 189

Os leilões informais (go-arounds) no Brasil são rea-lizados através de um subsistema do SistemaEspecial de Liquidação e de Custódia (SELIC) de-nominado LEINF ou Sistema Leilão Informal Ele-trônico de Moeda e de Títulos. As normas opera-cionais para atuação nesse sistema estão defini-das na Circular no 3.316, de 9 de março de 2006.

A sistemática nesses leilões é a seguinte. OBanco Central emite aos dealers uma mensagematravés do seu sistema de informação (Sisbacen)chamada de “aviso em dois”. Isso quer dizer quedaí a dois minutos será divulgado o tipo de atua-ção da autoridade, se doador ou tomador de moe-da. Cada dealer tem aproximadamente dez mi-nutos para apresentar suas propostas de taxa dejuros e um prazo um pouco mais elástico para de-finir as quantidades que desejam tomar ou ven-der de dinheiro àquela taxa.

A existência de um prazo diferenciado paraapresentação das propostas de taxa de juros ede quantidade tem por objetivo permitir que osdealers comuniquem ao restante do mercado aintenção do banco central e, com isso, possamparticipar indiretamente do leilão. Nesses casos,os dealers negociam basicamente a quantidade,

repassando para as demais instituições a taxaque pretende cobrar do banco central.

A duração do leilão informal é muito curta,raramente ultrapassando uma hora. Após o re-cebimento das propostas, o Banco Central iniciasua apuração. Caso seja doador de reservas, ocritério de classificação será a maior taxa de ju-ros ofertada, organizando-se os resultados emordem decrescente de taxa de juros. O Bacendefine, então, a taxa de corte para aquela ope-ração, isto é, a menor taxa que estará disposto aaceitar para ofertar reservas. Todas as propostascuja taxa tenha sido igual ou superior à taxa decorte são atendidas.

No caso de ser tomador de reservas, o Bacentambém vai se utilizar do critério taxa de jurospara classificar os resultados, só que agora emordem ascendente. Da mesma forma, vai ser de-finida uma taxa de corte ou taxa máxima aceitapara operação. A taxa de corte tem um impor-tante papel na sinalização do comportamentoda taxa de juros.

(*) Este Box está baseado em Torres (1999, p. 101-3)

LEILÕES INFORMAIS NO BRASIL

BO

X1

3.5

tes – tornando o banco central undersold, o que vai obrigá-lo a atuar novamente de modo a ajustar aliquidez ao nível desejado.

Além de obrigar o Banco Central a atuar mais vezes do que o necessário, a utilização de operaçõesdefinitivas para o ajuste fino da liquidez tem como efeito elevar o grau de volatilidade da taxa de juros.Isto porque no cálculo das propostas feitas pelos bancos para a venda e a subsequente compra de títulosos bancos vão exigir, respectivamente, a menor e a maior taxa de juros possíveis, já que as mesmas vãoincorporar as expectativas dos bancos sobre o comportamento da taxa de juros durante o prazo de matu-ração do papel. Como na situação do Banco Central oversold vai haver uma tendência de alta dos juros,os bancos pressionam o Banco Central pedindo o maior preço (e a menor taxa) pelos seus papéis a fimde se apropriar do movimento esperado da alta dos juros, auferindo um ganho de capital. Quando a au-toridade fica undersold, as expectativas são de baixa nos juros. Logo, os bancos vão pedir a maior taxade juros (ou o menor preço) possível para compensar a perda de capital esperada da posse dos títulos.Estes problemas não ocorrem quando o ajuste é feito através de operações compromissadas porque oBanco Central realiza uma operação com o prazo ajustado à necessidade do mercado.

Outras razões para a preferência por operações compromissadas para o ajuste fino da liquidez sãoque elas não requerem um mercado com grande liquidez para os títulos que estão sendo negociados –muito embora a sua utilização acabe por estimular a liquidez nos mercados desses títulos – e produzemapenas um impacto indireto no preço dos títulos transferidos via aumento ou diminuição da liquidez,sem afetar, portanto, os leilões formais desses papéis.

13.4. CONTROLE DA LIQUIDEZ: LEILÕES PRIMÁRIOS FORMAIS

Os leilões primários formais, como já observado, são um instrumento fortemente utilizado pelo BancoCentral para promover o controle da liquidez, só que a um nível mais estrutural ou de médio/longo pra-zo. Os leilões formais caracterizam-se pelo fato de serem anunciados com razoável antecedência – mí-nimo de um dia – se comparado ao período de anúncio dos leilões informais, bem como por seremsempre operações definitivas.

Ao contrário dos leilões informais, em que predominam as expectativas quanto ao custo do dinhei-ro no curto prazo enquanto fatores determinantes das propostas das instituições, outros elementos en-tram na formação do preço do título nos leilões formais.

Tipicamente são utilizados títulos de emissão do Tesouro nesses leilões que, embora não sendoemitidos expressamente para fins de execução da política monetária, vão afetar a liquidez do mercadomonetário. Em alguns países, são utilizados também títulos emitidos pelo Banco Central (ver Fluxogra-ma 13.3). Na maior parte dos casos, utilizam-se papéis pré-fixados na execução da política monetária.4

Tais títulos possuem prazo de maturação curto – em geral um ano –, têm cupom de juros, isto é, forne-cem um pagamento de juros em parcelas fixas e definidas no ato da emissão, e embutem três fontes deganho para seus detentores: ganho de capital, cupom de juros e ganho de reinvestimento do cupom.5 Osmovimentos da taxa de juros afetam de modo inverso o ganho de capital e o ganho de reinvestimento docupom de juros. O cupom de juros, por sua vez, não sofre qualquer influência desses movimentos, jáque os mesmos são fixos. Desta forma, elevações na taxa de juros produzem uma perda de capital e umaumento no ganho de reinvestimento, ao passo que quedas na taxa levam a um ganho de capital e a umaperda de reinvestimento. Portanto, o detentor do papel é obrigado a formar uma expectativa quanto aomovimento da taxa de juros ao longo do prazo de maturação do título, calculando o retorno total domesmo para várias hipóteses de comportamento dos juros.6

ELSEVIER190 Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros

4O Brasil é uma exceção, posto que a maior parte dos títulos emitidos pelo Tesouro Nacional tem sido papéis pós-fixados.5O ganho de reinvestimento vem a ser o ganho obtido com o reinvestimento do cupom de juros a cada momento em que ele édevido. Assim, se um título paga um cupom de juros a cada seis meses, uma vez pago o cupom, o mesmo se não for sacado vaiser automaticamente reinvestido à taxa de juros corrente. Este é o princípio dos juros compostos ou juros sobre juros.6O cálculo do retorno total é feito através da utilização de conceitos tais como duração e convexidade do papel, os quais me-dem a sensibilidade do seu preço antemudanças na taxa de juros. Para detalhes, ver Fabozzi e Modigliani (1992), cap. 14.

No Brasil, até 2001, o Banco Central estava autorizado a emitir títulos para serem utilizados em lei-lões formais. A partir da edição da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar no 101, de 4 demaio de 2000), o Banco perdeu essa autorização, cabendo ao Tesouro Nacional a prerrogativa de emis-são de títulos públicos federais. Com isso, a autoridade monetária perdeu parte da discricionariedade nautilização desse instrumento para fins de política monetária. Os leilões de títulos são hoje realizadostendo majoritariamente dois objetivos: dar maior fungibilidade aos papéis, através da diminuição dafrequência de ofertas públicas, e facilitar a formação do preço dos títulos.

Diferentemente do leilão informal, o leilão formal é precedido de um anúncio transmitido eletroni-camente para todas as instituições habilitadas a participar do mesmo (ver Box 13.6). Neste anúncioconstam os tipos de títulos que serão ofertados e em que quantidades, bem como o tipo de leilão e asquantidades mínimas que têm de ser cotadas. Uma outra diferença diante dos leilões informais refere-seà obrigatoriedade de apresentação de propostas pelos dealers. Aqui, as instituições credenciadas nãosão obrigadas a apresentar propostas.

Os leilões primários podem ser de dois tipos: leilões discriminatórios ou de preços múltiplos(English auctions) ou leilões de preço uniforme (Dutch auctions). Nos leilões discriminatórios, cadaparticipante pode apresentar mais de uma proposta de compra dos títulos, discriminando em cada umadelas a quantidade demandada e o respectivo preço de compra do papel. A apuração é feita em ordemdecrescente de preço, onde a proposta com maior preço tem toda sua demanda atendida em termos de

Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros 191

MINISTÉRIO DA FAZENDA – SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL

PORTARIA N° 490, DE 29 DE JUNHO DE 2006.

O SECRETÁRIO-ADJUNTO DO TESOURO NACIONAL, no uso das atribuições que lhe conferem a Por-taria MF no 183, de 31 de julho de 2003, e a Portaria STN no 143, de 12 de março de 2004, e tendoem vista as condições gerais de oferta de títulos públicos previstas na Portaria STN n° 410, de 4 deagosto de 2003, resolve:

Art. 1o Tornar públicas as condições específicas a serem observadas na oferta pública de Letras doTesouro Nacional – LTN, cujas características estão definidas no Decreto n° 3.859, de 4 de julho de2001:

I – data do acolhimento das propostas e do leilão: 29.6.2006;II – horário para acolhimento das propostas: de 12h às 13h;III – divulgação do resultado do leilão: na data do leilão, a partir das 14h30min, por intermédio do

Banco Central do Brasil;IV – data da emissão: 30.6.2006;V – data da liquidação financeira: 30.6.2006;VI – critério de seleção das propostas: melhor preço para o Tesouro Nacional;VII – sistema eletrônico a ser utilizado: exclusivamente o Sistema Oferta Pública Formal Eletrônica

(OFPUB), nos termos do Regulamento do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (SELIC); eVIII – características da emissão:

Título Prazo (dias)Quantidade(em mil)

Valor Nominal(em R$)

Data doVencimento Adquirente

LTN 185 2.500 1.000,000000 1.1.2007 Público

LTN 550 2.500 1.000,000000 1.1.2008 Público

LTN 916 500 1.000,000000 1.1.2009 Público

Art. 2o Na formulação das propostas deverá ser utilizado preço unitário com seis casas decimais,devendo o montante de cada proposta contemplar quantidades múltiplas de cinquenta títulos.

LEILÃO FORMAL DE TÍTULO PÚBLICO FEDERAL PORTARIADE LEILÃO DE LTN

BO

X1

3.6

quantidade. Se a demanda não for suficiente para absorver toda a oferta, uma nova proposta é conside-rada e assim sucessivamente, até que toda a oferta de títulos tenha sido vendida. Caso a quantidade totaldemandada da primeira à última proposta considerada seja inferior à oferta de papéis, o Banco Centralpode optar por vender os títulos restantes pelo preço imediatamente posterior ao do último lance que foiintegralmente atendido na sua quantidade e dividir a oferta ainda existente em partes iguais, atendendoos demais demandantes, possivelmente, de modo parcial.

Nos leilões de preço uniforme, por seu turno, as propostas também são relacionadas por ordem de-crescente de preço. Todos os participantes do leilão, contudo, pagam um preço uniforme, igual ao preçoda última proposta vencedora na apuração. Aquelas instituições que ofertaram um preço mais elevadoque o preço vencedor têm suas demandas em termos de quantidade integralmente atendidas. Por outrolado, aquelas instituições cujo preço é igual ao preço da última proposta vencedora têm suas quantida-des parcialmente atendidas, em um esquema de divisão semelhante ao que prevalece nos leilões de pre-ços múltiplos.

O impacto dos leilões primários formais sobre a taxa de juros vai ser determinado pela capacidadedo mercado em absorver os títulos, a qual depende do fluxo monetário definido no gerenciamento da li-quidez, bem como da relação entre a quantidade de títulos vincendos e a serem colocados. Assim, a rea-lização do leilão em dias de elevado oversold pode aumentar o prêmio de liquidez requerido pelos parti-

192 Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros

Art. 3o As instituições credenciadas a operar com o DEMAB/BCB e com a CODIP/STN, nos termosda Decisão Conjunta no 14, de 20 de março de 2003, poderão realizar operação especial, definidapelo art. 1o, inciso I, do Ato Normativo Conjunto no 8, de 4 de agosto de 2005, que consistirá na aqui-sição de LTN com as características apresentadas abaixo, pelo preço médio apurado na oferta públicade que trata o art. 1o desta Portaria:

I – data da operação especial: 29.6.2006;II – horário para acolhimento das propostas: de 15h às 15h30min;III – divulgação da quantidade total vendida: na data do leilão, a partir das 16h, por intermédio do

Banco Central do Brasil;IV – data da liquidação financeira: 30.6.2006; eV – características da emissão:

Título Prazo (dias)Quantidade(em mil)

Valor Nominal(em R$)

Data doVencimento

LTN 185 375 1.000,000000 1.1.2007

LTN 550 375 1.000,000000 1.1.2008

LTN 916 75 1.000,000000 1.1.2009

Parágrafo único. Somente será realizada a operação especial prevista neste artigo, se a totalidadedo volume ofertado ao público, nos termos do art. 1o desta Portaria, for vendida.

Art. 4o A quantidade de títulos a ser ofertada na operação especial a que se refere o art. 3o, seráalocada em conformidade com o disposto no art. 4o do Ato Normativo Conjunto no 8, de 2005:

I – 60% (sessenta por cento) às instituições denominadas “dealers” primários; eII – 40% (quarenta por cento) às instituições denominadas “dealers” especialistas.Parágrafo único. Dos títulos destinados a cada grupo, a quantidade máxima que poderá ser adqui-

rida por cada instituição observará os critérios estabelecidos no art. 4o, § 1o, do mencionado Ato Nor-mativo, e será informada à instituição por meio do Sistema OFPUB.

Art. 5o Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

PAULO FONTOURA VALLE

LEILÃO FORMAL DE TÍTULO PÚBLICO FEDERAL PORTARIADE LEILÃO DE LTN

BO

X1

3.6

ELSEVIER

cipantes ou ainda diminuir a demanda pelos papéis. Ambos os efeitos tendem a provocar uma alta nataxa de juros e uma maior dispersão entre as propostas, o que pode dificultar a capacidade do BancoCentral em confirmar a taxa de juros corrente se ela estiver abaixo da taxa praticada no leilão. Por outrolado, o Banco Central pode utilizar esse resultado para elevar a taxa de juros básica da economia, casoaceite as propostas do mercado.

Quando o estado de liquidez e de expectativas da economia é estável, bem como quando o total detítulos colocados é inferior ao total vincendo, o leilão primário não pressiona a taxa de juros, assimcomo não se observa um grau de dispersão elevado nas taxas de juros propostas.

Em uma situação de grande volatilidade nas expectativas com relação ao comportamento da taxa dejuros, o Banco Central tem dificuldade em definir o preço de corte para os títulos. Com isso, a autorida-de pode acabar recusando todas as propostas ou, ao aceitá-las em um esquema de leilão discriminatório,acabar enviando sinais equivocados às instituições quanto às suas intenções sobre a direção da taxa dejuros, prejudicando a condução da política monetária.

13.5. FORMAÇÃO DA TAXA DE JUROS NO CURTO PRAZO

A atuação do Banco Central no gerenciamento cotidiano da liquidez, somado às realizações dos leilõesprimários, define o estado de oferta das reservas por parte do Banco Central. A taxa de juros de curtoprazo, ou taxa básica da economia, nada mais é que o resultado do confronto entre a oferta de reservas,definida pelas atuações do Banco Central nas operações compromissadas e operações definitivas e osaldo do fluxo de entrada e de saída de dinheiro para e do sistema bancário, com a demanda por reser-vas dessas instituições definida pelas suas necessidades de atender às exigibilidades compulsórias eseus compromissos com o setor não monetário da economia.

O Banco Central, portanto, atua sinalizando para as instituições quais serão as condições prevale-centes no mercado de reserva no dia e ao longo de um período mais extenso de tempo.

A maneira mais usual de evitar ruídos nessa comunicação é através do anúncio de metas parataxa de juros. O Federal Reserve e o Banco Central do Brasil, por exemplo, adotam esse modelo. De

Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros 193

BANCOCENTRAL

MERCADO INTERBANCÁRIO

Título

Títulos

reservas

LEILÃO PRIMÁRIO – OPERAÇÃO DEFINITIVA

Operação Compromissada(Taxa Selic)

Banco A Banco B

reservas

FLUXOGRAMA 13.3Mercado Aberto no Brasil

modo a operacionalizar a decisão quanto à taxa de juros de curto prazo ou taxa básica da economia –uma vez que o que está sendo decidido é o custo do dinheiro no curto prazo – os bancos centrais insti-tuem comitês de política monetária que decidem e anunciam as determinações para o público. Alémde fixar a taxa de juros básica da economia, e com isso sinalizar as condições vigentes para o mercadode reservas, alguns bancos centrais também definem uma programação monetária com vistas a indi-car qual será o objetivo a ser perseguido em termos de agregados monetários para um determinadoperíodo de tempo.

Com base nessas metas, e levando em consideração suas estimativas para a evolução autônoma dasreservas, o Banco Central toma suas decisões de expandir ou contrair a oferta de reservas de modo aatender seus objetivos de curto, médio e longo prazo para a taxa de juros. Para a autoridade monetária,as metas de juros atuam enquanto metas operacionais para atender seus objetivos no que se refere a in-flação e/ou produto e emprego. Deste modo, o Banco Central pode, por um lado, definir – conjuntamen-te com o Tesouro – um calendário de colocação de títulos nos leilões primários e, por outro lado, atuarno dia a dia de modo a manter a taxa de juros no patamar definido previamente como adequado pela au-toridade monetária.

De modo a alterar o patamar da taxa de juros básica da economia, o Banco Central pode gerenciar aliquidez a fim de que o mercado fique com escassez de reservas, obrigando os bancos a tomar empresta-do junto ao Banco Central, aceitando uma taxa mais elevada, o que acaba por torná-la efetiva. O anún-cio de metas de taxa de juros acaba evitando uma atuação mais contundente do Banco Central por sina-lizar, sem maiores ruídos, a intenção da autoridade. Como o Banco Central é um ofertante monopolistano mercado de reserva, os agentes têm consciência da sua capacidade de determinar a taxa de juros decurto prazo desejada. Uma vez que essa taxa tenha sido tornada explícita, não há por que atuar na dire-ção oposta àquela pretendida pela autoridade. É importante destacar, contudo, que a ação do BancoCentral não se faz completamente à parte das expectativas e desejos dos bancos. As razões que levam aautoridade a ouvir o mercado são basicamente de duas ordens. Em primeiro lugar, a determinação dataxa de juros não pode ser feita às expensas de questões como solvência dos bancos. Isto significa que oBanco Central, na sua tarefa de determinar a taxa de juros de curto prazo, não pode – a rigor – agravar ascondições de liquidez dos bancos, sob pena de fragilizá-los em excesso, pondo em risco a saúde de todoo sistema financeiro.

Desta forma, determinadas situações podem fazer com que o Banco Central expanda a oferta de re-servas além do que havia sido programado, produzindo um impacto baixista na taxa de juros, o que vaiobrigar à tomada de ações compensatórias também não programadas no futuro.

Em segundo lugar, o Banco Central conduz suas operações também com base na persuasão. Essapersuasão vai funcionar de modo tão mais efetivo quanto menos as ações da autoridade implicarem per-das para os participantes do mercado. Assim, os bancos, quando tomam decisões com relação à comprade títulos, em especial nos leilões formais, estão apoiados em uma expectativa quanto à evolução futurada taxa de juros básica. Essa expectativa é utilizada para formar as outras taxas cobradas nas suas outrasoperações. Da confirmação de suas expectativas é que vai depender boa parte do spread – diferença en-tre a taxa média de aplicação e a taxa média de captação do banco – auferido pela instituição. Esse qua-dro é particularmente importante em um ambiente de elevação esperada da taxa de juros.

Assim, se o banco espera uma elevação na taxa de juros básica de dois pontos percentuais em umhorizonte de seis meses, uma elevação de quatro pontos percentuais por força de uma ação de políticamonetária poderá implicar a ocorrência do risco da taxa de juros, em especial se o ambiente de concor-rência bancária for tal que os spreads sejam curtos. O risco da taxa de juros nada mais é que o risco dobanco – diante de uma elevação da taxa de juros mais acentuada que o esperado – acabar sendo obriga-do a pagar um custo de captação – seja junto aos clientes, seja junto ao Banco Central – maior que a re-ceita média que está auferindo com suas aplicações, o que obviamente resultaria em um spread negati-vo para a instituição.

A fim de evitar esse tipo de ocorrência, que tem efeitos desestabilizadores, o Banco Central procuradefinir suas ações de política de modo a não frustrar em demasia as expectativas das instituições finan-ceiras quanto à evolução da taxa básica de juros. Esse é o chamado consenso de mercado.

194 Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros ELSEVIER

RESUMO

1. O mercado de reservas bancárias é o mercado através do qual os bancos realizam suas operações financeiras.Cada vez que um agente não financeiro faz um depósito em moeda ou compra um título emitido pelo bancovai haver um impacto na conta de reservas bancárias da instituição. Essa conta é a conta-corrente que os ban-cos mantêm no Banco Central para fins de execução de suas operações com o restante do sistema econômico eentre si. Na ocorrência cotidiana de perdas e ganhos de saldos de reservas bancárias entre as instituições finan-ceiras, surgem excessos e deficiências quanto à exigibilidade do Banco Central; os bancos acabam trocandoreservas entre si pelo prazo de um dia, com lastro em títulos públicos federais. Como o sistema bancário comoum todo não é capaz de criar ou destruir reservas bancárias, resta ao Banco Central, como única instituiçãocom poder de criar ou destruir primariamente moeda, exercer o controle de liquidez

2. De modo a promover o ajuste adequado da liquidez do sistema bancário para atender seus propósitos de políti-ca, o Banco Central cotidianamente faz previsões quanto ao saldo consolidado de reservas do sistema bancá-rio. A intenção da autoridade é garantir a taxa de juros definida pelas suas decisões de política sem, contudo,elevar sobremaneira o grau de fragilidade do sistema bancário, o que poria em risco todo o sistema financeiro.A variação da liquidez pode se dar de forma autônoma e não autônoma em relação ao Banco Central. A varia-ção não autônoma decorre da ação do Banco Central enquanto gerenciador da liquidez. A mesma é determi-nada basicamente pelas exigibilidades compulsórias. Já a variação autônoma decorre de mudanças nos ativosexternos líquidos, nos empréstimos ao governo, na preferência do público em reter papel-moeda e das varia-ções dos depósitos do Tesouro Nacional. O Banco Central, ao realizar sua tarefa de prever a liquidez, vai estarbasicamente inferindo a respeito desses fatores.

3. O controle da liquidez pelo lado da oferta pode se dar por dois tipos de operações, ambas no âmbito do merca-do aberto: operações compromissadas ou leilões informais, por um lado, e leilões formais, de outro. As opera-ções compromissadas são o instrumento mais utilizado pelo Banco Central para fazer o ajuste fino daliquidez. Nessas operações, o Banco Central negocia moeda com os bancos (como doador ou tomador), com agarantia representada pela caução de títulos públicos federais. Nos leilões informais, o Banco Central operaapenas com instituições credenciadas (dealers). Estes leilões são comunicados através de contatos telefôni-cos. Quando o objeto de negociação no leilão informal são títulos federais, estas operações são ditas definiti-vas. Este também é o caso dos leilões formais de títulos. Os leilões formais estão abertos a todas às instituiçõesparticipantes do SELIC e são comunicados através de portaria do Tesouro Nacional.

4. A formação da taxa de juros de curto prazo vai depender das inferências do Banco Central quanto às condi-ções no mercado de reservas, bem como quanto a suas metas intermediárias e finais. Assim, o Banco Centraldecide, com base em uma série de critérios, muitos dos quais explicitados nos relatórios dos comitês de políti-ca monetária, qual a taxa de juros adequada para a operação da economia. A partir daí, vai procurar “fazer”essa taxa no mercado bancário, criando um “consenso” a respeito da taxa de juros que deve prevalecer. Isto éfeito com base na combinação dos instrumentos de política que tem a seu dispor. O recolhimento compulsórioé utilizado para moldar parcialmente a demanda por reservas e o mercado aberto é a arena para os ajustes deoferta. No dia a dia, a autoridade ajusta a oferta à demanda de modo a produzir uma trajetória suave – combaixa volatilidade – na taxa de juros compatível com as metas anunciadas. Isto é feito basicamente através deoperações compromissadas e leilões informais de títulos e dinheiro. Os leilões formais são utilizados paraconfigurar o nível normal de liquidez no mercado monetário.

TERMOS-CHAVE

� Reservas Bancárias� Previsão de Liquidez� “Dealers”� Leilão Primário

� Leilões Informais� Operações Compromissadas� Taxa de Juros Básica� Operações de Mercado Aberto

Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros 195

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Torres, M. A Operacionalidade da Política Monetária no Brasil. Campinas, Tese de Doutorado, 1999.Tese de doutorado que trata da operacionalidade da política monetária em um nível geral, mostrando como

funciona o mercado de reservas bancárias, assim como o modus operandi dos instrumentos de política monetária.Material bastante rico sobre os procedimentos operacionais dos instrumentos no Brasil.

Meulendyke, A. U.S. Monetary Policy and Financial Markets. Nova York, Federal Reserve Bank of NewYork, 1998. Caps. 1, 5, 6 e 7.

Esses capítulos mostram a política monetária do Banco Central americano em ação. O primeiro apresenta umpanorama da relação entre política monetária e mercado monetário e quais os instrumentos à disposição do BancoCentral para executar sua política. Os capítulos seguintes tratam da determinação das estratégias da política mo-netária, começando pela mensuração da liquidez no mercado monetário, passando para as linhas-mestras de ação,mostrando como o Comitê de Mercado Aberto (FOMC) toma suas decisões, chegando por fim à condução propria-mente dita da política monetária. Mostra também como é um dia típico na mesa de mercado aberto do Banco Cen-tral.

European Central Bank (ECB). The Single Monetary Policy in Stage Three. General Documentation on Eu-rosystem Monetary Policy Instruments and Procedures. Frankfurt am Main, Kern & Birner, 2000.

Documento de caráter mais técnico-operacional onde são apresentados todos os procedimentos dos instrumen-tos de política monetária utilizados pelo Banco Central Europeu.

Fabozzi, F. e Modigliani, F. Capital Markets: Institutions and Instruments. New Jersey: Prentice-Hall, 1992.Caps. 13 e 14.

196 Operacionalidade da Política Monetária: Formação da Taxa de Juros ELSEVIER

MECANISMOSDE TRANSMISSÃODA POLÍTICA MONETÁRIA

INTRODUÇÃO

Neste capítulo são apresentadas os canais de transmissão pelos quais deci-sões de política monetária tomadas pelo Banco Central se transformam emincentivos a comportamentos desejados dos agentes privados. Ao contrá-rio da política fiscal, que opera sobre a economia de forma mais direta, au-mentando ou diminuindo gastos, a política monetária influencia ocomportamento da economia de forma mais sutil. Variações nas taxas dejuros promovidas pela autoridade monetária raramente são relevantes porsi mesmas para a determinação dos gastos agregados de uma economia. OBanco Central regula o preço das reservas bancárias, não as taxas de jurospagas por consumidores ou investidores. A eficiência da política monetáriadepende diretamente do modo pelo qual as decisões do Banco chegam afinalaos consumidores e investidores.

14.1. POR QUE A POLÍTICA MONETÁRIA É TÃO

IMPORTANTE?

Nos dias de hoje, mesmo o cidadão mais desinformado a respeito das tecnica-lidades da política monetária estará provavelmente convencido de quão estra-tégica é esta política para a prosperidade de um país. Nos últimos anos seriaimpossível passar-se os olhos pelos jornais diários sem encontrar, repetidasvezes, referências ao poder das autoridades monetárias. Alan Greenspan, ochefe do banco central norte-americano, o Federal Reserve, por 17 anos foiquase santificado pela sua perícia em tomar decisões que muitos consideramresponsáveis pelo impressionante surto de prosperidade dos Estados Unidosna década de 1990. O contraste com o prestígio dos banqueiros centrais euro-peus e japonês, a quem muitos atribuem a responsabilidade pelo medíocre de-sempenho das suas economias, mostra que o poder do banco central é enorme,para o bem ou para o mal. Mesmo nos Estados Unidos, muitos explicam aocorrência da mais profunda recessão desde a Grande Depressão dos anos 30,

CAPÍTULO

14

que durou de 1979 a 1982, pelas decisões tomadas pelo Fed, então liderado por Paul Volcker. Aquimesmo no Brasil, é, em geral, aceito, ainda que não unanimente entre economistas, o diagnóstico deque a drástica desaceleração do crescimento da economia brasileira em 2005, em comparação a 2004,se deve às decisões tomadas pelo Banco Central do Brasil.

Esta avaliação da importância da política monetária certamente surpreenderia um analista ma-croeconômico que fosse transportado, por alguma máquina do tempo, diretamente dos anos 60 ou 70do século passado para o presente. Naquele período, predominava a visão exatamente oposta, de quea política monetária era fundamentalmente impotente para influenciar o desempenho macroeconô-mico de um país. Era a política fiscal o instrumento mais importante de administração da demandaagregada. A política fiscal, ao regular os gastos do governo (e também do público, através do recolhi-mento de impostos), agia diretamente sobre a demanda agregada e, portanto, sobre o nível de ativida-des da economia. A política monetária, em contraste, dependia da validade de certos supostos com-portamentais que ou não se verificavam ou mudavam tão rapidamente a ponto de tornar seus efeitos,na prática, imprevisíveis.

Este diagnóstico mudou, na verdade, em função de vários fatores, incluindo-se o relativo abusodos poderes da política fiscal, com a geração em algumas economias de déficits públicos que acaba-ram revelando-se difíceis de controlar. Além disso, o processo de decisão de política fiscal é, via deregra, lento e conflitivo, dependendo de negociações políticas entre os poderes executivo e legislati-vo que, por vezes, inviabilizavam o uso dessa política como instrumento de estabilização. Do pontode vista macroeconômico, o que importa é o gasto total do setor público, mas, na negociação orça-mentária, o que existem são os gastos em bens e serviços específicos, com beneficiários específicos,etc. Enquanto o conflito pela apropriação das benesses fiscais não for resolvido, o gasto total não es-tará determinado. O tempo necessário para a solução do conflito orçamentário entre os diversos gru-pos de beneficiários nada tem a ver com o tempo necessário para a utilização da política fiscal comoinstrumento de estabilização do nível de atividades. A decisão de política monetária, em comparação,é muito mais rápida, tornando-se, assim, um instrumento mais eficaz de intervenção quando a deman-da agregada sofre um choque adverso.

Mas o fato de a decisão de política monetária ser mais ágil e eficaz que a de política fiscal não expli-ca por que se atribuem tantos poderes a ela, como se faz atualmente. A questão central permanece pos-ta: por que a política monetária é tão poderosa, já que ela consiste em fixar o valor de uma taxa de jurosque não é relevante para quase ninguém?

James Tobin, um dos mais importantes economistas do século XX, compartilhava dessa dúvida:

“A cauda chacoalha o cachorro. Ao mover delicadamente uma pequena cauda, Alan Greenspanchacoalha um cachorro enorme, a grande economia americana. Isto não é notável? A taxa sobrefundos federais1 é a mais curta de todas as taxas de juros, muito distante das taxas sobre ativos e dí-vidas pelas quais as empresas e famílias financiam os gastos em investimento real e consumo medi-dos no PIB. Por que a política monetária funciona? Como? É um mistério, que não é plenamentecompreendido nem pelos banqueiros centrais, nem pelos economistas.”2

O mistério certamente não será desfeito aqui. No entanto, pode-se explorar uma parte importantedele ao examinar como a taxa de curtíssimo prazo fixada pela autoridade monetária afeta outras variá-veis que, estas sim, serão relevantes para a tomada privada de decisões por parte de empresas e famílias.É disto que trata o tema dos mecanismos de transmissão da política monetária. Antes de examiná-los,porém, vamos introduzir um conceito que jogará papel muito importante nesse contexto, o da curva derendimentos.

198 Mecanismos de Transmissão da Política Monetária ELSEVIER

1. A taxa sobre fundos federais é o equivalente americano de nossa taxa SELIC, a taxa de juros que se cobra nos empréstimos de re-servas no mercado interbancário.2. James Tobin. World Finance and Economic Stability. Selected Essays of James Tobin. Cheltenham: Edward Elgar, 2003, p. 171.

14.2. A CURVA DE RENDIMENTOS

A curva de rendimentos é uma construção utilizada para mostrar a relação entre as taxas de juros in-cidentes sobre contratos de dívida semelhantes em tudo menos nas suas maturidades. Em si, essacurva é apenas descritiva. Ela não é derivada de nenhuma teoria particular das taxas de juros, mas,sim, da observação das taxas efetivamente pagas no mercado por papéis de diferentes maturidades.

Para construir a curva de rendimentos, é necessário, primeiramente, selecionar contratos financei-ros que sejam os mais semelhantes possíveis, para evitar que eventuais diferenças de taxas de juros inci-dentes sobre eles possam se dever a outros fatores que não as diferenças de maturidades. Selecionadosestes contratos (por exemplo, papéis de dívida pública com cláusulas homogêneas), calcula-se qual ataxa de juros anual paga sobre cada classe de contratos. Quando se trata de um papel de maturidadeigual a um ano, a taxa de juros relevante é a contratada. Se o papel tem duração maior ou menor que umano, é preciso anualizar a taxa de juros, isto é, calcular qual a taxa de juros anual embutida na remune-ração do contrato. Uma vez obtidos essas taxas anualizadas de juros, como o exemplo dado na tabe-la 14.1, nós as localizamos em um gráfico como o Gráfico 14.1, onde, no eixo vertical temos as taxasanualizadas de juros e no horizontal, a maturidade de cada classe de contratos.

Sendo uma curva descritiva, e não teórica, sua forma não é conhecida a priori. No entanto, como nocaso de outras curvas descritivas em economia,3 na prática há um formato normal da curva de rendi-mentos, não apenas no sentido de que é o formato que se observa com maior frequência, como tambémé o que é em geral verificado quando a economia atravessa períodos de relativa estabilidade. Este for-mato normal é o exibido no Gráfico 14.1, onde se vê uma curva ascendente, indicado que quanto maislonga for a maturidade efetiva do contrato, maior será a taxa de juros anualizada sobre ele.

TABELA 14.1A Curva de Rendimentos

Maturidade do Título(em períodos)

Taxa de JurosAnualizada (%)

0 0

1 3,5

2 4,5

3 5

4 5,25

10 7,5

15 8

20 8,25

Há duas implicações imediatas a serem identificadas do que se viu até agora nesta seção. A primei-ra é a de que a persistência do formato indicado sugere a existência de algum mecanismo mais durávelque conecte as diversas taxas. Assim, embora a curva de rendimentos em si seja apenas um instrumentodescritivo, parece haver alguma relação mais geral entre as taxas de juros sobre papéis de maturidadediversa que caberia à teoria econômica identificar. A eventual existência de alguma relação mais está-vel entre as diversas taxas de juros permitiria, por exemplo, que, ao mover uma das taxas, como a decurtíssimo prazo, o Banco Central contribuísse, indiretamente, para mover também as outras. Nós vol-taremos a examinar essa possibilidade na próxima seção.

A outra implicação importante do fato da curva de rendimentos ser normalmente ascendente é queisso acabou por influenciar o modo pelo qual intermediários financeiros operam na economia. Se forpossível generalizar a observação feita através da curva de rendimentos ascendente para a proposição

Mecanismos de Transmissão da Política Monetária 199

3. Um exemplo que vem à mente é a Curva de Phillips.

de que taxas de juros sobre contratos mais longos tendem a ser maiores do que as pagas sobre contratosmais curtos, é possível derivar-se daí uma outra proposição, a de que intermediários financeiros, nor-malmente, captam a prazos mais curtos (isto é, endividam-se junto ao público através de instrumentosde prazo mais curto) e emprestam a prazos mais longos. Se isto for verdadeiro, a remuneração normalda instituição financeira passa a resultar da diferença (ou spread) entre as duas taxas de juros (a maiscurta, paga pelo intermediário, e a mais longa, recebida por ele). Intermediários financeiros exerceriamassim a função de transformadores de maturidades, transformando dívidas de curto prazo (presentesem seu passivo) em empréstimos de longo prazo (presentes em seu ativo).4

A estabilidade observada no formato das curvas de rendimento nos leva a supor que a relação entreas taxas de juros ordenadas por maturidades não seja acidental, mas, ao contrário, se deva à ação de fa-tores sistemáticos. Dois candidatos a fatores causais emergem da literatura: as diferenças de risco e asexpectativas de taxas de juros.

O argumento das diferenças de risco é intuitivo: contratos mais longos prendem seus titulares porperíodos mais longos, reduzindo sua liberdade de reação a novas informações ou a novos estímulos.Assim, quem empresta dinheiro por dois anos se expõe ao risco de perder oportunidades melhores deaplicação que apareçam durante esse período, enquanto quem empresta por apenas um ano, estará livrepara refazer suas escolhas depois de um ano, podendo aproveitar o que aparecer a partir daí. Assim, astaxas de juros anualizadas mais elevadas pagas em contratos mais longos serviriam como compensaçãopela inflexibilidade que implicam diante de oportunidades imprevistas que apareçam pelo caminho. Seesse argumento é válido, pode-se acrescentar uma qualificação importante a afetar a curva de rendi-mentos: a liquidez do papel. Um título líquido é aquele vendável com facilidade pelo seu possuidor. Opapel pode ter maturidade mais longa, mas se existem mercados secundários organizados (como Bolsasde Valores, por exemplo), o aplicador tem a possibilidade de vendê-los a terceiros antes da maturidadepara aproveitar outras oportunidades. Assim, se o papel é líquido, seu risco é menor e a remuneraçãoque lhe serve de compensação também pode ser menor. Isto pode dar origem a curvas de rendimentoscom corcovas, como a do Gráfico 14.2. Nesta curva, títulos com maturidade de três anos pagam umataxa de juros anual menor que títulos de dois se existirem mercados organizados que lhe deem maior li-quidez que os títulos de duração menor. Essas corcovas são comuns no mercado de títulos do Tesourodos Estados Unidos, por exemplo.

200 Mecanismos de Transmissão da Política Monetária ELSEVIER

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Maturidade do contrato

Taxas de juros anualizadas

GRÁFICO 14.1A Curva de Rendimentos Normal

4. Veja-se o Capítulo 17 para uma identificação das instituições financeiras que exercem esse papel de transformadores de ma-turidades.

Mecanismos de Transmissão da Política Monetária 201

A curva de rendimentos tem um papel im-portante também no funcionamento dosmercados de títulos financeiros. Sendoconstruída geralmente para títulos públi-cos de diferentes maturidades, caracteri-zados pelo risco de crédito (isto é, a pro-babilidade de default ou calote) nulo ounegligível, a curva de rendimentos acabaservindo de referência para a formaçãodas taxas de juros privadas para maturi-dades correspondentes. Assim, se a taxade juros anualizada sobre um título públi-co de 10 anos é de, digamos, 5%, um títu-lo de emissão privada de maturidade cor-respondente não poderá pagar menos de5%. Na verdade, terá de pagar mais, por-que o título privado estará exposto a maisriscos do que o título público, notada-mente o risco de crédito. Assim, se o riscode crédito associado ao emissor privadoimplica um prêmio de, digamos 2%, ataxa de juros paga pelo papel privadoserá de 7%. Assim, a precificação de pa-péis privados deverá se apoiar na curvade rendimentos. Nesse sentido, a existên-cia de um estoque de dívida pública vari-ado em termos de maturidades é, real-mente, útil para o desenvolvimento deum mercado privado de títulos financei-ros, servindo-lhe de apoio para a forma-ção de preços (isto é, de taxas de juros)desses papéis.

Em mercados um pouco mais sofisti-cados, a curva de rendimentos permiteainda a realização de operações de hed-ge na compra e venda de títulos priva-dos. Operações de hedge são operaçõesdefensivas, dirigidas a compensar e ate-nuar riscos assumidos nas operaçõescom papéis no mercado. Quando osaplicadores tomam posição em uma cer-ta classe de papéis na expectativa de queseu preço suba, eles podem atenuar osriscos que correm se assumirem uma po-sição em sentido contrário em outraclasse de papéis que tenham alguma co-nexão com o objeto de sua especulação.Estas operações são operações de hed-ge, e, com frequência, a curva de rendi-mentos serviu para que os termos dessesnegócios pudessem ser estabelecidos.

A evolução dos mercados de capitais,especialmente no mundo desenvolvido,

a partir de meados dos anos 90, mos-trou, contudo, que títulos públicos pode-riam não ser os melhores instrumentosde hedge disponíveis para diminuir ris-cos com títulos privados. Assim, a curvade rendimentos tradicional, construída apartir das taxas de juros sobre títulos pú-blicos, foi posta de lado, em favor dabusca de uma outra curva de rendimen-tos, com operações que fossem mais se-melhantes àquelas com títulos privados.A solução encontrada foi a utilização dastaxas negociadas nos contratos de swapsde juros. Swaps são contratos derivati-vos1 em que obrigações de um determi-nado perfil são trocadas por obrigaçõesde valor semelhante, mas perfil diferen-te. Em swaps de juros, por exemplo, umtomador de empréstimos a taxas de ju-ros flutuantes troca esse perfil de obriga-ções por outro, de mesmo valor, mas detaxas de juros prefixadas. Em outras pa-lavras, um agente que tomou um em-préstimo a taxas de juros flutuantes trocaessa obrigação com outro agente, quetomou um empréstimo a taxas de jurosprefixadas. Nas operações reais comswaps, na verdade, são instituições fi-nanceiras, bancos principalmente, quemfaz o swap com tomadores de emprésti-mos. Bancos oferecem as taxas de jurosprefixadas para as diversas maturidadesque trocariam por obrigações de perfiltemporal semelhante a taxas de jurosflutuantes. Se as taxas de juros prefixa-das oferecidas pelos bancos para as di-versas maturidades forem colocadas emum gráfico, teremos uma curva de rendi-mentos de natureza muito parecida coma curva de rendimentos tradicional, coma diferença, porém, de que reflete riscosdo setor privado ao invés das condiçõesespeciais que cercam títulos públicos. Poressa razão, tem sido cada vez mais co-mum a construção, divulgação e utiliza-ção de curvas de rendimentos construí-das a partir de operações com swaps.

1. Sobre o conceito de derivativos, ver a seção20.3.2 do Capítulo 20.

A CURVA DE RENDIMENTOS E OS SWAPS DE JUROS

BO

X1

4.1

O argumento das expectativas é mais geral e não depende do formato da curva em si. Ele consistena simples aplicação do princípio da arbitragem e propõe que as taxas de juros anualizadas de prazomais longo são determinadas pela sequência de taxas de juros de curto prazo esperadas entre o presentee a liquidação dos títulos de curto prazo. A lógica é, na verdade, simples. Vamos supor que um aplica-dor tem um horizonte de investimento de dois anos. Ele pode escolher emprestar, digamos, por umamaturidade de seis meses, de 1 de janeiro a 30 de junho do primeiro ano, renovar esse empréstimo em 1de julho até 31 de dezembro, renová-lo outra vez em 1 de janeiro do segundo ano e renová-lo uma vezmais em 1 de julho. Alternativamente, o aplicador poderia emprestar em 1 de janeiro do primeiro anopor dois anos. Como escolher entre as duas alternativas? Supõe-se que o aplicador racional comparará ataxa de juros que receberá no contrato de dois anos com a sequência de taxas de juros que receberá peloscontratos de seis meses. Ora, no presente, apenas duas taxas são realmente conhecidas: aquela que inci-de sobre um contrato de seis meses, de 1 de janeiro a 30 de junho deste primeiro ano, e a que incide so-bre a dívida de dois anos. Em equilíbrio, esta taxa paga sobre um empréstimo de dois anos tem de serigual àquela paga pela sequência de quatro contratos de seis meses. O aplicador decidirá se aceita ounão a taxa de juros de dois anos apenas se ela for no mínimo igual ao que ele sabe que receberá nos pri-meiros seis meses mais aquilo que espera receber nas três renovações que se seguiriam. A taxa de jurossobre títulos de prazo mais longo está ligada assim às taxas de juros esperadas para a sequência de con-tratos de maturidade mais curta no mesmo período. Deste modo, taxas de juros de longo prazo mais al-tas equivalem à expectativa de uma sequência de taxas de juros de curto prazo mais elevadas também.

É intuitivo que a curva de rendimentos será um importante elemento dos mecanismos de transmis-são de política monetária, já que a autoridade monetária agirá sobre uma taxa de juros de prazo bemcurto esperando influenciar o comportamento de agentes que se interessam, contudo, por taxas de ma-turidades bem mais longas. Seja pela teoria de riscos, seja pela teoria de expectativas, o que foi propos-to é exatamente que a relação entre as taxas de juros sobre contratos de diferentes maturidades não éacidental, mas, ao contrário, seguem uma lógica inteligível. Se isto for verdadeiro, teremos desvendadouma parte importante do referido mistério de Tobin.

14.3. MECANISMOS DE TRANSMISSÃO (1): ATRAVÉS DO VALOR

DOS ATIVOS

Este mecanismo se baseia diretamente na existência de uma relação estável entre as taxas de juros, con-forme observada numa curva de rendimentos. Nesta concepção, o Banco Central manipularia toda a es-

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Maturidade do contrato

Taxas de juros anualizadas

GRÁFICO 14.2Curva de Rendimentos com Corcovas

trutura de taxas de juros ao mover a taxa de curtíssimo prazo como alguém que levantasse uma pásegurando apenas seu punho. Nessa concepção, a autoridade monetária, ao alterar a taxa de curtíssimoprazo estaria desalinhando a teia de relações financeiras descritas pela curva de rendimentos, induzindoos agentes a se adaptarem à nova situação através da alteração de suas carteiras de papéis, causando mo-vimentos de preços dos ativos que restabeleceriam as relações normais entre as taxas. Tomemos comoexemplo uma elevação da taxa de curtíssimo prazo. Neste caso, papéis com maturidades imediatamentesuperiores estariam pagando um acréscimo de taxa de juros que não mais compensaria o risco adicionalque representa a maturidade mais longa. Os investidores tentariam realinhar suas carteiras, vendendo opapel de maior maturidade, cuja taxa de juros deixou de ser atraente, para comprar o de curtíssimo pra-zo, cujo risco é menor mas cuja remuneração cresceu. A pressão de venda dos papéis de maturidademaior faria com que seu preço de mercado caísse,5 subindo, portanto, sua taxa de juros. Esta alta da taxade juros paga sobre o papel de maturidade serviria para realinhá-la com a nova taxa de curtíssimo prazo.Processo semelhante faria com que subissem as taxas de juros sobre os papéis de todas as outras maturi-dades. Com isso, ao se concluir a sequência de mudanças, todo o conjunto de taxas de juros teria se des-locado para cima em reação à elevação de uma única delas, a taxa de curtíssimo prazo fixada pelaautoridade monetária. Esta situação é ilustrada no Gráfico 14.3, abaixo, onde a curva de rendimentos IIé construída a partir de uma elevação da taxa de curtíssimo prazo manipulada pelo Banco Central.

O processo de transmissão dos impulsos de política monetária não se conclui, contudo, com o deslo-camento da curva de rendimentos. Até aqui apenas obteve-se uma mudança nas taxas de retorno pagas nomercado financeiro. A política monetária busca, porém, influenciar a demanda agregada por bens e servi-ços, de modo a influenciar sejam variáveis nominais, como a taxa de inflação, sejam variáveis reais, comoo nível de atividade. Como o deslocamento da curva de rendimentos obtém esse resultado?

O elo mais importante entre as variações na taxa de juros e o comportamento de consumidores e in-vestidores é dado pelos efeitos-riqueza resultantes da variação dos preços dos ativos. Quando a autori-dade monetária sobe a taxa de juros, ela leva o mercado financeiro a promover uma queda no valor dosativos financeiros. Além disso, esta queda é tanto maior quanto mais longa for a maturidade do ativo.

Mecanismos de Transmissão da Política Monetária 203

5. Lembremo-nos que preços de ativos e taxas de juros estão inversamente relacionados. Se considerarmos, por simplificação,papéis chamados de perpetuidades, isto é, aqueles que pagam cupons eternamente, mas não podem ser resgatados, teremos aforma mais simples dessa relação: P = A/r, onde P é o preço de mercado do ativo, A é o valor do cupom e r é a taxa de juros demercado. Assim, para um dado A, quando r sobe, P necessariamente se reduz. Ver o item 1.2 do cap. 5.

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Maturidade do contrato

Taxas de juros anualizadas

GRÁFICO 14.3Curvas de Rendimento Quando se Eleva a Taxa de Juros do Open-market

Assim, a elevação da taxa de juros, ao causar um deslocamento de toda a curva de rendimentos, impõeperdas a todos os detentores de ativos financeiros da economia. Mais pobres, esses agentes tenderão areduzir seu consumo.

A elevação das taxas de juros pagas sobre ativos financeiros de maior maturidade também influen-cia negativamente os investimentos em capital real, já que estes dois grupos de ativos até certo pontocompetem pela preferência do detentor de riqueza que busca uma aplicação para ela. Se a taxa de lucrosesperada sobre investimentos reais se mantém inalterada mas a taxa de juros sobre papéis de longo pra-zo sobe, é de esperar que muitos investidores deem preferência a reter títulos financeiros, em detrimen-to de investimentos em capital real. Juntando-se os dois efeitos, sobre consumo e sobre investimento,teríamos uma influência contracionista sobre as despesas dos agentes privados como resultado da polí-tica monetária de elevação da taxa de juros de curtíssimo prazo. É importante notar, ainda, que, nestavisão, a política monetária exerce parte importante de sua influência através das mudanças que induz nadecisão de investir, já que são os ativos de maior maturidade que serão os mais atingidos pelo aumentode juros. Por isso mesmo, para muitos a utilização de elevações de taxas de juros como instrumento deadministração de demanda agregada exibe um viés anti-investimento e anticrescimento.6

Uma variante do mecanismo exposto nesta seção se dá através da influência da política monetáriasobre o valor do “q” de Tobin. Esta variável foi discutida em mais detalhe no Box 8.1 do Capítulo 8 dolivro. Em termos gerais, “q”, segundo James Tobin, identifica o quociente entre o valor de mercado deuma firma (medido pelo valor de mercado de seu capital em ações) e o valor de reposição de seus bensde capital. Um valor de “q” superior à unidade indicaria uma percepção, por parte dos agentes de mer-cado, de que a firma em questão “adiciona” valor à combinação de fatores de produção que representa,isto é, entendem os agentes de mercado que esta firma é capaz de combinar esses fatores de modo a ren-der uma renda extra, superior ao que seria obtido normalmente. Assim, um “q” maior do que 1 indica aexpectativa do mercado de que aquela firma será capaz de gerar lucros extraordinários no horizonte detempo relevante. Se, ao invés de calcular “q” para uma única firma, calcularmos para todas as firmas,um “q” superior à unidade indicará a expectativa de que a produção agregada será lucrativa, o que, porsi, deverá estimular as empresas a ampliar a produção e o emprego efetivos. O contrário ocorreria se “q”fosse inferior à unidade.

Neste mecanismo, a transmissão dos impulsos da política monetária seria feita através do impactoque variações da taxa de juros (através de movimentos da curva de rendimentos) teriam sobre o valordas ações de empresas negociadas em bolsa. Uma baixa da taxa de juros, por exemplo, elevaria o valordas ações negociadas em bolsa, elevando “q” e, assim, estimulando a expansão da produção e a realiza-ção de investimentos. Naturalmente, a potência de um tal mecanismo de transmissão depende crucial-mente da importância da bolsa de valores na economia, ainda muito reduzida na maioria dos países, in-clusive o Brasil.

Em resumo, o mecanismo de transmissão da política monetária aqui apresentado consiste na se-guinte sequência de eventos:

Variação da taxa de juros de curtíssimo prazo (usualmente aquela paga no mercado interbancá-rio de reservas)

� Deslocamento da curva de rendimentos, afetando-se as taxas de juros sobre ativos financei-ros de maior maturidade

� (1) Impacto sobre investimentos pela alteração da atratividade relativa entre ativos reais e ati-vos financeiros; (2) Impacto sobre consumo resultante de efeitos-riqueza.

204 Mecanismos de Transmissão da Política Monetária ELSEVIER

6. Dá-se preferência, nessa abordagem, a combinações de políticas onde a política fiscal exerce o papel contracionista, man-tendo-se a política monetária relativamente frouxa, de modo a reduzir a demanda agregada sem afetar o investimento.

14.4. MECANISMOS DE TRANSMISSÃO (2): O CANAL DO CRÉDITO

Muitas economias não possuem mercados de títulos financeiros que permitam a operação do mecanis-mo de transmissão descrito na seção anterior. Mesmo economias desenvolvidas, como a economia ale-mã, até as últimas décadas do século XX não tinham mercados suficientemente amplos até mesmo paratítulos públicos. Nessas economias, a política monetária afetará a economia através de canais alternati-vos. O mais conhecido deles é o canal do crédito.

Os dois instrumentos de política monetária mais frequentemente usados, como visto no Capítulos12 e 13, são a compra e venda de títulos no mercado aberto e o empréstimo de reservas através dos gui-chês de redesconto.7 No primeiro caso, o banco central compra ou vende títulos (em geral públicos e decurto prazo) ao setor bancário de modo a alterar a disponibilidade de reservas bancárias. Quando a auto-ridade monetária vende títulos aos bancos, as reservas bancárias são reduzidas, já que os bancos asusam para pagar pelos títulos que compram. Quando o Banco Central compra títulos, o efeito é o opos-to. No caso do redesconto, o Banco Central, ao invés de comprar títulos que estão na carteira dos ban-cos, empresta-lhe as reservas (ou as cobra, se o sentido da política for contracionista). Em ambos os ca-sos, o resultado da política monetária é, portanto, aumentar ou reduzir as reservas livres à disposiçãodos bancos. Destas reservas livres depende o setor bancário para a realização de empréstimos ao públi-co não bancário e para a criação de depósitos, como exposto no Capítulo 1.

Quando a autoridade monetária deseja induzir uma contração dos empréstimos, ela pode vender tí-tulos públicos no mercado aberto, oferecendo para tanto taxas de juros mais elevadas como forma detornar a compra de títulos atrativa para os bancos. Se o instrumento utilizado for o redesconto, a autori-dade monetária pode impor um racionamento quantitativo, através da limitação pura e simples dos vo-lumes emprestados aos bancos, ou, mais comumente, pode aumentar a taxa de juros que cobra por seusempréstimos. Assim, seja através do mercado aberto, seja através dos empréstimos a bancos, a políticamonetária se faz através de uma elevação da taxa de juros.

No caso do mercado aberto, a taxa de juros que sobe inicialmente é a taxa recebida pelos bancos pe-los títulos que compra do Banco Central. Nesse caso, o mecanismo de transmissão da política monetá-ria contracionista consiste na cobrança de taxas de juros maiores pelos bancos dos seus tomadores deempréstimos. Os bancos sobem sua taxa de juros sobre empréstimos porque agora contam com uma al-ternativa mais rentável, que é a compra de títulos. Se tomadores de empréstimos querem ter algumachance de conseguir crédito junto aos bancos, eles têm de estar prontos a pagar mais do que pagam os tí-tulos públicos.

No caso do redesconto, se há racionamento quantitativo por parte do Banco Central, este raciona-mento obviamente se refletirá na concessão de empréstimos bancários a famílias e empresas. Se o quehouve foi um encarecimento do redesconto, os bancos terão as reservas necessárias, mas só poderãoemprestá-las a uma taxa de juros maior, a fim de cobrir o aumento da taxa de juros que eles próprios ti-veram de pagar pelas reservas obtidas junto ao Banco Central.

No caso deste mecanismo de transmissão, portanto, a sequência assumida é a seguinte:

Variação da taxa de juros sobre títulos de curtíssimo prazo OU Variação da taxa de redescontoOU Racionamento quantitativo de reservas bancárias

� Variação das taxas de empréstimos cobradas do público não bancário por parte dos bancosOU Racionamento de empréstimos concedidos pelo setor bancário

� Variação do volume dos elementos de demanda agregada mais dependentes de crédito, comoa demanda por bens de capital, bens de consumo durável etc.

Mecanismos de Transmissão da Política Monetária 205

7. O leitor não deve confundir redesconto com redesconto de liquidez. Redesconto refere-se a qualquer operação de crédito doBanco Central em favor de bancos. Redesconto de liquidez é uma linha específica de empréstimos, destinada a cobrir uma in-suficiência temporária de reservas quando se dá um movimento inesperado de saque de depósitos por parte do público.

14.5. MECANISMOS DE TRANSMISSÃO (3): O CANAL

DA TAXA DE CÂMBIO

Nas últimas duas a três décadas, um grande número de países em desenvolvimento promoveu medidasde liberalização da conta de capitais de seus balanços de pagamentos. Em outras palavras, foram redu-zidas ou removidas muitas das restrições à movimentação de capitais financeiros para dentro e para forado país. Um movimento semelhante já tinha tido lugar entre os países desenvolvidos poucos anos antes.Assim, no novo milênio a situação encontrada mais comumente é o de uma razoavelmente alta liberda-de de entrada e saídas de capitais financeiros. Este quadro contrasta-se profundamente com o vivido dofinal da segunda grande guerra até meados dos anos 80, quando prevaleceram controles e restrições so-bre operações financeiras internacionais. A liberalização da conta de capitais exerceu (e ainda exerce)grande impacto sobre a dinâmica das economias capitalistas. Uma área profundamente afetada por ela éa transmissão da política monetária.

O mecanismo criado pela liberalização financeira internacional ficou conhecido como o canal dataxa de câmbio, dado o papel essencial que esta última variável veio a exercer em processos como osque descrevemos neste capítulo. Este mecanismo de transmissão opera quando um país adota o regimede câmbio flutuante, isto é, quando se permite à taxa de câmbio flutuar ao sabor das demandas e ofertasprivadas de moeda estrangeira.8

Quando o movimento de capitais é liberalizado, um dos efeitos mais importantes da fixação da taxade juros pelo Banco Central se dá precisamente sobre a entrada e a saída de capitais. Isto se dá porque osdetentores de capitais, tanto domésticos quanto estrangeiros, podem agora escolher o objeto de suasaplicações sem se preocupar com barreiras nacionais. Se os retornos oferecidos pelas aplicações finan-ceiras domésticas superam os retornos esperados sobre aplicações financeiras no exterior, não apenasos investidores locais, quanto também os estrangeiros tentarão aplicar seus recursos no mercado do-méstico. O oposto se dará quando o retorno esperado nos mercados financeiros do “resto do mundo”superar aquele esperado no mercado doméstico.9

Nestas circunstâncias, quando o Banco Central eleva, por exemplo, a taxa de juros doméstica,10

tudo o mais constante, a atratividade dos investimentos financeiros domésticos cresce em comparaçãocom o que se espera ganhar com ativos estrangeiros. Nesse caso, aplicadores domésticos mantêm suasaplicações no mercado doméstico, enquanto investidores estrangeiros virão para o país aproveitar-sedas oportunidades abertas pela elevação da taxa de juros. Com isso, subirá a demanda externa por moe-da doméstica, já que os investidores estrangeiros, antes de poder comprar ativos domésticos, terão decomprar a moeda doméstica. Este excesso de demanda, em um regime de câmbio flexível, deverá levara uma valorização da moeda local diante das moedas do resto do mundo.

Uma valorização externa da moeda doméstica exerce vários impactos sobre a economia doméstica.Alguns podem ser desastrosos, como, por exemplo, quando levam a uma erosão das exportações líqui-das do país e a um estrangulamento de seu balanço de pagamentos. Contudo, nem tudo é desfavorávelquando há uma valorização da moeda local. O aumento do poder de compra da moeda doméstica impli-ca ser possível agora comprar bens produzidos no exterior a preços menores em moeda local do que an-tes.11 Assim, se um país atravessa um período em que o combate à inflação tem prioridade sobre os ou-tros objetivos econômicos da sociedade, a valorização da moeda local acrescenta uma arma poderosaao arsenal da autoridade monetária. Agora uma alta da taxa de juros não apenas contrai a demanda do-méstica, como descrito na Seção 14.3, como também barateia importações.

206 Mecanismos de Transmissão da Política Monetária ELSEVIER

8. As características e modos de funcionamento dos principais regimes de câmbio são discutidas no Capítulo 23.9. O mecanismo preciso pelo qual essa escolha pode ser modelada é apresentado no Capítulo 24.10. Este mecanismo deve ser considerado em conjunto com o canal do valor dos ativos, discutido anteriormente. Assim, o sen-tido da afirmação feita aqui é o de que o Banco Central, ao elevar a taxa de juros de curtíssimo prazo, é capaz de deslocar toda acurva de rendimentos na direção almejada.11. O preço doméstico de um bem importado é o resultado da multiplicação do preço em moeda estrangeira pela taxa de câm-bio. Se a moeda local se valoriza (isto é, se a taxa de câmbio diminui), o valor resultante dessa multiplicação é menor.

Assim, o canal da taxa de câmbio opera, estilizadamente, pela seguinte sequência:

Variação da taxa de juros de curtíssimo prazo

� Deslocamento correspondente da curva de rendimentos

� Variação da rentabilidade dos ativos domésticos em relação a ativos externos

� Indução de movimentos de entrada ou saída de capitais

� Variação do poder de compra externo da moeda doméstica

� Variação nos preços locais de bens importados

14.6. OS MECANISMOS DE TRANSMISSÃO DA POLÍTICA

MONETÁRIA NO BRASIL

A economia brasileira exibe algumas peculiaridades que afetam de forma importante os canais de trans-missão da política monetária e que exigem do analista um esforço adicional de identificação de modospelos quais essa política pode ter um impacto macroeconômico relevante. Em certo sentido, o “misté-rio” apontado por Tobin no início deste capítulo é ainda maior quando tratamos da economia brasileira.

O mistério de Tobin é maior em nosso caso porque a economia brasileira combina três característi-cas aparentemente contraditórias. Por um lado, a curva de rendimentos é extremamente limitada em ter-mos de duração de contratos. Décadas de instabilidade macroeconômica, dominadas por problemascomo inflação elevada e persistente, vulnerabilidade externa, desequilíbrios fiscais, instabilidade polí-tica etc. acabaram por fazer com que o horizonte temporal relevante para as decisões econômicas se tor-nasse muito curto. Assim, relativamente poucos agentes se arriscariam a fazer contratos por períodossuperiores a um ou dois anos, mesmo atualmente, muitos anos depois de que a inflação foi dominadapelo Plano Real, em 1994. Quando compromissos são assumidos, os contratos via de regra envolvemregras de proteção que reduzem sua duração efetiva, mesmo que sua maturidade formal seja longa.Assim, por exemplo, não importa muito que certos títulos públicos tenham maturidade formal de váriosanos, se a taxa de juros que pagam for indexada à taxa de juros de curtíssimo prazo, como a SELIC. Naprática, este é um contrato de curta duração. É próprio de economias que sofrem de longos períodos deinstabilidade profunda que se dê esse encurtamento de horizontes que se reflete na inexistência de umacurva de rendimentos para além de durações reduzidas. As incertezas criadas pela instabilidade ma-croeconômica acabam por convencer os agentes econômicos da inutilidade de se formar expectativassobre períodos mais extensos de tempo. Assim, seria de se esperar que o canal de ativos não fosse ummecanismo de transmissão de política monetária muito poderoso, a despeito da existência de mercadosde títulos razoavelmente sofisticados no País há vários anos.

O canal de crédito, por outro lado, também é pouco promissor. Em grande parte pelas mesmas ra-zões que inviabilizaram a criação de uma curva de rendimentos, a oferta de crédito no Brasil, por qual-quer medida que se utilize, é muito pequena em relação ao tamanho da economia. Décadas de inflaçãoacostumaram o setor bancário a exigir taxas de juros excessivamente elevadas, que afastavam o setorprivado. Por outro lado, a acumulação de desequilíbrios fiscais deu ao setor bancário um cliente muitopouco exigente em relação às taxas de juros que paga, o Tesouro Nacional, diminuindo muito o interes-se do setor bancário em competir por tomadores privados de crédito. Em consequência, o crédito ao se-tor privado no Brasil atrofiou-se: o volume é excessivamente pequeno, o custo é excessivamente alto,de modo a tornar este canal de transmissão de política monetária também pouco eficaz.

Surpreendentemente, nestas condições, a política monetária parece ter tido, nos últimos anos, gran-de poder de influência sobre a trajetória da economia brasileira. Como isso pode ter ocorrido?

Há pelo menos duas hipóteses, possivelmente complementares, que podem explicar essa aparentecontradição entre uma política monetária poderosa diante da virtual inexistência dos mecanismos mais

Mecanismos de Transmissão da Política Monetária 207

tradicionais de transmissão. Por um lado, dada a liberalização da conta de capitais promovida no Brasilespecialmente na administração de Fernando Henrique Cardoso, em meados da década de 1990, o canalda taxa de câmbio parece ter se tornado especialmente importante no país. A manutenção de taxas de jurosextraordinariamente elevadas por parte do Banco Central tem funcionado como um atrator permanente decapitais estrangeiros para o país. Com a adoção do regime de câmbio flutuante no início de 1999, comoresultado do colapso do regime de câmbio anterior (causado em grande parte pela própria liberalização fi-nanceira), as condições estavam dadas para a valorização do real como instrumento de barateamento deimportações. Este efeito, no caso brasileiro, era também reforçado pela sobrevivência de regras de inde-xação de contratos, especialmente nos setores da economia privatizados por Cardoso, que tornavam opreço de vários serviços públicos sensíveis a variações sejam do valor do próprio dólar americano, sejamde preços influenciados pelo mercado internacional, como é o caso de alguns bens intermediários. Assim,o canal da taxa de câmbio estaria tomando o lugar dos canais dos ativos e do crédito, o que explicaria a ne-gligência com que o Banco Central do Brasil aborda o problema da sobrevalorização da moeda nacional.

A outra hipótese a ser considerada é a de que esse encurtamento de horizontes criado por décadasde experiência com a instabilidade macroeconômica tornou-se os agentes econômicos supersensíveis aeventos ou a sinais de curto prazo. Assim, acompanha-se a trajetória de taxas de juros como a taxa

208 Mecanismos de Transmissão da Política Monetária ELSEVIER

A economia brasileira viveu cerca de trêsdécadas em uma situação de inflação ele-vada e persistente. Esta experiência marcoude forma profunda a dinâmica da econo-mia, especialmente no que se refere aosmercados financeiros, inclusive de dívidapública. Entre os muitos efeitos da inflaçãoelevada está o aumento da imprevisibilida-de do futuro, que prejudica os negócios vol-tados para prazos mais longos. Contratossão, consequentemente, encurtados porqueos agentes econômicos não querem secomprometer com um futuro ainda maisimprevisível que o normal. Em períodos es-pecialmente instáveis, em que a incertezacresce de forma opressiva, a duração doscontratos se reduz ainda mais. Entre os mui-tos resultados deste processo está a impos-sibilidade de construção de uma curva derendimentos que possa exercer o papel des-crito neste capítulo. Títulos da dívida públicabrasileira tenderam a ter curtas maturida-des, ou, quando estas são mais longas, car-regarem cláusulas de remuneração queembutem algum tipo de indexação a pre-ços, a taxas de câmbio ou a taxas de jurosde curto prazo, como a taxa SELIC.

A própria convivência de títulos comum emaranhado de cláusulas diferentesde remuneração tornaria difícil a constru-ção de curva de rendimentos, mesmo quepara as reduzidas durações efetivas dispo-níveis. Nessas condições, as curvas derendimentos em geral utilizadas acabamnão se baseando nas taxas sobre papéis

públicos, mas sobre swaps, como descritono box anterior. Mas mesmo esses swapssão contratados para intervalos limitados,em geral, a um ano. Negócios com matu-ridades maiores em geral são pouco nu-merosos e, portanto, pouco dizem a res-peito do que os mercados realmente pen-sam a respeito daqueles segmentos.Assim, no Brasil, as curvas de rendimentosse limitam à “ponta curta” do espectro detaxas de juros, baseadas em swaps de ju-ros, mais do que taxas efetivas anualiza-das de juros sobre títulos públicos. Essascurvas são divulgadas diariamente pelosjornais especializados em economia (ve-ja-se, por exemplo, no diário Valor Econô-mico, a segunda página do caderno de Fi-nanças, onde a coluna de acompanha-mento da política monetária sempre mos-tra a curva de rendimentos com informa-ções atualizadas até o dia anterior).

Um erro comum deve ser evitado: aconstrução de uma “curva de rendimentos”em que o segmento de curto prazo é repre-sentado pela taxa SELIC e o de longo peloTJLP (taxa de juros de longo prazo, cobradapelo BNDES em seus financiamentos). Acurva de rendimentos deve refletir, comovisto neste capítulo, as avaliações de mer-cado. A taxa SELIC e, principalmente, a TJLPsão taxas fixadas por decisão política dasautoridades monetárias. A relação entreelas não nos dá nenhuma das informaçõesque se espera que uma curva de rendimen-tos efetiva dê.

A CURVA DE RENDIMENTOS NO BRASIL

BO

X1

4.2

SELIC ou do custo de crédito de curto prazo (até um ano) como se os sinais emitidos por essas taxas fos-sem relevantes mesmo para decisões de horizonte mais prolongado. Esta supersensibilidade seria refor-çada pelo nível das taxas de juros, que, como já se observou, mantém-se extraordinariamente elevado.Quando a taxa de juros de curtíssimo prazo situa-se em faixas com pisos de dois dígitos, as decisões deprodução e investimento não são afetadas pelas taxas de juros mais longas, mas diretamente pela pró-pria taxa de curtíssimo prazo. Assim, por exemplo, uma taxa de juros SELIC por volta de 20% ao ano jáseria suficiente, por si mesma, para estimular, no mínimo, um adiamento de planos de investimento, jáque ativos reais dificilmente ofereceriam retornos competitivos com essas taxas de juros. Com taxas dejuros de curtíssimo e curto prazos nesses níveis, a curva de rendimentos é desnecessária, e o efeito dasdecisões de política monetária sobre a economia será, provavelmente, imediato.

RESUMO

1. Ao contrário da política fiscal, a política monetária envolve instrumentos que não causam impacto diretamentenas decisões do público. Por isso, para discutir a eficácia da política monetária é necessário determinar como asdecisões da autoridade monetária se traduzem em estímulos efetivos para famílias e empresas. É preciso deter-minar-se quais são os elos que conectam os instrumentos à disposição do banco central e os fatores que afinal in-fluenciam a decisão do público. Estes são os mecanismos, ou canais, de transmissão da política monetária.

2. Um elemento de grande importância nesse quadro é a curva de rendimentos. Esta curva relaciona as maturidadesde contratos às taxas de juros anualizadas pagas por cada um. Embora a curva de rendimentos seja uma constru-ção puramente descritiva, ela tende a exibir padrões estáveis de relação entre as diversas taxas de juros, apoiandoa hipótese de que fatores sistemáticos estejam em operação na determinação desses padrões. Dentre esses possí-veis elementos sistemáticos destacam-se as diferenças de risco e os modos de formação de expectativas.

3. Se existe um padrão de relacionamento entre as diversas taxas de juros, é possível identificar um primeiro me-canismos de transmissão da política monetária. O banco central fixa a taxa de curtíssimo prazo e esta, atravésde deslocamentos da curva de rendimentos, determina o valor das taxas restantes, inclusive aquelas que in-fluenciam o comportamento de investidores e consumidores.

4. Em países que não têm um mercado de capitais suficientemente desenvolvido para construir uma curva derendimentos, o canal mais provável de transmissão da política monetária é o de crédito. Por este canal, a auto-ridade monetária fixa o preço das reservas. Os bancos acrescentam um mark up (chamado de spread) sobreesse custo para formar as taxas de juros sobre empréstimos. As altas ou baixas dessas taxas levam consumido-res e investidores a se comportar como esperado pela autoridade monetária.

5. Com a abertura financeira da maioria das economias nos últimos 20 a 25 anos, outro canal de transmissão seabriu para aqueles países que adotam o câmbio flutuante. Nessas economias, elevações da taxa de juros indu-zem movimentos de entrada de capitais que valorizam a moeda doméstica e barateiam importações de bens eserviços. Reduções da taxa de juros obtém o efeito inverso.

6. No caso do Brasil atual, não operam o canal de ativos, por causa do reduzido horizonte da curva de rendimen-tos. Também opera com reduzida eficácia o canal do crédito, dada a atrofia do crédito ao setor privado no país.Opera, por outro lado, com grande força o canal da taxa de câmbio. Alem disso, as taxas de curtíssimo prazosituam-se em patamares tão elevados que provavelmente acabam por afetar diretamente decisões de consumoe investimento que em outras condições seriam insensíveis a variações dessas taxas.

TERMOS-CHAVE

� Mecanismos (Canais) de Transmissão� Riscos� Swaps de Juros� Taxa de Juros Anualizada� Liberalização da Conta de Capitais� Apreciação da Moeda Doméstica� Encurtamento de Horizontes de Expectativas

� Curva de Rendimentos� Expectativas de Taxas de Juros� Maturidades de Contratos� Efeito-riqueza� Câmbio Flutuante� Instabilidade Macroeconômica

Mecanismos de Transmissão da Política Monetária 209

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Journal of Economic Perspectives, número especial sobre transmissão da política monetária, volume 9, Outo-no (Fall) de 1995.

Este número reúne vários artigos escritos sob diversas perspectivas teóricas a respeito do tema. Oferece umavisão ampla e acessível dos problemas em debate sobre esse tópico. O artigo de introdução ao debate é simplesmas contém os elementos mais importantes do tema.

F. Mishkin. “The channels of monetary transmission: lessons for monetary policy”, NBER Working Paper5464, fevereiro de 1996. Disponível em www.nber.org/papers/w5464.

Mishkin é um dos especialistas em política monetária mais influentes dos últimos anos. Este texto, de fácilacesso pela internet, é uma introdução bastante completa e detalhada do tema tratado aqui. Trata-se, no entanto,de leitura algo mais avançada que o normalmente apresentado em cursos de graduação.

F.J.C. Carvalho. “Uma contribuição ao debate em torno da eficácia da política monetária e algumas implica-ções para o caso do Brasil”, Revista de Economia Política, 25 (4), outubro/dezembro de 2005.

Contém uma discussão sobre as peculiaridades da economia brasileira que dão à operação dos mecanismos detransmissão da política monetária uma forma muito particular.

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RELAÇÕES E MERCADOSFINANCEIROS

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, introduziremos noções básicas para o entendimento da opera-ção de mercados financeiros. Iniciaremos pela discussão da noção de relaçõesfinanceiras, estabelecidas sempre que alguém é capaz de transferir comandosobre recursos para outro indivíduo, em troca do reconhecimento por partedeste indivíduo da necessidade de cumprir certas obrigações para com o pri-meiro. A diversidade do mercado financeiro, em termos de contratos e proce-dimentos, explica-se pelo grande número de canais possíveis de transferênciade recursos entre indivíduos e pelas características das obrigações assumidas.Passa-se, então, à discussão de mercados financeiros, em que se distinguemercados de crédito dos mercados de capitais – cada tipo de mercado sendodefinido em termos do canal de transferência de recursos utilizado.

15.1. RELAÇÕES FINANCEIRAS E CRESCIMENTO

ECONÔMICO

É sabido que para que economias possam se desenvolver, é necessário quehaja investimento, isto é, que parte do produto criado pela sociedade sejadestinada à acumulação de meios de produção, aumentando sua capacidadeprodutiva. É preciso que a sociedade invista no seu próprio futuro, criandoequipamentos para a expansão da escala de operação das firmas, ampliandoa oferta de fontes de energia para que esses equipamentos sejam postos emuso, estendendo a rede de meios de transporte para que a produção possachegar ao seu destino e, talvez principalmente, investindo na formação e naqualificação de mão de obra para torná-la capaz de operar máquinas e equi-pamentos mais avançados e eficientes. Os requisitos materiais para o desen-volvimento econômico e o aumento do bem-estar social não são muitodiferentes hoje, em sua natureza, do que sempre foram. Em economias maisprimitivas, restritas quase inteiramente à atividade agrícola, é possível pen-sar-se este processo de modo bastante simples. Famílias devem separar, do

CAPÍTULO

15

produto obtido de suas colheitas, uma certa proporção que, ao invés de ser consumida, deverá ser des-tinada ao plantio, se possível em escala crescente. Em outras palavras, essas famílias devem pouparparte do produto para poderem investir na renovação e ampliação da produção. O crescimento econô-mico aqui resulta da disposição dessas famílias de abrir mão de parte do que poderiam consumir nopresente para prover seu consumo no futuro. Separa-se parte do produto material desta sociedadepara reusá-lo no processo produtivo.

Economias modernas de mercado são muito mais complicadas. Nestas economias, a maior parte doinvestimento não resulta da decisão de não consumir o produto disponível para reutilizá-lo na produ-ção. Ao contrário, o investimento resulta da decisão de produzir máquinas e equipamentos, de construiredificações, de instalar infraestruturas, de preparar capital humano especificamente para fins de acu-mulação de riqueza. O investimento não se vale das “sobras” do produto disponível. O investimento é oresultado de uma decisão prévia de se produzir os bens que servem para produzir outros bens. Além dis-so, ao contrário da sociedade primitiva, investe-se não porque se deseje obter um produto maior e maisabundante no futuro, mas porque investir deve ser lucrativo. Investir, agora, depende da expectativa deque outros estejam dispostos a comprar os produtos que as novas máquinas criarão. É preciso, portanto,que a produção ampliada de bens e serviços valha a pena, isto é, renda ao investidor mais do que as al-ternativas de emprego dos recursos disponíveis, ao invés de simplesmente permitir às famílias um nívelmaior de consumo, como na sociedade primitiva que referimos acima.

No que nos interessa aqui, há uma segunda diferença ainda mais importante do que o fato deque o investimento numa economia moderna é feito para dar lucro, muito mais do que para satisfa-zer necessidades. Ao contrário dos agricultores de nossa sociedade primitiva, que se valem do pro-duto que eles mesmos produziram, em uma economia moderna os bens de investimento devem sercomprados. É necessário que o investidor tenha dinheiro para comprar estes bens e poder concreti-zar suas decisões. Esse dinheiro pode ser obtido, grosso modo, de duas formas. O investidor podepossuí-lo previamente, isto é, ele pode ter economizado parte de suas rendas passadas ou ter recebi-do uma herança, ter ganho na loteria etc. Neste caso, investir se resume a transformar esse dinheiroem bens de investimento. Mas é possível que o investidor potencial não tenha recursos para com-prar os bens requeridos. As economias capitalistas modernas descobriram um instrumento podero-so de viabilização do investimento: o desenvolvimento e o aprofundamento de relações financeirasentre os agentes econômicos.

Relações financeiras são estabelecidas sempre que um agente econômico é capaz de transferir o co-mando sobre recursos para terceiros, contra o reconhecimento de uma obrigação (e de seu serviço) porparte do beneficiário. Esta transferência habilita o beneficiário a implementar planos de gasto que se-riam inviáveis em qualquer outra circunstância. Ela serve, assim, para viabilizar a separação entrequem possui comando sobre a renda social e quem vai utilizá-la efetivamente. A mais simples e funda-mental forma de relação financeira conhecida é o crédito.

Uma relação de crédito se estabelece, genericamente, quando um agente empresta recursos a outro,por um prazo determinado e é remunerado por isto através do pagamento de juros. Já disse Schumpeterque a característica mais distintiva do capitalismo moderno reside exatamente no desenvolvimento desistemas de crédito. Outro grande economista deste século, Keynes, escreveu que a construção de umsistema de contratos em moeda, pelos quais se transfere recursos de um agente para outro e se definemas obrigações de cada parte, é o que separa a civilização moderna de formas mais primitivas e menoseficientes do ponto de vista produtivo de organização social.

O que essas inovações institucionais, como sistemas de crédito e de contratos, trazem consigo éa possibilidade de criação de mercados não apenas para produtos, mas também para obrigações.Sistemas financeiros, como se verá, constituem-se de instituições e mercados voltados para a viabi-lização de transações com promessas de pagamento a ser realizado no futuro, feitas por agentes,que se tornam assim devedores; e aceitas por outros agentes, como direitos a serem exercidos namesma data, tornando-os com isto credores dos primeiros. Sistemas financeiros mais sofisticadospermitirão também a negociação de títulos de propriedade, em que se transacionam expectativas depagamento, solidarizando-se todas as partes como coproprietárias de um dado empreendimento.

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Aqui são comprados e vendidos, portanto, direitos de propriedade, chamados de ações de uma em-presa.

Sistemas financeiros modernos permitem que tais transações sejam feitas rotineiramente e emgrande escala. Antes do desenvolvimento desses sistemas, essas transações eram eventuais, vistascom desconfiança, como ilegítimas ou mesmo ilegais.1 Nestas condições, como operações quaseclandestinas, transações financeiras, se é que poderiam ser assim referidas, resumiam-se ao emprésti-mo, geralmente a taxas de juros abusivas, de recursos a tomadores que atravessassem conjunturasparticularmente adversas, como famílias de poucos recursos que por qualquer razão perdessem o va-lor de seu produto em uma determinada época, ou, em condições provavelmente mais favoráveis aotomador, quando o Estado (ou a realeza que o controlasse) precisasse financiar seus gastos. Manter astransações financeiras à margem da atividade econômica legítima implicava condenar quaisquer pos-síveis empreendedores a restringir a escala de seus planos ao limite de seus próprios recursos. Em-preendimentos, assim, seriam realizados apenas por aqueles que, por herança ou por acumulação pré-via, pudessem dispor de recursos para financiar suas iniciativas. Ora, o problema é que nem sempre,ou mesmo raramente, capacidade de empreendimento e sorte na obtenção de heranças, por exemplo,coincidem na mesma pessoa.

Schumpeter, como já dito, localiza no desenvolvimento de sistemas organizados de crédito a liber-tação do empreendedor da necessidade de nascer rico. Sistemas financeiros permitem que aqueles queacumulam ou herdam recursos, mas que não têm capacidade ou desejo de empregá-los produtivamente,possam transferi-los para os que se dispõem a empreender, a inovar, a contribuir para o desenvolvimen-to das atividades produtivas. Relações financeiras servem assim para alavancar o desenvolvimentoeconômico, permitindo uma alocação de recursos muito mais eficiente do que aquela que resultaria pre-viamente. O desenvolvimento de atividades financeiras, porém, não representa um “almoço grátis”.Transações com promessas de pagamento, isto é, com ativos, sujeitam uma economia de mercado a ris-cos antes desconhecidos. Por um lado, abre-se a possibilidade de que recursos sejam usados para finan-ciar investimentos em máquinas e equipamentos ao invés de serem mantidos entesourados, “embaixodo colchão”. Mas investimentos em máquinas e equipamentos, em uma economia de mercado, sãomais arriscados que o simples entesouramento de moeda. Além disso, a própria transação financeirapode prever termos e condições que tornem o sucesso do empreendimento mais difícil, se, por exemplo,taxas excessivamente altas de juros são cobradas, ou se não se dá ao tomador prazo suficiente para queseu empreendimento possa dar frutos. Finalmente, há a questão da boa-fé na realização dos contratos fi-nanceiros, sempre difícil de avaliar a priori.

Tanto a eficiência de um dado sistema financeiro em promover e apoiar o desenvolvimento econô-mico, quanto sua capacidade de manter os riscos dessa atividade dentro de intervalos aceitáveis, depen-dem, em grande medida, da forma pelo qual ele é organizado. Estruturas financeiras alternativas podemser funcionais em circunstâncias diferentes, dependendo da solidez da economia, do seu grau de desen-volvimento, da sofisticação de suas estruturas legais etc. Nesta parte deste livro serão examinados pre-cisamente esses aspectos. Inicialmente, neste capítulo, serão apresentados os conceitos fundamentaispara a descrição e avaliação da eficiência de estruturas financeiras alternativas. No capítulo seguinte,discutiremos aquela que é historicamente, e ainda hoje, a mais importante forma de instituição financei-ra, o banco comercial. No Capítulo 17, examinaremos os outros tipos de instituição financeira que en-contramos atualmente nas principais economias capitalistas, descrevendo suas formas de operação esuas relações mútuas. Os Capítulos 18 e 20 apresentam as características dos principais tipos de estrutu-ra financeira conhecidos atualmente, bem como suas tendências evolutivas. O Capítulo 19 discute astendências da moderna regulação financeira, que contribui de forma decisiva para definir o perfil dasestruturas financeiras efetivamente existentes.

Relações e Mercados Financeiros 213

1. A existência de leis de usura ou a condenação moral à realização de empréstimos remunerados, como exemplificado pelapostura da Igreja Católica por séculos, exemplificava o caráter marginal dessas transações anteriormente ao capitalismo mo-derno.

15.2. RELAÇÕES FINANCEIRAS

Em um mercado financeiro interagem fundamentalmente duas classes de agentes. A primeira, chamadade unidades superavitárias, consiste dos agentes cujos planos de dispêndio corrente são inferiores à suarenda esperada para o mesmo período. Seus gastos planejados podem incluir despesas com bens de con-sumo ou com bens de investimento, inclusive estoques de bens para consumo futuro. Se sua renda exce-der estas despesas, a unidade superavitária terá de decidir de que forma o excedente será acumulado, istoé, que tipo de objeto servirá como riqueza, como meio de acumulação de capital para ela. Se compras debens já foram consideradas, resta a este agente a aquisição de ativos financeiros, isto é, direitos sobre arenda futura de algum outro agente. Assim, o excedente da renda das unidades superavitárias sobre seudispêndio corresponderá à sua poupança financeira, isto é, à sua demanda por ativos financeiros, que sãodireitos sobre a renda futura de outros agentes. Em suma, unidades superavitárias veem-se às voltas comum excesso de renda corrente sobre seus gastos com bens e serviços e, portanto, demandam outros meiosde acumulação de riqueza que não sejam outros bens. São demandantes de ativos financeiros e, com isso,ofertantes de poupança financeira, isto é, recursos para uso imediato por terceiros.

