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L ÉGUA & MEIA : R EVISTA DE L ITERATURA E D IVERSIDADE C ULTURAL , V. 7, N O °5, 2009 113 Antonio Torres Eurico em Alagoinhas: Uma temporada entre luz e sombra Todos os crepúsculos agora estão em mim... Almas estranguladas passeiam com a minha alma de confidências, pelas escuras alamedas do passado... Porque vens, agora, sombra amiga, quando esta longa noite do tempo veio para esquecer, porque vens aflorar no meu caminho a sinfonia do meu tormento? Perdi sonhos, perdi desejos infecundos, perdi de ouvir a música do tempo. É como se fosse a vida que imitasse a arte. Assim pensa o autor destas linhas num dia do mês de março de 2009, ao ler um poema que Eurico Alves Boaventura escreveu em 1951. Trata-se do belo e melancólico Rondó das sombras consoladoras, cujo trecho acima ilustra à perfeição a memória de uma tarde de 1970, quando o poeta recebeu em sua casa, numa ensolarada e solitária rua que se chamava Manuel Bandei- ra, uma alma estrangulada pelo excesso de horas presa à poltrona de um ônibus comum, do Rio de Janeiro a Feira de Santana. Foi uma breve visita. E de surpresa. Nada além de uma pausa a meio do cami- nho para outros nortes, e para acorçoar-se ao sabor de um café e dois dedos de prosa, que resultariam num passeio de confidências pela longa noite do tempo em alamedas escuras do passado, e que, revisitadas agora, desembocam na página de Luz em agosto na qual William Faulkner escreveu: É o conhecimento – e não a dor – que faz você se lembrar de centenas de ruas selvagens e ermas.

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Antonio Torres

Eurico em Alagoinhas:Uma temporada entre luz e sombra

Todos os crepúsculos agora estão em mim...

Almas estranguladas passeiam com a minha alma de confidências,pelas escuras alamedas do passado...

Porque vens, agora, sombra amiga,quando esta longa noite do tempo veio para esquecer,porque vens aflorar no meu caminho a sinfonia do meu tormento?Perdi sonhos, perdi desejos infecundos, perdi de ouvir a música do tempo.

É como se fosse a vida que imitasse a arte. Assim pensa o autor destas linhasnum dia do mês de março de 2009, ao ler um poema que Eurico Alves Boaventuraescreveu em 1951. Trata-se do belo e melancólico Rondó das sombras consoladoras, cujotrecho acima ilustra à perfeição a memória de uma tarde de 1970, quando o poetarecebeu em sua casa, numa ensolarada e solitária rua que se chamava Manuel Bandei-ra, uma alma estrangulada pelo excesso de horas presa à poltrona de um ônibus comum,do Rio de Janeiro a Feira de Santana.

Foi uma breve visita. E de surpresa. Nada além de uma pausa a meio do cami-nho para outros nortes, e para acorçoar-se ao sabor de um café e dois dedos de prosa,que resultariam num passeio de confidências pela longa noite do tempo em alamedas escurasdo passado, e que, revisitadas agora, desembocam na página de Luz em agosto na qualWilliam Faulkner escreveu: É o conhecimento – e não a dor – que faz você se lembrar decentenas de ruas selvagens e ermas.

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Eurico Alves com a mulher e os filhos na casa da rua Manuel Bandeira. Foto 1971.

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Erma, sim. Selvagem, não – poderia ter concluído o recém-chegado à ruazinhaàquela hora deserta, e ao ser recebido com a fidalguia peculiar a um homem de letrascitadino de reconhecível herança aristocrática rural. E Juiz de Direito, ainda por cima,embora já a viver os crepúsculos da aposentadoria na sossegada Rua Manuel Bandeira, aquem o autor da Estrela da vida inteira devia a homenagem, por razões que a esta altura,imagina-se, poeta algum ignora, pelo menos na Bahia.

Recorda-se aqui a entrada da casa por uma varanda lateral, onde havia uma cadeirade balanço. Acrescente-se ao impacto visual das singelezas à chegada, portas e janelasazuis, e paredes brancas, tudo a trazer para a arquitetura urbana do século XX uma evoca-ção da era das mansões coloniais, se é que não se delira nessa recordação.

De certeza é que àquela hora o sol amenizava-se, já em queda para o poente. E queum vento morno regia a música do tempo, numa orquestra a farfalhar em memorável concer-to a sua Antífona para depois de amanhã: “O vento marca o tempo, o tempo que ouço uivan-do/ nas marchas dos moços sem rumo.”

Elegantemente trajado, como de hábito, o doutor Eurico Alves Boaventura enca-minhou o seu visitante a uma mesa senhorial ao centro da sala, na qual reinava o silêncio,

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quebrado apenas quando surgiu uma senhora (parente sua, talvez) para cumprir osagrado ritual da hospitalidade sertaneja, ao portar uma bandeja com um bule e duasxícaras de café. O que faltava ali? Os convivas de outra sala há onze anos atrás, numacidade chamada Alagoinhas, onde o anfitrião era o mesmo dessa tarde que pareciamais propícia a uma soneca do que a recepções não programadas.

Mas não. O protagonista desta história era, antes de tudo, um ser gregário, ummestre na arte do convívio. Recebeu a inesperada visita de braços abertos, e de formatão calorosa que preenchia o vazio das ausências, a começar pela dos familiares, àquelahora cuidando de seus afazeres fora das instâncias domésticas. E de que cuidava ele,agora, à sombra dos seus sessenta e um anos? Dos retoques finais num livro de maisde mil páginas datilografadas, que lhe havia consumido, em pesquisas e elaboração, amaior parte dos anos já vividos. Com o calhamaço à mesa, de repente a sala povoou-se dos vaqueiros que traçaram a rota primitiva dos destinos da Colônia que Portugal criouneste lado do Atlântico, na saga que levaria à civilização do pastoreio. Ler em voz alta erapara ele uma praxe que vinha há muito do tempo, certamente bem anterior às tertúliasna biblioteca de sua casa de Alagoinhas, em noites em que cintilava uma nova cons-telação da poesia brasileira, que em sua voz descia redonda em ouvidos até entãomais afinados com a lírica d’antanho, que os anos não traziam mais, numa cidade queainda se movia ao ritmo dos boleros, embora já a ensaiar os primeiros passos de Rock’nroll.

Se foi um privilégio privar dos saraus na intimidade do seu lar alagoinhense, apartir do que seus convivas não mais leriam poesia da mesma maneira, imagine o quedizer da honra de ser brindado com as primeiras páginas de uma obra inédita, cujaenvergadura sociológica e histórica transcendia a dimensão do volume e o esforçociclópico do autor para realizá-la. Mas de repente ele parou. E não por cansaço oupara fazer algum comentário. Com uma mão sobre a página (devia ser a quinta ou asexta), cuja leitura interrompera, e, abaixando ainda mais os olhos, que se apertavampor trás dos óculos, disse, em tom sussurrante, como se falasse para si mesmo:

-– Quando eu me lembro... Perturbado pelos sinais de desgosto que a repentina lembrança estampava

num rosto àquele instante visivelmente sulcado de mágoas, o eterno ouvinte do poe-ta, ensaísta etc. e mestre informal Eurico Alves Boaventura eclipsou-se entre a luzexterna, porta e janelas afora, e a sombra interna em uma alma martirizada do tempo.Restava saber que martírio era esse.

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– Você sabe o que aconteceu comigo?A cena congela aqui, no retrospecto que se tenta fazer agora. Porque a memória

só alcança até aquela pergunta, diante da qual o seu ouvinte não se sentiu uma som-bra consoladora, mas uma presença incômoda, desassossegadora, que trazia para aquelasala a lembrança da cidade onde o que acontecera fora abominável demais para terconsolo ou remissão, embora não saiba, agora, se já chegara àquela mesa, naquelacasa de Feira de Santana, e naquela tarde de 1970, sabendo o que se passara com oMeritíssimo Juiz de Direito da Comarca de Alagoinhas no terrífico ano de 1964, nasequência das arbitrariedades militares, cuja dolorosa lembrança o tornava (a ele, oJuiz) refém do estribilho do rondó que escrevera vinte e três anos antes: Todos oscrepúsculos agora estão em mim... Pois agora, e por ironia do destino, ele devia estar sen-tindo deveras a dor que poderia então ter sido apenas um fingimento.

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Gabinete de Eurico Alves em Alagoinhas, 1963.

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O QUE FOI MESMO QUE LHE ACONTECEU?

– Sim, eu me lembro – diz Valdemar Paraguassu, que há muitos anos vive emSalvador, mas em 1964 morava em Alagoinhas, e a poucos passos da casa do doutorEurico, como o chamam todos daquela cidade que o conheceram. – Fomos presosnum mesmo dia. Assim que me soltaram, fui embora, para assumir um emprego noBanco do Brasil em outro lugar. Por isso não soube o que aconteceu com ele depois dasua prisão. O que me lembro é do clima de terror daqueles dias, quando um comerci-ante encrenqueiro de lá passou a acusar de subversivo todo aquele com quem eletinha alguma contrariedade, ou simplesmente a quem não simpatizava. Foram tantasas prisões por denúncias desse tipo, que elas viraram uma esculhambação, a ponto deo comando local das repressões ter de exigir que só fossem feitas por escrito. E comfirma reconhecida!

