663

3096 Dias - Natascha Kampusch

Embed Size (px)

DESCRIPTION

História da austríaca Natascha Kampusch, sequestrada e mantida em cárcere privado por 8 anos. Foi sequestrada aos 10 anos e conseguiu fugir aos 18. No livro ela conta todo o processo, muitos classificam-na como portadora da Síndrome de Estocolmo por ter ''pena'' de seu sequestrador. Em seu livro ela rebate as críticas.

Citation preview

3096 diasNATASCHAKAMPUSCH

Multibrasil Download - www.multibrasil.net

3096 diasNATASCHAKAMPUSCH

A impressionante história da garota que fi-cou em cativeiro durante oito anos, em

um dos sequestros mais longos de que setem notícia

Com Heike Gronemeier e Corinna Mil-born

TraduçãoAna Resende

"Agora me sinto forte o bastante para con-tar a história do meu sequestro.""Meu cativeiro é algo com que vou ter delidar durante toda a minha vida, mas, aospoucos, acredito que não serei mais domi-nada por ele. Ele é parte de mim, mas não étudo. [...] Ao escrever este relato, tentei en-cerrar o capítulo mais longo e sombrio deminha vida. Sinto-me aliviada, porque pu-de encontrar palavras para o que consideroindescritível e contraditório."

Natascha Kampusch

Natascha Kampusch sofreu o destino maisterrível que poderia ocorrer a uma criança:em 2 de março de 1998, aos 10 anos, foi se-questrada a caminho da escola. O seques-trador - o engenheiro de telecomunicaçõesWolfgang Priklopil - a manteve prisionei-ra em um cativeiro no porão durante 3.096dias.Nesse período, ela foi submetida a todo ti-po de abuso físico e psicológico e precisouencontrar forças dentro de si para não seentregar ao desespero.Agora, pela primeira vez, Natascha Kam-pusch fala abertamente sobre o sequestro,o período no cativeiro, seu relacionamentocom o sequestrador e, sobretudo, como

conseguiu escapar do inferno, permitindoao leitor compreender os processos detransformação psicológica pelos quaispassa uma pessoa mantida em cativeiro,sofrendo todo tipo de agressão física emental imaginável.Em 2 de março de 1998, aos 10 anos, Na-tascha Kampusch foi raptada por um es-tranho em uma caminhonete branca, a ca-minho da escola em Viena, Áustria. Horasmais tarde, ele a aprisionou em um porãoescuro e úmido. Quando ela conseguiu fu-gir, oito anos depois, sua adolescência ha-via acabado.Em 3096 dias, Natascha conta sua históriapela primeira vez: a infância complicada,o que aconteceu no dia do sequestro, suaprisão em um cativeiro de cinco metros

quadrados e a tortura física e mental quesofreu ao longo dos anos por parte de seualgoz, o engenheiro de telecomunicaçõesWolfgang Priklopil, um homem extrema-mente perturbado.3096 dias é, acima de tudo, uma históriasobre o triunfo do espírito humano, emque Natascha descreve como, numa situ-ação de desespero quase insuportável, aospoucos aprendeu a manipular seu seques-trador. E como, contra todas as probabili-dades, conseguiu escapar ilesa.Natascha Kampusch nasceu em 17 de fe-vereiro de 1988, em Viena, Áustria, e foivítima de um dos sequestros mais longosda história. Em 2006 reconquistou a liber-dade e, desde então, tenta levar uma vida

normal. Na primavera de 2010, Nataschaconcluiu o ensino médio.Heike Gronemeier trabalhou por dezanos em diversas editoras. Em 2009, fun-dou a agência Text & Bild, em Munique,onde atua como editora e ghostwriter.Corinna Milborn é cientista política, escri-tora e jornalista em Viena. Ela é editoraadjunta da revista News e apresentadorado programa de entrevistas Club 2.O trauma psicológico é o sofrimento dosimpotentes. Ele tem início no instante emque a vítima se torna indefesa diante deuma força que a subjuga. Quando essaforça é da natureza, nós a chamamos decatástrofe. Quando é exercida por outrosseres humanos, nós a chamamos de vi-olência. Eventos traumáticos sobrepujam

os sistemas habituais de cuidado que ofe-recem às pessoas a sensação de controle,pertencimento e sentido.

JUDITH Herman,Herman, Trauma and Recovery

MUNDO FRÁGILMinha infaâ ncia na periferia deVienaMINHA MÃE ACENDEU um cigarro edeu uma longa baforada. - Já está escuro láfora. Pense em tudo o que podia ter acon-tecido com você! - e balançou a cabeça.Meu pai e eu passamos a última semanade fevereiro de 1998 na Hungria, onde elecomprara uma casa para passar os fins desemana em uma pequena aldeia não muito

longe da fronteira. Era um lugar imundo,com paredes úmidas e gesso caindo. Du-rante alguns anos, ele reformou a casa ea mobiliou com móveis antigos e bonitospara que se tornasse habitável. Apesar dis-so, eu não gostava muito de ir para lá.Meu pai tinha muitos amigos na Hungriacom os quais frequentemente se encontra-va e, graças ao câmbio favorável, semprebebia um pouco mais do que devia. Nosbares e restaurantes que frequentávamosà noite, eu era a única criança do grupoe costumava ficar sentada por lá, quieta eentediada.Também dessa vez relutei em viajar comele. O tempo parecia passar lentamente,e eu me irritava por ser pequena, depen-dente e não poder dizer o que queria fa-

zer. Mesmo quando, no domingo, visita-mos as termas próximas, não consegui de-monstrar entusiasmo.De má vontade, caminhei pela área de ba-nhos até que uma conhecida veio falar co-migo:

– Quer tomar uma limonada?Assenti e a segui até o café. Era uma atrizque vivia em Viena. Eu a admirava porqueela irradiava grande tranquilidade e eramuito segura. Além disso, tinha a profis-são com a qual eu sonhava em segredo.Depois de alguns minutos, respirei fundoe falei:

– Sabe, queria muito ser atriz. Vocêacha que vou conseguir? Ela sorriupara mim.

– Claro, Natascha! Você será umagrande atriz, se é isso o que quer!Meu coração saltou dentro do pei-to. Esperava não ser levada a sérioou ser ridicularizada - como costu-mava acontecer.– Quando chegar a hora, eu a aju-darei! - ela prometeu, pondo a mãoem meu ombro.

No caminho de volta para a piscina, eupulava animada e dizia para mim mesma:"Posso fazer qualquer coisa, basta querere acreditar em mim". Estava leve e alegre,como há muito não me sentia.Mas minha euforia durou pouco. Já estavaficando tarde e meu pai não fazia o menoresforço para deixar o local. Quando final-mente chegamos em casa, ele não pare-

cia ter pressa. Ao contrário, queria dormir.Eu olhava nervosa para o relógio. Tínha-mos prometido a minha mãe que estaría-mos em casa por volta das sete horas - eutinha aula no dia seguinte. Sabia que elesbrigariam se eu não chegasse na hora. En-quanto ele roncava no sofá, o tempo pas-sava implacavelmente. Quando meu paifinalmente acordou e decidiu voltar paracasa, já estava escuro. Sentei zangada nobanco de trás do carro e não disse uma sópalavra. Se não conseguíssemos chegar nahora, minha mãe ficaria zangada, e tudo oque fora tão bom durante a tarde acabariade repente. Como sempre, eu estava nomeio da confusão. Os adultos estragavamtudo. Quando meu pai comprou um cho-

colate no posto de gasolina, enfiei-o todona boca, de uma vez.Só às oito e meia da noite, com uma horae meia de atraso, chegamos ao conjuntohabitacional de Rennbahn.

– Deixo você aqui do lado de forae você corre para casa - meu pai fa-lou, me beijando.– Te amo - murmurei, como sem-pre fazia na despedida.

Então corri pelo pátio escuro até a escadae abri a porta. Na entrada, encontrei umbilhete da minha mãe junto ao telefone:"Fui ao cinema. Volto mais tarde". Pusminha bolsa no chão e hesitei por algunsinstantes. Então escrevi um bilhete, dizen-do que esperaria por ela com a vizinha

do andar de baixo. Mais tarde, quando elaveio me buscar, estava fora de si:

– Onde está seu pai? - gritou.– Ele não veio, me deixou aqui emfrente - respondi tranquilamente.Eu não era culpada pelo atraso etambém não podia explicar por queele não tinha me acompanhado atéa porta de casa. Mas me sentia cul-pada.– Meu Deus! Vocês se atrasarame eu fiquei esperando, preocupada.Como ele pôde deixar você cami-nhar sozinha pelo pátio? No meioda noite? Podia ter acontecido al-guma coisa com você! Mas umacoisa eu lhe digo: você não vai mais

ver seu pai. Já estou farta, nãoaguento mais!

Quando eu nasci, em 17 de fevereiro de1988, minha mãe já tinha 38 anos e duasfilhas adultas. Minha meia-irmã mais velhanasceu quando ela tinha 18 anos; a segun-da, um ano depois. Era fim da década de1960. Minha mãe estava sobrecarregadacom as duas crianças pequenas e se sus-tentava sozinha - tinha se separado do paidas meninas depois do nascimento da se-gunda. Não foi fácil para ela sustentar apequena família. Teve de lutar muito, serprática e dura consigo mesma para podercriar as filhas. Não havia espaço para sen-timentalismos ou incertezas, para lazer ouleveza em sua vida. Aos 38 anos, com asduas filhas adultas, pela primeira vez em

muito tempo ela estava livre dos deverese preocupações da criação das meninas. Efoi justo nesse momento que eu nasci. Mi-nha mãe não contava com uma nova gra-videz.A família em que nasci estava, na verdade,dissolvendo-se novamente. Virei tudo decabeça para baixo: minha mãe teve deprocurar todas as coisas de bebê, e o dia adia precisou ser ajustado às novas neces-sidades. Mesmo tendo sido recebida comalegria e sendo tratada por todos comouma princesa, às vezes me sentia sobran-do. Tinha de lutar por um lugar em ummundo em que todos os papéis já haviamsido atribuídos.Meus pais estavam juntos havia três anosquando nasci. Eles se conheceram por in-

termédio de uma cliente da minha mãe.Como costureira experiente, mamãe ga-nhava o suficiente para ela e as duas filhas,costurando e consertando roupas para asmulheres da vizinhança. Uma de suas cli-entes era uma senhora da região de Süs-senbrunn, em Viena, que, com o marido eo filho, cuidava de uma padaria e de umapequena mercearia. De vez em quando,Ludwig Koch Júnior acompanhava a mãenas provas de roupa e sempre ficava umpouco mais que o necessário para conver-sar com minha mãe. Rapidamente ela seapaixonou pelo padeiro jovem e gorduchoque a fazia rir com suas histórias. Após al-gum tempo, ele foi morar com ela e as du-as meninas no grande conjunto habitaci-onal na periferia ao norte de Viena. Ali a

cidade se confundia com a paisagem ru-ral da planície de Marchfeld, sendo difí-cil identificar uma e outra. A região eraconfusa, sem centro nem identidade. Tu-do parecia possível, o acaso reinava. Zo-nas comerciais e fábricas eram construí-das em áreas desocupadas, onde cachor-ros dos conjuntos habitacionais próximosperambulavam na grama alta. Em meioa tudo isso, os camponeses lutavam pa-ra manter sua identidade, que havia muitoperdera suas cores, assim como a facha-da das pequenas casas do período Bieder-meier. Relíquias de épocas passadas foramsubstituídas por inúmeros conjuntos habi-tacionais - utopia dos planos de habitação-, construídos com grande balbúrdia sobrea planície verde e abandonados à própria

sorte. Cresci em um dos maiores dessesconjuntos.O conjunto habitacional no Renn-bahnweg foi planejado e construído nadécada de 1970 - era uma espécie de ma-terialização de concreto da visão dos ur-banistas, que queriam criar um novo am-biente para novas pessoas: famílias do fu-turo, felizes e trabalhadoras, residindo emmodernas cidades-satélite com linhas sim-ples, centros comerciais e excelente trans-porte público para Viena.A primeira vista, o experimento pareciabem-sucedido. O complexo consistia dedois mil e quatrocentos apartamentoscom mais de sete mil moradores. Os pá-tios entre os arranha-céus residenciais ti-nham medidas generosas e eram cobertos

por árvores altas, e as áreas de recreaçãose alternavam com áreas de concreto egrandes espaços verdes. Pode-se imaginaros urbanistas colocando miniaturas de cri-anças brincando e de mães com carrinhosde bebê nos modelos, convencidos de quetinham criado um espaço para um tipocompletamente novo de convivência soci-al. Os apartamentos, empilhados em tor-res de até quinze andares, eram ventiladose tinham bom tamanho, em comparaçãocom os prédios de apartamentos abafadose precários da cidade, pois possuíam va-randa e banheiros modernos.Mas, desde o início, o conjunto habitaci-onal era uma espécie de estação de cole-ta para recém-chegados que queriam viverna cidade e, contudo nunca tinham con-

seguido. Eram basicamente trabalhadoresde outras províncias austríacas: da Bai-xa Áustria, da Burgenlândia e da Estíria.Aos poucos, foram chegando os imigran-tes, com os quais os outros moradoresbrigavam diariamente por causa do chei-ro da comida, das brincadeiras das crian-ças e do grau de tolerância ao barulho. Osânimos na área tornaram-se mais agres-sivos, e o número de pichações naciona-listas e xenófobas aumentou. Nos cen-tros comerciais, lojas de descontos foramabertas e, na frente delas, jovens e de-sempregados, que afogavam sua frustra-ção na bebida, perambulavam durante odia. Hoje o conjunto habitacional foi re-formado, os arranha-céus brilham em co-res novas e o metrô finalmente foi ter-

minado. Mas, durante minha infância, oRennbahnweg era uma espécie de epicen-tro de conflitos sociais. Era perigoso atra-vessar a área à noite e, mesmo durante odia, era desagradável abrir caminho entreos grupos de desordeiros que passavam otempo nos pátios gritando grosserias pa-ra as mulheres. Minha mãe sempre aper-tava o passo nos pátios e nas escadas, en-quanto segurava firme minha mão. Em-bora fosse uma mulher decidida e perspi-caz, odiava a vulgaridade a que estava su-jeita no Rennbahnweg. Tentava me pro-teger da melhor maneira possível: explica-va por que não gostava que eu brincasseno pátio e por que achava a vizinhançavulgar. Eu era criança e não entendia oque ela dizia, mas, na maior parte das ve-

zes, obedecia. Lembro muito bem que, devez em quando, eu resolvia descer e brin-car no pátio. Preparava-me durante ho-ras, imaginando o que diria para as outrascrianças, e trocava de roupa várias vezes.Escolhia brinquedos para a caixa de areiae por fim os largava; pensava por muitotempo que boneca eu deveria levar parafazer amizade. Mas, quando eu descia, sóficava uns poucos minutos por lá - nãoconseguia superar o sentimento de não fa-zer parte do lugar. Tinha internalizado detal forma a atitude negativa de meus paisque o próprio conjunto habitacional eraum mundo estranho para mim. E preferiasonhar acordada, deitada na cama.O quarto pintado de rosa com carpete cla-ro e cortinas estampadas que minha mãe

havia costurado e que nunca eram abertas,nem mesmo durante o dia, oferecia-meproteção. Nele, eu elaborava grandes pla-nos e passava horas pensando aonde mi-nha vida me levaria. De qualquer modo,eu sabia que não queria criar raízes noconjunto habitacional.Nos primeiros meses de vida, fui o centrodas atenções da família. Minhas irmãs cui-davam do novo bebê como se treinassempara mais tarde. Enquanto uma me ali-mentava e trocava minhas fraldas, a outrame levava no porta-bebê para o centro dacidade e passeava comigo para cima e parabaixo nas ruas do comércio, onde os pas-santes costumavam se encantar com meusorriso largo e minhas belas roupas. Qu-ando elas contavam para nossa mãe, ela fi-

cava radiante - se preocupava muito comminha aparência e me vestia, desde peque-na, com as roupas bonitas que costura-va por noites a fio. Escolhia tecidos espe-ciais, folheava revistas de moda à procu-ra dos últimos modelos e comprava aces-sórios em butiques. Todas as peças eramcombinadas, até as meias. Em uma vizi-nhança na qual muitas mulheres andavamcom bobes no cabelo e a maior parte doshomens ia ao supermercado usando calçasde moletom, eu me vestia como uma pe-quena modelo. Essa ênfase exagerada naaparência não era apenas uma tentativa denos distinguir do ambiente; era também amaneira pela qual minha mãe demonstra-va seu amor por mim.