Quais são estes outros agentes que estarão dispostos a abrir mão parcialmente de sua renda futura? Estesserão as unidades deficitárias, aquelas que pretendem gastar correntemente mais do que sua renda. Para queisso seja possível, é preciso que alguém financie estes gastos excedentes, isto é, esteja disposto a transferirparte de sua renda para estas unidades deficitárias para lhes permitir cobrir aquele dispêndio. As unidadesdeficitárias têm de estar dispostas a trocar parte de seus ganhos futuros pelo acesso imediato à renda adici-onal que lhes permitirá viabilizar seu dispêndio desejado. Estes agentes, portanto, emitirão obrigações, isto é,um passivo, a serem saldadas no futuro. São, assim, demandantes de poupança financeira.

Relações financeiras são aquelas que envolvem como agentes fundamentais unidades superavitárias e de-ficitárias, as quais transacionam meios que permitem a realização imediata de gastos desejados em troca dedireitos sobre rendas futuras. Relações financeiras, portanto, envolvem a negociação de contratos em que seregistram obrigações ativas e passivas por parte de unidades superavitárias e deficitárias, respectivamente.Como já observado por Hyman Minsky, a existência de relações financeiras permite que todo agente econô-mico que participe delas seja descrito por um balanço, onde são registrados seus direitos, suas obrigações eseu patrimônio. O Quadro 15.1 exemplifica uma situação simples, em que um agente superavitário emprestaR$ 100 a um agente deficitário para que este tenha a possibilidade de adquirir, digamos, um bem de capital.

QUADRO 15.1Balanços dos Agentes Superavitário e Deficitário

Agente Superavitário: Ativo: Obrigações Emitidas pelo Agente Deficitário: 100Patrimônio Líquido: 100

Agente Deficitário: Ativo: Bem de Capital: 100Passivo: Dívida com Agente Superavitário: 100

Ambas as classes de agentes enfrentam, na verdade, escolhas semelhantes. O agente superavitáriodeve levar em conta, ao decidir-se como aplicar os R$ 100 que tem como excedente de seus gastos,quanto o agente deficitário está disposto a lhe pagar como remuneração pelo empréstimo (taxa de ju-ros), quando o empréstimo deve ser liquidado, quais os riscos envolvidos no negócio (por exemplo, decalote por parte do devedor), quais as garantias que podem ser exigidas para minimizar este risco etc.Por sua vez, o agente deficitário deve pesar os riscos que está correndo, como, por exemplo, o de que oretorno esperado pelo uso do bem de capital não seja suficiente para saldar a dívida em que está incor-rendo, ou de que o retorno seja suficiente, mas em uma data posterior à que prometeu saldar o compro-misso etc. Em outras palavras, ambos os agentes estão pesando a rentabilidade (ou a satisfação, no casode a dívida estar financiando a aquisição de um bem de consumo) do empréstimo (por parte do empres-tador) e do objeto cuja compra se quer financiar (por parte do devedor) diante dos riscos que cada um

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avalia estar envolvido no negócio e das garantias a que se pode lançar mão. Deste modo, mesmo as ope-rações mais simples, como o empréstimo de um valor qualquer a um conhecido ou colega de trabalho,já contêm em si complexidades da mesma natureza que as operações mais sofisticadas que assistimosnos mercados de capitais. Famílias, empresas, bancos, governos, todos nos envolvemos de algum modono mercado financeiro. Desde o ato de deixar dinheiro no banco, ou de fazer uma aplicação em um fun-do de investimento que o mesmo banco lhe oferece, até a colocação de bônus no mercado internacionalde capitais, apoiado em contratos derivativos, intermediada por grandes instituições financeiras, tudoisto obedece a uma mesma lógica, de comparação das combinações riscos/retornos dos ativos a seremcomprados e dos passivos a serem emitidos para financiar esta aquisição.

15.3. MERCADOS FINANCEIROSMercados financeiros englobam todas as transações que são feitas com obrigações emitidas por agentesdeficitários ou por intermediários financeiros que busquem canalizar recursos para eles. Esses merca-dos são regulados por instituições e práticas de funcionamento que são, em parte, fixados pelos própriosparticipantes nessas transações, e, em outra parte, por instituições do Estado. Essas práticas e institui-ções, por sua vez, não são as mesmas em todos os segmentos do sistema financeiro. Na verdade, é exa-tamente em função das suas variações que se definem esses segmentos. Mercados específicos tomam aforma que for necessária à viabilização das transações, dependendo das classes de ativos negociadasem cada um. Ativos diferenciam-se pelos riscos que envolvem, pelo perfil de retornos que oferecem,pela complexidade das disposições que regulam o cumprimento das obrigações e pelas garantias quecercam o seu serviço. Além disso, é crucial para se definir como se organizam os mercados saber se to-dos esses elementos são inteligíveis para o público em geral ou se são acessíveis apenas a indivíduos es-pecialmente preparados para lidar com essas informações. Por esta razão, quando temos que analisar aoperação dos mercados financeiros existentes na realidade, temos que reconhecer que há vários tipos demercado a serem considerados, e que tipos diferentes serão mais adequados a classes de ativos específi-cas. Podemos reconhecer essas diferenças, grosso modo, de vários modos. Se distinguirmos os merca-dos pela natureza da transação financeira e do contrato resultante, encontraremos mercados de crédito,por um lado, e mercados de títulos por outro. Outra distinção, baseada na identidade dos seus partici-pantes, opõe mercados primários a mercados secundários. Uma terceira dicotomia separa mercadospúblicos e mercados privados e se refere à disponibilidade da informação envolvida na transação e nasrestrições à participação de qualquer parte interessada. Ainda outra oposição relevante é aquela que sebaseia no papel exercido pelas instituições financeiras, e contrasta o que se chama de intermediação fi-nanceira à desintermediação financeira. Finalmente, atualmente há mercados onde se transacionamrecursos financeiros e outros em que são negociados riscos, opondo mercados de recursos a mercados deriscos. Todas essas distinções são muito importantes para se compreender como opera um sistema fi-nanceiro moderno e suas transformações recentes. Definamos cada uma dessas dicotomias.

15.3.1. MERCADOS DE CRÉDITO E MERCADOS DE TÍTULOS

No mercado de crédito, as transações são feitas de forma individualizada, identificando-se as duas par-tes que realizam o empréstimo. Da operação resultam obrigações que são, em princípio, intransferíveisou não negociáveis, ainda que, como se verá no Capítulo 20, essa característica esteja mudando emtempos mais recentes. Isto é assim porque os contratos tendem a ser desenhados de modo a satisfazer asdemandas específicas dos tomadores e dos emprestadores em termos de taxas de juros, prazos, garan-tias e outras disposições relevantes para as partes. Nos mercados de títulos, ao contrário, as transaçõesobedecem a regras mais genéricas, desprezando-se as idiossincrasias de cada parte interessada. Os con-tratos resultantes podem não ser negociáveis, mas obedecem de qualquer forma a regras de padroniza-ção que tornam os títulos de natureza semelhante substitutos entre si. Quando podem ser negociados,isto é, revendidos em mercados secundários, esses títulos ganham liquidez, isto é, têm sua capacidadede conversão em dinheiro, aos olhos de seu possuidor, aumentada.

Relações e Mercados Financeiros 215

Tanto mercados de crédito quanto mercados de títulos englobam, na verdade, diversos segmentosque obedecem a regras e motivações por vezes distintas. Assim, o mercado de crédito se desdobra em doissegmentos muitos importantes, o de crédito de longo prazo e o de crédito de curto prazo. Mercados de tí-tulos são ainda mais diferenciados. Neles transacionam-se não apenas papéis diferenciados de acordocom a duração do contrato, como também papéis que correspondem a compromissos de natureza econô-mica e jurídica diferentes. Assim, podemos identificar mercados de papéis de curta duração, com, diga-mos, até três meses de maturidade (este segmento é chamado de mercado monetário) opondo-os a papéisde maturidade maior. A característica mais relevante para essa caracterização é que papéis de curta dura-ção não estão sujeitos ao risco de capital. Este risco é o de haver variação de valor entre a compra e a ven-da do papel. O possuidor de papéis de maturidade mais longa pode querer convertê-los em dinheiro antesde sua data de redenção, vendendo-os nos mercados secundários. Esses papéis correm o risco de capitalporque seu preço, quando da sua colocação à venda, pode não ser o mesmo de sua compra. Se a maturida-de do contrato é pequena, porém, seu valor é resgatado pelo valor de face, ao invés de ser vendido emmercados secundários. Recebe-se como principal exatamente o que foi emprestado, sem risco de capital.Como a ausência de risco de capital é característica da própria moeda (o valor de R$ 1 é sempre R$ 1!),papéis com semelhante propriedade são transacionados em mercados ditos monetários.

Entre os papéis de maturidade maior, sujeitos, portanto, ao risco de capital, temos que distinguir doistipos de contratos bastantes diferentes: os títulos de propriedade, como ações de empresas de capital aber-to, e os títulos de dívida, como bônus, notas, promissórias, debêntures etc. No caso dos títulos de proprie-dade, o agente superavitário se torna na verdade sócio do agente deficitário, como resultado do processode financiamento. Como sócio, o agente superavitário não tem o direito de cobrar de volta os recursos quecedeu, mas ganha, em troca, a possibilidade de compartilhar os lucros do empreendimento em pé de igual-dade com o empreendedor a quem financiou. Já com os títulos de dívida, o agente superavitário não se so-lidariza com o empreendimento sendo financiado. A cessão de recursos se dá por um prazo determinado eé remunerada não por uma participação nos lucros, mas por uma taxa de juros. Os papéis de maturidademais longa, sujeitos a variações de valor de mercado em relação a seu valor de face, são transacionados nomercado de capitais, que, por sua vez, se desdobra nos mercados de dívidas e de ações.

15.3.2. MERCADOS PRIMÁRIOS E MERCADOS SECUNDÁRIOS

Outra distinção importante separa mercados primários de mercados secundários. Mercados primáriosreferem-se à colocação inicial de um título, isto é, à sua primeira operação de compra. Mercados secun-dários, por sua vez, são aqueles criados para permitir a negociação contínua de papéis emitidos no pas-sado, isto é, para operações de compra e venda posteriores à primeira colocação. Como fonte definanciamento para o gasto das unidades deficitárias, são os mercados primários que contam mais dire-tamente, porque é aqui que são canalizados recursos para essa classe de agentes. Já mercados secundá-rios são importantes para dar liquidez aos papéis existentes. Sua existência significa que, para os quepossuem títulos de uma determinada classe, existe uma demanda de reserva disposta a absorvê-los, ain-da que a preços que podem ser variáveis. A existência de mercados secundários organizados, ao dar li-quidez a um ativo, reduz os riscos que seu possuidor enfrenta ao ver-se preso a um papel que não desejereter. Assim, a mera possibilidade de colocação do ativo em um mercado secundário contribui paraacalmar os temores dos investidores, permitindo aos emissores do papel pagar uma remuneração menorao comprador. Deste modo, mercados secundários líquidos e organizados contribuem indiretamentepara o financiamento da atividade de investimento.

15.3.3. MERCADOS PÚBLICOS E MERCADOS PRIVADOS

Mercados públicos são aqueles cujas condições de operação permitem a qualquer participante poten-cial usufruir, em princípio, das mesmas vantagens que qualquer outro participante. Os termos dos con-tratos são conhecidos e acessíveis a todos. Esses mercados são competitivos e neles vale a “lei do preçoúnico”, isto é, as taxas de juros tendem a um valor único para contratos de mesma natureza. Exemplodestes mercados são os pregões em bolsa de valores, quando as ofertas de compra e venda são anuncia-

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das a todos os operadores que competem entre si pelos melhores negócios. Já os mercados privados nãosão acessíveis a todos os participantes. Nestes, as transações são feitas à margem dos mercados públi-cos em condições que são acordadas de forma bilateral. Nos mercados financeiros essas operações sãocomumente referidas como “operações de balcão”, ou às vezes identificadas pela sigla OTC (over thecounter) da mesma operação em inglês. Mercados de balcão são bastante importantes no segmento decrédito, por exemplo, onde critérios de alocação sejam aplicados a clientes de forma diferenciada pelainstituição financeira. São também importantes em segmentos dos mercados em que é importante a per-sonalização das condições contratuais, como no caso de muitos derivativos. A existência de mercadosde balcão permite a coexistência de contratos caracterizados por termos amplamente diferentes entre si.

15.3.4. INTERMEDIAÇÃO E DESINTERMEDIAÇÃO FINANCEIRAS

Uma distinção relacionada à anterior, vista, porém, do ponto de vista das instituições financeiras queparticipam nestes mercados, opõe formas intermediadas de financiamento a desintermediadas. Rela-ções financeiras intermediadas são aquelas em que uma instituição financeira interpõe suas própriasobrigações no processo de canalização de recursos do emprestador último ao tomador último. Tipica-mente, bancos operam captando depósitos, isto é, assumindo obrigações junto aos depositantes, usandoos recursos assim obtidos para comprar ativos sob a forma da dívida dos tomadores. O depósito que ocliente faz é, na verdade, um empréstimo feito ao banco que tem de ser devolvido quando o cliente qui-ser (caso dos depósitos à vista) ou em datas preestabelecidas (no caso de depósitos a prazo). Uma vez deposse desses “empréstimos”, o banco pode usá-los para, ele próprio, fazer empréstimos aos seus pró-prios clientes, como, por exemplo, firmas que precisam de capital de giro, consumidores que queremcomprar bens duráveis de consumo etc. Neste caso, os depositantes não têm direitos sobre os ativos cria-dos pelos tomadores, mas apenas sobre as obrigações criadas pelos bancos, que detêm, por sua vez, di-reitos contra os tomadores finais. Em compensação, o risco de crédito (o risco de default, por parte dostomadores) recai sobre a instituição bancária que fez o empréstimo, não sobre o depositante. Se os to-madores dos empréstimos não os pagarem de volta, o banco ainda assim terá de honrar os depósitosexistentes. O depositante, portanto, empresta ao banco, não ao tomador último. O mercado de crédito é,neste sentido, intermediado. Em contraste, relações desintermediadas são aquelas em que o empresta-dor último retém consigo diretamente obrigações do tomador final, como, por exemplo, na colocaçãode commercial papers junto a fundos de mercado monetário, ou de bônus emitidos por empresas ou go-vernos junto a fundos de pensão, ou de ações de empresas junto a famílias ou fundos de investimento.Nesse tipo de relação financeira o papel da instituição financeira é diverso do anterior, limitando-se àpromoção da colocação de papéis, isto é, à corretagem de valores, portanto. Mercados de capitais refe-rem-se, assim, a operações desintermediadas. O risco de crédito recai aqui sobre o emprestador e nãosobre a instituição financeira, que apenas promove o encontro entre emprestadores e tomadores. Estaatividade pode estar sujeita a outros tipos de risco, porém. Tipicamente, nas atividades de subscrição depapéis para posterior colocação, a instituição financeira suporta o risco de mercado, isto é, a possibili-dade de que o mercado não absorva os papéis subscritos aos preços esperados pelos intermediários.

15.3.5 MERCADOS DE RECURSOS E MERCADOS DE RISCOS

Tradicionalmente, mercados financeiros têm sido utilizados para transferir o comando sobre recursosentre indivíduos. Como já observado, porém, um contrato financeiro é uma promessa de pagamentoque uma parte faz a outra, estabelecendo condições e termos pelos quais esse pagamento será feito nofuturo. É sempre possível que esse contrato deixe de ser cumprido, ou porque aquelas condições e ter-mos não se concretizaram ou porque o tomador de recursos não teve condições de honrar o contratomesmo no caso deles terem se concretizado. Em outras palavras, todo contrato financeiro envolve umcerto risco de não ser cumprido ou, pelo menos, não ser cumprido como imaginava o agente que cede osrecursos. Um contrato financeiro, portanto, combina expectativas de retornos e riscos de não concreti-zação dessas expectativas. Durante décadas, uma coisa era simplesmente a contraface da outra, retor-

Relações e Mercados Financeiros 217

nos e riscos sendo os dois lados de uma mesma moeda. A partir dos anos 80, contudo, emergiu com mu-ita força uma inovação financeira de fundamental importância no sistema financeiro: os contratos deri-vativos. Estes são contratos cujo valor se deriva de outros contratos (ver Box 15.1). Seu papel é permitirque os riscos envolvidos em um contrato financeiro original sejam decompostos e possam ser transaci-onados separadamente. Derivativos permitem que um investidor retenha apenas os riscos que lhe inte-ressam, vendendo os restantes para terceiros. Assim, nós podemos atualmente falar, por exemplo, emmercados de crédito, onde empréstimos de recursos são feitos por agentes superavitários para agentesdeficitários, e mercados de derivativos de crédito, onde os riscos dessas operações são negociados entreinstituições financeiras. Mercados de riscos não transferem recursos por si, mas facilitam a operaçãodos mercados de recursos, ao permitir que agentes avessos a certas classes de risco participem deles, jáque têm a possibilidade de transferi-los para outros.

15.4. TIPOS DE MERCADOS E A QUESTÃO DA INFORMAÇÃO

As distinções apresentadas não são mutuamente excludentes. Na verdade, elas servem para caracterizaros mercados de acordo com diferentes critérios e pontos de vista. Assim, podemos classificar um deter-minado mercado, o de debêntures, por exemplo, como um mercado público, normalmente desinterme-diado, porque instituições financeiras costumam apenas organizar sua colocação junto a investidoresnão financeiros. Debêntures são títulos de maturidade média, para os quais, com frequência, existemmercados secundários, o que lhes confere certo grau de liquidez. O mesmo tipo de análise pode ser feitocom relação a qualquer contrato financeiro.

Por que tais distinções são importantes? Elas importam porque a dinâmica de cada mercado depen-de das características que o definem. O custo dos recursos financeiros é afetado diretamente, por exem-plo, pela possibilidade de que contratos sejam negociados em mercados secundários. Um emprestadorse sentirá mais seguro se souber que poderá reaver seu empréstimo antes da data final de resgate, ven-dendo o título que representa a operação no mercado secundário de títulos. Essa capacidade de revendaé o que se chama de liquidez. Um título que tenha liquidez é um canal de obtenção de recursos mais ba-rato que as alternativas que não exibam a mesma vantagem. Mas não são apenas os custos do financia-mento que são afetados pelo modo como os mercados são organizados e operam. A segurança do siste-ma financeiro também depende de como estes mercados são estruturados. Espera-se que mercados decrédito se mostrem mais seguros do que mercados de títulos, porque nos primeiros os transacionadoresse conhecem melhor do que nos segundos. Em mercados de crédito estabelecem-se com frequência re-lacionamentos de longo prazo entre as partes, o que não ocorre nos mercados de títulos, onde as transa-ções são normalmente anônimas, especialmente se têm lugar em mercados públicos, como bolsas.

Em grande medida, as distinções apresentadas nada mais são do que diferentes formas de se afirmar aimportância da informação na operação dos mercados financeiros. Mercados públicos, por exemplo, sãoaqueles em que a informação relevante à celebração de um contrato financeiro está ao alcance de qualquerum. Já em mercados privados, de balcão, a informação é um privilégio de poucos, que procuram mantê-larestrita, fora do alcance de outros interessados. A natureza e a disponibilidade da informação é fundamen-tal também para distinguir mercados primários e secundários, ou melhor, para que se estabeleça a possibi-lidade de existência de mercados secundários. Mercados primários podem ser privados, mas dificilmentemercados secundários poderão sê-lo. Não haverá candidatos a assumir contratos financeiros de outros a nãoser que a informação que levou à feitura do contrato esteja ao alcance dos seus possíveis compradores.

A questão da informação é, porém, mais do que importante, ela é decisiva para a oposição entre re-lações financeiras intermediadas e desintermediadas. À aceitação de riscos diferentes correspondemformas de remuneração diversas para as instituições financeiras.2 Instituições que operam com interme-diação têm sua renda derivada do spread entre taxas de captação e taxas de aplicação. Já aquelas queoperam em mercados de capitais derivam seus ganhos das comissões de corretagem.

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2. Para uma discussão detalhada dos tipos de risco sofridos por instituições financeiras ver The Economist, suplemento Surveyof International Banking, 10/4/1993.

Tradicionalmente, a escolha entre um e outro tipo de relação financeira dependeu fundamental-mente das características do negócio de que se trate. Quando se trata de operações em que as informa-ções necessárias para a contratação de recursos não são públicas, tendo sua disponibilidade dependentede investimentos na constituição de cadastros e outros meios desta natureza, e em que o acompanha-mento da utilização dos recursos exija aparatos especializados, relações intermediadas tendem a sermais eficientes. Bancos estabelecem relações de longo prazo com clientes, desenvolvem meios de ava-liação de projetos e do valor de colaterais, entre outros procedimentos, para obter a informação neces-sária à decisão de aplicação de recursos. Já operações desintermediadas são mais adequadas para asoperações em que as informações estão disponíveis de forma mais aberta a todos os interessados, dis-pensando habilidades específicas para sua avaliação. A “descoberta” de formas de transformação decontratos baseados em informação idiossincrática em informação pública, em anos recentes, tornoupossível aos agentes deficitários captar recursos a um custo muito menor do que o cobrado pelo créditobancário convencional. Como, tradicionalmente, os bancos limitavam sua atuação ao primeiro tipo deoperação, onde tinham vantagens exatamente pelo seu investimento em mecanismos de obtenção eavaliação de informações que fundamentassem seu processo de oferta de crédito, estes novos processosacabaram por gerar imensas pressões competitivas sobre os bancos, forçando-os a se transformar parasobreviver. Como se verá no Capítulo 20, contudo, uma das principais mudanças em curso no sistemafinanceiro refere-se precisamente a este crescimento das operações desintermediadas e ao processo deadaptação dos bancos a tal situação. Assim, entender como o sistema financeiro de um país lida com oproblema da informação é a chave para entender seu desenvolvimento.

O Quadro 15.2 resume as distinções entre os diversos tipos de mercado financeiro e suas relaçõesdiscutidas neste item.

QUADRO 15.2Tipos de Mercado Financeiro

De acordo com:

1. Forma da Transação e do Contrato Resultante:Crédito Curto Prazo

Longo Prazo

Títulos Mercado Monetário: papéis de curta maturidadeMercado de Capitais: papéis de longa maturidade

Títulos de PropriedadeTítulos de Dívida

2. Participação de TerceirosPrimários: apenas tomador e emprestador originaisSecundários: entre emprestadores

3. Grau de Acesso de InteressadosPúblicosPrivados

4. Forma de Participação de Instituições FinanceirasIntermediadosDesintermediados

5. Objeto da TransaçãoDe RecursosDe Riscos (derivativos)

Relações e Mercados Financeiros 219

220 Relações e Mercados Financeiros ELSEVIER

Nos últimos anos tem-se dado grande atenção aum conjunto de mercados financeiros que nãopromovem realmente a circulação de recursos deaplicadores para tomadores, mas que podem seconstituir em importante instrumento de apoioàquela circulação. Ao mesmo tempo, esses mer-cados, aos olhos do grande público – que muitasvezes não entende suas formas de operação –aparecem também como possíveis fontes de peri-go para o sistema econômico, para a economiapopular etc. Neste box procuraremos descreveros fundamentos e formas de operação dessesmercados e seu papel no sistema financeiro.

O que São Derivativos?Derivativos são ativos cujo valor é determinadopelo valor de algum outro ativo (chamado desubjacente) ou pelo comportamento de algumoutro mercado ou, ainda, pela ocorrência de al-guma combinação pré-especificada de eventos.Contratos derivativos são, assim, apostas de quealguma dada sequência de eventos terá lugarem um ou mais mercados. Estes contratos visamderivar benefícios de movimentos dos mercadosem alguma direção ou evitar as perdas que po-deriam derivar deste mesmo comportamento.Deste modo, derivativos permitem a decomposi-ção de riscos que costumavam estar embutidosnum dado contrato em riscos elementares quepossam ser vendidos separadamente. É estapropriedade que explica o rápido crescimentodesses mercados a partir dos anos 70.

Contratos derivativos, na verdade, têm sidousados, em escala restrita, pelo menos desde o sé-culo XIX. Basicamente, eles eram usados em mer-cados para mercadorias agrícolas, em sua formamais simples, a de contratos futuros transaciona-dos em bolsas. Estes eram mercados em que umcerto bem era vendido para entrega futura a umpreço fixado no presente, para pagamento na da-ta de entrega. Vamos supor que os produtoresagrícolas estavam sujeitos a dois tipos de risco, orisco de não obter o nível de produto planejado(chamemos este risco de “incerteza tecnológica”) eo risco de não ser capaz de vender este produto aopreço desejado (“incerteza de mercado”). O de-senvolvimento de um mercado futuro (um tipo dederivativo) permitiria a separação das duas formasde incerteza envolvidas na atividade agrícola.Com ele, o produtor poderia “vender” o risco demercado, vendendo seu produto esperado paraentrega futura a um preço prefixado, correndoapenas o risco que ele, por suposto, conhece me-lhor – o risco tecnológico. Naturalmente, se o pro-duto efetivamente colhido for menor do que o quefoi vendido para entrega futura, o produtor tem de

comprar a diferença para honrar o contrato. Esterisco, o produtor continua correndo. Derivativosnão permitem eliminar todos os riscos. Na verda-de, derivativos não eliminam riscos; eles permitemque esses riscos sejam vendidos para quem julgueser capaz de administrá-los de forma mais eficien-te. No exemplo dado, a incerteza de mercado seráadministrada pelo comprador da mercadoria paraentrega futura (por exemplo, um produtor de óleode soja que compra soja para entrega futura).

A ideia por trás do desenvolvimento de mer-cados de derivativos, portanto, é a de que dife-rentes grupos sejam capazes de administrar ca-tegorias específicas de risco de forma mais efici-ente. Derivativos permitem separar riscos e alo-cá-los exatamente por esses grupos, segundosuas preferências. Quando o produtor vendeuma mercadoria para entrega futura ele estátransferindo o risco de mercado para seu com-prador, que deve julgar conhecer a operação domercado melhor que o produtor.

A própria transação com derivativos dá origema um novo tipo de risco, qual seja, o de que acontraparte (isto é, a outra parte contratante) nãohonre o contrato (por má-fé ou por acidente). Poroutro lado, o preço a que derivativos são vendi-dos é a variável crucial para determinar se umcontrato pode ou não ser honrado. Mas o própriopreço do derivativo, por sua vez, depende do ris-co que está sendo aceito pela contraparte. Assim,quanto mais volátil o comportamento do merca-do para um dado ativo, mais caro será fazer umcontrato derivativo que transfira esse risco doportador original para terceiros.

Tipos de DerivativosHá basicamente dois tipos de derivativos: os ne-gociados em bolsa e os negociados em balcão,conhecidos pela sigla inglesa OTC (over thecounter). Bolsas são mercados organizados emque transações são anônimas. Ativos são vendi-dos e comprados “pelo mercado”, e a bolsa atuacomo uma câmara de compensação, proceden-do aos pagamentos e liquidação de contratos.Essas operações são feitas “com margem”, istoé, todo transacionador tem de fazer um depósitode um dado valor como garantia de que ocontrato será honrado quando chegar a hora.Como o valor do contrato é proporcional ao ris-co, quando este muda, o valor da garantia deveser recalculado. Quando o risco aumenta e asmargens são elevadas, o transacionador devedepositar a diferença. Isto é o que se chama de“chamada de margem”. A principal característi-ca dos derivativos transacionados em bolsa ésua liquidez.

MERCADOS DE DERIVATIVOS

BO

X1

5.1

15.5. SISTEMAS FINANCEIROS

O conjunto de mercados financeiros, definidos em função das classes de ativos transacionados, as insti-tuições financeiras participantes, as inter-relações entre eles e os regulamentos e regras de intervençãodo poder público na organização e supervisão das operações definem um sistema financeiro. Sistemasfinanceiros satisfazem três grandes demandas: canalizar recursos gerados pelas unidades superavitáriaspara as deficitárias, permitindo à economia um uso mais eficiente de seus recursos, maximizando suacapacidade de crescimento e de manutenção do emprego e do bem-estar da população; organizar e ope-rar os sistemas de pagamentos da economia, essenciais para o adequado funcionamento de todos osmercados da economia; criar os ativos no volume e no perfil necessários para satisfazer às demandasdos poupadores por meios de acumulação de riqueza.

Esses sistemas são definidos fundamentalmente pela sua estrutura, isto é, pelo modo como se dá ainteração entre os mercados e as instituições financeiras. Essas estruturas são, por sua vez, o resultado

Relações e Mercados Financeiros 221

Derivativos de balcão são contratos onde senegociam riscos idiossincráticos. Maturidadesespecíficas, condições particulares, desempenhode um dado ativo, ocorrência de um dado even-to etc., tomados isoladamente ou em combina-ção, podem dar origem a um derivativo de bal-cão. Sendo idiossincráticos, estes contratos nãosão transferíveis, servindo a agentes específicoscujo interesse seja explicitamente consideradona preparação do contrato. Deste modo, deriva-tivos de balcão não podem ser transacionadosem bolsas e não têm liquidez. Por isso mesmo, orisco da contraparte aqui é muito elevado. Suavantagem é a possibilidade de tratar com riscosmuito particulares, que não interessariam a ummercado amplo, de qualquer forma.

Os principais tipos de derivativos negociadosem bolsa são os contratos futuros e opções. Con-tratos futuros são aqueles em que a parte assumea obrigação de entrega de um determinado itemnuma determinada data, a um preço predetermi-nado. A contraparte se compromete a fazer o pa-gamento correspondente. Opções são contratosque dão o direito, mas não a obrigação, de efe-tuar uma transação especificada numa determi-nada data ou contingência. Opções de venda(put) dão ao detentor o direito de vender um de-terminado item no futuro por um preço predeter-minado. Opções de compra (call) dão o direito decomprar um determinado item a um preço pré-combinado em uma data futura. Uma opção é,assim, um instrumento muito mais flexível que osfuturos, pois não cria obrigações para o compra-dor da opção. Naturalmente, essa flexibilidadetem um preço, que é o que o comprador da op-ção paga ao vendedor para ter aquele direito,sem ter qualquer outra obrigação.

Os derivativos de balcão mais conhecidossão os contratos a termo e os swaps. Contratosa termo são como contratos futuros, mas quesão feitos de forma individualizada, bilateral.Swaps são contratos em que agentes trocam ascaracterísticas de um determinado ativo ou deuma obrigação pelas características de outro.Assim, em um swap de juros, a parte pode tro-car um perfil de pagamentos de juros a umataxa fixa por um perfil de taxas de juros flutuan-tes. Em um swap de câmbio, a parte troca a mo-eda em que sua obrigação está contratada pelamoeda em que a contraparte tem a sua obriga-ção registrada.

Finalmente, contratos podem ser simples(plain vanilla), como por exemplo, um contratoa termo ou um swap, ou estruturados, em quese combinam características de dois ou mais ti-pos de contratos, como, por exemplo, os swapti-ons, em que se combinam características deswaps com opções, dando ao detentor do con-trato o direito de iniciar um swap no futuro, seassim quiser.

Contratos derivativos foram desenvolvidos,assim, como forma de permitir a cada um assu-mir apenas os riscos que se julgue capaz de ad-ministrar, vendendo a outros os riscos restantes.Como tal, derivativos permitem que os agentesfaçam políticas defensivas (chamadas de hedge)de forma mais eficaz. Mas toda operação comderivativos sempre envolve dois lados: para quealguém faça um hedge, é preciso que uma con-traparte esteja disposta a assumir aquela apos-ta. Deste modo, derivativos podem ser tambéminstrumentos de especulação, em que uma con-traparte aposta ser capaz de manejar riscos me-lhor que os outros participantes do mercado.

MERCADOS DE DERIVATIVOS

BO

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5.1

de dois conjuntos de influências. De um lado, encontramos os determinantes técnicos da atividade fi-nanceira, como o desenvolvimento de sistemas modernos de contabilidade financeira ou a possibilida-de de aplicação de inovações tecnológicas desenvolvidas nos setores de comunicações e informática àatividade bancária e financeira. Esses fatores aumentam a eficiência com que operam os sistemas finan-ceiros e acentuam eventuais vantagens que um tipo de estrutura possa ter sobre outros, imprimindo umatendência à homogeneização das estruturas financeiras.

Em direção contrária atua a história econômica específica de cada país, além de seus condicio-nantes políticos e culturais, que tornam certas práticas mais aceitas do que outras, definem padrõesde ética, de segurança, de concentração de poder etc. Neste sentido, a tradição federal norte-ame-ricana, por exemplo, será um importante fator determinante da estrutura financeira dos EstadosUnidos, ao bloquear por muito tempo a criação de bancos capazes de atuar além de fronteiras esta-duais. Em direção semelhante, a tradição política de oposição à centralização de poder naquele paísretardou a criação de um banco central até a segunda década do século passado. Já em países da Eu-ropa ocidental, notadamente a Alemanha e a França, a tradição oposta à americana, de centraliza-ção política e de reforço de estruturas burocráticas, levou à criação de sistemas financeiros centrali-zados, construídos em torno de algumas grandes instituições – às vezes, como na França e Itália,com forte participação estatal etc.

Sistemas financeiros modernos, além disso, não são apenas criaturas espontâneas da história decada país. Iniciativas deliberadas de engenharia institucional, especialmente através da imposiçãode limites regulatórios à ação de instituições financeiras, têm sido também muito importantes nadeterminação das estruturas financeiras existentes em cada economia. Assim, a segmentação dosistema financeiro norte-americano, segregando bancos comerciais e bancos de investimento, re-sultou de iniciativa política específica – a passagem pelo Congresso da Lei Glass/Steagal em 1933– que obrigou as instituições financeiras de atuação mais diversificada a especializarem-se numúnico segmento. Outro exemplo é o relativamente tardio desenvolvimento de mercados com deri-vativos no Japão, porque aos olhos da lei japonesa tais mercados eram equivalentes a jogo, o que éproibido naquele país. Finalmente, a operação de investidores institucionais, como fundos de pen-são e fundos de investimento, foi praticamente inaugurada a partir de medidas tomadas deliberada-mente por autoridades reguladoras.

A estrutura de cada sistema financeiro pode ser um fator muito importante tanto para a determina-ção de sua eficiência alocativa – por exemplo, facilitando ou dificultando a circulação de recursos fi-nanceiros entre os diversos segmentos do mercado – quanto para a minimização dos riscos que a ativi-dade financeira pode criar para a operação dos setores produtivos. As propriedades dos sistemas finan-ceiros existentes nos principais países do mundo, no que se refere a essas duas metas, serão exploradasmais à frente, nos Capítulos 18 e 20.

RESUMO

Neste capítulo foram apresentados os conceitos básicos necessários ao conhecimento dos sistemas financeirosexistentes atualmente. Partiu-se da noção de relação financeira como sendo a que se estabelece entre agentes quegastam menos que sua renda corrente e aqueles que gastam mais do que recebem. Os primeiros, chamados de uni-dades superavitárias, usam seus excedentes para financiar os gastos dos outros, chamados de unidades deficitárias.Na concretização de uma relação financeira, o devedor emite uma obrigação em favor do credor, que representa,para este último, um ativo, isto é, uma forma de riqueza. Relações financeiras podem ter lugar de diversas formas.Devedores e credores podem negociar diretamente ou ter sua interação intermediada por instituições financeiras.Dependendo das características dessas operações, definem-se diversos tipos de mercados financeiros: de créditoou de capitais; públicos e privados; primários e secundários; intermediados ou desintermediados de recursos e deriscos. Um sistema financeiro é definido pelo conjunto de mercados e instituições financeiras existentes e pelosprocedimentos de operação adotados, por costume ou por imposição legal/regulatória.

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TERMOS-CHAVE

� Unidades (ou Agentes) Superavitários� Relações Financeiras� Ativos Financeiros� Mercados Financeiros� Mercados de Capitais� Mercados Privados� Mercados Secundários� Desintermediação� Sistema Financeiro

� Unidades (ou Agentes) Deficitários� Obrigações� Crédito� Mercados de Crédito� Mercados Públicos� Mercados Primários� Derivativos� Intermediação� Liquidez� Estrutura Financeira

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Benjamin Friedman. “Capital, credit and money markets”. In: J. Eatwell e outros (eds.), The New Palgrave,MacMillan, 1987.

James Tobin, “Financial intermediaries”. In: J. Eatwell e outros, op. cit.Esses dois textos, verbetes da nova edição do dicionário Palgrave, apresentam de forma bastante efetiva algu-

mas das principais definições discutidas neste capítulo.C.A.E. Goodhart. Money, Information and Uncertainty. MacMillan, 1989.O clássico livro de Goodhart, embora tenha a maioria de suas páginas voltadas para a discussão de problemas

monetários, mais do que financeiros, contém um exame interessante de questões ligadas às formas pelas quais in-formações se tornam disponíveis aos agentes do mercado.

Relações e Mercados Financeiros 223

BANCOS COMERCIAIS

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, examinaremos a mais importante das instituições financeiras existen-tes no mundo capitalista, o banco. Embora não exista uma definição universalmente acei-ta do que seja um banco, em contraste com outras instituições financeiras, define-se usu-almente um banco como uma instituição depositária. Entre os tipos de bancos, o mais co-nhecido e importante, porque criador de moeda em economias modernas, é o banco co-mercial. Discutiremos o que é um banco comercial, como este tipo de instituição funcionano que é conhecido como sistema de reserva fracionária, dando especial atenção à suamais atraente característica: a capacidade de multiplicar depósitos (e meios de pagamen-to). Faremos ainda uma breve discussão de algumas teorias da firma bancária, seguida doexame de pontos polêmicos entre os estudiosos do setor, como, por exemplo, o papel dosbancos na política monetária.

16.1. EM BUSCA DE UMA DEFINIÇÃO DE BANCOS

A mais importante das instituições financeiras, tanto historicamente quanto em termosdo volume de intermediação financeira realizado, é o banco, particularmente o bancocomercial. Um estudo publicado pela OECD em 1995 mostra que, nas maiores economi-as de mercado, a porcentagem dos ativos detidos pelos bancos dentro do total de ativosdas instituições financeiras em 1990 variava entre 37% nos Estados Unidos e 77% naAlemanha.1 No passado, esta proporção era ainda maior.

O predomínio da forma bancária de intermediação financeira por séculos se explicatanto pela simplicidade dos produtos que oferece ao público, potencializando sua capaci-dade de captação de recursos até mesmo junto aos poupadores menos sofisticados, e pelasua capacidade de multiplicação quase sem limites da oferta de crédito para a economiaem que opera.

Na verdade, porém, quando se fala de bancos nem sempre é claro do que realmenteestamos tratando. Muitas instituições têm a palavra “banco” na sua razão social, sem querealmente exerçam as funções que normalmente associamos a este tipo de intermediário.

CAPÍTULO

16

1. Cf. OECD. The New Financial Landscape. Paris: OECD, 1995, p. 135.

Por outro lado, algumas instituições operam de forma muito semelhante a um banco, mas preferem,para evitar atrair a atenção de reguladores ou para usufruir de vantagens fiscais, tentar ocultar sua ver-dadeira natureza. De qualquer modo, instituições financeiras em geral, e bancos em particular, são enti-dades muito dinâmicas, em constante mudança. Por causa disso, muitas instituições se transformaram atal ponto que muitas de suas características originais são hoje quase irreconhecíveis. Algumas institui-ções optam por enfatizar esta transformação, mudando até mesmo sua razão social. Outras sublinhamsua capacidade de permanência em meio à mudança, mantendo, frequentemente, denominações que jánão correspondem ao seu sentido original.

Embora não haja definição universalmente aceita do que constitui um banco, o sistema bancário énormalmente tomado como compreendendo os intermediários financeiros que captam recursos sob aforma de depósitos. A possibilidade de identificação das atividades próprias a uma firma bancária não éuma preocupação puramente acadêmica. Sendo a operação do setor bancário extensivamente reguladaem qualquer economia capitalista, a adequada caracterização do sistema bancário tem importantes im-plicações legais e regulatórias. A definição dos serviços produzidos por empresas bancárias, as regrasde operação de seus mercados e suas formas de concorrência são afetados de forma crucial por essa de-finição.

Identificar bancos como instituições depositárias, seguindo-se o caminho aberto pelas autoridadesnorte-americanas a partir de 1980 e francesas a partir de 1984, implica incluir entre as empresas do setorvários tipos de instituições que, mesmo não contendo a palavra “banco” em sua razão social, exercemfunções semelhantes. Assim, fundos mútuos de investimento em mercado monetário, por exemplo –que em países como os Estados Unidos são instituições que competem com os bancos tradicionais nacaptação de depósitos – serão aqui considerados como integrantes do setor bancário.

A dificuldade de caracterização das atividades definidoras da firma bancária decorre, em grandemedida, de sua origem dual. O banco moderno é o resultado da confluência de dois tipos de instituiçõesque surgiram, em larga medida, independentemente uma da outra.2 De um lado, havia as iniciativas vol-tadas à acumulação de recursos que permitissem viabilizar atividades de exploração industrial ou co-mercial. Tais empresas tinham como objetivo canalizar a riqueza dispersa entre a população para proje-tos que prometessem retornos adequados, na função clássica do intermediário financeiro. Um tipo dife-rente de instituição originou-se, por outro lado, das instituições depositárias de valores, tal instituiçãoacabou voltada para o desenvolvimento de meios de pagamento. Neste caso, recibos de depósitos demetais, ou de outros valores entregues para salvaguarda, emitidos por tais instituições, acabaram porsubstituir a circulação dos próprios valores, por questões de conveniência e segurança. Este tipo de de-senvolvimento foi particularmente importante nas relações entre centros comerciais situados em paísesdiferentes, levando à criação das letras de câmbio, que permitiram a construção de um sistema de paga-mento internacional. Das notas bancárias e das letras de câmbio, a atividade criadora de meios de paga-mento evoluiu para a aceitação de depósitos à vista. O banco moderno resultou da unificação dos doistipos de instituição em uma única firma, capaz de criar meios de pagamento sob a forma de depósitos àvista, ao mesmo tempo em que faz a intermediação de recursos financeiros para tomadores finais. Emsua função de criador de meios de pagamento, pode-se dizer que bancos são instituições únicas dentrodo sistema financeiro, ao passo que, enquanto intermediários financeiros, bancos concorrem com ou-tros tipos de instituição.

Depósitos à vista não são, naturalmente, a única forma de depósitos disponível no sistema. Eles sãoúnicos apenas em sua função de meios de pagamento. Como forma genérica de captação, depósitos sãoinstrumentos que tipicamente não implicam emissão de documentos negociáveis.3 Deste ponto de vista,depósitos à vista têm como característica sua liquidez imediata e sua possibilidade de transferência viacheques, diferenciando-se das outras formas de depósito, como depósitos a prazo ou de poupança pela

Bancos Comerciais 225

2. Um excelente relato analítico da evolução histórica dos bancos encontra-se em Kregel (1998).3. Na verdade, desenvolvimentos modernos da atividade financeira em geral, e bancária em particular, têm levado a um cres-cente obscurecimento das distinções, mais marcadas no passado, entre instrumentos, instituições e mercados financeiros. Umexemplo deste fenômeno é a criação e disseminação dos CDBs, papéis negociáveis representativos de depósitos a prazo.

menor liquidez destes últimos – o que faz com que sua aceitação pelo público dependa do pagamento deuma taxa de juros compensatória. Assim, enquanto intermediários financeiros, bancos são uma catego-ria de empresas que abarca não apenas as capazes de criar passivos que servem como meios de paga-mento, como também aquelas outras instituições que criam passivos de natureza semelhante, mas demenor liquidez. Deste modo, consideraremos bancos as instituições cuja captação de recursos se dêatravés da criação de depósitos à vista, a prazo, de poupança etc.

Há três tipos principais de função bancária que podem ou não, de acordo com a vontade de seuscontroladores e com as limitações impostas por lei ou regulação, ser exercidas por uma mesma institui-ção. Bancos comerciais tipicamente captam recursos através da criação de depósitos à vista, repas-sando-os a tomadores sob a forma de empréstimos de curto prazo (capital de giro) para empresas co-merciais e industriais e para consumidores. Bancos de investimento captam recursos através de depósi-tos a prazo, usando-os para financiar a subscrição de títulos a serem colocados no mercado nas datasconvenientes. Bancos de poupança captam depósitos de poupança para financiamento da compra ouaquisição de imóveis via hipotecas.

Nos sistemas de crédito chamados de segmentados, praticamente cada uma dessas funções éexercida por uma instituição independente. Esta independência é normalmente fixada em lei e é justi-ficada pela preocupação de isolamento dos diversos segmentos do mercado financeiro, prevenindocontágio de dificuldades setoriais. Os sistemas financeiros segmentados mais importantes são os dosEstados Unidos e do Japão. No primeiro caso, a segmentação foi imposta pela Lei Glass-Steagal, nosanos 30, em reação ao que foi percebido como a causa da crise financeira de 1929. O diagnóstico dacrise aceito pelo Congresso norte-americano foi o de que as dificuldades surgidas no mercado deações acabaram por contaminar o resto da economia porque os bancos tentaram cobrir suas perdas nomercado acionário usando recursos que deveriam estar servindo para ofertar crédito às empresas nãofinanceiras, levando a uma contração da oferta de crédito, que, por sua vez, gerou desemprego e que-da da produção. Por esta razão, o sistema bancário americano foi reorganizado, proibindo-se a ban-cos comerciais operar no mercado de capitais, como bancos de investimento, e a bancos de investi-mento de captar depósitos à vista. A separação entre bancos comerciais e bancos de investimento tor-nou-se a marca do sistema bancário americano nas décadas que se seguiram. No caso do Japão, a seg-mentação não se deu principalmente entre bancos comerciais e de investimento, dada a pouca rele-vância do mercado de capitais naquele país, mas entre bancos ofertantes de crédito de curto e de lon-go prazos. A segmentação da estrutura financeira japonesa, no entanto, também deveu-se aos EstadosUnidos, já que foi imposta pelas autoridades de ocupação em meio às reformas institucionais imple-mentadas no imediato pós-guerra.4

Em oposição aos sistemas segmentados, temos as estruturas de banco universal, onde a distinçãoentre funções bancárias não implica que uma mesma instituição não possa exercer quantas delas dese-jar. Os dois tipos de sistemas financeiros serão objeto de discussão no Capítulo 18, à frente. Para o estu-do da operação dos bancos, de qualquer modo, é aconselhável tratar suas funções de forma isolada,como existem nos sistemas bancários segmentados, considerando os bancos universais como institui-ções híbridas, em que se combinam duas ou mais das funções mencionadas. Dentre os tipos existentesde bancos, certamente o mais importante é o banco comercial.

16.2. O BANCO COMERCIAL

O banco comercial é uma instituição especial porque cria depósitos à vista. Na verdade, bancos comer-ciais têm um papel duplo numa economia moderna: por um lado, são o principal (e algumas vezes oúnico) tipo de intermediário financeiro que encontramos em qualquer economia; por outro, as obriga-ções que emite sob uma determinada forma, como depósitos à vista, servem de meio de pagamento al-ternativo à moeda legal emitida pelo Estado.

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4. Veja os Boxes 18.1 e 18.2.

Depósitos à vista aceitos por bancos comerciais constituem um tipo muito particular de passivo.Esses depósitos definem a obrigação por parte de um banco de entregar ao seu titular um determinadovalor em moeda legal a qualquer momento que solicitado. O banco age como um custodiante de valo-res, mantendo-os sob sua guarda e reconhecendo o direito do titular do depósito de resgatá-los no mo-mento em que desejar. Caso o banco que reconheça esta obrigação possua credibilidade junto ao pú-blico em geral, a probabilidade de que esses depósitos venham efetivamente a ser resgatados é bas-tante reduzida. Qualquer pagamento para cuja realização seja necessária a entrega de papel-moedapode ser realizado, de forma mais simples e segura, pela transferência da titularidade sobre o depósitono banco custodiante. Mais simples porque, ao contrário do papel-moeda que existe em denomina-ções pré-definidas e raramente muito grandes (por exemplo, o maior valor de uma nota em circulaçãonos Estados Unidos é de US$ 100; no Brasil é também de R$ 100), a transferência de depósitos ban-cários sob a forma de uma ordem de transferência (o cheque) pode ser feita simplesmente registran-do-se o valor total desejado numa única ordem (isto é, passando-se um cheque no valor desejado). Étambém uma forma mais segura de pagamento porque a ordem pode ser sustada em caso de roubo detalões de cheque, já que depósitos são direitos nominativos, em contraste com o papel-moeda, que éum título ao portador.5

Deste modo, tudo o que é necessário para que o público reconheça a superioridade do depósito ban-cário, transferível por cheque, sobre a moeda legal como meio de pagamento é que o banco que se de-clara custodiante do valor depositado sob sua guarda goze da confiança do público. Por essa razão, re-putação é uma qualidade tão cultivada por bancos. Um banco sem credibilidade simplesmente não so-brevive. Por outro lado, se o público confia no sistema bancário e mantém seus saldos monetários sob aforma prioritária de depósito bancário, a natureza do sistema de pagamentos desta economia se trans-forma. A solidez do sistema torna-se uma externalidade.6 A operação eficiente e segura dos bancos pas-sa a ser um interesse da sociedade e não apenas dos agentes diretamente envolvidos. Se bancos não fo-rem capazes de honrar a obrigação de converter depósitos à vista em moeda legal, todo o público seráincentivado a resgatá-los, gerando o que se chama de corrida bancária, e levando o sistema à quebra. Épara evitar esta possibilidade que certas instituições são criadas voltadas para a defesa do sistema ban-cário. As mais importantes delas são bancos centrais preparados para servir de emprestadores de últimainstância para os bancos comerciais (isto é, emprestando dinheiro a eles para permitir-lhes enfrentareventuais corridas de depositantes), e os seguros de depósitos para cobertura de obrigações deste tipoemitidas por bancos que eventualmente venham a falir.

A garantia que cerca depósitos à vista torna este tipo de aplicação peculiarmente segura para o pú-blico. Sua superioridade, já mencionada, sobre a moeda legal como meio de pagamento abre a oportu-nidade aos bancos de captar recursos sem ter que remunerá-los com qualquer taxa de juros. Como é pre-ferível manter saldos monetários transacionais em depósitos do que em papel-moeda, em princípio to-dos aceitarão “comprar” o passivo oferecido pelos bancos, isto é “aplicar” em depósitos apenas para tero direito de fazer pagamentos pela simples transferência desses depósitos, desde que haja confiança nasinstituições bancárias. A remuneração dos depositantes não se dá pelo pagamento de juros, mas pelooferecimento da conveniência e da segurança das operações com depósitos. A garantia dessas aplica-ções, portanto, por meio do emprestador de última instância e dos seguros de depósitos, implica umavantagem para os bancos enquanto intermediários financeiros em competição com outras instituiçõesfinanceiras que não gozam das mesmas regalias. O outro lado da moeda, contudo, é que, em troca des-sas garantias, os bancos comerciais ficam sujeitos a restrições de natureza regulatória normalmentemais duras do que aquelas que cercam a ação de outros tipos de intermediários. Buscar-se-á, com isso,impedir os bancos de tentarem maximizar seus lucros pela aceitação de riscos excessivos para o siste-

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5. Naturalmente, a anonimato pode ser uma vantagem para aqueles que tiverem alguma razão para manter oculta a transaçãoque estiverem realizando.6. Externalidades referem-se ao efeito que a ação de um indivíduo pode ter sobre terceiros, não envolvidos diretamente namesma ação. Assim, fumantes criam externalidades negativas sobre não fumantes, ao acenderem cigarros e gerarem fumaçaem ambientes fechados. A confiança no setor bancário gera externalidades positivas para todos aqueles setores para os quaistransações são facilitadas pelo uso de depósitos à vista.

ma. Novamente, é preciso lembrar que por se tornar a transferência de depósitos o principal modo deefetuar pagamentos da economia, a produção de depósitos passa a envolver externalidades extrema-mente importantes.

Na verdade, não é necessária profunda reflexão para percebermos que as transações que são feitasem economias modernas seriam simplesmente inviáveis se tivéssemos que liquidá-las com pa-pel-moeda. Preservar a segurança do sistema bancário torna-se, assim, importante demais para ser dei-xado a banqueiros. Aos bancos é oferecida uma rede de segurança mais ampla que aquela oferecida aqualquer outra empresa; mas são também impostos limites à sua operação, para que a disponibilidadede recursos obtidos a uma taxa de juros nula não possa induzir bancos a explorar quaisquer oportunida-des de aplicação que lhes apareçam, sem se considerar o risco que envolvam. De fato, se o dinheiro écaptado de outros, e nada custa, por que não investir naquilo que mais retorno ofereça, independente-mente de seu risco? Na melhor das hipóteses, a de sucesso, o banco reteria consigo este retorno excep-cional. Na pior, os depositantes nada perderiam, porque os emprestadores de última instância e as segu-radoras de depósitos lhes cobririam as perdas. Para evitar essa situação, enquanto se preserva o sistemade pagamentos, é que se impõem regulações e se supervisiona a atividade bancária.

16.3. O SISTEMA DE RESERVA FRACIONÁRIA: UMA ABORDAGEM

DE BALANÇO

Esta peculiar natureza do depósito à vista não implica apenas custo de captação mais baixo para os ban-cos comerciais. Ela leva também à possibilidade de que os depósitos originalmente feitos pelo públicono sistema bancário sejam multiplicados pelos bancos e, neste processo, sua capacidade de criação decrédito (e, portanto, de recebimento de receitas de juros) também se multiplique. Em resumo, o fato deque apenas em circunstâncias excepcionais alguém se mostre interessado em resgatar integralmenteseus depósitos, preferindo, na maior parte do tempo, manter seu dinheiro no banco, pagando por suascompras com cheques, permite ao banco emprestar várias vezes o “mesmo” dinheiro, multiplicando-se,assim, tanto os meios de pagamento quanto a oferta de crédito. Para mostrar como funciona este meca-nismo, conhecido como multiplicador bancário, vamos conhecer melhor o perfil de um banco co-mercial, apresentando as contas mais importantes de seu balanço.

16.3.1. O BALANÇO DE UM BANCO COMERCIAL ESTILIZADO

O banco comercial tem como conta típica de seu passivo a aceitação de depósitos à vista. Porque suasobrigações, emitidas sob a forma de depósitos à vista, podem ser resgatadas a qualquer momento, obanco comercial tem sua liberdade de aplicação restrita a ativos também de duração mais curta. Tipica-mente, este tipo de banco financia o capital de giro das empresas produtivas, isto é, as necessidades definanciamento das empresas para a aquisição de matérias-primas e pagamento de salários. Esses gastossão recuperáveis com relativa rapidez, tão logo a produção seja completada e vendida, reduzindo o ris-co de iliquidez dos bancos, qual seja, o de se verem incapacitados de honrar suas obrigações passivasporque seus recursos estão comprometidos com determinadas aplicações. Além dessas duas contas, ade empréstimos de capital de giro no ativo e a de depósitos à vista no passivo, os bancos mantêm aindapelo menos outras duas em seu ativo. A primeira delas é o caixa. Apesar da superioridade – aos olhosdos usuários – dos depósitos sobre o papel-moeda como meio de pagamento, para a maior parte dastransações de valor mais alto, nas operações mais corriqueiras, de baixo valor, como a compra de jornais,de passagens de ônibus etc., prevalece ainda o uso da moeda legal. Isto porque há custos de transaçãoassociados ao uso de depósitos que, embora irrelevantes quando as transações atingem um valor míni-mo relativamente reduzido, não o são quando o valor da transação é muito baixo, como nos exemplosdados. Por isso, o público mantém em seu poder sempre uma certa proporção de seus saldos monetários,

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ainda que pequena, sob a forma de papel-moeda. Isto implica que os bancos devem estar preparadospara permitir o resgate de uma certa proporção dos depósitos que aceita para que se possa cobrir taisdespesas. Assim, é necessário que parte dos ativos do banco seja mantida em caixa. O valor do encaixeé fixado de acordo com os resgates de depósitos esperados. Essa conta serve, assim, para o banco comouma conta de reservas voluntárias para fazer face a eventuais retiradas por parte do público.

Na verdade, os bancos podem manter reservas voluntárias sob duas formas. Reservas primárias sãoaquelas mantidas sob a forma de moeda em caixa (ou depósitos voluntários no Banco Central), disponí-veis para uso imediato. A vantagem desse tipo de ativo é sua liquidez, sua disponibilidade. Sua desvan-tagem é não render juros. Reservas secundárias, em contraste, minimizam esta desvantagem, pois sãoaquelas mantidas em títulos de alta liquidez, como papéis de dívida pública para os quais exista ummercado secundário bem organizado. Esses papéis podem ser vendidos com facilidade, sendo substitu-tos próximos da moeda em caixa como forma de precaução contra retiradas de depósitos. Sua vantagemé oferecer algum rendimento, embora baixo, por conta de sua alta liquidez.

A segunda conta típica dos balanços dos bancos comerciais existe por questões similares; é a contade reservas compulsórias. A autoridade monetária pode não confiar no bom-senso ou na prudência dosbancos em formarem suas próprias reservas, mantendo dinheiro em caixa em montante adequado paracobrir as eventuais demandas por resgate dos depositantes. Essa desconfiança pode ser explicada facil-mente: o dinheiro que os bancos mantiverem em caixa, como reserva, não renderá juros! Por isso, hásempre um incentivo para os administradores do banco a subestimarem a probabilidade de retirada porparte dos depositantes, pois quanto menos for necessário manter em caixa, mais sobrará para ser em-prestado a clientes, e, assim, mais o banco ganhará. Em função desse incentivo à imprudência, a autori-dade monetária normalmente impõe um certo coeficiente de reservas sobre os depósitos dos bancos,isto é, os bancos são obrigados a depositar uma certa proporção de seus depósitos à vista junto ao BancoCentral para servir de colchão de liquidez contra eventuais demandas por resgate além do previsto. Aconta de reservas, que aparece no ativo dos bancos, refere-se, assim, ao valor depositado, normalmentecompulsoriamente, no Banco Central pelo banco comercial. O valor que deve ser depositado é calcula-do como uma proporção, fixada pela autoridade monetária, dos depósitos à vista aceitos pelo banco co-mercial. Esses depósitos, por sua vez, podem servir para permitir aos bancos centrais exercer a funçãode emprestador de última instância, no caso de situações de iliquidez bancária, sem terem que lançarmão de emissão adicional de moeda.

No Quadro 16.1, encontramos um balanço de um banco comercial que especifica valores hipotéti-cos para essas contas, para servir de exemplo. Neste balanço, além das contas discutidas, está tambémincluída, no lado do passivo, a conta patrimônio líquido, como é normal para qualquer empresa de qual-quer setor, que reporta o valor do capital próprio da instituição.

QUADRO 16.1Banco Comercial: um Exemplo de Balanço

Ativo Passivo

Caixa 10

Reservas Compulsórias 20

Empréstimos de Capital de Giro 270

Total dos Ativos 300

Patrimônio Líquido 100

Depósitos à Vista 200

Total do Passivo e PL 300

Neste exemplo, o coeficiente de reservas compulsórias é de 10%.

16.3.2. O MULTIPLICADOR BANCÁRIO

Vamos introduzir o conceito de multiplicador bancário inicialmente através do acompanhamento dasoperações de um banco comercial, conforme descritas no seu balanço. Após o exemplo, veremos comogeneralizar as conclusões obtidas.

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Suponhamos que um grupo de pessoas se reúne para formar um banco comercial, dispondo de umpatrimônio próprio de R$ 100. Suponhamos, ainda, que este banco operará inicialmente em imóvel ecom equipamentos obtidos gratuitamente. Esta segunda suposição não tem qualquer importância para oargumento que se segue, servindo apenas para simplificar a análise e destacar o que é peculiar à opera-ção do banco, em contraste com empresas de outros setores. Nos supostos apresentados, o patrimôniodo banco em criação existe todo sob a forma de dinheiro, papel-moeda em poder do grupo de fundado-res, isto é, o capital é integralizado em dinheiro. Imediatamente após ser criado, o balanço do banco seapresentaria como se segue:

1) Ativo: Caixa 100 Passivo: Patrimônio líquido 100

Iniciando seu negócio, o banco procura clientes interessados em obter empréstimos, isto é, que estejaminteressados em tomar emprestados aqueles R$ 100 para financiar a compra do que desejarem. O bancoutilizará seus recursos em caixa para fazer este empréstimo. Seu balanço, então, será:

2) Ativo: Caixa 0

Empréstimos 100

Passivo: PL 100

Até este momento, o banco comercial atuou como qualquer outra forma de intermediário: “captou” re-cursos junto a seus fundadores, sob a forma de capital, e emprestou estes mesmos recursos a clientes. Aespecificidade do banco comercial revela-se no modo como esses recursos emprestados ao cliente sãoutilizados. Se o cliente retirasse os R$ 100 do banco sob a forma de moeda, nada haveria de diferente eesta história terminaria aqui. O banco teria de esperar o retorno daqueles R$ 100 ao seu caixa para fazernovo empréstimo. Isto é o que acontece, aliás, com instituições financeiras outras que não o banco co-mercial. No caso deste, porém, a história se desenvolve de modo diverso. Se o cliente, como todo mun-do, prefere usar seus saldos transacionais (isto é, os meios de pagamento que pretende usar ao realizartransações planejadas) sob a forma de depósitos à vista, ele não retirará o dinheiro tomado emprestadodo banco, mas, ao contrário, vai mantê-lo lá depositado. Em outras palavras, tudo funciona como se ocliente retirasse o dinheiro do banco e imediatamente o redepositasse na mesma instituição. O dinheiro“volta”, assim, ao caixa. Na verdade, o que ocorre é que o banco não oferece diretamente ao cliente pa-pel-moeda, e sim “credita” na conta-corrente do cliente o valor emprestado. Ou seja, o próprio bancofaz o redepósito, cabendo ao cliente decidir se mantém o valor ali ou não. Vamos assumir, para o mo-mento, que não há outros bancos na economia. Desse modo, se há uma preferência por depósitos, istosignifica que o valor redepositado será mantido naquela conta corrente. No balanço do banco essa ope-ração apareceria assim:

3) Ativo: Caixa 100

Empréstimos 100

Passivo: PL 100

Depósitos 100

Bancos operam, assim, cotidianamente, o “milagre” da multiplicação do pão e dos peixes. Este bancousou o dinheiro em seu caixa para comprar ativos no valor de R$ 100 (que é o valor da dívida do clientepara com o banco) e surpreendentemente viu-se com o mesmo valor em caixa com que iniciou sua ope-ração. O segredo, naturalmente, está em que o banco não empresta realmente o dinheiro que tem em ca-ixa mas, sim, faz uma promessa de que este papel-moeda estará disponível para o cliente se ele acharnecessário, o que, como sabemos nós e também sabe o banco, raramente acontece. Feito o empréstimo eo redepósito, o banco está pronto para reiniciar o processo. O dinheiro continua ali no caixa, parado, es-perando melhor uso. Desta vez, porém, o banco não pode simplesmente “emprestar” de novo o mesmovalor. Isto se dá porque, por um lado, parte dos R$ 100 que o cliente tomou emprestado pode ter que serusado para pequenas despesas, para as quais não se utilizam cheques. Assim, o cliente terá que efetiva-mente resgatar uma fração, normalmente pequena dos seus depósitos. Vamos supor que em média osdepositantes usam 5% de seus saldos transacionais em papel-moeda e podem, assim, desejar fazer reti-

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radas neste valor. Para satisfazer essa possível demanda, o banco tem de manter em caixa 5% do valordos depósitos que aceita. O banco tem de manter, portanto, R$ 5 reais em caixa, se o valor de seus depó-sitos é de R$ 100, como reserva voluntária. O Banco Central, por sua vez, pode achar que esta fração épouco para garantir a segurança do sistema e decidir impor um coeficiente adicional de reservas de 5%.Assim, a cobertura da retirada de depósitos estará garantida mesmo naqueles dias em que exceder ocoeficiente normal para o qual os bancos se prepararam voluntariamente. Assim, para cada R$ 100 dedepósito, os bancos formarão reservas voluntárias de R$ 5 e compulsórias de mais R$ 5. Subtraindo-seR$ 10 do que há disponível em caixa, restam aos bancos R$ 90 para se fazer novo empréstimo. O balan-ço do nosso banco aparecerá então assim:

4) Ativo: Caixa (reservas voluntárias) 5

Reservas compulsórias 5

Empréstimos 190

Passivo: PL 100

Depósitos 100

Este novo empréstimo de R$ 90 tem o mesmo destino do empréstimo anteriormente feito, de R$ 100. Te-remos R$ 90 creditados na conta corrente do cliente, isto é, o próprio banco procederá ao redepósito dovalor emprestado. Teremos então a seguinte situação:

5) Ativo: Caixa 95

Reservas compulsórias 5

Empréstimos 190

Passivo: PL 100

Depósitos à vista 190

Face ao novo valor dos depósitos, agora de R$ 190 o banco terá de recalcular suas reservas. As reservasvoluntárias serão agora de R$ 9,50 (5% de R$ 190). Além disso, o banco tem de acrescentar maisR$ 4,50 às suas reservas compulsórias, para atingir R$ 9,50 (5% de R$ 190). Restarão disponíveis parareempréstimo, portanto, R$ 81, reiniciando-se o ciclo de empréstimos e redepósitos. O balanço do ban-co neste ponto será como se segue:

6) Ativo: Caixa (reservas voluntárias): 9,5

Reservas compulsórias: 9,5

Empréstimos: 271

Passivo: PL 100

Depósitos à vista 190

Note-se que, embora o ciclo se repita muitas vezes, a possibilidade de expansão dos ativos do banco nãoé ilimitada. Isto porque a cada novo ciclo de reempréstimos o banco dispõe de um valor menor em cai-xa, livre para aplicação. A razão para essa diminuição é a necessidade sentida pelo próprio banco demanter reservas voluntárias e a imposição pelo Banco Central da manutenção de reservascompulsórias. Observe-se que, nos estágios 1, 3 e 5, em resultado do “redepósito” feito pelos clientesdos empréstimos recebidos, o valor inicial disponível em dinheiro, R$ 100, é sempre recomposto (somado caixa com as reservas compulsórias). O processo de expansão dos ativos do banco, contudo, não sedá de forma ilimitada porque a cada recomposição do disponível em dinheiro (caixa mais reservas) umaproporção cada vez maior tem de ser mantida como reservas.7 Até onde pode ir a expansão dos ativosdo banco? Até o ponto em que a necessidade de manutenção de reservas alcance o valor total do caixa.Assim, enquanto os depósitos não chegarem, neste exemplo, a R$ 1.000, haverá sempre uma “sobra” decaixa disponível para reempréstimo depois que as reservas tenham sido calculadas.

O multiplicador bancário é simplesmente a expressão algébrica do limite desse processo de expan-são. Para cada valor D de depósitos, é necessário constituir reservas de R = R1 + R2, onde R1 são as re-servas voluntárias e R2 são as reservas compulsórias.

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7. No estágio 4, o banco mantém um total de R$ 10 como reservas voluntárias e compulsórias. No estágio 6, as reservas passama R$ 19. À medida que o processo prossegue, os depósitos vão aumentando e a necessidade de reservas, consequentemente,também.

R1 = r1.D R2 = r2.D r = r1 + r2

onde r1 é o coeficiente de reservas voluntárias e r2 é o coeficiente de reservas compulsórias; r é o coefi-ciente total de reservas.

R = rD = (r1 + r2) D D = R/(r1+r2)

em que 1/(r1+r2) é o multiplicador bancário. No exemplo oferecido, r1= 0,05 = r2. Assim, r = 0,1. O va-lor do multiplicador bancário é 1/0,1, isto é, 10. Como o caixa disponível para constituição de reservas nobanco é de R$ 100, dado um multiplicador de 10, teremos um valor total de depósitos de R$ 1.000.

O exemplo dado se apoia em várias simplificações. Talvez a mais importante delas seja a de que opúblico acabe por redepositar integralmente os créditos recebidos. Se o banco pudesse ter de certezaque o público jamais resgataria efetivamente qualquer parte de seus depósitos, não seria preciso manterpelo menos as reservas voluntárias. Por outro lado, e isto não está incluído no exemplo, se os depositan-tes realmente retirassem alguma parte do valor de seus depósitos, haveria uma sangria do caixa do ban-co, não se recompondo o caixa integralmente a cada estágio. Neste caso, o valor do multiplicador ban-cário não se alteraria, permanecendo em 10, mas o volume de depósitos totais criados seria menorporque o dinheiro disponível para manter reservas não seria mais de R$ 100, mas dele teria que sersubtraído o valor das retiradas feitas pelos depositantes. Finalmente, à medida que o público resgatas-se uma parte de seus depósitos para redepositá-la em outro banco, o mecanismo descrito no exemplocontinuaria válido, porém para o sistema bancário como um todo. Apenas aquelas retiradas que fossemfeitas para serem mantidas na forma de papel-moeda é que subtrairiam algo da capacidade de criação dedepósitos do sistema bancário.

O sistema que exibe as propriedades discutidas nesta seção é chamado de sistema de reserva fracio-nária, porque sua dinâmica de operação é determinada pelo fato de que os bancos mantêm como reser-vas apenas uma fração de suas obrigações existentes sob a forma de depósitos.

16.4. A FIRMA BANCÁRIA

No exemplo dado na seção anterior, assumiu-se que o banco se defrontava com uma escolha simples arespeito de como atuar. Dados os recursos em moeda disponíveis para sua operação, cabia ao bancoconstituir as reservas necessárias para precaver-se contra retiradas por parte dos depositantes e aplicar orestante em empréstimos. A situação de um banco real, contudo, é mais complexa, mesmo se conceber-mos, para o momento, instituições que operem de forma muito simples, limitando suas formas de capta-ção a depósitos à vista e suas aplicações a empréstimos. Mesmo em um quadro como este, o bancoenfrenta um dilema: sua própria existência depende de sua credibilidade e esta, por sua vez, se apoia napercepção pelo público de que o banco é capaz de honrar suas obrigações, permitindo ao público resga-tar seus depósitos sempre que desejado. Por isto, é importante ao banco constituir reservas, mesmoquando exista a possibilidade de apelar a um emprestador de última instância.8 Por outro lado, cada realmantido em caixa significa a perda de uma oportunidade de obter receitas de juros sobre o empréstimonão feito, sacrificado pela necessidade de manter reservas. Há, assim, um dilema entre ser lucrativo(maximizando o volume de empréstimos) e ser seguro (maximizando a liquidez de seus ativos). A esco-lha entre ativos líquidos, mas pouco (ou nada) rentáveis e ativos rentáveis, mas ilíquidos, é o dilemacentral enfrentado pelo banco. Teorias da firma bancária se voltam principalmente para a solução desteproblema, mais complicado que o usualmente encontrado nos modelos microeconômicos de maximi-zação de lucros por empresas não financeiras.

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8. Apelar ao emprestador de última instância passa ao público uma imagem de dificuldades, o que, por si só, pode contribuirpara corroer a credibilidade da instituição.

16.4.1. TEORIA NEOCLÁSSICA DA FIRMA BANCÁRIA

A abordagem neoclássica da firma bancária a concebe como uma firma que busca minimizar custos emcondições em que esses custos são incertos, no sentido de que variam de acordo com uma distribuiçãode probabilidades conhecida.9 O “tamanho” do banco é conhecido e determinado exogenamente pelovalor que os depositantes decidem manter nesta instituição. O problema do banco é o que fazer com osrecursos captados, isto é, como distribuí-los entre ativos rentáveis e ativos líquidos, suposta a validadedo dilema mencionado anteriormente (ativos líquidos não são rentáveis e ativos rentáveis não são líqui-dos). Esta escolha é, assim, definida entre reservas em dinheiro, R, que nada rendem e empréstimos, E,que são remunerados pela taxa de juros, r. O valor do fluxo de retirada de depósitos é X, que ocorre comprobabilidade f (X). No caso dessas retiradas serem maiores que as reservas, isto é X > R, o banco pode-rá apelar ao emprestador de última instância, que vai lhe impor uma taxa de juros punitiva, p. É exata-mente para evitar pagar essa penalidade que o banco mantém reservas.

Quais são os custos a serem incorridos por esse banco? Para a parcela dos recursos que o banco de-cide manter sob a forma de reservas, o custo é dado pela receita de juros que o banco deixa de recebersobre o dinheiro que mantém parado. Isto é, o custo das reservas é o custo de oportunidade r.R, a receitaque obteria se tivesse aplicado R à taxa de juros r, ao invés de manter o dinheiro parado.

Para a parcela dos recursos que é emprestada, o custo incorrido pelo banco é dado pelo custo do em-préstimo a ser obtido junto ao Banco Central, isto é, p(X – R), se e quando isto ocorrer. O custo desta op-ção depende assim da probabilidade de que se revele uma deficiência de reservas. O problema pode en-tão ser formulado como se segue:

Custo de manter reservas R: rRCusto de fazer empréstimos E que diminuem R:� p(X – R)f(X)dxCusto total: rR + � p(X – R)f(X)dx

O banco tentará minimizar este custo total determinando a proporção ótima entre R e E, isto é, atra-vés da determinação de R.10 Pelas condições de primeira ordem:

d(rR+ � p(X – R)f(X)dx)/dR = 0 ∴

r = p � f(X)dx

Perdas são minimizadas quando o valor da penalidade, dadas as probabilidades de que uma situaçãode deficiência de reservas ocorra, é exatamente coberto pela taxa de juros sobre o empréstimo para cujarealização foi necessário sacrificar reservas. Em outras palavras, a distribuição entre R e E se fixa no pontoem que o retorno sobre o empréstimo marginal é igual ao custo marginal de se sacrificar reservas.

16.4.2. A TEORIA KEYNESIANA DA FIRMA BANCÁRIA: A PREFERÊNCIA

PELA LIQUIDEZ DOS BANCOS

A teoria keynesiana de bancos se origina dos escritos de Keynes sobre escolha de ativos, que fundamen-ta a teoria da preferência pela liquidez, discutida em mais detalhes no Capítulo 3. Aplicada às escolhasdos bancos, a teoria de Keynes permite tratar de situações em que as alternativas disponíveis são mais

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9. Estamos nos baseando aqui na survey realizada por E. Baltensperger, “Alternative approaches to the theory of the bankingfirm”, Journal of Monetary Economics, 1980. Outro excelente guia para esta literatura é dado por Anthony Santomero, “Mo-deling the banking firm”, Journal of Money, Credit and Banking, novembro de 1984.10. Como o total R+E está predeterminado pelo valor dos depósitos, resolver este problema de minimização em relação a Rnos dá também o valor de E.

variadas do que sugere a dicotomia reservas/empréstimos. Além disso, nesta abordagem a atenção estávoltada para situações em que as incertezas são cambiantes e nem sempre são passíveis de descrição poruma função de distribuição de probabilidades.

Para keynesianos, a apresentação da escolha dos bancos como limitada a reservas e empréstimosfalseia em certo grau o dilema efetivamente enfrentado. O próprio Keynes já havia afirmado no inícioda década dos 1930 que os bancos raramente acumulam reservas em caixa, além daquelas que o BancoCentral eventualmente imponha. Já naquela época, apenas em circunstâncias extremas11 os bancosmantinham dinheiro ocioso. Em tempos modernos esta dicotomia seria ainda mais inadequada, dianteda variedade de ativos atualmente existentes que oferecem algum retorno e alto grau de liquidez ou demeios alternativos de defesa contra riscos, como, por exemplo, derivativos.12 Deste modo, este fato servede ponto de partida para a abordagem da preferência pela liquidez de bancos, como escreveu Keynes:

“O problema ante o banco não é quanto emprestar ... mas que proporção de seus empréstimos podeser feita com segurança nas formas relativamente menos líquidas.”13

Assim, para keynesianos a adequada formulação do problema não se dá pela apresentação de op-ções extremas (uma com toda liquidez e nenhuma rentabilidade em oposição à outra, rentável mas semnenhuma liquidez), mas pelo reconhecimento de que todas as opções relevantes para os bancos apre-sentam ambas as características em algum grau. Naturalmente, aqui como na teoria neoclássica, não en-contraremos alternativas que sejam, ao mesmo tempo, as mais rentáveis e mais líquidas porque isto tor-naria o problema trivial e a realidade nada tem de trivial. A questão, assim, para o banco é buscar umacomposição de carteira que atinja um equilíbrio entre a rentabilidade total e a liquidez do portfóliocomo um todo.

Keynes mesmo exemplificou sua abordagem a partir de uma situação em que um banco se vê diantede três opções de ativos: 1. empréstimos de curtíssimo prazo (como os do chamado overnight no Bra-sil); 2. aquisição de títulos, públicos ou privados; e 3. empréstimos a clientes.

O primeiro grupo englobaria os ativos de maior liquidez, dada sua curtíssima maturidade. Essasaplicações estão sujeitas a certos riscos, como, por exemplo, o de calote, mas sua disponibilidade é pra-ticamente imediata. Por isso mesmo, a taxa de juros que incide sobre esse tipo de aplicação é normal-mente muito baixa. O segundo grupo, aquisição de títulos, refere-se a ativos usualmente dotados degrande liquidez, mas sujeitos a riscos maiores que os do primeiro grupo. Isto porque, tratando-se de pa-péis de maior maturidade, a possibilidade de conversão em dinheiro, para fazer frente, por exemplo, ainesperadas demandas por parte de depositantes dependerá da demanda por eles nos mercados organi-zados, como bolsas de valores, por exemplo. Esses papéis têm liquidez significativa mas estão sujeitosao risco de capital, isto é, o risco de que o preço que o papel alcança no mercado num dado momentoseja inferior àquele pago pelo banco ou ao valor de face do título. Em outras palavras, se o papel pudes-se ser mantido até sua data de redenção, seu comprador saberia o quanto receberia por ele. É isso, exata-mente, o que o torna menos líquido: antes da data de resgate, o valor do título depende de sua demanda acada momento. Bancos que mantenham títulos em seu balanço aceitam o risco de ter que liquidá-los an-tes do desejado, vendendo-os por preço inferior ao pago. Para compensar este risco superior, este tipode aplicação deve oferecer uma taxa de retorno esperada superior ao dos empréstimos no overnight.

Finalmente, o terceiro tipo de ativo, empréstimos a clientes, é o menos líquido de todos. Com estetipo de aplicação, o banco compromete seus recursos até a data contratada para que a dívida seja salda-da. O banco não pode antecipar a liquidação da dívida apenas porque depositantes querem resgatar de-pósitos. Por outro lado, é também difícil vender esses empréstimos a outros bancos, por questões queserão discutidas nos próximos capítulos.14 Assim, com esse tipo de aplicação o banco submete-se aomaior dos riscos e por isso demandará dos tomadores de empréstimos o pagamento de taxas de jurosmais elevadas, além de exigir, normalmente, outras garantias adicionais.

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11. A Grande Depressão dos anos 30 parece ter sido uma dessas ocasiões.12. Derivativos foram apresentados no Capítulo 15.13. A Treatise on Money, volume 2, página 47.14. Na verdade, como se verá no Capítulo 20, empréstimos têm sido crescentemente objeto de negociação em mercados secun-dários.

A escolha entre esses três tipos de ativos dependerá das expectativas dos bancos com relação ao re-torno esperado de cada um e da avaliação que faça dos riscos associados a cada alternativa. Estes, porsua vez, não são descritos, como na abordagem neoclássica, por distribuições fixas de probabilidades,mas variam eles próprios com a conjuntura econômica. Assim, por exemplo, os riscos associados à con-cessão de empréstimos a clientes dependem em grande parte do ciclo econômico. Em períodos de pros-peridade e de otimismo generalizado, esses riscos diminuem, enquanto as vantagens dos primeiros doistipos de aplicação empalidecem. O contrário se dá nas fases de recessão. Deste modo, as escolhas ativasdos bancos dependem do estado de expectativas dos dirigentes dessas instituições.

Mas o banco da teoria da preferência pela liquidez não faz escolhas apenas com relação ao seu ati-vo. Ele também pode escolher entre os diversos tipos de obrigações que pode emitir para financiar suasatividades. Na verdade, a atratividade de cada categoria de ativos depende ela própria do perfil de obri-gações que marque o passivo dos bancos. Se estes captam, por exemplo, principalmente por intermédiode depósitos à vista, sua necessidade de liquidez é maior do que se captasse através de depósitos a pra-zo, que permitem ao banco saber quando e quanto terá de pagar a seus depositantes. Deste modo, de-pendendo da natureza dessas obrigações, certos ativos serão preferíveis a outros, independentementede qual seja o estado de expectativas dos banqueiros a respeito do retorno de cada um.

O banco keynesiano, portanto, tem à sua frente um dilema bem mais complexo do que a simplesalocação dos recursos obtidos como depósito à vista entre empréstimos e reservas. Um balanço maisadequado para este caso seria o apresentado no Quadro 16.2.

QUADRO 16.2

Ativo Passivo

Caixa 30

Títulos públicos de curto prazo 70

Empréstimos no overnight 50

Títulos de longo prazo 50

Empréstimos a clientes 200

Capital fixo 100

Depósitos à vista 300

Depósitos a prazo 100

Patrimônio líquido 100

Total 500 Total 500

16.5. BANCO, RISCOS E HEDGE

A concepção tradicional do banco enfatizava seu papel de intermediário das poupanças do público, istoé, de receptor da poupança das famílias que seria, então, canalizada para as empresas, os consumidoresou mesmo o governo, desejosos de financiar gastos superiores à sua renda corrente. Como se verá na se-ção seguinte, em uma economia capitalista como as que existem há pelo menos três séculos, o bancocomercial nunca foi realmente um mero intermediário de poupança. A função bancária sempre foi me-lhor aproximada como sendo a de criador de crédito (e de moeda). Nas últimas décadas, contudo, mes-mo que esta última caracterização não tenha deixado de ser verdadeira, ela pode ter-se tornado menosrelevante para a compreensão do papel e do comportamento atuais dos bancos. Muito mais adequadoseria dizer que instituições financeiras são principalmente administradores de risco. O que distingue osbancos das outras instituições financeiras (apesar de elas estarem se tornando realmente cada vez maisparecidas umas com as outras) é a natureza dos riscos que administram, assim como certas de suas ca-racterísticas institucionais, muitas das quais são heranças do passado que tenderão a ser abandonadas àmedida que se afirma a percepção das mudanças por que tem passado este tipo de instituição.

Um banco comercial pode ser visto como uma instituição que emite um tipo específico de obriga-ção, cuja mais notável característica é sua maturidade. Bancos comerciais emitem obrigações sob a for-ma de depósitos à vista, que nada mais são do que um empréstimo que o público faz ao banco na expec-

Bancos Comerciais 235

tativa de poder resgatá-lo a qualquer momento que deseje, sem necessidade de aviso prévio e sem o ris-co de incorrer em punições. Assim, para o credor do banco, o depositante, a principal característica dodepósito é sua liquidez, isto é, sua capacidade de se converter em moeda legal, sem risco e sem perda devalor, a qualquer momento que se deseje. É por esta razão que, aos olhos do público, depósitos são tão“bons” quanto o dinheiro criado pelo Banco Central.

Para o banco, porém, o depósito à vista é apenas uma forma de captação, que tem vantagens e desvan-tagens em relação a outros canais de captação. A vantagem do depósito à vista é seu custo relativamentebaixo. Na maior parte das economias capitalistas, exceto nos períodos de inflação persistente, depósitos àvista não são remunerados, ou, pode-se dizer, são “remunerados” apenas indiretamente, pelos serviçosque o banco presta aos depositantes.15 Isto não significa, naturalmente, que depósitos não impliquem cus-to aos bancos. É preciso administrá-los, processar cheques e outras movimentações, manter agências efuncionários para atendimento ao público etc. Se depósitos à vista são ou não formas mais baratas de cap-tação de recursos que outras alternativas é uma questão a ser examinada a cada momento.

De qualquer modo, para o banco depósitos à vista são uma forma de captação que, em tese pelo me-nos, está sujeita a riscos bastante peculiares. O primeiro desses riscos é representado, naturalmente,pela possibilidade de um número excessivamente grande de depositantes decidirem sacar seus depósi-tos ao mesmo tempo. Em condições normais, esta é uma situação improvável, mas em certas conjuntu-ras este risco se torna muito grande. Por exemplo, se se espalham rumores de que o sistema bancário deum país está à beira de uma crise, podem ter lugar as chamadas corridas bancárias, que nada mais sãodo que a coincidência de um número excessivo de demandas de saque de depósitos em um curto espaçode tempo. Mesmo se deixarmos de lado as corridas bancárias, fenômenos extremos e de ocorrência re-lativamente rara, pode haver coincidências de saques de menor vulto suficientes para ameaçar a liqui-dez de uma instituição bancária.

Assim, bancos comerciais são antes de mais nada distintos pela natureza de suas obrigações (ou de parteimportantes delas) que os tornam vulneráveis à “cobrança” inesperada desses recursos. Como observouHyman Minsky, bancos comerciais vivem sob a ameaça de ter que refinanciar suas dívidas todos os dias.Este risco, por sua vez, molda as escolhas ativas do banco. É por sua causa que bancos comerciais mantêmreservas primárias e secundárias, evitam a compra de ativos de maturidades desproporcionalmente longas, eadministram continuamente os riscos de crédito, mercado e liquidez que cercam seus portfólios.16

Naturalmente, bancos podem diversificar suas fontes de captação para reduzir o risco de retiradasexcessivas. Depósitos a prazo têm um custo explícito superior aos depósitos à vista, já que pagam jurosaos aplicadores, mas dão ao banco em troca o conhecimento prévio das datas de resgate. A colocação depapéis no mercado de títulos é outra possibilidade de captação, com custos e riscos diferenciados. Poroutro lado, à medida que se diversificam as fontes de captação, abrem-se novas possibilidade de aplica-ção também. A decisão de portfólio dos bancos se torna mais e mais complexa, no que é chamado deadministração de ativos e passivos.