O que dizer disso agora? Que teria sido cômico se não fosse trágico? No caso específico do doutor Eurico, porém, a maledicência fora engendrada

por um Oficial de Justiça. É o que recorda Aristóteles Freitas Costa, que àquela épocaera um dos alunos que mais se destacava no Ginásio de Alagoinhas, e que, comooutros estudantes intelectualmente inquietos, tinha em doutor Eurico um mentorextra-classe. Costumava visita-lo no Fórum, às vezes acompanhando-o a caminho decasa, parando numa esquina e outra, em conversações que podiam ultrapassar umaboa meia hora. Formado em Direito, o velho Arica hoje mora no bairro de Icaraí, emNiterói, RJ. O que lembrou mais, ao telefone:

– Ele me aconselhava a não parar de estudar. E me indicava autores, me incen-tivava a ler muito. E bem. Uma vez me emprestou um livro de poesias traduzido porManuel Bandeira, que não devolvi, porque não o vi mais, depois da sua prisão.

– E por que você não o viu mais? – Eu trabalhava numa sorveteria do meu pai e um dia vi o policial que prendeu

o doutor Eurico parado na porta, me encarando. Deduzindo que ele estava de olhoem mim, fui me esconder numa fazenda que a gente tinha, e por lá fiquei um tempo,esperando a poeira baixar. Quando voltei, o doutor Eurico já não morava mais nacidade. Os comentários eram de que ele havia sido transferido para Vitória da Con-quista.

Foi o que aconteceu, confirma Juraci Dórea em seu ensaio Eurico Alves e a Feirade Santana. Está no livro A poesia de Eurico Alves – Imagens da cidade e do sertão, organi-zado por Rita Olivieri-Godet, e publicado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia

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em 1999. Amigo de Eurico de longa data, o artista plástico, arquiteto e também poetaJuraci Dórea esclarece: s períodos de férias, Eurico pouco viveu em Feira de Santana.Aos 14 anos de idade (1923) ele já se encontrava em Salvador, matriculado no Giná-sio N. S. da Vitória [...] Em 1934, recém-formado, estava em Feira de Santana, porémlogo no ano seguinte transferiu-se para Capivari, hoje Macajubae Jacuipe, Poções,Canavieiras, Alagoinhas, Vitória da Conquista e o doutor Eurico Alves Boaventurasó voltou a viver na capital já perto de aposentar-se, e isto pouco ou nada influiriamais em seu destino literário.

Voltemos à sua temporada de Alagoinhas (1959-1964), não necessariamenteUne Saison en Enfer, mas que só não se tornou uma página em branco na história deEurico graças às incansáveis buscas biobibliográficas de Juraci Dórea e à memória deMaria Eugênia Boaventura, que era bem pequena naquele tempo, mas ainda se lem-bra que a casa ficava à Rua Carlos Gomes, 63, com a biblioteca na sala de visitas, eque era frequentada pela professora Normândia Azi Lacerda, o advogado MuriloCavalcanti, um funcionário da Justiça do Trabalho chamado Giése (José Giése daCruz, primo do autor destas linhas), o alfaiate que fazia os blazers do seu sempreelegante pai, que por sua vez fundou o Lyon’s Clube da cidade, tendo sido o seu primeiropresidente. Maria Eugênia recorda-se ainda que o doutor Eurico foi professor do Ginásiode Alagoinhas, onde dava aulas pautadas pela pluralidade de conhecimentos.

Entre as pessoas lembradas pela professora Maria Eugênia, há uma que pode-ria emergir das sombras reivindicando este epitáfio:

Tropeço, dentro da noite em cadáveres de sonhos...

Porém, mãos de suicidas, As dolorosas e augustas mãos dos suicidas, Vêem ensombrar a minha fronte para eu sonhar...

Todos os crepúsculos agora estão em mim...

No contexto destas memórias, esses versos evocam o trágico fim de um dosconvivas das tertúlias à Rua Carlos Gomes, 63, Alagoinhas, Bahia. Nascido num dis-trito de Inhambupe chamado Junco (hoje a cidade de Sátiro Dias), onde fora batizadoe registrado com um sobrenome de origem alemã como nome próprio, aposto ao deJosé, Giése cometeu o tresloucado gesto na casa do bispo de Juazeiro da Bahia, aípelo ano de 1971, deixando uma carta cujo conteúdo o bispo jamais revelaria, por

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considerá-lo um segredo de confissão. Para que não se avente premonições do poeta,lembremos que o Rondó das sombras consoladoras é de 1951, e, também, que Euricoe Giése só vieram a se conhecer em 1959. Mas como evitar a tentação de dizer outravez que foi a vida que imitou a arte?

1959-2009: MEMÓRIAS, SONHOS...

Assim se passaram cinquenta anos: envoltos em sombras [que] abafaram ospassos das distâncias/ para que não perturbassem o sono do silêncio...

– Atirador 22, sentido! Marche, marche! Do Tiro de Guerra 110 ao Ginásio deAlagoinhas, e de lá ao Fórum ou à Rua Carlos Gomes, 63 – em 1959!

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Há um fabuloso tempo a ser reencontrado nessa marcha de volta.Chegou a hora de fazer-se a luz sobre a sombra dolorosa e inexpressiva como

um sonho morto que até aqui pairava na sua memória, porque você, por mais que seesforçasse, não conseguia enxergar com nitidez todo o impacto causado pela chegadado juiz-poeta Eurico Alves Boaventura àquela cidade das luzes verdes nas fachadas,em um ano de sonhos dourados de uma juventude que ele mesmo faria crer-se pro-missora. “Memória! Junta na sala do cérebro...” Sobre o que vocês conversavam? Nastertúlias que promovia, ele lia seus próprios poemas? E que poetas lidos ou recomen-dados por ele foram verdadeiras revelações? Alguns deles chegaram a ser tão decisi-vos para sua formação literária, quanto os ficcionistas – Jorge Amado e GracilianoRamos, por exemplo –, que o professor Carloman Carlos Borges levou você a conhe-cer, dois anos antes? Enfim, qual foi o seu real legado?

Resposta: só agora, e graças à memória do caro colega do Ginásio de AlagoinhasAristóteles Freitas Costa, me dou conta de quem pode ter me levado a ler um poemade Federico Garcia Lorca traduzido por Manuel Bandeira, e que começa assim:

Cantam os meninosna noite quieta;arroio claro,fonte serena.

OS MENINOS:Que tem teu divinocoração em festa?

EU:Um dobrar de sinosperdido na névoa.

A lembrança desses versos, muitos anos depois de os haver lido em algum lugardo passado, e certamente num livro emprestado pelo doutor Eurico, levou-me a es-crever o romance Balada da infância perdida, cuja primeira edição é de 1986, e que foitraduzido para o inglês com o melódico título Blues for a lost childhood. E agora tambémme lembro do meu segundo dia de trabalho como aprendiz de repórter policial noJornal da Bahia, ao desembarcar de Alagoinhas em dezembro de 1959. Como no dia

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Antônio Torres, jornalista, redator de publicidade e escritor, estreou com o romance Um Cão Uivandonas para a lua, em 1972. Em seguida, publicou mais dez romances, sendo os mais recentes: O nobresequestrador (2003) e Pelo fundo da agulha (2006). Durante anos, ministrou oficina de textos na UERJ,como escritor convidado. Recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, em2000, pelo conjunto da obra.

anterior eu havia fracassado na cobertura do movimento do porto de Salvador, ondenão fui capaz de farejar uma manchete espetacular – um tiroteio cinematográficoentre policiais e contrabandistas –, me empurraram para o Necrotério Nina Rodrigues.Dali não iria voltar sem assunto. Logo à entrada via-se, estirado num estrado, o cadá-ver de um rapaz que se matara.

Corri para o jornal e comecei a matéria com um poema de Godofredo Filho quefalava do absurdo de se morrer aos 20 anos, entregando-a em seguida, e com a ansie-dade imaginável, ao chefe de reportagem, o poeta João Carlos Teixeira Gomes, que apassou ao chefe da reportagem policial, o também poeta Jeová de Carvalho, que porsua vez mostrou-a ao editor-chefe, o ficcionista Ariovaldo Matos que, de dedo emriste, disse ao aprendiz de repórter que ele estava ali para fazer jornalismo e nãoliteratura, que poesia era coisa de... Bom, felizmente não perdi o emprego. Mas o queimporta aqui é que com certeza foi Eurico quem me levou a ler Godofredo Filho. ECassiano Ricardo. E Jorge de Lima – com quem se correspondia - de cuja obra hoje sediz que “permanece robusta e poderosa como um penhasco, na solidão incomparáveldo gênio”.

... REFLEXÕES

Não dá para imaginar que Eurico um dia tenha tido pretensões de ser postopela posteridade nas mesmas alturas de seus mais festejados (e fraternos) pares Manu-el Bandeira e Jorge de Lima. Ele não era, como Gilberto Freyre – que reconheciacomo grande escritor – “uma pessoa feita para se ver no espelho”. E sua obra conti-nua “restrita a um pequeno círculo de amigos e especialistas”, como constata JuraciDórea, mesmo em se tratando de “uma figura de proa nos primórdios do modernismona Bahia”, no dizer do consagrado poeta Florisvaldo Mattos.

Tiremos-lhe das sombras. Para que este não seja um tributo a cem anos desolidão.

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A Fazenda Fonte Nova, em São José das Itapororocas. Janeiro de 2000.

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Eurico Alves e Hélio Simões, poetas modernistas do grupo Arco & Flexa.