Com sua natureza enérgica e decidida, eradifícil para ela demonstrar emoções. Nãoera o tipo de pessoa que pegava uma cri-ança no colo e a abraçava. Assim comoas lágrimas, manifestações de afeto exces-sivas a incomodavam. Como ela teve deamadurecer rapidamente com a gravidezprecoce, com o tempo desenvolveu umaespécie de armadura. Não se permitia ne-nhuma "fraqueza" e não a tolerava nas ou-tras pessoas. Quando pequena, eu a viafrequentemente combater resfriados ape-nas com a força de vontade e observava,fascinada, como ela retirava, sem hesitar,a louça fumegante da máquina de lavar."Um índio não sabe o que é dor" era seucredo, e, segundo ela, um pouco de seve-

ridade não fazia mal, até ajudava a se esta-belecer no mundo.Meu pai, nesse aspecto, era o oposto. Eleme recebia de braços abertos quando euqueria carinho e fazia muitas brincadeirascomigo - quando estava acordado. Naépoca em que ainda morava conosco, euo via sempre dormindo. Ele gostava desair à noite e beber generosamente comos amigos. E era pouco afeito ao trabalho.Herdara a padaria do pai, mas nunca seentusiasmara com o negócio. Sua maioraflição era ter de levantar cedo. Costuma-va ficar nos bares e, quando o alarme to-cava às duas horas da manhã, mal conse-guia se levantar. Depois de entregar o pão,roncava horas a fio no sofá. Sua enor-me barriga redonda subia e descia de mo-

do impressionante diante de meus olhosinfantis e fascinados. Eu brincava comaquele homem grande e sonolento: co-locava ursos de pelúcia em seu rosto,enfeitava-o com fitas e laços, vestia-lhebonés e pintava suas unhas. À tarde,quando ele acordava, costumava me girarno ar e tirar das mangas pequenas surpre-sas, como por mágica. Então saía de novopara os bares e cafés da cidade.Minha referência mais importante na épo-ca era a minha avó. Com ela - que dirigia apadaria com meu pai -, eu me sentia com-pletamente à vontade e segura. Ela mora-va a poucos minutos de casa, mas pareciaum outro mundo. Süssenbrunn é uma dasvilas antigas na periferia ao norte de Vie-na, e a cidade em expansão não era capaz

de mudar suas características rurais. Vielastranquilas ladeavam casas particulares an-tigas com jardins nos quais ainda se plan-tavam vegetais. A casa de minha avó, queincluía uma pequena mercearia e a pada-ria, ainda tinha a aparência da época doimpério. Minha avó era de Wachau, umaregião pitoresca no vale do Danúbio, on-de videiras eram plantadas em terraços en-solarados. Seus pais eram viticultores, e,como era costume na época, minha avóteve de ajudar na viticultura desde muitopequena. Ela falava com tristeza e nostal-gia da juventude naquela região, que foitransformada, nos filmes de Hans Moserda década de 1950, em um idílio encan-tador. Na verdade, sua vida naquela pai-sagem pitoresca girava, sobretudo, em to-

mo de trabalho, trabalho e mais trabalho.Um dia, na balsa que levava as pessoas deum lado ao outro do Danúbio, conheceuum padeiro de Spitz e, decidida a agarrara oportunidade de fugir daquela vida pre-destinada, casou-se com ele. Ludwig Ko-ch Sénior era vinte e quatro anos mais ve-lho que ela, e é difícil imaginar que o amorfosse a única motivação para a decisão dese casar. Mas, durante toda sua vida, elafalou com grande respeito do marido, queeu não conheci, porque ele faleceu poucodepois de meu nascimento.Apesar de todos esses anos na cidade, mi-nha avó continuou a ser uma mulher demodos rústicos e um pouco esquisita.Usava saias de lã e, por cima, aventais flo-ridos, fazia cachos no cabelo e cheirava a

comida e a unguento. Sempre que eu en-costava o rosto em sua saia, aquele chei-ro me envolvia. Eu gostava até do leveodor de álcool que sempre a rodeava. Sen-do filha de um casal de viticultores, ela be-bia em todas as refeições um grande copode vinho, como se fosse água, sem nun-ca demonstrar o menor sinal de embria-guez. E continuou fiel aos costumes, cozi-nhando em um antigo fogão a lenha e lim-pando as panelas com uma escova de ara-me antiquada. Dedicava-se às flores comespecial devoção. No grande quintal atrásda casa, havia diversas panelas, baldes euma gamela grande e antiga sobre lajes deconcreto que, na primavera e no verão,se transformavam em pequenas ilhas paraflores violeta, amarelas, brancas e cor-de-

rosa. No pomar vizinho, cresciam damas-cos, cerejas, ameixas e muitas groselhas. Ocontraste com o conjunto habitacional noRennbahnweg não podia ser maior.Em meus primeiros anos de vida, minhaavó foi para mim o epítome de um lar.Frequentemente eu passava a noite na ca-sa dela e deixava que me mimasse comchocolates, aconchegando-me a ela no so-fá velho. À tarde, eu visitava uma amigana vila, cujos pais tinham uma pequenapiscina no jardim. Andava de bicicletacom outras crianças da ma e explorava,curiosa, uma vizinhança por entre a qualtinha liberdade para circular. Mais tarde,meus pais abriram uma loja ali, e era bas-tante comum que eu atravessasse de bici-cleta à distância até a casa de minha avó

para uma visita- surpresa. Lembro que elacostumava estar debaixo do secador decabelo e não ouvia a campainha nem asbatidas na porta. Então eu escalava a cer-ca, me esgueirava por trás de minha avó eachava muito engraçado assustá-la. Aindacom os bobes no cabelo, ela me expulsavapela cozinha, rindo e dizendo:

– Espera até eu te pegar!E me punha de "castigo" trabalhando nojardim. Eu adorava colher com ela as ce-rejas vermelho-escuras da árvore ou pegarcom cuidado os galhos carregados de gro-selhas dos arbustos.Mas minha avó não me oferecia apenasuma parte da infância divertida e despreo-cupada - também aprendi com ela a criarespaço para os sentimentos em um mun-

do que não os permitia. Quando eu a visi-tava, costumava acompanhá-la quase quediariamente ao pequeno cemitério, que fi-cava um pouco fora dos limites da vila,em campo aberto. A sepultura de meuavô, com sua pedra negra e reluzente, fica-va na parte de trás de uma trilha nova depedras, próxima ao muro. No verão, o solbatia nas sepulturas e, exceto pelo baru-lho de um automóvel que ocasionalmentepassava pela estrada principal, só se ouviao rumor dos grilos e dos bandos de pás-saros voando. Minha avó depositava flo-res novas na sepultura e chorava tranqui-lamente. Quando eu era pequena, sempretentava consolá-la:

– Não chore, vovó. O vovô quer vervocê sorrindo!

Depois, já em idade escolar, percebi queas mulheres da família, que no dia a dianão queriam demonstrar fraqueza, preci-savam de um lugar para dar vazão aos sen-timentos. Um lugar protegido, só delas.Conforme fui crescendo, comecei a meentediar com as tardes passadas com asamigas de minha avó, que frequentementese juntavam a nós para visitar o cemitério.Embora gostasse de comer tortas e con-versar com as velhas senhoras, não sentiamais prazer em me sentar em salas de es-tar antiquadas com móveis escuros e toa-lhinhas de centro, nas quais não se podiatocar em nada, enquanto aquelas senhoraselogiavam os netinhos. Na época, minhaavó se ressentiu por eu ter "dado as cos-tas" a ela.

– Acho que vou procurar outra neti-nha para mim - disse certo dia.

E fiquei profundamente magoada quandoela começou a dar sorvetes e doces parauma menina pequena que sempre ia à loja.Esse desentendimento foi resolvido, mas,desde então, minhas visitas a Süssenbrunntornaram-se menos frequentes. De qual-quer forma, minha mãe tinha uma relaçãotensa com a sogra, e não era inconvenien-te para ela que eu agora não passasse maisas noites com minha avó. Embora nossarelação, como costuma ocorrer com avóse netos, fosse limitada, em virtude do ho-rário da escola pública, ela sempre foi meunorte, pois me dava uma sensação de se-gurança e proteção que eu não tinha emcasa.

Três anos antes do meu nascimento, meuspais abriram uma pequena mercearia comum café contíguo no conjunto habitacio-nal Marco Polo, que ficava a mais ou me-nos quinze minutos de carro do Renn-bahnweg. Em 1988, eles compraram umamercearia na Prõbstlgasse, em Süssen-brunn, a poucas centenas de metros da ca-sa da minha avó, na estrada principal davila. Em uma casa rosa de esquina, anti-ga, de um piso só, com uma porta antiqua-da e um balcão da década de 1960, vendi-am pães e bolos, petiscos, jornais e revis-tas especiais para motoristas de caminhão,que tinham ali a última parada na estra-da principal da periferia de Viena. Nasprateleiras, havia mercadorias para as ne-cessidades cotidianas, que as pessoas ain-

da compravam na mercearia, mesmo quehá muito elas pudessem ser encontradasno supermercado: embalagens pequenasde sabão em pó, macarrão, sopas instan-tâneas e, sobretudo, doces. No pequenoquintal, havia uma câmara frigorífica anti-ga, pintada de rosa.Mais tarde, as duas lojas - e a casa de mi-nha avó - se tornariam o ponto centralde minha infância. Na loja do conjuntohabitacional Marco Polo, passei incontá-veis tardes após o jardim de infância oua escola, enquanto minha mãe se ocupavada contabilidade ou atendia os clientes.Eu costumava brincar de esconde-escon-de com outras crianças ou rolava pela pe-quena pista de esqui que a prefeitura cons-truíra. O conjunto habitacional era menor

e mais tranquilo que o nosso: eu podia an-dar livremente e era fácil fazer amigos. Daloja, podia observar os clientes no café -eram donas de casa, homens que saíamdo trabalho e outras pessoas que, já nofim da manhã, tomavam a primeira cer-veja e pediam um sanduíche para acom-panhar. Essas lojas estavam desaparecen-do aos poucos da cidade, mas, graças aomaior tempo de funcionamento, à vendade bebidas e ao atendimento personaliza-do, constituíam um nicho importante paramuitas pessoas.Meu pai era responsável pela padaria e pe-la entrega dos pães e bolos, e minha mãese ocupava de todo o resto. Quando eutinha mais ou menos 5 anos, ele come-çou a me levar em suas viagens. íamos na

caminhonete pelos vastos subúrbios e vi-las, parando em tabernas, bares e cafés,em barraquinhas de cachorro-quente e pe-quenas lojas. Por isso, eu conhecia melhora região ao norte do Danúbio que outrascrianças da minha idade - e passava maistempo em bares e cafés do que convinha.Aproveitava enormemente o tempo quepassava com meu pai e me sentia muitoadulta e levada a sério. Mas os passeiospelos bares também tinham aspectos de-sagradáveis.

– Que gracinha de menina!Ouvi essa frase milhares de vezes. Embo-ra fosse um elogio e eu estivesse no centrodas atenções, não tenho boas lembrançasdisso. As pessoas que apertavam minhasbochechas e compravam chocolate para

mim eram completas estranhas. Além dis-so, eu odiava ser o centro das atençõescontra minha vontade, e isso me deixavacom um profundo sentimento de aflição.Nesse caso, era meu pai que gostava de seapresentar comigo diante dos clientes. Eleera um homem jovial, que apreciava gran-des entradas, e a filha pequena em roupi-nhas impecáveis era um acessório perfei-to. Ele tinha amigos por toda parte, mas,mesmo quando criança, eu percebia quenem todas aquelas pessoas eram realmen-te próximas dele. A maioria o deixava pa-gar uma bebida ou pegava dinheiro em-prestado dele. Em sua busca por aprova-ção, ele pagava satisfeito.Naqueles bares do subúrbio cheios de fu-maça, eu me sentava em bancos altos e

ouvia os adultos que se interessavam pormim apenas nos primeiros instantes.Eram, na maioria, desempregados, quepassavam por dificuldades, bebiam cerve-ja e vinho e jogavam cartas durante o dia.Muitos deles já haviam tido uma profis-são: tinham sido professores ou funcioná-rios públicos, mas, em algum momento,perderam o ramo. Hoje isso se chama sín-drome de burnout. Na época, era a regra nosubúrbio.Raramente alguém perguntava o que eufazia nesses locais. A maioria achava nor-mal minha presença ali e era exagerada-mente afável.

– Grande garota! - meu pai dizia demodo apreciativo, dando-me um tapi-nha na bochecha.

Quando alguém comprava doces ou limo-nada para mim, esperava pela recompen-sa:

– Dá um beijinho no tio. Dá um beiji-nho na tia.

Eu evitava esse contato mais íntimo comestranhos, dos quais me ressentia por rou-barem a atenção de meu pai, que era mi-nha. Esses passeios tinham reviravoltasconstantes: em um momento, eu era ocentro das atenções, era apresentada comorgulho e recebia um doce; no seguinte,mal prestavam atenção em mim, e eu po-dia até ser atropelada por um carro semninguém perceber. Essa oscilação entreatenção e negligência em um mundo derelações superficiais acabava com a minhaautoconfiança. Aprendi a ser o centro das

atenções e a me manter ali tanto quantopossível. Hoje percebo que essa atraçãopelos palcos - e o sonho de ser atriz queeu tinha desde pequena - não era uma es-colha minha. Era uma maneira de imitarmeus pais extrovertidos - e um modo desobreviver em um mundo em que ou oadmiram ou o ignoram.Pouco depois, essa tensão entre atenção enegligência, que minava minha autoconfi-ança, estendeu-se aos parentes mais pró-ximos. O mundo da minha primeira in-fância começou lentamente a desmoro-nar. Primeiro, as fendas em minhas rela-ções familiares eram tão pequenas e im-perceptíveis que eu não podia vê-las nemme sentir culpada por ser a causa da dis-córdia. Mas, então, elas se tornaram maio-

res, até toda a estrutura familiar ruir. Meupai percebeu muito tarde que fora longedemais e que minha mãe há muito decidi-ra se separar. Ele continuava a viver umavida extravagante como rei do subúrbio,que andava pelos bares e sempre com-prava carros grandes e imponentes. EramMercedes ou Cadillacs com os quais elequeria impressionar os "amigos". E pega-va dinheiro emprestado para isso. Mesmoquando me dava mesada, a pedia de vol-ta pouco depois para comprar cigarros outomar um café. Pegou tantos empréstimosusando a casa da minha avó como garan-tia que, no fim, ela foi confiscada. Em me-ados da década de 1990, ele já acumula-ra tantas dívidas que pôs em risco a sub-sistência da família. Durante o refinancia-

mento, minha mãe se ocupou da merce-aria na Prõbstlgasse e da loja no conjun-to habitacional Marco Polo. Mas as fen-das iam muito além da questão financeira.Minha mãe já estava cheia do marido quetanto festejava, mas que não conhecia a fi-delidade.E toda a minha vida mudou com a sepa-ração gradual de meus pais. Em vez de sermimada e protegida, eles me deixavam delado e discutiam alto durante horas. En-quanto um se trancava no quarto, o outrocontinuava a gritar na sala de estar. Qu-ando eu tentava perguntar timidamente oque estava acontecendo, eles me coloca-vam no quarto, fechavam a porta e con-tinuavam brigando. Sentia-me aprisionadae não entendia mais o mundo.

Com o travesseiro sobre a cabeça, tentavaparar de ouvir aquelas discussões em vozalta e me transportar para minha primeirae alegre infância. Raramente isso ocorria.Eu não entendia por que meu pai, que jáfora tão radiante, parecia agora desampa-rado e perdido e não tirava mais nenhu-ma surpresa da manga para me animar.Seu inesgotável estoque de balas de ursi-nho subitamente acabara.Após uma briga violenta, minha mãe dei-xou o apartamento e não voltou por vá-rios dias. Queria mostrar a meu pai comoera não saber onde o parceiro estava - pa-ra ele, uma ou duas noites fora de casanão era nada excepcional. Mas eu era mui-to pequena para entender as razões dela esentia medo. A percepção do tempo nes-

sa idade é diferente, e a ausência de minhamãe parecia infinitamente longa. Eu nãosabia se ela voltaria. O sentimento deabandono e de rejeição criou raízes pro-fundas em mim. E começou uma fase daminha infância em que eu não encontravamais o meu lugar no mundo e não me sen-tia mais amada. A criança pequena e au-toconfiante deu lugar, aos poucos, a umamenina insegura, que deixou de confiarnos familiares.Nessa época difícil, comecei a frequentaro jardim de infância. Foi uma etapa emque o controle externo sobre a minha vi-da, que eu não podia evitar quando peque-na, chegou ao ponto máximo.Minha mãe me matriculara em uma es-colinha particular que não ficava muito

distante de nosso conjunto habitacional.Desde o início, sentia-me incompreendidae muito pouco aceita, por isso comecei aodiar o jardim de infância. Logo no pri-meiro dia, tive uma experiência que esta-beleceu a base dessa relação. Eu estava dolado de fora, no jardim, com outras crian-ças, e descobri uma tulipa que me encan-tou. Inclinei-me sobre ela e a segurei cui-dadosamente para poder cheirá-la. A pro-fessora deve ter pensado que eu queriaarrancar a flor e, com um movimentoabrupto, bateu no dorso da minha mão.Gritei indignada:

– Vou contar para minha mãe!Mas, à noite, tive de entender que ela nãoestava mais ao meu lado e que delegaraa autoridade a outra pessoa. Quando lhe

contei sobre o incidente - convencida deque ela me defenderia em solidariedade eque a professora seria repreendida no diaseguinte -, ela apenas disse que era assimno jardim de infância: era preciso seguiras regras. E, referindo-se ao incidente demodo superficial, disse:

– Não vou me meter porque eu nãoestava lá.

Essa frase tornou-se a resposta-padrãodela quando eu tinha problemas com asprofessoras do jardim de infância. E,quando eu contava sobre as zombariasdas outras crianças, ela se limitava a dizer:

– Então você tem que revidar.Eu tinha de aprender a lidar sozinha comas dificuldades. A época do jardim de in-fância transformou-se em um período di-

fícil. Eu odiava regras estritas e me opu-nha a ter de descansar com as outras cri-anças no dormitório após o almoço, ape-sar de não estar cansada. As professorasexecutavam o trabalho de rotina, mas nãose interessavam por nós de modo particu-lar. Enquanto nos supervisionavam comum olho, liam romances e jornais, fofoca-vam e pintavam as unhas.Demorei a fazer amizade com as outrascrianças e, apesar de estar rodeada de me-ninos e meninas da minha idade, me sen-tia mais solitária do que antes."Os fatores de risco, sobretudo na enu-rese secundária, estão associados à perdaem sentido amplo, como separação ou di-vórcio dos pais, mortes, nascimento de ir-mãos, pobreza extrema, delinquência dos

pais, privação, negligência, falta de apoioem etapas importantes do desenvolvi-mento."É assim que o dicionário descreve as cau-sas de um problema com o qual lutei nes-sa época. De menina precoce, que muitocedo deixou de usar fraldas, me transfor-mei em criança que urinava na cama. Fa-zer xixi na cama se tornou um estigma queprejudicou toda minha vida e virou moti-vo de frequentes repreensões e zombari-as. Como eu me urinava repetidas vezes,minha mãe reagia sempre da mesma ma-neira. Ela pensava que era má-criação, quese podia corrigir com castigo e coerção. Eme dava uma palmada no bumbum, en-quanto perguntava com raiva:

– Por que você está fazendo isso co-migo?