Com a crescente diversificação da atividade bancária, o banco se torna crescentemente especializa-do na administração dos riscos que podem afetar seus rendimentos. Ao mesmo tempo, sua especificida-de em relação a outras instituições financeiras tende a desaparecer. Como administrador de riscos emgeral, um banco comercial se distingue cada vez menos de um banco de investimento, de uma compa-nhia financeira ou de uma cooperativa de crédito. Sua especificidade repousa no caráter único do seupassivo marcado pela existência de dívidas à vista e pela necessidade que isto coloca do estabelecimen-to de uma estratégia de defesa (hedge) que enfatize a disponibilidade de, ou a facilidade de acesso a,meio circulante. Assim, as reservas em moeda ou em ativos de alta liquidez, apesar de seu baixo rendi-mento, são características intrínsecas às estratégias de hedge dessas instituições. A preocupação com li-quidez é, assim, inerente à natureza da instituição bancária.

ELSEVIER236 Bancos Comerciais

15. Entre esses serviços estão a guarda dos recursos dos depositantes, o processamento de seus pagamentos etc.16. Risco de crédito é dado pela probabilidade de calote por parte do tomador de um empréstimo; risco de mercado refere-se àpossibilidade de ter que vender ativos em mercados em baixa ou evanescentes; risco de liquidez é dado pela probabilidade deencontrar fontes de financiamento de curtíssimo prazo fechadas no momento em que o banco delas precisar.

16.6. INTERMEDIÁRIO DE POUPANÇA OU CRIADOR DE CRÉDITO

Como observamos na seção anterior, bancos comerciais são frequentemente descritos como interme-diários de poupança. Essa concepção não é propriamente incorreta, se olharmos cada banco isolada-mente, mas induz a erros quando pensamos a operação do sistema bancário como uma generalizaçãodaquela descrição. Em particular, ela induz a uma visão passiva dos bancos, como instituições que “es-peram” que o público realize depósitos para poder transferi-los para tomadores, o que não correspondepropriamente à realidade, como vimos no exemplo dado na seção 16.3 deste capítulo.

Na verdade, podemos conceber duas “classes” de depósitos, de acordo com o modo pelo qual são cria-dos. Depósitos primários são aqueles que correspondem mais de perto à caracterização do banco comointermediários de poupança. Eles são criados quando alguém resolve, sem nenhuma condição prévia, fa-zer uma “aplicação” em um banco sob a forma de depósito. Naturalmente, depósitos podem ser criadosdesta maneira quando o público tem papel-moeda à sua disposição e prefere substituí-lo por depósitos àvista ou quando transfere recursos que já mantinha depositados em algum banco para outro. No primeirocaso, a criação de depósitos primários está limitada pela disponibilidade de meio circulante e pela prefe-rência do público pela manutenção de depósitos. No segundo caso, não há criação de depósitos primários,apenas uma transferência entre instituições bancárias. Assim, se a preferência entre meio circulante e de-pósitos é dada, o volume de depósitos primários só pode crescer se o governo cria mais meio circulante.Pode-se, portanto, dizer que a criação de depósitos primários é exógena ao sistema bancário.

Depósitos secundários são aqueles criados endogenamente pelo sistema bancário, isto é, em resul-tado da operação dos próprios bancos. Como visto na seção 16.3, depósitos podem ser criados quandoum banco concede empréstimos e credita recursos na conta corrente do tomador. Depósitos são “pro-messas” de entrega de meio circulante. Se o público aceita estas promessas como substitutos perfeitosdo próprio meio circulante, é possível criar depósitos mesmo sem se ter em caixa o meio circulante cor-respondente aos depósitos existentes. Este é, como vimos, aliás, o princípio em que se baseia o sistemade reserva fracionária. Como as necessidades do público especificamente de meio circulante são limita-das, na maior parte do tempo opera-se com “promessas” de resgate em meio circulante, transferindo-sedepósitos de um titular para outro, quando transações são feitas. Por isto, um banco que goze da confian-ça do público pode emprestar um dinheiro que, na verdade, não possui em caixa, nem precisa esperarque alguém o deposite. Basta declarar ao cliente que, se necessário, poderá converter suas promessasem moeda legal, que esta promessa será usada, ela própria, como meio de pagamento.

É exatamente por causa da possibilidade de os bancos “criarem” depósitos que reservas compulsó-rias ou outros meios de coibir essa capacidade são impostos por reguladores de modo a desestimularpossíveis abusos e consequentes crises de confiança. Reservas compulsórias funcionam como freiosque limitam a capacidade que um banco tenha de criar depósitos, que, de outra forma, seria infinita.

Como bancos comerciais, criadores de depósitos à vista, são as únicas instituições financeiras ca-pazes de criar um substituto perfeito para o meio circulante, eles se comportam mais como criadores decrédito do que como intermediários de poupança. A capacidade de um banco em conceder crédito, e osdepósitos correspondentes, está, em princípio, limitada pelas reservas de que dispõe, não da poupançado público. Para uma dada preferência do público pela manutenção de depósitos e de meio circulanteem seu poder, a capacidade de criação de crédito e de depósitos por parte dos bancos está limitada ape-nas pelo seu próprio interesse e pelas reservas em moeda legal, criadas pela autoridade monetária.

16.7. BANCOS E POLÍTICA MONETÁRIA

Porque bancos podem criar moeda, sob a forma de depósitos à vista, torna-se impossível, em uma eco-nomia moderna, formular ou discutir política monetária sem examinar o comportamento do setor ban-cário. Política monetária, como mostrado nos Capítulos 12 e 13, se faz exatamente através do sistemabancário. Bancos centrais atuam através da criação (ou destruição) de reservas bancárias, contando com

Bancos Comerciais 237

a operação subsequente do multiplicador para transmitir ao público em geral os sinais gerados pela au-toridade monetária. O sucesso de uma política monetária depende, crucialmente, do grau em que ban-cos aceitam e transmitem aqueles sinais.

Assim, se a autoridade monetária busca restringir a atividade, “esfriando” a economia para, porexemplo, combater pressões inflacionárias ou estabilizar a taxa de câmbio, ela o faz através de umacontração das reservas disponíveis aos bancos (por exemplo, elevando seu custo para os bancos, atra-vés de um aumento da taxa de juros no mercado de reservas), contando com que o multiplicador bancá-rio se mantenha relativamente estável. Os bancos, porém, podem reduzir muito a eficácia de uma tal po-lítica se a uma redução da disponibilidade de reservas responderem com uma redução de suas reservasvoluntárias. Neste caso, a tentativa do Banco Central em reduzir a oferta de moeda será contrabalança-da pela iniciativa dos bancos de aumentarem o multiplicador de depósitos.

Portanto, o setor bancário não é um elo neutro entre poupadores e investidores ou mesmo entre asautoridades monetárias e o resto da economia. Porque bancos têm a capacidade de criação de depósi-tos – se isto lhes for atraente ou lucrativo – estas instituições podem afetar substantivamente a opera-ção da economia e a eficiência da política econômica. Este ponto é explorado em mais detalhe nosCapítulos 7 a 10.

RESUMO

Bancos comerciais constituem, por qualquer critério, o mais importante tipo de instituição financeira existente emeconomias modernas de mercado. Embora não seja simples definir com precisão um banco, propusemos a noçãode que bancos são instituições financeiras cuja forma de captação principal seja a aceitação de depósitos. Bancoscomerciais, por sua vez, caracterizam-se pela aceitação de depósitos à vista como forma típica de captação. Tendoeste tipo de obrigação como principal item de seu passivo, bancos comerciais veem suas opções ativas restritasprincipalmente a ativos de curta duração ou alta liquidez.

Bancos comerciais modernos são organizados de acordo com o princípio da reserva fracionária. Essas institui-ções, assim, mantêm reservas de caixa para atender a possíveis resgates de depósitos. No entanto, como depósitosà vista são em geral substitutos superiores ao meio circulante, resgates de depósitos ocorrem, em condições nor-mais, apenas para a realização de transações de pequeno valor. Como a maior parte dos valores em depósito é ra-ramente (ou nunca) resgatada, os bancos podem operar na suposição de que este tipo de passivo, apesar de à vista,tem duração indefinidamente longa. Essa característica dá aos bancos o privilégio de criação de depósitos paraalém de sua capacidade efetiva de resgate, dando origem ao multiplicador bancário.

A operação eficiente dos bancos, de qualquer forma, depende de como seu balanço é determinado, combinan-do-se da forma mais adequada a natureza, prazos e termos das obrigações passivas que emite com as característi-cas dos ativos que adquire. De fundamental importância, neste particular, é a adequada percepção dos riscos a quea instituição está sujeita.

TERMOS-CHAVE

� Banco� Instituição Depositária� Depósitos a Prazo� Externalidades� Reserva Fracionária� Multiplicador Bancário� Risco de Liquidez� Administração de Risco� Depósitos Primários� Intermediação de Poupança

� Banco Comercial� Depósitos à Vista� Reputação� Reservas� Encaixe� Risco de Capital� Risco de Crédito� Hedge� Depósitos Secundários� Criação de Crédito

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BIBLIOGRAFIA COMENTADA

J. M. Keynes. A Treatise on Money, vol. 2, D. Moggridge (ed.). The Collected Works of John Maynard Keynes.MacMillan, 1971.

Apesar de antigo (o livro foi publicado em 1931), o trabalho de Keynes ainda é certamente um dos mais impor-tantes tratados já escritos sobre a operação de bancos, e é leitura obrigatória a qualquer um que queira se aprofun-dar no assunto.

R. Smith e I. Walter. Global Banking. Oxford University Press, 1997.Os autores são economistas de uma das mais importantes instituições dedicadas ao estudo da operação de insti-

tuições financeiras, a New York University. Esta obra é leitura fundamental para quem quer conhecer o modo deoperação dos grandes bancos modernos de atuação internacional.

Jan Kregel, The Past and Future of Banks, Bancaria Editrice, Quaderni di Ricerche, n. 21, 1998.Apesar de difícil de encontrar, este pequeno livro de Kregel nos dá não apenas uma visão da evolução dos siste-

mas bancários de países como os Estados Unidos e a França, como discute alguns dos dilemas que se apresentamatualmente no desenvolvimento dos bancos comerciais. A leitura recompensa amplamente o esforço de busca pelaobra. O endereço da editora italiana, onde o livro pode ser pedido, é Piazza Del Gesù, 49 – 00186 Roma, Itália.

Bancos Comerciais 239

INSTITUIÇÕES FINANCEIRASBANCÁRIAS E NÃO BANCÁRIAS

INTRODUÇÃO

No capítulo anterior discutimos a operação de bancos comerciais. Encontramos bancoscomerciais em praticamente qualquer economia suficientemente desenvolvida para per-mitir pelo menos as operações financeiras mais simples e essenciais. Mesmo nos sistemasfinanceiros mais sofisticados, bancos comerciais ainda permanecem sendo o tipo de inter-mediário financeiro mais importante, do ponto de vista do volume de recursos que movi-mentam, do seu alcance em termos de clientes etc. No entanto, convivem com bancoscomerciais muitas outras instituições financeiras, com linhas de atuação diversas. Na ver-dade, coexistem, ou podem coexistir em um mesmo sistema, vários canais e instrumentosde intermediação financeira. A operação nesses diversos segmentos do sistema financei-ro, como veremos no Capítulo 18, pode ser responsabilidade de empresas especializadasno fornecimento de um tipo específico de serviço financeiro, ou pode ser efetuada por ins-tituições diversificadas, como os chamados bancos universais. É mais produtivo, no en-tanto, tratar cada segmento separadamente, como funções a serem exercidas no mercadofinanceiro, que podem ser desempenhadas ou não por uma mesma instituição. Assim,neste capítulo, partiremos da distinção entre funções bancárias e não bancárias, para co-nhecer esses diversos segmentos, preparando-nos para, mais à frente, examinar as formascomo o suprimento de serviços financeiros é efetivamente organizado nas principais eco-nomias capitalistas e como o setor tem evoluído em anos recentes.

17.1. BANCOS E INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS

NÃO BANCÁRIAS

Bancos comerciais, apesar de sua importância, não são o único tipo de banco a operar emmodernas economias capitalistas. Na verdade, como se verá no Capítulo 20, há evidênciasde que este talvez seja até mesmo o tipo de intermediário mais ameaçado de obsolescênciae extinção em um futuro relativamente próximo. Outros tipos de bancos, como, por exem-plo, bancos de investimento, são julgados instituições para os quais se abre um futuromais promissor.

CAPÍTULO

17

No capítulo anterior, nos colocamos as questões: o que é, realmente, um banco? Como se distinguebancos em geral (e não apenas bancos comerciais) de outros tipos de instituição financeira?

A resposta não está na classe de mercados financeiros em que os bancos atuam, em oposição ainstituições não bancárias. Bancos comerciais atuam no mercado de crédito, mas também o fazemintermediários como sociedades de crédito, financiamento e investimento, que não são bancos. Poroutro lado, bancos de investimento, por exemplo, não atuam no mercado de crédito e, sim, no mer-cado de capitais.

Na verdade, a distinção entre instituições financeiras bancárias e não bancárias é, até certo ponto,artificial e arbitrária. Em princípio, como visto no Capítulo 16, a diferença estaria no fato de que ban-cos, em geral, captam recursos através de depósitos, enquanto instituições financeiras não bancárias ofazem pela colocação de títulos. Essa contraposição entre depósitos e títulos, como se verá, tambémvem se tornando obsoleta, o que serve de apoio ao argumento de que a diferenciação entre instituiçõesbancárias e não bancárias pode ser uma perda de tempo, mais explicada pela inércia das categorias lega-is estabelecidas no passado, que pela racionalidade ou operacionalidade econômica. Seguiremos, dequalquer modo, o uso tradicional, respeitando aqui essa distinção, deixando para uma discussão poste-rior o exame de sua relevância.

17.2. BANCOS

No sentido proposto na seção anterior, bancos são o tipo genérico de instituição financeira autorizada acaptar seus recursos, no todo ou em parte, através da aceitação de depósitos. Depósitos são obrigaçõesnominativas que, em princípio, não geram títulos que possam ser negociados. Depósitos são diferencia-dos de acordo com sua maturidade: 1. depósitos à vista são resgatáveis a qualquer momento, sem prévioaviso e sem qualquer penalidade, sendo normalmente transferíveis por cheque; 2. depósitos a prazo sãoresgatáveis apenas em datas pré-contratadas; 3. depósitos de poupança são resgatáveis a qualquer mo-mento, usualmente após um prazo de carência inicial, mas, dependendo da ocasião de retirada, podemeventualmente sofrer restrições, como a perda dos juros atribuídos a período incompleto de retenção, enão são transferíveis por cheque.

Depósitos à vista, como vimos, constituem-se em uma forma de obrigação que se tornou, em todasas economias capitalistas mais ou menos avançadas, um substituto superior para a moeda legal emitidapelo governo. Essa característica dos depósitos à vista se explica tanto pela sua maturidade, que é prati-camente instantânea, quanto pelas garantias implícitas e explícitas que cercam essas obrigações. Os ou-tros tipos de depósito não são meios de pagamento e, por isso, não são aceitos como substitutos da moe-da legal. Por esta razão, as instituições financeiras que os criam têm de estar preparadas para resga-tá-los em sua integralidade nas ocasiões contratadas. Portanto, não basta que mantenham reservas ape-nas para retiradas eventuais, como no caso dos bancos comerciais. É preciso que estejam preparadaspara retiradas integrais nas datas de vencimento; e, por isso, para essas instituições financeiras não sedefine qualquer multiplicador de depósitos.

Os principais tipos de instituições bancárias, isto é, instituições depositárias, são o banco comer-cial, o banco de investimento, o banco de poupança e as cooperativas de crédito.

17.2.1 O BANCO COMERCIAL

A lógica muito peculiar de operação de um banco comercial foi extensivamente examinada no Capítulo16. Aqui queremos apenas descrever, para efeito de comparação com os outros tipos de instituição fi-nanceira, suas características institucionais. Deste ponto de vista, uma classe de instituição financeirapode ser definida a partir do mercado em que atua, das operações que está autorizada a desempenhar,das restrições regulatórias sobre sua atividade, dos riscos que corre e, quando for o caso, dos elementosda rede de segurança que a cerca.

Instituições Financeiras Bancárias e Não Bancárias 241

O banco comercial atua na intermediação entre depositantes e tomadores de crédito, confinando-seusualmente ao segmento de curto e médio prazos. Bancos comerciais podem, e frequentemente o fazem,captar recursos não apenas como depósitos à vista, mas também por depósitos a prazo. Esses recursos po-dem ser utilizados pelo banco para fazer aplicações de prazo mais longo. Por outro lado, as necessidadesmais imediatas de liquidez são normalmente satisfeitas no mercado interbancário de reservas, onde bancoscom excedentes temporários de reservas podem emprestá-los às instituições com deficiência, por prazos ge-ralmente muito curtos, medidos em termos de dias. Caso o mercado interbancário não seja suficiente, ou nãoesteja disposto a financiar, por qualquer razão, deficiências temporárias de liquidez, o banco em dificulda-des pode ainda recorrer ao emprestador de última instância, normalmente o Banco Central do país.

Dada a natureza do seu passivo, constituído principalmente de obrigações de curto prazo, incluin-do-se as de curtíssimo prazo, como os depósitos à vista, suas escolhas ativas, como vimos, são igual-mente restritas a ativos de menor maturidade. Essa restrição pode ser determinada pela prática dos pró-prios bancos ou pode ser imposta por regulação explícita. Fundamentalmente, bancos comerciais apli-cam seus recursos no financiamento das necessidades de capital de giro de empresas comerciais e in-dustriais. Empresas comerciais necessitam de recursos para formar os estoques cuja colocação no mer-cado constitui sua fonte de receita. Empresas industriais precisam de dinheiro para pagar trabalhadorese comprar matérias-primas enquanto se desenrola seu processo de produção. Ambas as necessidades,isto é, das empresas comerciais e das industriais, são supridas pelos bancos. Esses tipos de empréstimossão os que melhor se adequam ao perfil dos passivos bancários: são relativamente seguros, porque nor-malmente garantidos pelos estoques adquiridos pelas firmas tomadoras; e são de recuperação rápida,porque dependem apenas de que se complete o período produtivo ou de circulação de mercadorias.Bancos adquirem ainda títulos públicos, seja como investimento, seja para constituir reservas secundá-rias, por causa de sua liquidez, e, quando permitido, títulos privados. O balanço típico de um banco co-mercial seria então um pouco mais complexo que o apresentado no Quadro 16.2 no capítulo anterior:

QUADRO 17.1

Ativos Passivos

Caixa

Títulos Públicos de Curto Prazo

(reservas secundárias)

Depósitos Compulsórios no Banco Central

Empréstimos no Interbancário

Títulos Públicos de Longo Prazo

Empréstimos a Empresas Industriais

Empresas Comerciais

Empresas Agrícolas

Consumidores

Empréstimos a outras IF

Imóveis

Equipamentos

Depósitos à Vista

Depósitos a Prazo

Empréstimos do Banco Central

(Redesconto)

Empréstimos captados no Interbancário

Patrimônio Líquido

Total Total

Note-se a inclusão, no ativo, da conta “Empréstimos a outras instituições financeiras”. Essa é umaconta diferente da “Empréstimos no Interbancário”. Trata-se aqui de registrar uma das funções maisimportantes do banco comercial, que é a de dar liquidez às operações de praticamente todas as outrasinstituições financeiras, à exceção dos bancos de poupança e das cooperativas de crédito. Como vere-mos, muitas instituições captam recursos através da colocação de papéis de sua própria emissão no mer-cado. Nem sempre é possível, porém, sincronizar a colocação de papéis no mercado com as demandasde financiamento que são feitas àquelas instituições. Nessas ocasiões o papel do banco comercial é es-

242 Instituições Financeiras Bancárias e Não Bancárias ELSEVIER

sencial para viabilizar o desempenho da atividade, adiantando recursos a essas instituições, de modo si-milar a um “empréstimo-ponte”, para que elas possam satisfazer as demandas por recursos que se lheapresentam ainda que suas próprias formas de captação não tenham se concretizado. Nas seções corres-pondentes aos outros tipos de instituição financeira identificaremos mais precisamente o modo peloqual o crédito ofertado pelos bancos comerciais serve para apoiar as operações não só de outros seg-mentos do mercado de crédito (como, por exemplo, o financiamento à compra de bens de consumo du-rável por companhias financeiras), como também dos segmentos do mercado de títulos (como no casodos bens de investimento).

Bancos comerciais são, normalmente, talvez o tipo de empresa mais regulada numa economia demercado moderna. Mesmo as recentes ondas de desregulação financeira, que vêm se desenrolando des-de os anos 80, mantiveram a operação deste tipo de instituição sujeita a restrições importantes sobresuas atividades e a um regime de supervisão relativamente frequente. A regulação e a supervisão a quebancos comerciais estão sujeitos visam principalmente a preservar a integridade do sistema de paga-mentos apoiado na transferência de depósitos à vista e o fazem através do acompanhamento e limitação,quando desejado, dos riscos corridos pelo sistema bancário. Em compensação, vantagens são ofereci-das a essas instituições sob a forma de redes de segurança, como o emprestador de última instância e osseguros de depósitos, que tornam a aplicação de recursos nessas instituições, especialmente dos saldostransacionais, muito atraente para o cliente, reduzindo o custo de captação para os bancos. A regulaçãoe a supervisão buscam evitar que os bancos joguem em demasia com esses recursos, pondo em risco suasolvência e, consequentemente, os depósitos neles realizados.

Instituições Financeiras Bancárias e Não Bancárias 243

Bancos comerciais deixaram de ser a principalclasse de instituição financeira no Brasil a partirde 1988. Naquele ano, por resolução do BancoCentral do Brasil, as instituições financeiras queoperassem em certos segmentos, entre os quaisespecialmente as operações de banco comerciale de banco de investimento, passaram a ser au-torizadas a se organizar sob a forma de bancosmúltiplos, numa forma semelhante àquela en-contrada em muitos países, notadamente na Eu-ropa ocidental, conhecida como banco universal.Diferentemente do banco comercial puro, ban-cos múltiplos podem operar em vários segmen-tos do mercado financeiro.

Nos anos seguintes à criação do banco múlti-plo, praticamente todos os grandes bancos co-merciais acabaram por se transformar em ban-cos universais. Por esta razão, hoje só encontra-ríamos ainda organizados como bancos comer-ciais pequenas instituições de importância regio-nal ou ocupantes de pequenos nichos de merca-do. Assim, se quisermos conhecer mais detalha-damente a organização de bancos comerciais noBrasil do ano 2000 teremos que procurar suascaracterísticas em meio a balanços mais inclusi-vos do que gostaríamos. A única instituição ban-cária a manter-se organizada formalmentecomo banco comercial é o Banco do Brasil, ape-sar da diversidade de suas atividades.

O balanço de qualquer banco é organizadode acordo com normas estabelecidas peloBanco Central e registra operações em extre-mo detalhe. Além disso, a maioria dos bancosé organizada como sociedade anônima, o queos obriga a publicar demonstrativos contábeisperiodicamente, ainda em forma mais deta-lhada do que seria prático reproduzir aqui.Assim, vamos apresentar, como ilustração, obalancete do Banco do Brasil de maio de 1999,de forma condensada, extraída do balancetepublicado na Revista Bancária Brasileira de ju-lho de 1999.

Talvez a característica mais notável deste ba-lancete seja a pequena participação dos depósi-tos à vista no total das fontes de financiamentodo Banco do Brasil, especialmente quando com-parados com os outros tipos de depósitos. Emgrande medida, isso reflete a prática estabeleci-da durante o período em que o país viveu umasituação de inflação elevada, em que os deposi-tantes fugiam dos depósitos à vista em busca dequalquer forma de aplicação que compensassea perda inflacionária. Por outro lado, no Brasil,depósitos compulsórios sobre depósitos à vistasão particularmente pesados, induzindo bancosa estimularem os clientes a aplicar seu dinheirode outras formas, ao invés de mantê-lo comodepósitos à vista.

BALANÇO DE UM BANCO COMERCIAL BRASILEIRO

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Os riscos corridos por um banco comercial são, principalmente, o risco de crédito e o risco de liqui-dez. O risco de crédito refere-se à probabilidade de calote por parte dos tomadores de crédito. O risco deliquidez é medido pela perda esperada na venda de ativos sob pressão. Essas vendas poderiam ser ne-cessárias para fazer frente a demandas dos depositantes por retiradas para além das disponibilidades lí-quidas dos bancos. O apelo ao emprestador de última instância, como o próprio nome sugere, só é feitopelo banco quando não há alternativas, e entre estas se conta a liquidação de ativos, isto é, a venda deativos para cobrir, com sua receita, as obrigações que estão sendo cobradas. Como não se pode escolhera hora em que os depositantes desejarão resgatar suas aplicações, é possível que a venda de ativos tenhade ser feita em momentos desfavoráveis, implicando perdas para o banco.

Lida-se com o risco de crédito através do desenvolvimento de sistemas de análise de demandasmais discriminantes e da exigência de garantias, como colaterais, que possam ser usadas para reduzirperdas em caso de fracasso do projeto sendo financiado. Já para tratar do risco de liquidez o que é neces-sário é o acompanhamento de índices de liquidez da instituição, como a relação entre ativos e passivos

244 Instituições Financeiras Bancárias e Não Bancárias

Balancete Patrimonial do Banco do Brasil(consolidado) de Maio/1999

Em milhares de reaisAtivo Circulante 79.850.331 Passivo Circulante 111.436.651Disponibilidades 3.036.701 Depósitos 64.411.008

Aplicações Interfinanceiras de Liquidez 23.474.230

à Vistade PoupançaInterfinanceiraa Prazo

9.794.76920.392.306

1.297.32532.926.608

Títulos e Valores Mobiliários 7.222.796 Captação no Mercado Aberto 14.970.917Relações Interfinanceiras 12.974.006 Aceites e Títulos 34.782Oper. de Crédito 15.912.215 Relações Interfinanceiras 2.638.298Leasing 10.098 Relações de Interdependências 559.888

Outros Créditos 16.362.457 Obrigações por Empréstimos 12.853.005

Outros Valores e Bens 856.700 Obrigações por Repasses Oficiais 4.617.619Realizável a Longo Prazo 59.368.030 Outras Obrigações 11.351.134Aplicações Interfinanceiras de Liquidez 262.527 Exigível a Longo Prazo 24.321.600Títulos e Valores Mobiliários 32.104.336 Depósitos 5.997.952Relações Interfinanceiras 10.978 Aceites e Títulos 717.930Oper. de Crédito 12.841.030 Obrigações por Empréstimos 4.188.663Leasing 112.483 Obrigações por Repasses Oficiais 4.922.760Outros Créditos 14.036.676 Obrigações por Repasses do Exter. 19.528Permanente 3.802.475 Outras Obrigações 8.474.747

Resultados de Exercícios Futuros 19.637Patrimônio Líquido 6.631.330Contas de Resultado 611.618

Total 143.020.836 Total 143.020.836

Outra característica interessante é a importância das aplicações financeiras no ativo do Banco doBrasil. Dentre o ativo de curto prazo (circulante) aplicações financeiras são quase tão importantesquanto as operações de crédito (ambos ligeiramente acima de R$ 30 bilhões). Também entre o reali-zável de longo prazo a importância das aplicações financeiras e em títulos e valores mobiliários é tãoimportante quanto as operações de crédito. Isto é, novamente, resultado do período de inflação altaem que o governo federal estimulava a absorção, por parte dos bancos, de títulos da dívida públicaemitidos para cobrir os elevados déficits fiscais verificados. Depois do Plano Real, apesar das expecta-tivas iniciais em contrário, a necessidade de colocação de títulos públicos prosseguiu com o crescimen-to dos déficits públicos em função da necessidade de servir aquela mesma dívida com elevadíssimastaxas de juros.

BALANÇO DE UM BANCO COMERCIAL BRASILEIRO

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de curta duração, a proporção dos investimentos que é mantida em ativos de maior liquidez (inclusivereservas secundárias) etc., além do desenvolvimento de instituições de retaguarda, como o emprestadorde última instância.

17.2.2 BANCOS DE INVESTIMENTO

Bancos de investimento têm pouco a ver com bancos comerciais, levantando dúvidas a respeito de se otermo “banco” tem realmente algum significado, já que ele pode ser aplicado a formas tão diversas deatuação. Este tipo de banco atua no mercado de capitais, não no crédito, e sua função é promover a colo-cação de papéis dos tomadores finais (empresas e governos) junto aos aplicadores finais.

A forma mais tradicional de operação do banco de investimento é pela subscrição de papéis que se-rão colocados no mercado pela primeira vez. A operação de subscrição consiste na compra pelo bancode investimento dos títulos emitidos pelo tomador, adiantando os recursos para este último, e mantendoos papéis em carteira para colocação posterior no mercado, quando suas condições de venda forem fa-voráveis. A função do banco de investimento, portanto, é permitir às empresas que desejam investir oua governos que têm planos de gasto poder fazê-lo na época que lhe seja mais favorável, ao invés de terque esperar que o mercado, isto é, os compradores finais de títulos, seja receptivo a essas emissões. Obanco de investimento permite o descasamento dessas datas, absorvendo temporariamente em sua pró-pria carteira os títulos emitidos, como ações, bônus, notas etc., para venda posterior.

A remuneração principal do banco de investimento que atue na subscrição de papéis é dada pela di-ferença entre seus preços de compra e venda. Os administradores desse tipo de instituição devem ser ca-pazes de prever com relativa eficiência as tendências dos mercados de capitais, para formar expectati-vas a respeito dos preços que esses títulos podem alcançar quando vendidos. Sobre esses preços apli-ca-se uma taxa de desconto, que consistirá no ganho do banco.

A aquisição e manutenção em carteira dos papéis subscritos pelo banco de investimento são finan-ciadas pela aceitação de depósitos a prazo ou pelo capital próprio reunido pelo banco, sob a forma, porexemplo, de venda de bônus de sua própria emissão. Mas se o banco de investimento existe para permi-tir a tomadores realizar seus investimentos na época adequada, sem ter que se preocupar em saber seesta seria também a época mais favorável à captação de recursos, o próprio banco de investimento podese ver numa situação em que a subscrição de uma determinada emissão tenha que se dar em uma dataque não seja aquela mais favorável para a instituição financeira colocar suas próprias obrigações. Este éum primeiro exemplo de como bancos comerciais apoiam outras instituições financeiras. A subscriçãodos papéis pode ser financiada com crédito ofertado por bancos comerciais, que será saldado quando obanco de investimento conseguir captar recursos pela colocação de suas obrigações.

A operação de subscrição de papéis descrita acima é, na verdade, bastante arriscada. O risco princi-pal a que o banco de investimento está sujeito neste caso é o risco de mercado. Esse risco consiste naprobabilidade de que o banco tenha superestimado as possibilidades futuras de absorção pelo mercadodos papéis retidos em carteira. Neste caso, o banco pode ver-se frente a duas alternativas bastante desa-gradáveis: 1. manter o papel em carteira por mais tempo do que o planejado, impedindo-o de recuperarsua liquidez e, portanto, de realizar novas operações; 2. liquidar os títulos aceitando as perdas que ummercado pouco receptivo possa impor.

Esses riscos crescem com o grau de volatilidade dos mercados, que tornam a evolução futura dospreços dos títulos menos previsível. Por isso, em anos recentes os bancos de investimento passaram amodificar em certo grau seu modo de atuação. Na verdade, passou-se a discriminar mais o tipo de toma-dor de recursos pelo seu grau de receptividade pelo mercado. Assim, para empresas que gozam de pres-tígio entre os investidores, que são consideradas seguras e lucrativas, o banco de investimento oferece,ao invés da subscrição, a corretagem de títulos. Neste caso, o banco não adquire os papéis, mas promo-ve sua colocação, reunindo os investidores interessados. Com isto, o banco de investimento evita o ris-co de mercado, o que torna os recursos mais baratos também para o tomador (que, em última análise, te-ria de arcar com o custo da incerteza crescente). Já os tomadores mais arriscados ver-se-ão diante de al-

Instituições Financeiras Bancárias e Não Bancárias 245

ternativas de ter que oferecer ao banco de investimento uma remuneração correspondente aos riscos demercado percebidos por este último, ou, mais provavelmente, buscar outras fontes de crédito. Em resul-tado, a operação dos bancos de investimento tornou-se mais segura à medida que subscrever papéis vaise tornando uma prática mais obsoleta. O outro lado dessa moeda, porém, é que correr menos riscos im-plica também ganhar menos, o que levou bancos de investimento a diversificar suas atividades, ofere-cendo serviços como assessoria e pesquisa, por exemplo, e, no caso de muitos deles, a transformar-seeles próprios em investidores, isto é, compradores de papéis no mercado secundário para constituiçãode carteira própria.

Como a forma de operação dos bancos de investimento se aproxima cada vez mais da de um presta-dor de serviços, um corretor de títulos, seu balanço tende a ser relativamente pouco informativo. É nassuas contas de receitas e despesas e seus demonstrativos de lucros e perdas que vamos encontrar umamelhor caracterização de suas atividades.

246 Instituições Financeiras Bancárias e Não Bancárias ELSEVIER

Como ressaltado neste capítulo, no caso de bancos de investimento o balanço patrimonial pode nãoser uma peça particularmente informativa. As contas de fluxos devem ser consultadas para que sepossa analisar melhor as características de uma instituição deste tipo. Infelizmente, as informaçõesque a instituição deve fornecer podem ser excessivamente sumárias, como é o caso aqui. Abaixo va-mos encontrar o balanço patrimonial e a demonstração do resultado do Banco Itaú de Investimento,de 30 de junho de 1999, conforme publicado na Revista Bancária Brasileira de julho de 1999.

Banco Itaú de Investimento S.A.Balanço Patrimonial de Junho/1999

Em milhares de reais

Ativo Circulante 69.738 Passivo Circulante 32.016Disponibilidades 14 Depósito a Prazo 22.010Aplicações Interfinanceirasde Liquidez 24.900

Obrig. por RepassesOficiais 0

Títulos e Valores 37.861 Outras Obrigações 10.006

Rel. Interfinanceiras 0Resultados de ExercíciosFuturos 19

Outros Créditos 6.603 Patrimônio Líquido 39.556Realizável a Longo Prazo 177Permanente 2.036

Total 71.591 Total 71.591

Como explicado neste capítulo, a principal fonte de recursos para bancos de investimento provém dedepósitos a prazo. Este banco não tem passivo de longo prazo, nem se utilizou, no período, de recur-sos oficiais. Os montantes obtidos foram aplicados principalmente no mercado financeiro.

Banco Itaú de Investimento S.A.Demonstração do Resultado do Semestre pela Legislação Societária

Em milhares de reais

Receitas da Intermediação Financeira 10.392Despesas da Intermediação Financeira –3.343Resultado Bruto da Intermed. Financeira 7.049Outras Receitas (Despesas) Operacionais –82Resultado Operacional 6.967Resultado Não operacional 0Resultado Antes da Tributação s/Lucro 6.967Impostos –2.081Lucro Líquido 4.886

CONTAS DE UM BANCO DE INVESTIMENTO BRASILEIRO

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17.2.3 BANCOS DE POUPANÇA

Bancos de poupança, como os bancos comerciais, atuam no mercado de crédito. Esses bancos ocupamum segmento específico, que é o financiamento da aquisição de imóveis, especialmente residenciais.Sua forma tradicional de operação, que se encontra em declínio desde os anos 70, consiste na aceitaçãode um tipo particular de depósitos, os depósitos de poupança (no Brasil chamados de cadernetas depoupança), como fonte de captação de recursos, para canalizá-los ao financiamento de compradores deimóveis, no tipo de contrato denominado hipoteca. Por esse tipo de contrato, o imóvel adquirido é ofe-recido, ele mesmo, como garantia do empréstimo. O tomador do empréstimo não se torna proprietáriodo imóvel senão quando a dívida é quitada.

O balanço de um banco de poupança que se dedicasse exclusivamente a esse tipo de função se-ria bastante simples. Ao lado de itens obrigatórios, como patrimônio líquido, imóveis e equipamen-tos etc., encontraríamos, no passivo, os depósitos de poupança, e no ativo as obrigações dos toma-dores de empréstimos hipotecários. Dada a liquidez relativamente alta dos depósitos de poupança,encontraríamos entre os ativos também contas destinadas a prover reservas para fazer frente a reti-radas de depósitos, além de, eventualmente, depósitos compulsórios. Assim, teríamos um balançocomo o do Quadro 17.2.

QUADRO 17.2Balanço de um Banco de Poupança

Ativo Passivo

Caixa

Títulos públicos de curto prazo

(reservas secundárias)

Empréstimos em carteira hipotecária

Imóveis e Equipamentos

Depósitos de poupança

Patrimônio Líquido

Total Total

Este tipo de instituição opera em meio a muitos riscos. Ao lado de riscos como o de crédito, isto é, aprobabilidade de calote por parte dos tomadores de empréstimos, que, no caso, são minimizados pelasregras mais claras de colateralização, onde o colateral é o próprio imóvel sendo adquirido, encontramosalguns riscos mais difíceis de administrar. O pior deles, responsável pela virtual liquidação desse seg-mento em vários países, é o risco de juros. O balanço de bancos de poupança é caracterizado pelo ex-tremo descasamento de maturidades entre ativos e passivos. Seus ativos são de longa duração, pois hi-potecas são necessariamente contratos de longo prazo (caso contrário, seria impossível aos tomadorespagar sua dívida), enquanto seu passivo, formado por depósitos de poupança, é de prazo potencialmen-te muito curto. Se as taxas de juros no mercado em geral sobem, este tipo de instituição sofre um sériorisco de falência, pois seu passivo se tornará imediatamente mais caro (se o banco quiser evitar perderdepósitos para outros tipos de instituição financeira), enquanto a rentabilidade de seu ativo pouco se al-terará (já que as taxas de juros estão já contratadas para o longo prazo).1 O risco de juros é minimizadoquando a economia como um todo é estável, sem pressões inflacionárias, por exemplo, que tornam altasde juros mais prováveis. Quando esta estabilidade desaparece, como ocorreu em todo o mundo nos anos70, este segmento é um dos primeiros a ser sacrificado.

Instituições Financeiras Bancárias e Não Bancárias 247

1. Na verdade, se altas de juros tornam-se muito prováveis, bancos de poupança tentarão impor aos tomadores hipotecas comtaxas de juros variáveis. Isto só resolve parcialmente o problema, pois tudo que ocorre é a transferência do risco de inadimplên-cia para o tomador. Não adianta poder cobrar juros maiores de tomadores que não terão como pagá-los.

248 Instituições Financeiras Bancárias e Não Bancárias ELSEVIER

Praticamente toda instituição dedicada à inter-mediação financeira está sujeita ao risco de ju-ros. Esse risco deriva do impacto diferenciadoque uma variação das taxas correntes de jurostem sobre ativos e passivos de uma instituição.Passivos são normalmente mais “curtos” que ati-vos, por várias razões. Em primeiro lugar, por-que um papel essencial de intermediários finan-ceiros é precisamente a “transformação de ma-turidades”, isto é, permitir que poupadores rete-nham direitos de prazo relativamente curto (e,assim, maior liquidez, pois de recuperação maisrápida) enquanto tomadores de recursos podemobtê-los em maturidades mais compatíveis comos fluxos de caixa gerados pelos ativos cuja com-pra estão financiando. Quando taxas de jurossobem, o valor presente de qualquer obrigaçãofinanceira cai, já que este nada mais é o do queo valor das anuidades esperadas durante a vidaútil do ativo, descontados pela taxa de juros rele-vante. Assim,

VP = � A/(1 + i)t

O impacto de uma mudança na taxa de jurossobre o valor presente da obrigação é tantomaior quanto maior for “t”.

Bancos de poupança estão particularmentesujeitos a esse risco de juros, dado o enormedescasamento normalmente existente entre aduração de seus ativos e passivos. A fonte derecursos mais importante para um banco depoupança são os depósitos de poupança, quetinham, nos Estados Unidos, características se-melhantes à caderneta de poupança brasilei-ra: alta liquidez e facilidade de movimentaçãopraticamente à vista. Assim, a rigor, após umperíodo inicial de carência, a maturidade des-sas obrigações é praticamente instantânea. Jáos ativos dessas instituições eram representa-dos por hipotecas, empréstimos de longa ma-turidade colateralizados pelo próprio imóvelcuja compra está sendo financiada.

Em tempos normais, esse descasamentonão parece problema. A maturidade instantâ-nea dos depósitos de poupança era, na verda-de, apenas formal. Famílias não depositavamem poupança saldos transacionais, que sãonormalmente movimentados com frequência.Depósitos de poupança eram, ao contrário, orepositório normal para recursos poupadoscom vistas a alguma compra de algo mais valio-so no futuro, frequentemente, na verdade, opróprio imóvel. Assim, embora teoricamente

potencialmente voláteis, este passivo era, defato, bastante estável.

Tudo mudou com a aceleração inflacionáriada década de 1970 e da elevação das taxas dejuros que acompanha tais conjunturas. O públi-co, nessas condições, se torna mais sensível àexistência de formas alternativas de aplicação depoupança, muito mais lucrativas. Em um primei-ro momento, os bancos de poupança (conheci-dos como bancos ou sociedades de poupança eempréstimo) viram-se impossibilitados, por re-gulamentos legais, de aumentar suas taxas dejuros passivas para competir com as aplicaçõesalternativas. Essas regulações foram, posterior-mente, suspensas, mas isto agravou mais do queresolveu a situação, porque embora as taxas dejuros pagas pudessem ser aumentadas rapida-mente, retendo depósitos, as taxas de juros rece-bidas estavam presas a contratos de financia-mento de longo prazo. Apenas ao final dos con-tratos antigos, com a celebração de novos con-tratos de financiamento, poderiam as institui-ções financeiras elevar suas taxas de juros ati-vas. O resultado inevitável foi a insolvência dosetor. Durante a década de 1980, os regulado-res e supervisores dessas instituições e o gover-no federal norte-americano tentaram ignorar acrise, na esperança de que uma baixa posteriorda taxa de juros fizesse o problema desaparecer.Quando se viu que essa perspectiva não se con-cretizaria, tentou-se outra solução, a de liberaros bancos de poupança e empréstimo para fazeraplicações em qualquer outra forma de ativo, in-clusive na compra de terrenos, na tentativa derecuperar sua rentabilidade. A sobrevida queisto deu ao setor só agravou os desequilíbriosque se acumulavam. Quando a crise finalmentese manifestou, seu custo foi estimado pela cor-poração federal de seguros de depósitos dosEstados Unidos (FDIC), em US$ 160 bilhões.Além disso, a forma de organização financeirabaseada em bancos de poupança mostrou-se in-viável em um mundo de volatilidade financeiramais intensa. Os financiamentos à compra deimóveis só puderam ser retomados através deuma mudança radical nas formas de intermedi-ação financeira utilizadas, através da securitiza-ção de créditos imobiliários.

A evolução da crise do setor, e os dilemas dasautoridades reguladoras em como manejá-laestão descritos no interessante documento pro-duzido pelo FDIC, intitulado History of theEighties, disponível em www.fdic.gov/bank/his-torical/ history/contents.html, capítulo 4.

A CRISE DO SISTEMA DE POUPANÇA E EMPRÉSTIMOSDOS ESTADOS UNIDOS NOS ANOS 80

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7.3

17.2.4 COOPERATIVAS DE CRÉDITO

Cooperativas de crédito são instituições não voltadas para o lucro que funcionam de modo semelhante abancos comerciais. Estas cooperativas captam depósitos em uma comunidade definida, que pode ser,por exemplo, a dos funcionários de uma determinada empresa, dos moradores de uma certa área geo-gráfica, dos praticantes de um determinado ofício etc., e os empregam no financiamento de planos dedispêndio dos próprios membros da cooperativa. Este tipo de instituição opera, normalmente, como umfundo rotativo, sem multiplicação de depósitos, porque seu objetivo não é a expansão no mercado, maso atendimento, da forma mais segura possível, das demandas da própria comunidade que criou a coope-rativa. Em países de maior tradição associativa, como os países europeus, este setor pode chegar a al-cançar proporções bastante importantes.

17.3. INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS NÃO BANCÁRIAS

Neste grupo estão incluídos todas as instituições não depositárias, isto é, que captam recursos atravésda colocação de títulos, e intermediários financeiros que se dedicam à corretagem de papéis. Estes últi-mos, na verdade, teoricamente, não necessitam captar recursos porque não fazem operações no merca-do em nome próprio, limitando-se a promover o encontro entre tomadores e aplicadores.

17.3.1. SOCIEDADES DE CRÉDITO, FINANCIAMENTO E INVESTIMENTO

Sociedades de crédito, financiamento e investimento captam recursos pela colocação de papel próprio,as letras de câmbio, e usam esses recursos para o financiamento de consumidores, em suas aquisiçõesde bens de consumo durável, e empresas, principalmente para capital de giro.

Letras de câmbio são títulos de duração média, emitidos a taxas prefixadas de juros, que permi-tem, assim, à instituição financeira ofertar crédito de duração relativamente longa (por exemplo, 24ou 36 meses), como é adequado ao financiamento da aquisição de bens duráveis de consumo de maiorvalor, como, por exemplo, automóveis. Como todo intermediário financeiro que oferta crédito e cujobalanço apresenta descasamento de maturidades entre ativos e passivos, companhias financeiras es-tão sujeitas ao risco de crédito e ao risco de juros. Por outro lado, como também para este tipo de insti-tuição, as épocas mais favoráveis à colocação de letras de câmbio podem não ser também aquelas emque a demanda por crédito é maior, o apelo aos créditos dos bancos comerciais viabiliza a sua opera-ção, permitindo-lhe adiantar empréstimos aos clientes antes mesmo de ter em mãos recursos própriospara tal. Assim, no balanço desses intermediários, obrigações para com bancos comerciais aparecemcomo importante fonte de recursos.

QUADRO 17.3Balanço de uma Companhia Financeira

Ativo Passivo

Caixa

Empréstimos a Consumidores Empresas

Imóveis e Equipamentos

Letras de Câmbio

Empréstimos de Bancos Comerciais

Patrimônio Líquido

Total Total

17.3.2 CORRETORAS E DISTRIBUIDORAS DE VALORES

Estes dois tipos de instituição financeira, em contraste com as anteriores, não são propriamente inter-mediários financeiros, no sentido de que não se dedicam a captar recursos para fazer empréstimos sob

Instituições Financeiras Bancárias e Não Bancárias 249

sua responsabilidade. Corretoras e distribuidoras de valores têm como função a promoção ou facilita-ção de negócios com títulos, em um sentido muito próximo, por exemplo, ao de corretores de imóveis.Essas instituições agem, na compra e venda de papéis, sob ordens de clientes e fecham negócios emnome dos próprios clientes, não em seu nome. São representantes dos clientes, mais do que intermediá-rios financeiros no sentido mais estrito. Por isso, em seu balanço também, como no caso dos bancos deinvestimento, especialmente os mais modernos, não encontraremos informações relevantes sobre suasatividades. As contas de fluxos, como receitas e despesas e lucros e perdas, são muito mais interessan-tes para descrever as operações feitas num determinado período.

Corretoras e distribuidoras de valores exercem a mesma função de corretagem, distinguindo-seapenas porque as primeiras têm assento nos mercados organizados de títulos, denominados bolsasde valores, enquanto as distribuidoras não, e portanto estão confinadas aos mercados de balcão ou àassociação com corretoras. Em tese, essas instituições são muito seguras, porque não assumemobrigações nem devem reter ativos sujeitos a riscos no futuro. Na realidade, a situação é um poucodiversa. Especialmente no caso das corretoras, que operam sob as regras disciplinares impostas pe-las bolsas de valores de que fazem parte, há procedimentos de funcionamento que podem envolverriscos para a empresa. Um exemplo é a execução de ordens de compra de títulos, que devem ser sal-dadas pelas corretoras em prazos que muitas vezes são menores que os prazos que os próprios cli-entes têm para cobrir o valor de sua ordem junto à corretora. Neste caso, a corretora corre o risco deadiantar o valor de uma compra na expectativa de receber aquele valor mais tarde do cliente e tersua expectativa desapontada.

17.4. OUTRAS INSTITUIÇÕES ATUANTES NO MERCADO

FINANCEIRO

Além das instituições listadas, há vários outros tipos de empresa que desempenham funções no merca-do financeiro, mas que, por questões variadas, não são normalmente classificadas como instituições fi-nanceiras. Entre estas contamos as companhias de seguro, os investidores institucionais (estes serãotratados no Capítulo 16, tópico 16.3.3) e, finalmente, um sortimento variado de empresas que ocupamcertos nichos do mercado.

17.4.1. COMPANHIAS DE SEGUROS

Estas instituições assumem obrigações contingentes junto ao público (isto é, obrigações cujo pagamen-to é ativado por uma contingência especificada, como a morte de seu titular, no caso do seguro de vida,ou de destruição de um determinado objeto etc.), financiadas pelo pagamento de prêmios pelo compra-dor daquela obrigação (denominada apólice). O prêmio é a denominação específica do valor pago pelocomprador do direito ao seu exercício na contingência especificada e não, como muitas vezes se pensa,o valor do seguro a ser recebido.

A escolha de ativos por parte das companhias seguradoras dependerá do tipo de seguro que ven-dam. Seguradoras do ramo vida, inclusive aquelas envolvidas com planos de previdência privada, de-vem procurar ativos de longa duração, que possam dar retornos nas datas esperadas, por vezes muitodistantes no tempo. Já aquelas companhias voltadas para seguros contra eventos como incêndios, rou-bos etc. ou que administrem planos de seguro-saúde, têm de buscar ativos mais líquidos, dada a nature-za de suas obrigações, que podem ter de ser resgatadas praticamente à vista.

ELSEVIER250 Instituições Financeiras Bancárias e Não Bancárias

17.4.2 OUTROS TIPOS DE INSTITUIÇÃO DESENVOLVENDO ATIVIDADES

FINANCEIRAS

Há hoje, em qualquer economia de mercado um pouco mais sofisticada, um grande número de institui-ções que exercem funções financeiras, mas que preferem manter uma identidade jurídica específica. Arazão para isso é evitar as restrições regulatórias e a necessidade de submeter-se a regimes de supervi-são que controlam e restringem as atividades de instituições definidas juridicamente como financeiras.Não há como apresentar uma tipologia de validade mais geral dessas instituições, porque elas tendem ase desenvolver nos interstícios de cada sistema, normalmente ocupando lacunas regulatórias. Assim,no caso brasileiro, encontramos, por exemplo, as empresas de arrendamento mercantil (leasing), que,em grande parte, nada mais são do que sociedades de crédito, financiamento e investimento, dedicadasao financiamento da compra de bens de consumo durável. Surgiram também, mais recentemente, ou-tros segmentos como o chamado factoring, que consiste claramente numa atividade financeira – o adi-antamento de valores recebidos por cheques pré-datados, que também evitam ser classificados comofinanceiros para não sofrerem eventuais restrições à sua operação.

Em outros países, um fenômeno interessante é a expansão de atividades inicialmente subalternasem empresas voltadas para outros mercados, que não o financeiro, mas que acabam por crescer e assu-mir importância específica. O caso mais notável é a G.E. Capital, subsidiária da General Electric, em-presa dos Estados Unidos especializada em equipamentos elétricos, que surgiu inicialmente para finan-ciar a aquisição dos bens que produz, a partir das sobras de recursos da operação principal, e que cres-ceu de tal maneira que se tornou uma das principais empresas financeiras do mundo, embora não estejaincluída em nenhuma estatística do setor.

RESUMO

Neste capítulo foram apresentados os diversos tipos de instituição financeira que povoam um sistema financeiro mo-derno. Este sistema se divide em instituições bancárias e instituições financeiras não bancárias. Entre as primeiras, oprincipal tipo de instituição é o banco comercial, cuja dinâmica de operação foi objeto do capítulo anterior. Aqui vi-mos que bancos comerciais captam não apenas depósitos à vista, mas também depósitos a prazo, o que lhes permitefazer aplicações de mais longo prazo que aquelas que seriam convenientes se sua única fonte de captação fossem de-pósitos à vista. Bancos comerciais, em sua atividade, correm vários tipos de riscos, notadamente riscos de crédito ede liquidez. Bancos de investimento têm uma forma de operação bastante diversa da do banco comercial. Sua princi-pal fonte de captação são os depósitos a prazo e a emissão de títulos, mas, no curto prazo, dependem também da ofer-ta de crédito por parte dos bancos comerciais. Sua principal forma de aplicação de recursos é a subscrição de papéis,mas quando os tomadores finais têm boa reputação, o banco de investimento pode restringir suas atividades às deum corretor de papéis. Outras instituições depositárias são os bancos de poupança e as cooperativas de crédito. Entre asinstituições financeiras não bancárias temos as companhias de crédito, financiamento e investimento e as corretorase distribuidoras de valores. Outras instituições, normalmente não classificadas como financeiras, atuam no sistema,notadamente as seguradoras, os fundos de pensão e de investimento, e empresas organizadas com o objetivo de ofer-tar financiamentos, como as de arrendamento mercantil e de factoring.

TERMOS-CHAVE

� Bancos Comerciais� Mercado Interbancário� Risco de Mercado� Descasamento de Maturidades� Corretagem de Valores� Prêmios

� Bancos de Investimento� Subscrição de Títulos� Risco de Juros� Companhias Financeiras� Seguros� Investidores Institucionais

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BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Bank for International Settlements, Annual Report, vários anos.Estes relatórios, usualmente publicados em junho de cada ano, e disponíveis na Internet (www.bis.org) , são a

melhor fonte de informação disponível sobre o comportamento dos sistemas financeiros dos principais países domundo e de sua organização.

International Monetary Fund, International Capital Markets, vários anos.Aqui temos um relatório publicado pelo FMI, sem periodicidade formal, mas que tem saído anualmente nos úl-

timos anos, e que complementa de modo muito adequado a leitura dos relatórios do BIS, citados acima. Esta pu-blicação também pode ser obtida na Internet (www.imf.org).

G. Kaufman (ed.), Banking Structures in Major Countries. Kluwer Academic Publishers, 1991.Este livro contém descrições bastante precisas das instituições financeiras que operam em dez países escolhi-

dos, entre os quais os mais importantes países industrializados.

252 Instituições Financeiras Bancárias e Não Bancárias ELSEVIER

SISTEMAS FINANCEIROS

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, exploraremos em maior profundidade algumas ideias já apre-sentadas no Capítulo 15, usando-as para identificar as principais formas de orga-nização de sistemas financeiros, encontradas nas mais importantes economias domundo. Vamos ver a importância do papel da regulação financeira na forma-ção das estruturas financeiras presentes em cada país, vendo como ela deter-mina, em particular, o peso que cada canal de intermediação alcança em cadacaso. Vamos ver também o que é permitido às instituições financeiras operarem cada estrutura, de modo a conformar sistemas financeiros com proprie-dades diferentes no que tange a custos, eficiência alocativa e segurança. Va-mos dar especial atenção aos dois principais modelos de organizaçãofinanceira conhecidos, o de banco universal e o segmentado. Discutiremosainda a organização do sistema financeiro internacional.

18.1. O CONCEITO DE SISTEMA FINANCEIRO

Como já visto no Capítulo 15, sistemas financeiros são definidos pelo con-junto de mercados financeiros existentes numa dada economia, pelas insti-tuições financeiras participantes e suas inter-relações e pelas regras de parti-cipação e intervenção do poder público nesta atividade. Qualquer economiapode ser vista, na verdade, como um conjunto de subsistemas, onde cada umdestes últimos englobaria um certo número de atividades, participantes e re-gras de relacionamento com um certo grau de autossuficiência. Assim, pode-ríamos falar, por exemplo, de sistema ou setor industrial, um sistemaagrícola, outro comercial etc. Para estes outros setores a denominação “sis-tema” parece menos apropriada apenas porque, ao lado das característicastécnicas que definem cada atividade, é pouco frequente a existência de re-gras de operação e procedimento que sejam válidas apenas para cada umadelas. Empresas industriais pouco se distinguem de empresas comerciaisou mesmo agrícolas. Mercados industriais também pouco diferem de mer-cados para produtos agropecuários ou minerais, ou qualquer outro. Estes

CAPÍTULO

18

outros setores se distinguem mais pelas características técnicas de sua atividade do que pela institu-cionalidade de sua operação.

O mesmo não se dá com o setor financeiro. À parte o fato de que também ele é habitado por empre-sas que fornecem serviços como forma de obtenção de lucros e por clientes que consomem esses servi-ços, há uma particularidade importante no modo pelo qual essa atividade é desenvolvida. A tecnologiade produção de serviços financeiros é relativamente pouco importante na definição das característicasdo serviço que as empresas do setor prestam. Na verdade, instituições financeiras produzem contratos enão há muitas restrições de ordem tecnológica sobre o modo pelo qual esses contratos são produzidos.1

Se pensarmos apenas do ponto de vista tecnológico, não descobriremos muitas razões que expliquem,por exemplo, por que o sistema financeiro norte-americano é tão diferente do sistema financeiro ale-mão. Na verdade, não saberemos sequer por que cada um é como é. Já a indústria automobilística, porexemplo, opera e se estrutura de modo muito semelhante nos dois países, porque o conjunto de tecnolo-gias disponíveis que permitem produzir, de modo economicamente viável, um automóvel, é relativa-mente limitado.

Para a produção de serviços financeiros, como não é a tecnologia que impõe que serviços produzir ecomo produzi-los eficientemente, instituições têm de ser criadas para suprir esse papel. Por isso, regrasespecíficas à atividade, além daquelas que regem já todos os outros mercados, são fundamentais e istojustifica a ideia de um sistema financeiro e não apenas um setor financeiro. Este é um setor onde o papelda sociedade (e dos governos) na definição do que é possível, ou desejável, é fundamental, porque exis-tem muitas possibilidades de modos de operação.

Assim, para que possamos entender por que sistemas financeiros são organizados de forma tão di-ferenciada nos diversos países, as qualidades e limitações de cada tipo de sistema financeiro, e sua evo-lução, é preciso conhecer as razões materiais que levaram à criação de cada tipo de sistema, mas tam-bém, e principalmente, sua história e a da sociedade em que se insere, porque estas pesarão decisiva-mente no processo de formação do setor. Neste capítulo, vamos explorar como se constituíram e comooperam os principais modelos de sistema financeiro adotados nas principais economias de mercado.Veremos que, na verdade, apesar da diversidade de formação histórica encontrada mesmo entre o rela-tivamente pequeno grupo de países mais desenvolvidos, sistemas financeiros acabaram sendo organi-zados em torno de alguns poucos modelos institucionais. Vamos conhecer os dois principais modelosexistentes, o chamado modelo segmentado e o modelo de banco universal, e algumas de suas variações.Discutiremos o modo pelo qual se desenvolveram até o presente, reservando para o Capítulo 20 o exa-me de suas atuais tendências evolutivas. Daremos vários exemplos concretos de organização da ativi-dade financeira, com especial atenção ao caso brasileiro.

18.2. ESTRUTURAS FINANCEIRAS ALTERNATIVAS

Sistemas financeiros se distinguem entre si de forma mais visível pelo tipo de relação predominante en-tre tomadores e emprestadores de recursos e pelo perfil das instituições que promovem a circulação derecursos entre eles. Ao se classificar tipos de sistemas financeiros devemos, assim, responder a duasperguntas. A primeira é: “Que tipos de contrato entre aplicadores e tomadores são predominantes nestaeconomia?” Em segundo lugar, devemos nos perguntar: “Quais são as funções exercidas pelas institui-ções financeiras na elaboração desses contratos?” Ao respondermos à primeira questão, estaremos defi-nindo se o sistema financeiro que se examina é baseado em crédito ou baseado em mercado de capitais.A segunda resposta nos dirá se as instituições financeiras que operam nesta economia podem fazê-lo deforma diversificada ou se estão restritas a nichos específicos do sistema.

Como se verá a seguir neste capítulo, a resposta à primeira questão nos remete à dicotomia discu-

254 Sistemas Financeiros ELSEVIER

1. Há, porém, exceções. Certos contratos financeiros existentes atualmente só são possíveis porque a tecnologia de comunica-ções e de informática avançou o suficiente para viabilizá-los. Estes casos são, contudo, ainda incomuns e reservados a segmen-tos muito específicos e limitados do mercado financeiro.

tida no Capítulo 15, entre formas de contrato individualizadas entre tomadores e emprestadores prati-cadas no mercado de crédito, ou anônimas, através da colocação de papéis em mercados públicos.Fundamentalmente, busca-se distinguir entre sistemas onde predomina a captação de recursos atra-vés da intermediação financeira ou se predomina a desintermediação financeira (ver Capítulo 15). Jáa resposta à segunda questão nos leva a identificar que tipos de instituição financeira operam em umadada economia. Nos Capítulos 16 e 17 examinamos diversos tipos de instituição financeira. Na ver-dade, o que fizemos foi introduzir diversas funções exercidas por instituições financeiras em umaeconomia moderna e diversificada. Essas funções (banco comercial, banco de investimento, compa-nhias financeiras etc.) podem ser exercidas por instituições especializadas ou por instituições dedica-das a múltiplos propósitos, dependendo do interesse das empresas que operam no mercado financeiroe das regulações que regem sua atuação. Diferentes países adotarão regras diferentes com relação acomo os mercados podem operar e como as instituições financeiras podem exercer as funções que osmercados demandam. Avaliações divergirão de país a país sobre quais formas organizativas são maiseficientes. Também contarão muito as preferências políticas e culturais de cada nação. Alguns prefe-rirão constituir instituições financeiras grandes e sólidas. Outros julgarão mais eficientes as institui-ções pequenas e ágeis. Alguns preconizarão um amplo papel para o Estado na regulação e supervisãoda operação dos mercados financeiros. Em certos casos, se defenderá mesmo a operação exclusiva ouparcial de instituições financeiras públicas. Já outros preferirão deixar a responsabilidade pela opera-ção desses mercados aos agentes privados, e assim por diante. Não há critérios objetivos que possamdefinir, abstratamente, qual arranjo é superior, criando um modelo cientificamente mais eficaz a serimplementado por todos. Como veremos, embora se possa, por um lado, dizer que certas formas deorganização são, se não melhores para a sociedade, pelo menos mais competitivas que outras, semprese poderá levantar razões que apontem para a necessidade de limitar a liberdade de escolha dos agen-tes privados neste mercado.

Em princípio, não há razão para que não encontremos, em qualquer sistema financeiro nacional es-pecífico, segmentos do mercado de recursos financeiros organizados de forma intermediada e outros deforma desintermediada, dependendo do grau de padronização das transações e do acesso à informaçãonecessária à avaliação dos negócios pelos possíveis interessados. No entanto, historicamente, socieda-des economicamente mais avançadas têm tendido a exibir estruturas financeiras onde o mercado de ca-pitais (desintermediação) cresce continuamente em importância como canal de circulação de recursosem relação ao mercado de crédito. A significância dessa relação é reforçada pela constatação de que oprocesso de desenvolvimento financeiro das principais economias capitalistas tem como característicaa rápida expansão dos mercados de títulos. A economia americana, a mais sofisticada do ponto de vistafinanceiro, exibe um vigoroso mercado tanto para papéis de curto prazo (Tabela 18.1) quanto para os delongo (Tabela 18.2). Já os mercados europeus de papéis são menores, não apenas em volume, mas tam-bém em relação ao PIB de cada país, ainda que estejam exibindo, em geral, crescimento significativo,ao menos nos segmentos de prazo mais curto (como no caso dos commercial papers).

TABELA 18.1Estoques de Commercial Papers: Percentual do PIB

Criação do Mercado 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992

EUA 1960 7,5 8 9 9,8 9,9 9,1 8,8

Japão 1987 0,5 2,4 3,2 3,6 2,7 2,6

Alemanha 1991 0,3 0,6

França 1985 0,4 0,7 1 1,9 2,3 2,2 2,3

Reino Unido 1986 0,4 0,4 0,6 0,6 0,7 0,6 0,7

Canadá 1960 3,2 3,4 4 4,3 4,6 4,6 4,4

Fonte: Edey e Hviding (1995). “An Assessment of Financial Reform in OECD × countries”, OECD, Working paper, no 154.

Sistemas Financeiros 255

TABELA 18.2Estoques de Bônus de Corporações: Percentual do PIB

1970 1975 1980 1985 1990 1993

EUA 11,6 12,6 12,6 16,1 21 26,9

Japão 4,1 4,4 4,1 4,3 6,5 7,5

Alemanha 1,1 0,9 0,3 0,1 0,1 0,1

França 2,2 4,1 3,9 5,4 7 8,6

Itália 0,7 0,3 0,6 0,4 0,2

Reino Unido 10,6 6,2 2,3 2,1 2,6 2,7

Canadá 11,7 11,2 9,2 7,1 8,4 9,7

Fonte: Edey e Hviding (1995).

18.2.1 SISTEMAS FINANCEIROS BASEADOS EM MERCADO E SISTEMAS BASEADOS

EM CRÉDITO

Sistemas baseados em mercado são aqueles em que proporção significativa ou majoritária das necessi-dades de financiamento colocadas pelos agentes econômicos são satisfeitas através da colocação de pa-péis nos mercados monetário e de capitais. Em sistemas baseados em crédito, em contraste,predominam as relações de crédito, normalmente, mas não necessariamente, dominadas pela operaçãode bancos comerciais. Relações diretas entre aplicadores e tomadores, estabelecidas em mercados decapitais, são viabilizadas apenas quando é possível desenvolver-se sistemas legais suficientemente so-fisticados para que as características comuns a cada tipo de transação possam ser identificadas e codifi-cadas em títulos financeiros. Títulos financeiros nada mais são do que contratos padronizados quepreveem direitos e obrigações de cada parte contratante. A padronização das cláusulas permite a com-parabilidade e intercambiabilidade das obrigações que tornam os títulos substitutos entre si, permitindosua avaliação em conjunto mesmo por aplicadores não especializados.

Para que isso seja possível, o título deve refletir os objetivos e preocupações da generalidadedo mercado. Quando isto não for possível, e interesses individuais tenham de ser explicitamentecontemplados, é melhor recorrer ao crédito, que envolve, como já vimos, relações personalizadas,aceitas por indivíduos específicos. Fundamentalmente, um título financeiro deve especificar umaforma de obrigação financeira (débitos, participação acionária etc.), condições de pagamentos egarantias. A explicitação dessas informações é importante porque um título dá ao seu possuidor di-reitos, mas também o sujeita a certos riscos. A análise das combinações de direitos (rentabilidade) eriscos oferecidos por cada título pode não ser simples. Por isso, a importância de relações financei-ras desintermediadas em um dado sistema financeiro depende da existência de aplicadores capazesde reconhecer e entender as características desses contratos, de modo que sua avaliação e monitora-ção não sejam acessíveis apenas a instituições especializadas, como os bancos. Em certas circuns-tâncias, esta análise pode ser preparada por instituições especializadas que informam ao públicoseus resultados. Este é o papel das empresas de rating: analisar as informações relativas a um dadotomador de recursos ou a uma dada emissão de títulos e informar ao público, através de um sistemade notas, as vantagens e riscos envolvidos.

A definição de procedimentos legais transparentes para solução de conflitos e imposição de san-ções aos violadores de contratos completa a infraestrutura necessária para o desenvolvimento de mer-cados de títulos. Um último desenvolvimento importante, porém, para a implantação de mercados de tí-tulos é a criação de mercados secundários, como os discutidos no Capítulo 15, destinados a conferir al-gum grau de liquidez a esses papéis. Em economias mais avançadas, outras estruturas de apoio, maissofisticadas, são também desenvolvidas, como mercados de derivativos.

256 Sistemas Financeiros ELSEVIER

Por essas razões, a colocação direta de papéis junto ao público aplicador só se torna uma forma im-portante de captação de recursos em sociedades dotadas de sistemas financeiros mais sofisticados, doponto de vista legal, institucional e de capacitação dos próprios investidores. Por conseguinte, em socie-dades menos avançadas do ponto de vista financeiro encontraremos o predomínio da intermediação fi-nanceira como canal de circulação, e, especialmente, do crédito bancário.2

Crédito bancário é um tipo mais simples de relação financeira. Sendo personalizados, contratos decrédito podem prever quaisquer tipos de contingências que as partes contratantes julguem relevantes.Um mesmo tomador pode aceitar condições diferentes em cada contrato, adaptando-se às idiossincra-sias de cada aplicador. Termos e garantias podem igualmente ser definidos de forma individualizada.Cada contrato atenderá, assim, às demandas de cada contratante.

Do ponto de vista do grau de evolução do sistema financeiro, poderemos definir basicamente doistipos de estruturas: por um lado, há estruturas financeiras amplamente diferenciadas, em termos de ti-pos de instituições e funções, e em que relações diretas (desintermediadas) têm grande importância emrelação ao peso da intermediação bancária; em contraste, há estruturas em que predomina o mercado decrédito, dominado por bancos. No primeiro caso, temos como exemplo quase isolado até o presente osEstados Unidos. No segundo, entre os países desenvolvidos, temos todos os outros, notadamente o Ja-pão, a Alemanha, a França e praticamente todos os mercados emergentes. O sentido de tratar o caso nor-te-americano como uma categoria, mais do que como um caso isolado, se deve a que, como veremos nopróximo capítulo, é clara a tendência à mudança dos sistemas baseados em crédito para modelos maispróximos do americano, com o desenvolvimento de operações de securitização, dos mercados de deri-vativos etc.

18.2.2. SISTEMAS FINANCEIROS SEGMENTADOS E SISTEMAS DE BANCO UNIVERSAL

Em paralelo à distinção entre sistemas fundamentalmente de mercado (como o dos Estados Unidos) eos de crédito (como os restantes), há uma segunda diferenciação relevante a se estabelecer, qual seja,entre sistemas financeiros segmentados e os de banco universal. Sistemas financeiros segmentados sãoaqueles em que diferentes segmentos do mercado financeiro são operados por instituições específicas.Neste caso, a tomada de depósitos e oferta de empréstimos de prazos mais curtos, por exemplo, são ex-clusivos de bancos comerciais, que não podem, por sua vez, operar em outros segmentos, enquanto aoperação com papéis privados é exclusiva de bancos de investimento, impedidos, por sua vez, de captardepósitos à vista etc. Nesta forma de organização, à diferença de funções exercidas no mercado finan-ceiro corresponde uma diferença na personalidade jurídica das instituições financeiras. Assim, funçõesde banco comercial, por exemplo, são reservadas exclusivamente a instituições que se disponham aconfinar suas atividades ao segmento específico, abrindo mão de uma eventual participação em outrossegmentos. Esse tipo de sistema, de especialização institucional relativamente rígida, é característicodas economias norte-americana e japonesa.

Em contraste com a segmentação institucional dos sistemas descritos, a outra forma de organizaçãobaseia-se na figura do banco universal. O banco universal é um tipo de instituição que, em princípio, éautorizada a operar em qualquer segmento do mercado. O uso da expressão em princípio se deve a que,na prática, como se verá, há uma diferença importante entre estar autorizado a operar e estar efetiva-mente operando. O banco universal, ao contrário do banco japonês, pode captar e fazer empréstimostanto de curto como de longo prazos, e, ao contrário do banco norte-americano, pode tanto trabalharcom depósitos e empréstimos quanto subscrever e colocar ações e bônus privados no mercado. Em al-guns casos, mas não em todos, pode ainda operar no mercado de seguros.

Sistemas Financeiros 257

2. O estágio de desenvolvimento de um sistema financeiro é função de algumas variáveis específicas em relação ao desenvol-vimento geral de uma economia. Poderemos, por isso, encontrar muitos exemplos de economias desenvolvidas em pratica-mente qualquer aspecto que se selecione e que, no entanto, sejam relativamente subdesenvolvidas do ponto de vista financeiro,isto é, dotadas de estruturas financeiras pouco diferenciadas, dominadas pela intermediação bancária. Este foi o caso, porexemplo, e ainda o é, em grande medida, da Alemanha.

258 Sistemas Financeiros ELSEVIER

O sistema financeiro norte-americano foi orga-nizado, durante a maior parte do século XX, deacordo com os princípios estabelecidos à épocado New Deal, incorporados, em sua maioria, aoGlass-Steagal Act. Essa lei determinou a seg-mentação dos mercados financeiros e a especia-lização das instituições financeiras. A principalrazão para essa escolha foi a busca de seguran-ça para o sistema financeiro, duramente atingi-do pela crise de 1929. Julgou-se que a crise foimagnificada pelas atividades especulativas dosagentes financeiros, entre os quais, particular-mente, os bancos de tipo universal, que opera-vam com depósitos e crédito, mas também nomercado de títulos. A lei Glass-Steagal buscava,com a segmentação, impedir que, por questõesespeculativas, os agentes financeiros captassemrecursos através de instrumentos incompatíveis,em maturidade e liquidez, com os ativos que ad-quirissem. Por outro lado, a segmentação servi-ria também para conter os eventuais choquessofridos pelo sistema aos mercados atingidos,sem que espirrassem para os outros segmentos.

No sistema financeiro norte-americano en-contra-se, também, uma ênfase relativamentepeculiar – dada sua intensidade praticamenteúnica entre os países examinados – no estabele-cimento de canais diretos de financiamento. Aocontrário da maioria dos outros casos, em que sevê uma instituição financeira interpondo obriga-ções de sua emissão entre o aplicador final e otomador de recursos, no caso dos Estados Uni-dos encontram-se canais importantes de coloca-ção de papéis, inclusive ações e títulos públicos,diretamente junto ao público não financeiro,aqui incluídos os investidores institucionais. Aimportância do financiamento direto, por suavez, levou a uma grande diferenciação de instru-mentos financeiros, de modo a que se pudesseoferecer ao público produtos adequados às suaspreferências. Essa característica foi, naturalmen-te, favorecida tanto pela grande dimensão domercado financeiro dos Estados Unidos, amplonão apenas em função da renda daquele país,como por sua distribuição. À medida que outrospaíses desenvolvidos têm consolidado, em anosrecentes, sua posição em termos de nível de ren-da e de relativa desconcentração de renda, ten-dências semelhantes à observada nos EstadosUnidos – de diversificação de instrumentos fi-nanceiros e, consequentemente, de canais deintermediação – também se mostram visíveis,como se verá no Capítulo 20.

A diversificação de instituições se revela nonúmero de tipos de instituições financeiras em

operação dos Estados Unidos: bancos comer-ciais; outras instituições depositárias, inclusivede poupança; companhias financeiras e outrosemprestadores especializados (companhias definanciamento de consumo e de vendas, compa-nhias de financiamento comercial e factoring, ebancos hipotecários); companhias de seguros;fundos de pensão; fundos mútuos; e bancos deinvestimento, corretores e dealers. Todos essestipos de instituição financeira, na verdade, po-deriam ser agrupados em três grandes títulos:

1. instituições depositárias, como bancos co-merciais, associações de poupança e emprésti-mo, bancos de poupança mútua, cooperativasde crédito (credit unions);

2. instituições de poupança contratual, comocompanhias de seguro, fundos de pensão ecompanhias financeiras;

3. instituições voltadas para investimentos,como fundos mútuos e companhias de investi-mento.

Apesar da erosão continuada de sua posição,os bancos comerciais permanecem sendo o tipode instituição dominante no sistema financeironorte-americano. Por tradição e por imposiçãolegal, bancos comerciais operam tipicamente naponta mais curta do espectro de ativos financei-ros, embora venham aumentando sua participa-ção na provisão de recursos de prazo mais longo.

Além da separação entre bancos comerciais ede investimento, foi também muito importante achamada “regulação Q”, do Federal Reserve,que proibiu o pagamento de juros sobre depósi-tos à vista. Como já visto, a principal razão paraessas restrições referiu-se à segurança do siste-ma bancário: temia-se que a competição inter-bancária levaria ao oferecimento de taxas de ju-ros crescentes sobre depósitos, forçando os ban-cos a buscar aplicações arriscadas para honrarseus compromissos. Apesar de haver algumaevidência de que os bancos que pagavam jurossobre depósitos tiveram melhor desempenho doque os restantes, a proibição foi imposta, o queveio a custar caro aos bancos, já nos anos 70,quando, sob o acicate da inflação elevada, ins-trumentos de características semelhantes aosdepósitos, sobre os quais, no entanto, paga-va-se juros, foram introduzidos por instituiçõesconcorrentes. Naquela década foram criados osfundos de mercado monetário (Money MarketFunds), que, livres da pesada regulação que re-caía sobre os bancos comerciais, puderam emitirsubstitutos dos depósitos, como as contas NOW(negotiable order of withdrawal) que nada maiseram que depósitos à vista remunerados. Esses

O SISTEMA FINANCEIRO NORTE-AMERICANO

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8.1

A permissão de operação de bancos universais se apoia na concepção de que a intermediação fi-nanceira é uma atividade marcada pela existência de economias de escopo significativas. Economiasde escopo existem quando a produção de um bem ou serviço é mais barata ou lucrativa quando reali-zada em conjunto com a produção de outros bens e serviços do que isoladamente. No caso do bancouniversal, argumenta-se que há economias de escopo na produção de informação sobre tomadores derecursos (a criação de um cadastro exige investimentos significativos, mas, uma vez existente, o mes-mo cadastro pode se prestar a fundamentar vários tipos de operações financeiras), na utilização dosequipamentos de informática e comunicação, na utilização dos sistemas de pagamentos, e na monito-ração dos clientes e descoberta de novas oportunidades de negócios. Tais argumentos sugerem que oone-stop banking (isto é, a instituição bancária em que um cliente teria todas as suas demandas por

Sistemas Financeiros 259

fundos não contavam, naturalmente, com a pro-teção das autoridades monetárias, em caso decrises de liquidez, mas isto não os impediu de to-mar aos bancos parcelas importantes do merca-do de depósitos quando as perdas reais acarreta-das pela inflação sobre os depósitos à vista tradi-cionais tornaram essa opção inaceitável, excetopara as necessidades transacionais mais imedia-tas. O reconhecimento que esses fundos eram efe-tivamente instituições depositárias, tanto quantobancos comerciais, veio com o DIDMCA (Deposi-tory Institutions Deregulation and Monetary Con-trol Act), de 1980, que submeteu os fundos, bemcomo outras instituições de natureza semelhante,a um mesmo conjunto de restrições, como a ne-cessidade de depositar reservas contra depósitosjunto às autoridades monetárias, estendendo,em contrapartida, àquelas instituições os bene-fícios do apoio do Federal Reserve System comoemprestador de última instância. Além dessasmedidas, um calendário de remoção das restri-ções sobre a fixação das taxas de juros (phasingout) foi adotado de modo a que as taxas fossemlivremente negociadas em 1986, ao mesmotempo que se concedeu ampla autorização paraa criação de contas NOW em todo o país. ODIDMCA teve como objetivo explícito igualar ascondições de concorrência entre as instituiçõesdepositárias ao mesmo tempo que a rede desegurança foi estendida para proteger essesnovos participantes.

Na verdade, a densa rede de regulações sobas quais deveriam operar os bancos comerciais,muito mais pesada do que aquelas incidentessobre qualquer outro tipo de instituição financei-ra, já há muito servia como indutor de inovaçõesfinanceiras, isto é, da criação de novas práticas einstrumentos que permitissem aos bancos per-seguir mais livremente seus objetivos. A permis-são para a constituição de holdings bancárias jáera uma forma de contornar a Muralha da Chi-

na que a lei Glass-Steagal pretendeu construirseparando os mercados. A possibilidade de ins-talação de caixas automatizados (ATM: automa-ted teller machine) além das fronteiras do estadode origem de cada banco também já permitiaaos bancos contornar, em certo grau, as proibi-ções de transações interestaduais. Mas foi, tal-vez, na introdução dos métodos de administra-ção de passivos (liability management) que omovimento de inovação foi mais intenso previa-mente à onda desregulatória dos anos 80. Abusca de recursos através de outros canais quenão os depósitos à vista – ilustrada pela impor-tância já citada dos depósitos a prazo, cujo cres-cimento se deu principalmente pela emissão decertificados de depósitos, em grande parte ne-gociáveis – teve impulso precisamente em fun-ção das restrições colocadas sobre a captaçãotradicional de depósitos. A criação dos CDBs,certificados negociáveis de depósitos a prazo,permitiu aos bancos o acesso a recursos sobre osquais incidiam menores requisitos de reservas,ao mesmo tempo que se permitiam melhorescondições de concorrência com outras institui-ções depositárias, sujeitas a menores restrições.A contrapartida foi um certo aumento na vulne-rabilidade dos passivos bancários a variaçõesdas taxas de juros, que passaram a se manifestarnão apenas sob a forma de perda de depósitos,como antes, mas pelo aumento das obrigaçõespassivas dos bancos.

A legislação e as regulações que marcaram aestrutura financeira norte-americana vêm sendocorroídas há muitos anos, frequentemente comas bênçãos de instituições como o Federal Reser-ve. O marco fundamental dessas mudançasdeu-se no final de 1999, com a passagem da Leide Modernização Financeira, que veio a substi-tuir a Lei Glass/Steagal depois de muitos anosde debate, eliminando as restrições à formaçãode instituições bancárias diversificadas.

O SISTEMA FINANCEIRO NORTE-AMERICANO

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260 Sistemas Financeiros ELSEVIER

O sistema financeiro japonês é semelhante aonorte-americano no que tange à segmentação domercado e à busca de especialização institucional.Em contraste, porém, com o verificado nos EstadosUnidos, no Japão o financiamento é predominan-temente indireto, através da oferta de crédito,mais do que pela colocação de títulos dos tomado-res finais junto aos poupadores. Na verdade, a es-trutura financeira japonesa passou por grandestransformações a partir de meados dos anos 70,quando a crise do petróleo encerrou o chamadoperíodo de alto crescimento. A onda de mudançasmais recentes nos sistemas financeiros, que se dáem escala mundial, veio se superpor às transfor-mações que já estavam em curso desde os anos70, reforçando algumas de suas características eimpondo mudanças de rumo em outras.

Durante o período de alto crescimento, quevai até cerca de 1975, a matriz de fluxos de fun-dos japonesa era caracterizada pela identifica-ção do setor famílias como superavitário, dasempresas como deficitário e do governo comolevemente deficitário. O mercado financeiro es-tava organizado para canalizar a poupança dasfamílias para as empresas, de modo a financiarseus investimentos. O sistema financeiro japo-nês, dominado pelos bancos, mostrou-se bas-tante funcional na coleta e distribuição de recur-sos financeiros para investimento, viabilizando ointenso ritmo de crescimento da economia doJapão até os anos 70. Taxas de juros subsidiadasforam instrumentos importantes da política deli-berada de sustentação do crescimento.

O quadro muda drasticamente após 1975.Em termos da matriz de fluxos de fundos, as fa-mílias continuam amplamente superavitárias,mas o governo toma o lugar das empresas comosetor mais deficitário, em função tanto da relati-va estagnação da economia, que diminui a de-manda das firmas por fundos externos para in-vestimento, quanto do apelo do governo a políti-cas fiscais deficitárias para a sustentação da de-manda agregada. Em consequência destas mu-danças, o mercado monetário se expande, for-çando um movimento, lento, mas inexorável, deliberalização das taxas de juros, que, por suavez, estimula as famílias a substituir aplicaçõesem depósitos bancários por outros ativos de ma-ior rentabilidade. Em resultado, começa a ope-rar um processo de desintermediação bancária esecuritização, que, por sua vez, coloca a necessi-dade de melhorar o grau de substitutibilidadeentre os ativos, o que se choca com o princípioda especialização institucional. A participaçãodos bancos no mercado financeiro, em conse-quência, tem declinado desde 1975, ainda que

seu papel continue dominante,* e que a distin-ção entre instituições se torne progressivamentemenos visível. O processo de mudança no Japãoé particularmente lento, de qualquer modo, pelainfluência dos organismos de regulação, nota-damente o Ministério das Finanças, geralmentecontrário a inovações.

As instituições financeiras japonesas podem seragrupadas em sete classes: 1. bancos comerciais;2. instituições financeiras de crédito de longo pra-zo; 3. bancos especializados em câmbio; 4. institui-ções financeiras voltadas para o financiamento depequenas empresas; 5. instituições financeiraspara o apoio a setores especiais; 6. companhiastransacionadoras com papéis (securities compa-nies); e 7. instituições financeiras públicas.

Os bancos comerciais proveem depósitos, li-quidam pagamentos e servem para a transmis-são de política monetária. Essas instituições ope-ram, em princípio, na ponta mais curta do espec-tro de maturidades, embora captem recursos demais longo prazo e façam empréstimos de mé-dio e longo prazos mais frequentemente que ocomum em bancos comerciais. Na verdade,após 1975, o crescimento da securitização temnão apenas reduzido a presença de bancoscomo também incentivado a associação entreinstituições financeiras de natureza diversa, obs-curecendo as divisões originais.

Há duas categorias de bancos comerciais: osgrandes (city banks) e os regionais. Os grandesfazem empréstimos principalmente para gran-des firmas, captando a maior parcela dos depó-sitos totais através de contas à vista ou a prazo,com maturidade de até dois anos. Os bancos re-gionais, por sua vez, captam depósitos em áreasrestritas, muitas vezes acumulando mais recur-sos do que podem emprestar diretamente a cli-entes. O excesso de liquidez é, normalmente, di-rigido para os mercados monetários, isto é, paraaplicações de curtíssimo prazo.

Os bancos de crédito de longo prazo captamdepósitos de firmas-clientes ou do governo, masnão do público em geral, mas sua principal fontede recursos é a emissão de debêntures de matu-ridades variando entre um e cinco anos, usandoesses recursos para fazer empréstimos de atédez anos a empresas. A estagnação da econo-mia japonesa impôs a essas instituições spreadsextremamente baixos, ou mesmo nulos (Suzuki,1987). Outra instituição financeira voltada para

*Suzuki (1987) estimava que, em meados dos anos 80,o levantamento de fundos domésticos através da colo-cação de papéis tinha se elevado para cerca de 40%do total.