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Na década de 30, um episódio chamou a atenção parao nome de Eurico Alves: o famoso diálogo poético comManuel Bandeira. Sob o impacto da leitura do livro Li-bertinagem, de Bandeira, ele escreveu um poema, intitulado“Elegia para Manuel Bandeira”, convidando o poetapernambucano a visitar Feira de Santana. Sem o seu co-nhecimento, Carvalho Filho datilografou os versos e en-viou para Bandeira, que respondeu com outro poema.“Eu estava operado no hospital, quando apareceramCarvalho e Godofredo Filho com a Escusa”, registrouEurico Alves, em carta para sua filha Maria EugeniaBoaventura, datada de 1º de janeiro de 1969.

Nos anos 60, a “Escusa”, que já havia saído em livro,integrou uma antologia, organizada pelo próprio Ban-deira, com o título de Meus poemas preferidos.

DIÁLOGO ENTRE EURICO ALVESE MANUEL BANDEIRA

Juraci Dórea

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ELEGIA PARA MANUEL BANDEIRA

Estou tão longe da terra e tão perto do céu,quando venho subir esta serra tão alta...

Serra de José das Itapororocas,afogada no céu, quando a noite se despee crucificada no sol se o dia gargalha.Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgenstecem o céu de corolas para meu acalanto.Perdi completamente a melancolia da cidadee não tenho tristeza nos olhose espalho vibrações da minha força na paisagem.

Os bois escavam o chão para sentir o aroma da terra,e é como se arranhassem um seio verde, moreno.

Manuel Bandeira, a subida da serra é um plágio da vida.Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a bater nas teclasda desumanizada máquina friae venha ver a vida da paisagemonde o sol faz cócegas nos pulmões que passame enche a alma de gritos da madrugada.Não desprezo os montes escalvadostal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro.Bebo leite aromático do candeial em flore sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.Visto os couros do vaqueiroe na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para a galopada.

Eurico Alves

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Aqui come-se carne cheia de sangue, cheirando a sol.

Que poeta nada! Sou vaqueiro.Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhose sabe de um grito atemorizar o sol.

Feira de Santana! Alegria!

Alegria nas estradas, que são convites para a vida na vaquejada,alegria nos currais de cheiro sadio,alegria masculina nas vaquejadas, que levam para a vidae arrastam também para a morte!

Alegria de ser bruto e ter terra nas mãos selvagens!

Que lindo poema cor de mel esta alvorada!

A manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.

Manuel Bandeira, dê um pulo a Feira de Santanae venha comer pirão com carne assada de volta do currale venha sentir o perfume de eternidade que há nestas casas [de fazenda,nestes solares que os séculos escondem nos cabelos [desnatrados das noiteseternas venha ver como o céu aqui é céu de verdadee o tabaréu como até se parece com Nosso Senhor.

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ESCUSA

Eurico Alves, poeta baiano,Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito,Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant’Ana.

Sou poeta da cidade.Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam [a respirar o gás carbônico das salas de cinema.Como o pão que o diabo amassou.Bebo leite de lata.Falo com A., que é ladrão.Aperto a mão de B., que é assassino.Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos [nas cores das madrugadas.

Eurico Alves, poeta baiano,Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais [da roça.

Manuel Bandeira

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Rua Manuel Bandeira, em Feira de Santana.Uma homenagem de Eurico Alves ao poeta pernambucano.

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A noção de regionalismo, introduzida no século XIX para caracterizar a litera-tura produzida fora do Rio de Janeiro, nas províncias - e tendo por objeto a descriçãode locais remotos, interioranos, especialmente de áreas rurais, sobretudo o sertão, eseus respectivos tipos, relações sociais e humanas, paisagens, linguagens, identida-des, imaginário - sobreviveu ao tempo. Conceito abrangente, passou a englobar auto-res e obras os mais diversos, de diferentes regiões e períodos históricos, o que levouao nivelamento de obras de valor estético-literário díspar. Baseando-se num critériogenérico e tradicional de regionalismo, alguns críticos colocaram num mesmo pata-mar estético-literário autores que vão de Franklin Távora a José Lins do Rego, deSimões Lopes Neto a Graciliano Ramos, de Afonso Arinos a João Guimarães Rosa.Como a produção rosiana também passou a receber o rótulo de regionalista, AntonioCandido, entre outros estudiosos dessa obra, tratou de diferenciá-la, lançando mãoda noção de super-regionalismo e Alfredo Bosi, da noção de romance de tensão trans-figurada. Não obstante a existência de muitos estudos sobre essa temática, é válida,cremos, a retomada da reflexão sobre a consideração da obra de Guimarães Rosacomo regionalista.

O sertão-mundode Guimarães Rosa

Maria Célia Leonel (UNESP)José Antonio Segatto (UNESP )

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1 A LITERATURA REGIONALISTA

A literatura denominada regionalista ocupou-se em descrever, principalmente,o mundo sertanejo, documentando e buscando representar “[...] tipos humanos, paisa-gens e costumes considerados tipicamente brasileiros.” (CANDIDO, 2002, p.87).

O regionalismo que germina no Romantismo envolve autores, obras e regiõesbem diversificadas: Bernardo Guimarães, Afonso E. de Taunay, José de Alencar,Franklin Távora, Caldre e Fião. “Os tipos humanos das diferentes regiões e provínci-as, a cor local, a notação pitoresca concentram a prosa desses autores” (GALVÃO,2000, p. 48). Entre 1890 e 1920, aproximadamente, floresce a vertente denominadade “sertanista”, que também envolve autores e obras díspares, qualitativamente mui-to desiguais (Afonso Arinos, Valdomiro Silveira, Coelho Neto, Monteiro Lobato), etem em comum a idealização do sertão e a representação geralmente caricatural detipos humanos e a descrição das relações sociais coisificadas.

Outro surto regionalista apontado pela crítica é a produção romanesca dos anos30, principalmente do nordeste, com as obras de José Américo de Almeida, Raquel deQueiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado. Manifestar-se-ia tam-bém na ficção de Érico Veríssimo no sul e teria chegado ao auge com Guimarães Rosanos anos 40 e 50. Essa fase do regionalismo teria como elemento diferenciador, paramuitos, o fato de expor a miséria humana da população sertaneja e as mazelas dasrelações sociais e de poder.

Como explicar o surgimento e a sobrevida histórica dessas manifestações? Umahipótese plausível é a de um estado nacional inconcluso - cuja unidade territorial epolítica foi imposta de cima, arbitrariamente, pela coação - e altamente centralizadono centro-sul. Com parcos elementos identitários, temos a existência de regiões comrealidades sócio-econômicas e culturais muito diferenciadas – um desenvolvimentodesigual e combinado, chegando mesmo, em muitos casos, a extremos, entre Provín-cias (Império) e entre Estados (República), dando origem a “vários brasis”.

Alguns críticos, como Antonio Candido (1987, p. 202), caracterizam esse fenô-meno como constituindo “literaturas nacionais atrofiadas”. Outros, como AfrânioCoutinho (1955, p. 149), definem o regionalismo como “[...] um conjunto de retalhosque arma o todo nacional”, isto é, um conjunto de obras que, justapostas, formariamuma espécie de “mosaico literário”, representando as especificidades locais - a unida-de na diversidade.

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Ligia Chiapini M. Leite (1994, p. 672) analisa o fenômeno do regionalismo como“movimento compensatório em relação ao novo”. Teria, nesse sentido, um caráter“regressivo” ao procurar, documentariamente, através da literatura, os resíduos deum passado que vinha sendo progressivamente destruído ou transformado pelo de-senvolvimento capitalista. A mercantilização das relações sociais, o desencantamen-to e a racionalização, a implantação de novas formas de sociabilidade e dominaçãopolítica condenavam aquele mundo à extinção.

Se, por um lado, a literatura regionalista é de fato um fenômeno histórico-cultu-ral concreto, por outro, é também vista como uma construção de cunho programáticoe ideológico, perpassada por concepções as mais diversas, como, entre outras, olocalismo, o nacionalismo, o provincianismo e o cosmopolitismo. O problema, comofoi dito, é a homogeneização de obras e autores com valores e qualidades estético-literárias muito distintas, a qual leva à questão: toda obra literária produzida fora doRio de Janeiro no século XIX ou do eixo Rio-São Paulo no século XX e tendo comoobjeto narrativo o mundo rural deve ser classificada como regionalista? É essa ques-tão que, entendemos, deve ser revista, o que já vem sendo feito por alguns críticos,pois a dificuldade para se considerar o que seja literatura regionalista continua sendogrande.

Daí as diferentes propostas de nossos críticos para darem conta desse tipo deliteratura. Antonio Candido (1987), no conhecido texto de 1970 denominado “Litera-tura e subdesenvolvimento” sobre a América Latina, retomando o regionalismoafirma que, no Brasil, esse domínio da criação literária, tendo surgido com o Roman-tismo, inicialmente, “[...] nunca produziu obras consideradas de primeiro plano, mes-mo pelos contemporâneos, tendo sido tendência secundária quando não francamentesubliterária [...]” (CANDIDO, 1987, p. 161). Por volta de 1930, tais tendênciasregionalistas “[...] já sublimadas e como transfiguradas pelo realismo social, atingiramo nível das obras significativas [...]” (p. 161) e conformaram a segunda fase do regio-nalismo. A terceira fase seria chamada de “super-regionalista” (CANDIDO, 1987, p.161, grifo do autor) e é marcada pela “explosão do tipo de naturalismo” que aquitriunfava. Nessa fase, encaixa-se a obra “revolucionária de Guimarães Rosa”. De-compondo-se o termo super-regionalista que Antonio Candido afirma ter usadopensando em surrealismo ou super-realismo, de um lado, sobressai o vínculo com oregionalismo; de outro, a noção de superioridade que indica a superação do regional,em obras marcadas “[...] pelo refinamento técnico, graças ao qual as regiões se trans-

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figuram e os seus contornos humanos se subvertem, levando os traços antes pitores-cos a se descarnarem e adquirirem universalidade.” (CANDIDO, 1987, p. 161).