Ela se zangava, se desesperava e se sentiaimpotente. E eu continuava molhando acama. Ela comprou um forro de borrachae o colocou na minha cama. Foi uma ex-periência humilhante. Eu sabia, pelas con-versas com as amigas da minha avó, queforros de borracha e roupas de cama espe-ciais eram feitos para pessoas velhas e do-entes. E eu queria ser tratada como moci-nha.Mas não conseguia parar. Minha mãe meacordava à noite para ir ao banheiro. Mas,quando eu molhava a cama, ela trocava olençol e o pijama e me xingava. Muitas ve-zes, eu acordava seca e me orgulhava dis-so, mas ela acabava com minha alegria:

– Não se lembra que eu tive que tro-car você de noite? - gritava. - Vejacom que pijama está vestida!

Eram censuras às quais eu não podia meopor. Ela me castigava com desprezo ezombaria. Quando eu quis a roupa de ca-ma da Barbie, ela riu - eu só a ganhariaquando parasse de urinar na cama. E eumorria de vergonha.Finalmente, ela começou a controlarquanto líquido eu tomava. Sempre tivemuita sede, bebia bastante água, o dia to-do. Mas agora a ingestão de líquidos eracontrolada. Durante o dia eu bebia poucoe, à noite, menos ainda. Quanto mais meproibiam de tomar água ou suco, mais se-de eu tinha, até não conseguir pensar emmais nada. Cada gole e cada ida ao ba-

nheiro eram controlados e comentados,mas apenas quando estávamos sozinhas.O que as pessoas iriam pensar?No jardim de infância, molhar a cama ad-quiriu uma nova dimensão. Agora tam-bém me urinava durante o dia. As criançasriam de mim, e as professoras simples-mente as incentivavam e, outras vezes, meridicularizavam diante do grupo. Pensa-vam que a zombaria podia me levar a con-trolar melhor a bexiga. Mas a humilhaçãopiorou o problema. Ir ao banheiro e to-mar um copo de água tornaram-se umatortura. Elas me forçavam a fazes essascoisas quando eu não queria e me proi-biam quando eu precisava delas desespe-radamente. Tínhamos de pedir permissão

para ir ao banheiro. No meu caso, todavez que eu perguntava, diziam:

– Mas você acabou de ir. Por que querir de novo?

Inversamente, elas me obrigavam a ir aobanheiro antes de qualquer passeio, antesdas refeições, antes do cochilo da tarde eme supervisionavam. Uma vez, as profes-soras suspeitaram que eu tivesse me mo-lhado de novo e me forçaram a mostrar acalcinha para as outras crianças.Quando eu saía de casa com minha mãe,ela sempre levava uma sacola com umamuda de roupa, o que aumentava minhavergonha e minha insegurança. Pareciaque os adultos esperavam que eu me uri-nasse. E, quanto mais pareciam esperar,me xingando e ridicularizando, mais ti-

nham razão. Era um círculo vicioso, doqual não consegui sair durante a escolaprimária. Eu continuava a ser a meninaque fazia xixi na cama, que era ridiculari-zada, humilhada e estava sempre com se-de.Após dois anos de brigas e algumas tenta-tivas de reconciliação, meu pai finalmentesaiu de casa. Eu tinha 5 anos e, de um be-bê feliz, havia me transformado em umacriança insegura e introvertida, que nãogostava mais da vida e demonstrava issode diferentes maneiras. Ora fugia, ora gri-tava, vomitava e tinha crises de choro di-ante da dor e do sentimento de incompre-ensão. Durante semanas, sofri com umagastrite.

Minha mãe, que também estava muitoabalada pela separação, transferiu paramim seu modo de lidar com a situação.Assim como ela suportava a dor e a incer-teza e seguia corajosamente, exigia que euengolisse o choro. Ela não conseguia lidarcom o fato de que, por ser pequena, eunão estava em condições de fazê-lo. Qu-ando eu ficava sensível demais para ela,ela reagia de maneira agressiva aos meusataques. Reprovava minha autocomisera-ção e tentava me conquistar com prêmi-os ou me ameaçar com castigos, se eu nãoparasse.Minha raiva daquela situação, que eu nãoconseguia entender, gradualmente se vol-tou contra a pessoa que ficou depois dasaída de meu pai: minha mãe. Mais de

uma vez eu a odiei a tal ponto que resolvisair do apartamento. Embrulhei algumascoisas em minha bolsa de ginástica e medespedi. Mas ela sabia que eu não iria mui-to além da porta e comentou, disfarçando:

– Ok, se cuida!Uma outra vez, tirei do quarto todas asbonecas que ela me dera e as enfileirei nocorredor. Ela deveria entender que eu es-tava decidida a barrada do meu pequenodomínio no quarto. Mas, naturalmente,essas manobras contra minha mãe não re-solviam meu problema. Com a separaçãode meus pais, eu tinha perdido meu pontode apoio e não podia mais baseado empessoas que até então sempre estiveramali para isso.

Eu sofria uma forma diária de violência- não era suficientemente brutal para serconsiderada abuso, mas era uma indife-rença tão grande que lentamente acaboucom minha autoconfiança. Quando se falaem violência contra crianças, pensa-se empancadas sistemáticas que resultam em fe-rimentos corporais. Eu não experimenteinada disso na infância. Antes, era umamistura de repressão verbal e tapas "clás-sicos" que me mostrou que, como criança,eu era a parte mais fraca.Não era nem a raiva nem o comporta-mento frio e calculista que estimulavam aviolência de minha mãe, mas uma agres-são crescente, que ardia como uma chamae se apagava rapidamente. Os tapas que eurecebia tornaram-se a parte mais dolorosa

e humilhante de minha infância. Eu apa-nhava quando ela estava sobrecarregada equando fazia algo errado. Quando eu fi-cava triste e ditados como "Meninas gran-des não choram" ou "índios não sentemdor" não secavam minhas lágrimas, ela mebatia no rosto e dizia: "Assim pelo menosvocê vai saber por que está chorando". Devez em quando, eu levava um tapa na ca-ra sem razão aparente: "Agora você já temo que fazer". Ela odiava quando eu cho-ramingava, fazia perguntas ou pedia expli-cações - também nessas ocasiões eu mere-cia apanhar. A maior humilhação eram ostapas com o dorso da mão, que ela davarápido em minhas bochechas. O rosto in-teiro ficava dormente, e as lágrimas brota-vam de meus olhos.

Na época e naquela região, não era inco-mum tratar as crianças assim. Ao contrá-rio, eu tinha uma vida muito mais "fácil"do que muitas crianças da vizinhança. Nopátio, eu podia observar, de vez em quan-do, mães que gritavam com os filhos, osempurravam ao chão e batiam neles. Mi-nha mãe nunca faria isso, e seu modo deme dar bofetadas casualmente não des-pertaria incompreensão. Mesmo quandoela me batia em público no rosto, nin-guém interferia. Na maioria das vezes, po-rém, ela era elegante demais para correr orisco de ser pega em uma discussão. A vi-olência aberta era algo para as outras mu-lheres do conjunto habitacional. Por ou-tro lado, eu era obrigada a secar as lágri-

mas ou esfriar a face antes de sair de casaou entrar no carro.Ao mesmo tempo, minha mãe tentava ali-viar a consciência pesada com presentes.Ela sempre competia com meu pai paraver quem comprava as roupas mais boni-tas ou passeava comigo nos fins de sema-na. Mas eu não queria presentes. Nessa fa-se da minha vida, eu só precisava de al-guém que me desse apoio e amor incondi-cionais. Meus pais não podiam fazer isso.Um acontecimento da época da escola pú-blica demonstra quanto eu internalizei ofato de que não podia esperar ajuda dosadultos. Eu tinha mais ou menos 8 anos efui passar uma semana na sede da escolano interior, na província da Estíria. Eunão era uma criança atlética e não me atre-

via às brincadeiras radicais com as quaisas outras crianças passavam o tempo. Masqueria ao menos fazer uma tentativa nopátio do recreio.A dor tomou conta do meu braço quandobati no chão ao cair do brinquedo. Queriame sentar, mas meu braço não me obede-cia e caí para trás. O riso alegre das crian-ças, que brincavam ao meu redor no pátiodo recreio, soou abafado em meus ouvi-dos. Eu queria gritar. As lágrimas corriampelo meu rosto, mas eu não conseguia fa-zer barulho. Foi somente quando uma co-lega se aproximou que consegui pedir queela chamasse a professora. A menina cor-reu. Mas a professora a mandou de voltapara me dizer que eu tinha que ir até lá sequisesse algo.

Tentei me levantar, mas não pude me mo-ver por causa da dor no braço. Fiquei ládeitada, sem nenhuma ajuda. Somente de-pois de um tempo uma professora de ou-tra classe me ajudou a levantar. Cerrei osdentes, não chorei e não reclamei. Nãoqueria fazer confusão. Mais tarde, minhaprofessora percebeu que havia algo erradocomigo. Ela suspeitou que eu tivesse memachucado na queda e me deixou passara tarde na sala de televisão.A noite, eu estava deitada na cama do dor-mitório e mal podia respirar com a dor.E, ainda assim, não pedi ajuda. No dia se-guinte, mais tarde, estávamos no zoológi-co de Herberstein, minha professora per-cebeu que eu estava seriamente machuca-da e me levou ao médico, que me enviou

imediatamente ao hospital em Graz. Meubraço estava quebrado.Minha mãe me pegou no hospital acom-panhada do namorado. O novo homemna vida dela era conhecido - meu padri-nho. Eu não gostava dele. A viagem devolta a Viena foi uma tortura. Durantetrês horas, ele reclamou que, graças à mi-nha falta de jeito, eles tinham de fazeruma viagem tão longa de carro. Ela tentouacalmar os ânimos, mas ele não parava derecla mar. Eu estava sentada no banco tra-seiro e chorava baixinho. Envergonhava-me por ter caído e do trabalho que estavadando a todos. "Não se aboneça." "Nãofaça uma cena." "Não fique histérica.""Meninas grandes não choram."

Esses lemas de minha infância, ouvidosmil vezes, me fizeram suportar por um diae meio as dores em meu braço quebrado.Agora, durante a viagem na estrada, umavoz interior os repetia em minha cabeça,em meio às críticas do namorado de mi-nha mãe.Minha professora sofreu um processo dis-ciplinar, porque não me levou imediata-mente ao hospital. Era verdade que elanegligenciara o cuidado comigo. Mas eutambém fora, em grande parte, negligente.A confiança em minha própria percepção,na época, era tão pequena que nem comum braço quebrado eu achava que podiapedir ajuda.Nesse meio tempo, papai me via apenasnos fins de semana ou quando me levava

em uma de suas viagens. Ele também es-tava novamente apaixonado após se sepa-rar de minha mãe. Sua namorada era sim-pática, mas reservada. Uma vez, ela dissepensativamente para mim:

– Agora sei por que você é tão proble-mática. Seus pais não a amam. Protes-tei em voz alta - mas a frase ficou naminha alma magoada de criança. E seela tivesse razão? Afinal de contas, elaera adulta, e adultos sempre têm ra-zão.

Durante vários dias, esse pensamento nãome deixou.Quando eu tinha 9 anos, comecei a com-pensar minha frustração com comida. Eununca fora uma criança magra e cresci emuma família em que a comida tinha um

papel importante. Minha mãe era o tipode mulher que podia comer o que quisessesem engordar um grama, graças ao hiper-tireoidismo ou à personalidade ativa. Co-mia pão com banha de porco, bolo, porcoassado com cominho, sanduíche de pre-sunto e não engordava. E também não secansava de enfatizar isso diante de outraspessoas:

– Posso comer o que quiser - assobi-ava, segurando uma fatia de pão comuma cobertura gordurosa.

Dela, herdei o exagero na comida, masnão a capacidade de queimar todas aque-las calorias.Meu pai, ao contrário, era tão gordo que,quando eu era pequena, tinha vergonha deser vista com ele. Sua barriga era enorme e

muito esticada, como a de uma grávida deoito meses. Quando ele deitava no sofá,ela se erguia nas alturas como uma mon-tanha, e eu sempre dava um tapinha nela,perguntando:

– Quando o bebê vai nascer?Ele ria afavelmente. De seu prato, semprese erguia uma pilha de carne e bolinhos,que nadavam em um verdadeiro mar demolho. Ele consumia porções enormes econtinuava a comer quando não tinhamais fome.Quando saíamos em nossos passeios defamília - primeiro com minha mãe, depoiscom a nova namorada -, tudo girava emtorno de comida. Enquanto outras famíli-as passeavam pelas montanhas, andavamde bicicleta ou visitavam museus, nós nos

dirigíamos a destinos culinários. íamos atéuma cantina nova ou fazíamos passeios ahotéis no interior, em castelos, não pelasexcursões históricas, mas para comparti-lhar os banquetes medievais: montes decarne e bolinhos, enfiados na boca com asmãos, e canecas cheias de cerveja - esseera um passeio bem ao gosto de meu pai.Mesmo nas lojas em Süssenbrunn e noconjunto habitacional Marco Polo - queminha mãe assumiu depois de se separarde meu pai -, eu estava sempre cercadade comida. Quando minha mãe me pega-va depois da escola e me levava para a lo-ja, eu combatia o tédio com guloseimas:um sorvete, ursinhos de gelatina, um pe-daço de chocolate, um pepino em con-serva. Em geral, ela cedia - estava sempre

ocupada demais para se preocupar com ascoisas com que eu me empanturrava.Mas comecei a comer demais sistemati-camente. Devorava um pacote inteiro dechocolate, bebia uma garrafa grande deCoca-Cola, depois comia mais chocolate,até minha barriga ficar tão esticada queparecia que ia explodir. Mesmo quandoeu não conseguia pôr mais nada na boca,continuava comendo. No último ano an-tes do sequestro, engordei tanto que derechonchuda passei a ser uma criança real-mente gorda. Fazia ainda menos exercício,as outras crianças me importunavam ain-da mais, e eu compensava a solidão commais comida. No meu décimo aniversário,eu pesava quarenta e cinco quilos.Mamãe me frustrava ainda mais, dizendo:

– Gosto de você de qualquer jeito,não importa sua aparência. Ou en-tão:– Uma criança feia só pode usarroupas bonitas.

Quando eu reagia, magoada, ela ria e ex-plicava:

– Não estou falando de você, tesouro.Não seja tão sensível. "Sensível" - na-da podia ser pior que isso. Hoje sem-pre me espanto com

o fato de que a palavra "sensível" podeser empregada em sentido positivo. Emminha infância, era um xingamento parapessoas delicadas demais para este mun-do. Eu desejava então ter podido ser frá-gil. Mais tarde, essa dureza que principal-

mente minha mãe me impôs salvou minhavida.Cercada de todo tipo de doces, eu passavahoras sozinha diante da televisão ou noquarto, com um livro na mão. Queria fu-gir da realidade, que só me trazia humi-lhação, rumo a outros mundos. Tínhamosem casa todos os canais de televisão, eninguém se importava com o que eu assis-tia. Eu trocava de canal a esmo: via pro-gramas infantis, noticiário e filmes polici-ais, que me davam medo, mas cujo con-teúdo eu absorvia como uma esponja. Noverão de 1997, um assunto dominava osmeios de comunicação: na região de Salz-kammergut, fora presa uma quadrilha depornografia infantil. Com medo, eu ouviaria televisão que sete homens tinham

atraído com pequenas somas de dinheiroum número desconhecido de meninos atéum quarto especialmente equipado emuma casa. Em seguida, eles foram violen-tados, e os vídeos gravados foram vendi-dos para todo o mundo. Em 24 de janeirode 1998, mais um caso abalou a Alta Áus-tria. Vídeos que exibiam abusos de meni-nas de 5 a 7 anos foram distribuídos pe-lo correio. Um deles mostrava um homematraindo uma garota de 7 anos da vizi-nhança até o sótão, onde ela foi violenta-da.Fiquei ainda mais abalada com as notíciassobre os assassinatos em série de meninasque ocorriam na Alemanha. Lembro quenão havia um único mês, na época da es-cola, em que não se noticiasse sobre uma

garota sequestrada, violentada ou assassi-nada. As notícias não poupavam detalhessobre as dramáticas operações de buscae as investigações da polícia. Eu via cãesfarejadores nas florestas e mergulhadoresque buscavam os corpos das meninas de-saparecidas em mares e lagos. E ouvia,repetidas vezes, os relatos dolorosos dosparentes: como elas haviam desaparecidoenquanto brincavam ao ar livre ou sim-plesmente não voltaram mais da escolapara casa. Como os pais desesperados ha-viam procurado por elas até receber a ter-rível notícia de que as filhas não seriammais vistas com vida.Os casos que chegavam aos meios de co-municação tinham uma presença tão gran-de que também conversávamos sobre eles

na escola. Os professores explicavam co-mo poderíamos nos proteger de ataques.Assistíamos a filmes em que meninaseram molestadas pelos irmãos mais ve-lhos, ou meninos aprendiam a dizer "não"para os pais excitados. E os professoresrepetiam as advertências que nós, crian-ças, ouvíamos sempre em casa: "Nuncasaiam com um estranho! Não entrem nocarro de um desconhecido. Não aceitemdoces! Atravessem para o outro lado dama se algo estranho ocorrer".Quando vejo hoje a lista de casos queocorreram naqueles anos, fico tão abaladaquanto na época:

– Yvonne (12 anos) foi assassinadaem julho de 1995 no lago Pinnow,

em Brandemburgo, porque reagiua uma tentativa de estupro.– Annette (15 anos), de Mardorf,no lago Steinhude, foi achada nua,violentada e assassinada em umaplantação de milho, em 1995. O as-sassino nunca foi encontrado.– Maria (7 anos) foi sequestrada,violentada e abandonada em um la-go em novembro de 1995, em Hal-densleben, Saxônia-Anhalt. Elme-dina (6 anos) foi sequestrada, vio-lentada e asfixiada em Siegen, emfevereiro de 1996.– Claudia (11 anos) foi sequestrada,violentada e queimada viva emmaio de 1996, em Grevenbroich.