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o financiamento de longo prazo são os bancosde aplicação (trust banks). Os bancos de aplica-ções fazem empréstimos de longo prazo valen-do-se da captação de poupança do público, fun-cionando como fundos de investimento em pa-péis do mercado monetário, títulos em geral,propriedade móvel ou imóvel e direitos sobre ar-rendamento imobiliário. Aplicam recursos tam-bém em empréstimos a grandes empresas.

Há, ainda, outros dois tipos de bancos: osbancos sogo, voltados para pequenas empresas,embora, com a liberalização financeira, estejamdiversificando suas aplicações, e os bancos shin-kin, que operam como cooperativas de crédito.

Além dos bancos, existem ainda outros inter-mediários financeiros privados, como companhiasde seguro, que demandam principalmente, masnão exclusivamente, instrumentos financeiros se-guros de longo prazo; companhias de financia-mento habitacional, geralmente à base de recur-sos obtidos junto às instituições financeiras deque são subsidiárias; fundos de investimento empapéis, que recolhem fundos e os repassam abancos de aplicação para investimento de acordocom sua orientação; companhias de crédito aoconsumidor; companhias financeiras do mercadode títulos (securities finance companies), que su-prem fundos para regularizar a emissão e circu-lação de ações e títulos de dívida (bonds), financia-das por fundos próprios, ou tomados nos merca-dos de curtíssimo prazo (call markets), bancos co-merciais ou mesmo no Banco do Japão; correto-ras e dealers, que compram, vendem, agenciamou subscrevem títulos; e dealers do mercado mo-netário, canal para que o Banco do Japão possaajustar as condições do mercado financeiro ope-rando através do mercado aberto.

Finalmente, instituições financeiras públicasalocam fundos para o apoio a setores objeto deescolha política. Essa alocação é financiadaatravés de poupanças captadas por meio do cor-reio (maior instituição financeira do mundo emtermos de depósitos) ou seguro social.

Originalmente, definições estritas das ope-rações permitidas a cada tipo de instituição sus-tentavam a alta segmentação do sistema finan-ceiro japonês. Entre as restrições mais importan-tes estava a separação entre instituições deposi-tárias e as que emitem debêntures, ou que ope-ram como fundos de investimento e emprestama longo prazo. Como aponta Suzuki (1987), asegmentação era tripla no mercado financeiro:entre operações de curto e longo prazos; entreinstituições depositárias e as voltadas para a ne-gociação de papéis; e entre os ofertantes de cré-dito e aplicadores em papéis. Característica par-

ticular do sistema financeiro daquele país é a ên-fase na colateralização de empréstimos, muitomaior que em outros sistemas.

Essas barreiras que segregam as áreas permiti-das de atuação às instituições financeiras têm sidogradativamente corroídas. Em novembro de 1994,os seis grandes bancos comerciais foram autoriza-dos a operar com títulos através de intermediários.Por outro lado, a prolongada recessão sofrida pelaeconomia japonesa desde o início dos anos 90,combinada com a intensificação da competiçãoacarretada pela globalização financeira teve im-pacto particularmente intenso sobre a saúde dosistema financeiro daquele país. Como mostrou arevista Euromoney (fevereiro de 1994), as institui-ções financeiras japonesas são prejudicadas com-petitivamente pela demora do Ministério das Fi-nanças em autorizar a introdução de inovaçõesacessíveis às instituições de outros países. A ten-dência à securitização, por sua vez, sofre percalçospela fraqueza ou inexistência de mercados secun-dários, o que reduz a liquidez, e aumenta os riscosdos papéis. A própria forma tradicional de opera-ção de administradores de investidores institucio-nais cria desvantagens competitivas ao impedir aespecialização de operadores em mercados cres-centemente sofisticados. Nessas condições, nãodeveria surpreender o progressivo esvaziamentodo mercado financeiro doméstico, resultado datransferência de empresas financeiras japonesaspara outras praças, notadamente Hong Kong (Eu-romoney, dezembro de 1994).

Nesse tipo de estrutura institucional, a provi-são dos serviços financeiros requeridos – isto é, aprovisão de liquidez e a alocação de poupançafinanceira – tem lugar através das relações entreinstituições, como no caso dos Estados Unidos. Adiferença mais importante entre os dois casosreside no ainda baixo recurso a formas de finan-ciamento direto, predominando a interposiçãode intermediários financeiros entre tomadores eemprestadores finais.

Na década de 1990, os bancos japoneses ti-veram de lidar com os efeitos do fim da bolha es-peculativa que marcou os mercados de ações dopaís na década de 1980 e com a estagnação daeconomia. Em resultado, um movimento de re-estruturação ampla do setor foi iniciado ao finaldos anos 90, conhecido como big bang. Essemovimento se destina a promover fusões, desre-gular mercados e aumentar a competitividade ea solidez das instituições financeiras japonesas,processo que ainda está em curso.

Y. Suzuki, The Japanese Financial System, Clarendonpaperbacks, 1987.

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serviços financeiros satisfeitas) seria uma forma mais eficiente de organização das relações financei-ras que a fragmentação de sistemas como o norte-americano, que forçaria a duplicação de despesas.3

Argumentos críticos da suposta superioridade dos bancos universais usualmente se baseiam naquestão dos riscos de contágio dessa forma de organização, que se argumentam maiores, na possibili-dade de conflitos de interesse, na diferença de “culturas” bancárias e na diversidade de preferências dosclientes. Quanto à questão do risco, entendem os críticos do banco universal, organização predominan-te nos Estados Unidos até a Grande Depressão da década de 1930, que essa forma facilita a transmissãode crises financeiras localizadas para outros mercados, transformando-as em crises sistêmicas, porqueas instituições tentam defender seus ramos em crise com recursos provindos de outros segmentos. Àparte a validade do argumento para o período em que foi desenvolvido, a década de 1930, é importanteapontar que o banco universal não é necessariamente menos regulado do que o banco especializado. Naverdade, o que é diferente é a incidência da regulação. Os bancos universais alemães são submetidos apesadas regulações voltadas para atender às mesmas preocupações que afligiram os reguladores ameri-canos. Na Alemanha, o banco universal não pode usar livremente os recursos captados para a aplicaçãoque lhe parecer mais atraente. Recursos de dada origem têm seu uso confinado a aplicações que sejamcompatíveis com as condições em que foram conseguidos. Depósitos à vista, por exemplo, não serãoutilizados para fazer empréstimos de longo prazo, pois tal descasamento de ativos e passivos ameaçariaa liquidez do banco. A diferença não está em que o banco segmentado tem suas escolhas cerceadas e obanco universal não. A diferença está em que, no primeiro caso, as regulações separam instituições; eno segundo separam operações de uma mesma instituição.

Os conflitos de interesse podem surgir quando uma instituição tem a possibilidade de utilizar umainformação sobre um cliente, obtida com um determinado propósito, para outro fim, que possa ser pre-judicial ao cliente. Por exemplo, um banco que faz empréstimos a uma empresa e se vale das informa-ções que obtém privilegiadamente para orientar sua política de compra de papéis desta mesma empresa,possivelmente em seu prejuízo.

O conflito de “culturas” tem se evidenciado nas experiências recentes de fusão e aquisição entrebancos comerciais e bancos de investimento. Os primeiros, por sua natureza, são voltados para o esta-belecimento de relações de prazo mais longo com clientes, tendo interesse no sucesso de seus projetos,porque deles depende a recuperação de seus empréstimos. Já os bancos de investimento são orientadospor resultados de prazo mais curto, obtidos com a mera colocação de papéis junto a terceiros. Tais “cul-turas” podem conflitar, inclusive, o que é obviamente muito importante, no desenho dos sistemas de re-muneração dos funcionários dos bancos. Este é um ponto muito importante, ao qual voltaremos no Ca-pítulo 20.

Finalmente, nos casos dos bancos universais já existentes, as evidências disponíveis não são clara-mente favoráveis à hipótese de que clientes prefiram concentrar seus negócios em uma instituição. Mui-tos estudos mostram que, se por um lado, uma determinada “marca” é certamente importante para umcliente como indicador de segurança, competência e confiabilidade (favorecendo a diversificação deserviços oferecidos pela instituição financeira), essa influência se choca com outra que lhe é oposta, que éo desenvolvimento de instituições especializadas na provisão de certos tipos de serviços financeiros.

É importante não se perder de vista, por outro lado, que os bancos universais efetivamente existen-tes ainda estão razoavelmente longe de encarnar as qualidades teoricamente atribuídas àquele tipo deinstituição. É neste contexto que a diferença entre estar autorizado a atuar e estar efetivamente atuan-do em todos os segmentos se mostra crucial. Os exemplos mais importantes de bancos universais são osalemães e os suíços, particularmente os primeiros. Os bancos universais alemães podem operar tanto notradicional mercado de crédito quanto no mercado de capitais. O sistema financeiro alemão, contudo,

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3. Há grandes divergências entre os pesquisadores a respeito da existência e importância de economias de escopo e de escala.De modo geral, nos estudos baseados no caso norte-americano as economias identificadas, tanto de escala quanto de escopo,são geralmente de importância muito limitada. Muitos atribuem esse resultado, porém, ao fato de que as instituições financei-ras americanas têm seu raio de ação severamente limitado pela legislação vigente, o que influencia os resultados, podendomesmo torná-los inúteis.

Sistemas Financeiros 263

O banco universal está definido na Lei Bancáriaalemã de 1961 como uma instituição de créditoengajada em: aceitar depósitos, fazer emprésti-mos, descontar notas, prover corretagem de títu-los, serviços de custódia, operar fundos de inves-timento, prover garantias financeiras, prover girode fundos etc. A legislação bancária alemã permi-te a existência tanto de organizações universaisquanto especializadas, voltadas para nichos es-pecíficos de mercado. Em 1988, 94% das corpo-rações bancárias eram universais, às quais sepermite investir em empresas não bancárias ouserem possuídas por empresas não bancárias.

Na verdade, constituir-se em banco universalsignifica apenas estar autorizado a oferecer todosos serviços mencionados, não garantindo que obanco operará efetivamente com aquele grau dediversificação. A sofisticação dos mercados finan-ceiros alemães é, na realidade, pequena. Ospoupadores alemães exibem, ainda hoje, no ge-ral, uma marcada preferência por depósitos ban-cários ou pela aplicação em papéis emitidos porbancos, que, por sua vez, se valem desses recur-sos para fazer empréstimos. Como recentementeobservou a revista The Economist (2/12/1995), osbancos alemães nunca foram realmente univer-sais, enfrentando atualmente grandes dificulda-des para se adaptar a um sistema financeiro glo-balizado, sofrendo a competição de instituiçõesfinanceiras capazes de atuar em um grande nú-mero de mercados diferentes, através da opera-ção com instrumentos bastante diversificados,denominados em moedas diversas.

Mas mesmo se tomarmos como bancos uni-versais aqueles capazes de operar na provisãodas várias maturidades e modalidades de crédi-to, apenas algumas das instituições incorpora-das como universais realmente o são. O sistemafinanceiro alemão pode ser dividido em quatroramos: 1. os bancos universais privados, domi-nados por quatro grandes instituições; 2. osbancos públicos de poupança; 3. as cooperati-vas de crédito; e 4. instituições com funções es-peciais.

O mercado de capitais alemão é, nessascondições, singularmente atrofiado. As empre-sas são bastante dependentes de crédito, prati-camente inexistindo canais diretos de financia-mento. Até os anos 70, o desenvolvimento demercados de capitais também foi prejudicadopela inexistência de títulos públicos, dada aprolongada posição fiscal superavitária do go-verno alemão. Apenas na década de 1970 éque o governo federal adotou políticas de de-manda agregada que envolveram a geração de

déficits públicos a serem financiados pela emis-são de títulos. Em consequência, ainda hoje apolítica monetária alemã opera através da dis-ponibilidade de crédito, pela manipulação dosmecanismos de redesconto e do guichê lombar-do, em contraste com a experiência de outrospaíses desenvolvidos, baseada no uso do mer-cado aberto.

Os bancos privados lideram as operações definanciamento ao comércio internacional e à in-dústria. Esses bancos não se envolvem na capta-ção de depósitos do público, voltando-se maispara a colocação e negociação com títulos, con-trolando o financiamento das empresas pelaoperação como banco de investimento. Cabeaos bancos de poupança operar com depósitosdo público e com aplicações em empréstimospessoais, para autoridades públicas locais e hi-potecas. Entre essas instituições estão os Lander-banken, bancos estaduais estatais que operam osistema de pagamentos e colocam seus exce-dentes de recursos nos mercados monetário e decapitais. Esses bancos, em grande parte, desen-volveram-se tornando-se universais. As institui-ções especiais de crédito financiam atividades deconstrução, pública e privada, trabalhos públi-cos especializados e crédito ao consumidor.

Como já observado, a centralização de ope-rações “sob um único teto”, definidora do bancouniversal não significa que fundos obtidos de to-das as formas sejam canalizados a projetos ape-nas de acordo com sua rentabilidade esperada.Na verdade, o grau em que esse sistema realizaa transformação de maturidades, isto é, a absor-ção de recursos através da criação de passivoscom uma certa duração para repassá-los a to-madores pela criação de ativos com uma dura-ção diferente (usualmente, maior), é relativa-mente pequena. Exatamente pelos riscos que aoperação integrada do banco universal repre-senta para a solvência e a liquidez da instituiçãobancária, regulações prudenciais são bastanteestritas com relação ao uso de recursos. A sol-vência dos bancos é garantida, antes de maisnada, pela aplicação do “princípio da liquidez”:empréstimos de longo prazo não podem excederos fundos obtidos por canais de longo prazo.Deste modo, a disponibilidade de fundos de lon-go prazo está restrita pela estrutura de obriga-ções passivas dos bancos. Assim, empréstimosde longo prazo estão subordinados à captaçãode depósitos de poupança ou à colocação decertificados de poupança e títulos (bonds) dopróprio banco. Se a transformação direta de ma-turidades é vedada pela regulação bancária,

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durante a maior parte do pós-guerra foi um sistema relativamente primitivo, dominado por depósitosbancários, do lado da captação, e pela realização de empréstimos pelo lado da aplicação. Mercados decapitais eram pouco relevantes. Empresas não abriam seu capital e tinham seus títulos de dívida absor-vidos pelos bancos. O setor público, com orçamento equilibrado até os anos 70, não contribuiu para aformação de um mercado de capitais através da negociação de dívida pública. Operações de mercadoaberto como instrumento de política monetária não eram utilizadas, substituídas pelo uso do redescontoe do guichê lombardo. O predomínio da intermediação bancária se sustentou não apenas pela relativafalta de sofisticação de tomadores e aplicadores, que se contentavam com as formas relativamente tos-cas de ativos e obrigações disponíveis, mas também pela regulação bancária voltada mais para a preser-vação do poder da autoridade monetária, do que para o desenvolvimento do mercado.4

A Tabela 18.3 ilustra alguns aspectos centrais dos dois tipos de estrutura. As primeiras duas colunasmostram a importância das relações desintermediadas na economia americana em contraste com a ale-mã: enquanto, em 1990, apenas 32% dos ativos financeiros domésticos totais eram detidos por institui-ções financeiras nos Estados Unidos, na Alemanha esse número atingia 53%. A quarta coluna, por suavez, mostra a concentração de ativos totais das instituições financeiras nas mãos dos bancos na Alema-nha (77% em 1990), em contraste com a situação norte-americana, onde bancos detinham apenas 37%dos ativos totais das instituições financeiras. Esse contraste, naturalmente, ilustra o fato de que o siste-ma alemão, como o francês, é marcado pela presença do banco universal.5

Em suma, os sistemas financeiros existentes na realidade se dividem entre aqueles amplamente di-ferenciados, operados por instituições especializadas, como o americano, e aqueles em que predomi-

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é cabível nos perguntarmos como esse sistemapode ser mais eficiente que um sistema seg-mentado. Naturalmente, o ponto se resume asaber com que recursos conta o banco para fi-nanciar a retenção de títulos das empresas in-vestidoras, enquanto não chega o momentoadequado para colocá-lo junto a poupadoresfinais. Alternativamente, se os investimentosdas firmas serão realizados com financiamentobancário, a questão é saber qual a flexibilidadeque os bancos possuem para escolher o mo-mento de colocar suas próprias obrigações pas-sivas no mercado para restabelecer seu equilí-brio de balanço. Em outras palavras, tal sistemapode ser eficiente se houver facilidades paraque a provisão de liquidez para os tomadorespossa ser separada temporalmente da capta-ção de recursos junto aos poupadores. Istopode se dar se o banco tiver como financiar operíodo entre a subscrição de papéis da firmainvestidora e a sua colocação em mercado pelacriação de crédito de curto prazo interna aopróprio banco. De fato, a colocação no merca-do de títulos tanto públicos quanto os emitidos

pelos bancos está sujeita à orientação do Comi-tê Central de Mercado de Capitais, do qual par-ticipa um membro do Bundesbank, que regula asequência e os períodos em que os títulos serãocolocados de modo a evitar pressionar o merca-do. Já os títulos (bonds) das empresas não fi-nanceiras são absorvidos primeiro por consór-cios de bancos que decidem a sua colocaçãoem mercado posteriormente. Como a emissãode ações não se constitui em fonte significativade recursos para as empresas, essa parece a so-lução particular do sistema alemão às deman-das de eficiência formuladas acima.

Nos últimos anos, os bancos líderes alemãestêm promovido intensos esforços de moderniza-ção e diversificação de atividades, tanto em ter-mos de setores quanto de áreas geográficas.Com isso, inovações financeiras estão sendo in-troduzidas e mercados de capitais desenvolvidoscom grande rapidez. A criação do euro, em1999, contribui para isso, ao criar a possibilida-de de ocupação de um mercado financeiro euro-peu unificado, de dimensões comparáveis às domercado norte-americano.

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4. O exemplo mais visível disso talvez seja a oposição do Bundesbank à criação de fundos mútuos de mercado monetário naAlemanha, visto como um elemento de enfraquecimento do poder dos bancos na concessão de créditos e, assim, do poder daautoridade monetária de regular a oferta de crédito. Cf. Euromoney, dezembro de 1994 e março de 1995.5. Os dados sobre o Japão são distorcidos pelo peso dos depósitos feitos no sistema postal, cerca de 30% do total, que não é in-cluído entre os bancos. A mesma advertência vale para a última coluna.

nam bancos universais, teoricamente capazes de operar em múltiplos segmentos, mas que, no entanto,não têm essa capacidade por existirem em sistemas ainda insuficientemente diferenciados, como o ale-mão. Dessa situação resulta uma tensão importante para a previsão dos possíveis desenvolvimentos dasestruturas financeiras, entre instituições que habitam mercados altamente sofisticados e diversificados,mas que têm sido confinadas a segmentos específicos e pressionam para alargar seu horizonte de atua-ção; e outras que, podendo diversificar suas atividades, apenas recentemente se viram a braços com anecessidade real de criar capacidade de operação efetiva nesses mercados. Disso resultará, ao que tudoindica, como exploraremos mais adiante, uma fusão de caminhos, levando a estruturas financeiras emque instituições operam de forma diversificada como um banco universal, mas em sistemas sofisticadose diferenciados, como o norte-americano, em escala possivelmente global.

18.3. O SISTEMA FINANCEIRO INTERNACIONAL

Como vimos, grande parte, senão a maior parte das diferenças que identificamos entre os sistemas fi-nanceiros existentes, se deve à ação de legisladores e reguladores que inibem as escolhas que os agentesprivados poderiam fazer em uma determinada economia. Nas últimas décadas, porém, desenvolveu-sede forma espontânea um sistema financeiro fora da jurisdição de reguladores nacionais. Este sistema échamado de sistema financeiro internacional.

O contraste mais visível entre os sistemas financeiros nacionais e o internacional é a ausência nesteúltimo de instituições reguladoras dotadas de poderes abrangentes de regulação e uniformização estru-tural. Apesar da existência de instituições influentes como o BIS, o FMI etc., as restrições regulatóriasexistentes na esfera internacional decorrem seja da aceitação voluntária de regras, em geral prudenciais,pelos agentes privados participantes do sistema, seja dos relativamente poucos limites e normas que sãodecididos por consenso entre as nações. Por outro lado, a tendência predominante nos últimos anos àglobalização das operações financeiras pode forçar uma uniformização de práticas e procedimentos atémesmo em função de pressões competitivas.

A relação entre o sistema financeiro internacional e os sistemas nacionais depende diretamente dograu de abertura destes últimos, seja à operação em território nacional de instituições financeiras es-trangeiras, seja em termos da existência ou não de controles de capital. Trabalho recente divulgado pelaOECD identifica uma tendência persistente à remoção de barreiras à circulação de capitais entre os paí-

Sistemas Financeiros 265

TABELA 18.3Indicadores de Estrutura Financeira

Taxa de IntermediaçãoFinanceira (1)

Taxa de IntermediçãoBancária (2)

Concentração(3)

ParticipaçãoEstrangeira

Estatizaçãode Ativos

1980 1990 1980 1990 1990 1990 1990

EUA 0,36 0,32 0,52 0,37 17,6 22 0

Japão 0,45 0,47 0,35 0,38 31,1 1,8 0 (4)

Alemanha 0,53 0,53 0,82 0,77 26 3,9 50

França 0,5 0,47 0,88 0,74 48,8 12,4 12

Itália 0,5 0,39 0,65 0,58 37,8 2,9 63

Reino Unido n.d. 0,37 n.d. 0,59 31,4 57,2 1

(1) Razão entre ativos financeiros das instituições financeiras (inclusive bancos) e os ativos financeiros de todos os setores domésticos.(2) Razão entre ativos do setor bancário e ativos de todas as instituições financeiras.(3) Participação dos cinco maiores bancos nos ativos totais dos bancos.(4) Exclusive depósitos postais que constituem cerca de 30% do total.Fonte: Edey e Hviding (1995).

266 Sistemas Financeiros ELSEVIER

O sistema financeiro brasileiro é extremamentesofisticado e diferenciado, quando comparadocom os de outros países em estágio igual oumesmo superior de desenvolvimento econômi-co. Apesar de dominado por um pequeno núme-ro de grandes bancos de tipo universal, há ummercado de capitais bastante desenvolvido emativa operação, onde interagem instituições bas-tante ágeis e competitivas. Esses mercados, in-clusive de derivativos, já estão em operação háalguns anos e colocam o sistema financeiro bra-sileiro em posição incomum entre as economiasemergentes.

O sistema atual foi estruturado em meadosdos anos 60 e gradualmente transformado, emfunção do contexto em que atuou desde então,marcado especialmente pelo regime de alta in-flação. Após as grandes mudanças de naturezalegislativa e regulatória implementadas na dé-cada de 1960, o sistema voltou a ter suas regrasalteradas de forma profunda em 1988, o quemudou radicalmente a concepção de sistema fi-nanceiro que se buscava para o país.

Entre 1964 e 1965, logo em seguida ao golpemilitar de 1964, o mercado financeiro brasileiropassou por grandes transformações. Entre asmudanças mais importantes contam-se a cria-ção de um Banco Central, a introdução da inde-xação de contratos financeiros, o estímulo aodesenvolvimento de mercados de capitais nãoapenas de títulos públicos, como também deações de empresas privadas, e a criação de fun-dos institucionais de investimento administradospelo governo federal. Com relação ao sistema fi-nanceiro privado, até então praticamente restri-to à operação de bancos comerciais, instituiçõesde poupança e companhias de financiamento,procedeu-se a uma ampla reforma institucionalatravés da qual pretendia-se criar no país umaestrutura moldada no sistema segmentado demercado adotado nos Estados Unidos. Restri-ções à conglomeração financeira, que rapida-mente se mostraram ineficazes, foram adotadas,definindo-se papéis específicos para cada grupode instituição financeira, entre os quais se desta-cavam os bancos comerciais (para operar o sis-tema de depósitos e empréstimos de curto pra-zo), os bancos de investimentos (para promovero desenvolvimento de um mercado de capitaisadaptado ao financiamento do investimento pri-vado), as instituições de poupança e empréstimo(para o financiamento do setor habitacional), ascompanhias de crédito, financiamento e investi-mento (para o crédito ao consumidor), e, final-mente, as corretoras e distribuidoras de valores

(para apoiar o desenvolvimento das bolsas devalores). Créditos de longo prazo seriam inicial-mente oferecidos por instituições como o BNDE,posteriormente rebatizado de BNDES, a partir derecursos recolhidos pelos fundos de desenvolvi-mento institucionais, destacadamente o FGTS, oPIS e o PASEP.

Esse sistema começou a ser transformadopela ação de duas forças. Por um lado, lacunaslegais permitiram que a segmentação pretendi-da fosse substituída pela conglomeração finan-ceira. Por outro, a aceleração da inflação a partirdos anos 70 levou ao desaparecimento dos seg-mentos voltados para a oferta de créditos de lon-go prazo. Também a acumulação de desequilí-brios fiscais, especialmente resultantes da inten-sificação do processo inflacionário, acabou tor-nando o governo o principal tomador de recur-sos do sistema, distorcendo sua operação.

A conglomeração bancária acabou sendo re-conhecida de direito em 1988, quando o BancoCentral autorizou a criação de bancos múltiplos,que nada mais são que uma versão local dobanco universal. O banco múltiplo é aquele quecombina pelo menos duas carteiras de um con-junto de quatro, entre as quais as mais impor-tantes são as carteiras de banco comercial e debanco de investimento. A separação dessas duasfunções é o fulcro sobre o qual repousa o concei-to de segmentação.

Os anos 90 foram um período de transforma-ções importantes para o setor financeiro brasi-leiro. Com a autorização de formação de bancosuniversais, o sistema financeiro passou a ser do-minado, como é natural, por esse tipo de ban-cos. Por outro lado, a persistência e agravamen-to da alta inflação e dos desequilíbrios dela re-sultantes levou o sistema brasileiro a virtualmen-te especializar-se no financiamento do Estadoatravés da absorção de títulos da dívida pública.Estes títulos tinham vantagens sobre aplicaçõesno setor privado, por renderem elevadas taxasde juros ao mesmo tempo que preservavam altoprêmio de liquidez.

Essa situação mudou radicalmente com a es-tabilização de preços alcançada com o PlanoReal, em 1994, mas a mudança mostrou-se tem-porária. O fim da inflação fazia antecipar o ree-quilíbrio das contas públicas e a perda da oportu-nidade de aplicações em dívida pública. Conse-quentemente, os bancos voltaram-se para novasformas de operação, especialmente aquelas liga-das ao financiamento do consumo privado e daoferta de capital de giro às empresas. Infelizmen-te, o Plano Real, ao mesmo tempo que promoveu

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ses-membros, embora subsistam restrições significativas à instalação e operação de instituições estran-geiras nos espaços nacionais.6 Documentos do BIS e do FMI confirmam serem essas tendências tam-bém características de vários outros países. Para os temas a serem discutidos neste trabalho, considera-remos o sistema financeiro internacional (SFI) como incluindo não apenas aquelas instituições e mer-cados que operam de forma explicitamente multinacional (como, por exemplo, os mercados de global

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a estabilização de preços, aumentou tambémmuito a vulnerabilidade externa da economiabrasileira. Para lidar com esta vulnerabilidade, oBanco Central viu-se frequentemente obrigado,nestes anos, a apelar para drásticas elevaçõesde juros, o que aumenta muito o risco de aplica-ções junto ao setor privado. Com isso, a reorien-tação da atividade bancária na direção do supri-mento de crédito ao setor privado foi, pelo me-nos temporariamente, revertida, voltando o se-tor a priorizar o financiamento do governo. Poroutro lado, a eliminação dos ganhos inflacioná-rios, até 1994 uma importante fonte de ganhospara o setor bancário brasileiro, implicou umaredução importante da renda absorvida pelo se-tor, como se vê na tabela a seguir, tornando osmercados mais estreitos e aumentando, assim, a

pressão competitiva sobre as instituições bancá-rias. Deste modo, pode-se dizer com segurançaque o processo de ajuste do setor bancário brasi-leiro ainda prossegue, e continuará por algunsanos provavelmente, já que se trata de adap-tar-se a várias novas situações. É preciso adap-tar-se às novas dimensões do mercado financei-ro, muito menores do que eram no período infla-cionário. Além disso, a concorrência no setortende a aumentar pela crescente penetração debancos estrangeiros no sistema, a partir de1996. Em adição a tudo isso, os bancos locaistêm ainda de aprender a lidar com as transfor-mações que estão se dando nas relações finan-ceiras no resto do mundo, já que em uma econo-mia crescentemente globalizada torna-se im-possível ignorar tais tendências.

O SISTEMA FINANCEIRO BRASILEIRO

BO

X1

8.4

Participação Percentual das Instituições Financeiras no PIB

1992 1993 1994 1995

Instituições Financeiras 12,13 15,61 12,37 6,94

Bancos 8,61 11,05 9,54 5,99

Comerciais e C.E. 2,59 2,28 2,47 2,12

Múltiplos 6,02 8,77 7,07 3,87

Bancos de Desenvolvimento 1,5 1,49 0,89 0,25

Corretoras de Títulos 0,51 0,7 0,43 0,2

Bancos de Investimento 0,45 1,06 0,71 0,06

Financeiras 0,26 0,34 0,22 0,13

Distribuidoras de Títulos 0,33 0,41 0,22 0,14

Arrendamento Mercantil 0,21 0,26 0,14 0,03

Crédito Imobiliário 0,11 0,07 0,06 0,04

Cooperativas 0,08 0,12 0,07 0,05

Auxiliares Financeiros 0,07 0,11 0,09 0,05

Fonte: IBGE/Andima, Sistema Financeiro: uma Análise a Partir das Contas Nacionais (1990-1995).

6. Cf. M. Edey e K. Hviding, “An Assessment of Financial Reform in OECD Countries”, OECD Economics Department Wor-king Paper 154, Paris, 1995. A internacionalização do sistema financeiro no interior de espaços como o da União Europeiacria um dilema para os reguladores, já que abre a possibilidade de os agentes se beneficiarem da chamada arbitragem regula-tória, isto é, alocarem sua atividade financeira nos países e regiões de regulação mais benevolente. Soluções provisórias foramadotadas para lidar com o problema, mas é difícil imaginar-se que algo menos que a uniformização de regimes regulatóriospossa ser evitado.

bonds) mas também aquelas a que recorrem, de forma ampla e persistente, tomadores de diversas ori-gens nacionais em busca de recursos financeiros. Deste modo, na concepção aqui empregada de SFI es-tão incluídos os mercados nacionais, onde tomadores estrangeiros colocam papéis denominados na moe-da local (caso dos títulos yankee, samurais etc.) em volume significativo.

Além das atividades de intermediação e securitização, consideraremos ainda outra modalidade, aque chamaremos de apoio. Sob este rótulo incluímos operações cuja importância cresce vertiginosa-mente, mas que não estão voltadas para a transferência de recursos financeiros per se, mas, sim, parao desenvolvimento de instrumentos e mercados que permitam uma maior especialização dos ativosnegociados, seja através da intermediação, seja da securitização. Aqui referimo-nos, genericamente,aos derivativos, cuja principal razão de existência não é permitir a circulação de recursos em si, mas adiferenciação dos ativos principalmente no que tange aos riscos envolvidos em cada operação. Na ati-vidade de intermediação, o principal agente financeiro envolvido é o banco comercial, captador dedepósitos, especialmente a termo, que são emprestados aos tomadores, seja por sua responsabilidade,seja através do empréstimo sindicado, isto é, o empréstimo feito por um grupo (sindicato) de institui-ções. A principal característica desse tipo de operação é a aceitação, pelo banco, do risco de créditoinerente ao empréstimo. Nas operações de securitização, o intermediário representativo é o banco deinvestimento, que tipicamente organiza o processo de colocação no mercado de papéis emitidos pelostomadores, subscrevendo-os ou não, e fornecendo-lhes ou não facilidades de reforço de crédito e li-quidez (credit enhancement). Neste caso, o intermediário financeiro sujeita-se aos riscos de mercadoe de liquidez, transferindo o risco de crédito ao aplicador final. Os mercados de derivativos desenvol-veram-se, fundamentalmente, para reduzir ou socializar aqueles dois tipos de risco. Já com relaçãoao risco de crédito, apenas agora começam a ser definidos mercados. A colocação de papéis junto aosaplicadores finais, como ações e títulos de dívida, não é, naturalmente, novidade. Em paralelo a esseprocesso de securitização, que pode ser chamada de primária, tem-se desenvolvido nova forma decaptação, denominada securitização secundária. Esta consiste seja na transformação de financia-mentos intermediados em securitizados, ou seja no “empacotamento” de obrigações de grupos relati-vamente homogêneos de tomadores, para colateralizar a emissão de obrigações do intermediário fi-nanceiro, geralmente apoiada em algum mecanismo de reforço de crédito e liquidez ou por operaçõesnos mercados de derivativos.

Os mercados de títulos se dividem em dois segmentos: os instrumentos de mercado monetário (tí-tulos de curto prazo) e o mercado de bônus (bonds) e notas (títulos de longo e médio prazos). Este últi-mo segmento é, de longe, o mais importante. De acordo com o Banco de Compensações Internacionais,em dezembro de 1999, o estoque de instrumentos de curto prazo em poder do público chegava aUS$ 260 bilhões, enquanto o estoque de bônus e notas alcançava quase US$ 5 trilhões.

Crédito é ofertado no SFI por bancos individuais ou mais frequentemente pela organização desindicatos de emprestadores, reunindo várias casas bancárias. Esta modalidade de crédito era mui-to utilizada para a concessão de empréstimos a países em desenvolvimento até as crises de dívidaexterna de vários desses países (inclusive o Brasil) no início da década de 1980. Em reação à crise,seguiu-se um período de relativa estagnação neste segmento do mercado. Esta modalidade de cap-tação voltou a crescer em 1995, ainda que parcela relevante dos valores apontados constitua-seapenas na definição de linhas de suporte de liquidez e outra parcela se resuma à rolagem de créditosanteriores.

RESUMO

Neste capítulo foram discutidas as características das principais formas de estruturação do sistema financeiro. Umsistema financeiro é definido não apenas pela identificação de seus participantes e dos mercados em que intera-gem, mas também pela natureza das restrições legislativas e regulatórias que limitam sua operação. Assim, os sis-temas financeiros podem ser classificados em quatro tipos, de acordo com dois critérios paralelos deenquadramento. Por um lado, de acordo com a forma pela qual aplicadores e tomadores se relacionam, temos de

268 Sistemas Financeiros ELSEVIER

um lado os sistemas baseados em mercado de capitais e de outro os sistemas baseados em crédito. Em paralelo aessa classificação, temos outra, apoiada na latitude de operação permitida às instituições financeiras. Assim, te-mos de um lado os sistemas segmentados, onde as instituições financeiras têm sua operação confinada a segmen-tos do mercado, em contraste com os sistemas de banco universal, em que uma mesma instituição tem apossibilidade de operar em quantos segmentos desejar.

Em paralelo aos sistemas financeiros domésticos, há ainda que se conhecer a operação do sistema financeirointernacional, cuja operação é restrita principalmente por regras de comportamento geradas pelos próprios parti-cipantes do mercado. Este mercado se apoia em dois segmentos principais, o de empréstimos bancários, feitosnormalmente através de grupos (sindicatos) de instituições, e o de títulos, dividido, por sua vez, em dois segmen-tos, o de instrumentos de mercado monetário e o de bônus e notas.

TERMOS-CHAVE

� Sistema Financeiro� Sistemas Baseados em Mercado de Capitais� Segmentação� Títulos Financeiros� Economias de Escopo� Instrumentos de Mercado Monetário

� Contratos Financeiros� Sistemas Baseados em Crédito� Bancos Universais� Relações de Crédito� Sindicatos de Bancos� Mercado de Capitais

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

As recomendações bibliográficas feitas no capítulo anterior aplicam-se também a este capítulo, especialmenteno que se refere aos relatórios do BIS e do FMI, citados. Além daquelas referências, sugere-se a leitura de:

John Zysman. Governments, Markets and Growth. Cornell University Press, 1983.Essa é certamente uma obra de referência no estudo das organizações do sistema financeiro.M.A.M. Cintra e M.C. Penido de Freitas (orgs.). Transformações Institucionais dos Sistemas Financeiros.

Edições FUNDAP (São Paulo), 1998.Eduardo Fortuna. Mercado Financeiro. Qualitymark, 1999.Esse não é propriamente um livro para ser lido e, sim, para ser consultado. É um guia bastante detalhado das re-

gulações e produtos financeiros transacionados na economia brasileira.

Sistemas Financeiros 269

REGULAÇÃO E SUPERVISÃOFINANCEIRAS

INTRODUÇÃO

Nos capítulos anteriores mostramos como é importante tanto para a estruturação comopara a operação do sistema financeiro a ação reguladora, seja por vias legislativas, sejapela ação de instituições especializadas, como o Banco Central. A regulação financeira éum dos fatores determinantes da estrutura financeira à medida que limita as possibilidadesde ação dos agentes financeiros e define não apenas as operações que podem legitima-mente ser realizadas como o papel nelas exercidos pelas instituições financeiras BancoCentral. A definição de regras de comportamento, porém, não esgota a intervenção doEstado no setor. Julga-se universalmente necessário também supervisionar a atividadedos intermediários financeiros para assegurar o adequado cumprimento das regras estabe-lecidas. Modernamente, especialmente quando se consideram as mudanças por que pas-sam os sistemas financeiros, que serão examinadas no próximo capítulo, a supervisãoeficiente da operação das instituições financeiras tornou-se excepcionalmente complexa,exigindo a formação de funcionários capazes não apenas de compreender a contabilidadeespecífica de instituições financeiras, mas também de entender suas estratégias. Esta ati-vidade pode ser exercida por instituições independentes, especialmente criadas para tan-to, ou ser definida como uma função adicional de organismos como o Banco Central.

A extensa literatura disponível sobre as razões para que se busque regular a operaçãode instituições financeiras centra sua atenção sobre duas características importantes daatividade do setor. Por um lado, argumenta-se, particularmente com relação ao setor ban-cário, que importantes externalidades, algumas positivas, outras negativas, resultam des-sa atividade. Em segundo lugar, aponta-se para a elevada probabilidade de que as transa-ções financeiras sejam marcadas por forte assimetria de acesso às informações relevantespor parte de cada classe de transacionadores envolvida. Se essas duas hipóteses são verda-deiras, justificar-se-ia a definição de conjuntos de normas regulatórias que permitissemque as externalidades positivas envolvidas na operação do setor fossem preservadas e asexternalidades negativas eliminadas ou atenuadas. A regulação seria necessária porquenão se acredita que a livre interação dos agentes diretamente interessados como compra-dores ou vendedores de obrigações seria suficiente, por si mesma, para obter esse resulta-do. A lógica da regulação prudencial apoia-se, assim, principalmente na suposição de queexternalidades importantes resultam da atividade financeira. Por outro lado, assume-setambém que a importância das assimetrias informacionais entre as partes de um contrato

CAPÍTULO

19

financeiro pode impedir a operação eficiente do mercado, permitindo a um dos lados, especialmente odas instituições financeiras, impor termos contratuais a clientes injustificadamente favoráveis a si mes-mas. Por tais razões, defende-se a necessidade de criação de regulações voltadas para a proteção doconsumidor de serviços financeiros.

19.1. EXTERNALIDADES RESULTANTES DA ATIVIDADE

FINANCEIRA

Dá-se o nome de externalidades a benefícios ou custos envolvidos em uma transação qualquer que nãosejam reconhecidos pelos agentes nela diretamente interessados.1 A existência de externalidades positi-vas justifica a criação de formas de apoio à operação de um dado setor da economia, mesmo que agentesprivados estejam envolvidos, porque se supõe que a sociedade em geral, e não apenas os operadores pri-vados envolvidos diretamente na transação, beneficia-se de sua realização. O contrário, naturalmente,vale para as externalidades negativas.

No caso do sistema financeiro, a principal das externalidades positivas resultantes de sua atividadeé consensualmente reconhecida como a organização e administração de sistemas de pagamentos. Emmodernas economias de mercado, apenas operações de pequeno valor são liquidadas pela entrega demoeda de curso forçado, isto é, papel-moeda ou moeda metálica. Qualquer outra operação, em contras-te, cujo valor envolvido seja significativo, é liquidada através de outros meios, como a transferência datitularidade sobre depósitos bancários do comprador para o vendedor (ou do devedor para o credor), ououtros meios de natureza similar. Esses sistemas de pagamentos paralelos (e muito mais importantes,em valor de operações, que o baseado em moeda de curso forçado) não apenas são mantidos por insti-tuições financeiras, notadamente bancos comerciais, como tipicamente representam externalidades daatividade financeira. Tomemos o exemplo dos depósitos à vista nos bancos comerciais, universalmenteconsiderados como parte integrante dos meios de pagamento de qualquer economia moderna: sua cria-ção não é decidida pelos bancos e pelos clientes com vistas à ampliação do estoque de moeda de umaeconomia, mas sim como resultado indireto de outras preocupações – quais sejam, as de concessão deempréstimos pelos bancos, por exemplo (que implicam a criação de depósitos, já que são concretizadosnão pela entrega de papel-moeda mas pelo crédito em conta-corrente, como se viu no Capítulo 16). Aabertura de depósitos em favor do depositante X vai permitir a ele fazer pagamentos devidos ao agenteY, que, por sua vez, poderá fazer o mesmo em favor do agente W, e assim sucessivamente. O depósitofoi criado, contudo, apenas porque era interessante ao banco e ao agente X fazer o negócio, mas acaboubeneficiando também aos agentes Y, W etc. Estes outros benefícios são externalidades, já que são van-tagens para a economia que não são consideradas pelos contratantes originais (o banco e o agente X).

Assim, a interação entre o tomador de um empréstimo bancário e o banco concedente de crédito ex-pressa-se na determinação da taxa de juros (e dos termos contratuais) que satisfaçam ambos os lados doque é, em si, uma operação privada como qualquer outra. No entanto, de operações como essa resultaum sistema de pagamentos que viabiliza a realização de transações que nada têm a ver com a que lhedeu origem. Em outras palavras, os benefícios da existência de depósitos à vista excedem em amplograu aqueles gerados pela interação entre tomador de empréstimos e banco concedente. Os ganhos so-ciais são representados pela facilidade com que operações de alto valor podem ser realizadas quandoelas podem ser liquidadas pela transferência de depósitos à vista. Por outro lado, e pela mesma razão,em caso de interrupção da atividade bancária, como ocorre, por exemplo, numa crise bancária, não sãoapenas os interessados imediatos que perdem, mas toda a economia, cujas transações estão baseadas na

Regulação e Supervisão Financeiras 271

1. Externalidades (ou economias externas) são assim definidas em um popular manual de microeconomia: “Diz-se que umaeconomia (deseconomia) externa existe quando o custo marginal social é maior (menor) que o benefício social marginal.”C.E. Ferguson Microeconomia Forense Universitária, 1993, p. 548. Operadores privados são supostos a levar em conta apenasos custos marginais privados em suas decisões.

possibilidade de troca de titularidade sobre depósitos à vista (ou seja, no pagamento através do uso desaldos em conta-corrente).

Assim, a construção de um sistema de pagamentos alternativo ao da moeda de curso forçado, aque-la emitida pelo Banco Central e que carregamos no bolso sob a forma de papel-moeda, é a primeira dasexternalidades positivas que justificam a criação de meios de apoio à atividade financeira (bancária,mais especificamente), em função do reconhecimento de que a operação estável do sistema bancário dáà sociedade mais do que o serviço cujo preço é efetivamente determinado na transação privada.

Uma segunda externalidade positiva é o efeito da concessão de crédito sobre a economia como umtodo. A oferta de crédito abre a possibilidade de geração de benefícios que vão além do lucro ou da sa-tisfação imediata do tomador de empréstimos, à medida que viabiliza a utilização de recursos por umaeconomia em escala muito maior do que seria possível se cada um tivesse que tomar suas decisões ape-nas baseado nos recursos próprios de que dispusesse. Caso, por exemplo, a produtividade de uma eco-nomia cresça com a realização de investimentos e o sistema de crédito permita que investimentos sejamrealizados em escala muito maior do que em situação onde todos estão restritos ao uso de seus própriosrecursos, há externalidades positivas, em termos de aumento de bem-estar para a sociedade, que não se-riam computadas nos contratos privados de crédito, entre o banco e o tomador, os quais, naturalmente,pensam apenas nos benefícios para si mesmos.

Nem todas as externalidades, porém, são positivas. A principal externalidade negativa a ser consi-derada quando se examina a possibilidade de criação de normas regulatórias é a possibilidade de crisessistêmicas, fortemente presente na operação do sistema financeiro. Crises sistêmicas podem ocorrer emfunção da interação entre instituições financeiras, quando obrigações de uma classe de instituição seconstituem em ativos de outra, servindo assim como correia de transmissão de choques adversos à pri-meira. O contágio de choques adversos pode se dar, porém, em função de algo ainda mais difícil de con-trolar, que é a perda de confiança do público em alguma classe de instituição, quando uma delas sofrealgum choque adverso. O fenômeno da corrida bancária, frequente nas primeiras décadas deste século,é talvez a ilustração mais dramática deste fenômeno. Quando se assiste à quebra de um banco, porexemplo, é possível que clientes de outros bancos possam se perguntar se o mesmo não poderia ocorrercom as instituições com que operam. A simples dúvida, neste caso, pode ser fatal, porque pode ser sufi-ciente para que clientes vejam como precaução adequada o saque de seus depósitos, condenando,assim, o resto do sistema à quebra.2 O fenômeno do contágio é, assim, um exemplo de externalidade nega-tiva, porque significa que se uma instituição financeira faz qualquer transação que aumente seu própriorisco de falência, ela cria, por isso mesmo, custos para outras instituições, por mais eficientemente diri-gidas que estas últimas sejam.

As externalidades positivas e negativas, neste caso, não são independentes. O fenômeno do contágioé particularmente dramático porque os efeitos do colapso do sistema bancário, quando há corridas bancá-rias, não se esgotam no fechamento de um certo número de empresas bancárias, como ocorreria em qual-quer outro setor da economia. A perda dessas instituições implica o colapso do sistema de pagamentos ba-seado na circulação de depósitos e na recessão da economia em função do colapso do sistema de crédito.

A existência dessas externalidades positivas e negativas serve de justificativa tanto para a criação deinstrumentos de preservação do sistema financeiro, quanto para a imposição de limites às suas formas deoperação. A preservação do sistema de pagamentos é buscada através da criação de mecanismos como oredesconto de liquidez, os seguros de depósitos, e de instituições como o emprestador-de-última-instân-cia, função clássica de um Banco Central. Esses mesmos mecanismos serviram, de forma extremamenteeficiente na história das economias de mercado do século XX, para eliminar o fenômeno da corrida ban-cária, já que depositantes perdem o incentivo ao saque preventivo de depósitos quando confiam na exis-tência de instituições que os garantam ou apoiem o banco em que foram feitos. Já o fortalecimento do sis-tema de crédito, assim como a redução dos riscos de colapso de instituições individuais – que poderiampôr em dúvida a saúde do sistema financeiro como um todo – são buscados através de restrições sobre as

272 Regulação e Supervisão Financeiras ELSEVIER

2. Para se entender por que a tentativa dos depositantes de sacar todos os seus depósitos pode levar à quebra de um banco, pormelhor que este seja gerido, veja-se como funciona um sistema bancário de reserva fracionária, descrito no Capítulo 16.

decisões tomadas pelas instituições financeiras em termos de que ativos adquirir e/ou que passivos ven-der. O principal conjunto de regulações que afetam tais instituições é, por isso mesmo, chamado de regu-lação prudencial, isto é, normas visando garantir que tais instituições sejam geridas com cuidado paraminimizar os riscos de sua operação e evitar que os riscos de colapso se acumulem.

19.2. ASSIMETRIAS DE INFORMAÇÃO

Reconhecida mais recentemente do que os problemas com a segurança do sistema financeiro, tem sido tam-bém apontada como razão para a definição de normas regulatórias a possível assimetria de informações en-tre as partes de contratos financeiros. A suposição de partida é a de que os elementos relevantes para arealização de uma transação financeira são normalmente opacos. A livre operação dos mercados é usual-mente considerada eficiente quando várias condições são cumpridas, especialmente no referente à transpa-rência das operações, isto é, da livre (e gratuita) disponibilidade das informações relevantes a todas as partesenvolvidas na transação. Em contraste, quando a informação é distribuída de forma assimétrica, temos umasituação semelhante à de um monopólio, em que uma das partes é capaz de extrair vantagens da outra, aocontrário do mútuo benefício que se espera resultar da operação de mercados perfeitamente competitivos.

Informações privilegiadas podem ser acessíveis, naturalmente, a ambos os lados de uma tran-sação. Clientes de uma instituição financeira podem não revelar suas reais intenções quando com-pletam uma operação de empréstimo, por exemplo. Há óbvios incentivos à ocultação dos riscos quecercam alguma utilização de recursos que poderiam encarecer a tomada de crédito necessária parasua viabilização.3 Considera-se, contudo, normalmente, que as instituições financeiras têm vanta-gens na coleta e processamento de informações que não são acessíveis a grande parte dos clientespotenciais, especialmente aqueles de menor renda, nível de educação etc. Por outro lado, a defesadas instituições já é praticada com base, por exemplo, em leis de falência, de tomada de colateraisetc. Por isso, considera-se que a assimetria de informações é algo que prejudica principalmente ocliente de instituições financeiras, e, mais especificamente, os pequenos clientes, aqueles que nãotêm muitas escolhas, nem recebem maior atenção dos funcionários das instituições onde fazemseus investimentos ou obtêm seus empréstimos.

Contratos financeiros são escritos em linguagem legal, de sentido nem sempre acessível a clientes,um problema especialmente grave no setor de seguros, em que as condições de recebimento de um deter-minado seguro têm de ser definidas de forma a evitar fraudes. Por outro lado, aplicadores de recursos jun-to a instituições financeiras em raras circunstâncias são capazes de avaliar os riscos e retornos efetivamen-te envolvidos na operação dessas empresas, mesmo que estas coloquem à disposição dos clientes os dadosrelevantes. A percepção de que essas limitações podem ser importantes cresceu à medida que os sistemas fi-nanceiros se modernizaram e sofisticaram, diversificando suas atividades para incluir tipos de operaçõescuja lógica é de difícil entendimento às vezes até mesmo para operadores do setor. Com a percepção de queos riscos cresceram definiu-se a necessidade de criação de normas regulatórias de proteção ao consumidorde serviços financeiros. Tais normas podem variar desde a exigência de tornar certas informações estraté-gicas disponíveis para os interessados, isto é, a busca de transparência, até a imposição de limites às for-mas de operação de instituições financeiras, semelhantes àquelas que já se impunham ao setor bancário.

19.3. REGULAÇÃO E EFICIÊNCIA DOS MERCADOS

Muitos oponentes da imposição de normas regulatórias, no atacado ou no varejo, apontam para o im-pacto distorsivo destes mecanismos. A regulação prudencial tem normalmente como meta impedir a rea-

Regulação e Supervisão Financeiras 273

3. Este tipo de assimetria está na base da hipótese de que bancos racionam crédito ao invés de leiloá-lo entre aqueles que se dis-puserem a pagar as maiores taxas de juros. Veja-se a discussão sobre racionamento de crédito no Capítulo 5.

lização de negócios que ameacem a segurança do sistema e que, provavelmente, seriam realizados naausência destes limites. Toda regulação implica, obviamente, a limitação da liberdade de escolha priva-da, dado que se não houvesse a possibilidade de comportamentos danosos serem adotados não haveria anecessidade de proibi-los.

Regulações são, assim, certamente distorsivas, mas a justificativa para sua adoção é a constataçãode que os mercados de serviços financeiros já operariam, por si, de forma distorsiva. O argumento é ode que, por exemplo no caso da regulação prudencial, os mercados não seriam capazes de avaliar o be-nefício de suas operações para a sociedade, de forma que é necessária a criação de instrumentos que ga-rantam a produção contínua desses benefícios. Esses instrumentos, por sua vez, podem acabar sendopercebidos como incentivos à adoção de estratégias que se revelem, em si mesmas, excessivamente ar-riscadas, justificando a criação de limites à ação privada. Em termos mais simples, a garantia de sobre-vivência do sistema de pagamentos via depósitos à vista exige a criação de mecanismos como o do em-prestador-de-última-instância, que deem apoio aos bancos depositários. Esse apoio, por sua vez, podeincentivar o público a manter um volume maior de depósitos bancários do que seria o caso na ausênciadas garantias, incentivando os bancos a emprestar mais, dada a abundância de recursos captados. É pos-sível que, para que os bancos pudessem fazer mais empréstimos, eles tivessem que recorrer a clientesmenos seguros, com isso fragilizando a situação. É para impedir que isto ocorra que são impostos limi-tes sobre essas aplicações. A regulação torna-se, assim, parte de um complexo sistema em que externa-lidades justificam formas de intervenção que, por sua vez, exigem intervenção adicional para controlaros subprodutos da primeira.

Especialmente no que tange a países emergentes, há uma visão amplamente compartilhada de queos sistemas de administração das instituições financeiras domésticas são especialmente ineficientes.Embora essa fraqueza também se possa manifestar em instituições financeiras que operam em paísesmais desenvolvidos, nos países em desenvolvimento a ineficiência, especialmente na gestão de riscos, éconsiderada endêmica, exigindo critérios mais duros por parte dos reguladores e atenção redobrada dossupervisores.

Em suma, regulações de qualquer natureza são, por definição, distorsivas, porque visam a orientaro comportamento privado em direção diferente daquela que seria adotada espontaneamente. Essa preo-cupação, porém, é menos relevante do que parece à primeira vista, porque a regulação, se bem planeja-da, introduz “distorções” compensatórias, no sentido de que tentam coibir falhas de mercado. Ideal-mente, é claro, regulações deveriam ser desenhadas de forma a compensar de forma precisa a falha demercado identificada. A operação real dos mercados, porém, é complexa demais e mutante demais paraque isto seja mais do que uma preocupação genérica no desenho de normas regulatórias.

19.4. ESTRATÉGIAS DE REGULAÇÃO FINANCEIRA

As últimas duas décadas têm testemunhado um processo acelerado de mudança nas estratégias regula-tórias adotadas nas principais economias de mercado, com reflexos bastante importantes sobre as op-ções abertas aos países menos desenvolvidos. Com efeito, princípios e práticas regulatórios aceitos deforma praticamente imutável por um longo período tiveram sua eficácia posta em dúvida, especialmen-te a partir dos anos 80, seja na sua capacidade efetiva de coibir comportamentos considerados condená-veis pelas autoridades, seja na sua flexibilidade para adaptar-se ao processo, igualmente acelerado nasúltimas duas décadas, de inovação institucional que tem transformado os mercados e as instituições fi-nanceiras. Sistemas que, por décadas, sofreram transformações no máximo marginais, foram abando-nados e substituídos por outros, que por sua vez também se tornaram rapidamente obsoletos, em ritmosurpreendente. Assim, é possível conceber-se a evolução recente da regulação financeira como a suces-são de fundamentalmente quatro estágios, em que o mais recente já é, ele próprio, objeto de reexame.4

274 Regulação e Supervisão Financeiras ELSEVIER

4. No Capítulo 20 descreveremos as principais transformações recentes dos sistemas financeiros e a tendência à liberalização edesregulação financeira.

19.4.1. REGULAÇÃO DE BALANÇOS

A primeira das estratégias de regulação, dominante por muito tempo, poderia ser descrita pela busca decontrole direto sobre as operações das instituições financeiras. Esse sistema, que coloca demandas pe-sadas às instituições de supervisão (encarregadas de garantir a obediência às normas por parte dos inter-mediários financeiros), consistia no banimento de certas classes de atividades a cada tipo de instituiçãofinanceira5 e a imposição de indicadores quantitativos objetivos para o julgamento da adequação das o-perações permitidas. No que diz respeito ao sistema bancário, por exemplo, índices de liquidez basea-dos na disponibilidade de reservas primárias e secundárias que permitissem honrar retiradas dedepositantes eram objeto de atenção especial.

Na verdade, a preocupação com o risco de iliquidez, no caso do sistema bancário, criado no contex-to de transformação de maturidades operada pelos bancos, era o ponto crucial do sistema regulatório.Voltada para a defesa do sistema de pagamentos, a regulação prudencial buscava garantir principal-mente a liquidez dos depósitos, impondo limites à natureza das aplicações permitidas aos bancos e esti-mulando (ou forçando) a constituição de reservas adequadas para fazer face a demandas de saque porparte dos depositantes. Esses limites poderiam variar desde a proibição de certos tipos de investimentoque fossem julgados particularmente arriscados, até o incentivo à aquisição de determinados ativos, tor-nando-os, por exemplo, elegíveis como colateral para acesso a redesconto.

19.4.2. COEFICIENTES DE CAPITAL

O sistema anterior, apesar de adotado por décadas, tornou-se obsoleto diante das inovações institucio-nais que foram se acumulando, de forma especialmente acelerada em anos mais recentes. Por um lado,estratégias de diversificação de fontes de recursos, conhecidas como administração de passivos (liabi-lity management), contribuíram para diminuir a importância de depósitos à vista no passivo bancário,reduzindo a eficácia de regulações que se apoiavam principalmente em indicadores relacionados a de-pósitos. Por outro lado, tornou-se crescentemente aceita a ideia de que os riscos mais importantes a quese sujeitavam as instituições financeiras, e que deveriam ser monitorados e contidos pelos reguladores,eram derivados de lacunas no modo pelo qual o “mercado” controlaria a ação das instituições financei-ras. A ideia central, conhecida na literatura como o problema do agente e do principal, é a de que inter-mediários financeiros têm incentivos a correr riscos excessivos porque sua remuneração depende darealização do maior volume de negócios possível, particularmente aqueles de maior risco que, por issomesmo, oferecem maiores taxas de rentabilidade.6 Em caso de sucesso, a instituição financeira, e parti-cularmente seus administradores, poderiam auferir grandes ganhos. Em caso de fracasso, a perda recai-ria sobre os poupadores cujo capital tivesse sido cedido à instituição financeira. Assim, o poupador,fonte de recursos para as instituições financeiras, estaria, sem saber, dada a opacidade dessas institui-ções, assumindo riscos muito maiores do que estaria de fato disposto a correr pela remuneração efetiva-mente recebida.

Por essa visão, portanto, o problema da segurança do sistema consistiria em evitar que as institui-ções financeiras corressem mais risco do que o aceitável, já que a estrutura de incentivos definida pelo

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5. Os exemplos mais expressivos deste procedimento são as normas legais que impuseram a segmentação do sistema financei-ro norte-americano, proibindo a bancos comerciais atividades de bancos de investimento e vice-versa, e as normas igualmenterestritivas, apesar da impressão generalizada em contrário, adotadas na Alemanha sobre maturidades de ativos e passivos nosbancos universais.6. O problema do agente e do principal é uma consequência da hipótese de que, pelo menos em certos setores ou mercados, ainformação relevante para a tomada de decisões pode ser distribuída de forma assimétrica, isto é, privilegiando alguns em de-trimento de outros. Esta assimetria se mostraria problemática quando há uma relação de representação, isto é, quando alguém(chamado de agente) age em nome de outros (chamado de principal). Se o principal não for tão bem informado quanto o agen-te, ele poderá ser enganado por este último, isto é, o agente pode agir em função de seu próprio interesse ao invés do interessedo principal. Isto acontece quando executivos tomam decisões que os beneficiam em detrimento dos acionistas de uma empre-sa, quando bancos tomam decisões em detrimento dos depositantes que lhes cederam recursos etc.

modo de operação do sistema perversamente levava a isso. Consequentemente, o que ameaçaria as ins-tituições, e, deste modo, o sistema de pagamentos que se quer defender, seria o risco excessivo assumi-do nas aplicações dos bancos. O objeto da regulação prudencial, assim, deveria ser a estratégia ativados bancos, mais do que o perfil de seus passivos, como no método anterior. Era preciso introduzir in-centivos que compensassem aqueles que estimulavam o risco excessivo.

O método utilizado foi consagrado no Acordo da Basileia de 1988. Por este acordo, os países queaceitassem seus princípios introduziriam normas regulatórias estabelecendo coeficientes de capitalexigidos dos bancos em proporção aos seus ativos, ponderados estes últimos de acordo com seus riscos.Cada banco deveria constituir capital próprio em valor proporcional às suas aplicações. Esta proporçãodependeria do risco reconhecido em cada categoria de crédito dentro de detalhada lista preparada nasconversações entre reguladores na Basileia e adaptada às condições de cada país que aderisse ao siste-ma. A ideia-chave é relativamente simples: ao forçar os bancos a comprometer seu próprio capital, es-tar-se-ia compensando os incentivos perversos à aceitação de riscos excessivos criados pelo fato deque, em caso de perda, esta seria inteiramente de responsabilidade de terceiros. Esta ideia, vale frisar,fundamenta não apenas uma estratégia de regulação prudencial, mas, ao mesmo tempo, já propõe umaperspectiva de defesa de consumidores, neste caso a defesa do interesse dos poupadores que raramenteeram capazes de avaliar adequadamente o risco corrido pelas instituições financeiras em que aplicavamseus recursos.

Em contraste com o método anterior, essa estratégia consistia em envolver o interesse próprio dasinstituições financeiras em fazer investimentos mais seguros através de exigências mínimas de capital,porque agora, em caso de quebra do banco, os acionistas também perderiam seu capital, e não apenas osrecursos dos depositantes. Para o supervisor, por outro lado, abandonava-se com esse método o examemais detalhado de balanços e a imposição de indicadores quantitativos de desempenho, em favor deuma relativa liberalização da atividade bancária sempre que os requisitos mínimos de capital fossemcumpridos.

19.4.3. COEFICIENTES DE CAPITAL E INOVAÇÃO FINANCEIRA

Passados poucos anos da definição do acordo, algumas de suas limitações começaram a ficar evidentese tornou-se clara a necessidade de emendá-lo. De fato, o acordo concentrou-se originalmente na defesacontra riscos de crédito, em um período em que bancos crescentemente diversificavam suas atividades,sujeitando-se cada vez mais a outros tipos de risco contra os quais o Acordo da Basileia nada oferecia.Na verdade, de modo perverso, o próprio acordo passou a ser responsabilizado, ao menos em parte, pelacrescente aceitação desses outros riscos. Ao impor coeficientes de capital sobre tipos de crédito, o acor-do tornou o crédito relativamente mais caro quando comparado a outras formas de intermediação finan-ceira, cujos riscos não tivessem que ser compensados pela constituição de capital próprio. Assim, oacordo, que já corria o risco de se tornar obsoleto em período de diversificação de atividades permitidasaos bancos, acabou por agravar este processo, tornando, paradoxalmente, o sistema bancário possivel-mente mais frágil, ao invés de mais sólido.

Por essa razão, pouco tempo depois de concluído, e enquanto suas disposições ainda nem sequer seaplicavam na sua plenitude na maior parte dos países aderentes, o acordo passou a ser objeto de reexa-me para torná-lo ao mesmo tempo mais eficaz e menos distorsivo. A ideia-chave seria manter a defini-ção de coeficientes de capital como base da estratégia regulatória, mas recalculá-los de modo a abran-ger uma gama mais ampla de riscos, como os riscos de mercado e os de iliquidez.

Ao reorientar sua estratégia dessa forma, os formuladores da estratégia esbarraram, porém, em umproblema fundamental. A tendência inicial seria tratar dos riscos de mercado, de iliquidez e outros deforma aditiva, isto é, definindo coeficientes adicionais de capital proporcionais a esses outros riscos. Ocálculo adequado dos riscos embutidos numa determinada carteira de ativos deve levar em conta, po-rém, que os riscos não são independentes e que sua interação depende do perfil específico de cada cartei-ra. Em outras palavras, a expectativa de que o acordo poderia ser ampliado através da simples adição de

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coeficientes de capital calculados de acordo com cada classe de riscos aceitos pelas instituições finan-ceiras foi rapidamente desapontada. Na verdade, essa expectativa foi suplantada pela percepção oposta,de que seria provavelmente impossível estabelecer um conceito geral de risco que permitisse fixar coe-ficientes de capital aplicáveis a qualquer perfil de carteira de ativos. Para manter-se essa estratégia seriapreciso, em consequência, um conhecimento e uma monitoração muito mais específica e detalhada queaquela que se buscava com o Acordo de 1988. Uma das grandes vantagens vistas no acordo original eraa de diminuir e simplificar o trabalho dos supervisores encarregados de acompanhar o enquadramentonos regulamentos. Agora percebia-se que a extensão do acordo para outros tipos de risco implicariaexatamente o oposto: os supervisores teriam de ser capazes de exercer monitoração e controle sobreestratégias muito mais complexas, o que estaria provavelmente fora do alcance da imensa maioria dospaíses que aderiram inicialmente à estratégia.

Estes receios se concretizaram quando da divulgação do texto final do novo Acordo da Basileia,que se tornou conhecido como Basileia II, em junho de 2004.7 O objetivo central do novo texto é alinharos incentivos que os reguladores querem dar aos bancos para adotarem posturas de cautela com os in-centivos que os próprios bancos encearam na sua atividade de mercado. Em outras palavras, a ambiçãomaior do novo Acordo é que o coeficiente de capital que o regulador busque impor a cada banco sejaexatamente que aquele banco escolheria, voluntariamente, na sua administração privada de riscos. Oque o novo acordo pretende, portanto, é mimetizar, isto é, reproduzir na regulação bancária, os meca-nismos de administração de risco do próprio sistema bancário. Para conseguir isso, o acordo foi estrutu-rado em três pilares: o cálculo dos coeficientes de capital, a revisão pelo supervisor e a disciplina demercado. Alem disso, ao contrário de Basileia I, que apenas cobria o risco de crédito, Basileia II quercobrir o risco de crédito, o risco de mercado (isto é, o risco de que flutuações nos preços de títulos man-tidos em carteira pudessem afetar a saúde financeira da instituição bancária) e o risco operacional (istoé, o risco envolvido em problemas que podem afetar a operação normal da instituição, como fraudes,incompetência gerencial, interrupção de serviços etc.). Os bancos serão divididos em grupos, de acordocom sua capacidade de administração de riscos e àqueles mais avançados será concedida uma ampla(mas não total) iniciativa na fixação dos coeficientes de capital. De acordo com o segundo pilar, os su-pervisores bancários terão de ser capazes de julgar a capacidade de administração de riscos de cada ban-co e a adequação dos coeficientes e métodos escolhidos. Pelo terceiro pilar, caberá ao mercado (clien-tes, acionistas etc.) completar esse processo, julgando por si mesmos até onde as estratégias de adminis-tração de risco escolhidas serão efetivas.

Apesar das boas intenções dos autores do novo texto, sua divulgação gerou um amplo movimentode críticas por parte de analistas acadêmicos, reguladores e profissionais do sistema financeiro. As prin-cipais críticas são as de que o acordo é excessivamente complexo e prescritivo, exige dos supervisoresmais do que são provavelmente capazes de fazer, promove novas formas de concentração bancária e dápouca segurança, ao final, com relação aos riscos que pretende prevenir. Ainda assim, não parece havermuitas alternativas à adoção do acordo da Basileia. O Banco Central do Brasil, por exemplo, já anun-ciou seu plano para que a implementação do novo acordo esteja completa em 2011.

19.4.4. AUTO REGULAÇÃO COMO ESTRATÉGIA

Em meados dos anos 90, em função dos problemas citados acima, firmou-se a posição de que a regula-ção prudencial teria de se voltar para estratégias de investimento das instituições financeiras, ao invésde se voltar para itens ou características específicas de sua operação. Eram as estratégias adotadas quedefiniam qual o grau de risco escolhido e não as caraterísticas de cada tipo de ativo isoladamente. Estapercepção, juntamente com a outra de que a complexidade crescente da atividade financeira, em funçãodas inovações constantes, criando-se novos mercados e novos instrumentos quase diariamente, e da di-versificação de atividades e de mercados nacionais em que operavam as instituições financeiras, torna-

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7. O texto do novo acordo está disponível em www.bis.org/publ/bcbsca.htm.

ria quase impossível a supervisores monitorar de forma eficiente a vulnerabilidade efetiva do sistemafinanceiro – estimulou a implementação de um novo método de supervisão.

Partindo do suposto de que seria impossível retornar a um sistema de regulação e supervisão maisdetalhista, e frente à impossibilidade de desenhar um sistema de avaliação e compensação de riscosmais simples, que pudesse ser resumido em um conjunto dado de indicadores como os coeficientes decapital fixados anteriormente pelos reguladores no Acordo da Basileia, chegou-se, de forma pratica-mente inevitável, à estratégia de autorregulação. Nesta alternativa, caberia aos próprios bancos definiruma estratégia de avaliação e tratamento de riscos. Esta deveria se materializar em estratégias formaisde controle, descritas em modelos quantitativos, portanto, que seriam submetidos à autoridade regula-dora e/ou supervisora para aprovação. Vários tipos de modelos voltados para o cálculo dos riscos en-volvidos em cada estratégia utilizada por uma instituição foram produzidos, sendo conhecida a princi-pal família de modelos como VAR (value at risk), pelos quais seriam calculadas as perdas a serem incor-ridas em caso de eventos adversos previsíveis. Coeficientes de capital seriam então estabelecidos emfunção deste valor colocado em risco por uma dada estratégia.

O entusiasmo inicial por essa estratégia cedeu, porém, rapidamente a um certo desencanto, quandoas crises asiática e russa, em 1997 e 1998, impuseram pesadas perdas às instituições financeiras que de-veriam estar adotando estratégias mais eficazes de proteção. Na verdade, como se percebeu, havia umafalha intrínseca a essa abordagem: o cálculo do valor em risco se baseia nas séries históricas de volati-lidade do mercado; quando algo excepcional tem lugar, por definição, podem ocorrer perdas para asquais as instituições que se defendem contra o passado podem não estar preparadas.

A reação dos reguladores a esse problema, até o presente, foi insistir que as instituições financeirasnão se limitem a construir modelos tipo VAR, mas que também sujeitem estes modelos aos chamadostestes de resistência (stress tests). Estes testes consistem em determinar quais as perdas que seriam so-fridas por uma instituição com determinada carteira não apenas nas condições normais de volatilidade,isto é, aquelas derivadas da experiência passada, mas também em circunstâncias particularmente gra-ves, a serem concebidas pelos estrategistas de cada instituição financeira.

Dificilmente os testes de resistência serão a resposta para as insuficiências dessa abordagem. Porum lado, sua eficácia depende em grande parte da imaginação dos formuladores do modelo. Quem teriaprevisto, por exemplo, o default russo em 1998? Quem teria considerado em seu modelo a possibilidadede que um fundo tão prestigiado pelos mercados financeiros internacionais como o Long Term CapitalManagement, com seus famosos operadores e com dois prêmios Nobel de Economia entre seus sócios,não apenas poderia falir como, na verdade, não seria sequer possível saber o seu grau de alavancagem(mantido cuidadosamente em segredo até mesmo para alguns de seus participantes)? Por outro lado, oque se espera realmente desses testes? Do ponto de vista da instituição financeira, coeficientes de capi-tal não podem ser estabelecidos tendo em vista a defesa contra acontecimentos históricos altamente im-prováveis, porque isso inviabilizaria sua atuação cotidiana pelos altos custos que imporia. Por outrolado, o que interessa aos reguladores e supervisores é exatamente a ocorrência dessas circunstânciasúnicas, em que a possibilidade de colapso sistêmico se desenha.

19.5. SUPERVISÃO DE CONGLOMERADOS FINANCEIROS

Uma demanda adicional passou crescentemente a se colocar para os supervisores financeiros. Tradicio-nalmente, a supervisão era feita por instituições especializadas em segmentos específicos do mercadofinanceiro. Nos últimos anos, porém, cresceu muito a importância dos conglomerados financeiros, ins-tituições frequentemente gigantescas, capazes de operar em muitos mercados simultaneamente. Paraque se supervisione adequadamente tais instituições, é preciso não apenas examinar como elas atuamem cada segmento do mercado, mas também como o conglomerado como um todo estrutura sua opera-ção, porque a própria diversificação de operações é um elemento importante de administração de riscos.

Na verdade, como se verá no Capítulo 20, a tendência à conglomeração financeira é apenas a facemais visível de um processo de transformação da atividade financeira, que tem se concretizado princi-

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palmente na redução de barreiras entre segmentos do mercado financeiro, aproximando o perfil das ins-tituições que neles operam ao mesmo tempo em que diferenças tradicionais entre serviços financeirossão gradativamente apagadas. Entre as características já definidas dos novos modos de operação dossistemas financeiros contam-se a redução gradativa dos custos dos recursos, especialmente a partir dadisseminação das formas desintermediadas de alocação de recursos financeiros, particularmente comos processos de securitização; a importância crescente dos atributos de liquidez dos ativos, magnifica-dos a partir da criação de mercados secundários para contratos de toda natureza e a criação de mecanis-mos mais específicos como instrumentos derivativos, particularmente os derivativos de crédito e osswaps; a concomitante redução da importância das atividades tradicionais de intermediação de crédito;a diminuição da importância dos relacionamentos de longo prazo, típicos da operação dos bancos co-merciais, entre instituições financeiras e clientes; a concomitante disseminação de uma perspectiva deoperação, melhor caracterizada como “administração de carteira”, por parte dos responsáveis por insti-tuições financeiras; o alargamento da área geográfica de operação das instituições financeiras, caracte-rística fundamental do processo de integração financeira internacional chamado de globalização. Emresultado do conjunto dessas tendências, emerge uma possível tendência à fragilização relativa do sis-tema financeiro, crescendo sua volatilidade potencial.

Esse crescimento de volatilidade potencial não apenas torna os desafios colocados aos supervisoresmais prementes, como também, simultaneamente, mais ameaçadores e mais difíceis. O potencial deperturbação da atividade econômica representado por crises financeiras no presente foi dramaticamenteilustrado na sucessão de crises iniciada em 1997, com a crise asiática, e que acabou por atingir o Brasilao final de 1998. A rapidez com que as ondas de choque das crises asiática, primeiro, e russa, em segui-da, atingiram a economia brasileira ilustra a dificuldade do trabalho de reguladores e supervisores emgarantir a segurança dos sistemas financeiros nacionais nas condições atuais de globalização. Por outrolado, a complexidade das situações criadas pelos novos desenvolvimentos dos mercados financeirospodem ter colocado a possibilidade de construção de um sistema regulatório/supervisor mais eficientealém do alcance das autoridades que operam no mundo real.

Assim, se as mudanças financeiras a que podemos nos referir de forma sintética pela expressão “con-glomeração financeira” contribuem para a redução dos custos de capital, ao reduzir os custos de interme-diação financeira, elas também abrem novas áreas de risco que devem se constituir em foco de atençõespara reguladores e supervisores. Os custos de capital, efetivamente, devem se reduzir, pela ação combina-da de um certo conjunto de fatores fundamentais. Em primeiro lugar, porque a conglomeração deve per-mitir o usufruto de economias de escala e de escopo por parte das instituições financeiras. Supõe-se queestas economias existam, teoricamente, em dimensão relevante dada a importância dos custos fixos namontagem dos sistemas de captação de informação cruciais para a instalação de um intermediário finan-ceiro e na criação dos sistemas de administração (back office) e de atendimento a clientes (front office). Osegundo efeito positivo da conglomeração financeira seria a possível diminuição de riscos resultante dadiversificação de operações. A conglomeração financeira, contudo, não se explicaria pelos “ganhos so-ciais” que poderiam dela resultar, mas do fato de que a empresa emergente seria mais lucrativa.

O outro lado dos ganhos que a conglomeração potencialmente oferece, às instituições financeiras eà sociedade, através do menor custo de capital, é a nova configuração de riscos que se cria, cuja monito-ração coloca demandas aos supervisores para as quais estes podem não estar preparados.

A conglomeração financeira, ou a diversificação das atividades de instituições antes funcionalmen-te especializadas cria vários problemas de difícil solução para supervisores. Em primeiro lugar, a admi-nistração de risco por parte das instituições financeiras agora atravessa as fronteiras dos diversos seg-mentos do mercado. Não faz sentido uma empresa diversificada desenvolver múltiplas estratégias derisco adequadas, uma a uma, de modo estreito, a um segmento específico do mercado. À medida que oscomportamentos dos diversos mercados não se correlacionam de modo perfeito entre si, a diversifica-ção não combina riscos de forma aditiva, mas multiplicativa. O próprio Comitê da Basileia não apenasreconhece que isto é inevitável, mas ativamente recomenda que as instituições financeiras diversifica-das alterem sua estrutura operacional de modo a adequá-la à implementação de estratégias de risco maissofisticadas. Este atravessar fronteiras se dá através de múltiplos canais. Por um lado, a estrutura de pro-

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dutos financeiros pode refletir a tentativa de aproveitar a independência relativa de certos segmentos domercado para diluir riscos. Além disso, estratégias de hedge podem envolver a aquisição de ativos fi-nanceiros variados. Ainda outro canal é o das garantias cruzadas, nas quais um segmento do conglome-rado emite obrigações que podem elas próprias servir como instrumento de administração de risco emoutro segmento ou nível de organização.8 Nessas condições, criam-se novos canais de contágio de difi-culdades cujo mapeamento, eventualmente, pode acabar se dando apenas quando uma crise já se expli-cita e a fragilidade de certos tipos de garantia se manifesta.

Assim, percebe-se que a monitoração das atividades das instituições financeiras de modo maisaprofundado do que a simples aprovação de estratégias ainda será exigida do supervisor por algum tem-po, se é que algum dia esta função poderá ser integralmente transferida ao mercado. Certamente não en-quanto externalidades importantes continuarem resultando da ação das instituições financeiras e os sis-temas de administração privada de risco não forem mais confiáveis do que no presente.9

A situação, em si já suficientemente difícil, se torna ainda menos tratável quando se tem em conta ocrescimento da importância de operações fora de balanço, quando o balanço das instituições é o instru-mento tradicional de trabalho de supervisão, da emergência de riscos ainda não mapeados, e de produ-tos de natureza ambígua. Nessas condições, a supervisão financeira não pode continuar sendo exercidanos seus moldes tradicionais. É preciso desenvolver métodos que permitam o acompanhamento nãoapenas dos segmentos relevantes da instituição, mas de sua atuação como um todo, colocando novasdemandas aos quadros de fiscalização e supervisão.

19.5.1. NOVAS DEMANDAS SOBRE OS SUPERVISORES RESULTANTES

DA CONGLOMERAÇÃO FINANCEIRA

Essas novas tendências, e a conglomeração em particular, alteram radicalmente as condições de com-petição entre as instituições financeiras, exigindo atenção dos reguladores e supervisores, tanto para agarantia da segurança do sistema, quanto da supervisão da operação dos mercados e com a defesa doconsumidor. Em particular, se torna necessária uma visão ampla do setor financeiro, que ultrapasse oslimites da velha regulação funcional, isto é, a definição de regras aplicáveis a cada função financeira,como a dos bancos comerciais, dos bancos de investimento etc.

Talvez o resultado mais problemático desses desenvolvimentos para a atividade de supervisão fi-nanceira seja exatamente a “contaminação” de práticas de um segmento de mercado para outro, quandoas diferenças entre produtos, e entre seus respectivos mercados, se obscurecem. Essa “contaminação” éainda mais problemática porque não se dá sem imprimir viezes importantes nas práticas financeiras do-minantes nos diversos mercados. Assim, o crescente predomínio das formas desintermediadas de circu-lação de recursos financeiros, com o crescimento dos mercados de papéis e dos mercados secundários,em função da crescente atenção dada aos atributos de liquidez confere à atividade financeira um viés“curto-termista” típico da atividade de administração de carteiras e dos bancos de investimento. À me-dida que segmentos do mercado financeiro, tradicionalmente geridos em linhas diferentes da mencio-nada, comecem a ser disputados por empresas provenientes de segmentos do mercado marcados porpráticas diferentes, as empresas ali originalmente instaladas passam a ter de incorporar estratégias dife-rentes das tradicionais para manter sua competitividade. Um exemplo disto é a evolução recente de fun-dos de pensão que, tradicionalmente voltados para a busca de retornos estáveis de longo prazo – dada anatureza do compromisso que assumem com seus associados, ao terem seu mercado disputado poradministradores de portfólio e bancos de investimento, voltados para a satisfação de critérios completa-

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8. Como, por exemplo, no caso em que os coeficientes de capital a serem constituídos por uma empresa bancária se dão sob aforma de ações em uma empresa coligada ou da holding do grupo etc., prática que alguns reguladores tentam coibir ou limitar.9. Na verdade, como argumentado acima, a questão pode ser mesmo mais profunda, baseada no fato de que instituições finan-ceiras e supervisores monitoram riscos por questões diferentes e com vistas a perturbações diferentes, de modo que um nãopossa, em nenhuma circunstância relevante, ser mesmo substituído pelo outro. Não cabe a uma instituição financeira zelar pelasegurança sistêmica, tanto quanto não cabe a um organismo supervisor substituir a ação da empresa privada na busca de lucros.

mente diferentes de desempenho –, acabam tendo que perseguir metas diferentes das originais e para asquais podem não estar aparelhados. O desempenho de mercado medido pela valorização de curto prazode papéis em carteira e pela sua liquidez pode não ter qualquer relevância para o cumprimento das obri-gações assumidas por um fundo de pensão junto aos seus associados. No entanto, ao ter seu mercadocontestado por administradores de carteira que se valem exatamente desses critérios de “sucesso”, ofundo pode não ter alternativa senão mudar seu próprio padrão de avaliação, sob pena de perder merca-do para administradores que se apresentarão como mais “dinâmicos”, melhor afinados com os merca-dos financeiros, em contraste com o “conservadorismo” dos administradores tradicionais etc.

Essa “contaminação” de práticas para segmentos em que, substantivamente, elas pouco significamem termos de eficiência, mas nos quais podem ser poderoso instrumento de competição e conquista demercado, exige do supervisor do setor uma compreensão da dinâmica de operação de mercados e demecanismos competitivos muito mais complexa do que a tradicionalmente exigida. É preciso conter osefeitos mais destrutivos dessa “contaminação”, ainda que sua completa reversão esteja, provavelmente,fora de questão a esta altura.

Em paralelo, dão-se também outros efeitos, já mais familiares a reguladores. A conglomeraçãoabre a possibilidade de emergência de sérios conflitos de interesse, entre grupos de clientes e, mais gra-vemente, entre a instituição financeira e seus clientes. O supervisor deve estar atento, e ser capaz deidentificar não apenas o uso ilegítimo de informações de clientes obtidas em uma linha de negócios emoutra linha, em benefício da instituição ou de terceiros, como também, o que envolve maiores dificulda-des, identificar manipulações de mercados promovidas por instituições a partir de informações privile-giadas que possam obter por esses mesmos canais. Para isso, novamente, é preciso que o processo desupervisão financeira possa ultrapassar os limites estreitos da supervisão funcional, alcançando visãomais ampla do comportamento e das estratégias da instituição financeira.

A conglomeração traz consigo, no mínimo, em paralelo a seus potenciais benefícios, listados aci-ma, o risco de manipulação de clientes, que se veem em posição desvantajosa quando uma determinadainstituição que lhe presta certos serviços financeiros tentar se valer disto para impingir produtos indese-jados e a perda de transparência nas transações com o público, exemplificada pela dificuldade de leiturae entendimento de extratos de operações com instituições financeiras quando serviços são prestadoscom algum grau de diversificação. Taxas de serviço, comissões, descontos de toda ordem, transferên-cias entre aplicações etc., ocultos por enxames de códigos intraduzíveis pelo cliente comum, passam apovoar os extratos, criando confusão mais do que esclarecendo.

Além disso, a conglomeração financeira veio colocar demandas completamente novas aos supervi-sores, a começar pela própria definição de objetivos. A operação simultânea, por uma mesma institui-ção, de linhas diversas do mercado abre a possibilidade de que riscos sistêmicos possam ser gerados,não apenas pelo ramo da instituição diretamente voltado, por exemplo, para a manutenção do sistemade pagamentos (o “banco comercial”), mas também possam resultar do fracasso de operações da mes-ma empresa em outros segmentos. Na verdade, riscos sistêmicos podem ser gerados no mercado de títu-los, por exemplo, mesmo que bancos comerciais não participem dele diretamente, bastando que seconstituam em fonte importante de financiamento para as instituições que o façam. Do mesmo modo, aoferta crescentemente diversificada de produtos relativamente complexos, por parte dos bancos comer-ciais a seus clientes, trouxe também para esta área a preocupação tradicional em outras com a defesa doconsumidor. Assim, prevenção de riscos sistêmicos e defesa de consumidores passariam a ser objetivoscomuns de todos os supervisores.

Esta conjunção de problemas acarretados pelo processo de conglomeração financeira, como a ma-nipulação de interesses e mercados potencialmente contra o interesse de clientes, é certamente pelo me-nos parcialmente responsável pela relutância com que reguladores permitem que a diversificação deatividades seja levada a seus limites. Ao contrário, impõem-se normalmente obstáculos à unificaçãocompleta de funções e mesmo, ou principalmente, à circulação de informações entre as diversas subdi-visões de uma instituição que tratem de segmentos específicos do mercado. Muralhas da China, portasde incêndio, dentre outras, são imagens conhecidas que marcam os limites impostos à circulação de in-formações e à articulação de estratégias dentro de instituições conglomeradas.

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19.5.2. PRINCÍPIOS DE SUPERVISÃO DE CONGLOMERADOS FINANCEIROS

Apesar das limitações impostas por reguladores, é inegável que o processo de conglomeração financei-ra já avançou o suficiente para se tornar um desafio aos supervisores, treinados, em sua maioria, na tra-dição da especialização funcional. Para adaptar-se aos novos tempos é preciso que o aparato desupervisão financeira sofra transformações de duas ordens: 1. a estrutura institucional e as formas deação de supervisores devem ser adaptados aos novos padrões de organização das instituições financei-ras, objeto de supervisão; 2. os quadros de supervisão devem receber o treinamento adequado à monito-ração deste tipo de instituição, bastante diverso daquele dado tradicionalmente nos limites dasupervisão funcional.