Alfredo Bosi (1995, p. 390), na conhecida hipótese de trabalho sobre aficção que se inicia em 30 e vai até o ano em que escreve, ou seja, 1970 – por coinci-dência no mesmo momento em que Antonio Candido fala de super-regionalismo –praticamente descarta a classificação de determinadas obras como regionalistas. Aprecariedade da divisão em romance social-regional e psicológico-urbano, que nãodá conta de “obras-primas como São Bernardo e Fogo morto”, enseja-lhe a sugestão deuma classificação baseada em Pour une sociologie du roman de Lucien Goldmann, por suavez, apoiado em Georgy Lukács e René Girard. Tomando como princípio “a figura do‘herói problemático’ em tensão com as estruturas ‘degradadas’ vigentes” (BOSI, 1995,p. 391), o estudioso propõe a distribuição do romance brasileiro em quatro tendênci-as: os de tensão mínima, os de tensão crítica, os de tensão interiorizada e os de tensãotransfigurada. Na quarta categoria – a da tensão transfigurada - em que “O heróiprocura ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente pela transmutação míticaou metafísica da realidade”, incluem-se as obras de Guimarães Rosa. Na verdade, anoção que preside essa classificação não se afasta muito da ideia que levou AntonioCandido a propor o termo super-regionalismo.

2 O SERTÃO ROSIANO

Já o sertão como objeto de representação literária adquiriu, ao longo do tempo– em especial, desde a segunda metade do século XIX – tratamento constante e privi-legiado na literatura brasileira. São muitos os romances, contos e novelas que confi-guram as relações sociais que no sertão se estabeleceram historicamente. De José deAlencar (O sertanejo de 1875) a Raquel de Queiroz (Memorial de Maria Moura de 1992);de Afonso Arinos (Os jagunços de 1898) a Mário Palmério (Vila dos Confins de 1956);de Hugo de Carvalho Ramos (Tropas e boiadas de 1917) a Bernardo Elis (O tronco de1956); de Graciliano Ramos (Vidas secas de 1938) a João Cabral de Melo Neto (Mortee vida severina de 1956), é grande a lista de obras com essa temática. Mas é com Gui-marães Rosa (Grande sertão: veredas de 1956) que a realidade sertaneja encontra a gran-de síntese épico-dramática.

A caracterização corrente de sertão é a de uma área despovoada ou escassa-mente habitada, interior ermo, “sem vivalma”, nos confins, como escreve Guimarães

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Rosa (1978, p. 9), “onde se pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa demorador”.

Espaço de difícil delimitação, sem contornos e fronteiras nítidas, o “[...] sertãoaceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o Chapadão, lá acolá é a caatinga.” (ROSA,1978, 370). Com o passar do tempo, o sertão vai se deslocando – desde as entradas ebandeiras em busca de ouro e pedras preciosas e/ou visando o apresamento de indí-genas, passando pela ocupação pecuária, até as sucessivas “expedições” e “marchas”para o oeste, o traçado do sertão foi mudando de lugar, sendo empurrado para dentro.“A boca do sertão” foi afastada e deslocada para o oeste e para o norte pela fronteiraagrícola, pela urbanização e pelas relações mercantis. De fato, o sertão, como afirmaGuimarães Rosa (1978, p. 391), “está movimentante todo-tempo”. Ou seja, nesseespaço, há uma nítida “mistura de tempos e níveis de realidade histórica”, com“temporalidades igualmente distintas, mas coexistindo mescladas no sertão que é o mundomisturado” (ARRIGUCCI , 1994, 17; grifo do autor). Assim sendo, “Não é à toa queesse é o lugar do atraso e do progresso imbricados, do arcaico e do moderno enreda-dos, onde o movimento do tempo e das mudanças históricas compõe as mais peculi-ares combinações.” (Id., ib.).

A persistência histórica de elementos extemporâneos ou mesmo que parecemantediluvianos expressa uma realidade em que relações sociais não-capitalistas aindacontinuam a vigorar, em que os produtos, as “coisas”, a mão-de-obra não se transfor-maram por completo em mercadoria, ou seja, as relações não foram plenamentemercantilizadas. Quando Guimarães Rosa (1978, p. 9), por meio de seu narrador-personagem, diz que o sertão “é onde os pastos carecem de fecho”, pode estar não sólhe dando entre outros o atributo de amplitude, mas também o significado deinexistência da cerca, do arame farpado, da delimitação da propriedade privada.

Dessa forma, o universo do grande sertão de Guimarães Rosa expressa um com-plexo de elementos fundamentais que vigem nas relações humanas e sociais do país eas perpassam historicamente. Embora seu objeto de representação seja um espaço/ambiente determinado, o do sertão, o autor (re)cria ou inventa uma realidade maisampla, rica em significados sociais, políticos, culturais, que ele nomeia “sistema-jagunço” (ROSA, 1978, p. 391).

Esse sistema envolve um conjunto de relações de dominação regidas pela vio-lência ou pela coação, pelo clientelismo e pelo favor, pela preponderância do poderprivado sobre o público, pela supremacia da tradição sobre a instituição.

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Tal regime, recriado no grande sertão de Guimarães Rosa, constituiu-se ao lon-go dos séculos que se seguiram à colonização, baseado no conjunto de micropoderesde potentados locais, fundados na propriedade latifundiária, nas oligarquias rurais eregionais, no patriarcalismo, no clientelismo, no patrimonialismo, na ausência do po-der estatal, no mandonismo e na violência. Assim Riobaldo explicita o “sistema ja-gunço”:

– Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política! Tudo política, e potenteschefias. A pena, que aqui já é terra avinda concorde, roncice de paz, e sou homemparticular. Mas, adiante, por aí arriba, ainda fazendeiro graúdo se reina mandador –todos donos de agregados valentes, turmas de cabras do trabuco e na carabinaescopetada! (ROSA, 1978, p. 87).

Quando Riobaldo afirma que o “sertão está em toda parte” (ROSA, 1978, p. 9),quer dizer que suas dimensões sociopolíticas e culturais extrapolam muito seus limi-tes. As margens móveis e pouco nítidas que se estendem para muito além das frontei-ras físicas, possibilitam reiterar, com Guimarães Rosa, que o sertão está em todolugar, numa dimensão ampliada.

Se, por um lado, os indícios contidos em várias passagens de Grande sertão: vere-das apontam que a narrativa rosiana abarca, de maneira aproximada, o período da vidabrasileira que vai de 1880 a 1930, por outro, é lícito afirmar que o autor, por meio dainventividade artística, indica algumas tendências históricas que viriam a ganhar con-figuração mais nítida na realidade do país pós-1930. A partir daí, acentua-se o proces-so de desenvolvimento das forças produtivas nacionais e das relações capitalistas deprodução; amplia-se o mercado interno e dissemina-se a mercantilização em todos osníveis; passa a haver a predominância da cidade sobre o campo, da indústria sobre aagricultura; a população urbana sobrepuja a rural, ocorrendo um deslocamento deamplos contingentes para as grandes metrópoles. Ocorrem então transformações quecriam condições propícias à ocupação e/ou anexação do sertão ao Estado nacional.

O sertão é progressivamente incorporado e, ao mesmo tempo, invadido pelamodernidade – migra para as cidades, urbaniza-se; é integrado pelo capitalismo e pelanação.

É possível, portanto, afirmar com Riobaldo (ROSA, 1978, p. 218): “Sertão éisto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.Sertão é quando o menos se espera.”

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3 O PARTICULAR E O UNIVERSAL EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Em Grande sertão: veredas, as relações entre o regional e o universal são altamen-te complexas pela profundidade com que tais categorias são tratadas e pelo entrelaça-mento entre elas. Ademais, no romance avulta a presença visível do mito.

A crítica tem-se debruçado sobre as dimensões do particular, do regional e douniversal em Grande sertão: veredas, mais do que em relação a outros livros rosianos,como era de se esperar. Nos estudos sobre essa questão, a primazia cabe a AntonioCandido não apenas porque trata da relação entre essas categorias no ensaio seminal“O homem dos avessos” (1971), mas porque o faz de modo a criar uma correntecrítica derivada das posições que assume, ainda que enfatizando apenas parte de suasproposições.

Em 1956, na resenha “Grande sertão: veredas”, inicialmente publicada no Su-plemento Literário d´O Estado de São Paulo - republicada com o título de “No Grandesertão” (2002, p. 190) - Antonio Candido ressalta a universalidade da obra: “[Gran-de sertão: veredas] Não segue modelos, não tem precedentes; nem mesmo, talvez, noslivros anteriores do autor, que, embora de alta qualidade, não apresentam a sua ca-racterística fundamental: transcendência do regional (cuja riqueza peculiar se man-tém todavia intacta) [...]”

Para enfatizar esse ponto fundamental do romance - o universalismo -, o críticopraticamente desdiz o que havia escrito sobre Sagarana em resenha em que salienta ouniversalismo dos contos publicados em 1946. Nessa resenha, publicada no mesmoano do lançamento do livro, o ensaísta (CANDIDO, 1983, p. 245) sustenta que ouniversal, nos contos, deve-se ao “alcance” e à “coesão da fatura”.