– Lllrike (13 anos) não voltou deum passeio com sua charrete puxa-da por um pônei, em 11 de junhode 1996. Seu corpo foi encontradodois anos depois.– Ramona (10 anos) desapareceude um shopping center, em Jena, em15 de agosto de 1996, sem deixarvestígios. Seu corpo foi encontradopróximo a Eisenach, em janeiro de1997.– Natalie (7 anos) foi sequestradaa caminho da escola, violentada eassassinada por um homem de 29anos, em 20 de setembro de 1996,em Epfach, na Alta Baviera.

– Kim (10 anos), de Varei, na Frí-sia, foi sequestrada, violentada e as-sassinada em janeiro de 1997.– Anne-Katrin (8 anos) foi encon-trada morta por espancamento em9 de junho de 1997, nas proximida-des da casa dos pais, em Seebeck,Brandemburgo.– Loren (9 anos) foi violentada eassassinada por um homem de 20anos, em julho de 1997, no porãoda casa dos pais, em Prenzlau.– Jennifer (11 anos) foi atraída pelotio até seu carro, violentada e es-trangulada, em Versmold, próximoa Gütersloh, em 13 de janeiro de1998.

– Carla (12 anos) foi atacada e vi-olentada a caminho da escola eabandonada inconsciente em umarepresa, em 22 de janeiro de 1998,em Fürth. Faleceu depois de cincodias em coma.

Os casos de Jennifer e Carla me comove-ram em particular. Após a prisão, o tio deJennifer confessou que queria abusar se-xualmente da menina em seu carro. Co-mo ela se defendeu, ele a estrangulou e es-condeu o corpo em um bosque. As no-tícias realmente me impressionavam. Ospsicólogos entrevistados aconselhavam anão se defender dos ataques, para não pôrem risco a própria vida. Mais assustadoraseram as matérias na televisão sobre o as-sassinato de Carla. Ainda hoje vejo os re-

pórteres - como eles ficavam diante do la-go em Wilhermsdorf e informavam que sepodia afirmar que a menina lutara pela vi-da por causa do solo remexido. O fune-ral foi transmitido pela televisão. Eu mesentava diante da tela com os olhos arre-galados de medo. Todas aquelas meninastinham a minha idade. O que me acalma-va quando eu via suas fotos no noticiárioera o fato de que eu não era a menina lou-ra e delicada que os sequestradores pare-ciam preferir. Eu não tinha a menor ideiade como estava errada.

O QUE PODERIAACONTECER?O úú ltimo dia de minha vida an-tiga

No DIA SEGUINTE ao retorno da Hun-gria com meu pai, acordei triste e com rai-va. Estava aborrecida com a raiva de minhamãe contra meu pai, que agora se voltavacontra mim. E isso me apertava o peito.Porém o que mais me afligia era o fato deque ela tivesse me proibido de vedo. Fora

uma dessas decisões estúpidas que osadultos jogam sobre a cabeça das crianças- por raiva ou por um mau humor súbi-to -, sem lembrar que não se trata apenasdeles, mas também das necessidades maisprofundas daqueles que têm de enfrentar,de modo impotente, tais decisões.Eu odiava esse sentimento de impotência,que me fazia recordar de que eu ainda eracriança. Eu queria finalmente ser adulta,na esperança de que as discussões comminha mãe não me fizessem tanto mal.Queria aprender a controlar meus senti-mentos e, com eles, o medo profundo queas brigas entre os pais sempre causam nosfilhos.Com meu décimo aniversário, deixei paratrás o primeiro e mais dependente período

de minha vida. A data mágica, em que mi-nha independência seria oficialmente de-terminada, se aproximava: mais oito anose eu poderia sair de casa e procurar umemprego. Então eu não seria mais depen-dente das decisões dos adultos à minhavolta, que se importavam mais com suaspequenas brigas e seus ciúmes do quecom as minhas necessidades. Mais oitoanos, que eu utilizaria para me prepararpara uma vida em que tomaria minhaspróprias decisões.Já dera um passo importante rumo à inde-pendência havia algumas semanas: tinhaconvencido minha mãe de que eu podiair sozinha até a escola. Embora eu já esti-vesse na quarta série, ela sempre me dei-xava de carro na frente da escola. O traje-

to não durava nem cinco minutos. Diaria-mente eu me envergonhava diante das ou-tras crianças por minha fraqueza, que eravisível quando eu descia do carro e minhamãe me dava um beijo de despedida. Ha-via um bom tempo eu negociava com elaque aquele era o momento de assumir aresponsabilidade de ir sozinha para a es-cola. Com isso, queria mostrar não apenaspara meus pais, mas sobretudo para mim,que não era mais uma criancinha. E quepodia vencer meus medos. Minha insegu-rança era algo que me afligia profunda-mente. Ela me atacava ao descer as esca-das, crescia quando eu atravessava o pátioe me dominava quando caminhava pelasruas do conjunto habitacional do Renn-bahn. Eu me sentia indefesa e pequena e

me odiava por isso. Nesse dia, já me deci-dira: queria tentar ser forte. Esse dia seriao primeiro de minha nova vida e o últimoda vida antiga. Depois do que passei, pa-rece irônico que justamente nesse dia mi-nha vida como eu a conhecia tenha termi-nado realmente. Mas de um modo que eununca imaginara.Decidida, empurrei o edredom estampadopara o lado e me levantei. Como sempre,minha mãe já tinha separado a roupa queeu deveria usar: um vestido com a partede cima jeans e a saia quadriculada, de fla-nela cinza. Eu me sentia gorda e apertadacom aquela roupa, como se o vestido memantivesse presa a uma etapa da qual ha-via muito queria me livrar.

Mal-humorada, pus o vestido e, em se-guida, passei pelo corredor até a cozinha.Sobre a mesa, minha mãe tinha deixadosanduíches para a hora do recreio, enrola-dos em guardanapos de papel com o logodo pequeno café do conjunto habitacionalMarco Polo e o nome dela. Como já es-tava na hora de ir, vesti meu casaco ver-melho e joguei sobre os ombros a mochilacolorida. Acariciei os gatos e me despedideles. Então abri a porta para a escada esaí. No último trecho, parei e hesitei, pen-sando na frase que mamãe tinha me ditodezenas de vezes:

– Nunca vá embora com raiva. Nuncase sabe se vamos nos ver de novo!

Ela podia se irritar, pois era impulsiva, eaté me dar um tapa, como fizera diversas

vezes. Mas, quando eu ia me despedir, erasempre carinhosa. Será que eu devia sairsem dizer nada? Dei meia-volta, mas en-tão venceu o sentimento de decepção quea noite anterior deixara em mim. Eu não abeijaria mais e a castigaria com meu silên-cio. Além disso, o que poderia acontecer?

– O que poderia acontecer? - murmu-rei em voz baixa.

As palavras ressoaram nas escadas de la-drilhos cinza. Eu me virei novamente edesci os degraus. O que poderia aconte-cer? Essa frase era o meu mantra pelo ca-minho na rua e através dos blocos de ca-sas até a escola. Meu mantra contra o me-do e contra a consciência pesada por nãoter me despedido.

Deixei o conjunto habitacional, passei di-ante de seu interminável muro p espereina faixa de pedestres. O bonde elétricopassou dando solavancos, lotado de pes-soas a caminho do trabalho. Minha cora-gem diminuía. Tudo ao meu redor pare-cia subitamente grande demais para mim.A briga com minha mãe ainda me aborre-cia, e o sentimento de afundar nessa novarede de relacionamentos entre meus pais,que brigavam, e seus novos parceiros, quenão me aceitavam, me deixava angustiada.A atmosfera de otimismo, que eu queriasentir naquele momento, dava lugar à cer-teza de que, mais uma vez, eu teria de lu-tar por um lugar nessa rede. E que eu nãoconseguiria mudar minha vida, se a faixa

de pedestres me parecia um obstáculo in-superável.Comecei a chorar e senti o impulso opres-sivo de simplesmente desaparecer e medissolver no ar. Deixei o tráfego passarpor mim e imaginei que atravessaria a mae seria atropelada, arrastada por algunsmetros e então estaria morta. Minha mo-chila ficaria perto de mim, e meu casacovermelho seria como um semáforo sobreo asfalto, gritando: "Vejam o que vocês fi-zeram com essa menina!" Minha mãe seprecipitaria de casa para lamentar e perce-ber todos os seus erros. Sim, ela faria isso.Com toda certeza.Naturalmente, não me joguei na frente deum carro nem do bonde elétrico. Nunca iaquerer chamar tanta atenção. Em vez dis-

so, fiz um esforço, atravessei a ma e conti-nuei pelo Rennbahnweg na direção da es-cola pública na Brioschiweg. O caminholevava a dois becos tranquilos, ladeadospor pequenas casas da década de 50 comjardins modestos. Em uma região conhe-cida pelos edifícios industriais e conjuntosde casas pré-fabricadas, elas pareciam, aomesmo tempo, anacrônicas e tranquiliza-doras. Quando virei naMelangasse, sequei as últimas lágrimas e,em seguida, caminhei com a cabeça baixa.Não lembro mais o que me fez levantara cabeça. Um barulho? Um pássaro? Dequalquer modo, meu olhar se deteve emuma caminhonete branca. Estava estacio-nada no meio-fio, no lado direito da ma,e parecia estranhamente inapropriada na-

quela vizinhança tranquila. Vi um homemparado diante dela. Era magro, não muitoalto e olhava ao redor sem interesse, comose esperasse por alguma coisa que nãosoubesse o que era.Diminuí o passo e me retesei. O medo,que eu mal podia controlar, de repente re-tomou e agora me arrepiava os pelos dosbraços. No mesmo instante, senti o im-pulso de atravessar para o outro lado dama. Uma sequência rápida de imagens etrechos de conversas passou pela minhamente: não fale com estranhos... não entreno carro de um desconhecido... seques-tro... abuso... as muitas histórias que euvira na televisão sobre meninas raptadas.Mas, se eu queria realmente ser adulta,não podia ceder a esse impulso. Tinha de

enfrentá-lo, por isso me forcei a continu-ar andando. O que poderia acontecer? Ocaminho da escola era um teste para mim.Eu continuaria, sem me desviar.Olhando para trás, não sei dizer por quea presença da caminhonete ali logo mealarmou: podia ser uma intuição, mas tal-vez fosse simplesmente pela quantidadede notícias sobre violência sexual a que es-távamos sujeitos na época do caso Groér.Em 1995, o cardeal Hans Hermann Groérfoi acusado de abusar de crianças, e a rea-ção do Vaticano causou um escândalo nosmeios de comunicação, o que levou ao re-ferendo católico na Áustria. Por isso, ha-via tantas notícias sobre meninas seques-tradas e assassinadas, que eu podia ver nosprogramas de TV. Assim, provavelmente

teria medo de qualquer homem que en-contrasse na ma em uma situação inco-mum. Ser sequestrada era, a meus olhosinfantis, uma possibilidade real - mas, emmeu íntimo, era algo que só acontecia natelevisão, e não em minha vizinhança.Quando estava a cerca de dois metros dohomem, ele me encarou. Nesse momento,meu medo desapareceu. Ele tinha olhosazuis e, com os cabelos talvez excessiva-mente compridos, parecia um estudantesaído de algum filme antigo feito para te-levisão na década de 1970. Seu olhar pare-cia estranhamente vazio. Pobre homem, pen-sei, porque ele parecia precisar de prote-ção, e eu o teria ajudado de boa vontade.Isso pode soar estranho, como uma espé-cie de sujeição à crença infantil na bon-

dade dos seres humanos. Mas, quando eleme olhou pela primeira vez naquela ma-nhã, parecia perdido e muito frágil.Sim, eu passaria no teste. Passaria poraquele homem, mantendo a distância quea calçada estreita permitia. Não gostavamuito de esbarrar em outras pessoas, equeria pelo menos me afastar o suficientepara não encostar nele.Então aconteceu tudo muito rápido.No momento em que tentei passar porele, de olhos baixos, ele me pegou pelacintura, me ergueu em direção à portaaberta da caminhonete e me jogou lá den-tro. Tudo ocorreu em um único movi-mento, como se a cena tivesse sido core-ografada, como se a tivéssemos ensaiadojuntos. Uma coreografia de terror.

Se eu gritei? Acho que não. No entanto,tudo em mim era um único grito. Quequeria sair, mas permanecia preso em mi-nha garganta: um berro mudo, como sefosse um daqueles pesadelos em que setenta gritar, mas não se ouve som algum,em que se quer correr, mas as pernas semovem como em areia movediça.Se eu resisti? Se tentei acabar com a co-reografia perfeita? Devo ter resistido, por-que, no dia seguinte, eu tinha um olho ro-xo. Mas não me lembro da dor do golpe,apenas de uma sensação de impotênciaparalisante. O sequestrador levou a me-lhor. Ele tinha um metro e setenta e dois,e eu, apenas um metro e meio. Eu era gor-da e lenta, além do mais a mochila pesa-

da limitava meus movimentos. A cena to-da durou poucos segundos.No mesmo instante em que a porta doveículo se fechou atrás de mim, percebique tinha sido sequestrada e que prova-velmente morreria. Diante de meus olhos,passavam as imagens do funeral de Jenni-fer, que, em janeiro, fora violentada e as-sassinada em um carro, quando tentara es-capar. As imagens da apreensão dos paisda menina Carla, que fora violentada eencontrada inconsciente em uma represa,vindo a falecer uma semana mais tarde.Eu já tinha me perguntado como seriamorrer e o que viria depois. Se haveria dorum pouco antes. E se realmente se podiaver uma luz.

Essas imagens se misturavam à confusãode ideias que se passavam em minha ca-beça. Será que isso está realmente acontecendo?Comigo?, perguntava uma voz. Mas que ideiamaluca, sequestrar uma criança! Isso nunca dácerto!, dizia outra. Por que eu? Sou baixa e gor-da e não tenho o perfil típico da vítima de umsequestrador, alegava outra, em seguida. Avoz do sequestrador me trouxe de voltaao presente. Ele me mandou sentar no ba-gageiro e ordenou que eu não me moves-se. Se eu não seguisse suas instruções, tal-vez não continuasse viva. Então ele sen-tou no banco da frente e partiu.Como não havia nenhuma divisória entrea cabine do motorista e o bagageiro, eupodia ver as costas dele. Também podiaouvi-lo, enquanto ele digitava números

freneticamente no telefone do carro. Masele não conseguia falar com ninguém.Enquanto isso, as perguntas martelavamminha cabeça: Ele vai pedir resgate? Quem vaipagar? Para onde está me levando? Que tipo deveículo é este? Que horas são? As janelas da ca-minhonete eram escuras, com exceção deuma faixa estreita na borda superior. Dochão, eu não podia ver para onde estáva-mos indo e não tinha coragem de levan-tar a cabeça para ver através do para-brisa.A viagem me parecia longa e sem destino,e rapidamente perdi a noção de tempo eespaço. Mas a copa das árvores e os pos-tes que de vez em quando passavam pormim davam-me a sensação de que estáva-mos andando em círculos pela vizinhança.

Falar. Você tem que falar com ele. Mas como?Como se fala com um se- questrador? Cri-minosos não merecem respeito, por isso apolidez não me parecia apropriada. Resol-vi tratá-lo por você - o tratamento que eureservava às pessoas próximas.Por mais absurdo que pareça, a primeiracoisa que perguntei foi quanto ele calçava.Eu já observara isso em programas te-levisivos do tipo "casos de polícia". Eutinha que ser capaz de descrever o se-questrador, e cada detalhe era importante.Mas, naturalmente, não obtive resposta.Em vez disso, o homem me disse brusca-mente para ficar quieta, pois assim nada iame acontecer. Até hoje, não sei como ar-rumei coragem para desobedecer às suasordens. Talvez porque eu tivesse certeza

de que morreria de qualquer jeito - de queas coisas não poderiam piorar.

– Você vai me violentar? - pergunteiem seguida.

Dessa vez ele respondeu.– Você é muito nova para isso -disse. - Eu nunca faria isso. Entãotentou telefonar novamente. De-pois de desligar, falou:– Vou levar você para uma florestae entregada para os outros. Entãonão terei mais nada a ver com isso.

Ele repetiu a frase diversas vezes, de mo-do rápido e agitado:

– Eu entrego você e não tenho maisnada a ver com isso. Não nos vere-mos mais.