Ainda se procede de forma tentativa no que se refere à primeira transformação. Dois métodos alter-nativos são basicamente adotados. Pelo primeiro, mantém-se o aparato de supervisão com sua formatradicional, definindo-se, porém, normas de ação conjunta entre grupos de supervisores voltados parafunções específicas sob a liderança de um deles. O método alternativo, que parece encontrar crescentenúmero de adesões, transforma o aparato de supervisão, criando instituições unificadas, especializadase focalizadas exclusivamente no trabalho de supervisão financeira, cobrindo todo ou amplas partes dosistema financeiro. Este segundo método, cujo modelo deverá ser a Financial Services Authority britâ-nica, apesar desta ainda não estar em efetiva operação enquanto tal, aguardando a finalização dos trâmi-tes legais necessários à sua criação, parece ser, ao menos em tese, um método mais promissor. Sua po-tencial superioridade sobre a articulação ad hoc de supervisores independentes a cada eventual fiscali-zação repousa em vários fatores: 1. a eliminação de rivalidades entre burocracias independentes, ciosasde suas áreas de poder; 2. eliminação de superposição e duplicação de tarefas, tanto entre supervisores,que, operando independentemente, podem demandar várias vezes as mesmas informações, quanto en-tre empresas, que podem se ver obrigadas a repetir procedimentos exigidos por supervisores diferentes;3. fechamento de lacunas, dado que, em paralelo a possíveis duplicações de tarefas, pode ocorrer tam-bém que áreas de responsabilidade mais obscura em termos de monitoração acabem não sendo efetiva-mente supervisionadas por ninguém.

Esses fatores tornam-se especialmente relevantes correntemente, quando se privilegia a determina-ção de coeficientes de capital como principal instrumento de regulação prudencial. Coeficientes de ca-pital devem ser calculados levando-se em conta, o mais precisamente possível, o perfil de risco assumi-do por cada instituição. Como já argumentado, o risco de uma carteira é idiossincraticamente depen-dente da combinação de elementos específica buscada por cada instituição financeira, não podendo seradequadamente avaliado como a soma de elementos independentes. A supervisão unificada, em tese,teria melhores condições de avaliação desse risco, e da adequação dos coeficientes de capital estabele-cidos, do que um agrupamento de supervisores independentes, mesmo que sob uma liderança únicaque, com grande probabilidade, acabaria por refletir suas próprias preferências mais do que uma avalia-ção global das estratégias utilizadas.

O argumento, que não pode ser simplesmente ignorado, de que a supervisão deve ser mantida funcio-nal por causa da relação íntima entre a política monetária e a supervisão de bancos comerciais (operadoresdo sistema de pagamentos baseado em depósitos à vista) não contradiz realmente o proposto acima. Tra-ta-se, na verdade, de preservar os canais de informação sobre o estado do sistema bancário que o BancoCentral pode desejar levar em conta quando decide, por exemplo, sobre variações das taxas de juros. Estescanais podem ser preservados simplesmente desenhando-se um sistema pelo qual a autoridade monetáriatenha acesso, sempre que necessário, às informações relevantes coletadas pelo supervisor.

Em suma, torna-se clara a necessidade de que a forma de estruturação e operação dos supervisoresse altere de modo a acompanhar os desenvolvimentos verificados nos mercados objeto de monitoração,de modo a manter-se sua eficiência. O problema mais crucial, naturalmente, refere-se à questão da in-formação: quando as instituições financeiras se diversificam e suas formas de operação se tornam maiscomplexas, como garantir que os supervisores recebam a informação relevante necessária ao desempe-nho de suas funções e, igualmente importante, como garantir que essa informação possa ser utilizada deforma eficiente por esses mesmos supervisores?

282 Regulação e Supervisão Financeiras ELSEVIER

A avaliação da adequação das precauções tomadas pelas instituições financeiras diante dos riscosque correm depende, crucialmente, da clareza com que esses riscos possam ser reconhecidos e medi-dos. É nesse ponto que a obsolescência da supervisão organizada em linhas de segmentação funcionalse revela de modo mais agudo. A supervisão segmentada não permite a avaliação da estratégia de riscosglobal de uma empresa quando riscos correspondentes a diferentes linhas de atividade se combinam deforma não aditiva. Supervisores voltados apenas para segmentos específicos não são capazes de identi-ficar os riscos efetivamente aceitos por uma instituição e a adequação de suas precauções porque os ris-cos de uma carteira global não são a simples soma dos riscos incorridos em cada segmento desta mesmacarteira. A organização da supervisão financeira em linhas de segmentação funcional impede que seveja o todo, nas condições de conglomeração, porque cada classe de supervisores recebe apenas a infor-mação concernente à sua própria área de atuação e não se desenvolve pessoal com treinamento adequa-do para a avaliação da estratégia global da empresa supervisionada.

RESUMO

Neste capítulo foram discutidos os princípios que justificam a definição de regras para a operação dos mercados edas instituições financeiras. Em todo o mundo, o sistema financeiro é sujeito a extensa regulação e está sujeito àsupervisão contínua por parte de autoridades especialmente treinadas para isto. As razões para esta preocupaçãosão: 1. a de que a operação do sistema financeiro é fonte de importantes externalidades, tanto positivas quanto ne-gativas, tornando necessária a definição de regras que defendam as externalidades positivas e coíbam, na medidado possível, as negativas; 2. a hipótese de que a relação entre aplicadores, tomadores e instituições financeiras émarcada por importantes assimetrias de informação, que, se não submetidas a algum tipo de controle, poderiamimplicar a exploração indevida dos contratantes menos informados pelos mais informados. Por causa das externa-lidades, definiu-se um conjunto de regulações prudenciais. Por causa da assimetria de informações, definem-seregras de defesa dos consumidores.

A própria existência de regulações prudenciais, por sua vez, acabou por levar à definição de outras regras deoperação destinadas a contrabalançar os seus efeitos. Como toda regulação é uma intervenção no mercado, e estapode ter efeitos distorsivos, julgou-se necessário então definir novas regras destinadas exatamente a reequilibraros incentivos dados aos participantes do mercado.

Problema relacionado ao da regulação é o da supervisão financeira, isto é, a atividade de fiscalização da opera-ção das instituições financeiras para se determinar se as regras estão sendo cumpridas. Os métodos de supervisãotêm passado por importante transformação nos últimos anos, privilegiando-se atualmente uma abordagem que dámais autonomia às instituições financeiras na sua administração de risco. Uma importante questão que se colocaatualmente aos supervisores é a de como lidar com conglomerados financeiros, já que, tradicionalmente, o aparatode supervisão era organizado em linhas funcionais, isto é, de especialização por tipo de atividade.

TERMOS-CHAVE

� Externalidades Positivas� Assimetria de Informações� Defesa do Consumidor� Sistema de Pagamentos� Falhas de Mercado� Coeficientes de Capital� Autorregulação� Teste de Resistência� Supervisão Funcional

� Externalidades Negativas� Regulação Prudencial� Crise Sistêmica� Corrida Bancária� Incentivos� Acordo da Basileia de 1988� Valor em Risco� Conglomerados Financeiros

Regulação e Supervisão Financeiras 283

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

D. Llewellyn. The Economic Rationale for Financial Regulation, FSA Occasional Paper (www.fsa.gov.uk).Esse é um trabalho divulgado pela Financial Services Authority, o órgão de supervisão financeira inglês. Este

texto apresenta de forma bastante clara as razões mais comumente apontadas para justificar a necessidade de re-gulação e supervisão financeiras.

J. Stiglitz. Whither Socialism? MIT Press, 1996.Apresentação, em linguagem inteiramente acessível mesmo àqueles com pouca familiaridade com teoria eco-

nômica, das principais imperfeições encontradas em economias de mercado, que justificam regulação, inclusiveno mercado de capitais.

O leitor interessado deve ainda pesquisar os trabalhos divulgados pela Internet por duas instituições muito im-portantes para a definição dos sistemas de regulação e supervisão financeiras correntemente empregados: o Comitêda Basileia, cujos textos estão disponíveis no website do BIS (www.bis.org) e o Forum for Financial Stability.

R. Sobreira (org.). Regulação Financeira e Bancária. São Paulo: Editora Atlas, 2005.Esse livro traz uma interessante coleção de textos principalmente de autores brasileiros sobre o tema da regula-

ção financeira.

284 Regulação e Supervisão Financeiras ELSEVIER

INOVAÇÕES FINANCEIRASE TRANSFORMAÇÕESESTRUTURAIS DOS SISTEMASFINANCEIROS

INTRODUÇÃONeste capítulo, vamos discutir temas mais complexos do que os tratados ante-riormente. Sistemas financeiros, atualmente, tanto domésticos quanto o inter-nacional, passam por um período de mudanças profundas, alterando asvantagens relativas de cada forma de organização conhecida no passado. Ban-cos diversificam-se, abandonando a especialização do passado. Mercados decapitais se transformam, criando-se permanentemente novas oportunidades denegócios, mudando a escala de custos financeiros conhecidos e os riscos a quea atividade está submetida. Novos agentes emergem, enquanto os tradicionaisreorganizam-se para participar destes novos mercados. Em todo este quadrode mudança, as dificuldades são particularmente grandes para aqueles encar-regados de supervisionar o sistema, que frequentemente esbarram até mesmona complexidade dos novos contratos financeiros que conquistam mercados.Este capítulo visa mapear as principais dentre a miríade de transformações quevêm ocorrendo nas últimas décadas e que, provavelmente, continuarão se des-dobrando nos anos vindouros.

20.1. INOVAÇÃO FINANCEIRA E MUDANÇA

ESTRUTURAL

A capacidade das economias de mercado de introduzir continuamente inova-ções na produção de bens e serviços foi apontada por grandes economistascomo Joseph Schumpeter como sendo a mais notável característica dessa formade organização social. Denominamos inovação a mudança na forma de produ-zir, de organizar a produção ou de distribuir bens e serviços entre seus usuários.Como em economias de mercado inovações são introduzidas o tempo todo, osprocessos produtivos, à medida que o tempo passa, vão se tornando mais efica-zes e baratos e a gama de produtos disponíveis para uso mais variada.

Normalmente associamos a ideia de inovação a novos processos ou novosprodutos agrícolas ou industriais. Inovações importantes na história do capita-

CAPÍTULO

20

lismo moderno foram, por exemplo, a introdução de novas formas de organização da produção, como alinha de montagem em processos industriais; a utilização de novas fontes de energia, como a energia avapor, inicialmente, e depois a energia elétrica; a implantação das ferrovias, que revolucionou o trans-porte de passageiros e de mercadorias; e a criação de novos produtos, como automóveis, aviões, equi-pamentos eletrônicos, eletrodomésticos etc., apenas para citar alguns dos novos produtos com que con-vivemos diariamente e que não estavam disponíveis para nossos antepassados há tão pouco tempo.

Inovações, porém, são também importantes, ainda que menos visíveis, em outros setores; e as quenos interessam aqui são as inovações financeiras. Inovações financeiras referem-se à produção de no-vos tipos de serviços financeiros ou a novas formas de produção de serviços financeiros já conhecidos.Novos serviços financeiros, por exemplo, incluem o grande número de tipos de derivativos que foramsendo criados a partir dos anos 80. Outra inovação financeira importante, recentemente, foi a introdu-ção das contas remuneradas, na década de 1980, no Brasil, que permitiu aos depositantes defender-secontra a inflação, enquanto permitia aos bancos manterem seus clientes. Novas formas de produção deserviços já conhecidos incluem, por exemplo, processos de securitização, pelos quais a intermediaçãobancária passa a se dar de forma mais barata para aqueles que têm acesso a esse instrumento.

Inovações financeiras são introduzidas pela mesma razão que qualquer outro tipo de inovação: por-que representam armas competitivas nas mãos das empresas que tomam a iniciativa de implantar novosmétodos de produção ou novos produtos contra seus concorrentes. A ocasião propícia para inovar podeser aquela em que insumos usados normalmente na atividade tornam-se, por qualquer razão, mais caros(por exemplo, quando a captação de depósitos junto ao público torna-se mais custosa), ou em que se de-tecta uma demanda potencial por um serviço até então não ofertado (como no caso das contas remune-radas); ou quando simplesmente se percebe a possibilidade de tornar o desenho de um dado serviço ouproduto mais adequado ao perfil de seus consumidores. No caso do setor financeiro, como já vimos,“produtos” são, principalmente, contratos. Inovações se dão quando se desenham contratos que sirvammelhor ao perfil de clientes, especialmente no que se refere a combinações risco/rentabilidade, ou, nocaso de tomadores de recursos, custo/risco. Por outro lado, como no caso de setores como a agricultura,por exemplo, grande parte das inovações que emergem em mercados financeiros resultam de iniciativasdo Estado, que alteram leis e regulações e passam a permitir a inclusão de cláusulas em contratos quecontemplam interesses definidos. Via de regra, mesmo quando as inovações são geradas nas empresasdo setor financeiro, a permissão de reguladores e supervisores é necessária antes que uma inovaçãopossa ser introduzida.

Inovações representam, assim, novidades. Como toda novidade, inovações são, em si mesmas, fon-tes de incerteza, para quem as introduz (porque não se sabe se os clientes vão aceitá-las ou não) tantoquanto para quem as utiliza (porque não há como ter certeza de que as novas cláusulas respondem mes-mo melhor às demandas de cada um ou se não há, implícita em alguma cláusula, alguma disposição ad-versa que implique custos posteriores etc.). Muito mais do que ocorre com novos produtos industriais,por exemplo, que podem ser examinados concretamente e ter sua performance determinada no momen-to em que se tornam disponíveis, inovações financeiras são, como vimos, contratos, sobre cujos efeitos,no presente, só se pode especular. Em outras palavras, enquanto o setor industrial ou o setor agrícolaproduzem bens concretos e palpáveis, o setor financeiro produz combinações de expectativas (de retor-no) e riscos em combinações variadas, cuja avaliação é não apenas muito mais subjetiva, como tambémmuito mais difícil. Por esta razão, tradicionalmente a atividade financeira tendia a ser desempenhada deforma muito conservadora, com as instituições financeiras, como bancos, por exemplo, preferindo en-fatizar sua solidez mais do que sua disposição a correr riscos para buscar maiores retornos. Bancos ven-diam principalmente, assim, a sua capacidade de garantir o sono tranquilo de seus depositantes. Inova-ções eram introduzidas, no mais das vezes, apenas quando algum choque mais importante ou persisten-te atingia a economia e forçava aplicadores, tomadores e intermediários financeiros a rever seus méto-dos de operação.

Essa situação se alterou profundamente a partir da década dos 1970. Inaugurou-se naquela décadaum período de volatilidade dos mercados financeiros, por causa de diversos fatores a serem identifica-dos mais adiante, que criou um prêmio para aquelas instituições financeiras mais capazes de desenvol-

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ver novas respostas para desafios que se diferenciavam a cada momento, desdobrando-se em novos de-safios, e colocando novas demandas para as instituições, continuamente. Inflação elevada, taxas decâmbio flutuantes, movimentos livres de capital através do mundo, taxas de juros voláteis, tudo issocriou um ambiente onde o conservadorismo já não parecia atraente, estimulando-se as instituições fi-nanceiras a buscar aumentar sua capacidade de resposta criativa a cada nova conjuntura que se colocas-se. Em outras palavras, a partir daquela década, as instituições mais bem-sucedidas passariam a seraquelas capazes de se diferenciar com a evolução dos mercados financeiros ou, ainda melhor, em ante-cipação às mudanças destes últimos. Em suma, as instituições financeiras pareciam ter descoberto queinovar é a forma mais eficaz de competir e crescer numa economia de mercado.

Em função dessa mudança de atitudes, os mercados financeiros passaram a se comportar de formamais semelhante aos outros mercados. A introdução frequente, quase contínua, de inovações torna amudança estrutural, isto é, a transformação das estruturas produtivas do setor, uma característica per-manente de sua operação. Inovações exigem adaptações das estruturas financeiras que, por sua vez, es-timulam ou criam obstáculos para novas inovações. Saber não apenas sobreviver, mas tomar a iniciati-va da mudança em uma situação como esta se torna a marca do sucesso de uma instituição. Um bancoque enfatize sua capacidade de resistir à mudança (por sua solidez), ao invés de conduzi-la em benefíciode seus clientes, perderia rapidamente todos os seus clientes.

Na realidade, quando se estuda o setor financeiro, é frequentemente difícil separar inovações finan-ceiras de mudanças estruturais. Muitas das inovações que são introduzidas consistem na abertura de no-vos mercados, que definem, por si mesmos, mudanças estruturais. Mudanças não resultam das inova-ções; a inovação é a própria mudança de estruturas. Assim, quando discutirmos, por exemplo, a emer-gência de processos de securitização, é a mudança estrutural representada pela rápida expansão de mer-cados de títulos para áreas onde relações de crédito eram até então predominantes que constitui a inova-ção financeira relevante. De certo modo, também a tendência dos bancos à universalização, discutidana Seção 20.3, se constitui, a um só tempo, em inovação financeira e mudança estrutural.

20.2. RAÍZES DO MOVIMENTO DE INOVAÇÃO FINANCEIRA

RECENTE

A partir de meados da década de 1970, os mercados financeiros iniciaram um processo de transforma-ção que, décadas depois, ainda prossegue. Na verdade, como mostrado na seção anterior, inovar passoua ser uma arma permanente da concorrência entre instituições financeiras. Esta tendência à inovaçãopermanente contrasta de forma aguda com a situação anterior. Suas raízes mais profundas remontam,principalmente, ao colapso do sistema monetário internacional criado na conferência de BrettonWoods, em 1944.

Naquela conferência, os países mais importantes do mundo capitalista decidiram organizar as rela-ções monetárias internacionais em torno de um sistema de taxas de câmbio fixas, ancorado no dólarnorte-americano, cujo valor, por sua vez, era fixado com relação ao ouro. Para que um sistema monetá-rio de taxas fixas de câmbio pudesse se manter em operação, era preciso evitar que nele se reproduzis-sem as mazelas que haviam sido responsáveis pelo colapso de outro sistema de taxas fixas experimenta-do no passado, o padrão-ouro. Este não é o lugar adequado para o exame do sistema de Bretton Woods,mas é suficiente para nossos propósitos neste capítulo observar que várias medidas foram adotadas paraviabilizar o sistema escolhido. Entre as medidas mais importantes estavam o estabelecimento de meca-nismos de ajuste das taxas de câmbio, se fossem detectados desequilíbrios fundamentais; a definição demecanismos de ajuste aceitáveis pelos participantes do sistema quando desequilíbrios mais superficiaistivessem lugar; a adoção de controles de movimentos de capital, especialmente os de curto prazo, paraevitar que especuladores gerassem pressões instabilizadoras; e a criação de uma instituição, o FundoMonetário Internacional, para financiar os desequilíbrios de balanço de pagamentos dos países deficitá-rios enquanto seus problemas estivessem sendo corrigidos.

Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros 287

Esse sistema funcionou de forma bastante satisfatória durante mais de vinte anos, mas começou adar sinais de esgotamento ao final dos anos 60. Nesta época, por questões variadas, acumulavam-sepressões inflacionárias em vários países, notadamente nos Estados Unidos, onde um período de recupe-ração cíclica da economia era reforçado pelo aumento de demanda agregada, apoiado na expansão daparticipação do país na guerra do Vietnã. Essas pressões inflacionárias eram incompatíveis com a ma-nutenção do sistema de taxas fixas de câmbio e com a fixação do valor do dólar em ouro. O colapso dosistema iniciou-se em 1971, quando o presidente dos Estados Unidos suspendeu a paridade dólar/ouro,e concluiu-se dois anos depois, quando o sistema de câmbio fixo foi formalmente abandonado. Em con-sequência do fim do sistema de taxas fixas, a volatilidade cambial, naturalmente, intensificou-se. A ins-tabilidade foi aumentada ainda neste período pelo primeiro choque do petróleo, ao qual vários países,notadamente o Japão, responderam adotando políticas monetárias expansivas que validaram a acelera-ção da inflação. Mais choques se seguiram, até que, ao final da década, generalizou-se o sentimento deque o processo inflacionário estava saindo de controle. A reação a esse sentimento foi a adoção quaseuniversal, entre os países desenvolvidos, de políticas monetárias restritivas baseadas em aumentos dra-máticos das taxas de juros.

Criou-se, assim, um ambiente de extrema incerteza para a operação dos mercados financeiros dosprincipais países desenvolvidos. Instabilidades de preços, de taxas de juros e de taxas de câmbio combi-navam-se para criar riscos para aplicadores e tomadores de recursos em escala praticamente desconhe-cida até então. O desenvolvimento de procedimentos eficazes para administrar esses riscos, socializarincertezas, diferenciar produtos para colocação junto a clientes com diferentes propensões a risco etc.,tornou-se uma importante fonte de inovações financeiras, notadamente o desenvolvimento e diferen-ciação de um grande mercado de derivativos.

Em paralelo a essas tendências, iniciou-se um período de revisão profunda dos princípios que re-giam até então a ação reguladora do Estado nos mercados financeiros. Desregulação e liberalização daatividade financeira passaram a ser objetivos perseguidos com afinco em todos os países, ainda quecom graus variados de entusiasmo. A tendência à liberalização dos mercados, que, aliás, não se restrin-gia a mercados financeiros, acabou corroendo as barreiras que protegiam nichos de mercado, como, porexemplo, o mercado para serviços bancários, que já vinha sendo solapado pela própria inflação, o queinduzia depositantes a procurar aplicações mais seguras fora do sistema bancário tradicional.

Finalmente, uma última grande força inovadora é aquela que é central nos outros setores da econo-mia, mas que, normalmente, tem relativamente pouco peso no setor financeiro: o progresso tecnológi-co. A evolução tecnológica, especialmente nos setores de comunicações e de informática, altera drama-ticamente os custos de transação envolvidos na produção dos serviços mais convencionais, ao mesmotempo que viabilizou a criação de produtos até então inacessíveis, como aqueles que combinam eventosque tenham lugar em praças financeiras geograficamente distantes. O avanço das tecnologias de comu-nicações permitiu a unificação dos mercados financeiros, ainda em progresso. O avanço da informáticapermitiu não apenas uma ampla racionalização da administração das instituições financeiras como tam-bém o desenho de contratos financeiros complexos, onde eventos possam ser combinados ao gosto dosclientes. Progressos em ambas as áreas viabilizaram a operação de instituições financeiras gigantescas,24 horas por dia, em todos os mercados. Essas instituições tornaram-se ameaças formidáveis às institui-ções financeiras que têm seu horizonte confinado a mercados locais, mesmo que bastante amplos, comono caso da Europa ocidental.

O progresso técnico também se fez sentir na automação das operações de rotina do setor, especia-lmente aquelas de saques, depósitos, transferências, realização de pagamentos etc. Os “caixas eletrô-nicos”, como são conhecidos no Brasil, ou ATM (automatic teller machine) nos Estados Unidos, po-tencialmente permitem a redução drástica do número de agências bancárias preservando a oferta de ser-viços básicos aos clientes. Nova fronteira de expansão, no presente, é a realização de transações ban-cárias, inclusive algumas mais complexas, como decisões de aplicação de recursos, através da Internet.Ao que tudo indica, a disseminação desses equipamentos e procedimentos, alterando de forma aindamais profunda e radical o modo de operação do setor bancário, só é limitada pelo apego de clientes aformas mais pessoais de contato.

288 Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros ELSEVIER

20.3. PRINCIPAIS INOVAÇÕES E TRANSFORMAÇÕES RECENTES

DOS SISTEMAS FINANCEIROS

É possível classificar as transformações por que passam sistemas financeiros em todo o mundo de di-versas formas. A escolha de critérios de classificação é, em grande parte, uma questão de conveniênciae de preferências pessoais. Aqui, dividiremos as inovações e transformações correspondentes em cincotítulos: securitização; mercados de derivativos; emergência de investidores institucionais; tendência àconvergência estrutural dos sistemas bancários; e desregulação e liberalização financeiras.

20.3.1. SECURITIZAÇÃO

À medida que economias de mercado evoluem e se sofisticam, não apenas aprofundam-se mas tambémmodificam-se seus mercados financeiros. Economias menos avançadas têm seus mercados financeirosdefinidos quase inteiramente em termos de mercados de crédito, dominados pela intermediação bancá-ria. Mercados de capitais, com a colocação direta de papéis junto aos emprestadores finais nessas eco-nomias, são raros e têm pequeno impacto sobre a atividade econômica e a acumulação de capital.

O custo de operação de crédito bancário compreende as despesas necessárias para a construção deum cadastro, isto é, uma coleção de informações específicas sobre cada tomador potencial, de capacita-ção de avaliadores dos riscos que cada um desses tomadores representa, e da criação de mecanismos demonitoramento do desempenho desses tomadores após o crédito ser concedido. Esse custo é relativa-mente elevado, mas é inevitável quando informações de natureza reservada são requeridas.

Operações de mercado de capitais, isto é, de colocação direta de papéis (títulos de propriedade,como ações, ou de dívida, como bônus, debêntures, commercial papers etc.) evitariam esses custos.Mercados de capitais são viáveis quando as características relevantes da obrigação gerada pela opera-ção financeira são transparentes, acessíveis igualmente a todos os potenciais participantes. Para queisto ocorra, é preciso que o ativo negociado obedeça a certas regras de padronização que permitam aaplicação de métodos comuns de avaliação, que a informação necessária ao monitoramento do tomadorseja pública, e que os procedimentos a serem seguidos nos casos de inadimplência sejam transparentes.

Em suma, mercados de capitais são uma forma viável de canalização de recursos quando a atrativida-de da obrigação emitida pelo tomador pode ser julgada diretamente pelo emprestador último. Este poupa-dor não possui, via de regra, aparato especializado de coleta e avaliação de informações. Por esta razão, oconhecimento relevante tem de ser tornado disponível pelo próprio tomador, de modo genericamente in-teligível por qualquer emprestador. Itens, ou casos, de avaliação mais complexa podem ser analisados porempresas especializadas, as empresas de rating. Cláusulas contratuais devem ser desenhadas de modo apermitir que qualquer potencial emprestador possa julgar sua atratividade e, eventualmente, possa mesmorevender esses contratos a outros em mercados secundários. As vantagens deste canal, quando ele é possí-vel, referem-se à economia de custos que permite. Economiza-se em cadastros, avaliação e monitoração.As cláusulas contratuais de amortização e serviço da dívida gerada podem prever e regular as contingên-cias sob as quais alguma renegociação dos termos do contrato pode ter lugar. Em segundo lugar, ganha-seem liquidez. A impessoalidade dessas transações, em contraste com a inevitável individualização do cré-dito bancário, permite o desenvolvimento de mercados secundários para essas obrigações, aumentandosua atratividade na medida em que adquirem um grau de liquidez inexistente no crédito bancário. Final-mente, no caso da operação de mercados de capitais, economiza-se o risco do intermediário. Numa ope-ração de crédito, o intermediário corre os riscos criados pela possibilidade de inadimplência do tomador epelo eventual descasamento entre passivos emitidos em favor dos aplicadores e os ativos representadospor direitos contra os tomadores. O intermediário cobra de seus clientes o custo de correr esses riscos. Acolocação direta de papéis no mercado elimina os riscos do intermediário.

Mercados de capitais são formas mais baratas de captação de recursos financeiros que os mercadosde crédito; mas são canais que só surgem e assumem alguma relevância em economias mais sofistica-

Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros 289

das. Isto porque um requisito essencial para sua viabilidade é que tanto tomadores quanto emprestado-res últimos sejam razoavelmente sofisticados na sua demanda por serviços financeiros. Tomadores derecursos, como empresas, têm de ser capazes de elaborar a informação relevante para a emissão de títu-los para colocação no mercado. Isto significa a adoção de sistemas de contabilidade padronizados,transparentes e confiáveis. É preciso, ainda, que a própria empresa seja capaz de avaliar as vantagens decada canal de tomada de recursos para utilizar-se das operações de mercado de capitais quando elas sãorecomendáveis. Outra necessidade é a de adoção de sistemas de gerenciamento modernos e transparen-tes, permitindo aos aplicadores monitorar essas empresas para avaliar se as disposições contratuais es-tão sendo seguidas. Isto significa que empresas de domínio familiar, tradicionalmente fechadas e ciosasdo controle de seu empreendimento, têm de mudar seus métodos de administração para ter acesso a essafonte de recursos. Finalmente, é preciso que a empresa tenha uma dimensão relativamente grande, paraque suas colocações de papéis não sejam excessivamente esporádicas, reduzindo a sua liquidez.

Pelo lado do emprestador, as exigências não são menos profundas. Antes de mais nada, é precisoque ele desenvolva sua capacidade de analisar opções de aplicação, pensando em termos de carteiras deativos, mais do que em “economias a serem guardadas”, como na atitude mais tradicional.

Por décadas, mercados de capitais só foram realmente relevantes para o financiamento da atividadeeconômica e da acumulação de capital nos Estados Unidos. Enquanto a unidade responsável pela deci-são de poupança foi a família, tais sistemas, novamente à exceção dos Estados Unidos, simplesmentenão se desenvolveram. Nos últimos anos, porém, uma mudança fundamental começou a ocorrer: aemergência de investidores institucionais, discutida mais adiante neste capítulo. Investidores institu-cionais, como fundos de pensão e fundos mútuos de investimento em mercados monetário e de capitaispermitiram precisamente a transformação de atitudes que viabilizam a expansão das operações de colo-cação direta de papéis. Este processo é chamado de securitização.

O termo securitização deriva da palavra inglesa securities, que significa títulos financeiros. Securi-tização refere-se à transformação de obrigações financeiras geradas anteriormente em processos deoferta de crédito em papéis colocáveis diretamente no mercado. Securitização, assim, descreve um pro-cesso de desintermediação financeira, em que cada vez mais bancos mudam seu padrão de atuação, dei-xando de ser intermediários de crédito para se tornarem corretores e promotores de negócios.

Na realidade, securitização corresponde a dois tipos diferentes de processos financeiros. Securiti-zação primária corresponde ao apelo crescente à colocação direta de papéis de tomadores junto ao pú-blico não financeiro, em substituição ao crédito bancário anteriormente utilizado. Exemplo clássicodeste processo é a captação de recursos de curto prazo para financiamento de capital de giro pelas em-presas, através da colocação de commercial papers, ao invés da tomada de recursos junto a bancos co-merciais. Já a securitização secundária refere-se ao processo de transformação sofrido pelos própriosintermediários financeiros que buscam se adaptar às novas tendências do mercado. Neste caso, o que ésecuritizado são os ativos dos bancos, representados por empréstimos originalmente realizados aos to-madores finais.

Ambas as formas de securitização desenvolveram-se inicialmente nos Estados Unidos e, depois decrescerem intensamente naquele país nos últimos quinze anos, começam a se expandir de forma igual-mente rápida na Europa. Em outras regiões, sua evolução é ainda incipiente. No caso da securitizaçãoprimária, o impulso inicial ao seu desenvolvimento foi dado pelas crises bancárias vividas pelos Esta-dos Unidos na década de 1980. Assoberbados por problemas com empréstimos ao Terceiro Mundo etambém a tomadores domésticos, os bancos norte-americanos enfrentaram naquela década custos cres-centes de captação de recursos, dada a incerteza percebida pelo público quanto à saúde do setor. Nestecontexto, diversas grandes empresas perceberam que poderiam captar recursos diretamente no merca-do por taxas inferiores às pagas pelos bancos, sempre que os requisitos necessários para a participaçãoneste mercado fossem atendidos. Assim, grandes empresas, capazes de acessar esses recursos, coloca-ram commercial papers como alternativa à tomada de créditos junto aos bancos. Tais operações foramextremamente bem-sucedidas e se consolidaram mesmo após as crises bancárias, que lhes serviram deestímulo, terem sido resolvidas. O segmento de tomadores representado pelas grandes corporações pa-rece ter sido perdido para o mercado de crédito bancário para sempre.

290 Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros ELSEVIER

Aos bancos que foram capazes de transformar seu mix de serviços, foram abertas novas possibilida-des de atuação. Duas áreas desse processo são particularmente exploráveis por bancos: a organizaçãoda operação de colocação de papéis, dada a rede de clientes e de relações que os bancos tendem a cons-truir, e a oferta de linhas de crédito de apoio à venda dos títulos no mercado. A exploração desses canaisé um dos caminhos importantes para a convergência entre bancos comerciais e bancos de investimento,com a crescente participação dos primeiros em procedimentos mais tradicionalmente ao alcance dos se-gundos, como se discutirá mais adiante.

A securitização secundária é um processo mais complexo e institucionalmente inovador. Nestecaso, a instituição financeira continua a ofertar crédito de forma mais ou menos semelhante à tradi-cional. Na verdade, já nesta fase, alguma mudança se dá na direção da homogenização dos contra-tos, no sentido de que o banco ou outro intermediário deve tentar homogenizar as cláusulas que re-gem os contratos de crédito, diminuindo o espaço de acomodação dos traços mais idiossincráticosde cada operação. Esses contratos são posteriormente “empacotados” em um único ativo cujo re-torno é constituído pelo serviço da dívida criada pelo intermediário, e vendido para um “poupa-dor”, normalmente um investidor institucional, que controle recursos em volume suficiente paraabsorver esses ativos. A securitização secundária, assim, descreve processos em que obrigaçõesinicialmente geradas sob a forma de crédito são transformadas em “papéis” e repassadas a investi-dores, liberando recursos para as instituições financeiras retomarem o processo de crédito. Esteprocesso, criado principalmente para resolver a crise do sistema de financiamento da construçãonorte-americano, permite aos bancos repassar para os aplicadores finais tanto o risco de crédito(probabilidade de calote) quanto o risco de juros (probabilidade de que elevações de juros reduzamo valor dos ativos mais do que o dos passivos) envolvidos na concessão de empréstimos, e tambémreduzem seus custos de monitoração dos tomadores. Além disso, desde o Acordo da Basileia de1988, a securitização reduz os custos de enquadramento dos bancos nos limites de coeficiente decapital impostos por aquele documento. A securitização secundária tem sido importante nos Esta-dos Unidos para bancos de poupança e empréstimo, para administradoras de cartões de crédito epara supridores de créditos para financiamento ao consumo de duráveis, particularmente automó-veis. Ela se mostra potencialmente promissora, na verdade, para o financiamento de qualquer ativi-dade que gere um fluxo de receitas esperadas previsível e regular.

20.3.2. DERIVATIVOS

Derivativos são ativos cujo valor é derivado de outros. Seu papel mais importante é a possibilidadeque oferecem de decompor e negociar em separado os riscos que cercam uma dada transação finan-ceira. Assim, em transações domésticas, é possível separar os riscos de produção dos riscos devariação de preços, por exemplo; em operações financeiras internacionais, derivativos permitemseparar os riscos de juros dos riscos de câmbio, os riscos de amortização dos referentes ao serviçode uma dívida etc.

Muito embora derivativos não sejam, em si mesmos, instrumentos de captação ou alocação de pou-pança, eles se tornaram peças imprescindíveis em qualquer transação financeira de alguma importânciaatualmente. Em primeiro lugar, pela sua capacidade de decomposição de riscos, os derivativos têm ser-vido para que os diversos aspectos que caracterizam uma dada transação possam ser negociados separa-damente, permitindo a cada parceiro aceitar apenas aqueles riscos que lhe atraem, transferindo o restan-te para outros (isto é, fazendo hedge contra esses outros riscos, o que nada mais é que a compra de con-tratos que lhe garantam uma compensação contra contingências específicas). Em segundo lugar, por-que derivativos podem cumprir as mesmas funções que mercados secundários para um dado papel, àmedida que asseguram a possibilidade de revenda do título em condições adversas determinadas. Destemodo, derivativos permitem conferir um atributo semelhante a liquidez a um dado ativo, asseguran-do-lhe comprador e condições de negociação em contingências especificadas. Finalmente, derivativosmais complexos permitem a parceiros mimetizar condições de mercados que, por alguma razão, pos-

Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros 291

sam ser inacessíveis àqueles transacionadores. Notadamente, esta é a propriedade dos swaps, contratosderivativos em que a natureza das obrigações efetivamente aceitas por um agente correspondem àque-las de um mercado diferente do que deu origem ao contrato.

O mercado para derivativos se expandiu, inicialmente, em função do aumento da volatilidade dosmercados financeiros enraizado em uma causa comum, qual seja, a intensificação da inflação e a ado-ção de políticas monetárias restritivas, que por sua vez perturbaram o já frágil equilíbrio das taxas decâmbio entre as principais moedas do mundo. Por esta razão, isto é, a existência de causas comuns deinstabilidade, esta expansão foi em grande parte sentida no segmento de derivativos transacionados embolsas, através da negociação de futuros e, depois, de opções. Com o recuo mundial da inflação, a mu-dança de estratégia de bancos centrais etc., aqueles riscos comuns foram perdendo relevância, sem quese perdesse de vista a potencialidade dos derivativos em oferecer formas de “seguro” contra contingên-cias adversas. À medida que os riscos mais relevantes foram se tornando mais idiossincráticos, a impor-tância dos derivativos de balcão foi crescendo, até se tornarem os tipos de contratos mais intensamentenegociados no presente. Por outro lado, porém, a individualização crescente de contratos reduz sua li-quidez, o que torna este segmento mais instável e frágil. O dinamismo dos derivativos de balcão semostrou tão incontrastável que as próprias bolsas de futuros passaram, nos últimos dois a três anos, aconcentrar seus esforços na oferta de facilidades ao segmento de balcão, através de serviços como os deliquidação de contratos, e na busca de meios de provisão de liquidez a certas categorias mais comuns decontratos, como os de swaps.

A oferta de derivativos de balcão estruturados expandiu-se com grande rapidez na primeira metadedesta década. A ocorrência de repetidas crises, porém – ocasionando grandes perdas aos investidores egerando processos legais em que os aplicadores alegavam consistentemente o desconhecimento dascondições efetivamente contratadas – diminuiu muito a atratividade desta área de negócios para os ban-cos que investiram inicialmente no seu desenvolvimento.

A Tabela 20.1 mostra a expansão das operações com os tipos mais importantes de derivativos, debolsa e balcão.

TABELA 20.1Mercados para Derivativos SelecionadosUS$ bilhões

1992 1993 1994 1995 1996 1997

Trans. em bolsa 4.634,5 7.771,2 8.862,9 9.188,6 9.879,6 12.207,3

Futuros de juros 2.913,1 4.958,8 5.777,6 5.863,4 5.931,2 7.489,2

Opções de juros 1.385,4 2.362,4 2.623,6 2.741,8 3.277,8 3.639,9

Futuros de câmbio 26,5 34,7 40,1 38,3 50,3 51,9

Opções de câmbio 71,1 75,6 55,6 43,5 46,5 33,2

Balcão 5.345,7 8.474,6 11.303,2 17.712,6 25.453,1 28.733,4

Swaps de juros 3.850,8 6.177,3 8.815,6 12.810,7 19.170,9 22.115,5

Swaps de câmbio 860,4 899,6 914,8 1.197,4 1.559,6 1.584,8

Opções de juros 634,5 1.397,6 1.572,8 3.704,5 4.722,6 5,033,1

Fonte: BIS, 68th Annual Report, 1998.

O crescimento do mercado de derivativos se deu de forma paralela à expansão do processo de secu-ritização, primária e secundária. A colocação de títulos, especialmente de dívida, por parte de empresase governos beneficiou-se da possibilidade de decompor seus riscos e formar seus preços de forma maisacurada, buscando um público-alvo mais adequado a cada característica do papel lançado. Assim, apossibilidade de fazer-se hedge contra alguns dos riscos envolvidos em uma dada colocação de papéispermitiu ampliar as fontes de recursos financeiros, à medida que certas categorias de investidores não

292 Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros ELSEVIER

desejam ou não têm permissão para operar com determinadas classes de riscos. Por outro lado, a rapi-dez com que o processo de securitização tem se dado se constituiu num grande impulso à expansão e di-versificação do mercado de derivativos.

Se, contudo, derivativos se casaram de forma bastante natural às transações com papéis nos merca-dos de capitais e sofreram forte crescimento nos anos 90, a nova fronteira de expansão de derivativos nonovo milênio estão sendo os chamados derivativos de crédito. Derivativos de crédito são instrumentoscriados para permitir a doadores de crédito, especialmente bancos, possam administrar sua exposição ariscos de crédito sem ter de recorrer a processo de securitização. Neste último, como já visto, o banco éobrigado a transferir a posse sobre o ativo para outra instituição. Esta transferência, muitas vezes, en-frenta a ativa oposição do tomador de empréstimo, por exemplo, que o banco pode preferir não hostili-zar para manter com ele uma relação mais duradoura. O derivativo de crédito é uma forma de adminis-tração de risco que evita este problema. O instrumento mais utilizado atualmente é a chamada transfe-rência de calote de crédito (credit default swap). Este instrumento assemelha-se a um contrato de segu-ro, pelo qual uma instituição compromete-se a comprar o crédito em poder do banco em caso de default,em troca do pagamento de um prêmio. Se o crédito for liquidado normalmente, o banco reterá o ativoem seu balanço, ao custo do prêmio de “seguro” pagão ao vendedor de proteção. Se, ao contrário, hou-ver calote, o vendedor de proteção assumirá a perda, transferindo ao banco o valor do contrato. O usodeste instrumento tem crescido rapidamente nos últimos anos, à frente de qualquer outro instrumentode hedge contra riscos de crédito no sistema bancário.

20.3.3. EMERGÊNCIA DE INVESTIDORES INSTITUCIONAIS

Investidores institucionais compreendem um conjunto relativamente heterogêneo de iniciativas quetêm como traço comum o de constituírem pools de recursos para aplicação financeira. Assim, fundos depensão, um de seus principais segmentos, são produto da organização de poupadores de um determina-do grupo que reúnem seus recursos para potencializar suas possibilidades de aplicação financeira comvistas à obtenção de um fluxo de renda em um futuro, em média, relativamente distante. Fundos de in-vestimento, em tese, são criados por grupos de pessoas que têm como meta aplicar sua poupança em ummercado determinado, como o monetário ou o de mercado de ações ou de títulos de renda fixa, ou ummisto de todos eles. Companhias seguradoras reúnem os prêmios pagos por seus segurados para reali-zar investimentos que permitam o pagamento de compensação em caso de uma contingência adversapré-especificada.

A característica mais importante, comum às diversas categorias de investidores institucionais, é asua dimensão em relação à unidade original de poupança, o indivíduo ou a família. A agregação de re-cursos em um pool permite um aproveitamento muito melhor das oportunidades de acumulação de ri-queza que o mercado financeiro oferece, seja porque permite uma gestão profissionalizada das carteirasde ativos, mas também porque permite uma alocação mais eficiente de riscos e retornos, porque alargaos horizontes de aplicação e porque dá maior poder de mercado ao poupador que, isoladamente, não te-ria escolha e, possivelmente, nem acesso a mercados, diante das instituições como, por exemplo, ban-cos de investimento.

Como se vê na Tabela 20.2, investidores institucionais são uma figura ainda predominantementenorte-americana, como é o caso de tantos outros aspectos dos mercados financeiros internacionaisatuais.1 Dentre este grupo, certamente o subgrupo mais importante são os fundos de pensão. NosEstados Unidos estes fundos foram criados há relativamente mais tempo que nos outros países, dadoo nível relativamente baixo de benefícios tradicionalmente oferecidos pelo sistema público de previ-dência norte-americano. A complementação de renda via previdência privada tornou-se claramentenecessária naquele país antes da maioria dos outros. Nestes últimos, o sinal de alerta para a necessida-

Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros 293

1. Segundo o FMI, os ativos dos 300 maiores investidores institucionais dos Estados Unidos passou de 30% do PIB em 1975para 110% em 1993. Ver IMF, International Capital Markets, 1995, cap. 5.

de de constituição dos fundos privados foi o colapso de sistemas públicos que, em tese, ofereciam be-nefícios mais generosos, mas se viam incapazes de honrar este compromisso no futuro. Por isso mes-mo, como mostra a Tabela 20.2, 62% dos ativos totais detidos por Fundos de Pensão em todo o mun-do são controlados por instituições norte-americanas. O segundo país mais importante para o setor éo Reino Unido: seus Fundos de Pensão detem 9% dos ativos totais deste tipo de instituição em todo omundo. A importância de cada país, à exceção dos Estados Unidos, com presença preponderante emtodos os segmentos, varia conforme o tipo de investidor institucional. Dos ativos totais detidos porCompanhias de Seguro em todo o mundo, 24% são controlados por empresas japonesas, por exem-plo. Já a França é o segundo país mais importante no setor de Companhias de Investimento: suas em-presas controlam 9% dos ativos totais do segmento. No total, instituições norte-americanas contro-lam metade dos ativos dos investidores institucionais de todo o mundo, seguidas pelas instituições ja-ponesas, que controlam 14% dos ativos totais, e as instituições britânicas que por sua vez controlam9% do total.

TABELA 20.2Investidores Institucionais em Perspectiva Global – 1995

Fundosde Pensão Total

Companhias de Seguro Cias. de Investimento

Vida Outros Total Abertas Fechadas Agregado US$ bi

EUA 62 35 33 44 57 63 57 50 10,501

Japão 9 24 27 16 8 14 3,035

Alemanha 1 8 7 12 6 7 5 1,113

França 0 7 7 8 9 11 6 1,159

Itália 1 1 1 2 1 1 1 1,223

Reino Unido 11 10 11 6 4 3 29 9 1,79

Ativos financeiros como percentual do total global do setor.Fonte: BIS, Annual Report, 1998.

A Tabela 20.3 mostra não apenas como o crescimento dos fundos de pensão é um fenômeno relati-vamente recente na maioria dos países avançados, como também o potencial de expansão desses fun-dos, ainda pouco relevantes no Japão, Alemanha e Itália.

TABELA 20.3Crescimento dos Fundos de Pensão: Ativos Financeiros Totais Bilhões de dólares

1980 1985 1990 1993 1996 1996: % do PIB

EUA 701 1.606 2.492 3.449 4.752 62

Japão 343 460 442 10

Alemanha 15 22W 52 47 65 3

Itália 39 34 43 4

Reino Unido 116 224 537 682 897 77

Fonte: BIS, Annual Report, 1998.

Com um crescimento menos espetacular, mas ainda assim muito significativo, emergiram tambémna década de 1980 os fundos mútuos de investimento. Como outras tantas inovações, o berço destesfundos foi a economia americana. Naquele país, tais fundos foram criados principalmente para escapardas regulações que restringiam o pagamento de juros sobre depósitos à vista (regulamento Q, do Fede-ral Reserve) nos bancos comerciais. Com o recrudescimento da inflação desde o final dos anos 60, agra-

294 Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros ELSEVIER

vado na década seguinte pelos choques de matérias-primas, e a alta das taxas de juros resultante docombate à inflação por política monetária, depósitos à vista impunham um trade-off crescentementedesfavorável entre rendimento e liquidez, estimulando a busca de soluções alternativas que fossem si-milarmente líquidas mas não penalizadas pela perda de valor real, como no caso dos depósitos. O cres-cimento de fundos de investimento, que desenvolveram características muito próximas às dos depósi-tos à vista (especialmente com o surgimento das “ordens negociáveis de retirada”, contas NOW, quemimetizavam de forma muito próxima a natureza desses depósitos), foi a resposta encontrada para oproblema. Esses fundos tinham diversas vantagens sobre os depósitos bancários, do ponto de vista doaplicador: eram líquidos, transferíveis por cheque e pagavam juros. Os fundos não sofriam qualquerrestrição regulatória sobre suas aplicações, permitindo-se comprar papéis de empresas de alto retorno(que serviu de estímulo para a expansão da securitização primária, referida acima), nem tinham de man-ter reservas, tendo, assim, clara vantagem sobre os bancos cujas aplicações eram limitadas por regula-ção prudencial e ainda tinham de arcar com os custos de manutenção de reservas e outros requerimen-tos impostos pelo Banco Central.2 A rápida expansão desses fundos não foi detida nem mesmo pela mu-dança da lei bancária nos Estados Unidos em 1980, que equalizou as vantagens de operação dos bancose dos fundos. Em 1994, o público americano mantinha US$ 2,7 trilhões em depósitos e US$ 2 trilhõesem fundos. Em 1980, 6% das famílias americanas aplicavam em fundos; em 1994, 28% das famílias ofaziam (cf. The Economist, suplemento Survey of International Banking, 30/4/1994). O valor dos ativosadministrados profissionalmente nos Estados Unidos passou de US$ 500 bilhões em 1985 para US$ 2,6trilhões em 1995 (The Economist, 21/10/1995).

A Tabela 20.4 mostra a evolução deste setor desde 1987, onde se vê a importância que essas institui-ções já atingiram na economia americana, seja medida em termos do PIB, seja em capitalização de mer-cado. O exame das duas últimas colunas mostra que esses fundos ainda podem crescer muito em econo-mias como a japonesa ou a alemã.

TABELA 20.4Crescimento das Companhias de Investimento – (Fundos): Ativos Líquidos Totais (bilhões de dólares)

1987 1990 1993 19961996

% do PIBCapitalizaçãode mercado

EUA 770 1.069 2.075 3.539 46 15

Japão 305 336 455 420 9 4

Alemanha 42 72 79 134 6 4

França 204 379 484 529 34 18

Itália 51 42 65 129 11 5

Reino Unido 68 89 131 188 16 8

Fonte: BIS, Annual Report, 1998.

A crescente importância dos fundos que, juntamente com as companhias seguradoras, constituemos chamados investidores institucionais, mudou sensivelmente as condições de operação do sistema fi-nanceiro e continuará a fazê-lo no futuro, à medida que outros países passam pela mesma transforma-ção. Por um lado, em contraste com a acumulação de ativos por famílias, como era comum nos EstadosUnidos, ou com a importância da intermediação bancária na maioria dos outros países, os investidoresinstitucionais impõem uma perspectiva de portfólio nas suas aplicações e, por outro, não se contentam,nem de longe, com os retornos medíocres obtidos em depósitos bancários. A perspectiva de portfólioimplica uma atenção maior às diferentes combinações risco/retorno oferecidas por classe de ativos e pe-

Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros 295

2. Em 1970, 65% da tomada de empréstimos de curto prazo por empresas americanas eram atendidos por grandes bancos. Em1992, esta proporção caiu para 36%. Cf. The Economist, suplemento Survey of International Banking, 30/4/1994.

las suas flutuações em mercado. Assim, em contraste com a demanda de famílias por ativos, provavel-mente mais estáveis e influenciadas por outros fatores, como, por exemplo, a imagem pública de umadeterminada companhia, investidores institucionais devem estar muito mais voltados para fatores maisobjetivos, mas também mais voláteis, de mercado na escolha de sua carteira. Além disso, mudanças nascarteiras de fundos provavelmente terão, por sua importância quantitativa, impacto muito maior sobreo mercado do que a demanda difusa das famílias. Finalmente, a perspectiva de portfólio dá maior peso àdimensão da liquidez das aplicações, até pela maior frequência de reestruturações de carteira. Isto seriade se esperar não apenas pela maior sensibilidade desses fundos, geridos por administradores profissio-nais, como pela menor importância dos custos de transações incidentes sobre operações de grande va-lor, como as conduzidas por eles.

As implicações dessa mudança são profundas. Por um lado, reforça-se a tendência à securitização,já que investidores institucionais deverão preferir a aquisição direta de obrigações dos tomadores finaisa ativos criados por intermediários financeiros. Isto tende a restringir a importância de depósitos, à ex-ceção daqueles estritamente transacionais. Por outro lado, reforça-se a tendência à transformação dosbancos de sua função comercial tradicional para uma atuação cada vez mais próxima da dos bancos deinvestimento. Outra implicação importante é a de tornar as relações entre poupadores e empresas toma-doras mais volátil e sujeita a flutuações de mercado. Finalmente, emerge um forte estímulo seja ao de-senvolvimento de mercados secundários para os papéis comprados por investidores institucionais, sejapara o desenvolvimento de mercados de derivativos, respondendo ambos a uma mesma demanda: a deoferecer formas de fazer hedge contra o grau de iliquidez que caracteriza os papéis-alvo das aquisiçõesde fundos.

20.3.4. TENDÊNCIA À UNIVERSALIZAÇÃO DOS BANCOS

Como resultado das transformações já discutidas, tornam-se rapidamente obsoletas as formas de orga-nização segmentadas que não sejam resultado de uma escolha estratégica privada. Os bancos america-nos, já desde a década de 1980, vinham pressionando o Congresso no sentido de permitir adiversificação de atividades, notadamente a possibilidade de operação simultânea como bancos comer-ciais e bancos de investimento, revogando-se a Lei Glass/Steagal, o que finalmente ocorreu em fins de1999. Essa pressão deu-se através das fusões entre empresas que operam em diferentes segmentos. Istofoi possível em função da existência de brechas legais que permitiram ao Federal Reserve uma leituracada vez mais flexível das restrições relevantes.

As mudanças em curso impactarão também os bancos que atualmente já são legalmente universais,na sua maioria despreparados para atuar como bancos verdadeiramente diversificados. Forçados pelaglobalização financeira, os bancos universais se veem às voltas com a competição de bancos estrangei-ros, especialmente americanos, que trazem consigo as inovações financeiras para as quais estavam des-preparados. Por outro lado, as novas frentes abertas pela inovação financeira, como os processos de se-curitização e operação com derivativos em um cenário em que fronteiras nacionais são cada vez menosimportantes, abrem perspectivas de lucros muito superiores àqueles acessíveis nos tradicionais merca-dos de crédito. É uma necessidade de sobrevivência o desenvolvimento de capacidade de operação nes-tes novos mercados. Isto exige a concentração de esforços no reforço do segmento que era precisamen-te o mais deficiente nos bancos universais alemães, suíços etc., o de bancos de investimento, o que lhesparecia dar duas escolhas: a de desenvolver capacidade de operação em mercados de capitais a partir dozero ou adquirir bancos de investimentos já existentes. A percepção de que o primeiro caminho seriaquase impossível, levou ao grande processo de aquisição de bancos de investimento dos anos 80 e 90,em que bancos alemães e suíços adquiriram várias casas bancárias, especialmente inglesas, de grandetradição de mercado mas mais baratas que as americanas.

Essa opção tem-se mostrado de concretização mais difícil do que o esperado, porém, particular-mente por causa do chamado “choque de culturas”. Entre os dois tipos de instituição subsistem impor-tantes diferenças em relação à atitude com relação a risco (onde operadores de bancos de investimento

296 Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros ELSEVIER

são mais propensos a riscos que os operadores de bancos comerciais, voltados para a construção de re-lacionamentos mais duráveis), à concepção de sucesso (o ganho maior e mais imediato no primeirocaso, o sucesso em estabelecer ligações duráveis no segundo), à relação com o cliente (mais distante nocaso dos bancos de investimento que no de bancos comerciais), à remuneração dos funcionários (co-missão sobre negócios no caso do banco de investimento, estrutura mais estável e previsível de saláriosnos bancos comerciais, gerando ainda uma diferença significativa no valor recebido, muito mais altopara os operadores de bancos de investimento), aos procedimentos adotados (operações em mercadosde capitais frequentemente exigem decisões rápidas, mesmo em condições de risco, enquanto bancoscomerciais exibem processos de decisão mais demorados e hierarquizados) etc. Em função desses fato-res, os ganhos dos bancos de investimento tendem a ser maiores mas mais voláteis do que os dos bancoscomerciais.

O principal obstáculo para o desenvolvimento interno da capacidade necessária para a operação debancos de investimento está no tempo e na escala necessários para isto, diante da extremamente podero-sa concorrência dos bancos de investimento norte-americanos, que dominam completamente a cenamundial. Julga-se ser completamente impossível a uma instituição nova furar o bloqueio imposto peladimensão dos bancos de investimento líderes. A dificuldade não está apenas em desenvolver práticas demercado adequadas, dominando-se a “tecnologia” de operação em mercados globais de capitais que setornam crescentemente complexos – o que em si já é uma barreira formidável – mas também em conse-guir estabelecer uma cadeia de contatos suficientemente ampla para permitir o planejamento e a corretaprecificação das colocações de papéis. Dado o volume do mercado de capitais americano, os bancos deinvestimento daquele país têm vantagens competitivas imensas de partida, pelo simples fato de que seuacesso a fontes domésticas de recursos é muito mais imediato do que o de instituições que lutam paraentrar no mercado. A percepção de que é preciso ter alguma presença no mercado americano exatamen-te para ter acesso às fontes de recursos locais tem sido uma preocupação constante para as instituiçõeseuropeias.

Esse processo não se reflete de maneira simples nas estatísticas disponíveis, dado que se refere amudanças de estratégia de operação, de redenominação de operações, de mudança da natureza de ins-trumentos mais tradicionais para procedimentos mais modernos etc. De qualquer maneira, observa-sena Tabela 20.5, especialmente no caso dos bancos americanos e alemães, uma clara mudança na impor-tância dos depósitos à vista, passivo típico de bancos comerciais, como fonte de recursos para o setor.França, Itália e Reino Unido acompanham essa tendência.

TABELA 20.5Principais Países Industriais: Depósitos Bancários como Percentual do Passivo Bancário Total

1980 1990 1995

EUA 75,5 69,6 58,8

Japão 71,8 71,3 71,3

Alemanha 73,9 71,2 65,7

França 34,1 27,5

Itália 46,3 44,2 36,9

Reino Unido 86,5 84,6 86

Canadá 79,7 74,3 72,4

Fonte: IMF, International Capital Markets, 1998.

A Tabela 20.6 mostra o mesmo processo de diversificação pelo lado dos ativos bancários. Aindaque com menor intensidade que no caso dos depósitos, os empréstimos bancários têm perdido relevân-cia nos Estados Unidos, Alemanha, França e Canadá, embora nos outros países listados isto não pareçaocorrer.

Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros 297

TABELA 20.6Principais Países Industriais: Empréstimos Bancários como Percentual dos Ativos Bancários Totais

1980 1990 1995

EUA 63,3 62,9 58,9

Japão 55,3 56,2 65,4

Alemanha 83,6 81,2 77,7

França 40,4 36,4

Itália 35,7 45,6 42,4

Reino Unido 43,6 57,9 52,4

Canadá 70,4 70,8 67,6

Fonte: IMF, ICM, 1998.

20.3.5. DESREGULAMENTAÇÃO E LIBERALIZAÇÃO FINANCEIRA

A integração crescente da economia mundial, em contraposição ao isolacionismo e ao protecionismoque floresceram nas primeiras décadas do século, tem sido um objetivo explícito da comunidade de paí-ses capitalistas desde o final da Segunda Guerra Mundial. Essa integração, contudo, até recentemente,foi entendida em sentido mais restrito, abrangendo basicamente as operações de comércio internacio-nal. O forte movimento de expansão de empresas multinacionais, especialmente as industriais, a partirda década de 1950, mostrou aspectos mais complexos da questão da integração, notadamente aquelesreferentes às limitações do conceito de soberania nacional. Superados em grande parte esses problemas,mas não inteiramente – pela generalização do fenômeno do investimento direto estrangeiro – colo-cou-se, particularmente a partir dos anos 80, uma nova dimensão da questão da integração da economiamundial com a emergência do conceito de globalização. A noção de globalização leva à ideia de inte-gração um passo adiante, um passo, porém, decisivamente diferente dos anteriores no que se refere àquestão da soberania. Ao contrário dos movimentos anteriores de internacionalização e integração eco-nômica através da liberalização dos fluxos comerciais e de capitais de risco, a globalização implica umaredução sensivelmente maior da soberania nacional. Isto porque enquanto a internacionalização ante-riormente praticada limitava-se a abrir as economias nacionais à penetração de capitais estrangeiros, aglobalização implica um movimento adicional, de redução das diferenças de natureza legal e institucio-nal entre aquelas economias. Globalização implica equalização de condições de operação e, com isso, atendência à unificação dos mercados.

Em nenhum outro setor da atividade econômica o processo de globalização avançou tanto quanto nosetor financeiro. A Tabela 20.7 mostra a vertiginosa velocidade com que se criou um mercado internacio-nal em bônus e ações. A única exceção é o Japão, que, por toda a década de 1990, tem se debatido em umacrise financeira doméstica, cujas proporções gigantescas ainda não foram inteiramente calculadas.

TABELA 20.7Países Industriais Selecionados: Transações Internacionais em Bônus e Ações (Percentual do PIB)

1975 1980 1985 1990 1995 1997

EUA 4 9 35 89 135 213

Japão 2 8 62 119 65 96

Alemanha 5 7 33 57 172 253

França 5 21 54 187 313

Itália 1 1 4 27 253 672

Canadá 3 9 27 65 189 358

Fonte: IMF, IMC, 1998.

298 Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros ELSEVIER

A busca de uma integração mais completa nos fluxos de bens e serviços internacionais é uma razãopara a desregulação da economia, entendida não como a eliminação de toda e qualquer forma de inter-venção na economia, mas, sim como a eliminação daquelas medidas cujo intuito, explícito ou implíci-to, seja apenas a defesa de espaços privilegiados por parte de agentes econômicos nacionais contra ou-tros nacionais ou contra estrangeiros. No entanto, os movimentos de desregulação, muito fortes a partirdos anos 80, não tiveram sua origem na busca de maior integração internacional, só percebida na práti-ca posteriormente. O impulso à globalização foi, de certo modo, um resultado quase inesperado de ummovimento político de natureza conservadora, tendente a promover a redução da presença do estado naeconomia, em resposta ao que foi percebido como uma intervenção estatal excessiva, e que foi respon-sabilizada pela perda de disciplina social e de eficiência produtiva que teria caracterizado as principaiseconomias capitalistas nos anos 60 e 70.

Com relação ao setor financeiro, cabe observar uma terceira influência estrategicamente importan-te neste processo, a introdução de inovações técnicas no setor financeiro, especialmente nos campos dainformática e da tecnologia de comunicações referidas na Seção 20.2 deste capítulo. A informatizaçãoda atividade financeira em geral, e bancária em particular, teve implicações extremamente fortes para adeterminação dos caminhos trilhados pelo setor. Por um lado, a introdução de computadores facilitoumuito a combinação e o processamento de informações referentes a clientes diversos operando em dis-tintos mercados com conjuntos diversificados de obrigações e direitos. Na verdade, contratos comple-xos como os derivativos estruturados ou o “empacotamento” de obrigações em obrigações derivadas,transacionadas na securitização secundária, não poderiam sequer existir na ausência de métodos de cál-culo de risco e estabelecimento de preços permitidos pelo uso de computadores. Do mesmo modo, a co-municação em tempo real permitida pelos novos equipamentos disponíveis permite a atuação simultâ-nea em mercados geograficamente distantes, levando assim ao desenho de transações que consideramelementos de informação gerados no mesmo momento em cada um deles. O forte processo de inovaçãotecnológica do setor representou, por si só, um impulso à globalização, já que tornou-se não apenaspossível, mas mostrou-se também extremamente proveitoso operar nas diversas frentes disponíveis, es-tendendo as possibilidades de arbitragem entre mercados até seus limites físicos. Por outro lado, refor-çou-se também a tendência à segmentação no setor, não entre subsetores, como aquela imposta pela le-gislação americana; mas entre grandes grupos financeiros – equipados para operação à escala mundial epreparados para obter ganhos em todos os mercados financeiros – e aquelas instituições que se veemobrigadas a agir dentro de segmentos específicos ou que têm sua atuação regionalmente limitada.

A alteração da forma de operação do setor financeiro em função de inovações tecnológicas foi, defato, o segundo principal argumento em favor da desregulação financeira. Ao lado da já apontada per-cepção de que regulações excessivas impediam o aproveitamento de vantagens competitivas, passou-sea apontar também a inocuidade de controles e limitações de ordem regulatória frente às possibilidadesque as novas tecnologias ofereceriam para contornar ou desvirtuar estes limites. O argumento é espe-cialmente utilizado em contrário a regulações que buscam limitar a circulação internacional de capitais,como controles de aplicações de nacionais no exterior e outros mecanismos de saída de recursos. Apon-ta-se para a impossibilidade de controle efetivo de saídas de recursos, em função da possibilidade decriação contínua de canais alternativos de circulação quando as autoridades bloqueiam determinadarota. Essas novas possibilidades estariam se tornando possíveis em função das novas tecnologias, em-bora não seja exatamente claro o modo pelo qual isto funcionaria, à parte atividades abertamente crimi-nosas, como as relacionadas à “lavagem” de dinheiro por organizações ilegais.

Seja como for, tornou-se dominante a percepção de que controles, além de indesejáveis, são tam-bém inócuos e, com isso, abriu-se movimento sustentado de redução drástica de regras de regulação dosetor financeiro em geral e do bancário em particular. Foi eliminado um grande número de restrições àatividade financeira doméstica nos países mais avançados, assim como foram substancialmente libera-lizadas a circulação internacional de capitais e a possibilidade de operação doméstica de instituições fi-nanceiras estrangeiras. Nesse processo, foram redefinidas de modo profundo as formas de competiçãono setor. Entre as principais modificações operadas conta-se a progressiva liberalização da entrada denovas empresas no setor bancário, ainda que, em grande parte, isso tenha representado mais a formali-

Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros 299

zação de um movimento que já estava em pleno andamento do que propriamente a abertura de novasfronteiras. Com efeito, como já visto, várias instituições, como, por exemplo, fundos mútuos, já vinhamse apropriando de uma fração crescente dos mercados bancários, seja em termos de captação, seja emtermos de aplicação de recursos. Os movimentos de desregulação tornaram o mercado bancário formal-mente mais contestável, incrementando, com isso, seu grau de concorrência efetiva. A desregulaçãotem permitido também que as instituições financeiras desenhem de forma mais livre o mix de riscos quedesejam correr, os mercados que desejam explorar e os procedimentos, inclusive de gerência de riscos,que desejam adotar. As próprias autoridades reguladoras têm tendido a transferir às casas bancárias aresponsabilidade pelos riscos de sua estratégia. A tendência dominante atualmente é precisamente a detransferir aos próprios bancos a responsabilidade pela escolha de sua estratégia de operação no que con-cerne a riscos. Caberia, neste contexto, à autoridade reguladora o exame prévio da estratégia, mas não omonitoramento de sua aplicação. Além disso, as regras de intervenção anteriores seriam substituídaspor regras mínimas que garantissem a transparência de riscos e retornos da estratégia escolhida para osinteressados, isto é, depositantes, aplicadores etc. Assim, caberia aos reguladores a supervisão da esco-lha estratégica mais geral, para garantir a minimização dos riscos sistêmicos que realmente devem con-centrar a atenção das autoridades, deixando sua aplicação específica para ser acompanhada e controla-da pelos agentes privados diretamente interessados nela, dotados da informação necessária para tal, tor-nada disponível pela legislação referente à divulgação dos dados relevantes.

RESUMO

Neste capítulo examinamos as principais tendências evolutivas dos sistemas financeiros modernos. Iniciamospela discussão do conceito de inovação financeira e de transformação estrutural. Mostramos que inovações finan-ceiras, relativamente infrequentes no passado, tornaram-se a principal arma competitiva entre instituições finan-ceiras atualmente, como, aliás, já ocorria em outros setores. A onda mais recente de inovação e transformaçãoiniciou-se na década de 1970, em reação ao aumento dramático de instabilidade financeira causado pela colapsodo sistema cambial de Bretton Woods, pelo aumento da inflação e pela utilização de elevações das taxas de juroscomo instrumento de política monetária. Em paralelo, desenvolvimentos importantes tiveram lugar em termostecnológicos, especialmente no que se refere a informática e comunicações, e político-ideológicos, firmando-seuma cultura de redução da intervenção do Estado e de desregulação, particularmente impactantes para o setor.

Discutimos, então, as principais transformações e inovações que têm tido lugar nas mais avançadas economiascapitalistas: a tendência à securitização; o crescimento dos mercados de derivativos; a emergência de investidoresinstitucionais; a transformação dos bancos antes especializados em bancos realmente universais; e a liberalizaçãodos mercados financeiros doméstico e internacional.

TERMOS-CHAVE

� Inovação� Transformação Estrutural� Inovações Institucionais� Instabilidade� Securitização Primária� Derivativos� Derivativos Transacionados em Bolsa� Investidores Institucionais� Fundos de Investimento� Desregulação

� Inovação Financeira� Progresso Técnico� Volatilidade� Securitização� Securitização Secundária� Derivativos de Balcão� Derivativos de Crédito� Fundos de Pensão� Convergência Estrutural� Liberalização

300 Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros ELSEVIER

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Como a discussão deste capítulo trata de mudanças muito recentes, muitas das quais ainda em progresso, asmelhores fontes de pesquisa aqui não estão disponíveis como livros ou artigos acadêmicos. Ao contrário, o leitordeve buscar nas revistas voltadas para o setor financeiro a fonte de suas informações. Entre as mais importantes,recomendam-se:

Euromoney Magazine, editada na Inglaterra, uma das mais respeitáveis publicações voltadas para o público in-teressado em mercados financeiros. Seus artigos estão disponíveis no site www.euromoney.com.

Institutional Investor Magazine, revista tão respeitada quanto a anterior. A maior parte de seu conteúdo estádisponível em www.iifmagazine.com.

The Economist, talvez o semanário mais conhecido do mundo, não apenas cobre em certo detalhe fatos do mer-cado financeiro, como traz também, sob a forma de suplementos, estudos especiais sobre setores da economia ousobre países. De especial interesse é o suplemento publicado quase todos os anos sobre o sistema bancário interna-cional, por volta de abril.

Inovações Financeiras e Transformações Estruturais dos Sistemas Financeiros 301

TEORIAS DE ALOCAÇÃODE PORTFÓLIO

INTRODUÇÃO

Neste capítulo apresentamos um modelo geral de alocação de portfólio com base naquele de-senvolvido por John Maynard Keynes. Nesse modelo, os agentes alocam seus portfólios deacordo com suas expectativas de retorno. Essas expectativas são formadas num ambiente deincerteza. Ou seja, mesmo que os agentes possam utilizar informações sobre preços do passa-do para projetar preços futuros, nem sempre o passado é um guia confiável para realizar esteexercício. Este é o caso dos bens de capital, que possuem longos prazos de maturação, e cujoretorno está relacionado com a demanda agregada em, muitas vezes, diversos anos à frente.No caso de ativos financeiros de curto prazo, os retornos esperados são mais claramente defi-nidos (dado o curto prazo de vencimento), porém seus preços de mercado podem variar signi-ficativamente de acordo com as mudanças de expectativas de curto prazo e da demandaespeculativa por moeda.

Vamos ainda estudar neste capítulo outros modelos de alocação de portfólio – que emrealidade são a base fundamental da Teoria da Alocação de Portfólio contemporânea –inicialmente formalizados por James Tobin, e depois ampliados por outros autores. A ca-racterística distintiva desses modelos em relação ao de Keynes se relaciona ao modelo deformação de expectativas. No modelo de Tobin, utiliza-se a ideia de que os retornos fu-turos dos ativos são projetados a partir de distribuição probabilística dos retornos dos ativos.Este é o conceito de risco. A partir desse modelo de variância-risco, e de um artigo semi-nal de H. Markowitz,1 desenvolveu-se a moderna teoria de alocação de portfólio e deter-minação de preços de ativos. Veremos adiante que os modelos mais recentes de alocaçãode portfólio e determinação de preços de ativos se baseiam na utilização da hipótese de ex-pectativas racionais no modelo de formação de expectativas dos investidores em títulosfinanceiros. Este é o caso, por exemplo, do modelo de determinação de preços de ativos decapital, ou, em inglês, capital asset pricing model, CAPM.

CAPÍTULO

21

1. H. Markovitz (1952). “Portfolio selection”, Journal of Finance 7(1), março: 77-91.

21.1. ALOCAÇÃO DE PORTFÓLIO EM UM CONTEXTO

DE INCERTEZA EM RELAÇÃO AO FUTURO

No Capítulo 4, vimos que é possível definir, para qualquer ativo, uma taxa própria de juros, que medeseu retorno total esperado, incluindo-se não apenas os retornos em dinheiro, como também seu prêmiode liquidez. A partir da taxa própria de juros é possível definir-se a taxa de retorno do ativo.

O preço futuro de qualquer ativo pode ser entendido como o somatório do preço atual, do retornoesperado líquido do ativo (retorno fixo ou variável) do ganho ou perda de capital esperados na ocasiãode sua venda. Para melhor caracterizar esta taxa de retorno, como vimos, John Maynard Keynes dividiuestes fatores em quatro componentes – Q, C, l e A – que explicamos a seguir.

“Q”, ou a quase-renda, que representa o valor do fluxo de rendimento que se espera seja proporcio-nado por utilizar um ativo qualquer. No caso de um título de renda fixa, Q seria por exemplo os juros lí-quidos de impostos a serem pagos sobre um montante aplicado. No caso de uma ação, seria o dividendolíquido de impostos que por sua vez depende da política de dividendos de uma empresa e dos lucros fu-turos da empresa. No caso de um bem de capital, “Q” representa o fluxo de lucro após tributação, obtidopela venda dos bens produzidos a partir da utilização dessa máquina.

“C”, o custo de carregamento de um ativo, que representa os custos nominais envolvidos na manuten-ção desse ativo. Assim, por exemplo, o custo de manter-se um estoque de trigo em um silo, ou o custo a serpago a uma corretora por manter uma ação, ou o custo de manutenção contra desgaste de um bem de capital.

“l”, correspondente ao prêmio de liquidez do ativo, que é uma função inversa da perda esperada decapital (custo de transação) se necessitamos vender um ativo em determinado momento. Assim, um ativoé tanto mais líquido (e possui um prêmio de liquidez maior) quanto mais rápido puder seu proprietáriovendê-lo, e quanto menor for a perda pecuniária resultante da venda num prazo curto (tal como vimos noCapítulo 1). Por exemplo, se possuímos uma máquina industrial, é muito provável que venhamos a perderdinheiro, ao vendê-la numa tentativa emergencial de fazermos caixa. No limite, se não há um mercado or-ganizado para o bem que queremos vender, ou se naquele momento não há compradores para este tipo debem, talvez tenhamos que vender o ativo “a preço de banana”, assumindo uma perda significativa na ob-tenção rápida de liquidez. O prêmio de liquidez de um bem de capital, normalmente, é muito baixo. Já umtítulo financeiro tem, em geral, um prêmio de liquidez mais elevado, devido ao fato de existirem mercadosorganizados para negociação desses títulos. Porém, mesmo os ativos com mercados mais organizados po-dem possuir liquidez baixa caso, em um determinado momento, o volume de transações se tornar muitobaixo.2 Neste sentido, o prêmio de liquidez (l) está basicamente associado a duas características do ativo:(i) o grau de organização de seu mercado, ou seja, um ativo cujo mercado tem níveis elevados de transa-ção e alta periodicidade é um ativo líquido; (ii) o volume esperado de transações desse mercado.

“A” é a expectativa de valorização do ativo ao longo do tempo em relação a todos os demais ativos.Como a moeda é ao mesmo tempo a unidade de conta e um ativo, o valor esperado de valorização doativo é em geral a diferença entre o preço futuro (Pf) e seu preço presente, ou à vista (Ps). Assumindo quetodos os ativos têm somente um período de existência, o retorno futuro do ativo pode ser definido como:

R = Pf – Ps + (Q – C) + l (1)

Dividindo os valores pelo preço de compra – ou o preço à vista – de um ativo i qualquer e somandoseus componentes, temos a taxa de retorno médio esperado, ri

e , de todo ativo:3

Teorias de Alocação de Portfólio 303

2. Note que a moeda é o ativo líquido por excelência, como denotou John Maynard Keynes em sua Teoria Geral pelo simplesfato de ser o ativo com o mercado mais organizado – ou seja, funciona 24 horas por dia, na medida em que supostamente todoso aceitam dentro de um espaço nacional – e tem o maior volume de transações entre todos os ativos – já que é demandada paracompra e venda de qualquer outro ativo. Veremos que essa característica da moeda faz com que a taxa própria de juros da moe-da tenha um papel especial na determinação dos preços e taxas de retornos dos demais ativos.3. No mundo real, a comparação entre taxas de retorno de ativos implica considerar também os prazos de vencimento de cadaativo. Para simplificar nosso raciocínio, vamos supor que todos os ativos, fora a moeda, têm um prazo de vencimento igual a 1período, e que o prêmio liquidez (l) já é uma taxa.

rQ

P

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e

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s� � � �

�� � � �

( )(2)

Em equilíbrio, considerando as especificidades em termos de prazo de maturação e risco, todos osativos de uma economia devem possuir a mesma taxa de retorno de equilíbrio ex-ante, após deduzidostodos os encargos (tributação sobre o retorno). A razão dessa lei do preço único é simples: se a taxa deum ativo (A) é superior à de outro (B), e se não há nenhum impedimento para a compra e venda de ati-vos, é possível obter-se ganhos vendendo-se B e comprando A. Em outras palavras, caso o retorno/pre-ço de um ativo seja superior ao de outro qualquer, esta situação será corrigida através de arbitragem.

Assim, no modelo de equilíbrio do mercado de ativos de Keynes, as compras e vendas de ativos (fi-nanceiros e não financeiros) ocorreram até que as taxas de retornos dos ativos sejam idênticas. Ou seja,para quaisquer ativos i e j

qi – ci + li + ai = qj – cj + lj + aj �i, j (3)

Desta forma, o modelo de alocação de portfólio de Keynes poderia ser simplificado da seguinte for-ma. Em mercados competitivos, a existência de taxas de retorno distintas, para ativos com prazos devencimento e características de risco idênticos, gerará um aumento da demanda de um em detrimentoda demanda de outro – uma corrida por parte dos investidores para obter ganhos de arbitragem. Istofará com que os preços à vista desses ativos variem de forma inversa e os excessos de demanda/ofertados dois ativos somente deixarão de existir quando a condição de equilíbrio expressa pela equação 3voltar a prevalecer.

O modelo é extremamente simples na sua concepção, porém torna-se crescentemente complexo àmedida que discutimos como os diversos agentes compradores de distintos tipos de ativos formam assuas expectativas sobre a determinação dos componentes das respectivas taxas de retorno esperado. Aprimeira questão relevante nessa discussão é a da heterogeneidade das expectativas dos agentes. Natu-ralmente, fora raras exceções, as expectativas dos agentes não são idênticas – o que, aliás, permite quehaja compradores e vendedores de ativos em qualquer mercado.4 Assim, quando nos referimos às taxaspróprias de juros de equilíbrio, conforme mostra a equação 3, estamos de fato nos referindo às médiasde taxas esperadas por diferentes agentes atuando em diversos mercados.

Em segundo lugar, surge a questão da instabilidade potencial das expectativas dos agentes. Acompra de um ativo representa a compra do direito a um fluxo de rendimentos no futuro, e evidente-mente esses fluxos estão condicionados a estados da macro e microeconomia no futuro. Nenhum agentetem certeza desses estados futuros, e suas projeções são calcadas em fatores tanto objetivos (informaçõespassadas e presentes e modelos de funcionamento de um determinado mercado), quanto subjetivos.

A incerteza sobre o futuro, depende, obviamente, do quão distante está este futuro. O retorno espe-rado de um ativo para realização em um mês pode evidentemente ser projetado utilizando-se o presentee o passado recente como guia. A projeção do retorno esperado de um ativo de longo prazo, digamos, decinco anos, dificilmente poderá se basear fortemente em informações correntes sobre a situação domercado. Logo, a potencial instabilidade das expectativas de curto prazo em geral é menor do que aque-las de longo prazo.

Por fim, temos que considerar que os ativos têm características distintas e, portanto, variações deseus preços à vista gerarão respostas distintas de oferta e demanda. Por exemplo, um ativo reprodutívele cuja oferta seja relativamente elástica, como um bem de consumo, pode ter sua quantidade alterada

304 Teorias de Alocação de Portfólio ELSEVIER

4. Imagine que dois investidores têm expectativas idênticas sobre o retorno de dois ativos, A e B, que possuem iguais caracte-rísticas de prazo de vencimento e risco. Por exemplo, suponha que ambos esperam que o ativo A tenha um retorno líquido,após tributação, de 10%, enquanto que um ativo B tenha um retorno de 5%. Ambos seriam compradores de A e vendedores deB, e assim o preço de A tenderia a elevar-se, enquanto o de B a reduzir-se. O equilíbrio seria obtido no momento em que, devi-do a variações dos preços correntes, ambos os ativos tivessem uma mesma taxa de retorno. Note, entretanto, que esse equilí-brio seria obtido sem nenhuma transação entre os dois compradores. Ou seja, somente há negociação nos mercados de ativoscaso haja divergências entre investidores sobre os retornos esperados dos ativos negociados.

com relativa rapidez em resposta a variações de demanda. Já um ativo com elasticidade de produçãobaixa, não. Da mesma forma, um ativo reprodutível com alto grau de substitutibilidade em relação a ou-tros ativos tenderá a gerar dois efeitos: um aumento da sua oferta e uma substituição por outros ativossimilares.

Na Teoria Geral o modelo de determinação de preços de ativos exposto anteriormente tem um pa-pel especial devido às características também especiais da moeda, enquanto ativo, no que Keynes cha-mou de economia monetária da produção – pelo fato de a moeda ter elasticidade de produção e elasti-cidade de substituição nulas. Vejamos.

21.1.1 AS CARACTERÍSTICAS DISTINTIVAS DOS ATIVOS

Cada categoria de ativo, não financeiro e financeiro (não monetário e monetário), possui atributos quepodem ser representados através dos componentes das equações apresentadas anteriormente.

A moeda é um ativo financeiro não remunerado, e portanto possui uma quase-renda esperada iguala zero. Trata-se de um ativo com uma característica peculiar: a de não ser passível de valorização oudesvalorização em termos nominais (aM = 0)5 – ou seja, é o ativo de “risco” nulo entre todos os ativos.Seu custo de carregamento é também nulo (qM = cM = 0) ou desprezível, e seu prêmio de liquidez (lM),por ser o ativo líquido por excelência, é o maior entre todos os ativos, financeiros e não financeiros. Seuretorno é, portanto, exatamente equivalente ao seu prêmio de liquidez. A taxa de juros de qualquer ati-vo, ou seja, que remunera qualquer ativo financeiro, mais o seu prêmio de liquidez, deve ser, em geral,ao menos idêntica ao prêmio de liquidez obtido por reter-se moeda.

Uma outra característica da moeda torna-a especialmente importante na determinação da carteirade ativos mantida em uma economia como um todo: elasticidade de substituição negligenciável. Paraentendermos esta especificidade da moeda e seu impacto sobre a demanda por outros ativos, lembre-mos que o aumento do preço à vista de qualquer bem tende a gerar simultaneamente uma expansão dasua produção e uma substituição por outros ativos. Numa economia monetária, a moeda, além de reser-va de valor, é simultaneamente um meio de pagamento e é a unidade de conta sobre a qual os contratossão estipulados. Neste sentido, se aumenta a escassez de moeda, podemos imaginar que os agentes po-derão somente com muita dificuldade utilizar outros ativos para realizar suas compras de bens e ativos epagar suas dívidas. Um excesso de demanda por moeda gera, portanto, um excesso de oferta dos demaisativos sem, entretanto, provocar a substituição da moeda por aqueles ativos. O que de fato ocorre nestecaso é que a demanda pelos demais ativos cai – o que, no caso dos ativos reais (bens de capital, porexemplo), tem o efeito de gerar um nível de produto inferior ao alcançado antes do aumento das taxasde juros sobre moeda.

Assim, o aumento da demanda por moeda, mesmo que elevando a taxa de juros sobre este ativo,não estimulará nenhuma expansão de sua produção e, portanto, tampouco gerará demanda para outrosativos, bens e serviços. De fato, caso a oferta de moeda não se modifique, um aumento da demanda pormoeda restringiria a demanda por outros ativos. Este é o impacto direto do aumento da demanda por mo-eda, dada a oferta de moeda. Além deste impacto direto sobre a demanda por bens e ativos, temos queconsiderar que, ao gerar uma queda do preço à vista dos ativos reais, uma situação de excesso de de-manda por moeda também pode afetar as expectativas de quase-rendas desses ativos, deprimindo maisainda seus retornos esperados. Neste caso, o efeito de um aumento da demanda por moeda, quando nãoacompanhado pelo aumento de sua oferta, seria recessivo.

Os ativos financeiros não monetários também possuem custo de carregamento desprezível(cNM=0), porém apresentam rendimentos positivos (qNM>0) e a diferente de zero. Por incorrerem emcustos de transação e porque seus preços de venda imediata podem ser relativamente baixos, seu prêmiode liquidez é inferior à moeda. Como são agentes privados que emitem ativos financeiros nãomonetários, variações positivas de seus preços à vista podem estimular sua produção, se as expectativas

Teorias de Alocação de Portfólio 305

5. Aqui estamos ignorando as expectativas de inflação e os contextos inflacionários.

de retorno dos ativos que tais emissões financiam se mantiverem superiores ao custo de captação dessesrecursos. Porém, na prática, a oferta de tais ativos varia de forma defasada em relação à sua demanda, enão tem efeito direto na demanda de fatores de produção – logo, sobre emprego e produto.

Os ativos não financeiros, como por exemplo, bens de capital, possuem quase-rendas esperadas ecustos de carregamento em geral superior a zero (qNF>0 e cNF>0), a diferente de zero, porém prêmios deliquidez próximos a zero. Suas elasticidades de produção e substituição são em geral positivas, o queimplica dizer que variações de seus preços à vista têm o efeito de estimular tanto a sua produção – au-mentando portanto a demanda por fatores de produção, o produto e o emprego – quanto a produção deoutros ativos reais substitutos.

Caso consideremos esses três tipos básicos de ativos, a condição de equilíbrio é que:

qNF – cNF + aNF = qNM – cNM + lNM + aNM = lM (4)

Note que, através da equação 4 percebemos de que forma os chamados mundos “real” e “financei-ro” interagem na teoria de Keynes. A partir daí podemos entender as consequências macroeconômicasdesse modelo de alocação de portfólio.