Em Grande sertão: veredas, ele surge “[...] graças à incorporação em valores uni-versais de humanidade e tensão criadora.” (CANDIDO, 2002, p. 190); além disso, há,no romance, a presença “do pitoresco regional à preocupação moral e metafísica.” (p.191). Contudo, a seu ver, ao trazer para o contexto erudito componentes do homemdo sertão, Guimarães Rosa obtém “[...] montagens, não a integração necessária ao plenoefeito da obra de arte.” (CANDIDO, p. 191; grifo do autor) Todavia, na mesma pági-na, o estudioso escreve que, como em composições musicais, há temas que são de-senvolvidos, retomados e que constituem “[...] o verdadeiro fio condutor de tudo oque se expõe no plano da ação e da descrição, de modo a resultar na integridade quaseobsessiva das diretrizes essenciais.” (p.191, grifo nosso) Assim, com as atividades de “ano-

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tação e construção” (p. 191; grifo do autor) Grande sertão: veredas lembra compositoresque enxertaram ritmos e melodias populares em obras requintadas. A nossa pesquisajunto ao Arquivo Guimarães Rosa acerca dos processos de criação do autor, faz-nosatribuir à palavra “anotação” mais um sentido em que, talvez, Antonio Candido nãotivesse pensado: as anotações para a redação das narrativas que têm relações clarascom o espaço regional. Já a ideia de que Grande sertão: veredas incorpora elementospopulares a uma composição sofisticada lembra a proposição de Gilda de Melo eSouza em O tupi e o alaúde (1979) a propósito de Macunaíma.

De todo modo, Grande sertão: veredas é “desses raros momentos em que a nossarealidade particular brasileira se transforma em substância universal.” (CANDIDO,2002, p.192) pois, nele, Guimarães Rosa elabora esteticamente questões universaisque ocupam e afligem o ser humano, indo de temas como o amor e o ciúme, a opres-são, a violência às indagações, nas ações humanas, dos limites entre o bem e o mal, ocerto e o errado, o justo e o injusto. Por isso, Antonio Candido (1987, p. 207), tratan-do de Guimarães Rosa em “A nova narrativa”, assegura que suas obras “tomavam pordentro uma tendência tão perigosa quanto inevitável, o regionalismo, e procediam àsua explosão transfiguradora”. Se Machado de Assis mostrou a possibilidade de cons-trução de uma grande literatura sem apego ao pitoresco a ao exótico, Guimarães Rosaentra “[...] de armas e bagagens pelo pitoresco regional mais completo e meticuloso, eassim conseguindo anulá-lo como particularidade, para transformá-lo em valor detodos.” Isso quer dizer que o escritor mineiro “[...] aceitou o desafio e fez dela [parti-cularidade] matéria, não de regionalismo, mas de ficção pluridimensional, acima doseu ponto de partida contingente.” (CANDIDO, 1987, p. 207) É assim que Guima-rães Rosa demonstra a possibilidade de “instaurar a modernidade da escrita dentro damaior fidelidade à tradição da língua e à matriz da região.” (p. 207)

Pelo exposto, vê-se que a obra rosiana, principalmente Grande sertão: veredas,supera a tradição literária do regionalismo, muitas vezes marcada pelo naturalismo oupela caricatura, que é baseada na observação (empírica e documental) e que resultana descrição de personagens, atos e espaços que, como cópia fotográfica, parecemestáticos e até mesmo, natureza morta. No escritor mineiro, o mundo do sertão não évisto de fora e de longe, tampouco, como objeto inanimado, como realidade fugaz eepidérmica. Ele é recriado e representado artisticamente como um complexo de rela-ções sociais, de dramas humanos, de elementos do imaginário. A ação e a reação daspersonagens diante de situações criadas, cujos destinos e perspectivas inserem-se em

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realidades socialmente determinadas, abarcam componentes de universalidade, ex-pressos em indivíduos singulares, vivenciando situações particulares. Nesse movi-mento de criação e representação, o sertão passa a ser o mundo.

REFERÊNCIAS

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Ática, 1987. p. 140-162.CANDIDO, A. No grande sertão. In: _____. Textos de intervenção. São Paulo: Duas cidades/34, 2002. p.

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Sul Americana, 1955. v. 2, p. 145-151.GALVÃO, W. N. Anotações à margem do regionalismo. Literatura e Sociedade, São Paulo, Departamento de

Teoria literária e Literatura Comparada/FFLCH-USP, n. 5, p. 44-55, 2000.SOUZA, G. de M. e. O tupi e o alaúde. São Paulo: Duas Cidades, 1979.LEITE, L. C. M. Velha praga? Regionalismo literário brasileiro. In: PIZARRO, A. (Org). América latina:

palavra, literatura e cultura. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1994, v. 2, p. 665-702.ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. 12. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1978.

Recebido: 10/05/2009Aprovado:11/06/2009

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O livro Sexualidade e gênero no imagináriobrasileiro, de Helena Bocayuva, destina-se a quemjá leu ou pretende ler alguns dos melhores ro-mances brasileiros, do período romântico aopré-modernismo, ou seja, de José de Alencar,Aluísio Azevedo e Lima Barreto, com algu-mas alusões à ficção de Machado de Assis. Seuensaio traz à tona questões pouco discutidasnesses romances e dá ao leitor uma visão maiscrítica para compreender certas situações ain-da hoje presentes de forma residual na socie-dade.

No período abordado pela autora, osromances brasileiros representam diversas ce-nas em família, focalizando-as através de pre-missas e conceitos que se originam no modelode ordenação social européia, fenômeno queMichel Foucault denominou “biopoder”. Ofilósofo francês explica e questiona os mode-los elaborados pela sociedade européia, sobre-tudo a partir da França, para organizar a soci-edade, ditar a formação das famílias e a edu-cação das pessoas, numa visão higiênica e mé-dico-sanitária da nação.

No Brasil, na virada do século XIX parao século XX, no contexto ainda marcado peloescravismo, essas teses européias redundaramna adoção de uma política sanitária ostensiva,

Sexualidade e Gênero —As metáforas do biopoder

Rosana Ribeiro Patricio, UEFS

BOCAYUVA, Helena. Sexualidade e gênero no imaginário brasileiro:metáforas do biopoder. Rio de Janeiro: Revan, 2007, 192p.

com as reformas urbanas, a vacinação emmassa etc. Em suma, implantou-se aqui umabiopolítica, ou seja, aquilo que Joel Birmandenomina “medicalização da sociedade”, fatoregistrado em leis, documentos, fotos, pro-jetos e também na literatura.

Helena Bocayuva identifica as metáfo-ras do biopoder nos textos literários, anali-sando as relações entre sexualidade e gênero,conforme aparecem nos discursos narrativosda época, contribuição dos escritores embusca de uma estrutura ideal para a socieda-de brasileira em formação. De fato, comomostra a ensaísta, os registros literários sãoricos em cenas em família, em situações emque as personagens tomam atitudes e se com-portam de uma forma ou de outra, de acor-do com a educação recebida, – ou a alegadafalta dela –, no lar e na vida social. Assim, éno âmbito das relações familiares, ou na pre-cariedade dessas relações, que os escritoresbuscam as origens dos perfis psicológicos eda personalidade de homens e mulheres, des-crevendo o seu caráter e julgando suas açõesem sociedade.

Ao observar a estreita relação entreessa literatura e contexto social, a pesquisa-dora estabelece os pontos fundamentais que

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esclarecem as relações de biopoder na socie-dade brasileira. No prefácio do livro, o psica-nalista Joel Birman ressalta que “um dos mé-ritos da pesquisa realizada por HelenaBocayuva foi o de indicar alguns dos impassesexistentes para a implantação plena dobiopoder no Brasil. Assim, examinando a pro-dução literária brasileira, na segunda metadedo século XIX e no início do século XX, indi-ca a fragilidade da figura da mulher-mãe. Aorfandade materna, com efeito, se impõecomo problemática no imaginário romanes-co de José de Alencar e Aluísio de Azevedo.A leitura acurada de Lucíola (1862), Diva (1863),Senhora (1873) e de O mulato (1891) indica issocom clareza”. Considerando a literatura comorepresentação de um contexto social, a ensaístaprocura explicar, através de atitudes das per-sonagens, os desdobramentos coletivos e osimpactos da prática do biopoder. Joel Birmandestaca ainda que “o outro mérito dessa cons-trução, que nos foi proposto pela pesquisa deHelena Bocayuva, é o de inscrever a proble-mática da biopolítica no Brasil no registro doimaginário literário” (p. 23).

Através do ensaio de Bocayuva, obser-va-se que essas narrativas, emblemáticas naconstituição do imaginário brasileiro, alimen-taram a formação cultural da intelectualidadee ilustram a questão da sexualidade comometáfora para as relações sociais, no imaginá-rio biopolítico.