Se ele queria me assustar, encontrara aspalavras certas - dizer que ia me entregarpara "os outros" me deixou sem ar. E eume retesava de medo. Ele não precisavafalar mais nada, eu sabia o que queria di-zer com isso -quadrilhas de pornografiainfantil eram, havia meses, tema dos no-ticiários. Desde o verão anterior, não ha-via uma semana em que não se falassesobre criminosos que atacavam crianças,violentando-as enquanto as filmavam. Vitudo isso diante de mim em pensamento:grupos de homens que me arrastariam atéum porão e me tocariam, enquanto outrostirariam fotos. Até aquele momento, euestava convencida de que ia simplesmentemorrer. Mas agora essa ameaça me pareciapior.

Não lembro mais quanto tempo durou aviagem, até que paramos. Estávamos emuma floresta de pinheiros igual a tantasoutras nos arredores de Viena. O seques-trador desligou o motor e voltou a telefo-nar. Algo parecia ter saído errado.

– Eles não vêm! Eles não estão aqui! -xingou baixinho.

Parecia assustado e agitado. Mas talvezfosse apenas um truque - talvez ele quises-se que eu me unisse a ele contra "os ou-tros" a quem deveria me entregar e queagora o deixavam esperando. Talvez os ti-vesse inventado para aumentar meu medoe com isso me paralisar.O sequestrador desceu do carro e orde-nou que eu não saísse do lugar. Obedeciem silêncio. Será que Jennifer queria fugir

de dentro do carro? Será que ela tentou?E o que deu errado? Em minha cabeça, sóhavia pensamentos confusos. Se ele nãotivesse trancado a porta, eu poderia tentarabri-la. Mas e depois? Dois passos e ele játeria me alcançado. Eu não conseguia cor-rer muito rápido. Não tinha ideia de ondeestávamos e em que direção deveria cor-rer. E havia "os outros", que deveriam mepegar, e que poderiam estar em qualquerlugar. Imaginei claramente como eles meperseguiriam, me agarrariam e me jogari-am no chão. Então me imaginei como umcadáver na floresta, enterrada entre os pi-nheiros.E pensei em meus pais. Minha mãe che-gando à tarde na escola para me pegar, e aauxiliar dizendo:

– Mas a Natascha não esteve aqui ho-je!

Minha mãe se desesperaria e eu não teriacomo protegê-la. Cortou- me o coraçãopensar que ela iria até a escola e eu não es-taria lá.O que poderia acontecer? Eu saíra de manhã semme despedir, sem beijá-la.Nunca se sabe se vamos nos ver de novo!As palavras do sequestrador me assusta-ram.

– Eles não vêm.Em seguida, ele entrou no carro, ligou omotor e partiu. Dessa vez, reconheci ascumeeiras e os telhados das casas, atra-vés das pequenas faixas das janelas late-rais. Podia ver para onde o carro ia: de

volta para a periferia e então para a estradaprincipal, na direção de Gánserndorf.

– Para onde estamos indo? - per-guntei.– Para Strasshof - disse, com since-ridade, o sequestrador.

À medida que atravessávamos Süs-senbmnn, caí numa tristeza profunda.Passamos pela antiga loja de minha mãe,que ela fechara havia pouco tempo. Ape-nas três semanas antes, ela estava ali, demanhã, sentada na escrivaninha e organi-zando a papelada. Podia vê-la agora e que-ria gritar, mas só consegui emitir um la-mento fraco quando passamos pela maque levava até a casa de minha avó. Ali eupassara os momentos mais felizes de mi-nha infância.

O carro parou em uma garagem. O se-questrador me mandou ficar deitada nobagageiro e desligou o motor. Então des-ceu do carro, segurando um cobertor azul,e jogou-o em cima de mim, me enrolandofirmemente nele. Eu mal podia respirar, eao mèu redor estava tudo escuro. Quandoele me ergueu como um embrulho e metirou do carro, o pânico tomou conta demim. Eu tinha de sair do cobertor, linhade ir ao banheiro.Minha voz soou abafada e estranha de-baixo do cobertor, enquanto eu pedia queele me pusesse no chão e me deixasse irao banheiro. Ele esperou um instante e,em seguida, me desenrolou e me levoupor um corredor até um pequeno banhei-ro de hóspedes. No corredor, pude ver ra-

pidamente os cômodos vizinhos. A mobí-lia parecia antiquada e cara - para mim, is-so era outra evidência de que eu realmentefora vítima de um crime. Nos programaspoliciais da televisão, os criminosos sem-pre tinham casas grandes com mobília ca-ra.O sequestrador parou diante da porta eaguardou. Girei a chave imediatamente esuspirei. Mas o momento de alívio duroupoucos segundos: o banheiro não tinha ja-nela. Eu estava presa. A única saída eraa porta, e eu não podia ficar trancada alieternamente. Seria fácil para ele derrubá-la.Quando saí do banheiro, depois de algumtempo, o sequestrador novamente me co-briu com o cobertor. Escuridão, ar asfixi-

ante. Ele me ergueu, e percebi que desciame carregando por muitos degraus: umporão? Chegando embaixo, me pôs nochão, afastou uma parte do cobertor, mecolocou nos ombros novamente e conti-nuou. Aquilo me pareceu uma eternidade,até que ele novamente me pôs no chão.Então ouvi seus passos se afastando.Prendi a respiração e prestei atenção. Na-da. Não ouvia absolutamente nada. Mes-mo assim, demorou até que eu me atre-vesse a tirar cuidadosamente o cobertor.À minha volta, reinava uma escuridão ab-soluta. O lugar cheirava a pó, e o ar mal-cheiroso era estranhamente quente. Em-baixo de mim, senti o chão frio e nu.Enrolei-me no cobertor e chorei baixi-nho. Minha voz soou tão estranha naquele

silêncio que parei assustada. Quanto tem-po fiquei assim, não sei dizer. No início,tentei contar os segundos e os minutos.

– Vinte e um, vinte e dois - murmu-rava baixinho, medindo os segundos.Com os dedos, tentava contar os mi-nutos. Perdia a conta, mas não podiadeixar isso acontecer agora! Tinha deme concentrar, me lembrar de cadadetalhe! Mas rapidamente perdi a no-ção do tempo. A escuridão e o fedorme davam nojo, e tudo isso descia so-bre mim como um pano preto.

Quando o sequestrador voltou, trouxeuma lâmpada, que atarraxou em um bocalna parede. A luz brilhante, que acendeutão subitamente, me cegou e não trouxenenhum alívio, pois agora eu via onde es-

tava. O cômodo era pequeno e vazio, asparedes eram revestidas de madeira, e umestrado estava preso com ganchos na pa-rede. O chão era de laminado claro. Nocanto, havia um vaso sanitário sem tampae, em uma das paredes, uma bancada comduas pias de aço inoxidável.Era assim que deveria parecer o esconde-rijo de uma quadrilha de bandidos? Umclube de sexo? As paredes de madeira cla-ra me lembravam uma sauna e me desper-taram uma sequência de ideias: sauna noporão - pedófilos - bandidos. Via homensgordos e suados em cima de mim, me vi-olentando naquele cômodo estreito. Paramim, uma sauna no porão era o local aoqual tais pessoas atraíam suas vítimas pa-ra então abusar delas. Mas não havia ne-

nhum aquecedor nem os cestos de madei-ra que normalmente são encontrados emsaunas.O sequestrador me disse para ficar de pé acerta distância dele e não me mover. De-pois, começou a soltar o estrado de ma-deira e a desparafusar da parede os gan-chos aos quais ele estava preso. Enquantoisso, falava com uma voz que as pessoasnormalmente reservam para seus animaisde estimação, tranquilizadora e gentil. Eunão deveria sentir medo, tudo daria certose eu fizesse o que ele mandava. Ele meolhava como um dono observa orgulho-samente seu novo gato, ou pior: comouma criança olha para um brinquedo no-vo, antecipando e, ao mesmo tempo, in-

certa sobre tudo o que pode fazer comele.Depois de algum tempo, meu pânico di-minuiu e criei coragem para falar. Pedique me deixasse sair:

– Não vou contar para ninguém. Sevocê me deixar ir embora agora, nin-guém vai saber. Só vou dizer que fugi.Se você não me mantiver aqui até anoite, nada vai acontecer.

Eu tentava explicar que ele cometera umerro grave, que eles já estavam procuran-do por mim e certamente me encontra-riam. Apelei para seu sentimento de res-ponsabilidade e pedi compaixão. Mas foiem vão. Ele deixou claro que eu passaria anoite no cativeiro.

Se eu imaginasse que aquele cômodo se-ria, ao mesmo tempo, meu refugio e mi-nha prisão por 3.096 noites, não sei comoteria reagido. Quando olho para trás, vejoque o fato de saber que teria de passaraquela primeira noite no porão pôs emmarcha um mecanismo que salvou minhavida _ sendo ao mesmo tempo perigoso.O que parecia impensável era agora umfato: eu estava trancada no porão de umcriminoso e não seria libertada naqueledia. Um tremor percorreu meu mundo ea realidade se deslocou um pouco. Acei-tei o que estava acontecendo e, em vez deme desesperar e lutar contra a nova situa-ção, tentei me adaptar. Quando se é adul-to, se sabe que é preciso abrir mão de umaparte de si mesmo para resistir a circuns-

tâncias que, até ocorrerem, estão comple-tamente fora de cogitação. O mundo noqual se encontra sua personalidade desa-ba. E, no entanto, a única reação corretaé se adaptar para garantir a sobrevivência.As crianças agem de modo mais intuitivo.Eu estava apavorada e não oferecia resis-tência, mas começava a me ajustar à situa-ção - por enquanto, apenas durante aquelanoite.Hoje me parece desconcertante como opânico deu lugar a certo pragmatismo. Ecomo percebi rapidamente que minhassúplicas não teriam sentido e que cada pa-lavra a mais seria em vão para aquele es-tranho homem. Eu sentia instintivamen-te que teria de aceitar a situação para so-breviver àquela interminável noite no po-

rão. Quando o sequestrador desatarraxouo estrado da parede, me perguntou se euprecisava de alguma coisa. Uma situaçãoabsurda, pois era como se eu fosse passara noite em um hotel e tivesse esquecidomeus artigos de higiene pessoal.

– Uma escova de cabelo, pasta e esco-va de dentes e um porta- escovas. Umpote de iogurte vazio serve.

Eu começava a raciocinar.Ele me explicou que precisaria viajar atéViena para me trazer um colchão de suacasa lá.

– Esta não é sua casa? - perguntei,mas ele não respondeu.– Por que você não pode me deixarna casa de Viena?

Ele disse que seria muito perigoso: pare-des finas, vizinhança intrometida, eu po-deria gritar. Prometi que ficaria quieta seele me levasse para Viena. Mas não adian-tou.No momento em que ele saiu do cômodoe fechou a porta, minha estratégia de so-brevivência começou a desmoronar. Eufaria qualquer coisa para que ele ficasse oume levasse com ele; qualquer coisa paranão ficar sozinha.Eu me encolhi no chão, meus braços epernas estavam estranhamente dormen-tes, e minha língua parecia grudada no céuda boca. Minhas ideias giravam em tornoda escola, à medida que eu buscava umaestrutura temporal sobre a qual me apoi-ar, pois havia muito eu a perdera. O que

estariam ensinando? Será que já acabara ointervalo da hora do almoço? Quando elesperceberam que eu não estava lá? E quan-do perceberiam que eu não chegaria? Seráque vão avisar meus pais? Como eles vãoreagir?Pensar em meus pais me trouxe lágrimasaos olhos. Mas eu não podia chorar. Tinhade ser forte e manter o controle. Um índionão conhece dor e, além disso, amanhã tu-do seria passado. E tudo voltaria ao nor-mal. Meus pais já teriam se recuperado dochoque de quase ter me perdido, me pe-gariam e me tratariam com carinho. Euos via em pensamento, sentados à mesada sala de jantar, me perguntando, orgu-lhosos e admirados, como eu tinha lidadocom tudo aquilo. Eu imaginava o primeiro

dia na volta à escola. Será que zombariamde mim? Ou me festejariam como um mi-lagre porque eu fora libertada, enquantooutras que haviam passado pelas mesmascoisas terminaram como um cadáver narepresa ou em uma floresta? Eu imaginavacomo seria triunfal - e também um poucoembaraçoso - quando todos se reunissemao meu redor e fizessem perguntas ines-gotáveis: "Foi a polícia que libertou vo-cê?" Será que a polícia conseguiria me li-bertar? Como eles me encontrariam? "Co-mo você conseguiu fugir?" "Como tevecoragem?" Eu teria coragem de fugir?O pânico crescia novamente dentro demim. Eu não tinha ideia de como sairiadali. Na televisão, o sequestrador era "do-minado". Mas como? Será que eu teria

de matá-lo? Eu sabia que se pode morrercom uma facada no fígado - já havia lidoisso no jornal. Mas onde ficava o fígado?Será que eu encontraria o local cer-to?*Com o que eu poderia apunhalá-lo?Eu seria capaz disso? De matar um ho-mem - eu, uma garotinha? Comecei a pen-sar em Deus. Será que era permitido a al-guém em minha situação matar, se nãohouvesse outra escolha? Não matarás. Ten-tava me lembrar se, nas aulas de religião,havíamos conversado sobre esse manda-mento - e se havia exceções na Bíblia. Masnão me lembrei de nenhuma.Um barulho seco me tirou de meus pen-samentos. O sequestrador havia voltado.Trouxe um colchão estreito com mais oumenos oito centímetros de espessura, que

estendeu no chão. Parecia ser do exércitoou de uma espreguiçadeira. Quando mesentei nele, o ar saiu do tecido fino e aca-bei me deitando no chão duro embaixo demim. O sequestrador trouxe tudo o queeu pedira. Até biscoitos. Biscoitos aman-teigados com uma grossa camada de cho-colate. Meus biscoitos preferidos, que eunão podia mais comer porque estava gor-da. Associei-os a uma saudade incontrolá-vel e a uma sequência de momentos humi-lhantes, como o olhar de alguém que medizia: "Mas você não vai comer isso agora.Você já está bem gordinha". A vergonhaquando todas as outras crianças pegavamo biscoito, enquanto um adulto seguravaminha mão. E o prazer quando o choco-late derretia lentamente na boca.

Quando o sequestrador abriu o saco debiscoitos, minhas mãos começaram a tre-mer. Eu queria comê-los, mas minha bocaestava completamente seca de medo enervoso. Eu sabia que não conseguiriaengoli-los. Ele segurou o pacote debaixodo meu nariz até eu retirar um, que que-brei em pedaços pequenos. Com isso, al-guns pedaços de chocolate se partiram, eeu os coloquei na boca. Mas não podia co-mer mais nada.Depois de um tempo, o sequestrador seafastou e caminhou até minha mochila,que estava em um canto no chão. Quandoa pegou e se preparou para sair, pedi quedeixasse a bolsa - a ideia de ficar sem mi-nhas únicas coisas pessoais naquele ambi-ente perturbador me fez perder o chão.

Ele me encarou com uma expressão des-concertante e falou:

– Você pode ter escondido um trans-missor aí dentro e querer pedir ajuda.Está tentando me enganar, fingindoser inocente! Você é muito mais es-perta do que aparenta!

Sua mudança súbita de humor me assus-tou. Será que eu tinha feito algo errado?E por que eu teria um transmissor em mi-nha mochila, na qual, fora livros e canetas,havia apenas o lanche? Naquele momen-to, eu ainda não sabia nada sobre seu es-tranho comportamento. Hoje sei que es-sa frase fora o primeiro sinal de que o se-questrador era paranóico e psicótico. Naépoca, não havia nenhum transmissor quese pudesse dar às crianças para que elas

pudessem ser localizadas - e mesmo hoje,quando há essa possibilidade, é muito im-provável que se faça isso. Mas, para o se-questrador, era um perigo real que eu, noano de 1998, pudesse esconder em minhabolsa um aparelho de comunicação futu-rista. Tão real que, em sua loucura, ele ti-nha medo que uma criança pequena des-truísse o mundo que existia apenas em suamente.Seu papel naquele mundo mudava rapida-mente: em um instante, ele parecia quererfazer de minha estada forçada em seu po-rão algo tão agradável quanto possível; nomomento seguinte, via em mim - uma ga-rotinha pequena, que não tinha força, ne-nhuma arma e certamente nenhum equi-pamento de rastreamento - um inimigo

que o perseguia. Eu era vítima de um lou-co e me tornara um brinquedo na fantasiadoentia de sua mente. Mas, na época, eunão sabia disso. Eu não sabia nada sobredoenças mentais, compulsões e desordenspsíquicas, que podem criar na mente dapessoa afetada uma nova realidade. Então,eu o tratava como um adulto normal. Co-mo criança, eu não compreendia suas idei-as e motivações.Meus pedidos e súplicas foram em vão:o sequestrador pegou minha mochila edirigiu-se para a porta. Ela abria para olado de dentro e não havia maçaneta, sóum pequeno ressalto, fixado de modo tãofrouxo na madeira que se podia arrancá-lo.