21.1.2 IMPACTOS MACROECONÔMICOS DO PROCESSO DE ALOCAÇÃO

DE PORTFÓLIO

Consideremos primeiramente a mudança de expectativas nos mercados financeiros (expectativas decurto prazo); por exemplo, um aumento na incerteza que leva os agentes a aumentar sua preferênciapela liquidez. Neste caso, o prêmio de liquidez aumentaria, provocando um aumento de demanda pormoeda e uma queda da demanda pelos ativos não monetários, financeiros e não financeiros. No primei-ro caso, esta queda de demanda redundaria numa redução do preço à vista desses ativos e portanto emum aumento das suas taxas de retorno – logo, da taxa de captação de recursos. No segundo caso, a redu-ção do preço à vista de ativos não financeiros tenderia a reduzir o seu nível de produto – e portanto a uti-lização de fatores relacionados à sua produção.

Para Keynes, as expectativas de curto prazo que regem o mercado financeiro são inerentementeinstáveis. Keynes ressalta que uma das características dos mercados financeiros modernos seria a possi-bilidade do que atualmente conhecemos como “comportamento de manada” (em inglês, herd behavi-our). Mesmo que por parte dos especialistas prevaleçam análises objetivas sobre o retorno esperadodos ativos, em determinados momentos, especialmente de aumento da incerteza, é preferível “seguir amanada” do que arriscar “perder sozinho”. Neste contexto, pode haver convergência de expectativaspara baixo ou para cima, com efeito de gerar corridas para liquidez – com consequente elevação das ta-xas de juros – ou corridas para as compras – gerando “bolhas especulativas”. Desta forma, para Keynes,os mercados financeiros são potencialmente instáveis, o que faz com que a demanda (especulativa) pormoeda e as taxas de juros sejam potencialmente instáveis.

A partir da equação 4, podemos também entender a teoria do investimento de Keynes. Em Keynes,as quase-rendas esperadas (Q) do investimento são inerentemente instáveis, por se tratarem de ativosde longa duração e que, portanto, começarão a produzir fluxos de rendimento no longo prazo. Saindo deuma situação de equilíbrio na composição da carteira ampla de ativos, caso haja uma melhoria das ex-pectativas empresariais, de forma que as quase-rendas esperadas na utilização de um bem de capital seelevem, ocorre um aumento no seu retorno esperado total (qk – ck), tornando-o superior aos demais ati-vos. Essa diferença entre taxas de retorno esperado estimula a compra de bens de capital, fazendo ele-var o seu preço à vista – o que por sua vez pode estimular a produção de bens de capital. Evidentemente,como o aumento do investimento, acaba por gerar um crescimento da demanda agregada, é factível quea partir de um primeiro crescimento do investimento dê origem a crescimentos subsequentes das expec-tativas de retorno do capital, gerando um círculo virtuoso de acumulação de capital.

306 Teorias de Alocação de Portfólio ELSEVIER

Para Keynes, a potencial instabilidade das expectativas de longo prazo resulta em grande parte dadistância entre o prazo de aplicação (compra e instalação do bem de capital) e o de realização do retornosobre o capital. O importante na avaliação das quase-rendas (e preço futuro) desses bens são sem dúvi-da as condições de demanda e competição no longo prazo. A questão não é, portanto, quanto eu podereiproduzir daqui a cinco anos, mas quanto eu poderei vender daqui a cinco anos.

O modelo de alocação e precificação de portfólio em Keynes é portanto um modelo de equilíbrio,macroeconômico, que busca mostrar as fontes de instabilidade em um economia de mercado. Estas fon-tes estão relacionadas (i) à potencial instabilidade das expectativas de curto prazo nos mercados finan-ceiros, que podem ter influência sobre os preços de ativos financeiros, e portanto sobre as taxas de juros– o custo de captação de recursos para a realização de gastos; (ii) à potencial instabilidade das expectati-vas de longo prazo, que podem afetar as decisões de investimento; (iii) ao fato de que são as decisões degasto que determinam em última instância o nível de utilização dos fatores de produção, logo o nível deproduto e de emprego na economia. Apesar do nível de formalização dos modelos de alocação de port-fólio ter aumentado significativamente desde Keynes, essa perspectiva macroeconômica perdeu-se aolongo do tempo. De fato, os modelos de alocação de portfólio contemporâneos têm características sig-nificativamente distintas daqueles apresentados por Keynes. É o que veremos adiante.

21.2. MODELOS CONVENCIONAIS DE ALOCAÇÃO DE PORTFÓLIO:

RETORNO, RISCO E DIVERSIFICAÇÃO

Um dos pilares da teoria de portfólio contemporânea é o modelo de Tobin de 1958 de alocação de port-fólio, do qual já tivemos uma introdução no Capítulo 5. O objetivo do modelo, no entanto, era bastantemenos genérico do que aquele proposto por J. M. Keynes e discutido acima: sua função era mostrar osmicrofundamentos da demanda especulativa por moeda a partir da teoria da preferência pela liquidez.

O modelo de Tobin restringe-se a dois ativos; portanto, o aumento do risco da carteira como umtodo está associado à compra do ativo remunerado, com risco. Entretanto, é intuitivo que, quando per-mitimos a existência de um ou mais ativos com características de riscos distintas, podemos ter o casoem que a ampliação do número de ativos pode reduzir o risco do total da carteira, conquanto esses ati-vos tenham riscos negativamente correlacionados. Neste caso, a combinação de dois ou mais ativospode redundar em um risco muito inferior a qualquer soma ponderada dos riscos dos ativos. É nestesentido que a diversificação de ativos torna-se relevante.

Demonstrar os potenciais da diversificação é simplesmente provar que quaisquer ativos que te-nham correlação negativa podem, ao serem somados numa carteira, reduzir o risco total dessa carteira.Vamos supor que tenhamos a opção de comprar dois ativos não monetários, remunerados, nas propor-ções w1 e w2, tal que w1 + w2 = 1.

Vamos supor agora que a rentabilidade de cada um dos ativos é função do “estado dos negócios daeconomia como um todo”, ou seja, a posição da economia no ciclo. Digamos que haja três cenários pos-síveis para a economia: “retração”, “normalidade” e “crescimento”. Somos relativamente otimistasquanto ao cenário macroeconômico, e portanto atribuímos probabilidades para cada um dos estados de30%, 50% e 20%. Para cada um desses cenários podemos atribuir um retorno esperado para os nossosativos (A1 e A2), como mostramos nos Quadros 21.1, 21.2 e 21.3.

O retorno de nosso primeiro ativo (A1) tem uma relação inversa com o desenvolvimento da econo-mia. Poderia por exemplo ser o caso de ações de empresas que vendem livros de “autoajuda”: mesmoque esses livros normalmente possam ter um retorno positivo nos momentos de crescimento econômi-co, sem dúvida alguma nos momentos de retração econômica suas vendas devem aumentar – especial-mente se a retração implicar restrição a acesso profissional ou perda de empregos.

A partir dos dados da probabilidade de ocorrência da retração, normalidade e crescimento econô-mico e retornos definidos na terceira coluna, podemos calcular normalmente a média e o desvio-padrãodesses possíveis retornos, e portanto o retorno esperado e o risco de nossa carteira caso tivéssemos op-tado em comprar somente o primeiro ativo – ou seja, w1 = 1 e w2 = 0 (ver Quadro 21.1).

Teorias de Alocação de Portfólio 307

QUADRO 21.1Carteira Composta Somente pelo Ativo A1

Estado dos negóciosProbabilidadede ocorrência Retorno (Ri) Pi.Ri Di=Ri – E(R) Pi.Di2

Retração 30% 18,00 5,40 4,00 4,80Normalidade 50% 14,00 7,00 0,00 0,00Crescimento 20% 8,00 1,60 (6,00) 7,20Total 100%Retorno Esperado (E(R)) 14,00Variância 12,00Desvio-padrão 3,46

Vamos supor agora que tivéssemos feito a “aposta inversa”, ou seja, se colocássemos todo nossosaldo para investimento no ativo A2, de forma que w1 = 0 e w2 = 1 (ver Quadro 21.2).

Notamos que este nosso segundo ativo tem características de risco quase simétricas em relação aoativo A1. Ou seja, o retorno é maior quando maior o crescimento econômico. Este ativo poderia ser, porexemplo, uma ação de uma empresa produtora de carros populares, cuja demanda depende em grandemedida da performance macroeconômica. Notamos que o retorno médio é propositadamente idênticoao do primeiro ativo, apesar de seu risco ser bastante superior. Se considerássemos somente o quesitorisco de cada ativo, a escolha de nosso investidor seria naturalmente “colocar todos os seus ovos na pri-meira cesta”, ou seja, utilizar todos os seus recursos na compra do ativo A1.

QUADRO 21.2Carteira Composta Somente pelo Ativo A2

Estado dos negóciosProbabilidadede ocorrência Retorno (Ri) Pi.Ri Di=Ri – E(R) Pi.Di

2

Retração 30% 8,00 2,40 (6,00) 10,80

Normalidade 50% 11,20 5,60 (2,80) 3,92

Crescimento 20% 30,00 6,00 16,00 51,20

Total 100%

Retorno Esperado (E(R)) 14,00

Variância 65,92

Desvio-padrão 8,12

Se construíssemos nossa carteira a partir de uma combinação desses dois ativos (w1 = w2 = 50%), nos-so resultado poderia ser surpreendente. Evidentemente o retorno esperado de nossa carteira seria exata-mente 14,00. Porém, observamos que o risco de nossa carteira conjunta é 2,51: bem inferior ao risco dasduas outras carteiras. Isto implica dizer que a diversificação, neste caso, reduz o risco total assumido.

QUADRO 21.3Carteira Composta Igualmente pelo Ativo A1 e pelo Ativo A2

Estado dos negóciosProbabilidadede ocorrência Retorno (Ri) Pi.Ri Di=Ri – E(R) Pi.Di

2

Retração 30% 13,00 3,90 (1,00) 0,30Normalidade 50% 12,60 6,30 (1,40) 0,98Crescimento 20% 19,00 3,80 5,00 5,00Total 100%Retorno Esperado (E(R)) 14,00Variância 6,28Desvio-padrão 2,51

308 Teorias de Alocação de Portfólio ELSEVIER

Esse resultado pode ser compreendido pela definição matemática do problema. Note por exemploque o retorno esperado de duas variáveis é exatamente a soma ponderada dos retornos esperados decada uma delas. Logo, no nosso problema:

E(w1.R1 + w2.R2) = w1.E(R1) + w2.E(R2) (5)

assim:

E(0,5.R1 + 0,5.R2) = 0,5.E(R1) + 0,5.E(R2) = 0,5 14 + 0.5 14 = 14

Já o desvio-padrão ou os riscos de dois ativos (ou seja, o risco da carteira, σP) pode ser sensivelmen-te diferente da média ponderada dos desvios-padrão (ou dos riscos) de cada um dos ativos:

� � ���

P w w w w R R� � �12

22

22

1 2 1 22. . . cov( , ) (6)

Note entretanto que quanto menor a covariância entre os retornos dos ativos – cov (R1, R2) – quecompõem a carteira, menor será o risco total da carteira composta por esses ativos.

A diversificação é sempre boa quando os retornos dos ativos que compõem a carteira são claramen-te correlacionados negativamente. E, naturalmente, quanto mais negativamente correlacionados essesativos, mais baixo será o risco da carteira diversificada. Podemos portanto avaliar quão benéfica será adiversificação do portfólio através do coeficiente de correlação entre os retornos dos dois ativos:

�� �

�cov( , )

.

R R1 2

1 2

(7)

Note, por exemplo, que se os retorno dos ativos forem perfeitamente correlacionados (ρ = –1), tere-mos, pela equação a seguir, que

� � � � � � ���

P w w w w w w� � � � �12

22

22

1 2 1 2 1 1 2 22. . . . . . . . (8)

Ou seja, a adição do segundo ativo reduz o risco da carteira no montante do risco do segundo ativoponderado pela sua participação no total do portfólio. Este resultado tem implicações interessantes,como, por exemplo, implica dizer que, se encontrarmos dois ativos perfeita e negativamente correlacio-nados, podemos formar uma carteira com risco nulo (σP = 0), com as seguintes combinações de ativos:

w

w1

2

2

1

��

�(9)

Se a correlação entre os retornos dos dois ativos for máxima, ou seja, ρ = 1, o risco do portfólio seráexatamente a média ponderada entre os riscos de cada um dos ativos, e portanto a diversificação não écompensadora:

� � � � � � ���

P w w w w w w� � � � �12

22

22

1 2 1 2 1 1 2 22. . . . . . . . (10)

Esses resultados se reproduzem na medida em que adicionamos mais ativos na nossa carteira – ouseja, quanto menor o grau de correlação entre os ativos envolvidos, menor o desvio-padrão do retornocombinado da carteira. Assim, a conclusão interessante é que, para qualquer combinação de ativoscujos retornos não sejam perfeitamente correlacionados, quanto maior o nível de diversificação da car-teira, menor o risco da carteira como um todo.

Teorias de Alocação de Portfólio 309

O que torna a diversificação tão atraente é o fato de que os ativos têm características específicas quefazem com que reajam de forma distinta a determinados ambientes macroeconômicos. Há, entretanto,uma dificuldade de encontrar dois ativos com correlação negativa perfeita entre si: por mais que um ati-vo responda de forma simétrica a situações diversas, nenhum ativo pode deixar de ser afetado por varia-ções (retrações ou booms) muito significativas do nível de atividades. Ou seja, há um limite para a sime-tria dos riscos desses ativos, e este limite é dado pelo chamado risco de mercado ou sistemático, ou seja,o risco que afeta simultaneamente todos os ativos. Por definição, portanto, o risco de um ativo qualquerpode ser dividido como se segue:

Risco total = Risco específico + Risco Sistemático

Abaixo veremos que a distinção entre esses dois riscos é um elemento importante para a determina-ção dos preços dos ativos. Pelo momento, o que podemos concluir é que o processo de diversificação,quando voltado para minimizar o risco da carteira, deve ser uma busca por ativos com riscos específicosnegativamente correlacionados.

21.2.1 CARTEIRAS EFICIENTES E CARTEIRAS ÓTIMAS

O exercício que utilizamos é evidentemente muito elementar: nossa diversificação se resumiu a aumen-tar a participação de um ativo de risco (e retorno maior) na nossa carteira. Entretanto ele foi suficientepara demonstrar alguns dos aspectos básicos da diversificação.

Para tornar nossa análise mais realista, e avaliar o efeito da diversificação sobre a estrutura de retor-no e (especialmente) risco de nossa carteira, seria interessante considerarmos um número maior de ati-vos. Assim, suponha a existência de um ativo não remunerado e sem risco – A0 – e três ativos com retor-nos sucessivamente maiores – A1, A2 e A3 – e, evidentemente, riscos crescentes.

Vimos acima que, caso os ativos tenham correlação igual a 1, o risco do portfólio total será simples-mente uma média dos riscos dos ativos individuais, ponderada pelas participações dos ativos na carteira(equação 10). Podemos representar portanto as múltiplas combinações de retorno e risco da carteiraatravés de uma curva semelhante à curva L encontrada no Gráfico 21.1. Vimos ainda que uma carteiracomposta de quaisquer ativos (Ai e Aj) com correlações menores que 1 (–1< ρ < 1) apresenta, paraquaisquer proporções desses ativos, combinações de risco e retorno melhores do que as representadaspela curva L. Isto pode ser visualizado no Gráfico 21.1, onde a curva L representa as combinações deativos com coeficiente de correlação igual a 1 e a curva C, de ativos com correlação inferior a 1.

310 Teorias de Alocação de Portfólio ELSEVIER

Taxa deretornoesperado

A1

AB

AA

A2

L

C

E(R )2

E(R )A

E(R )B

E(R )1

�1 �b �a �2

GRÁFICO 21.1Combinações de Retorno e Risco de um Portfólio com Dois Ativos com Correlação Inferior a 1

Note que, assumindo somente a existência de dois ativos (A1 e A2 ) os portfólios representadospela curva C são os mais eficientes do ponto de vista do investidor representativo – ou seja, geramretornos para a carteira como um todo que são os mais elevados possíveis vis-à-vis o risco assumi-do por combinação entre os ativos. Mas se possuíssemos três ativos, também com correlações entresi inferiores a 1, qualquer carteira composta simultaneamente pelos três ativos deveria representaruma combinação de risco melhor que uma composta de quaisquer dois ativos entre esses três. Essaintuição poder ser vista graficamente através do que se conhece como curvas-envelope (ver Gráfi-co 21.2).

Na medida em que adicionamos à nossa carteira ativos de maior retorno e risco, e com correlaçãomenor que 1 com a nossa carteira original, podemos obter combinações melhores de retorno e risco. Seconsiderarmos todos os ativos financeiros, os portfólios eficientes serão aqueles correspondentes àsmelhores combinações possíveis de retorno e risco obtido através da diversificação total.

Já definimos o conceito de aversão a risco e observamos que o resultado dessa hipótese é a existên-cia de curvas de indiferença entre risco e retorno com concavidade negativa, indicando que o investidorcom aversão a risco somente aceitaria arcar com um risco maior com um crescimento mais que propor-cional do retorno. Se assim o for, podemos dizer que, dado um número N de ativos disponíveis na eco-nomia, a carteira ótima é composta de ativos tais que o agente, dada a sua aversão a risco, maximiza oseu retorno sobre a carteira e minimiza o risco. Essa carteira é aquela representada pelo ponto de inter-seção entre a curva de indiferença U1, do Gráfico 21.3, e a curva C representativa dos portfólios eficien-tes (Gráfico 21.2).

Com o Gráfico 21.3, mostramos que a carteira ótima é aquela carteira que o investidor racional irámanter, porque maximiza o retorno e minimiza o risco, dada a sua preferência por risco e dados os ati-vos existentes na economia. Avançamos bastante na definição de como um agente aloca seu portfólio.Dentre nossas conclusões, talvez a mais importante seja a de que os agentes racionais irão sempre di-versificar o portfólio, porém a combinação exata entre ativos dependerá da aversão a risco do investi-dor individual.

Evidentemente, a escolha de carteira vai determinar em última instância a demanda por ativos espe-cíficos, e portanto afetará o seu preço. No que segue apresentamos um dos modelos convencionais maisconhecidos de determinação de preços de ativos, o modelo de determinação de preços de ativos de capi-tal, ou capital asset pricing model (CAPM).

Teorias de Alocação de Portfólio 311

A0

A1

A2

A3

�1�0 �a �2

E(R )3

E(R )2

E(R )1

E(R )0

Taxa deretornoesperado

GRÁFICO 21.2Curvas-envelope de Retorno x Risco

21.2.2 O MODELO CAPM

Utilizando-se a hipótese de mercados eficientes, há implicações importantes para o modelo de alocaçãode portfólio descrito até aqui. Supondo-se que o agente representativo seja bem informado, sua carteirasempre irá corresponder à carteira ótima conforme definimos acima – em mercados de capitais eficien-tes, não há possibilidades inexploradas de arbitragem. A demanda por cada ativo corresponderá àquelaparticipação na carteira ótima do nosso agente representativo, e portanto o preço dos ativos refletiráexatamente as condições, as preferências dos agentes (ou sua aversão ao risco) e a rentabilidade futuradeste ativo. Neste sentido, a carteira ótima sempre corresponderá exatamente à distribuição de ativosno mercado como um todo.

Ou seja, digamos que o nosso mercado se compõe de 30% de ativos monetários, 40% de ativosde risco baixo e 30% de risco elevado. Para cada um desses ativos, há um retorno correspondente àrelação entre preços à vista e preços futuros. Chegamos à conclusão de que, se os agentes são beminformados, sua carteira ótima se comporá exatamente da proporção 30/40/30 dos três ativos des-critos acima.

A partir dessa hipótese é possível determinar-se precisamente o retorno de cada ativo. Como ante-riormente, vamos supor que o agente possa compor uma carteira variando de um único ativo com risconulo até chegarmos ao conjunto de ativos correspondentes à carteira ótima, que pelas razões explica-das, representa exatamente a combinação de todos os ativos existentes na economia.

Se supomos a existência de um ativo sem risco ou com risco de default pouco significativo (um tí-tulo público de curto prazo, por exemplo), podemos assim traçar uma curva que mostra o trade-off entrerisco e retorno de diversos ativos como se segue.

A partir dessa linha do Gráfico 21.4 podemos definir claramente o trade-off entre retorno e riscoatravés da sua inclinação, ou seja:

R Rm sr

m

�(11)

Isto implica dizer que, para qualquer portfólio eficiente (ou seja, em equilíbrio), o retorno de qual-quer ativo (Ri) deveria ser definido da seguinte forma:

R RR R

i srm sr

mi� �

��. (12)

312 Teorias de Alocação de Portfólio ELSEVIER

retornoesperado

E(R)

s

U1

U2

U3

Curva C

GRÁFICO 21.3A Carteira Ótima

Ou seja, se o risco total de mercado (σM) for 10%, o retorno médio de todos os ativos do mercado(Rm) for 20% e o retorno do ativo sem risco (Rsr) for 5%, para cada unidade adicional de risco, espera-seum retorno adicional sobre a carteira de 1,5%.

Note, entretanto, que na equação 12 deixamos de considerar o fato de que a diversificação pode ge-rar um crescimento do retorno esperado do portfólio mais do que proporcional ao crescimento do riscoassumido, caso o ativo adicional tenha um coeficiente de correlação (em relação ao portfólio) inferiora 1. O coeficiente de correlação, como já vimos, é mensurado pela relação entre retornos de ativos: se oretorno do ativo B sempre cresce quando cresce o do ativo A, estes são positivamente correlacionados;caso contrário, eles são negativamente correlacionados.

Já mostramos que agentes com expectativas racionais mantêm portfólios totalmente diversificados.Podemos então imaginar que o coeficiente de correlação para um ativo qualquer, a partir da hipótese deexpectativas racionais, é aquele que mede a correlação entre o retorno de um determinado ativo e o re-torno do mercado como um todo. Se chamarmos esse coeficiente de β, temos que

R

Ri

m

(13)

É fácil observarmos que:

a) quando β for superior a um, o ativo que se está adicionando tem um perfil de risco superior ao doportfólio como um todo. Na medida em que ele aumenta o risco do portfólio como um todo, este tipo deativo é normalmente chamado de ativo agressivo;

b) quando β for igual a um, o ativo que se está adicionando tem o mesmo perfil de risco do portfóliocomo um todo;

c) quando β for inferior a um, o ativo que se está adicionando tem um perfil de risco inferior ao do port-fólio como um todo, podendo ser utilizado como instrumento de diversificação e redução de risco – epor esta razão ele é chamado ativo defensivo.

Como resultado, o retorno do ativo deve ser proporcional a β, ou seja:

Ri = Rsr + .(Rm – Rsr) (14)

em que Rm – Rsr representa o prêmio de risco pago para o portfólio de mercado como um todo. O que nosindica a equação 14 portanto é que, de acordo com o CAPM, o prêmio de risco que deve ser pago porum ativo – e portanto o que determina o retorno total de ativo – é uma proporção direta do risco que esteativo adiciona à carteira do agente – ou seja, de acordo com as características de risco do ativo que estáse comprando.

Teorias de Alocação de Portfólio 313

Retorno doportfólio R

s m

Rm

Rsr

Risco do Portifólio ( )s R

R = retorno do mercado de ativosR = retorno do ativo sem risco

= risco do mercado de ativos

m

sr

ms

GRÁFICO 21.4A Linha de Mercado de Capitais

RESUMO

1. Neste capítulo apresentamos dois tipos de modelos de alocação de portfólio: um menos convencional, combase naquele desenvolvido por John Maynard Keynes e outro mais convencional, com base nos modelos demédia variância iniciados por um seminal artigo de James Tobin, de 1958.

2. No modelo de Keynes, os agentes alocam seus portfólios de acordo com suas expectativas de retorno sobre es-tes, definida pela relação entre preço futuro (esperado) e preço à vista. Essas expectativas são realizadas numambiente de incerteza. Ou seja, mesmo que os agentes possam utilizar informações sobre preços do passadopara projetar preços futuros, nem sempre o passado é um guia confiável para realizar esse exercício. Este é ocaso dos bens de capital, que possuem longos prazos de maturação, e cujo preço futuro está relacionado com ademanda agregada em, muitas vezes, diversos anos à frente. No caso de ativos financeiros de curto prazo, ospreços futuros são mais claramente definidos (dado o curto prazo de vencimento), porém os preços à vista po-dem variar significativamente de acordo com as mudanças de expectativas de curto prazo e da demanda espe-culativa por moeda.

3. O modelo de alocação de portfólio de Keynes tem características bastante peculiares (em relação ao atuaismodelos de alocação de portfólio) no que se refere: (a) ao modelo de formação de expectativas de curto pra-zo, que respectivamente determinam os preços futuros de ativos financeiros; (b) à especificidade da moedaenquanto ativo financeiro numa economia monetária, dadas as suas elasticidades de produção e substituiçãonegligenciáveis; (c) ao modelo de formação de expectativas de longo prazo, que determinam os preços futu-ros dos bens de capital, e, por conseguinte, seus preços à vista e sua produção corrente; (d) ao processo mul-tiplicador gerado a partir dos gastos autônomos, que faz com que variações do investimento tenham efeitosampliados sobre a demanda dos demais bens e serviços da economia. Não surpreende que, tradicionalmen-te, este modelo de equilíbrio de alocação de portfólio e seus impactos sobre a dinâmica macroeconômicatêm sido descritos através de dois aspectos da teoria de Keynes (a teoria do investimento e a teoria da prefe-rência pela liquidez), que se unidos à teoria do multiplicador da renda, do produto e do emprego, geram ochamado princípio da demanda efetiva. Porém, este modelo possibilitou também o desenvolvimento detoda a teoria contemporânea de alocação de portfólio. O que mudou, e esta foi uma mudança significativade abordagem, foi a forma como esses modelos estilizam a formação das expectativas que vão determinar opreço futuro dos ativos financeiros e dos bens de capital.

4. A característica distintiva desses modelos em relação ao de Keynes se relaciona ao modelo de formação deexpectativas. No modelo de Tobin, utiliza-se a ideia de que os preços/retornos futuros dos ativos são forma-dos a partir de distribuição probabilística dos preços/retornos dos ativos. Este é o conceito de risco. Os mo-delos mais recentes de alocação de portfólio e determinação de preços de ativos se baseiam na utilização dahipótese de mercados eficientes no modelo de formação de expectativas dos investidores em títulos finan-ceiros. Este é o caso, por exemplo, do modelo de determinação de preços de ativos de capital, ou capital as-set pricing model, CAPM.

5. Note que no modelo CAPM é que o preço/retorno dos ativos, em todo momento, reflete fielmente os chama-dos “fundamentos” desses ativos, ou seja, o retorno futuro dos agentes que o emitem e as características de ris-cos dos negócios em que se envolvem. Somente por um período curtíssimo alguns agentes podem ter retornossuperiores aos do mercado, porém esses retornos se devem à utilização de informações ainda não disponíveisao mercado (por exemplo, informações privilegiadas). Por fim, os mercados financeiros não são suscetíveis avariações de preços que não reflitam exclusivamente mudanças dos fundamentos da economia, e portanto“bolhas especulativas” somente são concebíveis enquanto fenômenos de curtíssimo prazo e de efeito irrele-vante sobre a alocação de recursos no longo prazo. Este quadro, paradoxalmente, está longe de ser aquele de-senhado por Keynes, quando descreveu a relação entre bolhas especulativas e performance macroeconômicaem economias de mercado. Na realidade, o modelo de Keynes representa uma visão alternativa ao mainstre-am do funcionamento das economias de mercado, e da relação entre os mercados financeiros e os mercadosreais. No próximo capítulo veremos que essas diferenças vão se refletir em outro aspecto da teoria financeira:a teoria do financiamento.

314 Teorias de Alocação de Portfólio ELSEVIER

TERMOS-CHAVE

� Alocação de Portfólio� Ativo Agressivo� Ativo com Risco Nulo� Ativo Defensivo� Aversão a Risco� CAPM – Capital Asset Pricing Model� Carteira (Portfólio) Eficiente� Carteira (Portfólio) Ótima(o)� Coeficiente Beta ()� Desvio-padrão

� Diversificação� Incerteza� Média� Retorno� Risco� Risco Específico� Risco Sistemático (de Mercado)� Taxas Próprias de Juros� Variância

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Copeland, Thomas E. (1992). “Rate of return”. In: The New Palgrave Dictionary of Money and Finance, PeterNewman, Murray Milgate and John Eatwell (Eds.). London and Basingstoke: The Macmillan Press Limited,1992, vol. 3: 268-70.

Este é um verbete de um dos mais importantes dicionários de Economia e Finanças. O artigo faz um resenhaacessível de modelos de alocação de portfólio e determinação de preços de ativos financeiros, além de apresentaruma bibliografia concisa para aprofundamento sobre o tema.

Keynes, John Maynard (1936). The General Theory of Employment, Interest and Money. London: MacMillan.Capítulo 17.

Nesse capítulo Keynes apresenta seu modelo de equilíbrio de alocação de portfólio. Trata-se de um texto bas-tante complexo, porém um marco para a Teoria Financeira Keynesiana.

Teorias de Alocação de Portfólio 315

INVESTIMENTO, POUPANÇAE FINANCIAMENTO

INTRODUÇÃO

Toda teoria necessita de uma estilização do objeto de análise – o que chamamos de mode-los. Os modelos constituem a descrição da causalidade de processos, dentro de determina-das condições ideais de funcionamento. Assim, por exemplo, em modelos de Física,definem-se as “forças que determinam os movimentos dos corpos” (o modelo) em “condi-ções normais de temperatura e pressão” (as condições ideais). Uma vez descritas a causa-lidade do processo e as condições ideais do experimento, podemos projetar resultadosfactíveis, tanto quanto avaliar por que (em que condições) alguns resultados diferem da-queles previstos teoricamente.

Em teoria econômica, tal procedimento se aplica da mesma forma: estiliza-se ocomportamento dos mercados e de seus agentes, dentro de um ambiente consideradoideal (de equilíbrio) e a partir daí podemos analisar situações de desequilíbrios, falhasno funcionamento dos mercados etc. Mesmo que complexa,1 a estilização do objeto éfundamental: é a partir dessa estilização que podemos analisar e compreender proces-sos complexos, avaliar o funcionamento de determinados mercados (vis-à-vis nossoparadigma), ou detectar as “impurezas” (falhas) e “ruídos” que porventura possamafetar o bom funcionamento dos mercados. Por fim, é a partir deste exercício que po-demos apresentar políticas voltadas para remediar as possíveis falhas no processo deintermediação.

Neste capítulo analisamos duas teorias alternativas do financiamento. A primeira, decunho neoclássico, é a teoria dos fundos emprestáveis. A essa teoria agregou-se recente-mente a hipótese de mercados eficientes gerando o que poderíamos chamar visão conven-cional sobre a problemática do financiamento. A segunda teoria tem como origem o cir-cuito financiamento-investimento-poupança-funding, uma estilização do processo de fi-nanciamento do investimento inicialmente desenvolvido por Keynes, e mais recentemen-te retomada pelos economistas pós-keynesianos.

CAPÍTULO

22

1. Dado que lidamos com sistemas sociais (e portanto instituições humanas), tal estilização obviamente é mui-to mais complexa, não só porque o objeto de análise (a organização econômica) é passível de diversas inter-pretações, de acordo com a filiação teórica/ideológica do analista, assim como porque o próprio objeto semodifica ao longo do tempo.

22.1. A VISÃO CONVENCIONAL: A HIPÓTESE DA POUPANÇA PRÉVIA

22.1.1. POUPANÇA E INVESTIMENTO EM UMA ECONOMIA NÃO MONETÁRIA

Vamos supor pelo momento que nossa economia é uma economia agrícola simples, produtora de umúnico bem, digamos, trigo. Esta descrição da economia apresenta muitas vantagens do ponto de vistaneoclássico, por exemplo:

� O nível de produto para um determinado período (yt) é determinado pelas decisões de produçãono período anterior. 2 Logo, ele é dado para o período corrente.

� Não há problemas de preços relativos na determinação do valor presente e futuro da poupança,pois a única unidade de conta é trigo.

Para uma comunidade qualquer, o dilema que se coloca a cada período de produção é o seguinte:qual parcela da produção corrente deve ser consumida (ct), e qual parcela deve poupada (st) e investidano plantio (it)?

Temos assim que:

yt – ct = st = it (1)

Poupar neste contexto significa deixar de consumir uma parte do produto, que a renda real disponí-vel (em trigo) e seu “custo” para o poupador representam a perda de utilidade por não consumir imedia-tamente o fruto de seu trabalho. Poupar significa também desfrutar de um produto disponível maior nofuturo, o direito de consumir mais no futuro. A poupança representa um incremento (dk) ao capital exis-tente – que aqui se compõe exclusivamente de trigo –, incremento este que gerará um crescimento noproduto igual a dy.

Suponha agora que, ao final de cada período de produção, cada habitante desta comunidade recebaem troca do não consumo um “título de direito sobre a produção futura” (T). Esse título, como qualqueroutro título, possui um preço para saque imediato (em trigo), ou um preço à vista, e um preço para saquefuturo. O preço à vista é exatamente o valor poupado em trigo (ps = s = dk), enquanto que o preço futurode T (pf) equivale ao preço para troca do título após um período de produção. Por definição, taxa de ju-ros paga pelo capital é obviamente igual à relação da diferença entre preços futuro e à vista, divididapelo preço à vista:

rp

pT

f

s� �1 (2)

O preço futuro requerido pelo poupador tem de ser suficiente para compensar a perda de utilidadedevido à diminuição do consumo agora. Cada unidade adicional de poupança é acompanhada por umamaior escassez do produto agora e uma redução da escassez de produto no futuro. Como por hipótesetodos os bens possuem utilidade marginal decrescente, o aumento da poupança hoje simultaneamenteeleva a utilidade de consumir hoje (pois aumenta a escassez hoje) e reduz a utilidade de consumir ama-nhã (pois reduz a escassez no futuro). Neste sentido, o preço futuro demandado pelo poupador, e por-tanto a taxa de juros relevante ao poupador, deve inexoravelmente aumentar para estimular o aumentoda oferta de poupança ou de capital.

Note entretanto que o aumento da poupança representa o aumento do insumo capital (dk) na produ-ção de bens futuros. Ou seja:

s = dk (3)

Investimento, Poupança e Financiamento 317

2. Utilizamos aqui letras minúsculas para denotar “variáveis reais”, ou seja, produto, consumo e investimento em trigo. Quandocomeçarmos a tratar de uma economia monetária, utilizaremos letras maiúsculas (Y, C, I etc.) para denotar variáveis nominais.

Se supomos uma função de produção y = F (K,L) dada, com rendimentos decrescentes dos fatores,a variação incremental do produto (dy) – logo, o quanto a comunidade pode pagar para utilização do ca-pital cedido pelo poupador – é menor para cada unidade de capital (ou seja, trigo utilizado para plantio),ou seja, a produtividade marginal do capital (pmc = dy/dk) é declinante.

Graficamente, portanto, a curva de demanda por capital pode ser definida como se segue:

Assim temos uma análise típica de oferta e demanda, onde o capital é tratado como um bem comooutro qualquer num processo de troca. O fato de que oferta de capital (poupança) e demanda de capital(investimento) são determinados pela taxa de juros reflete simplesmente que o capital é um bem comentrega futura, e portanto o relevante para ofertantes e demandantes é o preço futuro a ser pago por estecapital vis-à-vis o seu preço presente.

318 Investimento, Poupança e Financiamento ELSEVIER

Taxade juros S (r)

Poupança

GRÁFICO 22.1Poupança e Taxa de Juros

Taxade juros

I(pmc,r)

Investimento

GRÁFICO 22.2Investimento e Taxa de Juros

Taxade juros

I

S

r = pmcT

S = I

E

GRÁFICO 22.3Equilíbrio no Mercado de Capitais Neoclássico

Note que para qualquer ponto à esquerda de E, o preço de demanda do capital é superior ao seu pre-ço de oferta, e portanto é vantajoso demandar capital e utilizá-lo para a produção de bens. À direita de E,essa relação se inverte e deixa de ser lucrativo demandar capital. O resultado é que, como em qualqueranálise de oferta e demanda, só existe um único ponto de equilíbrio em que demandantes e ofertantes si-multaneamente maximizam utilidade/lucro intertemporalmente. Neste ponto (o ponto E), a taxa de ju-ros paga aos poupadores é idêntica à produtividade marginal do capital.

rp

p

dy

dkT

f

s� � �1 (4)

O Gráfico 22.3 resume uma determinada estilização do processo de intermediação financeira na vi-são neoclássica. O mercado estilizado na teoria neoclássica é composto por dois agentes representati-vos, ambos maximizadores: poupadores (ofertantes de capital) – com preferências intertemporais defi-nidas – e investidores (demandantes de “capital”), com funções de produção e portanto curvas de pro-dutividade marginal do capital bem definidas.

A economia descrita anteriormente não é uma economia monetária, nem muito menos umaeconomia em que a moeda é criada por agentes privados – os bancos comerciais. Portanto, a “ofertae demanda de capital” podem ser entendidas como transferências “reais” de recursos, dentro de umexercício de maximização intertemporal de satisfação. O “mercado de capitais” e as “instituiçõesfinanceiras” são definidos respectivamente como locus e agentes pelos quais a intermediação dapoupança é realizada. Analisar sua estrutura e seu funcionamento interno não é teoricamente rele-vante, tendo em vista que em última instância são as preferências intertemporais dos poupadores eo estado de tecnologia da produção que determinam o volume de recursos intermediados entre pou-padores e investidores.

Porém, não se pode ignorar por um lado que economias modernas são essencialmente economiasmonetárias. Nestas economias:

� os agentes poupam em geral através de ativos denominados em alguma unidade de conta, e opreço destes ativos depende essencialmente do poder de compra da moeda no momento em que fo-rem resgatados;

� a existência e importância dos intermediários financeiros (especialmente de bancos) é uma dascaracterísticas de uma economia de mercado. Dentre esses, os bancos são em especial centrais emuma economia em que a maior parte dos meios de pagamento se constitui de moeda bancária, ouseja, depósitos à vista em bancos.

Já em fins do século passado, a estilização da “economia do trigo” dificilmente poderia ser um ins-trumento útil para entender a crescente complexidade dos sistemas financeiros e da sua articulação comeconomias de mercado. Knut Wicksell foi um autor neoclássico de especial importância no estudo dopapel dos bancos no processo de financiamento e seus impactos sobre a dinâmica das economias demercado. A partir de suas ideias desenvolveu-se o que ficou conhecido como teoria dos fundos empres-táveis, que representa a aplicação (e sofisticação) da teoria neoclássica dos mercados de capitais parauma economia com sistemas bancários. É o que vemos a seguir.

22.1.2. A TEORIA DOS FUNDOS EMPRESTÁVEIS

Na estilização do processo de intermediação de recursos, Wicksell constrói um “sistema de créditopuro”, onde os fluxos financeiros são basicamente intermediados por bancos – uma hipótese que parecerazoável em uma economia.

Tomando-se os três principais agentes dessa economia, sua estrutura contábil será:

Investimento, Poupança e Financiamento 319

Neste contexto as empresas financiam seus investimentos em capital fixo basicamente através devenda de títulos (B) para as famílias e para os bancos. Os bancos financiam a compra de títulos basica-mente através da captação de depósitos (D) realizados pelas famílias. As famílias, por sua vez, mantêmsua riqueza (W) na forma de depósitos junto a bancos e títulos adquiridos por empresas.3 Por tratar-sede um sistema de crédito puro, os meios de pagamentos são exclusivamente depósitos bancários.

Assim como no modelo neoclássico de mercados de capitais descrito, dadas as preferências inter-temporais dos consumidores (logo, a curva de poupança) e a tecnologia de produção (logo, a curva deprodutividade marginal do capital, ou de investimento) só há uma taxa de juros que equilibra poupançaex-ante e investimento ex-ante, ou seja, demanda por capital, que se reflete na demanda de títulos porparte das famílias (Bd) e oferta de títulos (Bs) pelas empresas. A essa taxa de juros, Wicksell chamou detaxa natural de juros (rn).

Contrariamente à versão do mercado de capitais apresentada na seção 22.1, os bancos podem inter-ferir na quantidade de fundos emprestáveis disponíveis para o investimento, na medida em que podemcriar depósitos e comprar ofertas excedentes de títulos financeiros.

Para entender a teoria de fundos emprestáveis, vamos supor que saímos de uma situação de equilí-brio entre oferta de capital (poupança das famílias) e demanda por “capital” (investimento empresarial)– onde S0 = I0 a uma taxa de juros natural de r0. Como vemos no Gráfico 22.4, essa situação equivale auma situação de equilíbrio no mercado de títulos financeiros, que são aqui utilizados pelas empresascomo instrumento de captação de “poupança das famílias”.

Suponhamos agora que haja um aumento da demanda por poupança, devido a um aumento do inves-timento – de I0 para I1 ocasionado por um melhora na tecnologia de produção (ou seja, uma melhora daprodutividade marginal do capital ao longo de toda a curva de investimento). Como observamos no gráfi-co, esse aumento da demanda por poupança se traduz por um aumento da oferta de títulos – de B0 paraB1 –, o que, como em qualquer outro mercado, reduz o preço à vista dos títulos financeiros – de p0 para p1.Isto equivale, no gráfico de poupança e investimento, a um aumento da taxa de juros de r0 para r1.

A contrapartida macroeconômica desse processo é fácil de ser compreendida: como o aumento depoupança (�S = S1 – S2) é idêntico à queda do consumo (ΔC = S1 – S2), o aumento da demanda agregadaresultante do crescimento do investimento é compensado pela queda do consumo agregado. A deman-da agregada nominal portanto não se modifica:

Y0 = C0 + I0 = Y1 = C0 – �C + I0 + �I

em que �C = �I.No exercício acima, supomos que os únicos compradores de títulos são as famílias. Mas já vimos

que, na teoria dos fundos emprestáveis, bancos também adquirem títulos emitidos pelas empresas. E osbancos podem adquirir títulos de duas formas. Primeiramente, os bancos podem demandar mais recur-sos junto aos seus clientes, ou seja, emitindo depósitos remunerados. Neste caso, estarão atuando como

320 Investimento, Poupança e Financiamento ELSEVIER

3. Note que a empresa é considerada uma pessoa jurídica que se diferencia dos seus acionistas, que são pessoas fí-sicas ou famílias. Neste sentido, mesmo o chamado autofinanciamento representa uma venda de títulos por parteda pessoa jurídica (empresa) para pessoas físicas (os acionistas).

Famílias

Passivotos (D)

de Dívida Riqueza dasFamílias (W)

Empresas

Ativo PassivoCapital Fixo (K) Títulos (B)

Patrimônio Líquido(PL)

Bancos

Ativo PassivoTítulos (B1) Depósitos (D)

QUADRO 22.1Estrutura Contábil Simples de Empresas, Bancos e Famílias

simples intermediários e deverão oferecer aos seus depositantes uma taxa de juros idêntica a r1. Nestesentido, sua atuação não modificará fundamentalmente a relação entre investimento e poupança das fa-mílias, e o equilíbrio macroeconômico (�C = �I).

Em segundo lugar, os bancos podem criar depósitos à vista, que são aceitos como meios de paga-mento para a aquisição dos títulos das empresas, conforme indicado pelo Gráfico 22.5. Neste caso, osbancos poderão adquirir os títulos financeiros ao preço de mercado prevalecente, evitando a queda deseus preços que normalmente ocorreria.

Notamos que a curva de demanda por títulos financeiros se desloca em função da demanda adicio-nal dos bancos financiada por aumento dos depósitos à vista. Note que o preço dos ativos financeiros (eportanto a taxa de juros) não se modifica, já que os bancos estão dispostos a adquirir os títulos adiciona-is ao preço inicial de mercado. O excedente de oferta de títulos (B1 – B0) é totalmente financiado por ex-pansão dos depósitos à vista (�D). Por fim, enquanto o investimento agregado se eleva para I1, a pou-pança das famílias continua estável em S0, e portanto o seu consumo ex-ante continua idêntico.

22.1.3. DESEQUILÍBRIO MACROECONÔMICO, PROCESSO CUMULATIVO

E POUPANÇA FORÇADA

Podemos considerar que uma parte do investimento pode ser financiada a partir de venda de ativos namão das firmas, ou seja, através de desentesouramento (�H), ou seja, a utilização, para o financiamentodo investimento, de depósitos acumulados pelas empresas. Portanto, a equação que define o financia-mento do investimento no modelo de fundos emprestáveis é:

I (pmc) = Sex (r) + (�D – �H) pmc > r (5)

em que �D corresponde à expansão de depósitos por parte dos bancos, que absorve o excedente de títu-los no mercado. De posse do volume adicional de meio de pagamentos, as empresas irão adquirir maisbens de capital.

Investimento, Poupança e Financiamento 321

Taxas de juros S

r1

p1

I1I0

S ,I1 1S ,I0 0

r0

p0

Preço do ativofinanceiro

Oferta e demanda deativos financeiros

B0

B0s

B1s

B1

Bd

GRÁFICO 22.4Investimento, Poupança e o Mercado de Ativos Financeiros na Teoria de Fundos Emprestáveis

Essa situação tem, evidentemente, consequências macroeconômicas. Ao contrário da situação an-terior, o crescimento do investimento não é compensado pela queda do consumo. Logo,

Y1 = C0 + I0 + �I > Y0 = C0 + I0 (6)

O que equivale a dizer que o valor nominal do investimento agregado é superior ao da poupançaex-ante, Sex:

I > Sex

Isto implica uma expansão da demanda agregada equivalente à diferença entre o investimento rea-lizado e a poupança voluntária:

�DA = I – Sex (7)

Isto geraria um excesso de demanda no mercado de bens, e consequentemente um processo inflacio-nário – na verdade, na versão wickselliana, um processo cumulativo de crescimento de preços de bensde consumo e de bens de capital. O processo cumulativo descrito por Wicksell se coloca da seguinteforma: o aumento da demanda (�DA) se origina da expansão do investimento, o que significa que umaparcela maior do produto disponível será agora alocada para investimento. A parcela do produto dispo-nível para consumo se reduzirá, gerando uma expansão dos preços à vista dos bens de consumo. Noprocesso, a rentabilidade esperada dos bens de capital (seu preço futuro) tende a se elevar, na medidaem que o retorno esperado do capital é fortemente influenciado pelas oscilações de preços à vista dosbens de consumo. Assim, o investimento tenderia a manter-se elevado, reproduzindo o excesso de de-manda agregada em todo o período, enquanto prevalecer a diferença positiva entre taxa natural de jurose taxa de juros de mercado.

322 Investimento, Poupança e Financiamento ELSEVIER

Taxas de juros S

r1

I1I0

I1S ,I0 0

r0

p0

Preço do ativofinanceiro

Oferta e demanda deativos financeiros

B0

B0s

B1s

B1

Bd0

GRÁFICO 22.5Investimento Adicional Financiado por Expansão da Oferta de Moeda Bancária

Um crescimento dos preços de bens de consumo implica uma queda do consumo real das famílias.A diferença entre o consumo desejado das famílias, em termos de bens, e o seu consumo efetivo repre-senta o que Wicksell denominou poupança forçada.

Desta forma, Wicksell, através desta análise, propõe simultaneamente uma teoria da inflação eapresenta um papel relevante do intermediário financeiro no processo de financiamento das empresas.Note que, entretanto, este papel é o de gerar um desequilíbrio macroeconômico entre demanda e ofertaagregada, sem no entanto ter um impacto sobre a oferta agregada, determinada como em qualquer mo-delo neoclássico no mercado de trabalho.

As implicações macroeconômicas dessa análise são significativas. Porém, pelo momento, é impor-tante simplesmente notarmos que a partir de Wicksell a análise do comportamento microeconômicodas instituições financeiras passa a ter relevância sobre as condições de oferta e demanda por “capital” emeconomias de mercado. Ele abre, portanto, um campo precioso para análise do comportamento da firmafinanceira (no caso da firma bancária) e do papel da estrutura financeira na teoria da intermediação fi-nanceira. Mas, para a nossa análise, o que interessa no momento é que Wicksell expõe a complexidadedo processo de intermediação de recursos lembrando o papel peculiar dos intermediários financeiros, emostrando que a moeda é somente um dos ativos financeiros pelo qual este processo se materializa.

22.2. EFICIÊNCIA DOS MERCADOS FINANCEIROS, FALHAS

NA INTERMEDIAÇÃO ENTRE POUPADORES E INVESTIDORES

O processo de intermediação financeira estilizado na teoria neoclássica é, como vimos, um elemento doprocesso de maximização intertemporal de utilidade. O mercado de capitais se compõe de dois agentesmaximizadores: os poupadores (ofertantes de “capital”), que têm preferências intertemporais definidase buscam as melhores rentabilidades e menores riscos para seus investimentos; e empresários (deman-dantes de “capital”), com funções de produção e portanto curvas de produtividade marginal do capitalbem definidas, que buscam os menores custos de financiamento de seus projetos de investimento. O“mercado de capitais” e as “instituições financeiros” são definidos respectivamente como locus e agen-tes pelos quais a intermediação da poupança é realizada.

Evidentemente, para que esses agentes possam realizar esse exercício de maximização, informaçãoé um requisito imprescindível: os poupadores e os intermediários financeiros precisam de informaçõesquanto às oportunidades de investimento financeiro existentes. Um erro na obtenção de informaçãopode redundar numa alocação ineficiente de poupança, ou mesmo num volume de poupança menor doque o potencial. Obter informação é uma atividade custosa, e nem sempre as informações estão dispo-níveis. Neste sentido, os intermediários financeiros teriam vantagens comparativas em relação a inves-tidores financeiros individuais, pois podem obter ganhos de escala na obtenção de informações.

A partir da constatação de que a informação é central no mecanismo de financiamento neoclássico,podemos dizer que o paradigma de eficiência no processo de financiamento está inerentemente ligado àdistribuição de informações. Um mercado financeiro eficiente, no sentido neoclássico, é um mercadocompetitivo onde há plena distribuição de informações entre poupadores, investidores produtivos e in-termediários financeiros.

Pela hipótese dos mercados eficientes, o mercado de capitais é eficiente quando todas as informa-ções relevantes disponíveis para a tomada de decisões são veiculadas pelos preços dos ativos. Na suaforma mais forte, esta hipótese implica que, apesar da possível volatilidade (de curto prazo) dos preçosde ativos financeiros, estes preços variam no longo período de acordo as forças fundamentais que deter-minam o estado da economia. Esta hipótese, portanto, simplesmente complementa e reforça a ideia deque a poupança é alocada eficientemente através de um mercado de capitais competitivo, de acordocom as preferências intertemporais dos poupadores, nos investimentos de maior retorno/rentabilidade.

O sistema financeiro é portanto “estilizado” na visão convencional como um locus ou um interme-diário passivo, incapaz de determinar o volume e a qualidade dos fundos de financiamento do investi-

Investimento, Poupança e Financiamento 323

mento. Sua eficiência se relaciona simplesmente à sua capacidade de distribuir informações entre os“verdadeiros atores” no mercado financeiro: investidores produtivos e poupadores.

A consequência na prática desta abordagem convencional para a teoria da intermediação financeiraé que somente duas razões (“falhas” ou “impurezas”) impedem o funcionamento eficiente dos merca-dos financeiros:

� se os mercados são incompletos (subdesenvolvidos) e portanto não podem fazer a intermedia-ção entre poupadores e investidores de forma eficiente;

� se há falhas informacionais significativas que impeçam que os mercados sejam capazes de alo-car de forma eficiente a poupança. Na estilização convencional da intermediação financeira, a dis-tribuição perfeita de informações entre poupadores e intermediários financeiros é fundamental paraa eficiente transfêrencia de recursos da economia. Analisaremos portanto os problemas geradospela má distribuição, ou assimetria de informação no processo de intermediação de recursos.

Como veremos a seguir, esses têm sido os dois principais focos da maioria das análises convencio-nais sobre o papel e o funcionamento dos sistemas financeiros (a chamada teoria da intermediação fi-nanceira) pelo menos nas últimas três décadas. E, desta forma, têm sido, com ênfases distintas, basesimportantes de formulação de políticas.

22.2.1. INCOMPLETUDE DE MERCADOS E O FINANCIAMENTO

John Maynard Keynes, o economista que funda a Macroeconomia com sua Teoria Geral do Emprego,dos Juros e da Moeda (1936), foi um profundo conhecedor do setor financeiro e, de uma certa forma,herdou de Wicksell a preocupação em estabelecer o seu papel na dinâmica das economias de mercado.Contraditoriamente, a macroeconomia keynesiana tratou o problema da intermediação financeira deuma maneira bastante simplória. Isto porque nos modelos keynesianos que prevaleceram nos anos 50 e60, a poupança era tratada como um simples resíduo do processo multiplicador de consumo.4 O queeste resultado parece implicar é que o nível de poupança sempre será aquele necessário para financiarum dado nível de investimento agregado. A questão do financiamento do investimento, e portanto, aanálise das instituições de intermediação financeira passou a ser de interesse secundário na análise ma-croeconômica.

As preocupações com a estilização do modus operandi do sistema financeiro e sua articulação como mundo produtivo só irão tornar-se novamente um palco privilegiado na análise macroeconômica apartir da obra de dois economistas de origem neoclássica: John G. Gurley e Edward S. Shaw. A econo-mia estilizada de Gurley e Shaw se parece mais claramente com uma economia monetária moderna.Essa economia é habitada por agentes com distintos perfis de gastos, variando desde o consumo de bensnão duráveis (famílias) até a aquisição de bens de capital, com prazos de maturação bastante significati-vos (empresas). Dentre esses agentes, há aqueles cujas receitas superam seus gastos correntes em umdeterminado período de tempo (agentes superavitários) e aqueles com gastos superiores às suas recei-tas correntes (agentes deficitários).

Os agentes superavitários querem transferir poder de compra para o futuro; querem adquirir ativosfinanceiros. O prazo de vencimento dos ativos adquiridos depende basicamente das expectativas defluxos líquidos de caixa futuros (receitas futuras esperadas menos gastos esperados), e portanto tende aser bastante diversificado.

Os agentes superavitários portanto terão demandas por ativos financeiros com diferentes perfis devencimento: variando de ativos de curtíssimo prazo (por exemplo, depósitos à vista) até ativos com lon-go prazos de maturação (por exemplo, debêntures de longo prazo) e até mesmo ativos sem datas de ven-cimento (ações). Também terão objetivos distintos na aquisição de ativos, como, por exemplo, no caso

324 Investimento, Poupança e Financiamento ELSEVIER

4. Esta é uma interpretação bastante limitada da obra de Keynes no que tange ao papel da intermediação de poupança no pro-cesso de financiamento do investimento. Ainda neste capítulo apresentaremos uma versão alternativa à keynesiana tradicio-nal, ou velho-keynesiana.

da aquisição de uma apólice de seguro e de um fundo de pensão, em que os objetivos de aplicação sãorespectivamente precaução contra um infortúnio (incêndio, morte prematura etc.) ou antecipar-se a ne-cessidades financeiras após a aposentadoria. Na medida em que cresce a riqueza dos indivíduos de umaeconomia, aumenta esta demanda por diversificação.

Os ativos financeiros podem ser adquiridos em mercados organizados, que podem ser classifica-dos em mercados primários – de ativos recém-emitidos pelos agentes deficitários – e mercados se-cundários – onde é negociada a transferência de propriedade de ativos financeiros já emitidos.

As unidades deficitárias têm diversos perfis de necessidade de financiamento, variando desde fi-nanciamento a consumo de não duráveis por parte das famílias até o financiamento de longo prazo deinvestimento em capital produtivo das empresas.

Assim, no modelo de Gurley e Shaw, a inexistência de instituições e mercados especializados nanegociação de títulos financeiros com distintos vencimentos poderia gerar problemas na intermediaçãode poupança – ou seja, um nível de poupança e investimento inferior ao potencial. Isto significa que aeficiência do sistema financeiro passa também a ser condicionada ao desenvolvimento de instituiçõesapropriadas para que os poupadores possam exercer sua demanda por diversificação, e para que os in-vestidores possam ter acesso a fontes de financiamento de acordo com suas necessidades. Para estes au-tores, a falta de desenvolvimento financeiro seria um importante empecilho para o desenvolvimentoeconômico.

Interessantemente, a análise institucionalista de Gurley e Shaw perdeu força a partir da década de1970, enquanto que a teoria financeira passou a dar ênfase maior aos modelos de alocação de portfólio edeterminação de preços de ativos financeiros com base em retorno e risco – como visto no Capítulo 21.Uma das características destes últimos tipos de modelos é estilizar o problema do financiamento en-quanto um problema de maximização intertemporal, onde o acesso a informações é condição sine quanon para alcançar-se equilíbrio dos mercados. Neste sentido, não é coincidência, como veremos, que aliteratura contemporânea coloque os problemas de assimetria de informações como um dos problemasbásicos para o funcionamento eficiente dos mercados financeiros.

22.2.2. ASSIMETRIAS DE INFORMAÇÃO E PROBLEMAS ALOCATIVOS

Relaxando a hipótese típica de modelos convencionais quanto à perfeita distribuição de informações,diversos autores contemporâneos puderam mostrar a existência de problemas de alocação de fundos de

Investimento, Poupança e Financiamento 325

Famílias

Governos

Empresas

UnidadesDeficitáriasYi - Gi < 0

UnidadesSuperavitáriasYi - Gi > 0

TÍTULOSPRIMÁRIOS

TÍTULOSPRIMÁRIOS

TÍTULOSPRIMÁRIOS

ATIVOSNÃO MONE-

TÁRIOS

TÍTULOSPRIMÁRIOS

DEPÓSITOSFamílias

Governos

Empresas

Transferênciasrecursos financeirosde

Mercadosfinanceiros

Intituiçõesfinanceiras

não bancárias

Bancos

1 1

2 2

3 3

FIGURA 22.1Financiamento Direto e Indireto na Análise de Gurley e Shaw

longo prazo, tais como racionamento de crédito ou mesmo de fundos acionários, gerados por falhas dedistribuição de informação.

Dentro de tal visão, assimetrias de informações podem introduzir ineficiência nos mercados finan-ceiros que podem ter efeitos reais quantitativos significativos. Ou seja, os emprestadores (diretos ou in-termediários) têm dificuldades em discernir entre bons projetos (por exemplo, projetos de investimentorentáveis e com baixo risco de inadimplência) e maus projetos. Conforme vimos no Capítulo 5, doisproblemas podem surgir a partir da existência de informação assimétrica:

� Seleção adversa. É o problema criado pela assimetria de informações antes de o empréstimoser realizado. Suponha que um banco, por falta de informações precisas sobre os riscos dos projetosdos seus clientes, assuma como política emprestar somente a taxas muito elevadas. O problema deseleção adversa ocorreria aqui porque somente os investidores com riscos elevados (e portanto re-tornos esperados elevados) se apresentariam para tomar empréstimos.

� Risco moral. É o problema causado pela assimetria de informações após o empréstimo ser rea-lizado. Este risco se refere à possibilidade de que o tomador de empréstimo utilize os recursos em-prestados em projetos diferentes daqueles apresentados quando do pedido de empréstimo.

Para evitar os problemas advindos de seleção adversa e risco moral, a solução racional do empres-tador é impor taxas de juros menores do que seria a taxa de juros de equilíbrio no mercado de capital eracionar crédito. Além de gerar um problema de distorção alocativa, também resulta em uma oferta decrédito menor do que a potencial.

Note-se que, ao contrário das análises com origem nos modelos de Gurley e Shaw, o problema desubdesenvolvimento financeiro (incompletude de mercados) é minimizado na análise da problemáticado financiamento nos modelos à la Stiglitz. Isto porque o problema potencial de ineficácia alocativados sistemas financeiros é puramente microeconômico (assimetria de informação), independentementeda estrutura institucional (tamanho e/ou organização dos mercados financeiros) onde se realiza a inter-mediação financeira. Por outro lado, sendo um problema de má distribuição de informações, é igual-mente aplicável a economias com crescimento lento ou em crescimento acelerado, com mudanças es-truturais profundas ou não.5

22.3. TEORIA DE KEYNES DO FINANCIAMENTO

Na teoria da intermediação financeira neoclássica, investimento e poupança são determinados simulta-neamente, sendo a taxa de juros a variável de ajuste neste mercado. Esta relação de simultaneidade darelação se deve ao fato de o nível de produto, ou a renda real, ser determinado no mercado de trabalho,sendo considerado como dado na análise da sua divisão entre consumo e poupança. Para manter-se oequilíbrio macroeconômico, um aumento do investimento só pode ocorrer se houver um simultâneo au-mento da poupança, seja porque a remuneração pelo capital (a taxa de juros) se eleva, seja porque ospoupadores mudam suas preferências intertemporais. Vimos que, na teoria de fundos emprestáveis,pode mudar esta relação entre investimento e poupança, mas somente no curto prazo e com o custo decrescente inflação – ou seja, numa situação de desequilíbrio macroeconômico que leva a um processoinflacionário cumulativo. No longo prazo, a poupança continua sendo a grande restrição à expansão doinvestimento. É o que chamamos de hipótese da poupança prévia.

326 Investimento, Poupança e Financiamento ELSEVIER

5. Como em geral ocorre em toda análise, esta abordagem leva a conclusões de política econômica: diante de tais falhas, oEstado teria um papel “relevante” no fomento, suprindo crédito a setores racionados e sinalizando a intermediários e poupado-res sobre setores com boas perspectivas. Como já dissemos, tal visão tem sido atacada por dois lados: (i) se o problema é de fa-lhas de distribuição de informações, uma regulamentação mais atenta, com regras de disclosure internacionalmente aceitas, eos desenvolvimentos recentes na produção e distribuição de informação (por exemplo, o surgimento de empresas privadas derating), tornam tal intervenção desnecessária; (ii) se existem falhas de mercado, o que garante serem elas inferiores às “falhasde governo”?

Keynes, entretanto, insistiu em diversas passagens na sua Teoria Geral dos Juros, Moeda e Empre-go e em artigos posteriores a ela que o investimento era a causa causans – ou seja, a causa última – nadeterminação da renda e da poupança, uma reversão de causalidade em relação à visão convencional,que é consequência lógica de seu Princípio de Demanda Efetiva.

Esta reversão, por sua vez, indica uma hierarquia de agentes dentro dos mecanismos de financia-mento da formação de capital em economias de mercado bastante diferentes da apresentada no modeloneoclássico. Dentre os principais pontos a serem destacados nesta hierarquia, temos: (a) bancos, e nãoos poupadores, são fundamentais na determinação da oferta agregada de fontes de financiamento do in-vestimento e, portanto, na transição entre uma escala mais baixa e uma mais alta de atividade; (b) apoupança é um resultado do processo de investimento, e não um pré-requisito para o investimento; (c) aalocação das poupanças geradas no processo de multiplicação da renda é importante no processo de ad-ministração dos problemas resultantes do crescente descasamento de vencimentos ao longo do cresci-mento econômico; e (d) é a preferência pela liquidez dos bancos e dos aplicadores em títulos, não a pre-ferência intertemporal dos consumidores, que determina o volume e os prazos do financiamento do in-vestimento.

Estas diferenças da abordagem de Keynes em relação à visão convencional não são semânticas: omodelo keynesiano possui portanto uma “estilização” própria, com dimensões micro e macroeconômi-cas, e institucionais do processo de financiamento do investimento – estilização esta que passou a serconhecida como o Circuito Financiamento-Investimento-Poupança-Funding. Como veremos, estaabordagem tem consequências importantes na análise da intermediação financeira e do financiamentoem economias de mercado, colocando novas questões sobre a institucionalidade dos sistemas financei-ros e sobre o papel, o funcionamento e a eficiência dos sistemas financeiros em uma economia de mer-cado. Também levanta questões até o momento não discutidas, como a fragilidade financeira e as ori-gens da instabilidade financeira.

22.4. O CIRCUITO FINANCIAMENTO-INVESTIMENTO-

POUPANÇA-FUNDING

Para iniciar o processo de investimento, tudo o que o investidor produtivo necessita são meios de paga-mento. Numa economia monetária, este investidor pode obter esses meios de pagamento através de trêsmeios básicos:

a. utilizando ativos monetários previamente acumulados;

b. emitindo obrigações, em um processo que conhecemos como securitização;

c. tomando empréstimos de bancos.

Uma das diferenças primordiais do financiamento de investimento em uma economia com sis-tema bancário moderno está no item c, isto é, no fato de que, como já vimos neste livro, bancos têmcapacidade de criar depósitos através de uma simples operação contábil. Esta operação contábilpode ser resumida da seguinte forma. Primeiramente, utilizando a estrutura contábil simples doQuadro 22.1, e supondo-se que só existam duas empresas na economia (uma investidora e uma pro-dutora de bens de capital e), que os bancos não compram títulos das empresas, mas sim realizamempréstimos a elas,6 e ainda que os títulos da empresas adquiridos pelas famílias são títulos de lon-go prazo (ou seja, ações, debêntures de longo prazo etc.). Desta forma, podemos imaginar a seguin-te estrutura contábil inicial:

Investimento, Poupança e Financiamento 327

6. De fato, o empréstimo em si representa a compra de um título financeiro por parte dos bancos. Isto porque, em troca do em-préstimo, a empresa assina um contrato que dá o direito ao banco sobre o fluxo de rendimento futuro pago pelas empresas. Este“contrato” representa nada mais nada menos do que um ativo financeiro nominativo ao banco e não negociável.

Vamos supor que esta estrutura contábil represente uma situação de equilíbrio, ou seja:

a. o estoque de capital (K) é compatível com as expectativas dos empresários no que tange à demandaagregada nos períodos seguintes – ou seja, compatível com as expectativas empresariais de longoprazo;

b. os bancos possuem um grau de alavancagem – que aqui definimos como a relação entre depósitos ereservas, � – compatível com sua análise dos riscos de intermediação – ou seja, com o estado de ex-pectativas dos bancos; logo, de sua preferência pela liquidez;

c. as famílias têm uma composição de portfólio (relação entre depósitos e títulos) compatível com suaaversão a risco ou preferência pela liquidez.

Agora vamos supor que, devido a uma mudança nas expectativas de demanda futura (e, portanto,um aumento da eficiência marginal do capital), as empresas desejem expandir sua capacidade produti-va, e realizar um investimento (�k) de R$ 500, e para tal realizem um empréstimo junto aos bancos deR$ 500 – empréstimo este que será financiado totalmente através de criação de novos depósitos. Casoos bancos compartilhem dessas expectativas otimistas, sua avaliação do risco dos empréstimos tende ase modificar, o que implicará uma expansão dos empréstimos e de sua alavancagem – representadaaqui pela relação entre depósitos e reservas, � = D/R.

Assim, num primeiro instante, esta operação de financiamento do investimento é tão simples quan-to como se segue:

a. os bancos aprovam um crédito de R$ 500 à empresa A, e autorizam a essa empresa a emissão de che-ques até este valor (ou seja, lhe concedem um limite de crédito de R$ 500);

b. a empresa A adquire bens de capital da empresa B, que por sua vez utiliza todos os recursos adicio-nais no pagamento de mão de obra adicional necessária para a produção dos bens de capital;

c. a mão de obra (famílias) recebe seus salários na forma de depósitos adicionais.

Com essas hipóteses, podemos imaginar o primeiro momento após a realização do empréstimo esua utilização como se segue:

328 Investimento, Poupança e Financiamento ELSEVIER

Empresas A e B

Passivo0 B = 100

0 E = 400

PL = 500

Famílias

Ativo PassivoD = 400

B = 100 W = 500

Bancos

Ativo PassivoR = 100 D = 500

E = 400

QUADRO 22.2Situação Contábil no Momento t = 0

Observação: K = Capital fixo; B = Títulos de longo prazo de empresas; PL = Patrimô-nio líquido; R = Reservas bancárias; E = Estoque dos empréstimos realizados porbancos; W = Riqueza das Famílias; D = Depósitos.

Neste quadro, notamos que o financiamento da aquisição de bens de capital se dá totalmente pelaexpansão dos depósitos (�D = 500). Em realidade, portanto, a maior restrição financeira inicial ao in-vestimento não é a existência ou não de poupança prévia, mas sim a “disposição” ou não dos bancos emexpandirem crédito para saciar a demanda por moeda para realização de gastos autônomos adicionais.

A partir do Quadro 22.3, podemos analisar dois aspectos financeiros interessantes do processo definanciamento do investimento. Primeiramente, se considerarmos que a poupança individual equivale àrenda não consumida, e como a expansão dos depósitos na mão das famílias indica pagamentos de ren-da inicial, já neste momento o investimento é idêntico à poupança,

I = �K = Y1 – C1 = S1

esta poupança não representa poupança forçada, já que ainda não gerou nenhuma redução do consumoreal dos agentes. Na realidade ela representa superávits financeiros ainda não alocados de forma defini-tiva.

Em segundo lugar, a expansão dos depósitos nas mãos das famílias, dada a sua preferência pela li-quidez, gera uma situação de desequilíbrio de portfólio. Neste sentido, parte desses recursos adicionaisserá utilizada na aquisição de bens e serviços, e parte se voltará à aquisição de títulos da empresas – queé o sentido financeiro do conceito de propensão a poupar na teoria keynesiana. Neste sentido, “poupar”na teoria keynesiana tem dois sentidos:

� poupança ex-post – qualquer superávit financeiro que representa a diferença entre renda e con-sumo, e é neste sentido que podemos entender a ideia de que, a qualquer momento (ao longo doprocesso multiplicador de renda), há uma identidade contábil entre poupança e investimento;

� poupança desejada – representa uma decisão de comprar ativos financeiros como forma detransferência de valor em relação no tempo; este é o tipo de poupança que está embutida no concei-to de propensão a poupar; a poupança desejada só será igual ao investimento agregado ao final doprocesso multiplicador.

Para entender melhor esta distinção, é preciso apresentar uma versão financeira do multiplicadorde renda keynesiano. Normalmente, o aprendido em macroeconomia é que, de acordo com a teoriakeynesiana, a expansão de um gasto qualquer na economia gera uma “onda de gastos”, à qual conhece-mos como processo multiplicador. Casos, por exemplo, a propensão média a consumir seja c = 0,8, ouseja, os agentes gastem 80% de tudo que recebem, então um gasto inicial de 100 vai gerar uma sucessãode rendas e gastos, de forma que ao “final” do processo o gasto e a renda total criada são iguais a

1001

1

100

0 2500�

�� �

c ,

Este processo pode ser representado como se segue:

Investimento, Poupança e Financiamento 329

Empresas A e B

Passivo00 B = 100

= 1400 E + E = 900

PL = 500

Famílias

Ativo PassivoD + D = 900

B = 100 W = 1000

Bancos

Ativo PassivoR = 100 D + D = 1000

E + E = 900

QUADRO 22.3Situação Contábil no Momento t = 1

Observação: �K = variação nominal do capital fixo; �B = variação nominal dos títu-los de longo prazo de empresas; �K = variação nominal dos estoques de emprésti-mos por bancos.

Note que o multiplicador keynesiano se dá através de sucessivos processos de criação de renda. Apoupança desejada é gerada ao longo do multiplicador simplesmente pelo fato de que, dada a propensãomédia a poupar, os agentes irão poupar c.Yi, para qualquer renda Yi.

O que essa representação do multiplicador não esclarece é que tanto o processo de criação de rendaquanto o de criação de poupança se dão através de transferências de recursos financeiros entre os agen-tes. Assim, por exemplo, quando o investidor compra um bem de capital ele normalmente assina umcheque, através do qual há uma transferência de depósitos em seu nome para a empresa vendedora; equando o poupador decide poupar ele adquire um título financeiro.

Este lado financeiro pode ser representado através de uma sucessão de mudanças nos balanços pa-trimoniais dos três agentes envolvidos: empresas, bancos e famílias.

No exemplo apresentado anteriormente, mais do que assumir que a propensão a poupar seja dadaao longo do processo, estamos assumindo que a poupança desejada está sendo alocada na forma de tí-tulos de longo prazo das empresas. Como a partir da emissão desses títulos as empresas podem repagarseus empréstimos, após o crescimento do investimento a tendência inicial de crescimento da alavanca-gem dos bancos é revertida. Isto porque as empresas são capazes de realizar o que é conhecido comofunding do investimento. Com isto, podemos “fechar” nossa estilização do processo de financiamentoatravés do seguinte quadro:

330 Investimento, Poupança e Financiamento ELSEVIER

Gasto agregado total = Y I cc

Iii

i

N

i

N� � �

��

���� ( )

1100

Poupança desejada total = S I c c Inn i n

i

N

n

N� � � �

���� – ( – )1

00

ESQUEMA 22.1O Multiplicador de Renda Keynesiano

Y = I1 Y = c.I2 Y = c .I32 ...

c. Y1 c. Y2 c. Y2Y = c .IN

N

(1- c). Y1(1-c). Y2

S = (1 - c). Y1 1 S = c.(1 - c).I2 S = c .(1 - c).InN

BANCOS

INVESTIDOR RENDA

CONSUMO

POUPANÇAMERCADO DE TÍTULOSFINANCEIROS

Financiamento

MULTIPLICADOR

FUNDING

7

2

Autofinanciamento Empresa

6

4

3

1

5

QUADRO 22.4O Circuito Financiamento-Funding

Através deste quadro, podemos mostrar que na estilização keynesiana do processo de financiamento:

1. Os recursos iniciais para a realização do investimento não se originam necessariamente de poupan-ça prévia, mas podem (e tendem a) se originar da criação de moeda por parte dos bancos.

2. O processo multiplicador gera uma expansão do consumo agregado, e ceteris paribus do lucro dasempresas – parte do qual pode ser utilizado para repagar empréstimos junto as bancos.

3. Gera também uma expansão idêntica da poupança agregada desejada, que, ao se transformar nacompra de títulos de empresas em mercados primários de títulos financeiros, permite a essas empre-sas transformar suas obrigações de curto prazo (empréstimos bancários) e passivos de longo prazo(debêntures, ações etc.).

22.5. BANCOS, DESCASAMENTOS DE VENCIMENTOS

E OS LIMITES DO FINANCIAMENTO

Parcela significativa das necessidades de financiamento no crescimento está associada ao financiamen-to de longo prazo. Investimentos produtivos são em geral aplicações em ativos fixos com prazos longosde maturação. Ao financiar a aquisição de um ativo de médio e longo prazos, tantos os bancos comer-ciais quanto os investidores produtivos estarão expostos aos riscos inerentes ao descasamento de venci-mentos: caso os bancos possuam empréstimos de longo prazo (e captem, como de regra, a prazos maisreduzidos), estarão expostos, além de obviamente ao risco de inadimplência ou default, ao risco de li-quidez e de juros; caso financiem a curto prazo, serão os investidores produtivos que estarão sujeitos arolagens contínuas de seus financiamentos de curto prazo, estando portanto sujeitos a risco de taxas dejuros (o que por sua vez amplia o risco de default para os bancos).

Bancos são vulneráveis a resgastes acentuados dos seus depósitos, dependendo da relação reser-vas/depósitos. Dado o estoque de reservas dos bancos comerciais, a criação de depósitos representauma redução – mesmo que temporária – da relação reservas e ativos de alta liquidez sobre depósitos àvista (�, daqui para diante), uma proxy do aumento do hiato de vencimentos entre ativos e passivos ban-cários. Uma redução de � amplia a vulnerabilidade financeira dos bancos.

Tal vulnerabilidade é tão maior quanto menor for o tamanho e profundidade de mercados interban-cários e de títulos. Por exemplo, inexistindo um mercado interbancário amplo e/ou um mercado para tí-tulos lastreados em empréstimos securitizados (securitização secundária), é praticamente nula a liqui-dez dos empréstimos em carteira dos bancos – o que torna central a janela de redesconto do Banco Cen-tral para evitar problemas de liquidez por parte dos bancos. E como essas janelas têm caráter punitivo(seja porque têm uma taxa de desconto superior à taxa de mercado, seja porque implicam perda de con-fiança do público na solidez do banco), os bancos só recorrem a elas em última instância.

Assim, dada a estrutura dos mercados financeiros e o acesso dos bancos a fontes de liquidez, a vul-nerabilidade aceita pelos bancos está associada diretamente à percepção dos riscos adicionais (de defa-ult, do risco de liquidez e de juros) na medida em que se ampliam os depósitos.

Interessantemente, nos períodos de crescimento com base em investimento, os riscos percebidos dedefault e de liquidez tendem a crescer simultaneamente: a carteira de tomadores de recursos dos bancostende a se ampliar (o que implica a incorporação de novos clientes, com risco percebido maior), en-quanto que a relação entre ativos líquidos totais e empréstimos diminui (e como estes empréstimos sãofinanciados através de expansão de depósitos de curto prazo, o descasamento de vencimentos de ativose passivos bancários aumenta).

Na medida em que se amplia a percepção dos riscos totais, os bancos tendem a se tornar mais con-servadores para um dado estado de expectativas, tornando-se mais seletivos em relação aos créditos,buscando aumentar os requisitos em termos de garantias e o spread de juros em suas operações. Assim,uma demanda crescente de crédito, que no crescimento econômico é em geral superior ao crescimento

Investimento, Poupança e Financiamento 331

da demanda agregada, para um dado estado de expectativas dos bancos,7 tende a ser racionada ao longodo processo de crescimento.

Portanto, no caso de economias em crescimento, em que o financiamento se baseia em crédito ban-cário, o racionamento de crédito se dá não somente porque há assimetria de informações, mas tambémpor três outros motivos:

a. ou porque os níveis de alavancagem bancária alcançam os limites máximos aceitos pelos bancos(dado o seu estado de expectativas) na medida em que estes acomodam as demandas crescentes porcrédito;

b. ou porque os dados necessários para a análise de crédito não estão disponíveis aos bancos – como éo caso de novos clientes;

c. ou porque os dados são inexistentes e/ou os disponíveis não podem ser utilizados como guia de ava-liação precisa dos riscos dos clientes potenciais. Neste caso, por exemplo, as empresas inovadoras –ou seja, aquelas que introduzem novos produtos, se inserem em novos mercados (internos e exter-nos) e/ou introduzem novas formas de produção – e as pequenas e médias empresas tendem a serdiscriminadas.

Assim, no contexto de crescimento, o racionamento de crédito mais relevante se deve a uma sele-ção mais criteriosa dos crescentes riscos percebidos de crédito de empréstimos. Este racionamento ten-de a favorecer empresas já consolidadas com garantias reais de valor mais elevado. Isto, por sua vez,pode implicar a exclusão de empresas novas e/ou pequenas e/ou projetos de investimento com retornosexcessivamente longo e/ou incertos.

22.6. A ALOCAÇÃO DE POUPANÇA E O PAPEL DO FUNDING

Já vimos que, na inexistência de títulos de longo prazo (colocados pelas empresas em mercados espe-cializados ou vendidos por bancos universais), o financiamento do investimento implica que ou os in-vestidores ou os intermediários financeiros são obrigados a aumentar sua vulnerabilidade financeira(aqui definida pelo hiato entre o prazo médio de seus ativos vis-à-vis o prazo médio de seus passivos).Quanto menos desenvolvidos os mercados ou a demanda por ativos de mais largo prazo, maior será oproblema do descasamento de ativos e mais difícil que agentes privados assumam o financiamento doinvestimento.

Os mercados de títulos de longo prazo proveem aos aplicadores individuais a liquidez requerida(através de negociações em mercados secundários), tornando atrativos títulos que, para a comunidadecomo um todo, são por definição ilíquidos. Tais mercados são portanto os principais mecanismos demercado pelo qual o investidor produtivo e/ou os bancos universais podem alongar o prazo de seus pas-sivos, diminuindo o descasamento de ativos. A este processo de alongamento é que Keynes chamou defunding.

A funcionalidade dos mercados de capitais no crescimento econômico está, portanto, associada, emgrande medida, ao tamanho e desenvolvimento dos mercados primários – onde os ativos são emitidos eportanto os capitalistas podem obter funding. Por sua vez, o tamanho dos mercados primários está, emgrande medida, associado ao grau de organização e volume de transações nos mercados secundários –já que estes possibilitam ao emissor a possibilidade de colocação de títulos com custos menores, e ao in-vestidor (financeiro) a liquidez que mitiga o risco de perdas de capital. A existência de negociação diá-ria em volumes significativos é fundamental para a liquidez dos mercados secundários, o que por suavez requer uma ativa participação de investidores de curto prazo (especuladores).

332 Investimento, Poupança e Financiamento ELSEVIER

7. Vale a pena lembrar que em geral o estado de expectativa dos bancos tende a se modificar positivamente nos momentos decrescimento, gerando a possibilidade de booms de crédito.

Investimento, Poupança e Financiamento 333

Como discutido no Capítulo 21, Keynes, na Teo-ria Geral, mostrou que a decisão de investir, istoé, de acumular riqueza sob a forma de estoquesde ativos, colocava o agente econômico normal-mente diante da necessidade de escolher entre:1. ativos reais (bens de capital) que poderiamoferecer altos rendimentos, mas são muito arris-cados; 2. ativos financeiros que em princípio se-riam mais seguros, mas em compensação ofere-ceriam menores taxas de retorno; e 3. moeda,cujo retorno seria zero ou quase isso, mas, que,por outro lado, são os ativos mais seguros queuma economia de mercado pode exibir. Comisto, Keynes mostrava que uma decisão impor-tante a ser tomada pelos agentes econômicos di-zia respeito à estrutura de seus ativos. Keynes deupouca atenção, porém, ao problema comple-mentar a este, o da escolha de passivos. Umagente econômico não sofre apenas os dilemasde escolher como acumular riqueza, mas tam-bém aqueles ligados às decisões de financiamen-to de seus investimentos. É nesse contexto que osconceitos de financiamento e de funding desen-volvidos neste capítulo se tornam importantes.

Muitos economistas estudaram a questão dofinanciamento da acumulação de riqueza, mascoube a Hyman Minsky fazê-lo na tradição key-nesiana.* Segundo Minsky, para entender ocomportamento de qualquer pessoa no que serefere às suas decisões de investir, seria neces-sário construir o seu balanço. Nesse balanço, nolado dos ativos estariam identificados as fontesde rendimento com que essa pessoa contaria:ações, letras, bônus, notas, equipamentos, imó-veis etc. No lado dos passivos estariam registra-dos os valores dos contratos que obrigam essapessoa a fazer pagamentos. Naturalmente, aposição desse agente econômico será viável seas receitas que espera receber dos ativos quepossui forem pelo menos suficientes para pagaros compromissos que assumiu. Esta pessoaver-se-ia, assim, diante de duas demandas: porum lado, é preciso garantir que o valor das suasobrigações seja no máximo igual ao de seus di-reitos. Chamemos esta demanda de condição desolvência. Por outro lado, o agente também pre-cisa ter alguma segurança de que a receita dosativos será recebida em tempo hábil para pagarsuas obrigações quando estas forem cobradas.Esta é a condição de liquidez. A condição de li-quidez estabelece que o agente econômico deveestar preparado para pagar suas dívidas no mo-mento em que vencem. A receita dos ativos, po-rém, pode ser incerta, como no caso dos bens decapital ou das ações de empresas. Por isso, oagente deve manter em seu ativo reservas de

caixa, ou reservas de moeda, para que possa pa-gar suas dívidas (ou parte delas) mesmo quesuas expectativas de receita sejam temporaria-mente desapontadas. Essas reservas dão aoagente uma margem de segurança na conduçãode seus negócios.

Com base nestes conceitos, Minsky identificadiferentes grupos de investidores pelos riscosque aceitam correr com relação à sua condiçãode liquidez. Aqueles mais cautelosos assumirãoapenas compromissos que tenham razoávelcerteza que possam honrar, seja em função desuas receitas, seja em função de sua margemde segurança. A esse grupo de investidores,Minsky chama de “protegidos” (hedgers). Já ou-tros podem preferir se arriscar mais, minimi-zando os seus custos financeiros, mas se expon-do a possíveis violações da condição de liqui-dez. A esses agentes Minsky chama de “especu-ladores”, porque fazem seus planos de investi-mento contando com a possibilidade especula-tiva de que, se precisarem tomar novos emprés-timos em casos de iliquidez, eles serão acomo-dados pelos bancos. Uma postura especulativamais extrema é chamada por Minsky de “Ponzi”,em homenagem a um especulador financeiroque atuou nos Estados Unidos nos anos 20 doséculo passado. Note-se que essas posturassão, em verdade, refinamentos dos conceitosde financiamento e funding. Quando for possí-vel a um investir fazer o funding completo deseus investimentos, ele será um hedger, nos ter-mos de Minsky. A parcela de suas obrigaçõesque ele não conseguir consolidar em dívida deprazo mais longo, que permanece como finan-ciamento, portanto, o torna, parcialmente, umespeculador.

Finalmente, Minsky se vale dessa classifica-ção de posturas para criar uma teoria das flutua-ções econômicas. Quanto maior for a predomi-nância de agentes com balanços de especulado-res e/ou Ponzi, mais frágil financeiramente estaeconomia será. Quando todos são hedgers, aeconomia é robusta diante de choques financei-ros. A teoria dos ciclos de Minsky é construídapelo autor ao mostrar que economias de merca-do tendem a exibir padrões mutantes de predo-mínio de hedgers e especuladores.

*A apresentação mais acessível das ideias de Minsky éseu livro John Maynard Keynes, editado em 1975 pelaColumbia University Press. Seu último livro, publicadoem 1986, chamado Stabilizing an Unstable Economypela Yale University Press, demanda maior esforço porparte do leitor.

KEYNES, MINSKY E O CONCEITO DE FRAGILIDADE FINANCEIRA

BO

X2

2.1

Se a existência de especuladores é essencial ao mercado, são os investidores (individuais e, princi-palmente, institucionais) de longo prazo que representam a “âncora” do mercado, que evitam volatili-dade excessiva nos mercados. Um mercado onde a atividade de especulação de curto prazo predominatende a inibir a atuação de investidores institucionais – especialmente aqueles mais avessos ao risco decapital, como por exemplo fundos de pensão e seguradoras.