Em Alencar, a estudiosa faz o seu re-corte em Lucíola, Diva e Senhora, destacandoque “Lucíola encena aspectos importantes dobiopoder. A cortesã serve de contraponto àmãe higiênica ou à honesta trabalhadora. O‘nervoso’ está presente, remetendo aoparadigma da degeneração” (p. 41). Temosentão pólos antitéticos de representação damulher, estabelecendo uma prioridade para o

modelo familiar, uma vez que o final deLucíola não é feliz, mas trágico e ideologica-mente higiênico, avalizando o discurso com-petente da medicina oitocentista, sempre pron-ta a explicar o ‘nervoso’, ou ‘as crises de ner-vos’ das personagens, pela falta de melhorformação familiar e educacional. Nesse capí-tulo, a estudiosa conclui que: “Decididamen-te, nos romances de Alencar aqui observados,o feminino não serve de metáfora para o lu-gar visto como inferior da sociedade” (p.94),pois os homens se colocariam à sombra dasmulheres e as mulheres seriam personagensfortes. No entanto, deve-se lembrar que, aofinal do romance Senhora, Aurélia se põe aospés de Fernando Seixas, numa completa ati-tude de submissão, contrastando com todo oimpério e altivez anteriores da personagem.

Em Aluísio Azevedo, a pesquisadoraaborda os romances O mulato (1881) e Casa depensão (1884). No primeiro, discute os estere-ótipos aplicados aos mestiços, ou seja, a falsi-dade, a inconstância e a leviandade, que, nanarrativa, é simulada por dois personagens,Manuel Pescada e o cônego Diogo. A AnaRosa são atribuídos ataques de “deus-nos-acu-da”, ou “nervoso” e até mais de um ato his-térico, com a descrição dos ataques. No se-gundo romance, o protagonista, portador desífilis, é um alvo rentável para os saberes mé-dicos, com a confluência do saber jurídico.Aliás, o romance é baseado num crime ditode honra, fato ocorrido em novembro de1876, um homicídio conhecido como “Ques-tão Capistrano”. Assim, Capistrano Cunha,amigo de Antônio, mantém relações com Júlia,irmã de Antônio, estes últimos filhos de umaprofessora de piano que alugava quartos.Capistrano recusa-se a casar por obrigação.Levado à justiça e inocentado, e logo é assas-sinado por Antônio, o irmão ofendido, que

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cumpre o papel de homem que “lava a honradessa família.” Como se observa, além do dis-curso médico, ocorre o entrelaçamento daquestão jurídica.

Em Lima Barreto, a ensaísta analisa ocaso de sedução da jovem Clara dos Anjospor Cassi Jones, as investidas e fugas do sedu-tor, que fica impune diante de uma família fracae incapaz de se impor socialmente. Trata-sede outra situação que envolve a sexualidade,eixo forte do biopoder e suporte da família.No episódio, a fragilidade da figura materna,Dona Engrácia, é destacada pelo narrador, as-sim como a impotência do pater famílias dianteda trajetória banalizada do jovem que seduz,engravida e abandona a moça, dentro da tra-dição de irresponsabilidade tolerada na gera-ção de filhos não reconhecidos, e tecnicamen-te considerados “ilegítimos”.

O ensaio de Helena Bocayuva vem, emboa hora, preecher uma lacuna nos estudosda literatura brasileira da virada do século XIXpara o século XX. O estudo aparece pari passocom um fenômeno inquestionável no cenáriobrasileiro atual. Recentemente, o IBGE divul-gou uma estatística que confirma a tendênciaao aumento de lares chefiados por mulheressós no Brasil. A forma como a sociedade temvisto a mulher, mães e filhas, e suas relações nacena familiar, tem muito a ver com um imagi-nário que precisa ser analisado criticamente, apartir dos documentos e, sobretudo, atravésdas representações literárias. De fato, muitodo que se afigura hoje, tem explicação no pas-

sado, nas hierarquias, no poder do patriarca-do, na medicina oitocentista que aplicava con-ceitos e estipulava normas de comportamen-to social. Essas representações são encontra-das na literatura, através de descrições, questi-onamentos ou até mesmo denúncias de certaspráticas sociais aplicadas às mulheres, à guisa deuma educação “apropriadamente” feminina.

O livro insere-se nos estudos de saúdecoletiva, no âmbito da medicina social, e res-ponde ao crescente interesse pela participaçãofeminina na sociedade. Personagens de onteme de hoje, elas são mulheres solteiras, viúvasou separadas, sobretudo mães, donas de casa,profissionais, que trabalham em turnos inte-grais, muitas vezes com pouco tempo paraseu descanso e lazer. Como compreender esseatual estado de coisas para as mulheres, sejamelas de classes sociais distintas, casadas ou não,mães ou não, senão buscando nos registrosdo passado as origens desses problemas?

Em seu ensaio, Bocayuva consegue ex-trair dos romances os elos explicativos dopassado que nos remetem a uma melhor com-preensão da situação atual de certas questõesrelativas à família. Nesse sentido, são significa-tivas as palavras finais da ensaísta, sobre oslivros estudados: “São narrativas que desta-cam a falta de normas e de mães, metáforasque fundem hoje discursos sobre impunidadeou a falta de pai e lei. Falácias ou fábulas pro-duzidas pelo imaginário de um país onde amaioria dos domicílios é chefiada por mulhe-res sós”.

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Um dos artigos do belo manifesto Arte-latina apresenta-se como vigoroso convite àliberação de sensibilidades, de “fantasias e an-siedades”, uma vez que, segundo o seu autorSilviano Santiago, o “blablablá teórico não é obastante” para entendê-la.1 Em que pesem asdiferenças entre a prática artística e o ofício deprodução de conhecimento, parece-me opor-tuno esboçar o nexo entre a demanda expres-sa no manifesto e a intenção do projeto deDaniela Versiani, que ensaia com saber e sa-bor a difícil travessia entre gestos subjetivos,atos empíricos e opções de sua descrição eteorização. Sem a tentação usual de reduzir acomplexidade de seus objetos de análise pe-los rituais da generalização.

Neste sentido, Autoetnografias: conceitos alter-nativos em construção (Daniela BeccacciaVERSIANI, Rio de Janeiro: 7Letras, 2005)oferece uma leitura fascinante da geografia in-telectual contemporânea dos campos das ci-ências humanas e sociais, avessos ao fechamen-to de suas fronteiras disciplinares. Centradassobre possíveis articulações entre estudos deliteratura, de cultura e de antropologia, as in-dagações tematizam intercâmbios e cruzamen-tos alheios à hifenização comum que alinha demodo contíguo e distinto os seguintes termos:auto-etno-grafia. A revisão crítica de para-

Arte autoetnográf icaHeidrun Krieger Olinto

digmas clássicos, legitimados pela marca dadiscriminação que respeita os limites dos terri-tórios particulares da consciência de si, da cons-ciência do outro e da forma de sua escrita,culmina assim no questionamento destes pelafórmula compósita radical da autora:autoetnografia. Nesta tradução o mito da inte-gridade do self é afrontado pela cacofonia demúltiplas vozes sem síntese; a descrição dooutro como objeto é substituído pelo diálogointerminável e tenso entre subjetividades dis-tintas e a escrita, de modo geral, vista comoreprodução transparente de realidades exteri-ores, é questionada a favor de seu estatutoperformático de evento.

O pensamento construtivista, não-dualista,permeia todos os pressupostosepistemológicos que dão contorno às indaga-ções, apontando para o olhar participativo doanalista, ele mesmo inserido em contextos con-cretos circunscritos em sua dimensão tempo-ral e espacial. Neste âmbito, o livro de Versianiinscreve-se na atmosfera filosófica batizadacomo “despertar epistemológico”, que inspi-rou grande parte das revoluções paradigmá-ticas ocorridas nas últimas décadas. O seu cha-mado método autoetnográfico abre horizontespara uma atitude auto-reflexiva explícita daautora com respeito aos pressupostos privile-

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giados por ela que orientam o seu ângulo devisão e sinalizam a sua sintonia com a investi-gação científica mais avançada no espaço dis-ciplinar da antropologia e dos estudos de lite-ratura. Nas duas esferas – e não apenas nelas– passou a ser senso comum que os objetosnão possuem sentido substancial inerente quese oferece ao olhar sem mediação. Doetnógrafo o princípio da observaçãoparticipativa demanda, neste sentido, aconscientização do próprio lugar ocupado nocomplexo campo de contingências e possibi-lidades que articulam a sua vida privada compertencimentos coletivos e com inserçõesinstitucionais e políticas, responsáveis pelo de-senho misterioso construído por seu olhar.

De forma semelhante nos estudos de lite-ratura - que deslocaram o seu compromissotradicional com a interpretação do texto lite-rário para o vasto espaço da comunicação li-terária vinculada com processos de produção,mediação, recepção e análise crítica - despontaa figura auto-reflexiva do observador de se-gunda ordem como antídoto para a ingenui-dade epistemológica que entende literaturacomo espelho da realidade. E na descrição

autoetnográfica ela emerge como barreira con-tra a transformação do outro em objeto.

O mérito e a originalidade do livro po-dem ser creditados, em parte, à dupla forma-ção de Versiani - antropóloga e teórica da lite-ratura - que lhe permitiu cimentar com segu-rança e competência perigosas travessias dis-ciplinares e enxergar o valor das condições sub-jetivas do conhecimento, não como relativismocultural, mas como abertura para novosquestionamentos éticos no próprio fazer cien-tífico.

Os desafios deste empreendimento com-plexo são enfrentados com a sensibilidade daprofessora de literatura e cultura queintercambia o seu saber com aqueles que seiniciam na sua construção.Mas isto não é o bas-tante, como diria Silviano Santiago. O prazerda leitura deste belo livro se deve, também,ao encontro com a escritora de ficção: DanielaGianna Claudia Beccaccia Versiani.