Quando a porta se fechou, comecei a cho-rar. Eu estava sozinha, confinada em umcômodo vazio, em alguma parte abaixo dosolo. Sem minha mochila, sem os sanduí-ches que minha mãe preparara para mimpoucas horas antes. Sem os guardanaposnos quais eles estavam enrolados. Era co-mo se ele tivesse arrancado uma parte demim, como se tivesse cortado minha liga-ção com minha mãe e minha antiga vida.Encolhi-me em um canto sobre o colchãoe chorei baixinho. As paredes revestidasde madeira pareciam aproximar-se, o tetoparecia desmoronar. Minha respiração erarápida e curta; eu sentia falta de ar, en-quanto o medo me oprimia cada vez mais.Era um sentimento terrível.Já pensei mui-to sobre isso, depois de adulta - como pu-

de sobreviver naquele momento. A situa-ção era tão assustadora que podia ter medestruído. Mas a mente humana pode li-dar com as situações mais espantosas - namedida em que ela mesma se engana ese retrai para não naufragar diante de cir-cunstâncias que não podem ser compre-endidas logicamente.Hoje eu sei que, na época, regredi psico-logicamente. O entendimento da meninade 10 anos que eu era regrediu até o ní-vel de uma criança pequena, de 4 ou 5anos. Uma criança que aceitava o mundoao seu redor como algo dado, para quemos pequenos rituais cotidianos da vida in-fantil, e não a compreensão lógica da reali-dade, representavam o ponto de apoio pa-ra perceber a normalidade. Para não des-

moronar. Minha situação era tão diferentede tudo o que se podia prever que regrediinconscientemente para esse estágio - eume sentia pequena, à mercê de outra pes-soa e isenta de qualquer responsabilidade.Aquele homem que me confinara era oúnico adulto presente e a única autorida-de que saberia o que fazer. Eu só tinha defazer o que ele dizia e tudo ficaria bem.Então tudo terminaria como sempre: como ritual noturno, a mão de minha mãe noedredom, o beijo de boa-noite e uma pes-soa amada que deixaria uma lâmpada ace-sa quando saísse silenciosamente do quar-to.Essa regressão intuitiva ao comportamen-to de criança pequena foi a segunda mo-dificação importante naquele primeiro dia

de cativeiro. Era uma tentativa desespera-da de criar uma pequena ilha íntima emuma situação sem esperança. Quando osequestrador voltou ao quarto, pedi queele ficasse comigo, me colocasse na camae me contasse uma história. Eu queria queele me desse um beijo de boa- noite, comominha mãe me dava antes de fechar a por-ta do quarto, em silêncio. Tudo para man-ter a ilusão de normalidade. E ele colabo-rou. Da minha mochila, que deixara emalguma parte do cativeiro, trouxe um livri-nho com contos de fadas e pequenas his-tórias. Então me deitou no colchão, mecobriu com um cobertor fino, se sentouno chão e começou a ler: A princesa e a er-vilha, parte 2. No início, ele sempre gague-java. Timidamente e em voz baixa, conta-

va a história do príncipe e da princesa. Nofim, me deu um beijo na testa. Por um ins-tante, me senti como se estivesse em mi-nha cama macia, em meu quarto seguro.Ele até deixou a luz acesa. Somente quan-do fechou a porta atrás de si, a ilusão pro-tetora se rompeu como uma bolha de sa-bão.Não dormi aquela noite. Rolei nervosa so-bre o colchão fino, vestida com as roupasque não quisera tirar. O vestido, no qualeu parecia tão gorda, era a última coisaque restara de minha vida.

ESPERANDO EM VÃO PELORESGATEAs primeiras semanas no cati-veiro

Autoridades austríacas investigam o desa-parecimento de uma menina de 10 anos,Natascha Kampusch. A menina foi vistapela última vez em 2 de março. O caminhoaté a escola, no qual ela foi vista, é relati-vamente longo. Supostamente, uma meni-

na de casaco vermelho foi atraída parauma caminhonete branca.

Casos de polícia, 27 de março de 1998

Eu OUVIRA o SEQUESTRADOR porum bom tempo antes de ele entrar noquarto no dia seguinte. Na época, eu nãosabia quanto a entrada estava protegida,mas podia afirmar - pelos sons que seaproximavam gradualmente - que ele leva-va muito tempo para abrir meu cativeiro.Eu estava sentada no canto, olhos fixos naporta, quando ele entrou no cômodo decinco metros quadrados. Parecia mais jo-vem do que no dia do sequestro: um ho-mem frágil, de traços joviais e o cabelocastanho cuidadosamente repartido, co-mo um aluno-modelo de um ginásio do

subúrbio. O rosto era delicado e, à pri-meira vista, não transparecia maldade. So-mente quando se observava mais detida-mente é que se podiam perceber traçosde loucura escondidos por trás da aparên-cia convencional e burguesa. Uma facha-da que só mais tarde mostraria as primei-ras rachaduras. Inundei-o de perguntas:

– Quando você vai me libertar? Porque está me mantendo aqui? O quevai fazer comigo?

Ele respondia com monossílabos e obser-vava cada um de meus movimentos co-mo se observa um animal enjaulado. Nun-ca me dava as costas, e eu sempre tinha deficar a mais ou menos um metro de dis-tância dele.Tentei ameaçá-lo:

– Se você não me deixar ir emboraimediatamente, vai se dar mal! Os po-liciais estão me procurando há muitotempo. Eles vão me achar e logo esta-rão aqui! E aí você vai para a cadeia!Você não quer isso, ou quer? Deixe-me ir e tudo ficará bem. Por favor, medeixe ir embora.

Ele prometeu que me soltaria em breve.E, como se tivesse respondido a todasas minhas perguntas, virou-se, arrancou amaçaneta da porta e trancou-a pelo ladode fora.Desesperada, eu tentava ouvir algo, na es-perança de que ele voltasse. Nada. Eu es-tava completamente isolada do mundoexterior. Nenhum som podia entrar, ne-nhuma luz penetrava através das ranhuras

nas tábuas da parede. O ar era fedorentoe me cobria como uma membrana úmida,da qual não conseguia me livrar. O únicoruído que me acompanhava era o barulhodo ventilador, que soprava ar do sótãoatravés de um tubo no teto, que passavapela garagem até o cativeiro. O barulhoera uma verdadeira tortura: dia e noite, zu-nia pelo cômodo microscópico até se tor-nar irreal e estridente, enquanto eu, deses-perada, apertava as mãos contra os ouvi-dos para não escutá-lo. Quando o ventila-dor esquentava, começava a feder e as pásentortavam. O barulho de algo arranhan-do se tornava mais lento e um novo somsurgia: toe, toe, toe. E novamente o ba-rulho de algo arranhando. Havia dias emque esse barulho torturante preenchia não

só cada canto do cômodo, mas tambémcada canto da minha mente.Nos primeiros dias de cativeiro, o seques-trador deixava a luz acesa o dia inteiro. Eutinha pedido isso a ele porque tinha medoda solidão no escuro total em que o quar-to mergulhava quando ele desatarraxavaa lâmpada. Mas a claridade constante eratão mim quanto isso. Fazia mal aos meusolhos, e me forçava a um estado de vigíliaartificial, do qual não conseguia mais sair- mesmo quando eu cobria a cabeça como cobertor para diminuir a claridade, meusono era agitado e superficial. O medo e aluz forte não me permitiam mais que umleve cochilo, do qual eu sempre acordavacom a sensação de dia claro. Mas, na luzartificial do porão hermeticamente fecha-

do, não havia mais distinção entre dia enoite.Hoje eu sei que deixar os prisioneiroscontinuamente sob luz artificial é um mé-todo de tortura bastante comum - e emmuitos países ainda é adotado. As plantasmurcham com a exposição excessiva econstante à luz, e os animais morrem. Pa-ra os seres humanos, é uma tortura maispérfida e eficaz do que a violência física- o biorritmo e o padrão de sono ficamtão confusos que o corpo reage como seestivesse paralisado por um profundo es-gotamento, e o cérebro, depois de poucosdias, já não funciona direito. Igualmentecruel e eficaz é a tortura pelo barulho per-manente, que não se pode evitar. Como odo ventilador que arranhava e zunia.

Eu me sentia como se estivesse sendomantida viva em uma caixa- forte subter-rânea. Meu cativeiro não era quadrado -tinha cerca de dois metros e setenta decomprimento, um metro e oitenta de lar-gura e quase dois metros e quarenta de al-tura. Onze e meio metros cúbicos de armalcheiroso. Não chegava a cinco metrosquadrados, e era nesse espaço que eu an-dava como um tigre enjaulado, sempre deuma parede a outra. Seis passos pequenospara frente e seis passos para trás corres-pondiam ao comprimento. A largura po-dia ser percorrida em quatro passos parafrente e quatro para trás. Com vinte pas-sos, eu dava a volta no cativeiro. Andar di-minuía ligeiramente o pânico. Assim queeu parava e o barulho de meus pés sobre

o chão cessava, ele aumentava novamen-te. Eu me sentia mal e tinha medo de en-louquecer. O que poderia acontecer? Vinte eum, vinte e dois... sessenta. Seis para frente, qua-tro para a esquerda. Quatro para a direita, seispara trás.A sensação de desesperança me oprimiacada vez mais. Ao mesmo tempo, eu sabiaque, para não me deixar esmagar pelo me-do, tinha de fazer algo. Então pegava umadas garrafas de água mineral com que osequestrador trazia água da torneira paramim e batia com toda a força no revesti-mento da parede. Primeiro de modo rít-mico, depois com energia, até os braçosficarem dormentes. No fim, não erammais do que pancadas desesperadas mis-

turadas a um pedido de ajuda. Até que agarrafa caísse de minha mão.Ninguém vinha, ninguém me ouvia, talveznem mesmo o sequestrador. Eu me dei-xava cair esgotada no colchão e me enro-lava como um animal pequeno. Meus gri-tos se transformavam em soluços. O cho-ro resolvia por pouco tempo meu deses-pero, e então eu me acalmava. Aquilo mefazia lembrar de minha infância, quandoeu chorava sem motivo e rapidamente es-quecia o porquê.Na véspera, minha mãe notificara a polí-cia. Como não apareci na hora esperadaem casa, ela foi primeiro à escola. Nin-guém tinha uma explicação para meu de-saparecimento. No dia seguinte, a políciainiciou as buscas. Lendo os jornais anti-

gos, soube que uma centena de policiaisvasculhou a área ao redor da escola públi-ca e do conjunto habitacional com a aju-da de cães. Não havia pistas que pudes-sem delimitar o raio das buscas. Quintais,becos e passeios públicos foram exami-nados, assim como as margens do Danú-bio. Helicópteros sobrevoaram a área, eem todas as escolas foram afixados carta-zes. A toda hora chegavam informaçõesde pessoas que teriam me visto em diver-sos locais. Mas nenhuma delas os levouaté mim.Nos primeiros dias do sequestro, ficavatentando imaginar o que minha mãe esta-ria fazendo. Como ela estaria me procu-rando e como sua esperança diminuía acada dia. Eu sentia tanta falta dela que o

sentimento de perda ameaçava me corroerpor dentro. Eu daria tudo para tê-la pertode mim, com sua energia e sua força.Depois do que aconteceu, fiquei impres-sionada com o peso que os meios de co-municação atribuíram à briga com minhamãe na interpretação do caso. Como sesair sem me despedir fosse um indício darelação com ela. Mesmo que eu tenha mesentido rejeitada e ignorada, especialmen-te durante a separação de meus pais, deve-ria estar claro para qualquer um que umacriança em situação extrema chora quaseque automaticamente pela mãe. Sem mãenem pai, eu estava desprotegida, e saberque eles não tinham notícias minhas medeixava muito triste. Havia dias em que apreocupação com meus pais me oprimia

mais que o próprio medo. Eu passava ho-ras pensando em como poderia ao menoslhes dizer que estava viva. Assim, eles nãoficariam tão desesperados nem desistiriamdas buscas.Nos primeiros tempos no cativeiro, eu es-perava a cada dia, a cada hora, que a portase abrisse e alguém me resgatasse. A espe-rança de que uma pessoa não poderia sim-plesmente me fazer desaparecer me aju-dava a suportar as intermináveis horas noporão. Mas, dia após dia, ninguém apare-cia. Exceto o sequestrador.Depois do que ocorreu, parece evidenteque ele planejara o sequestro durante mui-to tempo - por que ele teria construído,durante anos, um quarto que só podia seraberto pelo lado de fora, grande o sufici-

ente para uma pessoa viver ali? O seques-trador, porém - e eu testemunhei isso cadavez mais nos anos de cativeiro -, era umhomem paranoico e angustiado, conven-cido de que o mundo era mau e de queas pessoas o perseguiam. Talvez ele tives-se construído o cativeiro como um bun-ker, esperando por uma explosão atômi-ca, pela Terceira Guerra Mundial, ou ain-da como refúgio contra aqueles que su-postamente o perseguiam.Ninguém pode afirmar qual a respostacorreta a essa pergunta. Mesmo as decla-rações de seu antigo colega de trabalho,Ernst Holzapfel, permitem as duas inter-pretações. Em seu depoimento à polícia,mais tarde, ele declarou que o sequestra-dor tinha lhe perguntado como isolar

acusticamente um cômodo, de modo quenem uma furadeira fosse ouvida no res-tante da casa.Para mim, o sequestrador não se com-portava como uma pessoa que planejavahavia muito tempo o sequestro de umacriança e cujo desejo fora finalmente re-alizado. Ao contrário, ele agia como al-guém com quem um conhecido distanteabandonara uma criança indesejada e queagora não sabia o que fazer com aquelapequena criatura, que tinha necessidadescom as quais ele não sabia lidar. Durantemeus primeiros dias no cativeiro, ele metratava como se eu fosse uma criança pe-quena. Até certo ponto era cômodo, por-que eu já regredira psicologicamente parao estado emocional de uma criança de jar-

dim de infância. Ele me trazia tudo o queeu quisesse comer - e eu me comportavacomo se estivesse passando a noite comuma tia-avó distante, que podia ser genui-namente convencida de que chocolate éum café da manhã adequado. Assim, naprimeira manhã, ele me perguntou o queeu queria comer. Pedi chá de frutas e crois-sants. Ele voltou depois de algum tempocom uma garrafa térmica cheia de chá derosas e um brioche da padaria mais fa-mosa do local. A marca no saco de papelconfirmou minha suspeita de que eu meencontrava em alguma parte de Strasshof.Outra vez, pedi palitos salgados com mos-tarda e mel. Essas "ordens" eram pron-tamente atendidas. Parecia muito esquisi-to que aquele homem satisfizesse todos os

meus desejos, já que tirara todo o restode mim. Sua tendência de me tratar comouma criança pequena tinha, porém, um as-pecto negativo. Ele descascava a laranja ea colocava, gomo a gomo, em minha bo-ca, como se eu não fosse capaz de comê-la sozinha. Quando pedi chiclete, ele ne-gou, por medo de que eu pudesse engas-gar. À noite, segurava minha boca aber-ta e escovava meus dentes, como se eufosse uma criança de 3 anos incapaz desegurar a própria escova. Depois de al-guns dias, agarrou rudemente minha mão,apertando-a com força, e cortou minhasunhas.Eu me sentia diminuída, como se ele ti-vesse roubado o pouco de dignidade queainda me restava e que eu tentava manter

naquelas circunstâncias. Ao mesmo tem-po, sabia que, em grande parte, eu mesmaera responsável por me encontrar naqueleestado, que até certo ponto me protegia.Porque, desde o primeiro dia, eu percebe-ra que o sequestrador oscilava em sua pa-ranóia, me tratando ora como criança pe-quena, ora como muito independente.Eu me resignava a desempenhar meu pa-pel. Quando o sequestrador voltava ao ca-tiveiro para me trazer comida, eu fazia detudo para ele ficar. Pedia, implorava, cha-mava a atenção dele para que ficasse ebrincasse comigo. Ficar sozinha ali estavame deixando louca. Depois de alguns di-as, eu estava sentada com ele no cativei-ro jogando xadrez chinês, trilha e ludo. Ascircunstâncias me pareciam irreais, como

em um filme absurdo: ninguém no mun-do exterior acreditaria que uma vítima desequestro pudesse se sentar com seu se-questrador para jogar ludo. Mas o mundoexterior não era mais meu mundo. Eu erauma criança e estava só. E havia apenasuma pessoa que podia me tirar da solidãoopressiva - a mesma que criara aquela so-lidão para mim.Eu me sentava com o sequestrador nocolchão, jogava os dados e movia as pe-ças. Olhava o* desenhos no tabuleiro, aspequenas figuras coloridas, e tentava es-quecer o cômodo à minha volta, imagi-nando o sequestrador como um amigo pa-ternal, que passava o tempo brincando ge-nerosamente com uma criança. Quantomais conseguia me deixar absorver pelo

jogo, mais o pânico diminuía. Mas eu sa-bia que ele estava em algum canto, sempreà espreita. E, quando eu estava perto deganhar uma rodada, discretamente come-tia um erro para adiar a ameaça de solidão.Nesses primeiros dias, a presença do se-questrador parecia uma garantia de que euseria poupada daquilo que mais temia. Emtodas as visitas, ele falava de seus supos-tos clientes, que tinham me "adquirido" ea quem ele telefonara de modo muito agi-tado durante o sequestro. Eu supunha -como antes - que se tratava de uma qua-drilha de pornografia infantil. Ele mesmomurmurava algo sobre pessoas que viri-am me fotografar e sobre "o que fariamcomigo", o que confirmava minhas sus-peitas. Às vezes me passava pela cabeça

que as histórias que ele contava eram con-traditórias e que esses clientes ameaçado-res provavelmente não existiam. Aparen-temente ele inventara as pessoas por trásdo sequestro para me intimidar. Porém eunão podia ter certeza e, mesmo que fos-sem inventadas, elas cumpriam sua fina-lidade: eu vivia em permanente medo deque, a qualquer momento, uma horda dehomens maus invadisse meu cativeiro eme atacasse.As imagens e os fragmentos de históriasque eu vira nos meios de comunicação cri-avam cenários cada vez mais apavorantes.Eu tentava apagá-los da mente - e imagi-nava, ao mesmo tempo, o que os seques-tradores fariam comigo, como costuma-vam agir com uma criança, que objetos

usariam, se fariam ali mesmo, no cativei-ro, ou me levariam a uma casa de campo,sauna ou sótão, como ocorrera no últimocaso veiculado na mídia.Quando eu estava só, tentava manter osolhos na porta. À noite, dormia como umanimal enjaulado, fechando apenas umolho, em alerta constante. Não queria sersurpreendida indefesa pelos homens quesupostamente viriam me pegar. Vivia ten-sa a cada segundo, com cada vez maisadrenalina, impelida pelo medo de nãopoder fugir daquele pequeno cômodo. Omedo dos supostos "verdadeiros seques-tradores" permitia àquele homem, quefingia ter me sequestrado a pedido deles,me oferecer carinho e um apoio amigável.