22.7. O PESO DA INSTITUCIONALIDADE E DA HISTÓRIA

O modelo de funding através de mercados de capitais exige uma institucionalidade complexa: além deum arcabouço jurídico e regulatório (que garanta os direitos e mitigue as possibilidades de fraudes), taismercados são constituídos de agentes com diversos perfis de aplicação: investidores institucionais,como fundos de pensão, em geral têm perfis de mais longo prazo; especuladores compram e vendemtais títulos com prazos menores; e, tipicamente, empresas e governo são ofertantes.

O desenvolvimento desta institucionalidade não é um resultado elementar das forças de mercado.Um dos grandes problemas do desenvolvimento dos mercados de capitais se relaciona aos custos implí-citos em mantê-los: aqui a escala inicial faz uma enorme diferença. Para que a escala seja significativa,o número e o tamanho das empresas emissoras, o valor dos recursos a serem captados e o número e ex-pressividade de demandantes de títulos de longo prazo são fundamentais. O mercado norte-americano,por exemplo, desenvolveu-se na virada do século em função basicamente dos gigantescos projetos fer-roviários envolvidos na corrida para o interior na expansão do país. Além do fato de serem grandes em-presas as emitentes iniciais, a economia norte-americana do século XIX possuía uma distribuição derenda melhor do que a maioria das economias em desenvolvimento contemporâneas. Some-se a isto ocrescimento relativamente acelerado da economia, e temos um crescimento significativo e sustentadoda demanda por ativos emitidos nestes mercados de capitais. Um último aspecto se relaciona ao cresci-mento de investidores institucionais, que tendem a concentrar poupanças e alocá-las com prazos com-patíveis com seus passivos contingentes – ou seja, a prazos mais largos.

Escala, tanto pelo lado da oferta quanto pela demanda de ativos de longo prazo, parece essencial.Não é por outra razão o fato de que mercados desenvolvidos de negociação de títulos são mais uma ex-ceção histórica: a maioria das economias desenvolvidas (com exceção dos Estados Unidos e a Inglater-ra) e das economias em desenvolvimento possui mecanismos de funding distintos.

No modelo norte-americano (anteriormente ao processo de desregulamentação dos anos 90), os bancoscomerciais são tipicamente os agentes centrais no fornecimento da liquidez necessária ao início dos projetosde investimento (o financiamento). Os bancos de investimento, por sua vez, desempenham o papel auxiliar

334 Investimento, Poupança e Financiamento ELSEVIER

BANCOS COMERCIAIS eCompanhias Financeiras

INVESTIDOR RENDA

CONSUMO

POUPANÇA

BANCO DE INVESTIMENTO

MERCADO PRIMÁRIO MERCADO SECUNDÁRIO

Companhias negociadoras de títulos

SUBSCRIÇÃO

FINANCIAMENTO(curto prazo)

MULTIPLICADOR

FUNDING

LIQUIDEZ

FIGURA 22.2A Institucionalidade do Sistema de Financiamento e FundingNorte-americano Antes dos Anos 80

no processo de financiamento – fornecendo cartas de garantias de empréstimos a empresas inversoras, reali-zando a subscrição desses mesmos títulos quando as condições nos mercados organizados de títulos foremfavoráveis e mantendo em carteira títulos (ações e debêntures) da empresas financiadas. Note que, do pontode vista macroeconômico, a poupança adicional gerada pelo processo multiplicador expande a liquidez dosmercados organizados proporcionando as condições de mercado para colocação desses títulos.

Um outro exemplo interessante, e amplamente citado, é do processo de funding realizado no “mo-delo alemão”. O modelo alemão caracteriza-se pela concentração, em dois sentidos: primeiro, quanto àvariedade de instituições financeiras, que é reduzida, sendo predominante a figura dos “bancos univer-sais” e pouco significativa a atuação de instituições especializadas (bancárias ou não bancárias); segun-do, quanto ao porte das instituições bancárias, que é, tipicamente, elevado. Outra característica estrutu-ral do sistema de crédito privado é a debilidade do mercado de capitais como fonte de financiamentodas firmas – inclusive as de grande porte que, em tese, teriam fácil acesso a recursos diretos. A concen-tração da poupança financeira nas instituições bancárias torna essas mesmas instituições as principaiscompradoras potenciais de títulos e ações. Isto tende a deprimir a demanda por esses papéis, que con-correm diretamente com o negócio bancário por excelência – a concessão de empréstimos. Assim, nes-se modelo predomina o financiamento indireto, intermediado por bancos que captam poupanças sob aforma de depósitos e as aplicam sob a forma de empréstimos.

O papel da regulamentação foi também importante na formação desse tipo de sistema financeiro,embora em sentido oposto ao das experiências americana e inglesa. No caso alemão, por questõesculturais e históricas, a regulamentação da atividade financeira voltou-se, sempre, para o objetivo depropiciar condições de financiamento para o rápido crescimento econômico, ou mesmo reconstrução,nos períodos pós-guerras. Nessas condições, a atuação das instituições bancárias em qualquer área ja-mais foi vetada. Ao contrário, até a atuação dos bancos no setor não financeiro, através de participaçõesou mesmo do controle acionário, era – e ainda é – explicitamente permitida pelas autoridades locais.Essa regulamentação explica, em grande parte, a tendência do sistema financeiro alemão à concentra-ção (nos dois sentidos acima mencionados) e à conglomeração, isto é, à formação de grandes corpora-ções, lideradas por bancos universais, atuantes em diversos setores da economia.

A menção de estruturas financeiras específicas serve para reforçar a ideia de que não só há outrosarranjos institucionais alternativos no financiamento da acumulação como não há por que se imaginarque um arranjo seja mais eficiente que outro. O economista John Zysman, por exemplo, afirmou quesistemas tão distintos quanto o norte-americano – com base em mercados de capitais – e o alemão – combase em crédito – foram igualmente funcionais no crescimento destas economias no pós-guerra.

Investimento, Poupança e Financiamento 335

Banco UniversalEstrutura Patrimonial Simplificada

PASSIVO ATIVODepósitos à VistaDepósitos a Prazo

Emp. de Curto PrazoTítulos e Ações de Empresas

PATRIMÔNIO LÍQUIDO

INVESTIDOR

RENDA

CONSUMOPOUPANÇAde Longo Prazo

FINANCE

(longo prazo)

MULTIPLICADOR

FIGURA 22.3A Institucionalidade do Sistema de Finance e Funding Alemão

Podemos concluir que, independentemente da institucionalidade do processo de financiamento, aexistência desses mecanismos de funding pode ser essencial para manter as condições de endividamen-to das empresas investidoras – e para delimitar sua vulnerabilidade financeira a possíveis mudanças dastaxas de juros de curto prazo. Caso contrário, o crescimento pode ser limitado por falta de mecanismode financiamento mais apropriado ou através de um crescimento muito significativo da fragilidade fi-nanceira, tanto dos investidores produtivos quanto dos bancos que os financiam.

22.7.1. SUBDESENVOLVIMENTO INSTITUCIONAL: MERCADOS, BANCOS UNIVERSAIS

E INVESTIDORES INSTITUCIONAIS

A existência de mecanismos de financiamento exige simplesmente a existência de instituições bancá-rias com capacidade de emitir meios de pagamento. Vimos, entretanto, que o financiamento do cresci-mento com base em crédito bancário tende a gerar fragilidade financeira e racionamento de crédito,ambos representando riscos à continuidade do crescimento: no primeiro caso, porque um processo deinstabilidade financeira tende a ter consequências depressivas na economia; no segundo caso, porque ocrescimento pode ser contido por falta de mecanismos de financiamento do investimento. Uma econo-mia sem sistemas de funding adequados é uma economia com pouco fôlego financeiro para o cresci-mento econômico.

Assim, o tema mais complexo no financiamento do crescimento talvez seja o funding, cujo desen-volvimento institucional envolve, além de um aparato regulatório e de supervisão condizentes, pelomenos quatro questões. No caso dos sistemas com base em mercado de capitais, essas questões se ligamprimordialmente e de forma inter-relacionada:

a. ao tamanho e profundidade dos mercados de títulos corporativos de longo prazo; e

b. ao tamanho e perfil de aplicação dos investidores institucionais.

No caso dos sistemas de bancos universais as questões se referem:

c. ao perfil de aplicação dos investidores financeiros (famílias e investidores institucionais) em ativosdesses bancos; e

d. ao perfil e potencial papel dos bancos no financiamento de largo prazo.

A existência de investidores institucionais não só facilita a existência de mercados de capitais ro-bustos, ela também estimula o aumento da profundidade e eficiência dos mercados de capitais. O cres-cimento do tamanho e importância dos investidores institucionais no sistema financeiro não deve entre-tanto ser vista como uma panaceia no sentido do desenvolvimento de mecanismos privados de financia-mento de longo prazo. Primeiramente, deve-se ter clareza que a expansão dos investidores institucio-nais (por exemplo, fundos de pensão) não induz por si só a um crescimento da oferta de fundos de em-préstimos para o financiamento do investimento. Este crescimento continua atrelado especialmente àrenda e à capacidade de poupar das famílias e das empresas.

Entretanto, o crescimento e desenvolvimento de investidores institucionais facilita o casamento entreaplicações financeiras e os prazos normalmente requeridos no processo de investimento produtivo. Istoporque algumas dentre essas instituições – por exemplo, fundos de pensão e seguradoras – possuem pas-sivos de longo prazo, o que lhes permite fazer aplicações de longo prazo, por exemplo em ações e bônus.

Assim, a existência de mercados organizados de títulos de longo prazo (mercados de capitais, porexemplo) e investidores institucionais com perfil de aplicação de longo prazo poderia mitigar tal pro-blema de descasamento de ativos. Isto porque as empresas investidoras, após a realização do investi-mento, poderiam ter acesso à colocação de títulos com vencimentos mais compatíveis com os prazos devencimento dos seus investimentos, e assim repagar os créditos de curto prazo obtidos junto a bancoscomerciais.

336 Investimento, Poupança e Financiamento ELSEVIER

Não é por questão distinta que na maioria das economias onde os mercados de capitais são peque-nos, o financiamento do investimento se dá através de instituições bancárias universais capazes de cap-tar recursos de longo prazo (o caso dos bancos universais alemães, por exemplo) ou de bancos públicosque utilizam funding com recursos fiscais ou parafiscais (no caso da maioria das economias em desen-volvimento). Estas são formas alternativas de evitar os problemas de descasamento de vencimentos quepodem restringir a expansão dos financiamento de longo prazo no crescimento econômico.

Os requisitos para o desenvolvimento de um mercado de títulos bancários de longo prazo esbarram,entretanto, em alguns problemas semelhantes ao desenvolvimento de um mercado de títulos corporati-vos: escala. Na Alemanha, por exemplo, observamos no pós-guerra um grande crescimento da deman-da de ativos bancários de longo prazo, fruto:

a. da concentração de investimentos no processo de reconstrução e reequipamento industrial;

b. pela peculiar atuação dos bancos universais no financiamento direto do processo de acumulação.

c. do crescimento econômico associado com uma distribuição de renda bastante equitativa;

d. da preferência dos poupadores alemães por ativos emitidos por bancos universais, dado o ínfimo ta-manho inicial dos mercados de capitais.

Devido ao crescimento da demanda de títulos bancários, seguros e instrumentos de poupança delongo prazo, os bancos universais tiveram a possibilidade de captar recursos com prazos de vencimentodistintos, variando de depósitos à vista, até depósitos de mais largo prazo. O resultado é que o processode administração de descasamentos de vencimentos é feito dentro da própria estrutura patrimonial des-sas instituições.

O desenvolvimento de instituições apropriadas para o financiamento e funding da acumulação pa-rece ser um requisito do crescimento econômico financeiramente sólido. Porém, mesmo que suponha-mos mercados plenamente desenvolvidos ou existência de bancos com as características dos bancosuniversais alemães, existiriam ainda problemas gerados por falhas na distribuição de informações e in-certezas no processo de intermediação financeira que descrevemos como funding. Uma vez que discu-tamos esses aspectos informacionais, podemos terminar nossa análise sobre a problemática do finan-ciamento do desenvolvimento.

RESUMO

1. Neste capítulo apresentamos duas visões sobre o processo de financiamento em economias de mercado: umaque representa a visão convencional e outra com base no circuito financiamento-poupança-funding.

2. Uma das características dos modelos convencionais é basear sua estilização do processo de financiamentoatravés de um processo de transferência de recursos entre poupadores e investidores, ambos maximizadoresde recursos. A curva de oferta de “capital” é determinada em última instância pelos poupadores, através de umexercício de maximização de utilidade no tempo, com base em preferências intertemporais bem definidas.Neste modelo, o sistema financeiro aparece como um simples intermediário na intermediação da poupança,sem maior relevância do ponto de vista analítico.

3. Mostramos que somente neste contexto há dois problemas que poderiam explicar um possível mau funciona-mento dos mercados financeiros no processo de intermediação de poupança: incompletude de mercados e fa-lhas na distribuição de informações. O problema de incompletude de mercados foi analisado por dois autoresde origem neoclássica: Gurley e Shaw. Sua visão básica era que, dada a importância de compatibilizar as ne-cessidades de demanda de diversificação por parte dos poupadores e as necessidades de financiamento dos in-vestidores, o subdesenvolvimento financeiro poderia gerar níveis de poupança e investimento menores doque o potencial. O problema de assimetrias de informações e seus impactos sobre a intermediação financeira,para a oferta de crédito para as empresas e para o crescimento, tem sido analisado mais recentemente.

4. A visão keynesiana sobre o processo de financiamento se diferencia de forma fundamental daquela conven-cional. Nesta visão, a restrição financeira primordial ao investimento é a oferta de financiamento, ou seja,

Investimento, Poupança e Financiamento 337

oferta de crédito bancário financiado a partir da criação de moeda (depósitos) dos bancos. O volume de pou-pança é determinado pelo investimento, e sua importância está ligada mais à forma como ela é alocada ao lon-go do processo multiplicador de renda. Quando a poupança é alocada em títulos de longo prazo de empresas,estas podem transformar seus passivos de curto prazo em ativos de longo prazo, repagando suas dívidas juntoaos bancos. Da mesma forma que a expansão da oferta de financiamento amplia a vulnerabilidade financeirade bancos financiadores e empresas inversoras, o funding a reduz.

5. A forma como a poupança é alocada determina, portanto, o grau de fragilização financeira da economia nocrescimento. Esta alocação, por sua vez, depende em grande medida da existência de instituições especializa-das em administração de risco (gerado por problemas de descasamento de vencimentos) e mercados especia-lizados em títulos financeiros com distintos prazos. Neste sentido, a análise keynesiana ressalta a importânciado contorno institucional através do qual o circuito financiamento-poupança-funding se realiza, e o fato deque o subdesenvolvimento de mecanismos de financiamento adequado pode gerar níveis de investimento e,consequentemente, poupança baixos, e um crescimento econômico financeiramente frágil.

6. Existem mecanismos distintos de finance-funding, de acordo com a estrutura do sistema financeiro e da arti-culação entre instituições financeiras e setor produtivo. Aqui analisamos dois tipos – os sistema com base emmercado de capitais e os sistemas com base em bancos universais.

TERMOS-CHAVE

� Taxa de Juros Natural� Taxa de Juros de Mercado� Hipótese da Poupança Prévia� Assimetrias de Informação� Risco Moral

� Seleção Adversa� Financiamento� Funding� Teoria dos Fundos Emprestáveis� Demanda por Diversificação

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Gertler, M. (1988). “Financial structure and aggregate economic activity: an overview”, Journal of Money,Credit, and Banking. 20(3): 559–587.

Este é um levantamento de modelos convencionais sobre a relação entre sistemas financeiros e setor real.Apresenta uma bibliografia bastante representativa da visão convencional na teoria do financiamento.

McKinnon, R. I. (1973). Money and Capital in Economic Development, Washington D.C.: Brookings Institution.Trata-se de um dos dois livros seminais da teoria da repressão financeira (o outro foi escrito por Edward Shaw).

Stiglitz (1988). Banks as social accountants and screening devices for the allocation of credit. National Bureauof Economic Research, Working paper 2710.

– (1994). “The role of the State in financial markets.” Proceeding of the World Bank Annual Conference onDevelopment Economics 1993, The World Bank: Washington, D.C.: 19-52.

338 Investimento, Poupança e Financiamento ELSEVIER

REGIMES CAMBIAIS

INTRODUÇÃO

Numa economia aberta ao exterior, um novo ativo monetário entra em cena nomercado: a moeda estrangeira. A incorporação das transações com moeda es-trangeira na análise do mercado monetário altera o seu funcionamento e o im-pacto da política monetária. O ponto de partida para examinar a relação entre amoeda doméstica e a estrangeira deve ser o mercado de câmbio, que é o localonde estes dois ativos são trocados. As operações ali realizadas refletem a de-manda (e oferta) pelas moedas. E o preço da mercadoria nele negociada é ataxa de câmbio.

Para analisar o funcionamento do mercado de câmbio – e elucidar os me-canismos de formação da taxa de câmbio, bem como as relações entre esta ea taxa de juros – precisamos, antes de mais nada, conhecer as regras que re-gem esse mercado. Como veremos neste e no próximo capítulo, neste campoda economia as instituições desempenham um papel absolutamente decisivopara a determinação do metabolismo do mercado. Nosso tratamento do temaneste capítulo focalizará os diferentes tipos de regimes cambiais existentes.Após examinarmos as teorias que sustentam cada tipo de regime cambial,discutiremos os regimes praticados na realidade. A análise do atual regimecambial brasileiro será feita posteriormente, com mais profundidade, noCapítulo 25.

23.1. TIPOS DE REGIME CAMBIAL

Um regime cambial é definido, fundamentalmente, pela regra estabelecidapara a formação da taxa de câmbio. Outras regras também são importantespara determinar o modus operandi do mercado de câmbio e as relações entreeste e o mercado monetário, cabendo destacar aqui as regras relativas ao graude conversibilidade da moeda doméstica, isto é, o grau de liberdade que os re-sidentes de um país têm para adquirir moeda estrangeira com moeda domésti-ca para diferentes finalidades.

CAPÍTULO

23

No que segue, apresentaremos um leque de regimes cambiais relevantes, começando pelos dois ti-pos puros extremos: a flutuação pura e a paridade fixa imutável. Antes de prosseguir, porém, precisa-mos definir com precisão o conceito de taxa de câmbio.

Adotando o procedimento usual no Brasil e em muitos outros países, chamaremos de taxa de câm-bio ao valor da moeda estrangeira medido em unidades da nacional. Em outras palavras, a taxa decâmbio será aqui sempre referida como sendo o preço da moeda estrangeira e representada pelo quo-ciente moeda local/moeda estrangeira, como, por exemplo, em nosso caso, R$/US$. Isto significa que,pela nossa definição, uma elevação da taxa de câmbio corresponde a um aumento do preço da moedaestrangeira e, portanto, a uma desvalorização da moeda doméstica (já que será necessário dar mais uni-dades da moeda doméstica em troca de uma unidade da moeda estrangeira). Esta é razão pela qual seusa a expressão desvalorização cambial para denominar uma elevação da taxa de câmbio, e apreciaçãocambial para designar uma queda da taxa de câmbio.

A contrapartida da definição acima é que as curvas representativas do mercado de câmbio corres-pondem à oferta e demanda por moeda estrangeira (e não da moeda doméstica). Tendo isto presente,podemos agora iniciar nossa apreciação dos diferentes regimes cambiais.

23.1.1. A FLUTUAÇÃO PURA

Um regime de flutuação cambial pura (ou de câmbio perfeitamente flexível) é caracterizado pelo fatode que a taxa de câmbio é determinada, exclusivamente, através da operação das forças de mercado. AFigura 23.1 representa o processo da formação da taxa de câmbio pela interação das forças de oferta eprocura por moeda estrangeira – que, por conveniência, será aqui identificada com o dólar nor-te-americano, enquanto a moeda nacional, quando referida de forma concreta, será o real.

Começaremos adotando uma hipótese bastante simplificadora, que posteriormente será relaxada.Admitiremos que a moeda estrangeira não compete com a moeda nacional no mercado doméstico. Ouseja, nossa suposição inicial é de que os agentes econômicos não demandam moeda estrangeira comoreserva de valor ou para fins de transações no mercado doméstico. Em vez disso, os agentes econômi-cos só compram dólares para fazer pagamentos ao exterior – por exemplo, para importar um bem ouserviço –, ao mesmo tempo que toda oferta de moeda estrangeira é proveniente de transações com nãoresidentes no país – por exemplo, através de uma operação de exportação.

Partindo-se desse suposto, a procura por dólares (DUS$) será derivada, fundamentalmente, da de-manda por importações de bens e serviços e de remessas financeiras ao exterior para fins de amortiza-ções de dívidas etc. Conforme pode-se ver na Figura 23.1, a procura por dólares apresenta o formato tí-pico de uma curva de demanda, ou seja, é negativamente inclinada. Isto porque o aumento da taxa decâmbio encarece as importações de bens e serviços, provocando uma retração na demanda por dólarespara importar. Observe que o preço em moeda doméstica (Pm

R$) de um bem ou serviço importado resul-ta do produto do preço em dólares (Pm

US$) pela taxa de câmbio (E) – já que esta corresponde à quantida-de de reais por cada dólar. Ou seja,

PmR$ = Pm

US$ × E (1)

A curva de oferta de divisas tem, por questões análogas, o tradicional formato, positivamente incli-nado. Há exceções, discutidas na literatura de economia internacional, quando a demanda pelas expor-tações do país é inelástica. Vamos abstrair esta possibilidade e admitir o formato convencional para acurva de oferta.

Retornando então para a Figura 23.1, vemos que a taxa de câmbio E0, determinada pela interseçãodas curvas de oferta e demanda de dólares corresponde ao preço da moeda estrangeira que equilibra omercado de câmbio, para um volume total de dólares igual a M0

US$. Note que ao fazermos a oferta e ademanda de divisas depender apenas da taxa de câmbio, consideramos como invariáveis um conjunto

340 Regimes Cambiais ELSEVIER

de fatores – tais como o nível da demanda doméstica, as tarifas e subsídios, a produtividade, as taxas dejuros domésticas etc. – que estão, no mundo real, mudando a todo instante. Na representação da Figura23.1, mudanças nessas variáveis seriam responsáveis por deslocamentos de uma ou de ambas as curvas.Esta é uma das razões por que, na prática, o nível da taxa de câmbio determinado pelo mercado mudaconstantemente – isto é, flutua – num regime de câmbio perfeitamente flexível.

Admitamos, por exemplo, que uma redução na tarifa de importações tenha provocado um desloca-mento de DUS$ para a direita, conforme ilustrado na Figura 23.1, pela passagem de D0

US$ para D1US$. Isto

provocaria um excesso da demanda sobre a oferta de moeda estrangeira igual a OM2US$ – OM0

US$. Apressão do excesso de demanda acabaria por levar a um aumento da taxa de câmbio de E0 para E1, e daquantidade de moeda estrangeira demandada e ofertada para M1

US$.Portanto, a característica mais importante do regime de flutuação pura é que a taxa de câmbio é de-

terminada exclusivamente pelas forças de mercado. Um desequilíbrio incipiente no mercado de câm-bio, motivado, por exemplo, por um deslocamento da demanda é resolvido “instantaneamente” atravésde uma mudança na taxa de câmbio. Em certo sentido, portanto, num regime de flutuação pura não hádesequilíbrio – se não que apenas latente – do balanço de pagamentos. E a consequência deste fato éque a maneira como o balanço de pagamentos afeta o desempenho da economia doméstica (isto é, o me-canismo de transmissão) é através de variações na taxa de câmbio. Este é também o mecanismo, por ex-celência, de ajustamento do balanço de pagamentos (ver Box 23.1).

A segunda característica é que, na medida em que o Banco Central não intervém no mercado,ele não precisa dispor de reservas internacionais. Ou seja, desequilíbrios no balanço de pagamentosnão se traduzem em variações de reservas. Este fato tem implicações sobre as relações entre o mer-cado cambial e o mercado monetário doméstico, que serão examinadas detalhadamente no próximocapítulo.

23.1.2. O REGIME DE CÂMBIO FIXO

Um regime de câmbio fixo é aquele em que uma paridade entre moeda doméstica e a estrangeira é esta-belecida através de uma decisão do governo ou de uma lei. A manutenção da taxa de câmbio no nível fi-xado torna-se uma responsabilidade das autoridades monetárias. Mas através de que mecanismos a taxade câmbio é mantida fixa, uma vez que as transações cambiais constituem negócios de compra e vendade moedas entre agentes privados?

Suponha, por exemplo, que a demanda por moeda estrangeira sofra um deslocamento, como na Fi-gura 23.1, ocasionando assim um desequilíbrio no balanço de pagamentos. A diferença entre a deman-da e a oferta de divisas, no nível da taxa de câmbio fixada pelas autoridades, não deve ser eliminada

Regimes Cambiais 341

E

O

SUS$

S , DUS$ US$

D0US$

D1US$

E1

E0

M0US$ M1

US$ M2US$

FIGURA 23.1O Mercado de Câmbio

através do mecanismo de preços – isto é, através de uma desvalorização cambial – como no caso ante-rior, do regime de câmbio flutuante. Para evitar que as pressões de mercado – isto é, a disputa entre oscompradores de moeda estrangeira escassa – façam a taxa de câmbio subir, o governo deve oferecer nomercado aquela quantidade de divisas que estaria faltando (OM2

US$ – OM0US$) para equilibrar oferta e

demanda à paridade fixada. Isto significa que o Banco Central deve estar disposto a intervir passiva-mente no mercado de câmbio para vender (no caso de escassez de divisas no mercado) ou comprar (nocaso de abundância) moeda estrangeira à paridade oficial. E para que possa desempenhar este papel aautoridade monetária deve possuir um estoque suficiente de reservas em moeda estrangeira.

Em suma, o que foi dito sugere duas características importantes do regime de câmbio fixo, à dife-rença do regime de flutuação, a saber: a fixação da taxa de câmbio é responsabilidade das autoridadesmonetárias – e não do mercado –, e o Banco Central precisa dispor de reservas internacionais para inter-vir no mercado de câmbio e com isso garantir a manutenção da paridade fixa. E mais, dado que com suaintervenção o Banco Central evita que o mecanismo de preços (isto é, a variação cambial) elimine o de-sequilíbrio entre oferta e demanda, o governo terá que acionar outros instrumentos para corrigir este de-sequilíbrio, isto é, para fazer o ajustamento do balanço de pagamentos.

A maneira pela qual os desequilíbrios no balanço de pagamentos afetarão o desempenho da econo-mia doméstica será, portanto, diferente do observado no caso do regime de câmbio flutuante. Seu im-pacto se dará seja através das consequências monetárias das intervenções do Banco Central no mercadode câmbio, seja através das políticas de ajustamento do balanço de pagamentos. Estes dois mecanismosserão analisados no próximo capítulo.

342 Regimes Cambiais ELSEVIER

O principal problema macroeconômico deuma economia aberta, no que se refere àssuas relações com o exterior, é o desequilí-brio de seu balanço de pagamentos. Quan-do a demanda por moeda estrangeira ten-de a superar, sistematicamente, a oferta,ou bem a diferença terá que ser cobertapor alguma fonte de financiamento extraou bem ela terá que desaparecer. Nesteúltimo caso, algum mecanismo, acionadopelos condutores da política econômica oupelo mercado, deverá se encarregar derestaurar o equilíbrio entre oferta e de-manda de divisas. Chama-se de ajusta-mento do balanço de pagamentos ao pro-cesso de correção de tais desequilíbrios.Há dois caminhos clássicos de ajustamentodo balanço de pagamentos: o redimensio-namento da demanda e a reorientaçãodos gastos. No primeiro deles, uma redu-ção da demanda doméstica, ao promoveruma contração de seu componente impor-tado e ao liberar excedentes de produtospara a exportação, contribui para a restau-ração do equilíbrio do balanço de paga-mentos. No segundo caminho, é a mudan-

ça na composição da demanda doméstica– redução da fração dos gastos domésticosatendida por importações e aumento dafração das exportações na produção agre-gada – que promove o reequilíbrio nascontas externas.

Num regime de câmbio flutuante, ad-mite-se que a mudança na taxa de câm-bio, ao alterar os preços relativos entrebens transacionáveis (isto é, aqueles pas-síveis de exportação e importação) e nãotransacionáveis, seria o instrumento queinduziria uma mudança na composiçãodos gastos agregados, realizando assim oajustamento através do segundo cami-nho. Num regime de câmbio permanente-mente fixo, ao contrário, o ajustamentodeveria ocorrer fundamentalmente peloprimeiro caminho, exceto no caso de umaeconomia dotada de alta flexibilidade depreços e salários. Neste último caso, redu-ções de preços e salários nos setores pro-dutores de bens transacionáveis tambémpoderiam constituir um caminho de corre-ção de um déficit no balanço de paga-mentos.

O AJUSTAMENTO DO BALANÇO DE PAGAMENTOS

BO

X2

3.1

23.2. A EXPERIÊNCIA HISTÓRICA DE REGIMES

DE CÂMBIO FIXO E FLUTUANTE

A ordem monetária internacional sofreu grandes mudanças ao longo do século XX, tendo sido experi-mentados não só os regimes extremos de câmbio fixo e flutuação pura, mas também um amplo leque deregimes intermediários. Entre estes podemos distinguir os regimes de câmbio fixo ajustável, o de craw-ling peg (ou regime de minidesvalorizações), as bandas cambiais, o sistema de zonas-alvo e a flutuaçãosuja sem metas cambiais. Comecemos por examinar os dois casos puros, a partir dos quais podemos de-rivar todos os demais.

23.2.1. TRÊS ROUPAGENS PARA O CÂMBIO FIXO: PADRÃO-OURO,

CONSELHO DA MOEDA E UNIÃO MONETÁRIA

Entre as experiências de câmbio fixo com propósito permanente, podemos destacar o padrão-ouro in-ternacional (1873-1913; 1925-1931) e os experimentos de conselho da moeda (currency board) em paí-ses como Argentina (desde 1991), Hong Kong (desde 1983) e Estônia (desde 1993). Mais recentementetemos o caso da criação do euro, resultado de uma união monetária, em 1999, através do estabelecimen-to de paridades irrevogáveis entre 11 moedas europeias.

A fase mais bem-sucedida do padrão-ouro internacional durou quatro décadas e encerrou-se com adeflagração da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Neste período o comércio internacional e os fluxosfinanceiros internacionais passaram por uma expansão extraordinária, impulsionados pela redução dasrestrições aos movimentos de mercadorias, serviços e capitais entre os países, num ambiente de estabi-lidade cambial propiciado por aquela ordem monetária internacional (ver Box 23.2). A tentativa de ree-dição da experiência do padrão-ouro nos anos 20 foi entretanto malsucedida, tendo sido particularmen-te traumática para a Inglaterra, que sofreu um forte processo recessivo na segunda metade da década eacabou por abandonar aquele regime, pondo fim à ordem monetária até então por ela defendida, a partirde 1931.

Uma das razões primordiais para o fracasso do padrão-ouro na sua segunda edição foi que este tipode arranjo monetário internacional só pode ter sucesso num ambiente histórico especial, em que os go-vernos colocavam a sustentação da paridade de suas moedas como prioridade macroeconômica, e emfunção disso praticavam políticas econômicas convergentes entre si. Na ausência de convergência daspolíticas macroeconômicas, os países poderiam ter taxas de inflação muito diferentes, o que levaria auma perda de competitividade daqueles cujos preços subissem a um ritmo mais elevado. Os déficitscrônicos e crescentes no balanço de pagamentos dos países mais inflacionários acabariam então por in-viabilizar a manutenção das taxas de paridade fixas. Da mesma forma, políticas de juros muito diferen-ciadas levariam também a grandes fluxos de capitais em direção aos países que mantivessem juros maiselevados, podendo minar, igualmente, as bases das paridades fixas. Foi o compromisso de praticar polí-ticas domésticas, sobretudo políticas monetárias, harmônicas, que teria viabilizado uma operação razoa-velmente bem-sucedida da ordem internacional sob o padrão-ouro. No próximo capítulo veremos osfundamentos teóricos que justificam este tipo de argumento.

Na atualidade o arranjo cambial e monetário que mais se aproxima do padrão-ouro é o adotado porpaíses que instituíram os chamados conselhos da moeda (currency boards). Três regras principais ca-racterizam os regimes baseados em conselhos da moeda: a paridade fixa permanente entre a moeda na-cional e uma moeda estrangeira (em geral, o dólar ou o marco alemão), a constituição prévia de um las-tro em divisas para o estoque da base monetária e a determinação de que o Banco Central só pode emitirmoeda para comprar reservas internacionais (o que garante a manutenção do lastro). Em consequênciadessas regras, toda vez que há um excesso de demanda de moeda estrangeira no mercado de câmbio, oBanco Central é obrigado a vender parte de suas reservas (para manter a paridade fixa) em troca damoeda doméstica, produzindo assim uma contração monetária. O inverso ocorreria quando um excesso

Regimes Cambiais 343

de oferta de dólares fosse observado. Em suma, neste modelo a quantidade de moeda na economia é de-terminada pelos fluxos de oferta e demanda de moeda estrangeira, ou seja, pelo saldo total do balançode pagamentos.

O objetivo principal da adoção de currency boards na atualidade tem sido o de importar a credibili-dade de uma moeda estrangeira que serve de âncora para a estabilidade dos preços domésticos. Daí quetem sido adotado em casos de problemas de falta extrema de credibilidade na moeda nacional e na con-dução da política monetária doméstica. Com a adoção deste regime, substitui-se o manejo discricioná-rio da política monetária por parte das autoridades econômicas pelo piloto automático do mecanismode criação e destruição de moeda através do balanço de pagamentos. Além disso a conversibilidade ple-na, a uma paridade fixa, da moeda local em dólar, contribui para que seja indiferente (pelo menos nocurto prazo), para o público, reter uma ou outra moeda, e, dessa forma, promove a importação de credi-bilidade. No caso mais extremo, pode-se evoluir para a dolarização, por meio da substituição completada moeda doméstica pela moeda estrangeira, como se verificou no Equador no ano 2000.

Um inconveniente importante dos regimes de conselho da moeda ou da dolarização é que o gover-no perde importantes graus de liberdade para a execução da política econômica, na medida em que es-ses regimes impõem a disposição para renunciar ao exercício de políticas monetária e cambial indepen-dentes. No que se refere à política monetária, se de um lado a ausência de autonomia pode ser vistacomo uma virtude – erros e manejos inadequados são impedidos, o que pode conferir credibilidade àmoeda e permitir a redução dos juros –, por outro impede também o bom manejo dos instrumentos mo-netários como meio de estabilizar os ciclos econômicos. No que se refere à política cambial, o principalproblema é que ancorar a moeda doméstica no dólar, por meio de uma paridade fixa, significa simulta-neamente ter uma taxa de câmbio que flutua conjuntamente com a moeda-âncora diante das demais uni-dades monetárias.

344 Regimes Cambiais ELSEVIER

Pode-se considerar que um país havia aderidoao padrão-ouro quando adotava um conjuntode regras monetárias, entre as quais pode-sedestacar: a fixação de uma paridade oficial desua moeda em termos do ouro; a garantia daconversão da moeda doméstica em ouro à pari-dade fixada; a manutenção de um lastro emouro para o estoque de moeda emitido peloBanco Central; e a liberdade para transaçõescom o resto do mundo e particularmente para aexportação privada de ouro. A instituição dopadrão-ouro internacional pode ser datada dadécada de 1870, quando uma massa crítica depaíses adotou suas regras. Supostamente, apartir de então a economia internacional pas-sava a contar com mecanismos automáticos deajustamento a desequilíbrios do balanço de pa-gamentos. O principal deles – denominado pri-ce-specie-flow – foi descrito por David Humemais de um século antes. De acordo com ele,países deficitários sofreriam perda de ouroatravés de seus balanços de pagamentos, o quereduziria o estoque de moeda doméstica, oca-sionando uma queda geral de preços. Esta que-da de preços aumentaria a competitividade ex-terna da economia, reduzindo seu déficit até

que este desaparecesse. Um processo simétricoocorreria com as economias superavitárias. Porsuposto, as economias envolvidas deveriamapresentar diversas propriedades – como a flexi-bilidade de preços e salários, a estabilidade dafunção de demanda por moeda etc. – para que omecanismo de ajustamento funcionasse confor-me o previsto. Além disso seria necessário queas autoridades monetárias não esterilizassem osefeitos monetários do balanço de pagamentos.Essa era uma das chamadas regras do jogo dopadrão-ouro, que deveriam garantir um meca-nismo suave (via variações de preços e fluxosmonetários entre os países) e simétrico de ajus-tamento dos balanços de pagamentos de paísesdeficitários e superavitário. Os críticos do pa-drão-ouro, por outro lado, apontaram muitosdefeitos neste regime. Mostraram que, na práti-ca, havia grande assimetria nos processos deajustamento entre superavitários (que nem sem-pre seguiam as regras do jogo) e deficitários,bem como entre centros financeiros e a perife-ria, além do fato de que os ajustamentos fre-quentemente se davam por meio de processosrecessivos e não pelo processo indolor de ajustesde preços.

AS REGRAS DO JOGO DO PADRÃO-OURO

BO

X2

3.2

A renúncia ao uso do instrumento cambial, e a consequente adesão às flutuações da moeda-âncoranão seriam inconvenientes graves para economias homogêneas, sujeitas a choques externos semelhan-tes e com ciclos econômicos sincronizados. Em tais condições, uma desvalorização (ou apreciação)cambial da moeda âncora diante das moedas do resto do mundo, motivada, por exemplo, por um cho-que externo, seria uma resposta adequada para a situação de ambas as economias. No entanto, havendoheterogeneidade estrutural e assincronia de movimentos cíclicos, a moeda ancorada pode ser levada auma apreciação ou desvalorização em função da realidade da economia-âncora, mas em conflito com assuas próprias necessidades. Uma boa ilustração desse problema é fornecida pelo caso do peso argentinono período do chamado Plano de Conversibilidade (1991-2001). Como a moeda Argentina estava atre-lada ao dólar mediante uma paridade fixa de 1 para1, sofreu uma forte apreciação diante das moedas eu-ropeias e ao iene nos anos de 1998-99 – exatamente num período em que a Argentina estava incorrendoem elevados déficits comerciais, que exigiam a desvalorização cambial como mecanismo de correção,conforme mostra o Gráfico 23.1.

No início da década de 1960, Robert Mundell, que veio a ganhar o prêmio Nobel de economia de1999 por este trabalho, escreveu um artigo pioneiro que deu origem a uma literatura voltada para a dis-cussão das condições que tornariam vantajoso para dois ou mais países adotar uma moeda única, bemcomo para um país isolado aderir à moeda de um outro país ou a uma área monetária. O tema ficou co-nhecido como teoria das áreas monetárias ótimas. A questão central é que, se por um lado há ganhosem adotar uma taxa de câmbio fixa (e no limite uma moeda única) para uma área constituída por váriospaíses (ou regiões), há também perdas, das quais a mais importante é a abdicação do uso das políticasmonetária e cambial por cada país individualmente. E a renúncia a esses instrumentos de política eco-nômica tende a implicar custos elevados em termos de perda de produção e emprego derivados quandose faz necessário um ajustamento do balanço de pagamentos. Um dos pontos da teoria é que quantomaior a heterogeneidade das economias envolvidas e quanto menor o seu grau de abertura, maiores se-rão os custos da unificação monetária. O referido exemplo da Argentina ilustra este ponto.

Os países europeus que em janeiro de 1999 aderiram à moeda comum – o euro – começaram algunsanos antes um processo de harmonização de suas políticas cambiais, monetárias e fiscais, e para isso es-tabeleceram, no âmbito do Tratado de Maastricht, de dezembro de 1991, metas comuns a serem atingi-das em termos de déficits, dívidas públicas e taxas de inflação. Portanto, antes mesmo de chegar à moe-

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Índice

Déficit Conta-corrente Índice Taxa de Câmbio

GRÁFICO 23.1Índice da Taxa de Câmbio Efetiva do Peso-Dólar e o Déficit em Conta-corrente da ArgentinaNota: A taxa de câmbio está expressa conforme convenção aqui adotada (valor da moeda estrangeira em moedadoméstica) de forma que a queda do índice indica uma apreciação cambial. A ponderação das diferentes moedaspara o cálculo da taxa efetiva tomou como base as participações das respectivas economias no comércio exteriornorte-americano.Fonte: Federal Reserve Board e CEPAL, Balance Preliminar de la Economia Latinoamericana en 1999.

da única começaram a abdicar de suas independências em termos de política econômica. No caso des-ses países, no entanto, não apenas o custo da unificação monetária era relativamente reduzido, devidoao elevado grau de integração comercial entre eles (embora houvesse diferenças grandes entre os paísesda região neste aspecto) como também pelos ganhos econômicos e políticos esperados a partir da unifi-cação.

23.2.2. A FLUTUAÇÃO NO MUNDO REAL

A experiência do euro é importante, entre outras razões, por envolver um conjunto de economias cujoproduto interno bruto tem uma dimensão próxima do norte-americano. Ainda assim, é uma escolha re-gional, em um mundo caracterizado por diferentes graus de flexibilidade cambial. Em particular, a rela-ção entre os três principais blocos econômicos – a Europa, os Estados Unidos e o Japão – tem sebaseado no regime de taxas flutuantes desde 1973. Porém, apesar de sua longa duração, a experiênciamundial de flutuação cambial não tem sido capaz de criar um ambiente monetário internacional estável,como propunham alguns dos defensores históricos deste regime. Isto levou a que frequentemente os go-vernos não aceitassem deixar o mercado funcionar inteiramente livre na determinação da taxa de câm-bio, como no modelo acima exposto.

Em um artigo clássico, Milton Friedman defendeu o uso de taxas de câmbio perfeitamente flexí-veis, sob o argumento de que num regime como este as taxas de câmbio só seriam instáveis se as políti-cas macroeconômicas dos países envolvidos o fossem.1 As taxas de câmbio de cada país refletiriam, naconcepção de Friedman, seus fundamentos macro e microeconômicos. Assim, uma apreciação cambialresultaria seja de uma expansão monetária mais lenta do que a do resto do mundo, seja de uma elevaçãoda produtividade acima da dos parceiros comerciais. Em ambos os casos, a mudança cambial seriabem-vinda por promover uma adaptação necessária à nova situação.

A experiência mundial com a flutuação mostrou um quadro bem diferente do antevisto por Fried-man, embora também não tenha confirmado as previsões mais pessimistas de seus opositores. O Grá-fico 23.2, a seguir, mostra a evolução do dólar diante de uma cesta de moedas de 1973 a 2000. Obser-ve que, como o gráfico expressa a evolução do valor do dólar em termos de outras moedas, uma ele-vação do índice indica uma desvalorização destas e uma apreciação da moeda norte-americana. Aevolução do valor do dólar parece se dar sobre uma montanha-russa. Não apenas a volatilidade –isto é, as variações frequentes independentes da tendência – é muito grande, mas também é difícilidentificar uma tendência – ou valor de equilíbrio – da qual a taxa de câmbio não se afastasse muitosem ser novamente atraída em sua direção. A fase que mais chama a atenção corresponde aos anos80. Na primeira metade da década, quando os Estados Unidos deixaram sua moeda flutuar de formainteiramente livre – ao mesmo tempo que praticaram uma particular combinação de política fiscalexpansionista e monetária contracionista –, o dólar teve uma valorização de 50%, inteiramente re-vertida nos dois anos seguintes.

A década de 1990 também mostrou grandes mudanças cambiais, dificilmente justificáveis porfundamentos econômicos. As outras duas moedas mais importantes nas transações internacionais – oiene e o euro – chegaram a ter seu valor modificado em até 70% entre picos e vales, como mostra oQuadro 23.1.

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1. O artigo de Friedman, de 1953, é intitulado “The Case for Flexible Exchange Rates”. O autor defende este regime tambémpor ser o arranjo cambial compatível com sua proposta de política monetária nacional baseada em metas monetárias (ver o Ca-pítulo 9). Um outro aspecto de sua defesa do regime de taxas flexíveis que ganhou notoriedade foi o argumento de que a espe-culação nos mercados cambiais seria estabilizadora, ao contrário do que diziam seus críticos. Portanto, mantida uma políticamonetária conduzida através de regras estáveis, a taxa de câmbio seria igualmente estável.

QUADRO 23.1Variações Cambiais entre Picos e Vales, para Médias Mensais das Taxas de Câmbio

Intervalo Temporal Marco/US$ (Variação %) Intervalo Temporal Ienes/US$ (Variação %)

03/90-02/91 –13 01/90-04/90 9

02/91-07/91 21 04/90-11/90 –18

07/91-09/92 –19 11/90-06/91 8

09/92-07/93 18 06/91-04/95 –40

07/93-07/95 –19 04/95-08/98 73

07/95-08/97 33 08/98-04/00 –27

08/97-10/98 –11

10/98-04/00 26

Fonte: Federal Reserve Board.

A instabilidade e o desalinhamento das taxas de câmbio das principais moedas levaram, em mo-mentos críticos, a algumas iniciativas de coordenação por parte de suas autoridades monetárias, com oobjetivo de conter movimentos ou tendências que constituíam ameaças muito grandes às economias deseus países e mesmo à ordem internacional. Os principais acordos neste sentido foram o acordo do Pla-za, em 1985, para promover a queda do dólar, e o do Louvre, em 1987, para deter a queda do dólar. Nosanos 90, obteve grande divulgação na imprensa uma intervenção conjunta dos bancos centrais dos Esta-dos Unidos e do Japão, para evitar uma desvalorização adicional do iene em 1997, pois esta poderiaprovocar uma ampliação e alastramento da crise asiática.

Em suma, a experiência internacional com a flutuação cambial tem evidenciado uma reduzida efi-cácia dos mercados para estabilizar a taxa de câmbio e colocá-la, de forma sustentada, em um nível quese pudesse considerar como de equilíbrio.

23.2.3. ENXUGANDO O NÚMERO DE MOEDAS NO MUNDO?

Apesar das críticas e das experiências problemáticas com os dois regimes extremos, na segunda metadeda década de 1990 começou a se difundir a ideia de que havia uma tendência geral para a adesão a um

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GRÁFICO 23.2Índice da Taxa de Câmbio Efetiva do Dólar? Principais Moedas, 1973-2000Nota: O índice de moedas principais é uma média ponderada dos valores externos do dólar americano contra umsubconjunto de moedas no índice amplo que circulam amplamente fora do país de emissão. Os pesos são deriva-dos daqueles no índice amplo.Fonte: Federal Reserve Board.

dos dois regimes cambiais extremos. A proposição básica a este respeito é que em um mundo globaliza-do, com grande mobilidade internacional de capitais, desaparece o espaço para uma convivência está-vel com regimes intermediários. Estes regimes seriam, segundo o argumento, tentativas de atingirobjetivos inconciliáveis – autonomia monetária local e estabilidade cambial – em um mundo onde a in-tegração financeira é muito grande e os capitais movem-se livremente entre as fronteiras. Nessas cir-cunstâncias, os regimes de câmbio intermediários seriam altamente sujeitos a ataques especulativos.

Uma ideia correlata à anterior é aquela de que o número de moedas no mundo tende a se reduzir aalgumas poucas moedas fortes que, estas sim, manteriam um regime de flutuação pura entre si. Sinteti-camente, uma ordem monetária internacional seria construída a partir de uma peculiar combinação dosdois regimes cambiais extremos. De um lado, a maioria dos países partiria para a solução mais radicalem termos de paridade fixa, que seria a adesão a uma união monetária ou a simples adoção de uma dastrês moedas fortes destinadas a sobreviver independentemente: o dólar, o marco e o euro. De outro lado,as três moedas fortes flutuariam livremente entre si.

A proposta de enxugamento do número de moedas no mundo tem também sofrido objeções porparte de economistas influentes, como James Tobin e Paul Krugman. Um dos argumentos contráriosconsiste em que, se por um lado a globalização aumenta os custos de manutenção de uma moeda pró-pria, por outro lado ela também reduz os custos de transação associados seja às operações cambiais àvista, seja à proteção contra flutuações futuras (o custo do hedge). Mesmo para os países pequenos háargumentos em favor da manutenção de moedas nacionais. Tobin, por exemplo, destaca que, ao contrá-rio do que se verifica entre os países europeus, os grandes bancos centrais não levarão em conta, nassuas decisões, as condições e interesses dos satélites. Haveria pois que se preservar a possibilidade deum mínimo de autonomia para as políticas econômicas nacionais. Mas reconhecendo as dificuldadespara fazê-lo, no atual contexto da economia mundial globalizada, propõe que se crie alguma fricção nosmercados e nas instituições financeiras internacionais. Um imposto sobre as transações cambiais (pro-posta que ficou conhecida como “imposto Tobin”) deveria ser criado com este objetivo.

23.3. REGIMES CAMBIAIS INTERMEDIÁRIOS

Apesar da moda entre os analistas da economia internacional, na virada do século XX para o XXI, ser aadoção de um dos dois regimes cambiais extremos e a drástica redução do número de moedas no mun-do, a realidade encontra-se ainda bastante distante de tais proposições. Uma grande parte das econo-mias possui arranjos cambiais intermediários entre os dois casos puros. Segundo o levantamento doFundo Monetário Internacional, divulgado no periódico International Financial Statistics, metade depouco mais de 180 economias acompanhadas tinham, em 1999, regimes cambiais intermediários, es-tando a outra metade dividida quase que ao meio entre as adeptas de paridades fixas e aquelas que se-guem a flutuação. Cabe considerar, entretanto, que nem todos os regimes classificados como flutuantesconstituem casos de flutuação pura, sem intervenções das autoridades monetárias, da mesma maneiraque sob a classificação de regimes de câmbio fixo estavam economias que haviam desvalorizado suasmoedas nos últimos 10 anos.

Em suma, os regimes cambiais intermediários continuam sendo uma realidade importante no mun-do contemporâneo e provavelmente continuarão a sê-lo por muito tempo. Tais arranjos constituem di-ferentes modalidades de câmbio fixo ajustável e de flutuação suja ou administrada. Vejamos então, deforma sintética, quais são as formas mais comuns de soluções intermediárias e suas características.

O experimento mais importante, seja pela sua abrangência em termos do número de países adeptos,seja pela sua duração, foi o regime de câmbio fixo ajustável de Bretton Woods. Através de um acordoengenhoso, costurado principalmente a partir das negociações entre Estados Unidos e Inglaterra duran-te a Segunda Guerra Mundial, os termos da Ordem Monetária Internacional, firmados na conferência deBretton Woods, em 1944, visavam a conciliar um mundo com estabilidade cambial, autonomia dos es-tados nacionais para perseguir suas metas macroeconômicas próprias e liberdade cambial (conversibi-lidade, o que traria consigo, com o tempo, grande mobilidade de capitais). O equilíbrio entre esses três

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objetivos foi possível de ser mantido por 25 anos (1946-71), durante os quais o mundo viveu uma fasede grande prosperidade e estabilidade. Mas o equilíbrio era frágil e dependente de circunstâncias espe-cíficas que desapareceram, dando lugar a uma crise do sistema. Mais adiante, ao estudar o modelo Mun-dell-Fleming, veremos as razões pelas quais esses três objetivos são teoricamente inconsistentes.

As principais características da ordem de Bretton Woods foram: padrão-dólar, com todas as moe-das mantendo uma paridade fixa com a moeda norte-americana, e esta com o ouro. A defesa das parida-des pelos bancos centrais era feita mediante a compra e venda de moeda nacional com dólares. Os Esta-dos Unidos (e também a Grã-Bretanha) intervinham no mercado privado de ouro (até 1968) para man-ter a cotação do dólar em ouro no nível da paridade oficial. Os bancos centrais do mundo podiam, alémdisso, solicitar ao governo dos Estados Unidos a conversão de seus estoques de dólar em ouro. O câm-bio era fixo, porém ajustável. Assim o ajustamento de balanços de pagamentos poderia ser feito pordesvalorizações cambiais (acertadas com o FMI, sempre que superassem 10%) quando os desequilí-brios fossem considerados fundamentais, isto é, quando não pudessem ser corrigidos por intermédiodas demais políticas macroeconômicas, sem um afastamento importante e permanente do equilíbrio in-terno. As reservas e empréstimos do FMI seriam usados para financiar desequilíbrios temporários.

As paridades fixas do regime de Bretton Woods passaram a ser alvo de crescentes ataques especu-lativos no final dos anos 60 e início dos anos 70, tornando cada vez mais difícil a administração da or-dem internacional. Além disso os Estados Unidos mostravam-se cada vez menos dispostos a abrir mãode interesses econômicos nacionais em prol de políticas e regras destinadas a preservar a ordem mone-tária internacional baseada em sua moeda. A decisão do presidente Nixon de suprimir a conversibilida-de oficial do dólar em ouro marcou o fim da era de Bretton Woods. Depois de uma transição curta(agosto de 1971 ao início de 1973) em que a ordem monetária anterior foi substituída por um pa-drão-dólar não-ancorado no ouro, as relações monetárias internacionais passaram a se basear num regi-me de flutuação cambial, ora pura, ora (mais frequentemente) suja.

Uma variante do regime de câmbio fixo ajustável, em que as mudanças na taxa de câmbio são feitascom frequência e, em geral, obedecendo a determinada regra (explícita ou implícita), é o sistema de mi-nidesvalorizações, internacionalmente conhecido pela expressão crawling peg, de difícil tradução. Estetipo de arranjo cambial foi muito usado por países com inflação alta, constituindo um método para tentarcompatibilizar a convivência de preços em alta com a sustentação da competitividade da produção do-méstica em relação ao resto do mundo. Para entendê-lo, considere o índice ki, na expressão abaixo, quecompara o preço de um produto estrangeiro (Pie) ao de um similar doméstico (Pid), ambos medidos namesma moeda (o real). Recorde que, dada nossa definição para a taxa de câmbio (o “preço” da moeda es-trangeira), o preço em reais de um produto estrangeiro equivale ao seu preço em dólar multiplicado pelataxa de câmbio (Pie

R$ = PieUS$ x E). Podemos escrever então:

ki = PieR$ / Pid

R$ = (PieUS$ × E) / Pid

R$ (2)

Se o preço do produto i no mercado doméstico está subindo em linha com a inflação do país (superior,por hipótese, à externa) o índice k, que mede a relação entre o preço do produto externo e o nacional estarácaindo, indicando que o produto estrangeiro está se barateando relativamente, o que implica uma perda decompetitividade para o similar nacional. Uma elevação proporcional da taxa de câmbio (isto é, uma des-valorização cambial) manteria a k constante, preservando a competitividade externa do bem doméstico.

Se generalizarmos a fórmula acima para o conjunto dos bens e serviços produzidos pela economia,teremos:

k = (PeUS$ × E) / Pd

R$ (3)

onde Pe e Pd são, respectivamente, índices de inflação externa e doméstica.A variável k representa a taxa de câmbio real da economia. Uma alta do índice de preços domésti-

cos, compensada por uma elevação equivalente da taxa de câmbio, manteria então constante a taxa de

Regimes Cambiais 349

câmbio real e preservaria a competitividade externa da economia. Esta a razão pela qual este tipo de sis-tema desenvolveu-se em países com inflação alta, entre os quais o Brasil.

Cabe chamar a atenção, no entanto, para o fato de que por trás de um mesmo sistema formal de peque-nas desvalorizações periódicas, podem se encontrar dois tipos de política cambial bastante distintos. Oprimeiro deles corresponde às minidesvalorizações passivas, em que as mudanças na taxa de câmbio, porparte das autoridades, apenas refletem, passivamente, a inflação passada. Neste caso, o objetivo da políti-ca é apenas acomodar o câmbio de forma a permitir uma convivência pacífica da economia com a inflaçãoalta. O segundo caso corresponde ao sistema de minidesvalorizações ativas, em que variações da taxa decâmbio em geral se dão por magnitudes constantes, desvinculadas da inflação passada. O objetivo destapolítica é usar a taxa de câmbio como uma âncora para a estabilização progressiva dos preços domésticos.Para tanto, pode-se adotar o procedimento de fazer um anúncio explícito das desvalorizações futuras(como, por exemplo, as tablitas empregadas nos países do Cone Sul, em finais da década de 1970 e inícioda de 1980) ou simplesmente fazer a política sem anunciá-la, como no caso brasileiro de 1996 a 1998.

Em qualquer dos procedimentos, entretanto, é importante destacar que um regime de minidesvalo-rizações tem propriedades que o tornam mais semelhante a um regime de câmbio fixo do que a um regi-me flutuante, mesmo quando as desvalorizações se tornam muito frequentes (e, como em certos perío-dos, no Brasil, mesmo diárias). Isto porque sob este arranjo cambial é o Banco Central quem fixa a taxade câmbio (mesmo que diariamente) e, para manter o nível fixado, se obriga a comprar ou vender, pas-sivamente, moeda estrangeira àquele preço de forma a nivelar a demanda e a oferta de divisas. Nessascircunstâncias, as relações entre o mercado monetário e o mercado cambial, bem como entre juros in-ternos e externos, guardam maior proximidade com aquelas observadas sob um regime de paridadefixa. É verdade, contudo, que no que se refere ao ajustamento do balanço de pagamentos, tanto esta re-gra, quanto a do câmbio fixo ajustável têm em comum com o regime de flutuação a possibilidade de queo câmbio (e não apenas as políticas de controle da demanda) funcione como mecanismo de correção dedesequilíbrios externos.

Numa escala de flexibilização dos regimes cambiais, o degrau seguinte corresponderia ao sistemade bandas de flutuação. Este arranjo institucional, ao contrário do anterior pode ser caracterizado comoum sistema misto entre os dois extremos. É um regime em que há uma paridade central e um intervalode flutuação. Nele, o Banco Central tem obrigação de intervir apenas quando a taxa de mercado atingeas extremidades da banda. No interior do intervalo, é o mercado que determina a taxa de câmbio. Umadas consequências deste tipo de regra é que, dentro de certos limites, o ajuste entre oferta e demanda demoeda estrangeira (isto é, a correção de um desequilíbrio do balanço de pagamentos) é feito através deuma mudança de preços relativos (isto é, da taxa de câmbio) promovida pelo mercado, e sem impactar aoferta de moeda doméstica. Uma segunda característica importante é que se introduz um risco cambialpara o especulador, na medida em que a taxa de câmbio pode variar em qualquer direção. Este risco étanto maior quanto mais ampla é a banda de flutuação, o que pode inibir (no caso de bandas suficiente-mente largas) os movimentos de ataques especulativos contra a moeda doméstica.

Uma experiência importante com o regime de bandas foi a do Sistema Monetário Europeu antesda introdução do euro. Quando o SME foi criado, em 1979, as bandas eram relativamente estreitas –de 2,25% para cima e para baixo (sendo a paridade central ajustável) – exceto para a Itália e para osdois países que aderiram tardiamente – a Inglaterra e a Espanha – com uma banda de 6% para cima epara baixo. Depois da crise cambial que atingiu o SME em 1992, decidiu-se elevar (em 1993) a am-plitude das bandas para 15%, tanto no sentido ascendente quanto descendente, ou seja, o intervalo deflutuação subiu para 30%, o que contribuiu para evitar novos ataques especulativos. A experiência éconsistente com a hipótese de que quanto mais ampla a banda, menores os riscos de ataques especula-tivos. É verdade, contudo, que à medida que a amplitude da banda cresce, mais este sistema perde suaidentidade como arranjo intermediário e mais se assemelha à flutuação propriamente dita.

Uma regra cambial ainda mais próxima do regime de flutuação consiste na instituição de zo-nas-alvo. Neste caso há um intervalo de flutuação sem limites rígidos, e geralmente não anunciado. Porfim, se o governo deixa de ter qualquer pretensão de influir no nível da taxa de câmbio, então teremosdado um passo além e chegado ao regime de flutuação administrada ou flutuação suja, sem metas. Tra-

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ta-se de uma situação próxima ao da flutuação pura, em que o Banco Central intervém basicamente paraevitar volatilidade excessiva da taxa de câmbio. A diferença básica entre os proponentes de zonas-alvoe da flutuação suja sem metas é que os primeiros consideram que o regime de câmbio flutuante produznão apenas muita volatilidade, mas também desalinhamentos prolongados ou mesmo permanentes dataxa de câmbio, o que justifica a intervenção do Banco Central no mercado de câmbio para influir sobreo nível da taxa de câmbio.

RESUMO

Neste capítulo introduziu-se o conceito de economia aberta. Ao adotar esta perspectiva, a análise da política mo-netária requer que se tenha em conta a compra e venda de moedas estrangeiras, isto é, o mercado de câmbio. Ocomportamento do mercado cambial está subordinado, antes de mais nada, ao regime cambial vigente em cadaeconomia. Discutimos os tipos “puros” de regime cambial, o de taxas de câmbio fixas e imutáveis e a livre flutua-ção. Foram examinadas as formas que o regime de câmbio fixo assumiu na história econômica moderna, do pa-drão-ouro ao conselho da moeda. Em seguida, examinamos as condições de operação de regimes cambiais quecombinam características dos dois regimes extremos, discutindo as linhas gerais do sistema adotado na conferên-cia de Bretton Woods, em 1944 e do Sistema Monetário Europeu.

TERMOS-CHAVE

� Regime Cambial� Taxa de Câmbio� Câmbio Fixo� Padrão-ouro Internacional� União Monetária� Minidesvalorizações� Zona-Alvo

� Mercado de Câmbio� Flutuação Pura� Ajuste do Balanço de Pagamentos� Conselho da Moeda� Área Monetária Ótima� Banda de Flutuação� Flutuação Suja

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

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original, 1983).

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MOEDA, CÂMBIOE POLÍTICA ECONÔMICAEM UMA ECONOMIA ABERTA

INTRODUÇÃO

Quando o Comitê de Política Monetária (COPOM) do Brasil se reúne para decidir o nívelda taxa de juros básica, um dos fatores que maior influência costuma ter em suas decisõesé o comportamento da economia internacional, e em particular as variações nas taxas dejuros externas. A crescente integração financeira internacional faz com que o comporta-mento dos mercados domésticos, tanto os de bens e serviços como o monetário, recebam ainfluência das condições internacionais através do mercado de câmbio.

Portanto, enquanto na economia fechada, estudada em outros capítulos, a taxa de ju-ros é determinada no mercado monetário doméstico, através da interação da política doBanco Central com o mercado, na economia aberta ela estará sujeita a outras injunções.Neste capítulo, estudaremos as relações entre o mercado monetário e o cambial – e, espe-cificamente, entre a determinação da taxa de juros e de câmbio – sob diferentes arranjosinstitucionais.

A ferramenta analítica mais popular entre os economistas para lidar com os fenôme-nos macroeconômicos numa economia comercial e financeiramente aberta ao resto domundo é o modelo Mundell-Fleming. Este modelo, desenvolvido, no início da década de1960 pelos economistas Robert Mundell e J. Marcus Fleming, trata da determinação darenda e do emprego numa economia aberta, com mobilidade de capitais, em particularcom câmbio flutuante, examinando os efeitos das políticas monetária e fiscal neste con-texto. A representação mais típica deste modelo integra a análise do balanço de pagamen-tos ao modelo IS-LM. Apesar de limitado, sobretudo por algumas hipóteses muito fortes,o modelo é ao mesmo tempo simples e fornece alguns insights bastante importantes, nemsempre intuitivos, sobre o comportamento de uma economia aberta. A noção de que umaumento do déficit fiscal pode fortalecer a moeda de um país, por exemplo, é uma dessasconclusões do modelo que servem para explicar circunstâncias históricas específicas –embora seja, para muitos, contrária à intuição econômica.

Com o predomínio crescente das transações de capital sobre as transações correntes, omercado de câmbio passou a ser cada vez mais tratado como o local onde se transacionammoedas que são compradas e vendidas como ativos financeiros. A abordagem do mercadodos ativos, embora remonte a Keynes, no seu Tratado sobre a Reforma Monetária, de1923, ganhou peso como ferramenta de análise das relações entre juros e câmbio num pe-ríodo mais recente. Em certo sentido, ela complementa o modelo Mundell-Fleming, so-

CAPÍTULO

24

bretudo por dar conta de fenômenos importantes no mundo contemporâneo que não cabem nas premis-sas estreitas daquele modelo, em sua versão mais simples. Por essa razão este capítulo tratará de ambasas abordagens.

24.1. RELAÇÕES BÁSICAS ENTRE O MERCADO

DE CÂMBIO E O MERCADO MONETÁRIO

Um passo prévio ao estudo dos modelos que tratam a economia monetária aberta deve ser o estabeleci-mento das relações entre o balanço de pagamentos e as variáveis macroeconômicas básicas para o estu-do do mercado monetário (a taxa de juros, i, e o nível de renda, Y). Para tanto, considere inicialmente aequação fundamental do balanço de pagamentos:

�R = BP = TC + K (1)

Esta equação estabelece que o saldo global do balanço de pagamentos (BP) é igual à soma do saldoem transações correntes (TC) com o saldo da conta de capital (K) na economia. O saldo global do balan-ço de pagamentos é igual à variação das reservas (�R), que, num regime de câmbio fixo, variam passi-vamente para compensar qualquer desequilíbrio entre oferta e demanda de divisas – associado aos re-sultados das contas-correntes e de capital. Já num regime de câmbio flutuante puro, o Banco Centralnão usa reservas para intervir no mercado de câmbio, de maneira que o resultado global do balanço depagamentos (igual à variação das reservas) é zero.

Sempre que o Banco Central usar suas reservas para intervir no mercado de câmbio estará sendo es-tabelecida uma conexão entre o balanço de pagamentos e a oferta monetária doméstica. Isto porque aocomprar moeda estrangeira no mercado, para incorporar às suas reservas, o Banco Central entrega moe-da doméstica em pagamento – e toda vez que moeda doméstica sai dos cofres (ou das contas) do BancoCentral para o público, há uma expansão da base monetária. Por outro lado, sempre que o Banco Centralvende dólares no mercado de câmbio, ele está retirando moeda doméstica de circulação e, portanto, estáhavendo uma contração da base monetária.

A relação entre os mercados de câmbio e monetário, que acabamos de introduzir no parágrafo acima,pode ser agora apresentada de maneira um pouco mais formal, através do exame do balancete do BancoCentral, apresentado no Quadro 24.1, numa versão mais condensada do que a do Capítulo 2. Há dois con-juntos de contas nesse demonstrativo contábil: as do passivo, que discriminam as fontes de recursos à dis-posição da instituição, e as do ativo, que compreendem as aplicações destes recursos. No que se refere aopassivo, as fontes de recursos são agrupadas em duas categorias: a base monetária (B), que corresponde àcriação primária de moeda pelo Banco Central e os recursos não monetários (RNM), que englobam, gros-so modo, os empréstimos tomados pelo Banco Central no país (por exemplo, via colocação de títulos deemissão própria) e no exterior. Quanto às contas do ativo, por força de sua função legal, o Banco Centralemprega seus recursos de duas maneira básicas: na compra de moeda estrangeira (reservas internacionais,RR$) e na concessão de crédito doméstico (CD), seja ao governo (carteira de títulos do Tesouro), seja aosetor financeiro (redesconto e outros empréstimos às instituições financeiras).

QUADRO 24.1Balancete Simplificado do Banco Central

Ativo Passivo

Reservas (RR$)

Crédito Doméstico (CD)

Crédito ao Governo

Crédito às Inst. Fin.

Base Monetária (B)

Recursos Não monetários (RNM)

Moeda, Câmbio e Política Econômica em uma Economia Aberta 353

Observe que o valor das reservas internacionais está contabilizado, no quadro visto, na moedanacional (R$). Para efeitos de comparação com o resultado do balanço de pagamentos, onde as reservasestão contabilizadas em dólares, temos que conhecer o valor da taxa de câmbio (E). O valor das reser-vas em reais, registrado no balancete do Banco Central, corresponde, portanto, a RR$ = RUS$ × E .

A partir do balancete simplificado do Banco Central apresentado, pode-se escrever uma equaçãoque mostra a relação entre o resultado do balanço de pagamentos (identificado com a variação das re-servas) e a oferta monetária (representada aqui pela base monetária).

RR$ + CD = B + RNM (2)

A equação nos diz que o total das aplicações dos recursos do Banco Central (RR$ + CD) é igual aototal de suas fontes de financiamento (B + RNM). Se agora subtrairmos os empréstimos tomados peloBanco Central (RNM) dos empréstimos por ele concedidos (CD), chegamos à variável crédito domésti-co líquido (também denominada “ativos domésticos líquidos”). Pode-se então reescrever a equação 2como:

RR$ + CDL = B (3)

em que

CDL = CD – RNM

Ou, alternativamente, podemos exprimir a variação da base monetária como:

�B = �RR$ + �CDL (4)

A equação 4 representa a oferta primária de moeda numa economia aberta. De acordo com ela, avariação da base monetária (�B) tem, numa economia aberta, dois componentes explicativos: a varia-ção do CDL, que é uma variável exógena ao sistema econômico, na medida em que depende de uma de-cisão da autoridade monetária sobre o volume de crédito por ela concedido; e a variação das reservas in-ternacionais, que, num regime de câmbio fixo, são uma variável endógena ao sistema econômico, por-que dependem dos fluxos do balanço de pagamentos, gerados pelas decisões dos agentes econômicos.

Vimos portanto que a variação das reservas internacionais (medidas em moeda doméstica) é umdos determinantes da expansão ou contração da oferta primária de moeda da economia. A variação dasreservas, medida em moeda doméstica, depende, por sua vez, da taxa de câmbio e do resultado globaldo balanço de pagamentos. Admitindo, por ora, que a taxa de câmbio seja fixa e igual a 1, temos que:

�RR$ = �RUS$ = TC + K (5)

Para avançar no entendimento da relação entre o balanço de pagamentos e o mercado monetário,cabe examinar agora os fatores que determinam o resultado global do balanço de pagamentos e, portan-to, a variação das reservas. Começando pelo saldo em transações correntes – que mede a diferença entreas exportações e as importações de bens e serviços – é usual destacar três variáveis explicativas princi-pais: a taxa de câmbio real, o nível de renda interno e o nível de renda (ou a demanda) mundial.

As exportações de bens e serviços aumentariam com uma elevação da taxa real de câmbio e com oaumento da renda mundial. No que se refere ao primeiro fator, recorde-se que a taxa de câmbio real cor-responde à relação entre o preço em moeda doméstica de uma cesta de bens no exterior e no país (Er =EP*/P, onde E é a taxa de câmbio nominal, P* é o nível de preços externo, e P é o nível de preços do-méstico). Uma elevação da taxa de câmbio real implica pois um aumento do preço relativo dos produtosestrangeiros (EP*) – ou uma diminuição do preço dos produtos nacionais (P) diante dos externos –, o

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que aumenta a competitividade da produção doméstica no mercado exterior, e portanto induz um au-mento das exportações. O efeito positivo do aumento do nível de renda mundial (Y*), e portanto da de-manda externa sobre as exportações, dispensa explicações.

No que se refere às importações de bens e serviços, a função mais simples e conhecida relaciona-assimplesmente ao nível da renda interna através de uma equação do tipo: M = M0 + mY, onde m é a pro-pensão marginal a importar, M é a importação de bens e serviços e Mo importação autônoma. Portantohaveria uma relação direta entre renda e importações, justificável pelo fato de que os gastos totais de fa-mílias e empresas crescem com a renda e que uma determinada fração desses gastos recai sobre produ-tos importados. Mas as variações da taxa de câmbio real, ao alterarem a competitividade relativa dosprodutos estrangeiros com os nacionais, não pode deixar de afetar a substituição de um tipo de bem pelooutro, e portanto o nível das compras externas de bens e serviços.

Em suma, podemos resumir a influência das variáveis acima na determinação das exportações debens e serviços, e, portanto, das transações correntes, através da seguinte função:

TC = X(EP*/P, Y*) – M(EP*/P, Y) (6)

24.2. A POLÍTICA MONETÁRIA E O MODELO MUNDELL-FLEMING

24.2.1. A POLÍTICA ECONÔMICA NUMA ECONOMIA ABERTA SEM MOBILIDADE

DE CAPITAIS

Comecemos pelo caso em que o balanço de pagamentos se resume às transações correntes. Trata-seprincipalmente de um passo metodológico antes de discutirmos o caso mais geral que corresponde aomodelo com movimento de capitais. Porém é um modelo que permite pensar algumas situações concre-tas em que o financiamento externo a uma determinada economia é extremamente limitado – seja emvolume, seja por consistir apenas de recursos oficiais ou negociados extramercado – como foi o casopara grande parte das economias entre as décadas de 1930 e 1950 e para boa parte da América Latina aolongo de quase toda a década de 1980, quando a região sofreu a chamada “crise da dívida externa”.

Operando com câmbio fixoA maneira como as diferentes políticas econômicas afetarão a economia depende crucialmente do regi-me cambial adotado. Portanto teremos sempre que tratar separadamente os regimes de câmbio fixo eflexível. Iniciaremos a seguir pelo caso de uma economia operando com câmbio fixo.

Não havendo financiamento externo, ou bem as transações correntes estarão equilibradas, ou bemas reservas estarão variando (ver equação 1). Um déficit em conta-corrente levará a uma queda das re-servas internacionais – e se persistir, acabará por produzir seu esgotamento e, portanto, a anulação dacapacidade do Banco Central de intervir no mercado de câmbio. Segue-se pois que um déficit persisten-te na conta-corrente do balanço de pagamentos é incompatível com a manutenção de um regime decâmbio fixo. Vejamos como essa restrição modifica os efeitos das políticas monetária e fiscal estabele-cidos para uma economia fechada.

Na representação do modelo IS/LM/BP da Figura 24.1, a reta vertical BP corresponde ao nível derenda YEE para o qual as transações correntes do balanço de pagamentos estão em equilíbrio. Chame-mos pois de equilíbrio externo (ou equilíbrio do mercado de câmbio) ao conjunto dos pontos sobre estareta, e de renda de equilíbrio à interseção das retas IS e LM.1 O formato vertical da reta de equilíbrio ex-

Moeda, Câmbio e Política Econômica em uma Economia Aberta 355

1. Estamos reservando a expressão “equilíbrio interno” para designar uma situação de pleno emprego sem pressões inflacioná-rias, seguindo a definição mais comum entre os economistas. A distinção é importante porque uma economia pode estar numasituação de equilíbrio nos mercados de bens e monetário a um nível abaixo de pleno emprego.

terno decorre do fato de que as transações correntes não são afetadas diretamente pela taxa de juros.Portanto, para um determinado nível de renda, como, por exemplo, YEE, o saldo em transações correntesserá o mesmo, seja qual for o nível da taxa de juros. Por outro lado, como as transações correntes variaminversamente com o produto e a renda (dado que expansão do produto leva a um aumento das importa-ções), para qualquer nível de equilíbrio da renda situado fora da reta BP, haverá desequilíbrio externo.Se a interseção de IS e LM se der à direita de BP, haverá um déficit no balanço de pagamentos, pois paraum nível de renda superior a YEE, as importações serão maiores, transformando o equilíbrio em déficitnas transações correntes. Se o equilíbrio da renda ocorrer à esquerda de YEE, haverá um superávit. So-mente quando as três retas se cruzarem no mesmo ponto, a renda de equilíbrio será alcançada simulta-neamente com o equilíbrio externo.

Suponha então que, partindo-se de uma situação inicial de equilíbrio nos mercados monetário, debens e de câmbio, indicada pelo ponto P, haja uma política monetária expansionista. A curva LM deslo-ca-se para a direita até LM1 e a economia alcança uma nova situação de equilíbrio, representada peloponto Q. Nela, a taxa de juros é mais baixa e o nível de renda é mais alto do que na situação anterior. E obalanço de pagamentos passou do equilíbrio ao déficit (lembre-se que toda vez que a renda de equilíbrioencontra-se à direita da reta BP, as transações correntes estão deficitárias).

Como por hipótese não há financiamento externo, o déficit em conta-corrente implicará um dé-ficit global do balanço de pagamentos e uma pressão no mercado de câmbio, dado que a demandapor divisas superará a oferta. Para evitar que a taxa de câmbio suba – já que o regime é de câmbiofixo – o Banco Central deverá entrar no mercado vendendo moeda estrangeira. Ao fazê-lo, retirarámoeda doméstica de circulação, provocando uma contração da oferta monetária, representada nomodelo por um deslocamento para a esquerda da curva LM e uma consequente elevação da taxa dejuros. Este processo de encolhimento da oferta monetária (mostrado pela seta pontilhada) prosse-guirá até que a curva LM retorne à sua posição original e o equilíbrio externo esteja restabelecido,com a economia voltando ao ponto P. Isto porque enquanto LM estiver à direita de sua posição ini-cial, continuará havendo déficit do balanço de pagamentos e a contração das reservas e da ofertamonetária prosseguirá. Ao final do processo, a tentativa de estimular a economia com a políticamonetária terá se mostrado inócua, deixando apenas, como saldo, um nível de reservas internacio-nais mais baixo do que no início.

Existiria alguma maneira de evitar que o mecanismo acima descrito inviabilizasse a implementaçãode uma política monetária expansionista? Para que o crescimento inicial dos níveis de renda e emprego,associados à política monetária expansionista, fosse mantido, seria necessário que o Banco Central reali-zasse uma política de esterilização dos efeitos monetários do balanço de pagamentos. Ou seja, para que onível da renda de equilíbrio fosse mantido em Q, o Banco Central deveria expandir o crédito doméstico lí-quido para compensar os efeitos da redução das reservas sobre a base monetária. Isto poderia ser feito, porexemplo, com uma injeção de moeda na economia por meio da compra de títulos públicos em poder do

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Y

LM1

LM

Q

P

BP

IS

iEE

i

YEE

FIGURA 24.1Efeito de uma Política Monetária Expansionista em um Regime de Câmbio Fixo, sem Mobilidade de Capitais

mercado, no montante equivalente à retirada de moeda realizada por ocasião da venda das divisas ao pú-blico (veja novamente a equação 4, que representa a criação primária de moeda numa economia aberta).

Ocorre, no entanto, que se o Banco Central realiza uma política de esterilização dos efeitos monetá-rios do balanço de pagamentos e a economia permanece no nível de renda representado pelo ponto Q, odéficit em conta corrente continuará provocando uma pressão no mercado de câmbio nos períodos se-guintes. Isto significa que o Banco Central deverá continuar usando suas reservas, período após perío-do, para assegurar o equilíbrio no mercado de câmbio à paridade fixada entre a moeda nacional e a es-trangeira. Contudo, como as reservas são finitas, a autoridade monetária não poderá usar indefinida-mente a política de esterilização.2 Assim sendo, o uso desse tipo de política poderia ser, quando muito,transitório, e mais cedo ou mais tarde a economia retornaria à situação original de equilíbrio nos trêsmercados (de bens, monetário e de câmbio) representado pelo ponto P.

Cabe agora fazer uma ressalva ao argumento desenvolvido até aqui. Suponha que o governo praticauma política monetária contracionista, e com isto produz um superávit no balanço de pagamentos. Aexpansão das reservas tenderia, na ausência de esterilização, a promover um crescimento da oferta mo-netária, que tenderia a trazer novamente a economia para o nível inicial de equilíbrio nos três mercados.Podemos registrar aqui, contudo, uma assimetria em relação ao caso da política monetária expansionis-ta. Isto porque se o Banco Central decidir esterilizar os efeitos monetários do balanço de pagamentos, aconsequência será o crescimento do nível de suas reservas internacionais. E como isto não põe em che-que o regime de câmbio fixo – muito pelo contrário – a política monetária contracionista torna-se maissustentável no tempo do que a política expansionista.

Caso, por hipótese, a situação inicial de equilíbrio nos três mercados se dê abaixo do pleno empre-go, os responsáveis pela política econômica se defrontarão, no curto prazo, com um dilema de políticaeconômica. Caso expanda a oferta monetária e reduza os juros, a política econômica estará contribuin-do para aumentar a produção e eliminar o desemprego, de forma a alcançar o equilíbrio interno (ver anota 1). Mas ao mesmo tempo estará mantendo a economia em desequilíbrio externo. Em um prazo umpouco maior, o dilema perderia relevância, pois o Banco Central, para evitar o desaparecimento de suasreservas, seria, de todo modo, obrigado a abrir mão da política de esterilização, responsável pela sustenta-ção do equilíbrio interno.

Uma economia que se encontrasse na situação acima, condenada a permanecer no desemprego de-vido a restrições de balanço de pagamentos, estaria sofrendo de um mal que podemos diagnosticarcomo falta de competitividade. Uma maneira de solucionar esse problema consiste em usar a políticacambial como instrumento para promover o equilíbrio interno e externo. Vejamos como.

Observe a Figura 24.2 e suponha que a economia encontra-se inicialmente na situação representadapelo ponto P, e que o nível de renda de pleno emprego seja dado por YPE. O efeito de uma desvaloriza-ção cambial seria, tudo o mais constante (inclusive a renda), promover um aumento das exportações euma redução das importações, levando assim a um deslocamento para a direita da reta BP (ver equação5). Isto porque, nos níveis de renda anteriormente associados ao equilíbrio das transações correntes(YEE), a economia agora gera um superávit, da mesma maneira que no nível de renda caracterizado porYPE, no qual a economia gerava um déficit, agora ela obtém um equilíbrio na conta corrente. Na novaposição da reta do balanço de pagamentos – isto é, em BP’ – a economia poderá alcançar o equilíbrioexterno no nível de renda de pleno emprego (YPE).

A desvalorização da taxa de câmbio, ao promover uma expansão do componente externo da de-manda agregada (X – M), faz também com que a reta IS se desloque para a direita, porém menos do quea BP. No novo ponto de equilíbrio (Q), haverá um superávit do balanço de pagamentos, resultando numaumento de reservas e, portanto, na expansão da base monetária. Com isso, a reta LM se deslocará para

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2. O esgotamento das reservas forçaria o abandono do regime de câmbio fixo em prol de um regime de câmbio flutuante, situa-ção em que a taxa de câmbio passaria a subir. Provavelmente, muito antes das reservas se esgotarem o mercado anteciparia estamudança e promoveria um ataque especulativo à moeda nacional. Este é um tema de uma literatura que se iniciou em um artigoseminal de Krugman (1979) e ganhou impulso na décadad de 1990, motivada pelas sucessivas crises cambais precedidas deataques especulativos, em diversas partes do mundo.

a direita, até que um novo equilíbrio seja alcançado no ponto R. Neste ponto terá sido alcançado o equi-líbrio nos três mercados, no nível do pleno emprego. A política cambial revela-se, portanto, como uminstrumento eficiente para expandir a renda e o emprego de forma sustentada, enquanto a oferta mone-tária reage apenas passivamente aos desequilíbrios do balanço de pagamentos (expandindo-se com ossuperávits e contraindo-se com os déficits).

No que se refere à política fiscal, não é difícil demonstrar que sua eficácia como instrumento paraelevar o nível de renda também fica comprometida num regime de câmbio fixo sem mobilidade de capi-tais. Usando o diagrama anterior, procure mostrar os efeitos de uma política fiscal expansionista sobreos níveis de renda, taxa de juros e sobre as reservas.

Em suma, sob um regime de câmbio fixo, com o balanço de pagamentos limitado às transações cor-rentes, a política monetária perde a eficácia que tinha em uma economia fechada para expandir o nívelda renda. A razão é que, partindo-se de uma situação de equilíbrio das transações correntes, um aumen-to do nível de renda obtido por meio do expansionismo monetário provoca um déficit no balanço de pa-gamentos. E o compromisso de manter o câmbio fixo obriga o Banco Central a usar as suas reservas,provocando uma contração monetária, sempre que houver um déficit no balanço de pagamentos.

Regime de câmbio flutuante sem movimento de capitaisNesta seção continuaremos a situar nossa análise em um mundo sem movimento de capitais, em que obalanço de pagamentos continua identificado com as transações correntes. Agora, contudo, assumire-mos que o regime de câmbio, ao contrário do caso anterior, é flutuante. Nessas circunstâncias, como oBanco Central não usa reservas para intervir no mercado de câmbio, a equação do balanço de pagamen-tos se resume a:

TC = �R = 0 (7)

Como o saldo global do balanço de pagamentos, igual à variação das reservas, é nulo, o modelo ex-clui déficits ou superávits no balanço de pagamentos. Toda vez que houver um deslocamento das cur-vas de oferta ou de demanda por câmbio, ocorrerá um desequilíbrio incipiente do mercado, que serácorrigido imediatamente por alterações na taxa de câmbio. A equação de criação primária de moedatambém fica reduzida ao componente exógeno:

�B = �CDL (8)

O efeito de uma política monetária expansionista, neste novo contexto institucional, pode ser ob-servado na Figura 24.3. A partir de uma situação inicial de equilíbrio associada ao ponto P0, a curva LM

358 Moeda, Câmbio e Política Econômica em uma Economia Aberta ELSEVIER

FIGURA 24.2Efeito de uma Desvalorização Cambial num Regime de Câmbio Fixo Ajustável, sem Mobilidade de Capitais

é deslocada para a direita e a taxa de juros se reduz, o que induz, como sabemos, um aumento do nívelde renda. Este provocará um desequilíbrio incipiente do balanço de pagamentos associado ao aumentode demanda por importações (e por conseguinte da demanda por moeda estrangeira). Como o BancoCentral não vende divisas ao mercado para atender ao aumento da demanda, a disputa por moeda es-trangeira escassa levará a um aumento de seu preço, isto é, a uma desvalorização cambial. Esta, por suavez, estimulará exportações e inibirá importações, o que promove um deslocamento para a direita dascurvas BP e IS. Enquanto persistir o déficit incipiente do balanço de pagamentos – e a reta BP ainda es-tiver à esquerda da interseção entre IS e LM – como em P1, persistirá a pressão no mercado de câmbio,levando a novas desvalorizações, com deslocamentos de BP e IS. Este movimento só cessa quando seatinge a posição P2, onde ocorrem, simultaneamente, o equilíbrio interno (nos mercados de bens e mo-netário) e externo (no mercado de câmbio). Note que se a reta vertical representativa do equilíbrio dobalanço de pagamentos (BP), no seu deslocamento para a direita, ultrapassasse a interseção da IS e daLM, estaríamos numa situação de superávit no balanço de pagamentos, o que geraria uma apreciaçãocambial e um deslocamento para a esquerda desta curva.