1 SANTIAGO, Silviano. “Artelatina (Manifes-to)”. In: Reinaldo Marques e Lúcia Helena Vilela(orgs.). Valores: Arte, mercado, política. Belo Hori-zonte: Editora UFMG/Abralic, 2002, p. 57-60.

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O livro As filhas de Pandora, de Rosana Ri-beiro Patricio, é um estudo crítico que destacaas “imagens de mulher na ficção de SoniaCoutinho.” A ensaísta demonstra como aficcionista vê, lê e registra as mudanças equestionamentos culturais de uma geração quese identificou com as propostas feministas. Ecomo, no decorrer do tempo, sem perder devista o tema central: a mulher de classe médiaem crise com os modelos e papéis tradicio-nais e em busca de suas próprias soluções, seusquestionamentos entre o campo profissionale o campo afetivo vão se sucedendo.

As personagens de Sonia Coutinho são declasse média, e se dividem em dois grupos di-versos: aquelas que seguiram a condição de sermulher, ter família e filhos; e outro nicho, noqual elas trabalham fora do espaço domésti-co, têm instrução superior e vivem a crise decasamentos desfeitos ou insatisfatórios, oumesmo escolheram ser solteiras. Desencanta-das com a fantasia do final feliz dos romancesamenos sobre o casamento, chegam à conclu-são de que o modelo tradicional (o modelode suas mães) não lhes é adequado. Sentem-se, então, inadequadas ou sem possibilidadesde romper com os vínculos sociais e culturaisa fim de partir para uma vida liberada, inde-

As f ilhas de Pandora –as mulheres, o tempo e a cultura

Ivia Alves, UFBA

pendente financeiramente. Ao final, encontram-se, de uma forma ou de outra, sozinhas.

A ensaísta constrói uma estrutura no seutexto interpretativo que contempla os princi-pais constituintes da narrativa: 1) as protago-nistas, em idade de trinta ou quarenta anos,em suas crises; 2) investe também no afetivode suas amigas (variantes do mesmo tema eda crise) que mesmo casadas se projetam notédio; 3) analisa a narrativa em fragmentos,com idas e vindas, que não segue a ordemcronológica dos fatos; 4) observa o uso fre-quente da intertextualidade (inclusive com re-presentações de atrizes e modelos da juventu-de); 4) verifica que os textos de Coutinho, atra-vés da narradora, questiona e desestabiliza acategoria do narrador(a).

A ensaísta dá voz aos personagens quasesempre iniciando cada parte do seu longo es-tudo pela retrospectiva interiorizada dessasprotagonistas que fazem um balanço de suavidas, focando suas experiências, seus traumas,suas famílias e modelos. Com isso, o estudomostra como elas vêm a tomar consciênciade suas não-identidades, do desencanto comseus papéis sociais idealizados pela cultura oci-dental burguesa capitalista, e como foram re-primidos os seus desejos.

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Os procedimentos analíticos eleitos porRosana Ribeiro Patricio dão conta da vida dasprotagonistas, pois a análise em perspectivapsicanalítica contempla a formação traumáti-ca, os ditos e interditos, a internalização dosmodelos paternos e maternos e o vazio exis-tencial em que se encontram no momento, namaturidade, momento no qual a narrativa decada romance ou do conto se inicia. A estudi-osa explora, ainda, o uso, pela escritora, daintertextualidade profusa e cheia de alusões àsculturas ocidental e afro-baiana inscritas comoum segundo patamar de interpretação e decriação de significados e nexos.

Todos os três livros analisados apresentaminúmeras alusões, insinuações a outros textoslidos ou do conhecimento do povo. Não épor acaso que a geração de Sonia Coutinhofoi a primeira a romper com a dicotomia: clas-se média (branca, letrada, burguesa) e o saberdo povo (negra, ritos, mitos e hábitos orais,popular e pobre). É desse atrito entre as duasculturas (hibridismo) que se forjam as mulhe-res protagonistas, todas elas de origem baianae migradas para o Rio de Janeiro, cidade cos-mopolita e diversificada pelas várias culturasali existentes. Rosana Patrício aponta esse en-trelaçamento entre a vida existencial das pro-tagonistas na cidade cosmopolita e do lugarde onde elas falam, lugar marcado pelohibridismo cultural baiano.

Em seguida, os ensaios trabalham com adesestabilização da narrativa, com ocontradiscurso construído pelas narrativas deautoria feminina e mesmo com os vários tipos

de narradores/autores que constroem uma nar-rativa acronológica, fragmentada, com váriasinserções de pontos de vista diferentes, rompen-do com a narrativa linear, um narrador oniscien-te e que controla a verdade e o ato de contar.

O leitor sai da leitura de As filhas de Pandoramais consciente da complexa elaboração dasnarrativas de Sonia Coutinho que, curiosamente,através de suas protagonistas vai coexistindocom o tempo de amadurecimento da escrito-ra. Mesmo caminhando no tempo e em tem-pos de mudanças, a dificuldade de suas pro-tagonistas de acertar o passo com o presentevai se tornando cada vez mais evidente e claroque tal impedimento está na cultura na qualforam engendradas, pois elas são marcadaspela ruptura de dois mundos (modernidade econtemporaneidade), de duas cidades urba-nas (provinciana e cosmopolita) e de suasexpressões culturais diferentes.

Como as narrativas de autoria feminina dageração de Sonia Coutinho, suas protagonis-tas vivem o impasse e a crise, experimentamsaídas diversas, mas elas, como sua autora, nãotêm a chave do futuro. Como será a mulher,como estará realizado seu desejo? Ultrapassa-rão os impasses forjados pela cultura local eocidental? Este é um livro que não pretenden-do dar respostas à crise da mulher emancipa-da e independente, interpreta esplendidamen-te os impasses, a riqueza e a complexidadedas narrativas de uma excelente escritora. Valea pena ler os livros de Sonia Coutinho eentendê-los pelos estudos analíticos de RosanaPatrício.

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Há quase meio séculos um conceituadoprofessor de Língua e Literatura Francesas lan-çava o livrinho Castro Alves, guia da catedral, como selo da Livraria Universitária. Trata-se domestre Cláudio Veiga, ex-presidente da Aca-demia de Letras da Bahia, função que ocu-pou por algumas décadas, com o mesmo zeloe espírito empreendedor dos primeiros anos.

Mas não se tratava de um iniciante, antesele havia publicado teses e estudos universitá-rios sobre Pascal (1954, 1957 e 1959), alémde dois livros didáticos, Vestibular de Francês(1964) e Gramática Nova do Francês (1965).

Com aquela nova publicação o ensaístaCláudio Veiga consolidava um espaço que vi-nha conquistando, aos poucos, junto ao pú-blico situado para além dos muros da Uni-versidade. Com o passar do tempo, as obrasforam se sucedendo uma às outras e a audi-ência se ampliando da Bahia para o mercadoeditorial brasileiro, através de publicações pe-las mais importantes editoras do país. Nos seusquase 80 anos, o ensaísta só fez crescer emquantidade e em qualidade, continuando pro-dutivo e inquieto, brindando o público cultocom ensaios e livros vindos a lume com certaregularidade.

Mas o que teria levado o profícuo cate-drático e titular aposentado da Ufba a prepa-rar uma nova edição de Castro Alves, guia dacatedral tanto tempo depois? Teria sido ape-nas o desejo de atingir novos leitores? Essa

O comparatista Cláudio VeigaCid Seixas, UFBA / UEFS

segunda edição, com o selo da GRD, editoranascida na Bahia no final dos anos 60 e depoistransferida para São Paulo, tem sobre a pri-meira edição a vantagem de apresentar as ilus-trações a cores. São 34 fotografias panorâmi-cas ou de detalhes da Catedral Basílica de Sal-vador que dialogam com o texto ensaísticodo autor e, principalmente, com o poema “Je-suítas”, de Castro Alves.

MONOGRAMA – Atento a comparaçõese análises, o ensaísta e mestre de sucessivasgerações atribui o fato da Catedral estar pre-sente na memória do poeta por ter sido a ca-pela do antigo colégio da Companhia de Je-sus. Assim, empreende a leitura de cada estro-fe do poema, buscando relacionar suas ima-gens com as imagens do templo que fez foto-grafar para estabelecer o cotejo com os ver-sos castroalvinos.

Veja-se a passagem seguinte de “Jesuítas”:“E o Niágara ia contar aos mares... / E oChimborazo arremessava aos ares / O nomedo Senhor!” Cláudio Veiga chama atenção paraa relação entre esta referência condoreira aonome de Cristo à constante repetição domonograma jesuítico, com a abreviatura donome de Jesus em grego: IHS. As ilustraçõesselecionadas para o livro revelam vários pon-tos da Catedral em que a insígnia aparece comdestaque e retrabalhada com diferentes con-cepções plásticas em que as letras do nome deJesus formam o único elemento constante.

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A foto do teto da sacristia, com o mono-grama esculpido em metal dourado e proje-tado como uma luminária solar, é a mais evi-dente sugestão da seqüência poética “arremes-sava aos ares o nome do Senhor”. A leituracomparativa proposta pelo professor Cláu-dio Veiga tem o condão de investir o olhar doleitor ou do visitante do templo de uma pers-pectiva condoreira ou hiperbólica diante davisão monumental da composiçãoarquitetônica que extasia os sentidos num tur-bilhão de sinestesias desencadeadas pela argú-cia da descoberta exegética do mestrecomparatista.