Contanto que eu estivesse com ele, meumaior temor não se tornaria realidade.Nos dias que se seguiram ao sequestro, ocativeiro começou a ficar cheio de todotipo de coisas. Primeiro, o sequestradortrouxe roupas novas. Eu só tinha o queestava vestindo: calcinha, meia-calça, ves-tido e o casaco. Ele havia queimado meussapatos para destruir possíveis vestígios.Eram sapatos com sola de plataformagrossa que eu havia ganhado no dia emque completara 10 anos.Quando cheguei aquele dia à cozinha, en-contrei sobre a mesa um bolo com dez ve-las e, ao lado, uma caixa embrulhada empapel brilhante e colorido. Tomei fôlego esoprei as velas. Então tirei a fita adesiva erasguei o papel. Durante semanas, insisti-

ra para que minha mãe comprasse os taissapatos que todas as outras meninas es-tavam usando. Ela se recusara categorica-mente, dizendo que eles não eram adequa-dos para crianças e que não se podia an-dar direito com eles. E agora estavam naminha frente -sapatilhas de camurça pre-ta com uma tira estreita sobre o peito dopé e, embaixo, uma plataforma de bor-racha grossa. Eu estava tão feliz! Os sa-patos, que me deixavam três centímetrosmais alta, certamente facilitariam o acessoà minha nova vida com mais autoconfian-ça.O último presente de minha mãe. E eleos queimou. Assim, tirou de mim não sóoutra ligação com minha antiga vida, mas

também um símbolo da força que eu es-perava dos sapatos.O sequestrador me deu um pulôver velhoe uma camiseta de malha verde-oliva, queaparentemente guardara da época do exér-cito. À noite, isso diminuía o frio que vi-nha do lado de fora. Mas, para me pro-teger, eu continuava vestindo uma de mi-nhas próprias roupas. Depois de duas se-manas, ele me trouxe uma espreguiçadeirapara substituir o fino colchão de espuma.A parte de cima era suspensa por molasde metal, que rangiam baixinho ao menormovimento. Nos seis meses seguintes, es-se barulho foi meu companheiro duranteos longos dias e noites no cativeiro. Comoeu sentia muito frio - não passava de quin-ze graus no quarto o ano todo -, o seques-

trador trouxe um aquecedor elétrico gran-de e pesado para o pequeno cômodo. Etrouxe de volta meu material escolar. Masa bolsa - assim me disse -, ele havia quei-mado com os sapatos.Minha primeira ideia foi enviar um recadoaos meus pais. Peguei papel e lápis e co-mecei a escrever uma carta para eles. Pas-sei muitas horas pesando cuidadosamentecada palavra - e até encontrei uma possi-bilidade de lhes dizer onde estava. Eu sa-bia que estava em alguma parte de Stras-shof, onde moravam os sogros de minhairmã. E esperava que a menção à famíliadela bastasse para colocados - e também apolícia - na pista certa.Para provar que fora eu mesma quem es-crevera a carta, acrescentei uma foto que

estava guardada em meu estojo, tirada noinverno do ano anterior, na qual eu pati-nava no gelo, embrulhada em um maca-cão grosso e sorrindo com as bochechasvermelhas. Era como o retrato de ummundo muito distante, com crianças rin-do alto, música pop saindo de alto-falantesque tremiam e muito ar fresco e gelado.Um mundo no qual, depois de uma tardeno gelo, eu iria para casa, tomaria um ba-nho e veria televisão bebendo chocolatequente. Olhei a foto durante alguns minu-tos, memorizando cada detalhe para nun-ca esquecer o sentimento que associavaàquele passeio. Eu sabia que tinha de con-servar cada lembrança feliz para poder re-correr a elas em momentos difíceis. En-

tão, juntei a foto à carta e fiz um envelopecom outra folha de papel.Com um misto de ingenuidade e confian-ça, esperei pelo sequestrador. Quando eleveio, fiz um esforço para ser calma e ami-gável.

– Você tem que enviar essa carta parameus pais saberem que estou viva! Eleabriu o envelope, leu o que estava es-crito e disse que não. Pedi e

implorei, dizendo que meus pais não po-diam ficar na incerteza. E recorri à consci-ência que imaginava que ele tinha:

– Você não pode ser uma pessoa tãomá assim - disse. - O que você fez foimim, mas deixar meus pais sofreremé muito pior.

Eu tentava encontrar novas razões paraenviar a carta e assegurava a ele que nadaaconteceria por causa dela. Ele mesmo alera e sabia que eu não o tinha denuncia-do... O sequestrador disse "não" por umlongo tempo - e então, subitamente, mu-dou de ideia e me garantiu que a enviariaa meus pais pelo correio.Aquilo era de uma enorme ingenuidade,mas eu queria tanto acreditar nele. Deitei-me na espreguiçadeira e imaginei comomeus pais abririam a carta, encontrariamas pistas escondidas e me libertariam. Pa-ciência, eu tinha que ter paciência, e logoaquele pesadelo acabaria.No dia seguinte, minha fantasia ruiu comoum castelo de cartas. O sequestrador apa-receu no cativeiro com o dedo machuca-

do e disse que "alguém" havia lhe arran-cado a carta em uma briga e que fora fe-rido ao tentar recuperá-la. Deixou esca-par que foram os mandantes do seques-tro, que não queriam que eu tivesse conta-to com meus pais. Com isso, os vilões fic-tícios da quadrilha de pornografia adquiri-am uma realidade ameaçadora. E, ao mes-mo tempo, o sequestrador passava para aposição de protetor - afinal de contas, ten-tara cumprir meu pedido e fora ferido.Hoje sei que ele nunca teve a intenção deenviar a carta e deve tê-la queimado, co-mo as outras coisas que tirou de mim. Naépoca, eu queria acreditar nele.Nas primeiras semanas, o sequestradorfez de tudo para não prejudicar a imagemde meu suposto protetor. Realizou até

meu maior desejo: um computador. Eraum Commodore C64 antigo, com poucacapacidade de memória, mas alguns dis-quetes de jogos com os quais eu podia medistrair. Meu jogo preferido era "de co-mer": o jogador tinha de mover um ho-menzinho através de um labirinto subter-râneo para fugir dos monstros e comeros pontos - uma versão um pouco maissofisticada do Pacman. Eu passava horasjuntando pontos. Quando o sequestradorestava no cativeiro, de vez em quando jo-gávamos em uma tela dividida. Frequen-temente ele me deixava - a criança peque-na - ganhar. Hoje vejo a analogia com mi-nha própria situação no porão: a qualquermomento, monstros poderiam invadi-lo eeu teria de fugir deles. Meus pontos eram

prêmios, como aquele computador, "con-quistados" por um comportamento "irre-preensível".Quando me cansei do jogo, ele trocou pa-ra o Space Pilot, em que o jogador tinhade voar pelo universo e atirar em navesalienígenas. O terceiro jogo no C64 erade estratégia, chamado Kaiser, no qual eranecessário invadir e dominar as naçõespara se tornar imperador.Era o jogo preferido do sequestrador. En-tusiasmado, ele enviava suas tropas para aguerra e as deixava morrer de fome ou re-alizar trabalhos forçados, desde que issoservisse para aumentar seu poder e suaslegiões não fossem dizimadas.

Isso tudo acontecia em um mundo virtual.Mas não demoraria muito até ele me mos-trar sua outra face.

– Se não fizer o que eu mandar, tiroa luz de você. _ Se não for boazinha,vou ter que prendê-la.

Nessas circunstâncias, só me restava ser"boazinha", sem saber o que ele queria di-zer. Às vezes, bastava eu fazer um movi-mento brusco para ele mudar de humor.Ou olhar para ele, apesar da ordem demanter os olhos fixos no chão. Tudo oque não correspondia aos padrões que eleestabelecera para meu comportamento es-timulava sua paranoia. Então ele me re-preendia e me acusava repetidamente dequerer enganá-lo e iludi-lo. Provavelmen-te o que estimulava seus delírios verbais

era a incerteza quanto à possibilidade deeu me comunicar com o mundo exterior.Ele não gostava quando eu insistia que eleera injusto comigo. E queria ouvir aplau-sos quando trazia algo para mim, elogiospelo esforço que fizera por minha causa- como arrastar o pesado aquecedor até ocativeiro. Na época, ele começou a exigirdemonstrações de gratidão. E eu as recu-sava tanto quanto podia:

– Só estou aqui porque você me pren-deu.

Em segredo, naturalmente eu não podiafazer outra coisa senão me alegrar quandoele trazia comida ou algo de que eu preci-sava desesperadamente.Hoje que sou adulta, acho impressionanteo fato de que meu medo, meu pânico re-

corrente, não era dirigido à pessoa do se-questrador. Isso podia ser uma reação àsua aparência indefinível, à sua inseguran-ça, ou uma estratégia dele para que eu mesentisse segura naquela situação intolerá-vel - e assim o visse como uma figura in-dispensável. O que era assustador naque-las circunstâncias era o cativeiro no sub-solo, as paredes e portas fechadas e os su-postos mandantes do sequestro. O pró-prio sequestrador agia, muitas vezes, co-mo se seu crime fosse apenas uma atitudeassumida por ele, mas que não coincidiacom sua personalidade. Em minha imagi-nação infantil, ele decidira ser um crimi-noso e cometera uma má ação. Eu nãoduvidava de que suas ações eram um cri-me que precisava ser punido, mas eu as

distinguia da pessoa que as cometera. Ovilão era apenas um papel que ele desem-penhava.

– A partir de agora, você vai prepararsua comida.

Em uma manhã durante a primeira sema-na, o sequestrador apareceu no cativeirocom uma caixa de compensado escuro.Ele a encostou na parede, pôs uma cha-pa elétrica e um pequeno forno em cimae ligou os dois na eletricidade. Em segui-da, desapareceu novamente. Quando vol-tou, trazia nos braços uma panela de açoinoxidável e uma pilha de refeições pron-tas: latas de feijão egoulash e uma seleção derefeições instantâneas em pequenos potesde plástico branco embalados em papelãocolorido, que se aqueciam em banho-ma-

ria. Então me explicou como funcionavaa chapa elétrica.Eu estava feliz por recuperar uma parte deminha independência. Mas, quando des-pejei a primeira lata na pequena panela e acoloquei na chapa, não sabia até que tem-peratura ela tinha de esquentar nem quan-to tempo levaria até a comida ficar pron-ta. Nunca cozinhara e me sentia sozinha esobrecarregada. Sentia saudade de minhamãe.Olhando para trás, me admira que ele dei-xasse uma criança de 10 anos cozinhar,sobretudo porque normalmente era muitocauteloso, vendo em mim apenas uma cri-ança pequena e indefesa. Mas, daquelemomento em diante, eu aqueceria uma re-feição por dia na chapa elétrica. O seques-

trador vinha todas as manhãs e mais umavez à tarde ou à noite. Todas as manhãs,trazia uma xícara de chá ou de chocolatequente, uma fatia de bolo ou uma tigela decereal. À tarde ou à noite - dependendo dequando ele tinha tempo -, trazia salada detomate, um sanduíche ou um prato quen-te, que dividia comigo. Macarrão com car-ne e molho, arroz com carne, comida ca-seira austríaca, que sua mãe preparava. Naépoca, eu não tinha ideia de onde vinhaa comida e de como ele vivia. Se a famí-lia era cúmplice e se sentava confortavel-mente com ele na sala de estar, enquantoeu deitava no colchão fino no porão. Ouainda se os mandantes do sequestro tam-bém viviam na casa e ele só era enviadopara baixo para me alimentar. Na verdade,

ele cuidava para que eu comesse de modosaudável e me trazia regularmente laticíni-os e frutas.Um dia ele me trouxe dois limões partidosem quatro pedaços, que me deram umaideia. Era um plano infantil e ingênuo -mas, na ocasião, me pareceu genial: euqueria fingir uma doença que obrigasse osequestrador a me levar até um médico.Sempre ouvira minha avó e as amigas delacontarem histórias da época da ocupaçãorussa na Áustria Oriental, sobre como asmulheres evitavam estupros e raptos, quena época eram comuns. Um dos truquesera aplicar geleia vermelha na face paraparecer uma terrível doença de pele. Ou-tro envolvia limões.

Assim que fiquei sozinha, descasquei cui-dadosamente a pele fina do limão. Entãoa colei no meu braço com creme. Pareciarepulsivo, como se eu realmente tivesseuma inflamação purulenta. Quando o se-questrador voltou, mostrei o braço e fingiuma grande dor. Chorei e pedi que me le-vasse ao médico. Ele me olhou fixamen-te, então limpou com um só gesto a peledo limão que estava no meu braço. Nessedia, me deixou sem luz. Deitei no escuro eatormentei minha mente com outras pos-sibilidades para obrigá-lo a me libertar.Não consegui pensar em nenhuma.Naqueles dias, minha única esperança eraa polícia. Naquele momento, eu aindaacreditava firmemente em minha liberta-ção e esperava que o resgate ocorresse an-

tes que ele me entregasse aos mandan-tes ameaçadores - ou encontrasse mais al-guém que soubesse o que fazer com umamenina seqüestrada. Esperava pelo dia emque homens de uniforme derrubariam aparede do cativeiro. Na verdade, no mun-do exterior, a busca em larga escala foracancelada na quinta-feira - apenas três diasdepois do sequestro. A procura pelas re-dondezas não teve sucesso, e agora a polí-cia interrogava as pessoas de meu círculofamiliar. Nos meios de comunicação, ain-da apareciam diariamente chamadas comminha foto e a mesma descrição de sem-pre:Menina de cerca de 1,45 metro de altura,45 quilos e estrutura larga. Cabeloscastanho-claros, lisos, com franja, e olhos

azuis. Na ocasião de seu desaparecimento,a menina de 10 anos vestia um casaco deesqui vermelho com capuz, um vestido je-ans azul com pala, mangas xadrez cinzae branco, meia-calça azul--clara e sapatosde camurça pretos tamanho 34. NataschaKampusch usava óculos de armação azul-clara oval de plástico com a ponte amare-la. De acordo com a polícia, é levementeestrábica. A criança carregava uma mochi-la azul e amarela com tiras turquesa.Lendo o registro policial, soube que, de-pois de quatro dias, cento e trinta pistasjá haviam sido recebidas. As pessoas dizi-am ter me visto com minha mãe em umsupermercado em Viena, sozinha em umaparada na estrada, uma vez em Weis e trêsvezes no Tirol. Durante três dias, a polí-

cia procurou por mim em Kitzbühel. Umaequipe de oficiais austríacos viajou até aHungria, onde alguém teria me descober-to em Sopron. A pequena aldeia na qualeu passara o fim de semana anterior commeu pai foi sistematicamente vasculhadapelos policiais húngaros, e montou-se umesquema de vigilância dos arredores e dacasa de meu pai - supunha-se que eu pu-desse ter fugido para lá. Um homem ligoupara a polícia e exigiu um resgate de ummilhão de xelins por mim. Era um apro-veitador, um impostor - como tantos ou-tros que ainda apareceriam.Seis dias depois do sequestro, o responsá-vel pelas investigações informou aos mei-os de comunicação: "Na Áustria e naHungria, oficiais uniformizados procuram

por Natascha com cartazes de busca. Ain-da não desistimos. Entretanto, não acre-ditamos que veremos a criança com vidanovamente". Nenhuma das inúmeras pis-tas forneceu dicas quentes.E a polícia não investigou a única pistaque poderia ter levado até mim: na terça-feira, um dia após o sequestro, uma meni-na de 12 anos relatou que uma criança fo-ra arrastada para dentro de uma caminho-nete branca com vidros escuros na Melan-gasse. Mas a princípio a polícia não levoua sério essa informação.Em meu cativeiro, eu não imaginava quejá se começava a falar, do lado de fora,que eu poderia estar morta. Estava con-vencida de que a busca em larga escalaainda acontecia. Quando eu deitava na es-

preguiçadeira e fitava o teto branco rebai-xado com a lâmpada nua, imaginava quea polícia estaria falando com meus colegasde escola e pensava nas respostas de ca-da um. Via a assistente da escola na mi-nha frente, como ela descreveria quando eonde me vira pela última vez. E imagina-va quem dos muitos vizinhos no conjuntohabitacional de Rennbahn teria me obser-vado ao deixar a casa e se alguém na Me-langasse vira o sequestro e a caminhonetebranca.Cada vez mais tendia a fantasias de queo sequestrador exigiria o resgate e me li-bertaria após o pagamento. Sempre queeu aquecia a comida na chapa elétrica, ras-gava com cuidado as pequenas imagensda embalagem da refeição e as escondia

no bolso do vestido. Eu vira nos filmesque os sequestradores, às vezes, tinham deprovar que as vítimas ainda estavam vivaspara receber o resgate. E, com as imagens,eu poderia provar que me alimentava re-gularmente. E poderia provar a mim mes-ma que ainda estava viva.Por segurança, arranquei um pequeno pe-daço da tinta da bancada em que esquen-tava a comida e também o guardei no ves-tido. Com isso, nada mais podia dar erra-do. Eu imaginava que, após o pagamentodo resgate, o sequestrador me abandona-ria em um local desconhecido e eu ficariasozinha. Meus pais iriam até o local e mepegariam. Avisaríamos a polícia e eu dariaaos oficiais a lasca de tinta. Então a po-lícia só precisaria examinar todas as gara-

gens em Strasshof em busca do cativeirono porão. A bancada lascada seria a prin-cipal evidência.Em minha mente, eu guardava cada de-talhe sobre o sequestrador, de modo quepudesse descrevê-lo após minha liberta-ção. Mas eu dependia muito das aparên-cias, que não revelavam quase nada sobreele. Em suas idas ao cativeiro, costumavavestir uma camiseta e calças esportivas daAdidas - uma roupa prática para ele poderse espremer pelo corredor estreito que le-vava até o cativeiro.Qual a idade dele? Eu o comparava aosadultos de minha família - mais jovemque minha mãe, mas mais velho que mi-nhas irmãs, que na época tinham por volta

de 30 anos. Embora ele parecesse jovem,uma vez comentei:

– Você tem 35 anos.Só muito mais tarde descobri que estavacerta.Também descobri o nome dele - para es-quecer em seguida.