Retornando agora à Figura 24.2 (representativa de um regime de câmbio fixo ajustável), observeque há uma desvalorização cambial inicial que provoca um deslocamento da curva IS e posteriormen-te um ajuste (passivo) da LM, como respostas ao superávit do balanço de pagamentos gerado peladesvalorização. Na Figura 24.3, ao contrário, o processo se inicia com um deslocamento da curvaLM, que faz com que a curva BP, e por indução IS, desloque-se como reação aos desequilíbrios cam-biais provocados pela expansão da oferta monetária. Note que a mudança da taxa de câmbio é o me-canismo que promove os deslocamentos das curvas BP e IS, razão pela qual se diz que no regime decâmbio flutuante a taxa de câmbio é um mecanismo de transmissão da política monetária. Em suma,com câmbio fixo a política monetária é passiva e com câmbio flutuante ela pode ser ativa e eficaz paraelevar o nível de renda.

Verifique agora, você mesmo, usando um diagrama semelhante ao da Figura 24.3, como uma con-tração da oferta de moeda pelo Banco Central gera uma retração do nível de renda, destacando o papelda taxa de câmbio como mecanismo de transmissão da política monetária. Em seguida, tente simular osefeitos da política fiscal sobre a taxa de câmbio e sobre os níveis de renda e emprego.

24.2.2. A POLÍTICA MONETÁRIA NUMA ECONOMIA ABERTA COM PERFEITA

MOBILIDADE DE CAPITAIS

O imenso barateamento das comunicações e da transmissão de dados (e, portanto, do custo de obtenção deinformações), juntamente com o aumento do grau de conversibilidade das moedas, ampliou enormemen-te a integração dos mercados financeiros internacionais nas décadas de 1980 e 1990. Com custos de tran-

Moeda, Câmbio e Política Econômica em uma Economia Aberta 359

Y

LM1

LMBP BP1 BP2

IS

IS1

IS2iEE

i

YEE

P2

P1

P0

FIGURA 24.3Efeitos da Política Monetária com Câmbio Flutuante e sem Mobilidade de Capitais

sação insignificantes, podemos admitir que ativos financeiros de países com níveis semelhantes de riscoeconômico e político têm um elevado grau de substitutibilidade entre si. Pequenas diferenças de retornoentre os títulos emitidos por devedores (públicos e privados) desses países seriam suficientes para promo-ver grandes deslocamentos de capital em direção àquele(s) onde o retorno fosse maior. Levada ao limite,esta situação corresponde ao paradigma teórico da mobilidade plena ou perfeita de capitais.

Vejamos agora como muda a relação dos mercados monetário e cambial e como se processa o im-pacto das políticas monetária, fiscal e cambial num mundo caracterizado pela mobilidade perfeita decapitais (situação que é referida frequentemente como correspondendo ao modelo Mundell-Flemingpropriamente dito). Lembremos que agora a identidade básica do balanço de pagamentos voltou a ser aequação (1), segundo a qual o resultado global do balanço de pagamentos (idêntico à variação das reser-vas) é obtido pela soma da saldo em transações correntes com o ingresso líquido de capitais. Antes deprosseguir, cabe ainda advertir que nesta seção estaremos considerando que o retorno de aplicações emtítulos de diferentes países é dado tão-somente pela taxa de juros. Esta suposição será modificada maisadiante neste capítulo.

A curva representativa do equilíbrio do balanço de pagamentos em uma economia com perfeitamobilidade de capitais é uma reta horizontal, ao nível da taxa de juros internacional (i*), conformemostra a Figura 24.4 a seguir. A razão deste formato é que, com mobilidade plena de capitais, o balançode pagamentos tem uma sensibilidade infinita em relação à diferença entre os retornos oferecidos pelosativos financeiros internos e externos: qualquer desvio da taxa de juros interna em relação à externaproduz uma entrada ou saída de capitais incomparavelmente volumosa com respeito às demais contasdo balanço de pagamentos (refletindo-se, em superávits ou déficits globais, afastando a economia doequilíbrio externo). Sendo assim, o equilíbrio do balanço de pagamentos supõe que a taxa de juros este-ja no nível da taxa internacional, independentemente do nível de renda, o que implica que a curva BP =0 seja uma reta horizontal partindo de i* no diagrama IS/LM/BP.

Para fechar a caracterização do contexto institucional vamos trabalhar inicialmente o caso de umregime de câmbio fixo. Recordemos que neste regime a autoridade monetária estará obrigada a com-prar todo o excesso de moeda estrangeira que resultar, por exemplo, de um ingresso de capitais acimado déficit em conta-corrente, ou a vender a quantia equivalente ao excedente de demanda por divisas,no caso de uma saída de capitais (ou entrada inferior ao déficit nas transações correntes).

Uma política monetária expansionista produziria, como sempre, um deslocamento da curva LMpara a direita (até a posição LM1, na Figura 24.4), provocando com isso uma queda da taxa de juros do-méstica. Como o retorno dos ativos financeiros do país teria caído abaixo da taxa de juros externa, have-ria uma saída de capitais potenciamente infinita diante das dimensões do mercado cambial doméstico.Em consequência emergiria um déficit global no balanço de pagamentos, acompanhado de uma quedade reservas e de uma contração da base monetária. A retração na oferta de moeda levaria a curva LM ase deslocar progressivamente para a esquerda até o ponto em que a taxa de juros doméstica voltasse aemparelhar com a internacional. Neste momento a saída de capitais seria detida, o déficit no balanço de

360 Moeda, Câmbio e Política Econômica em uma Economia Aberta ELSEVIER

Y

LM1

LM

BP

IS

i1

i*

i

Y0 Y1

FIGURA 24.4Efeitos de uma Expansão Monetária com Taxas de Câmbio Fixas e Perfeita Mobilidade de Capitais

pagamentos eliminado e o processo de queda das reservas e da base monetária interrompido. Ao finaldo processo, o saldo deixado pela tentativa frustrada de estimular a economia via política monetária te-ria sido a redução do estoque de reservas internacionais em mãos do Banco Central.

A Trindade ImpossívelÉ interessante comparar o presente caso com o uso da política monetária em um contexto de câmbiofixo porém sem mobilidade de capitais. Sob estas últimas circunstâncias, os resultados foram muito se-melhantes aos do caso que acabamos de descrever. Mas verificamos que haveria a possibilidade de usara política monetária como um instrumento eficaz no curto prazo, se combinada com uma política de es-terilização dos efeitos monetários do balanço de pagamentos. Em um mundo com perfeita mobilidadede capitais, contudo, mesmo esta eficácia de curto prazo da política monetária seria nula. Isto porquetentar manter a taxa de juros abaixo da internacional, através do uso de políticas de esterilização, seriainviabilizado por uma liquidação fulminante das reservas. Por outro lado, enquanto que sem mobilida-de de capitais a sustentação de uma política monetária contracionista seria viabilizada por meio de in-tervenções esterilizadas, já que o acúmulo de reservas não poria em cheque o regime de taxas fixas, aconclusão não pode ser estendida ao presente caso. De fato, com mobilidade perfeita de capitais, a moe-da estrangeira jorraria para dentro da economia em tais volumes, no caso de uma taxa de juros superiorà externa, que a tentativa de esterilizá-la seria como pretender esvaziar o oceano com um copo d’água.Em suma, no quadro derivado de um regime de câmbio fixo, em um ambiente de perfeita mobilidade decapitais, as conclusões retiradas anteriormente sobre a ineficácia da política monetária, em um regimede câmbio fixo, são levadas ao extremo.

Robert Mundell usou a expressão “trindade impossível” para se referir a essa implicação do mode-lo que leva seu nome, a saber: o fato de que não é possível conciliar perfeita mobilidade de capitais coma adoção de uma taxa de câmbio fixa e políticas monetárias independentes. Usa-se também, com fre-quência, a expressão trilema de política econômica, para descrever a restrição que impediria os respon-sáveis pela política econômica de abraçar simultaneamente esses três objetivos. Ou bem se abre mão daautonomia no uso da política monetária doméstica, aceitando que a taxa de juros do país simplesmentesiga a internacional, ou se restringe a mobilidade de capitais, para que se possa usar políticas de esterili-zação com alguma eficácia (pelo menos no curto prazo) ou, finalmente, mantém-se a livre mobilidadedos capitais e pratica-se uma política monetária independente, mas adota-se o câmbio flutuante. No ca-pítulo anterior, vimos que a tentativa de conciliar essas três metas foi um dos motivos centrais da invia-bilização da ordem monetária internacional criada em Bretton Woods e do Sistema Monetário Europeudentro das regras em que ele operou na década de 1980.

A tentativa de preservar a autonomia da política monetária no contexto da economia globalizada, erespeitadas as restrições acima, tem reforçado dois tipos de proposição: controle de capitais e a adoçãodo câmbio flutuante. No que se refere ao controle de capitais as propostas variam da sugestão de umacordo internacional para se taxar os fluxos de capitais (o chamado “imposto Tobin”) a iniciativas nacio-nais como a tributação sobre o ingresso de capitais, o estabelecimento de prazos mínimos de permanên-cia, a chamada “quarentena” para os capitais de empréstimo etc. Para aqueles que desejam obter a auto-nomia para o exercício da política monetária sem sacrificar a conversibilidade da moeda nacional e a in-tegração ao sistema financeiro internacional, o caminho proposto é o da flutuação cambial – da versãopura às formas menos puras, como o sistema de bandas.3

Vejamos a seguir de que forma a política monetária poderia ser resgatada como instrumento eficazde política econômica, num mundo com perfeita mobilidade de capitais, através da adoção do câmbioflutuante. Antes de prosseguir, recordemos porém que, sob esta arquitetura institucional, a autoridademonetária não intervém no mercado de câmbio e suas reservas não se alteram. Isto tem duas implica-ções para a operação do modelo. A primeira é que o balanço de pagamentos está sempre, por definição,

Moeda, Câmbio e Política Econômica em uma Economia Aberta 361

3. Svensson (1992) propõe a adoção do sistema de bandas especificamente com o objetivo de permitir o controle doméstico dapolítica monetária.

em equilíbrio. Qualquer desajuste entre as pretensões dos demandantes e dos ofertantes de moeda es-trangeira quanto à quantidade a ser negociada, terá que ser resolvido através de mudanças no preço damoeda estrangeira – isto é, na taxa de câmbio –, como forma de induzir os agentes econômicos a ofertarmais (menos) e demandar menos (mais) divisas. Em segundo lugar, a variação na oferta monetária éatribuível apenas ao seu componente exógeno, isto é, ao crédito doméstico líquido.

Considere agora o efeito de uma expansão monetária, usando o diagrama da Figura 24.5. A reduçãoda taxa de juros para i1, em decorrência do deslocamento da curva LM para a direita, deixou o rendimentodos ativos financeiros domésticos num nível inferior ao dos substitutos estrangeiros, induzindo uma sa-ída de capitais do país. Como o balanço de pagamentos encontrava-se em equilíbrio, surgiu agora umdesajuste potencial entre oferta e demanda de câmbio, que é conciliado através de uma desvalorizaçãocambial. A mudança na taxa de câmbio tem efeitos (instantâneos, no modelo) sobre o mundo real: asexportações líquidas do país crescem e a curva IS desloca-se para a direita. O crescimento da oferta dedivisas gerado pelas exportações líquidas é contudo pequeno, relativamente ao aumento da demandapor moeda estrangeira derivado da diferença entre a taxa de juros externa e a interna dado que, com ple-na mobilidade, o potencial de saída de capitais é limitado apenas pelo estoque de ativos líquidos no sis-tema financeiro doméstico. O ajuste do balanço de pagamentos resultará do aumento da taxa de jurosassociado ao deslocamento da curva IS em direção à posição indicada por IS1. Ao atingir esta posição, ataxa de juros doméstica terá se igualado à externa, cessando a pressão no mercado de câmbio.

Ao final do processo de ajuste, a economia se encontrará na posição indicada pelo ponto Q, com umnível de renda igual a Y2 – superior ao nível de renda Y1, que seria alcançado como efeito de uma ex-pansão monetária numa economia fechada. O segredo do impacto superexpansionista da política mo-netária reside no fato de que a economia cresce inicialmente empurrada pela queda dos juros para logoem seguida receber um impulso adicional dado pela desvalorização cambial – através de seu efeito so-bre as exportações líquidas do país. Assim, o deslocamento para a direita da curva LM induzirá um des-locamento também para a direita da curva IS. E a taxa de câmbio funcionará como mecanismo de trans-missão do impulso monetário. Também como resultado do ajuste realizado, ao final do processo a taxade câmbio estará num nível mais elevado e o balanço de pagamentos, embora tão equilibrado como noinício do processo, agora apresentará uma composição distinta da inicial: um saldo mais favorável emtransações correntes e um ingresso líquido de capitais menor.

Uma política monetária contracionista teria efeitos simétricos aos descritos acima. Suponha que aposição inicial da economia seja a do ponto Q da Figura 24.5. Uma contração monetária, de LM1 paraLM geraria uma elevação da taxa de juros doméstica acima da internacional, induzindo uma entrada decapitais, ocasionando um superávit latente no balanço de pagamentos e uma consequente valorizaçãocambial. A queda da taxa de câmbio diminuiria a competitividade da economia, reduziria as exporta-ções líquidas, deslocando a IS da posição IS1 para IS. A economia acabaria por se estabilizar no pontoP, com um nível de renda mais baixo, uma moeda doméstica mais valorizada, uma posição pior na con-

362 Moeda, Câmbio e Política Econômica em uma Economia Aberta ELSEVIER

LM1

LM

QPBP

IS

IS1i1

i*

i

Y0 Y1 YY2

FIGURA 24.5Efeitos de uma Expansão Monetária com Taxas de Câmbio Flutuantes e Perfeita Mobilidade de Capitais

ta-corrente e um nível de ingresso líquido de capitais superior. A política monetária se revela tambémsupereficaz para esfriar a economia.

Em suma, e pinçando a conclusão mais importante do modelo Mundell-Fleming, a política monetá-ria numa economia aberta, com perfeita mobilidade de capitais, é totalmente impotente para afetar arenda e o emprego num regime de câmbio fixo, mas se torna supereficiente num regime de câmbio flu-tuante. Esta proposição é completada pelo outro resultado do modelo – que não exploramos aqui – deque a política fiscal, por contraste, é supereficaz em um regime de câmbio fixo e impotente em um regi-me de câmbio flutuante.

24.2.3. A POLÍTICA MONETÁRIA EM UMA ECONOMIA ABERTA COM MOBILIDADE

FINITA DE CAPITAIS

Por fim, para completar nossa descrição da interação dos mercados monetários e cambiais e do funciona-mento da política monetária em uma economia aberta, vejamos sinteticamente o caso intermediário asso-ciado à mobilidade finita, ou imperfeita, de capitais. A curva BP tem agora um formato inclinado para adireita, indicando que, se por um lado a taxa de juros afeta positivamente o balanço de pagamentos (Figu-ra 24.6), por outro é possível abrir uma diferença entre as taxas de juros doméstica e internacional sem ge-rar um movimento avassalador de capitais em direção ao mercado com taxas de juros mais elevadas. Istose deve ao fato de que os ativos financeiros domésticos e externos não são substitutos perfeitos.

Na Figura 24.6, considere o caso de uma política monetária contracionista com câmbio fixo. O efeitoprimeiro seria mover a economia para o ponto Q, onde o nível de renda seria mais baixo, a taxa de jurosmais alta e o balanço de pagamentos estaria numa posição superavitária. A expansão das reservas resul-tante do saldo positivo do balanço de pagamentos tenderia a promover uma expansão da base monetária,levando a LM de volta à posição inicial. O resultado seria semelhante ao obtido para uma economia semmobilidade de capitais. Se o objetivo da política monetária fosse, ao contrário, levar a economia ao plenoemprego (YPE), a expansão monetária provocaria um déficit do balanço de pagamentos e a perda de reser-vas deslocaria LM de volta para a posição inicial. Os responsáveis pela política econômica não teriamcomo promover, simultaneamente, o equilíbrio externo e o interno, usando a política monetária.

Uma diferença em relação ao caso da economia sem mobilidade de capitais surge, porém, quandose considera a possibilidade de combinar a política monetária acima com a política fiscal. Praticandoum mix adequado das duas políticas, seria possível alcançar o equilíbrio interno (pleno emprego nãoinflacionário) e externo. Para tanto seria necessário promover, simultaneamente, uma contração mone-tária e um expansionismo fiscal, de forma a atingir uma situação como a ilustrada pelo ponto R. Nela, a

Moeda, Câmbio e Política Econômica em uma Economia Aberta 363

FIGURA 24.6Efeitos de uma Expansão Monetária com Taxa de Câmbio Fixa e Mobilidade Finita de Capitais

economia teria alcançado um nível mais elevado de renda (chegando ao pleno emprego), a taxa de jurosestaria mais elevada e o balanço de pagamentos estaria em equilíbrio. Porém o equilíbrio externo teriasido alcançado com um déficit em conta-corrente maior e uma entrada de capitais maior (impulsionadapela taxa de juros mais alta) do que o observado no ponto inicial (P). Note também que o mix de políticaeconômica só foi possível porque, ao contrário do caso da perfeita mobilidade de capitais, neste é possí-vel colocar a taxa de juros acima da internacional.

Com um regime de câmbio flutuante, uma combinação de política monetária contracionista e a fis-cal expansionista também pode levar a economia a uma combinação de equilíbrio externo e interno. Se,por efeito de uma ênfase grande na política monetária, a combinação produz, num primeiro momento,um superávit incipiente do balanço de pagamentos, ocorrerá uma apreciação cambial seguida de umdeslocamento para a esquerda das curvas IS e BP. O equilíbrio final, de todo modo, poderá se dar, comono caso anterior, com um nível de renda mais elevado. Porém, como o balanço de pagamentos estarásendo equilibrado com um déficit em conta-corrente maior (lembre-se que o câmbio apreciou) e comuma entrada líquida de capitais mais elevada (porque a taxa de juros subiu), a economia estará se endi-vidando. Durante o governo Reagan, o dólar apreciou-se fortemente até 1985, por conta de um mix mo-netário e fiscal deste gênero – associado ao aumento dos gastos militares e aos cortes nos impostos.Neste período, o déficit em conta-corrente dos Estados Unidos também subiu acentuadamente, trans-formando a maior economia do planeta de credora em devedora líquida diante do resto do mundo.

O modelo Mundell-Fleming nos permitiu pensar o funcionamento do mercado e da política mone-tária numa economia aberta, integrada comercial e financeiramente ao resto do mundo. Apesar da sim-plicidade de suas premissas, pudemos ter uma compreensão razoável das implicações do manejo da po-lítica monetária e de seus mecanismos de transmissão em uma economia aberta. Vimos como essas im-plicações e também os mecanismos de transmissão mudam de acordo com as instituições cambiais ecom o grau de mobilidade de capitais. Para avançar na compreensão dos fenômenos monetários na eco-nomia contemporânea, é necessário abandonar algumas hipóteses simplistas adotadas até aqui.

Há duas hipóteses particularmente comprometedoras no modelo Mundell-Fleming, tal qual apre-sentado acima. A primeira delas consiste no ajustamento instantâneo da conta-corrente a uma mudançana taxa de câmbio. Caso as exportações líquidas de bens e serviços fossem rígidas a curto prazo, não rea-gindo instantaneamente a mudanças no valor da moeda estrangeira, então um desequilíbrio do balançode pagamentos provocaria uma desvalorização (valorização) cumulativa incessante da taxa de câmbio– exceto se um outro mecanismo de ajustamento entrasse em operação. A segunda hipótese que deveriaser modificada, para se construir um modelo que desse conta de fenômenos importantes do mundo con-temporâneo, refere-se às expectativas. No modelo examinado acima, as expectativas são estáticas. Asdecisões dos agentes econômicos quanto à aplicação em ativos financeiros domésticos ou externospressupõe que a taxa de câmbio futura será igual à taxa de câmbio presente. Isto é uma limitação séria,já que o rendimento de uma aplicação financeira no exterior depende não apenas da taxa de juros, mastambém da valorização ou desvalorização da moeda no intervalo entre a aplicação e o resgate. Por isso,num mundo com câmbio flutuante (ou com qualquer modalidade de câmbio fixo ajustável), as expecta-tivas dos agentes econômicos com respeito à taxa de câmbio futura jogam um papel essencial na expli-cação do movimento dos capitais entre as economias.

A abordagem do mercado de ativos, apresentada a seguir, supera as duas limitações do modeloapresentado acima, contribuindo assim para lançar luz sobre as relações entre os mercados monetário ede câmbio, numa economia com grande mobilidade de capitais.

24.3. A DETERMINAÇÃO DA TAXA DE CÂMBIO DE ACORDO

COM A ABORDAGEM DO MERCADO DE ATIVOS

Na representação do mercado de câmbio feita no Capítulo 23, admitimos que o motivo para demandarou ofertar moeda estrangeira neste mercado era puramente transacional. Ou seja, a decisão de comprar

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moeda estrangeira estava relacionada ao papel desta como meio de pagamento para produtos importa-dos, enquanto que a venda de divisas resultava das operações de exportação. Em tais circunstâncias asforças que determinam a oferta e demanda de moeda estrangeira podem ser diretamente derivadas dosdeterminantes dos fluxos de exportação e importação. A curva de oferta de divisas é positivamente in-clinada porque taxas mais elevadas de câmbio estimulam os produtores a exportar mais. Analogamen-te, a curva de demanda por moeda estrangeira é negativamente inclinada porque os agentes econômicosdesejam importar menos a taxas de câmbio mais altas. Chamemos este tratamento do mercado de câm-bio de “enfoque das transações reais”.

A visão acima pode ser uma boa representação do mercado de câmbio numa economia cujas rela-ções com o exterior são fundamentalmente centradas no comércio de mercadorias. Porém, quando osfluxos de capital são importantes, é necessário adotar um modelo analítico baseado numa visão alterna-tiva sobre a demanda e a oferta de moeda estrangeira. A “abordagem do mercado de ativos” adota umaperspectiva que se situa no extremo oposto do enfoque das transações reais. De acordo com a novaabordagem, tanto a moeda estrangeira quanto a nacional são entendidas como ativos que são desejadosem função dos retornos que geram para seus possuidores.

Em outras palavras, ao contrário da tradicional abordagem, que considera a demanda por moeda es-trangeira como um reflexo da demanda por importações, a abordagem do mercado de ativos propõe quea demanda por divisas reflete sua taxa esperada de retorno. E o retorno esperado da posse desse ativolíquido tem dois componentes. O primeiro componente é a expectativa quanto ao valor futuro da moe-da estrangeira. O segundo, a taxa de juros que remunera uma aplicação financeira feita na moeda es-trangeira – admitindo que a moeda estrangeira será mantida na forma de depósitos que rendem juros ouaplicada em títulos de prazo mais longo. Ou seja, enquanto que no primeiro caso a demanda por moedaestrangeira é guiada exclusivamente por um motivo transacional, no segundo ela é guiada por um moti-vo especulativo.4

Assim sendo, a determinação da taxa de câmbio, de acordo com a abordagem do mercado de ativos,dependerá dos retornos relativos das aplicações feitas na moeda do país e na moeda estrangeira. Quantomaior o primeiro, mais atraente será vender moeda estrangeira e comprar moeda nacional, o que gerauma valorização da moeda nacional no mercado de câmbio. Simetricamente, quanto maior o retornodas aplicações em moeda estrangeira, maior a demanda por divisas (e menor a oferta), e portanto a des-valorização cambial. Vejamos a seguir como se podem fazer essas comparações.

24.3.1 COMPARAÇÃO ENTRE O RETORNO DE DOIS ATIVOS DENOMINADOS

EM MOEDAS DIFERENTES

Suponha que a taxa de câmbio em vigor seja de R$ 1,80 por dólar, e que um investidor brasileiro estejadiante de duas alternativas: aplicar R$ 100,00 no mercado doméstico a uma taxa de juros de 17,5% a.a.,ou aplicar no mercado norte-americano a uma taxa de juros de 5%. Na primeira alternativa, obtémR$ 117,50 ao final de um ano. E na segunda? O resultado não é imediatamente evidente, dado que o ca-pital inicialmente investido precisa ser convertido em dólares, moeda na qual será aplicado e remunera-do, e posteriormente convertido novamente em reais. Abstraindo, por ora os riscos associados a cadatipo de aplicação, a comparação dos dois investimentos tem que ser feita tomando-se por base o retornode ambas medido em uma moeda única, digamos, o real.

Para calcular o retorno medido em reais de uma aplicação (ou depósito) feita em dólares (rR$dUS$),

podemos proceder da seguinte maneira. Primeiramente, note que para investir no mercado norte-americano, será preciso inicialmente converter o valor a ser investido de reais para dólar, o que é feitodividindo pela taxa de câmbio presente:

Moeda, Câmbio e Política Econômica em uma Economia Aberta 365

4. Uma visão mais abrangente do mercado de câmbio deveria incorporar uma combinação dos dois motivos para a demandapor moeda estrangeira.

IUS$0 = IR$

0 / E0 (9)

Ao final de um ano o valor investido terá incorporado os juros anuais, e será equivalente a:

IUS$1 = IUS$

0 × (1+i*) (10)

onde i* é a taxa de juros recebida pela aplicação no exterior.Para calcular o equivalente em reais de IUS$

1, basta multiplicar esta quantia pela taxa de câmbio emvigor no momento 1, isto é, um ano após a aplicação. Mas como o valor da taxa de câmbio futura é des-conhecido no momento da aplicação, para fazer sua avaliação comparativa dos investimentos no país eno exterior, o investidor terá que fazer uma estimativa da taxa de câmbio futura. Chamando de Ee

1 a taxade câmbio esperada pelo investidor para daqui a um ano, temos que:

IR$1 = IUS$

1 × Ee1 (11)

E o retorno esperado em reais de uma aplicação em dólar pode então ser calculado como:

rR$dUS$ = (IR$

1 – IR$0) / (I

R$0) = (IR$

1 / IR$0) – 1 = [(IUS$

1 × Ee1) / I

R$0 ] – 1 (12)

E substituindo (9) em (10) e (10) em (12):

rR$dUS$ = {[ (IR$

0 / E0 ) × (1 + i*) × Ee1] / IR$

0 } – 1 (13)

ou

rR$dUS$ = [IR$

0 x (Ee1/ E0) × (1 + i*)] / IR$

0 ] – 1 (14)

simplificando e chamando a depreciação cambial esperada de Êe, temos então:

rR$dUS$ = (1 + Êe) × (1 + i*) – 1 (15)

Usando a equação (15) para calcular o retorno em reais da aplicação em dólares do exemplo ante-rior, e supondo que a desvalorização esperada do real seja de 10%, obtemos:

rR$dUS$ = (1 + 0,10) × (1+0,05) – 1 = 15,5%

Como o retorno em reais de uma aplicação no Brasil é igual à própria taxa de juros doméstica, de17,5%, e desconsiderando o risco dos dois investimentos, o investidor deverá preferir investir seus re-cursos em ativos financeiros brasileiros. Se contudo sua expectativa de desvalorização cambial fosse de15%, o retorno esperado de aplicações em dólares subiria para 20,75% e as aplicações em títulos nor-te-americanos passariam a ser mais atraentes do que as aplicações no Brasil.

Para variações pequenas da taxa de câmbio e taxas nominais de juros também reduzidas, a fórmulaacima pode ser simplificada pela seguinte aproximação:

rR$dUS$ = i* + Êe (16)

366 Moeda, Câmbio e Política Econômica em uma Economia Aberta ELSEVIER

24.3.2 PARIDADE COBERTA E DESCOBERTA DA TAXA DE JUROS

De acordo com a abordagem do mercado de ativos, a condição de equilíbrio no mercado de câmbio(isto é, a condição que iguala demanda e oferta de moeda estrangeira) é que os retornos esperados deaplicações de prazo semelhante, medidos na mesma moeda, sejam iguais. No exemplo anterior, o mer-cado estaria desequilibrado se a expectativa de desvalorização cambial fosse, por exemplo, de 15%,pois o retorno em reais de aplicações no exterior seria cerca de 3 pontos percentuais acima do retorno deaplicações no mercado financeiro doméstico. Com livre mobilidade de capitais – e admitindo para sim-plificar que o risco e a tributação fossem os mesmos para aplicações em reais e em dólares – haveria umenorme atrativo para os investidores redirecionarem seus fundos para aplicações no exterior (e para es-trangeiros não aplicarem no país). Isto significa que haveria uma demanda por dólares muito grande re-lativamente à oferta no mercado de câmbio, o que geraria uma desvalorização do real. A variação dataxa de câmbio seria o sintoma do desequilíbrio no mercado.

Admitindo-se, como fizemos anteriormente, que a taxa de retorno relevante para a comparação en-tre aplicações em dois países seja aquela determinada pelas taxas de juros vigentes em cada um deles epela desvalorização cambial esperada pelo investidor, a condição de equilíbrio no mercado de câmbiopode ser então escrita como:

rR$dR$ = rR$

dUS$ (17)

ou

i = i* + Êe (18)

A condição de paridade dos juros, conforme a fórmula acima, é conhecida como paridade desco-berta dos juros, porque expressa – do seu lado direito – um retorno tão-somente esperado pelo investi-dor das suas aplicações no exterior – isto é, um retorno sem uma cobertura contra o risco de um erro nassuas expectativas. Admitindo que para o investidor a comparação relevante entre retornos de investi-mentos no país e no exterior exclua o risco cambial, então é necessário substituir, na fórmula acima, adesvalorização esperada da taxa de câmbio pela variação da taxa de câmbio implícita nos contratos decâmbio futuro. Neste caso temos a paridade coberta de juros, que pode ser escrita como:

i = i* + Êf (19)

em que:

Êf = (Ef – E0)/E0

sendo:Ef = taxa de câmbio futura expressa nos contratos do mercado de futurosE0 = taxa de câmbio no mercado à vista

24.3.3 SIGNIFICADO DA PARIDADE DOS JUROS

A observância da condição acima nada diz sobre os processos de ajuste entre os dois lados da equação.Havendo uma divergência entre juros internos, de um lado, e a soma dos juros externos com a expecta-tiva de desvalorização cambial, qual das variáveis mudará para promover a igualdade entre os dois la-dos da equação? Admitindo que a economia seja pequena (no sentido de não afetar, com sua oferta edemanda as variáveis internacionais), podemos considerar a taxa de juros externa como dada. A ques-tão fica sendo portanto de decidir se é a expectativa de desvalorização cambial ou a taxa de juros interna

Moeda, Câmbio e Política Econômica em uma Economia Aberta 367

que se ajusta para igualar os dois lados da equação. Em outras palavras, desejamos saber qual é a variá-vel independente e qual é a dependente.

A resposta para a questão acima não pode ser dada sem que se defina o regime cambial e monetárioadotado na economia. Num regime de câmbio fixo, é a taxa de juros que deve operar como variável deajuste, desde que haja confiança dos agentes na manutenção da paridade da moeda durante o período re-levante de tempo. Se, por exemplo, a taxa de juros interna para aplicações de três meses de prazo for su-perior às taxas para aplicações externas de igual período, e houver confiança na manutenção da parida-de cambial ao longo do próximo trimestre, tenderá a haver (com livre mobilidade de capitais) um in-gresso muito elevado de capitais externos que tenderá a promover uma redução das taxas de juros inter-nas, até que elas se igualem às externas. Note-se que são niveladas as taxas de juros nominais e não asreais, o que pode acabar por causar problemas graves de inconsistência num regime de câmbio fixoajustável (ver Box 24.1).

Com uma regra cambial de pequenas desvalorizações periódicas, promovidas pelo Banco Central,como a que vigorou no Brasil entre o segundo semestre de 1995 e 1998, o mecanismo de ajuste é seme-lhante ao observado acima. A única diferença é que, em vez de uma expectativa de desvalorização iguala zero, os agentes teriam uma expectativa de desvalorização próxima dos níveis de variação cambialpromovidos pelo Banco Central a cada mês. Isto, evidentemente, enquanto esta política teve credibili-dade.

Com taxas de câmbio flutuante e uma política monetária que fixe a taxa de juros, conforme os ar-ranjos monetário e cambial adotados pelo Brasil a partir de janeiro de 1999, as taxas de câmbio é quetendem a funcionar como variável de ajuste. Se, por exemplo, a taxa de juros doméstica for muito supe-rior à taxa de juros externa mais a expectativa de desvalorização cambial (mais o risco país), a taxa decâmbio tende a ser ajustada para baixo. A questão é saber como isto ocorreria. Para entendê-lo, lembre-mo-nos que a desvalorização esperada da taxa de câmbio depende da taxa de câmbio atual (E0) e da taxade câmbio esperada para o futuro (Ef). Admitamos, para simplificar, que a taxa de câmbio esperada parao futuro seja determinada por uma avaliação dos agentes sobre os fundamentos da economia e que nãoseja influenciada pelo valor corrente da taxa de câmbio.

Nas condições acima, haverá uma entrada líquida de capitais externos em busca da taxa de retornomais elevada oferecida pelos títulos domésticos. E mais, como o governo está comprometido em man-ter fixa a taxa de juros e a não intervir na formação da taxa de câmbio, ele se manterá afastado do merca-do cambial. Assim sendo, o excesso de oferta de moeda estrangeira derivado do aumento do influxo decapitais levará a uma apreciação cambial, isto é, a uma queda da taxa de câmbio. Como Ef, de acordocom nossa hipótese, é mantida constante, a redução da taxa de câmbio presente, por sua vez, aumentaráa desvalorização esperada para o futuro. O aumento da desvalorização esperada ajusta os dois lados daequação de paridade, ou seja, iguala o retorno esperado das aplicações financeiras nas duas moedas,equilibrando o mercado de câmbio.

368 Moeda, Câmbio e Política Econômica em uma Economia Aberta ELSEVIER

O economista Alan Walters, ex-assessor daprimeira-ministra Margareth Tatcher, criticou,na década de 1980, o sistema de taxas decâmbio fixas na Europa porque esta regra, emvez de produzir convergência entre as situa-ções das economias da região, produzia diver-gência. A razão por ele apontada era que umpaís, que por qualquer razão tivesse de iníciotaxas de inflação mais altas do que as dos de-mais, seria obrigado (pelas forças do mercado

de capitais internacional) a operar com as mes-mas taxas de juros nominais, e portanto comtaxas de juros reais mais baixas do que as dosparceiros. Taxas de juros reais mais baixas re-forçariam, por sua vez, a inflação domésticasuperior à da região e portanto juros reais ain-da mais baixos, conduzindo portanto a uma di-vergência crescente ... até que a manutençãoda paridade se tornasse inviável e ocorresseum ataque especulativo.

O EFEITO WALTERS

BO

X2

4.1

Até aqui tratamos de uma modalidade de risco: o cambial. Não incluímos o risco-país em nossaanálise. No entanto aplicações financeiras feitas em moedas distintas implicam riscos distintos. Se exis-te a possibilidade (real ou imaginária) de que o Brasil (ou outro país emergente qualquer) venha, numasituação de pressão grande sobre o mercado de câmbio, a impor restrições a remessas de recursos para oexterior, então a equivalência entre as aplicações financeiras nos dois países vai ter que incluir um ter-mo referente ao prêmio de risco pelas aplicações neste país.

Usando a letra grega � para simbolizar o prêmio de risco-país, a condição de paridade ficasendo:

i = i* + Êf + �

24.3.4 COMO MEDIR ESTE RISCO-PAÍS?

Uma possibilidade consiste em comparar os juros entre dois títulos emitidos na mesma moeda, com omesmo prazo, um com e outro sem risco-país. A diferença dos juros dos dois títulos deve corresponderàquilo que eles têm de diferente: o risco-país. Assim, por exemplo, a diferença entre a rentabilidade dostítulos da dívida externa do Tesouro brasileiro, emitidos no mercado externo e em moeda estrangeira, ea rentabilidade de títulos de maturidade equivalente emitidos pelo Tesouro norte-americano pode serusada como uma das medidas do risco-Brasil. O índice dos bônus dos mercados emergentes (EMBI +)calculado por métodos semelhantes ao aqui referido, é uma das medidas mais populares, tanto entreanalistas como na imprensa, do risco-país de diversas economias emergentes, inclusive do Brasil. Épreciso advertir, no entanto, que as variações nesta medida podem refletir, em certas circunstâncias, al-terações no “sentimento” do mercado e mesmo movimentos de reestruturação da carteira de investido-res internacionais que não tenham a ver com mudanças nos fundamentos internos das economiasemergentes que possam ter alterado sua capacidade de pagamento.

RESUMO

Neste capítulo estudamos a relação entre os mercados monetário e cambial. Vimos como a forma de operação dapolítica monetária e os efeitos da política mudam numa economia aberta, e como eles são determinados pelo tipode regime cambial e grau de mobilidade internacional de capitais. Estudamos ainda as relações entre a taxa decâmbio e a taxa de juros. Para tanto, examinamos dois modelos: o de Mundell Fleming e o de Modelo do Mercadode Ativos.

O modelo Mundell-Fleming mostra que em uma economia aberta a política monetária tem efeitos muito dife-rentes dos observados numa economia fechada. Em um regime de câmbio fixo, a política monetária se revela im-potente para afetar os níveis de renda e emprego. Caso não haja mobilidade de capitais, através de políticas deesterilização é possível obter alguma eficácia da política monetária, mas apenas no curto prazo. Com mobilidadeplena de capitais, nem no curto prazo. Em compensação, em um regime de câmbio flutuante a política monetária émais eficaz para alterar os níveis de renda e emprego do que numa economia fechada. A elevada eficiência da po-lítica monetária neste caso pode ser atribuída ao fato de que as mudanças na taxa de câmbio ocasionadas por dife-renças entre as taxas de juros interna e externa operam como mecanismos de transmissão da política monetária epotenciam seus efeitos.

Através da abordagem do mercado de ativos, examinamos as relações entre a taxa de juros interna, a taxa de ju-ros externa, a taxa de câmbio presente e a futura. Vimos que o equilíbrio no mercado de câmbio está associado àcondição de paridade dos juros. Em um regime de câmbio fixo, os juros internos são determinados pelos juros ex-ternos, enquanto em um regime de câmbio flutuante, com os juros fixados pela autoridade monetária, a taxa decâmbio vai se alterar de forma a nivelar os juros internos com a soma dos juros externos, da desvalorizaçãocambial esperada e do risco-país.

Moeda, Câmbio e Política Econômica em uma Economia Aberta 369

TERMOS-CHAVE

� Regime de Câmbio Fixo� Regime de Câmbio Flutuante� Balanço de Pagamentos� Base Monetária� Crédito Doméstico Líquido� Política de Esterilização� Mobilidade de Capitais

� Modelo Mundell-Fleming� Abordagem do Mercado de Ativos� Paridade de Juros Coberta� Paridade de Juros Descoberta� Risco Cambial� Risco-país

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

O modelo Mundell-Fleming é apresentado em praticamente todos os manuais de macroeconomia e economiainternacional. Três sugestões são, por exemplo, Williamson, J. 1983. A Economia Aberta e a Economia Mundial,capítulo 10; Dornbusch, R. e Fischer, S. Macroeconomia, 5a edição, cap. 6; e Lopes, L.M. e Vasconcellos, M.A.S.1998. Manual de Macroeconomia – Básico e Intermediário. Editora Atlas, capítulo 6. O Manual de EconomiaInternacional de Krugman, P. e Obstfeld M. (1997, International Economics, Theory and Practice, Addi-son-Wesley, 4a edição) é uma boa referência. As contribuições originais de Mundell e Fleming podem ser encon-tradas nos artigos: Mundell, R. A. (1962), “The Appropriate Use of Monetary and Fiscal Policy for Internal andExternal Stability”, IMF Staff Papers 9: 70-79; Mundell, R. A. (1963), “Capital Mobility and Stabilization Policyunder Fixed and Flexible Exchange Rates”, Canadian Journal of Economics 29: 475-485; Fleming, J. M. (1962),“Domestic Financial Policies under Fixed and under Floating Exchange Rates”, IMF Staff Papers 9: 369-379.

Corden, W.M.1994. Economic Policy, Exchange Rates and the International System. Oxford University Press.Especialmente capítulos 4 e 12.

De Grauwe, P. 1994. The Economics of Monetary Integration. Oxford University Press.Krugman, P. 1979. A Model of Balance-of-Payments Crises. Publicado originalmente em Journal of Money,

Credit and Banking. 11, 3, August. Republicado como capítulo 4 de Krugman, P. 1997. Currencies and Crises.MIT Press.

Svensson, L.E.O. 1992. Why exchange rate bands? Monetary independence in spite of fixed exchange rates.NBER, Working Paper 4207.

Isard, P. 1995. Exchange Rate Economics. Cambridge University Press. Especialmente capítulo 5.Walters, A. 1990, Sterling in Danger, Fontana.

370 Moeda, Câmbio e Política Econômica em uma Economia Aberta ELSEVIER

REGIME CAMBIAL E MERCADODE CÂMBIO NO BRASIL

INTRODUÇÃO

Antes do lançamento do Plano Real em 1994, o Brasil adotou, durante duasdécadas e meia, um regime de minidesvalorizações cambiais passivas, combreves intervalos associados à sequência de planos fracassados de estabiliza-ção dos anos 80 e início dos 90. O objetivo dessa política – nem sempre alcan-çado – era manter estável a taxa de câmbio real, de forma a preservar acompetitividade externa da economia. A regra cambial, adotada com esta fi-nalidade, consistia em realizar pequenas desvalorizações periódicas queacompanhavam o ritmo da inflação passada, descontada a inflação externa.Nos primeiros anos após a implantação desta prática, com uma inflação anualna casa de dois dígitos, as minidesvalorizações ocorriam em intervalos de ummês ou mais. Porém, à medida que a inflação ia subindo, estes intervalos fo-ram sendo encurtados, chegando a ser diários no final dos anos 80 e primeirametade dos 1990. A indexação da taxa de câmbio havia chegado, então, ao li-mite. Evidentemente isto era assim porque a política cambial era uma ferra-menta utilizada com a finalidade principal de atingir uma meta relativa àbalança comercial, não sendo parte do arsenal de armas voltadas para o com-bate à inflação. O emprego da taxa de câmbio como instrumento básico da po-lítica de estabilização só viria a ocorrer a partir de 1994.

25.1. A POLÍTICA CAMBIAL DO PLANO REAL:1994-98

Com o advento do Plano Real, a abordagem de metas reais para a taxa de câm-bio –até então empregada como guia para a política cambial do governo – foisubstituída pela abordagem da âncora nominal. Esta abordagem coloca a taxade câmbio no centro da política anti-inflacionária. Há contudo vários tipos pos-síveis de regras cambiais consistentes com esta abordagem, indo desde as op-ções mais rígidas – como fixação da taxa de câmbio em caráter definitivo, porlei (como nos regimes de currency board) – até modalidades que comportam

CAPÍTULO

25

aumentos periódicos num ritmo relativamente estável. No caso brasileiro, ao contrário, por exemplo,do experimento contemporâneo argentino, evitou-se as alternativas mais rígidas, que poderiam enges-sar a política econômica.

Na verdade, a política de âncora cambial passou por várias fases de ajuste no início do Plano Real.Mas a partir de 1996 ela se cristalizou num sistema de crawling peg ativo, por meio do qual o BancoCentral desvalorizava em intervalos curtos (em 1998, eram sete vezes por mês) a taxa de câmbio nomi-nal, a um ritmo quase sempre em torno de 0,6% ao mês, independentemente do nível da inflação passa-da. A desvinculação entre o ritmo de desvalorização e a taxa de inflação passada tinha por objetivoromper com as instituições do passado inflacionário da economia brasileira, caracterizado pela indexa-ção de preços e rendimentos, inclusive da taxa de câmbio. Porém, quando, a partir de 1997, a taxa de in-flação caiu abaixo do ritmo – mantido constante – da desvalorização, a regra cambial passou a constitu-ir, ironicamente, um mecanismo de promoção de desvalorizações reais, porém de forma lenta e gradual,da moeda doméstica. Para entender como, reveja a equação 3 do Capítulo 23, que mostra os fatores quedeterminam a taxa de câmbio real.

Com as desvalorizações reais alcançadas pelo processo anteriormente descrito, começava-se a cor-rigir, ainda que muito lentamente, a apreciação real da moeda brasileira ocorrida nos primeiros anos dapolítica de âncora cambial, quando a evolução da taxa de câmbio seguiu um ritmo muito mais lento doque a inflação. Como, apesar de tudo, a desvalorização real acumulada a partir de 1997 era relativamen-te pequena (comparada à apreciação ocorrida no início do Plano Real), a moeda brasileira persistiu muitoapreciada (isto é, a taxa de câmbio real permaneceu baixa) até a crise de janeiro de 1999. Isto pode servisto no Gráfico 25.1 a seguir, onde desvalorizações cambiais aparecem como aumento da taxa de câm-bio real efetiva.

Havia uma outra regra relativa à fixação da taxa de câmbio no período, que frequentemente causaconfusão a respeito da verdadeira natureza do regime cambial do Plano Real. Além de fixar e corrigir ataxa de câmbio em intervalos muito curtos, o governo adotou uma prática, desde março de 1995, deanunciar duas bandas cambiais – uma larga e outra estreita – para a taxa de câmbio. Apesar disso, nãohouve, até o início de 1999, qualquer espaço para o mercado determinar a taxa de câmbio, como seria dese esperar num sistema de bandas autêntico. A rigor, a taxa de câmbio continuava a ser fixada através dapolítica de intervenção do Banco Central. A banda larga era, na verdade, uma peça de ficção, sem maiorsignificado prático. Mesmo a banda mais estreita (a chamada intrabanda) não chegava a caracterizar oregime de banda de flutuação, conforme definido no Capítulo 23. Isto porque a amplitude da intrabandaera muito reduzida – inferior a 0,5% até 1998, quando foi ampliada progressivamente para cerca de 1%.Note-se que mesmo sob o regime de taxas de câmbio fixas há uma pequena margem de flutuação paraque o mercado cambial possa funcionar normalmente. Assim, por exemplo, sob o regime de BrettonWoods havia uma margem com amplitude de 2% (1% para cada lado da paridade central) para varia-ções das taxas de câmbio.

372 Regime Cambial e Mercado de Câmbio no Brasil ELSEVIER

Fonte: Banco Central do Brasil

120,0

out/98

75,2

66,7

Plano Real

50,0

60,0

70,0

80,0

90,0

100,0

110,0

jan/91

abr/91

jul/91

out/91

jan/92

abr/92

jul/92

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jan/93

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jul/96

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jul/97

out/97

jan/98

abr/98

jul/98

GRÁFICO 25.1Taxa de Câmbio Real Efetiva (Média jan./88-maio/06 = 100)

O regime cambial de minidesvalorizações ativas durou até meados de janeiro de 1999 quando, emmeio a uma crise cambial provocada pela intensificação da perda de reservas que vinha ocorrendo hámuitos meses, o Banco Central deixou o real flutuar. Desde então o Brasil encontra-se num regime decâmbio flutuante. Quais as características deste novo regime? Aproxima-se mais da flutuação pura, daflutuação suja sem metas para a taxa de câmbio ou de um regime de zonas-alvo?

25.2. O CÂMBIO FLUTUANTE NO BRASIL: 1999 EM DIANTE

A introdução do regime de câmbio flutuante no Brasil não foi fruto de uma opção planejada. Ao contrá-rio, foi uma imposição dos fatos. Diante do ataque especulativo e da rápida queda das reservas, o gover-no se viu impossibilitado de manter as intervenções no mercado de câmbio requeridas pela regracambial até então em vigor. Não há nisso nada de muito específico à experiência brasileira. Ao contrá-rio, uma história semelhante ocorreu com inúmeras outras economias emergentes ao longo da décadade 1990 e nos primeiros anos da década seguinte. Crises cambiais e ataques especulativos a moedas depaíses emergentes, como o México em 1994, diversas economias do leste asiático em 1997, Rússia em1998, Argentina e Turquia em 2001 e Uruguai em 2002, levaram sempre ao abandono de taxas fixas decâmbio, em prol de flutuantes.

Contudo, se o regime de flutuação cambial adotado por muitas economias emergentes a partir dadécada de 1990 pode ser considerado como genuíno, é algo que vem sendo crescentemente questionadopor uma linha de investigação iniciada por Calvo e Reinhart (2002).1 Estes autores, e diversos outrosque tem trabalhado na mesma direção, avaliaram o comportamento da política econômica naquelaseconomias com o objetivo de verificar, de forma objetiva, a verdadeira natureza de seus regimes cam-biais. E concluíram que, frequentemente, apesar de declararem oficialmente sua adesão ao regime decâmbio flutuante, muitos países praticavam, na realidade, formas disfarçadas de fixação da taxa decâmbio. Esses países tinham, nas palavras dos autores acima, “medo da flutuação”. E a razão para estetemor residia nos esperados efeitos negativos das variações cambiais sobre o desempenho de suas eco-nomias. Isto porque tais economias seriam particularmente vulneráveis a choques cambiais em razão desuas elevadas dívidas em moeda estrangeira (não compensadas por ativos em dólares, havendo, portan-to, um descasamento monetário), do alto coeficiente de repasse de varições cambiais para os preços etc.

No caso brasileiro, desde a implantação do câmbio flutuante, as autoridades têm sistematicamenteafirmado que se trata de um regime de flutuação livre. Intervenções foram sempre justificadas comomedidas ad hoc sem qualquer pretensão de influenciar o nível da taxa de câmbio. Assim, em fases deturbulências, compras de moeda estrangeira pelo Banco Central foram justificadas como expedientestemporários destinados a limitar o excesso de volatilidade e desordem no mercado.

Por outro lado, a explicação oficial para as vendas de moeda estrangeira pelo Banco Central, verifi-cadas em fases de apreciação cambial, em geral descartou a existência de qualquer outro objetivo quenão a estratégia de acumulação de reservas pela instituição. Caberia então perguntar se, também nocaso brasileiro, haveria uma distância entre discurso e realidade, vale dizer, entre um regime de câmbioflutuante de jure e uma prática de estabilização da taxa de câmbio de facto.

Para tentar esclarecer esse ponto, o Quadro 25.1 mostra indicadores do medo da flutuação para oBrasil em comparação com os EUA, o Japão e outras economias emergentes. A construção destes indi-cadores está baseada no pressuposto de que em uma economia que pratica a flutuação genuína, o gover-no usa pouco as reservas e a política de juros como instrumento para evitar variações na taxa de câmbio.Em consequência, a volatilidade da taxa de câmbio deve ser elevada, enquanto que a variabilidade dasreservas e das taxas de juros deve ser baixa. E, já que a flutuação pura é apenas um caso de livro-texto,os índices para a economia norte-americana são usados como uma referência de um regime genuina-mente flutuante. Isto porque os movimentos do dólar em relação a outras moedas são considerados tão

Regime Cambial e Mercado de Câmbio no Brasil 373

1. Calvo, G. e Reihart, C. (2002). “Fear of floating”. Quarterly Journal of Economics, vol. CXVII, no 2, p. 379-408.

livres da interferência governamental quanto o permitido pelas circunstâncias do mundo real. Tendoisto em mente analisemos os resultados apresentados no Quadro 25.1.

O primeiro conjunto de indicadores (Calvo-Reinhart) mostra que a volatilidade da taxa de câmbiobrasileira – medida pela frequência em que a taxa de câmbio variou mais do que 2,5% de um mês para ooutro ao longo do período 1999-2005 – foi alta por comparação à americana, o que indica liberdade para ataxa de câmbio flutuar. Porém a variação mensal das reservas e da taxa de juros muito acima do padrão dereferência sugere que o Banco Central pode ter tentado evitar a flutuação usando tais instrumentos. Paratirar a dúvida, os indicadores das duas últimas colunas mostram a variação cambial relativamente à varia-ção das reservas e à variação das taxas de juros. Por este critério, quanto mais alto o indicador, mais próxi-mo da flutuação pura. Isto sugere que o caso brasileiro, no período considerado, parece ser mais parecidocomo o regime de câmbio flutuante autêntico do que com os casos de medo da flutuação.

Contudo, flutuação razoavelmente autêntica significa, no mundo real, flutuação suja. E no casobrasileiro tem sido assim. Sempre que a taxa de câmbio se afastou excessivamente de sua média realhistórica, ou em momentos de volatilidade excessiva, o Banco Central acabou intervindo, direta ou in-diretamente, no mercado de câmbio. Já em momentos de maior calmaria ele se ausentou inteiramentedo mercado e o regime ganhou a aparência de uma flutuação pura. O Gráfico 25.2 mostra a atuação doBanco Central no mercado de câmbio subdividida em diversas fases ao longo do período 1999-2005.Vendas de moeda estrangeira aparecem com valor negativo e aquisições com valor positivo. Pode-sever no gráfico que nas fases I, III e IV o Banco Central operou vendendo divisas para evitar depreciaçãocambial excessiva associada a turbulências nos mercados de câmbio (relacionadas, respectivamente, àmudança no regime cambial, à crise energética/contágio da crise argentina e às incertezas eleitorais). Jánas fases II e V observou-se longos períodos em que o regime se aproximou da flutuação pura, enquantoque na fase VI, as intervenções consistiram de aquisições de moeda estrangeira e ocorreram num con-texto de apreciação excessiva do real.

Até aqui procuramos caracterizar o regime cambial brasileiro através de indicadores que visam detec-tar a regra efetiva de determinação da taxa de câmbio. E concluímos que a formação do preço da moedaestrangeira resulta da ação das forças do mercado, embora o Banco Central atue, em certas circunstâncias,para moderar a intensidade dos movimentos das cotações. Contudo, para que tenhamos uma compreensãomais abrangente do processo de formação da taxa de câmbio, bem como da relação entre o mercado de

ELSEVIER374 Regime Cambial e Mercado de Câmbio no Brasil

QUADRO 25.1Indicadores de Medo da Flutuação (1)

País

Indicadores Calvo-Reinhart Indicadores deVolatilidade relativa

Variação mensalda taxa de câmbio

superior a+/–2,5%

Variação mensaldas reservas superior

a+/–2,5%

Variação mensalda taxa de juros

superior a+/–0,5 pp

taxa decâmbio/reservas

taxa decâmbio/

taxade juros

Brasil 52% 51% 35% 0.26 1.39

EUA 30% 27% 5% 0.23 1.33

Japão 27% 22% 0% 0.05 33.45

Outros Emergentes da AL (2) 27% 44% 49% 0.22 0.97

Emergentes da Ásia (3) 19% 23% 20% 0.16 1.72

Outros Emergentes (4) 33% 44% 43% 0.13 0.72

(1) Dados para o período jan./99-dez./05, exceto para a taxa de câmbio do dólar dos EUA (dólar versus euro), que se inicia em fevereiro de 1999.(2) Média simples dos resultados do México, Chile, Colômbia, Argentina e Uruguai. Para os dois últimos, dados para jan./02-dez./05 (câmbioflutuante).(3) Média simples dos resulados da Indonésia, Cingapura, Tailândia e Coreia do Sul.(4) Média simples dos resultados de Israel, Turquia, África do Sul, Polônia e Rússia.Fonte: Souza e Hoff (2006).

câmbio e o mercado monetário no Brasil, é preciso ir um pouco mais além, e incorporar à nossa análiseoutras regras definidoras do regime cambial – em particular o grau de conversibilidade da moeda – bemcomo a própria organização do mercado de câmbio no país. Por que estes aspectos influem no funciona-mento do regime cambial? Considere, por exemplo, o caso de uma economia submetida a um rígido con-trole de capitais. A consequência é que a demanda e oferta de divisas estarão associadas às transações cor-rentes, de maneira que os fatores que afetam os fluxos de exportação e importação de bens e serviços terãouma importância grande na explicação dos movimentos da taxa de câmbio. Já numa economia com livremobilidade de capitais, na qual os agentes econômicos demandam moeda estrangeira enquanto ativo dereserva e em que os fluxos de capitais têm peso importante no balanço de pagamentos, a determinação dataxa de câmbio tende a ser dominada pelos fatores que afetam as decisões de portfólio dos agentes econô-micos, como juros, riscos e expectativas de apreciação/depreciação.

25.3. AS REGRAS E A ORGANIZAÇÃO DO MERCADO

DE CÂMBIO NO BRASIL

Além das mudanças nas regras de determinação da taxa de câmbio, uma outra dimensão importante natransformação do regime cambial brasileiro nos anos 90 foi a liberalização do acesso ao mercado de câm-bio. Até finais da década de 1980 havia grande limitação à compra de moeda estrangeira para fins de pa-gamentos de mercadorias e serviços no exterior, e restrições ainda maiores no que se refere à saída decapitais. Um exemplo emblemático é o da compra de dólares para fins de viagens ao exterior. Ao final de1983, um turista brasileiro que quisesse viajar ao exterior podia comprar, legalmente, no máximo US$ 500 (ese o destino fosse países da América do Sul ou Central, o limite era de US$ 100). Em consequência, lado alado com o mercado oficial, com taxas de câmbio fixadas pelas autoridades, florescia um mercado parale-lo de dólares, no qual o preço do dólar chegou a distanciar-se em mais de 100% da cotação oficial.

O sistema de restrições cambiais e, sobretudo, de estritos controles sobre o movimento de capitais,começou a ser relaxado no final da década de 1980. Naquela época iniciou-se um processo de liberali-zação cambial que aumentou progressivamente a conversibilidade da moeda doméstica, primeiro noque se refere às transações correntes, depois no âmbito da conta capital e financeira. Ao longo desteprocesso, o mercado de câmbio foi sendo unificado, transações anteriormente realizadas no mercadoparalelo, ou mesmo inexistentes, foram incorporadas ao mercado legal, e o “monopólio de câmbio” doBanco Central foi sendo, na prática, esvaziado.2 Em março de 2005, a nova regulamentação do mercado

Regime Cambial e Mercado de Câmbio no Brasil 375

Fonte: Banco Central do Brasil.

nov/05

–10,00

–8,00

–6,00

–4,00

–2,00

0,00

2,00

4,00

6,00

Fase I

Fase II

Fase III

Fase IV

Fase V Fase VI

jan/99

mar/99

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GRÁFICO 25.2Intervenções do Banco Central no Mercado de Câmbio (US$ bilhões)

2. Um dos últimos resquícios deste “monopólio” – a obrigação de que os bancos depositassem em uma conta do Banco Cen-tral, sem remuneração, os valores que excedessem a posição comprada de US$ 5 milhões – foi abolido em janeiro de 2006.

de câmbio extinguiu um artifício até então usado para a transferência de recursos de brasileiros ao exte-rior. Foi abolido o uso das famosas contas CC5 – de titularidade de não residentes – para fins de remes-sas de recursos pertencentes a residentes. Estas remessas passaram a poder ser realizadas, sem qualquersubterfúgio, através da rede bancária autorizada a operar em câmbio. Ao mesmo tempo foram elimina-das restrições ainda existentes a investimentos diretos brasileiros no exterior.

Em suma, o conjunto de transformações no mercado de câmbio na década de 1990 e nos primeirosanos da década seguinte tiveram por consequência: a) um grande aumento no grau de conversibilidadedo real, com o gradual desaparecimento dos controles de capitais; b) a extinção, para efeitos práticos, domonopólio de câmbio do Banco Central; c) a introdução do câmbio flutuante, tornando as instituiçõesfinanceiras responsáveis pela formação da taxa de câmbio e pelo fornecimento de liquidez ao mercadode câmbio. Em resposta a este conjunto de transformações nas regras do jogo, foram se desenvolvendoinstrumentos financeiros, novos espaços de negociação cambial – tanto para operações à vista quantono mercado futuro – levando à conformação de um novo ambiente institucional, no qual o próprio pro-cesso de formação da taxa de câmbio foi se alterando.3 Descreveremos a seguir este novo contexto institu-cional, começando pelo papel dos principais atores.

25.3.1. OS ATORES

Quando o regime era de câmbio fixo com controle cambial, o Banco Central tinha o papel de fixar a taxade câmbio e de garantir a liquidez do mercado, à taxa de câmbio por ele fixada. Para desempenhar estasfunções, ele não apenas buscava manter um nível adequado de reservas, como também exigia que osbancos lhe transferissem toda a moeda estrangeira adquirida liquidamente de clientes, a cada dia, queultrapassassem uma pequena reserva necessária ao funcionamento das operações. Na atualidade, dadasas novas regras, o papel do Banco Central encolheu, e se limita à regulação, registro, fiscalização domercado, além de intervenções discricionárias, por meio de leilões de compra ou venda de dólares atra-vés de seus bancos dealers, em circunstâncias como as referidas na Seção 25.2. O Tesouro Nacional,embora não tenha a política cambial por atribuição, tem esporadicamente colaborado com o BancoCentral, por exemplo através de aquisições de divisas no mercado para pagamentos futuros de seuscompromissos externos.

À medida que o Banco Central se desvinculava de determinadas funções e responsabilidades, osbancos autorizados a operar com moeda estrangeira passavam a ampliar sua atuação no mercado decâmbio. Com isto, o papel dos bancos foi se tornando central, tanto no que se refere à formação da taxade câmbio, quanto à garantia de liquidez para o conjunto de agentes econômicos. Eles hoje são o que sedenomina de market maker. Neste papel, estabelecem uma cotação para a moeda estrangeira e, a estacotação, vendem ou compram divisas dos clientes, a pedido destes, e na quantidade desejada por estes.Neste sentido, os bancos são passivos: vendem ou compram o quanto for demandado pelos clientes. Étambém importante para entender o papel dos bancos no mercado de câmbio ter em conta que eles man-tém um saldo de posição cambial em decorrência de seu papel de market maker.

A posição cambial corresponde à diferença acumulada entre os valores de moeda estrangeiracomprados pelos bancos e os valores vendidos. Para entender este conceito, considere o exemplomostrado no Quadro 25.2, que calcula o impacto das operações de compra e venda de moeda estran-geira realizadas por um banco, durante um determinado dia, com seus clientes, sobre sua posição decâmbio. Como todas as operações de compra e venda de moeda estrangeira são realizadas através decontratos de câmbio, a segunda coluna registra o valor contratado a cada operação (um fluxo), en-quanto que a terceira coluna mostra como fica a posição comprada (um estoque) após a operação. Su-ponha então que um banco tem uma posição cambial inicial comprada de US$1 milhão, devido a ope-rações realizadas até a véspera. A partir daí ele vende US$ 100 mil a turistas, compra US$ 300 mil de

376 Regime Cambial e Mercado de Câmbio no Brasil ELSEVIER

3. Assim, por exemplo, a abolição dos limites de posição comprada dos bancos faz com que a demanda por moeda estrangeiracomo um ativo de reserva (por parte dos bancos) ganhe um papel mais importante entre as forças que moldam a taxa de câmbio.

exportadores e vende US$ 100 mil para multinacionais que querem fazer remessas de lucros ao exte-rior. Cada operação de compra aumentará sua posição comprada, enquanto cada operação de vendadiminuirá esta posição (ou aumentará, se for o caso, a posição vendida). Em decorrência das opera-ções realizadas ao longo do dia, no nosso exemplo, a posição comprada do banco em questão passoude US$ 1 milhão para US$ 1,1 milhão.

QUADRO 25.2Exemplo de Variação da Posição Cambial de um Banco, Derivada de Operações com Clientes (em US$ 1000)

OperaçãoValor do Contrato deCâmbio

PosiçãoComprada

(Posição inicial) 1000

Venda de US$ a turistas 100 900

Compra de US$ de exportadores 300 1200

Venda de US$ a multinacional para remessa 100 1100

Diversas outras instituições financeiras e não financeiras – como corretoras e distribuidoras, agên-cias de turismo etc. – estão autorizadas a operar no mercado de câmbio com clientes, porém sem autori-zação para manter posições cambiais em aberto.

Na outra ponta do mercado, completando o elenco de atores, estão os clientes. Entre eles podemosdestacar: o setor privado não financeiro (exportadores, importadores, empresas tomam empréstimos ouinvestem no exterior etc.), o setor financeiro não autorizado a operar em câmbio, o setor público e os in-vestidores estrangeiros. Eles negociam com os bancos a compra e venda de moeda estrangeira no mer-cado à vista, e – diretamente entre si ou com os bancos – no mercado futuro.

Uma vez apresentados os atores, vamos voltar nossa atenção agora ao palco das operações, ondeocorre sua interação, para que possamos acompanhar o processo através do qual se dá a formação dataxa de câmbio.

25.3.2. O MERCADO

As transações de compra e venda de moeda estrangeira estão organizadas, no Brasil, em três merca-dos principais: o mercado primário, onde se realizam transações com dólar (ou outras moedas) prontoentre os bancos e seus clientes; o mercado secundário ou interbancário, restrito às instituições finan-ceiras autorizadas a operar com câmbio, onde também se negocia o dólar pronto (à vista); e o mercadofuturo, ao qual têm acesso todos os agentes econômicos. Para que se tenha uma visão completa do ar-cabouço institucional dentro do qual são realizadas as operações de câmbio é necessário ter em conta,além das transações cursadas nestes três mercados, as transações cambiais entre o Banco Central e asinstituições financeiras, as transações destes com o resto do mundo, e o mercado futuro de reais noexterior.

Comecemos pelo mercado primário, contemplando as relações entre bancos e clientes. No Brasil, amaior parte das transações cambiais destinadas a pagamentos e recebimentos do exterior é realizadaatravés de um conjunto de instituições financeiras autorizadas pelo Banco Central a operar em câmbio.A Figura 25.1 ilustra os fluxos de compra e venda de divisas no mercado primário de câmbio. Exporta-dores de bens e serviços, turistas estrangeiros em visita ao Brasil, empresas estrangeiras que desejamfazer investimentos no país e empresas brasileiras que tomaram empréstimos em moeda estrangeira es-tão entre os principais ofertantes de divisas no mercado de câmbio, a serem adquiridas pelos bancos. Deoutro lado, importadores de bens e serviços, turistas brasileiros viajando ao exterior, empresas multina-cionais interessadas em remeter lucros e dividendos ao exterior e empresas brasileiras que necessitamfazer pagamentos de amortizações e juros de suas dívidas externas, encontram-se entre os principais de-mandantes de moeda estrangeira junto aos bancos.

Regime Cambial e Mercado de Câmbio no Brasil 377

Os bancos, como já referido anteriormente, têm um papel passivo neste mercado, comprando e ven-dendo aquela quantidade que é oferecida ou demandada pelos clientes. Isto significa que, havendo dife-rença entre demanda e oferta por parte dos clientes – e, salvo coincidência, tais diferenças devem ocor-rer a todo momento – os bancos desempenham o papel residual de adquirir o excesso ou suprir (a partirde suas reservas) a insuficiência de divisas no mercado. Ao fazê-lo, sua posição cambial no mercado àvista aumenta (quando as compras excedem as vendas) ou diminui. Em outras palavras, no mercadoprimário o estoque de moeda estrangeira em poder dos bancos é alterado pelas decisões dos clientes.Evidentemente, a mudança na posição cambial, determinada pela demanda dos clientes, não tem por-que coincidir com a desejada pelos bancos, levando estes a ficar, frequentemente, fora de uma posiçãode equilíbrio. O ajuste entre a posição cambial corrente e a desejada será então obtido através de opera-ções nos mercados interbancário e futuro, que por sua vez afetarão os preços do mercado primário. Ve-jamos como, partindo de uma situação hipotética de desequilíbrio (posições correntes diferentes dasdesejadas), o equilíbrio é reencontrado, começando pelo mercado secundário.

O mercado interbancário (ou secundário) é o locus onde os bancos negociam moeda estrangeiraentre si com a finalidade de ajustar suas posições cambiais aos níveis desejados. Se um determinadobanco vendeu moeda estrangeira aos clientes além do desejado (isto é, se sua posição vendida excedeua planejada), ele buscará uma compensação através da compra de moeda estrangeira de outros bancos,que darão as cotações a que estão dispostos a vendê-la.

É preciso atentar, contudo, para o fato de que, se para um banco individualmente é possível ajustarsua posição cambial no nível desejado, através de compras ou vendas de moeda estrangeira no mercadointerbancário, o mesmo não se pode dizer do sistema bancário em seu conjunto. Isto porque, quando umbanco adquire dólares de outro, aumentando sua posição comprada, sua contraparte (isto é, o banco quelhe vendeu a moeda estrangeira) estará reduzindo a sua no mesmo montante. Portanto, para o sistemabancário como um todo não terá havido uma alteração de posição. Se houver um desequilíbrio agrega-do, isto é, se a posição comprada do conjunto das instituições for diferente da planejada, então, por su-posto, o desequilíbrio não pode ser resolvido por transações interbancárias. Ele terá que ser resolvidoou por transações com entidades fora do mercado interbancário (que o enxuguem ou irriguem com moedaestrangeira) ou através de um ajuste de preços. Consideremos inicialmente a primeira hipótese.

As intervenções do Banco Central no mercado de câmbio à vista, através de leilões de compra evenda de moeda estrangeira, têm impacto direto na posição comprada dos bancos (que aumenta, nocaso de vendas do Banco Central, e dimiminui no caso de compras). Portanto, nos períodos em que oBanco Central tem uma presença ativa no mercado de câmbio, a variação da posição cambial dos ban-cos é uma resultante não apenas das suas transações com os clientes, mas também das intervenções doBanco Central. A Figura 25.2 amplia a representação anterior do mercado de câmbio, ao acrescentar, aomercado primário, as transações interbancárias e as intervenções do Banco Central.

378 Regime Cambial e Mercado de Câmbio no Brasil ELSEVIER

Clientes: Exportadores,importadores, Turistas,Investidores externos etc.

Comprasde moedaestrangeirapelosbancos

BancosVendas demoedaestrangeirapelosbancos

FIGURA 25.1O Mercado Primário de Câmbio no Brasil

Os efeitos das transações do mercado primário e das intervenções cambiais sobre as posições dosbancos podem ser representados pela seguinte identidade:

AP – ARBC = � PCB

Onde:AP = aquisições de dólares de clientes pelos bancos, no mercado primárioARBC = aquisições de reservas no mercado interno pelo Banco Central� PCB = variação da posição comprada dos bancos

O primeiro termo do lado esquerdo registra as aquisições líquidas de moeda estrangeira pelos ban-cos no mercado. Se dessas compras feitas pelos bancos subtrairmos aquela parcela que eles vendem aoBanco Central (segundo termo do lado esquerdo), sobram as divisas que foram incorporadas às suas po-sições compradas.

O valor do primeiro termo resulta basicamente de decisões tomadas pelos clientes dos bancos, en-quanto o do segundo termo (do lado esquerdo da equação) depende de decisões da Autoridade Monetá-ria. Resulta daí que, em condições normais de operação do mercado, a variação da posição comprada ouvendida dos bancos em seu conjunto não é uma decisão deles, e sim dos clientes e das autoridades mo-netárias. Sabendo isto, e tendo em conta que alterações nas taxas de juros ou mudanças nas expectativasem relação à evolução futura da taxa de câmbio levariam os bancos a querer alterar a parcela de seus ati-vos mantida em moeda estrangeira, surge uma questão. Trata-se de saber que maneira os bancos po-deriam se adaptar a tais mudanças no ambiente financeiro se sua posição comprada é determinada pelosdemais participantes do mercado.

A ação dos bancos, diante de uma expectativa de desvalorização (ou de valorização), se reflete an-tes de mais nada, na variação de preços (da taxa de câmbio), e não em suas posições compradas. Aliás,como se pode verificar no Quadro 25.3 a seguir, que mostra os dados anuais para as variáveis da equa-ção acima, num ano como o de 2002, em que predominaram expectativas de depreciação durante quasetodo o período, a posição comprada dos bancos sofreu uma forte queda, ao contrário do que deveria serseu desejo. E a razão para isto é que as elevadas compras líquidas de moeda estrangeira pelo público(US$ 13,2 bilhões) não foram compensadas pelas vendas de reservas pelo Banco Central (US$ 7,3 bi-lhões), fazendo com que os bancos em seu conjunto tivessem que vender, liquidamente, US$ 5,8 bi-lhões. Uma situação inversa ocorreu, por exemplo, em 2004, quando predominaram expectativas deapreciação e as posições compradas dos bancos aumentaram.

Regime Cambial e Mercado de Câmbio no Brasil 379

Clientes

Leilões deVenda

Dealers

Bancos

Bancos

InterbancárioMercado

Primário

Banco Central

Leilões deCompra

FIGURA 25.2As Intervenções do Banco Central no Mercado à Vista

QUADRO 25.3Variação da Posição de Câmbio dos Bancos e seus Componentes (US$ milhões)

Ano MercadoPrimário (AP)

Compras líquidas doBanco Central (ARBC)

Variação da Posição Compradados Bancos (� PCB)

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2283

2060

–13193

1429

6686

18748

2293

–7225

–7342

–185

5274

21491

–10

5165

–5850

1614

1413

–2743

Fonte: Banco Central do Brasil, Indicadores Econômicos Consolidados, Nota para a Imprensa e Boletim Mensal.

Vimos até aqui que, havendo um desajuste entre as posições cambiais correntes e desejadas dosbancos em seu conjunto, o ajuste teria que se dar através de transações com entidades fora do mercadointerbancário ou através de alterações de preços no âmbito das transações interbancárias. Incorporamosacima o ajuste via intervenções do Banco Central. Este ajuste, evidentemente, não depende de decisõesdos bancos e sim do Banco Central.4 No que segue acrescentaremos o papel do mercado futuro, onde, aísim, os bancos podem realizar um ajuste ativo. Este componente do mercado de câmbio vem adquirin-do importância crescente. Mais que isto, o mercado futuro tem, como veremos, impactos importantessobre os fluxos e a formação das taxas de câmbio no mercado à vista. É fundamental, portanto, introdu-zir este mercado para que se tenha uma visão mais completa do mercado de câmbio.

O mercado de câmbio futuro está organizado, no Brasil, em duas instituições: a Central de TítulosPrivados (CETIP) e a Bolsa Mercantil e de Futuros (BM&F). Na primeira são registrados contratos debalcão realizados entre bancos e clientes, constituindo operações “sob medida” de compra e venda dedólares seja para entrega futura, seja na modalidade NDFs (Non-Deliverable Forwards), que são opera-ções em que não há entrega futura, mas apenas pagamento da diferença entre o preço contratado e a co-tação na data da liquidação. Na BM&F são negociados contratos padronizados de compra e venda demoeda estrangeira para liquidação futura, nas mais diversas modalidades. Nesta bolsa o setor financeirodoméstico participava como comprador em 54% dos contratos e como vendedor em 49% dos contratosde câmbio futuro em fevereiro de 2006.

Já dissemos acima que uma das maneiras que os bancos autorizados a operar em câmbio têm paraajustar suas posições compradas às suas decisões de portfólio consiste em realizar operações no mercadofuturo. De fato, através do mercado futuro de dólares da BM&F, os bancos podem compensar suas transa-ções no mercado primário. Assim, se um banco que compra moeda estrangeira de clientes, aumenta suaposição comprada além do desejado, ele pode vender uma quantia equivalente no mercado futuro. Por ou-tro lado, os dólares adquiridos no mercado à vista serão investidos no exterior e servirão para liquidar avenda no mercado futuro. Se, em decorrência de um eventual volume muito elevado destas operações, ve-rificar-se um excesso de oferta de dólares no mercado futuro, ocorrerá uma queda das cotações naquelemercado, o que, via operações de arbitragem, provocará uma retração também nas cotações à vista.

Em suma, se a oferta de dólares por parte dos clientes, no mercado primário de câmbio, superar osníveis desejados pelo sistema bancário como um todo, os bancos absorverão ainda assim este excesso,mas os preços da moeda estrangeira declinarão, ou seja, haverá uma apreciação cambial. Isto podeocorrer de duas formas. A primeira através de negociações dos bancos entre si no mercado interbancá-rio. Ali, havendo maior quantidade ofertada do que demandada, produz-se uma queda do preço do dó-lar, até o ponto em que os bancos se sintam dissuadidos de continuar a tentar reduzir suas posições com-pradas. O segundo caminho para a preciação cambial é o aumento da oferta de dólar futuro, que acabará

380 Regime Cambial e Mercado de Câmbio no Brasil ELSEVIER

4. É claro, contudo, que a autoridade monetária tenderá a entrar no mercado vendendo dólares em momentos de escassez damoeda estrangeira, isto é, quando os bancos estão reduzindo suas posições compradas além do desejado e por isso o preço damoeda estrangeira começa a subir no mercado interbancário e a alta se transmite ao mercado primário.

se traduzindo em queda das cotações futuras, que por sua vez se transmitirão, via arbitragem, para omercado à vista. Em qualquer um dos casos, a queda das cotações se transmitirá aos preços do mercadoprimário. O inverso ocorreria, evidentemente, no caso de uma escassez de oferta de moeda estrangeirano mercado primário, relativamente à demanda dos bancos.

Desnecessário dizer que o desenvolvimento destes mercados – os futuros no Brasil e no exterior –faz com que o volume de recursos privados capaz de afetar a taxa de câmbio venha crescendo a um rit-mo avassalador, e que a demanda e oferta de reais, contra moeda estrangeira, motivada por questões decomposição de portfólio vá assumindo uma proporção cada vez mais dominante quando comparada aosfluxos de oferta e demanda associados às transações correntes. Isto, por sua vez, torna a taxa de câmbioainda mais sensível aos movimentos da taxa de juros, e portanto às decisões de política monetária. E,visto por outra ótica, aumenta a eficácia do câmbio como mecanismo de transmissão da política mone-tária. Num contexto em que os outros canais de trasmissão podem estar relativamente comprometidos,a consequência pode ser uma tendência a que a política anti-inflacionária acabe forçando uma aprecia-ção da taxa de câmbio maior do que as demais condições da economia indicariam, como parece ter sidoo caso nos anos de 2005 e 2006.

Por fim, cabe chamar a atenção para o fato de que as operações cambiais consideradas acima nãoesgotam o conjunto de transações da economia com o exterior. Estas são registradas no balanço de pa-gamentos. Para completar nossa representação é preciso acrescentar aquelas operações com o exteriorque não passam pelo mercado de câmbio mas são registradas no balanço de pagamentos. São as opera-ções realizadas diretamente pelo Banco Central (para si próprio ou para o Tesouro) com o exterior: pa-gamentos ou recebimentos de juros e amortizações do exterior do Banco Central ou do Tesouro (a parteque não é feita através do mercado); empréstimos externos ao Banco Central (por exemplo do FMI) ouao Tesouro, cujos dólares não são negociados no mercado. A Figura 25.3 a seguir apresenta uma visãocompleta dos pagamentos e recebimentos externos da economia e seus desdobramentos internos atra-vés dos mercados de câmbio aqui examinados.

Regime Cambial e Mercado de Câmbio no Brasil 381

Além dos diversos mercados de câmbiodescritos nesta seção, um novo mercadovem se desenvolvendo e assumindo gran-des proporções, porém fora do país. Tra-ta-se do chamado mercado de Non-Deliverable Forwards (NDFs) negociadosnos EUA. Neste mercado, como o próprionome indica, não há entrega física dereais, contra o dólar, mas apenas o paga-mento da diferença em dólares entre ascotações contratadas e as vigentes nadata da liquidação do contrato. Segundoestimativas, o volume de posições emaberto com NDFs atingiu cerca de US$ 75bilhões em finais de 2005, e acaba tam-bém tendo uma influência sobre as cota-ções do mercado doméstico pronto. Se-guindo Pastore e Pinotti (2005), pode-sedescrever esta influência da seguinte ma-neira: um investidor estrangeiro procuraum banco no exterior para aplicar seusdólares e este banco oferece uma aplica-ção em reais. Como resultado desta ope-

ração, o banco fica com os dólares do in-vestidor e com uma obrigação de pagar,além dos juros contratuais, a variação dovalor do real em relação ao dólar. Ouseja, o banco no exterior fica com um pas-sivo em reais, o que o induz a comprar umcontrato de reais futuros também no exte-rior – as NDFs. Mas, se por um lado estaoperação deixa o banco estrangeiro compassivos e ativos na mesma moeda, poroutro ela deixa o arbitrador – que vende aNDF – descasado, por ter vendido reais fu-turos no exterior. Por conta disso, o arbi-trador vem à BM&F e vende dólar futuro(compra reais no futuro) para cobrir seurisco de câmbio, o que acaba deprimindoo preço do dólar futuro, e, por arbitragem,o preço do dólar à vista. Em outras pala-vras, as operações no mercado futuro, noexterior entre investidores estrangeiros ebancos estrangeiros acabam também in-fluenciando a taxa de câmbio no mercadoà vista doméstico.

O MERCADO DE CÂMBIO FUTURO DE REAIS POR DÓLARESNO EXTERIOR

BO

X2

5.1

RESUMO

Neste capítulo examinamos as características do regime cambial brasileiro atual, a condução da política cambial ea estrutura e funcionamento do mercado de câmbio, com seus diversos segmentos. Vimos como a política de ân-cora cambial adotada no Plano Real levou a uma forte apreciação real da moeda doméstica e a uma crise cambialque resultou na adoção do regime de câmbio flutuante. Vimos também que de acordo com os testes do tipo Cal-vo-Reinhart o regime brasileiro parecia não estar muito distante do que seria a flutuação genuína verificada nomundo real, onde ela nunca é totalmente pura. Em seguida examinamos a estrutura do mercado de câmbio bra-sileiro, tal como ele opera na atualidade, a partir dos desenvolvimentos derivados da progressiva liberalização dasregras para compra e venda de moeda estrangeira e do crescente papel do setor financeiro privado na determina-ção da taxa de câmbio e no suprimento de liquidez ao mercado. Por fim, vimos que as transações cambiais estãodistribuídas entre três mercados – o primário, o interbancário e o futuro – sendo que a determinação da taxa decâmbio é cada vez mais influenciada pela demanda por moeda estrangeira enquanto um ativo financeiro, que seexpressa sobretudo nos dois últimos segmentos do mercado.

TERMOS-CHAVE

� Abordagem de Metas Reais� Abordagem da Âncora Nominal� Regime Cambial de Jure e de Facto� Medo da Flutuação� Bancos Dealers� Market Maker� Posição Cambial

� Mercado Primário de Câmbio� Mercado Interbancário de Câmbio� Mercado Futuro de Câmbio� Intervenções do Banco Central� CETIP� BM&F� NDFs (Non-Deliverable Forwards)

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Franco, G.H.B e Pinho Neto, D. M. 2004. A desregulamentação da conta de capitais: limitações macroeconô-micas e regulatórias. Disponível em http://www.econ.puc-rio.br/gfranco/Reg_cambial_3.pdf.

Este texto faz um exame histórico bastante rico das origens e evolução das restrições cambiais no Brasil, focandoprincipalmente a conversibilidade da conta capital. Analisa o processo de liberalização ocorrido a partir do início

382 Regime Cambial e Mercado de Câmbio no Brasil ELSEVIER

Pagamentos diretos

deJuros, Am

ortizações

Resto do Mundo

Bancos

Bancos

InterbancárioMercado

Primário

Intervenções

MercadoFuturo

Clientes

Banco Central

Recebimentos de

Empréstim

os,

Juros eAm

ortizações

FIGURA 25.3Mercado de Câmbio e Balanço de Pagamentos

dos anos 90 e discute questões atuais ligadas ao tema, como as propostas de fim da chamada “cobertura cambial”das exportações.

Garcia, M.G.P. e Urban, F. 2005. O mercado interbancário de câmbio no Brasil. Disponível emwww.econ.puc-rio.br/mgarcia.

Este trabalho faz uma descrição extremamente detalhada do funcionamento do mercado interbancário. Alémdisso realiza um teste econométrico cujo resultado sugere que a formação da taxa de câmbio se dá primeiro nomercado futuro e se transmite, por arbitragem, ao mercado à vista.

Garófalo Filho, E. 2005. Câmbio$: Príncipios Básicos do Mercado Cambial. São Paulo, Editora Saraiva.Este livro trata, em linguagem coloquial de mercado, de inúmeros aspectos das regras, práticas e costumes do

mercado cambial brasileiro, tanto na atualidade como suas transformações ao longo do tempo.Hoff, C.R e Souza, F.E.P. 2006. O regime cambial brasileiro: sete anos de flutuação. A ser publicado pela

Rede Mercosul de Pesquisa. Disponível em www.ie.ufrj.br/conjuntura/artigos_academicos/index.php.Neste texto são discutidos em maior detalhe, porém sem uma preocupação didática, alguns dos temas aborda-

dos neste capítulo, como os testes referentes ao medo da flutuação, a evolução da política cambial brasileira desde1999 e as instituições do mercado de câmbio brasileiro.

Kessel, M. 1998. “Regimes cambiais e políticas cambiais brasileiras.” Boletim do Banco Central, Separata defevereiro.

Esta nota técnica faz um relato sintético das políticas cambiais brasileiras, do final do século passado até o Pla-no Real.

Pastore, A.C. e Pinotti, M.C. 2005. “Derivativos, valorização do real e juros”, Jornal Valor Econômico, 10 demarço, edição no 1217.

Este artigo, como referido no Box 25.1, mostra a forma como o mercado de NDFs no exterior afeta a taxa decâmbio doméstica, mesmo na ausência de fluxos de capitais entre a economia e o exterior.

Banco Central do Brasil, Posição de Câmbio dos Bancos. 2003. Focus Especial de 2/7/2003. Disponível no en-dereço eletrônico: http://www4.bcb.gov.br/pec/GCI/PORT/focus/M20030702-Posição%20de%20Câmbio%20dos%20Bancos.pdf

Este texto do banco central explica o conceito de posição cambial dos bancos e discute os fatores responsáveispela sua variação.

Regime Cambial e Mercado de Câmbio no Brasil 383