Fiel à tradição francesa que atribui à críticaa função de ler a obra e guiar as possíveis lei-turas seguidas pelo público, o ensaísta alcançao alvo com pleno domínio dos objetos arro-lados. Se, por um lado, ganhou notoriedadeno Brasil um tipo de leitura crítica que remetemenos ao texto artístico e mais às especula-ções teóricas de mais recente conformação,por outro lado, a leitura de empenhohermenêutico, a exemplo da buscada por Cláu-dio Veiga, constitui o modo mais adequado deformar e consolidar um público leitor no país.

HUMILDADE – Enquanto a inteligênciauniversitária mais atual utiliza o texto literáriocomo pretexto para suas cogitações e comoexercício prático para compreender formula-ções teóricas ainda não resolvidas ou domina-das pelo pesquisador, aquele que precisa deindicadores de caminho permanece órfão deum guia que lhe conduza pelas sendas maisintricadas das obras literárias.

Daí o distanciamento cada vez maior en-tre o leitor e a produção resultante da pesqui-sa universitária. Parte dessa pesquisa chega aoparoxismo de constituir objeto de interesseapenas para um pequeno grupo próximo aos

seus formuladores. Daí a cada vez maispreocupante redução do número de exem-plares das revistas e dos livros acadêmicos.

Uma ensaística menos empenhada em de-cifrar a esfinge da multiplicidade de novas te-orias críticas e mais comprometida com odescerramento ou a interpretação da obra li-terária, de modo a atrair a atenção do públicoleitor, teria um importante papel a desempe-nhar nos dias atuais. Foi isso que mestres euro-peus procuraram fazer com obstinada com-petência, investindo seus alunos na função deleitor. É esse papel docente que Cláudio Veigafaz questão de exercer com humildade e paci-ência. E é esse mesmo papel que ele atribui aCastro Alves quando aponta no poema “Je-suítas” a função de guia da Catedral. Aí, umaobra de arte empenha-se na leitura de outraobra de arte, estabelecendo um diálogo dosmais frutíferos.

Trata-se, portanto, de comparação de séri-es artísticas diversas; de um lado, a série literá-ria, do outro lado, a série pictórica. CláudioVeiga compara passagens do poema de Cas-tro Alves com altares, teto, paredes e outrosespaços da Catedral, aproximando discursosem si tão diversos na aparência.

Desde esse livrinho que em breve comple-tará meio século de concebido, o professorCláudio Veiga segue o curso das compara-ções necessárias ao conhecimento de objetosde natureza divergente até formular os seusmais recentes e bem recebidos estudos de lite-ratura comparada. Aí, talvez, a resposta à in-dagação do que teria levado o autor a prepa-rar uma nova edição do emblemático CastroAlves, guia da catedral, mais de quatro décadasdepois: – a sua condição de livro seminal oude projeto guia do trajeto comparatista deCláudio Veiga.

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As publicações doPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

EM LITERATURA

E DIVERSIDADE CULTURAL,em cujo âmbito a revistaLégua & meia está inserida,foram iniciadas no ano 2000com o volume coletivoRotas & Imagens:Literatura e outras viagens.

Rotas & Imagens, volume orga-nizado por Rubens Alves Perei-ra e Aleilton Fonseca, reúne vin-te trabalhos de estudiosos daUEFS e de outras instituições,tratando de Literatura e outrasséries culturais.

A Estética da Sinceridade & ou-tros ensaios traz uma seleçãode textos ensaísticos do poetaAntonio Brasileiro, marcadospela irreverência e pela liberda-de criadora.

A Unidade Primodial da LíricaModerna, de Roberval Pereyr,junta a pesquisa à intuição deum poeta, resultando num textoque retoma os estudos sobre ateoria do verso na modernidade.

Memória em movimento é umvolume coletivo que reúne estu-dos sobre o sertão na arte deJuraci Dórea, organizado porRubens Alves Pereira e RitaOlivieri-Godet.

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Piguara: Alencar e a invençãodo Brasil, de Elvya Ribeiro Perei-ra, é um livro instigante e de in-teresse atual, centrado nos pro-blemas identitários surgidos noséculo XIX, com o desmantelo docolonialismo nos países ameri-canos.

Aloísio Resende reúne traba-lhos de pesquisadores de docu-mentos literários a uma mostrade textos de um esquecido poe-ta de Feira de Santana. O volu-me foi organizado por Ana Angé-lica Vergne, Cristiane Porto eLucidalva Assunção.

Estilística Cultural Pragmática,de Piers Armstrong, aborda as-pectos da cultura popular daBahia, sob as lentes perqui-ridoras de quem chega trazendomalas e bagagens de uma outracultura.

Gil Vicente, de Theresa AbelhaAlves, retoma o poeta e drama-turgo português sob o signo daderrisão, buscando apreender osentido do texto vicentino comocrítica ao contexto, através dascategorias do cômico.

Do Inventário à Invenção é umestudo de Francisco Ferreira deLima sobre o Neo-Realismo por-tuguês, tomando como pontonuclear o romance de AlvesRedol, autor pioneiro do realis-mo socialista no seu país.

Os riscos da cabra cega: Recor-tes de crítica ligeira reúne arti-gos de crítica literária do poeta ejornalista Cid Seixas, através dosquais ele propõe a volta dos es-tudos literários ao texto breve efundado na simplicidade e noprazer de ler.

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Informaçãoes e Vendas

[email protected]

João Ubaldo Ri-beiro: Littérature brési-lienne et constructionsidentitaires, de RitaOlivieri-Godet, é uma pu-blicação realizada emparceria entre o Progra-ma de Pós-Graduaçãoem Literatura e Diversida-de Cultural da UEFS e aPresses Universitairesde Rennes, França.

Trata-se de umestudo que indentifica edis-cute as relações en-tre estratégias narrativase figurações identitáriasna obra de João UbaldoRibeiro, mostrando comoo autor faz umadesconstrução da visãohomogênea dabrasilidade e seus este-reótipos, ense-jando adiscussão das relaçõesintercultu-rais nas socie-dades modernas.

A (Auto)biografiaL´(Auto)biographie é umacoletânea organizada porRaimunda Bedasee epublicada em parceria en-tre o PpgLDC / UEFS e aUniversité FrançoisRabelais / Tours/França.Reúne estudos apresenta-dos durante o I Semináriode escritos (auto) biográfi-cos e I Encontro de culturasde língua portuguesa e fran-cesa, evento que ocorreu naUniversidade Estadual deFeira de Santana - UEFS,em Feira de Santana-Bahia,em 2003. Esses estudosdemonstram a atençãodedi-cada à temática pelospesquisadores envolvi-dosno encontro. Trata-se de re-flexões teó-ricas, análises econsiderações críticas emtorno das relações entredados biográficos e proce-dimentos literários, nos pro-cessos de criação, focali-zando autores e obrasrepre-sentativos.

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CRITÉRIOS PARA PUBLICAÇÃO

Trabalhos para publicação na revista Légua &meia poderão ser encaminhados aos editores, obser-vando-se o seguinte:

1. Envio do texto em disquete ou cd, corrigidoe revisado, na forma a ser publicada.

2. Cópia em papel para que seja submetida aparecer do Conselho Editorial.

3. Dados e créditos do Autor. Exemplo: “LucasSeverino é Professor Associado da UEPB. Gradu-ado em Letras pela Unicamp, Mestre pela UEFS,Doutor pela USP, Pós-Doutorado na PUC-RS. Pu-blicou, dentre outros livros, Novos teoremas (1999) eContradições do cânone (2006). É crítico de teatro eeditor da revista Interseções”.

4. Citações extensas, ou com mais de um parágrafo,podem vir separadas do copo do texto por linhas embranco antes e depois; citações com menos de cincolinhas e formando um só parágrafo são dispostas nopróprio corpo do texto e marcadas através de aspas.

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6. Notas de pé-de-página devem ser limitadasao estritamente necessário, procurando-se inserir ainformação no próprio curso do texto. Para evitarsobrecarregar o pé-de-página com informações, asreferências bibliográficas devem ser feitas pelo cha-mado sistema “Autor-data”, constando entre pa-rênteses, no corpo do texto, o Sobrenome do Autor,

seguido do ano da publicação e do número das pá-ginas citadas. Exemplo: (CANDIDO, 1999, p. 127-8).

7. As referências, bibliográficas ou virtuais,devem constar no final do trabalho, observan-do-se a seguinte sistemática, tomada comoexemplo:

ANDRADE, Mário . O empalhador de passarinho. 3ed., São Paulo, Martins, 1972.

FISHMAN, Charles. Sociologia do pensar. Riode Janeiro, Eldorado, 2006a.

FISHMAN, Charles. Identidades paralelas: a crisedo pensamento cr í t i co . Rio de Janeiro,Eldorado, 2006b.

8. Embora a ABNT adote um alinhamentouniforme para as entradas bibliográficas, a revistaLégua & meia prefere destacar uma nova entrada deAutor com o alinhamento diferenciado de parágrafo,para facilitar o processamento da informação, con-forme o exemplo do item anterior.

9. Como no Brasil os autores são identificadosprincipalmente pelo nome próprio, recomenda-seevitar, na bibliografia, a abreviação do mesmo pelainicial seguida de ponto. (Exemplo: Ao invés deusar SANTOS, M., prefira SANTOS, Milton.)

10. Ao listar várias obras do mesmo autor, pre-fira repetir o nome do mesmo, ao invés de substi-tuí-lo por travessão.

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L É G U A & ME I A : R E V I S T A D E L I T E R A T U R A E D I V E R S I D A D E C U L T U R A L , V. 7, NO° 5, 2 0 09 — 159