– Veja, esse é meu nome - ele dissecerta vez, nervoso com minhas cons-tantes perguntas, enquanto segurava,por alguns segundos, o cartão de visi-ta diante do meu rosto. - Está escri-to Wolfgang Priklopil. Naturalmente,não é meu nome verdadeiro - acres-centou, rindo.

Eu acreditei. Parecia impossível que umbandido perigoso tivesse um nome tãocomum quanto Wolfgang. Não pude ler o

sobrenome tão rápido - era algo complica-do e difícil para uma criança nervosa lem-brar.

– Talvez eu me chame Holzapfel{1} -acrescentou ele, antes de fechar a por-ta atrás de si.

Na época, eu não tinha ideia do que signi-ficava esse nome. Hoje sei que Ernst Hol-zapfel era algo como o melhor amigo deWolfgang Priklopil.Quanto mais próximo chegávamos de 25de março, mais nervosa eu ficava. Desdeo dia do sequestro, perguntava diariamen-te a Priklopil a data e a hora para não ficarcompletamente desorientada. Para mim,não havia dia ou noite e, embora já fosseprimavera no lado de fora, no cativeirocontinuava fazendo um frio congelante

quando o aquecedor era desligado. Umamanhã, ele respondeu:

– Segunda-feira, 23 de março.Fazia três semanas que eu não tinha o me-nor contato com o mundo exterior. E emdois dias seria o aniversário da minha mãe.A data tinha para mim uma grande forçasimbólica - se eu tivesse de vê-la passarsem poder parabenizar minha mãe, o ca-tiveiro deixaria de ser um pesadelo pas-sageiro para se tornar algo inegavelmentereal. Até então, eu apenas perdera algunsdias de aula. Mas não estar em casa no diade uma comemoração familiar importan-te constituía um marco significativo. "Es-se foi o aniversário em que Natascha nãoestava aqui", ouvia minha mãe contar aos

netos. Ou pior: "Foi o primeiro aniversá-rio em que Natascha não esteve aqui".Eu me afligia profundamente pelo fato deter saído brigada com minha mãe, e agora,no dia de seu aniversário, não poder dizera ela que falara aquelas coisas da boca pa-ra fora e que a amava. Na minha cabeça,eu tentava parar o tempo e imaginava, de-sesperadamente, como poderia lhe enviarnotícias. Talvez dessa vez funcionasse, di-ferentemente do que ocorrera com a car-ta.Eu abandonaria a ideia de esconder algu-ma pista sobre o local em que me encon-trava. Tudo o que queria era dar um sinalde vida no dia do aniversário dela.Na refeição seguinte, tentei convencer osequestrador, até que ele se mostrou dis-

posto a trazer um gravador para o cativei-ro. Com ele, eu poderia enviar notícias pa-ra minha mãe!Reuni todas as forças para parecer alegrena fita:

– Mãezinha querida, estou bem. Nãose preocupe comigo. Feliz aniversá-rio. Sinto muito sua falta.

Tive de recomeçar várias vezes, porque aslágrimas escorriam pelo meu rosto, e eunão queria que minha mãe me ouvisse so-luçar. Depois que terminei, Priklopil pe-gou a fita e me garantiu que entraria emcontato com minha mãe e a tocaria paraela. Eu queria tanto acreditar nele. Seriaum alívio enorme se minha mãe não so-fresse tanto por minha causa.Mas ela nunca ouviu a fita.

Para o sequestrador, dizer que tocara agravação para minha mãe foi um movi-mento importante em seu jogo de domi-nação, pois, pouco tempo mais tarde, elemudou de estratégia e não falou mais demandantes, mas de sequestro por resgate.Ele falava seguidamente que entrara emcontato com meus pais, mas eles não ti-nham manifestado interesse em me liber-tar.

– Seus pais não amam você. Eles nãoa querem de volta. Estão felizes por-que finalmente se livraram de você.

Essas frases penetravam como ácido nasferidas abertas de uma criança que não sesentia amada. Mas eu não acreditava quemeus pais não quisessem me libertar. Sa-bia que eles não tinham muito dinheiro,

mas estava firmemente convencida de quefariam de tudo para juntar o valor do res-gate.

– Eu sei que meus pais me amam, elessempre me dizem isso - falava, semmedo, diante das observações malici-osas do sequestrador, que lamentavaainda não ter tido resposta deles.

Mas a dúvida - já semeada antes do ca-tiveiro - aumentava. Sistematicamente eleminou a crença em minha família e, comisso, uma base importante de minha já ins-tável autoconfiança. A certeza de ter oapoio de uma família, que faria de tudopara me libertar, diminuía lentamente,porque dia após dia ninguém vinha me so-correr.

Por que eu me tornara vítima daquele cri-minoso? Por que ele me escolhera e pren-dera? Essas perguntas começavam a metorturar e ainda hoje ocupam meus pensa-mentos. Era muito difícil entender as ra-zões do criminoso, e eu buscava desespe-radamente uma resposta

– queria que o sequestro tivesse umsentido, uma lógica clara, que, mes-mo escondida, fizesse dele mais doque um ataque casual. Até hoje édifícil lidar com o fato de que perdiminha adolescência apenas em ra-zão do capricho e da doença men-tal de um homem. Nunca obtiveresposta para essa pergunta, embo-ra eu sempre a tenha feito. Umavez, ele respondeu:

– Vi você em uma foto escolar e aescolhi.

Mas depois desmentiu e passou a dizer:– Você foi até mim como um gatode ma. E podemos ficar com gatos.Ou então:– Eu a salvei. Você deveria meagradecer.

Perto do fim do cativeiro, ele falou commais sinceridade:

– Sempre quis uma escrava.Até ouvir essa frase, passaram-se anos.Eu nunca soube por que ele me seques-trou. Porque era óbvio me escolher comovítima? Priklopil vivia no mesmo distritode Viena onde eu crescera. Na época emque eu acompanhava meu pai em suas en-tregas nos bares, ele era um jovem no fim

da casa dos 20 anos que também vivia lá.Eu sempre me espantava, na época da es-cola pública, com o número de pessoasque me cumprimentavam alegrementeporque me conheciam desses passeioscom meu pai, que me exibia satisfeito emroupinhas bonitas e impecáveis. Ele podiater sido uma dessas pessoas cuja atençãoatraí.Mas também era possível que o motivofosse outro. Talvez coincidisse com a his-tória da quadrilha de pornografia. Na épo-ca, havia na Áustria, assim como na Ale-manha, muitos desses bandos, que nãohesitariam em sequestrar crianças paraatos bárbaros. E a descoberta do cativeirona casa de Mare Dutroux, na Bélgica, quesequestrou e violentou meninas, havia

ocorrido apenas dois anos antes. No en-tanto, não sei até hoje se Priklopil

– como ele sempre dizia no início -me sequestrou a pedido de outras pes-soas ou se fez tudo sozinho. Tentoafastar as ideias sobre essa possibilida-de - é muito assustador supor que, emalguma parte do mundo, os verdadei-ros culpados ainda estejam livres. Du-rante o cativeiro, não houve indicaçãode comparsas, apesar das insinuaçõesiniciais de Priklopil.

Na época, eu tinha uma imagem clara dasvítimas de sequestro: meninas louras, pe-quenas e muito magras, quase transparen-tes, que flutuavam pelo mundo de modoangelical e indefeso. Eu as imaginava co-mo criaturas com cabelos tão sedosos que

era preciso tocá-los. Sua beleza paralisavahomens doentes, transformando-os embandidos violentos para mantê-las porperto. Eu, ao contrário, tinha cabelos es-curos e me sentia gorda e normal. E namanhã do sequestro, mais do que nunca,eu me sentia assim. Não me adequava àimagem que fizera de uma menina seques-trada.Hoje acho que essa imagem era falsa. Cri-anças pouco atraentes, com baixa autoes-tima, é que são escolhidas como vítimasde sequestradores. A beleza não é um fa-tor quando se trata de sequestro ou vio-lência sexual. Pesquisas mostram que defi-cientes físicos e mentais, assim como cri-anças sem ligações familiares, correm mai-or risco de se tornar vítimas de um se-

questrador. Nessas "listas" aparecem, emseguida, crianças como a que eu era namanhã do dia 2 de março: assustada, commedo e chorando. Caminhava inseguraaté a escola, meus passos eram pequenos eincertos. Talvez ele tivesse visto isso. Tal-vez tivesse percebido como eu me sen-tia insignificante e resolvera espontanea-mente que eu seria sua vítima. Pela faltade indicação aparente do motivo pelo qualfui escolhida como vítima, comecei a meculpar no cativeiro. A briga com minhamãe na tarde anterior ao sequestro passa-va continuamente diante de meus olhos.Tinha medo de pensar que o sequestropoderia ser um castigo por ter sido umafilha má, porque saíra sem uma palavra dereconciliação. Eu reconsiderava tudo isso

e buscava no passado os erros que come-tera, cada palavra desagradável, cada situ-ação em que não fora educada, boa ouamável. Hoje sei que é comum a vítimaatribuir a si mesma a culpa pelo crime quecometeram contra ela. Na época, era umaespécie de redemoinho que me arrastava eao qual eu não podia resistir.A claridade torturante, que me mantiveraacordada durante as primeiras noites,transformara-se, nesse meio tempo, emescuridão total. À noite, quando o seques-trador desatarraxava a lâmpada e fechavaa porta, eu me sentia separada de tudo: ce-ga, surda pelo zumbido constante do ven-tilador, incapaz de me orientar no espaçoe, algumas vezes, também de me perceber.Na linguagem dos psicólogos, isso se cha-

ma "privação sensorial". Restrição de estí-mulos. A retirada de todas as impressõessensoriais. Na época, eu só sabia que cor-ria o risco de perder o juízo naquela escu-ridão solitária.A partir do momento em que me deitavasozinha à noite até o café da manhã, euera prisioneira de um estado de suspensãocompletamente privado de luz. Não podiafazer nada além de me deitar e fitar a es-curidão. Algumas vezes, chorava ou ba-tia nas paredes, em um esforço desespera-do para que alguém me ouvisse. Sozinhae com medo, era deixada à própria sorte.E tentava ganhar coragem e combater opânico por meios "racionais". Havia pala-vras que me salvavam. Como outras pes-soas fazem croché e, no fim, criam um de-

licado centro de mesa, eu tecia palavrasem minha mente e escrevia longas cartaspara mim mesma, ou pequenas histórias,que ninguém poria no papel.O ponto de partida de minhas históriaseram, na maioria das vezes, meus planospara o futuro. Eu imaginava, com todosos detalhes, como seria a vida depois da li-bertação. Eu melhoraria em todas as ma-térias da escola e superaria meu medo daspessoas. Seria mais atlética e emagreceriapara participar das brincadeiras com asoutras crianças. Eu imaginava como seriair a outra escola depois de ser libertada -estava na quarta série e deveria mudar decolégio para a quinta - e como as outrascrianças agiriam comigo. Será que eu metornaria conhecida lá por causa do seques-

tro? Será que elas acreditariam em mime me aceitariam como uma delas? Mas oque eu mais gostava de imaginar era o re-encontro com meus pais. Como eles metomariam nos braços, como meu pai meergueria e giraria no ar. Como o mundoidílico de minha primeira infância retorna-ria e a época de brigas e humilhações seriaesquecida.Em outras noites, não bastavam as fanta-sias sobre o futuro. Então eu assumia opapel de minha mãe ausente, me dividiaem duas e tentava me encorajar:

– É como se você tivesse tirado férias.Você está longe de casa, mas não po-de simplesmente telefonar. Nas férias,não há telefonemas, e você não podeinterrompê-las apenas porque teve

uma noite mim. Quando elas acaba-rem, você volta para casa e retoma asaulas também.

Nesses monólogos, eu imaginava minhamãe na minha frente. E ouvia quando eladizia, com a voz firme:

– Recomponha-se, não tem sentido seaborrecer. Agora você tem que passarpor isso e depois tudo vai ficar bemde novo.

Sim. Se eu fosse forte, tudo ficaria bem denovo.E, quando nada disso adiantava, eu tenta-va recordar uma situação em que me sen-tira segura. Para isso, tinha a ajuda de umagarrafa de unguento que pedira ao seques-trador. Minha avó sempre friccionava umpouco de unguento na pele. O cheiro aze-

do e fresco imediatamente me transporta-va para a casa dela em Süssenbrunn e medava uma sensação quente de segurança.Quando o cérebro não era mais suficien-te, o nariz ajudava a não perder a ligaçãocomigo mesma e com meu raciocínio.Com o tempo, tentei me acostumar como sequestrador. Eu me adaptava intuitiva-mente a ele, assim como alguém se adaptaa costumes incompreensíveis em um paísdistante.Hoje acho que o fato de ser criança meajudou. Se eu fosse adulta, talvez não so-brevivesse às formas de controle externoe tortura psicológica a que era submetidacomo prisioneira em um porão. Mas ascrianças são orientadas, desde pequenas,a perceber os adultos do círculo mais ín-

timo como autoridades inquestionáveis,que as ensinam e determinam o que é cer-to e errado, como devem se vestir, quan-do devem ir para a cama. Crianças comemo que é posto na mesa e muitas vezes nãopodem evitar aquilo de que não gostam.Os pais frequentemente lhes negam o queelas querem ter. Mesmo quando os adul-tos retiram da criança o chocolate ou o di-nheiro que ela ganhou dos parentes porseu aniversário, é uma intervenção que elaprecisa aceitar, acreditando que os pais es-tão fazendo a coisa certa. Senão, sucumbena discrepância entre o querer próprio e ocomportamento de negação daqueles quea amam.Eu estava acostumada a obedecer às or-dens dos adultos mesmo quando elas me

pareciam infundadas. Se pudesse escolher,nunca teria ido para uma escola em queera dito às crianças quando lhes era permi-tido saciar suas necessidades mais básicas- a que horas deveriam comer, dormir e irao banheiro. E não teria ido todos os diasdepois da escola para a loja de minha mãe,onde combatia o tédio com sorvete e pe-pinos em conserva.Até mesmo tirar a liberdade das crianças,ao menos temporariamente, era algo que,para mim, não parecia inconcebível. Em-bora eu nunca tivesse passado por isso,um castigo comum em muitas famílias naépoca era trancar as crianças desobedien-tes em um porão escuro. E, no bondeelétrico, senhoras censuravam as mães decrianças barulhentas, dizendo:

– Se essa criança fosse minha, eu atrancaria.

As crianças podem se adaptar às circuns-tâncias mais adversas - veem nos adultosque batem nelas apenas alguém que asama e chamam um barraco mofado de lar.Meu novo lar era um porão, e minha re-ferência era o sequestrador. Meu mundosaíra dos eixos, e ele era a única pessoanaquele pesadelo que se transformara emmeu mundo. Eu era tão dependente delequanto os bebês são de seus pais - cadagesto de afeição, cada porção de alimento,a luz, o ar, minha sobrevivência física emental, tudo dependia de um homem queme trancara em um cativeiro no porão. Eao dizer que meus pais não respondiam

aos pedidos de resgate, ele me fazia aindamais dependente dele emocionalmente.Se eu quisesse sobreviver naquele novomundo, tinha de estar do mesmo lado queele. Para quem nunca esteve em uma situ-ação extrema de opressão, pode ser difícilentender, mas hoje tenho orgulho de dizerque consegui dar um passo na direção dohomem que tirou tudo de mim. Porqueesse passo salvou minha vida, mesmo queeu tivesse de dedicar cada vez mais ener-gia para manter esse "acesso positivo" aosequestrador. Ele se transformava sucessi-vamente em feitor de escravos e ditador.Mas eu nunca me afastei da imagem quetinha dele.Ele ainda mantinha a fachada de benfei-tor, que queria tornar minha vida tão agra-

dável quanto possível. Na verdade,desenvolveu-se uma espécie de rotina. Al-gumas semanas após meu sequestro, Pri-klopil trouxe para o cativeiro uma mesade jardim, duas cadeiras dobráveis, um pa-no de prato, que eu usava como toalha demesa, e alguns pratos. Quando ele chega-va com a comida, eu arrumava o pano deprato sobre a mesa, dois copos e os garfosao lado dos pratos. Faltavam apenas guar-danapos, que ele era miserável demais pa-ra trazer. Então nos sentávamos juntos àmesa dobrável, comíamos a refeição pré-cozida e bebíamos suco de fruta. Na épo-ca, ele ainda não racionava nada, e eu gos-tava de poder beber quanto quisesse. Ha-via uma espécie de intimidade, e eu co-meçava a me alegrar por aquelas refeições

com o sequestrador. Elas interrompiamminha solidão. E se tornaram importan-tes para mim. As circunstâncias eram tãoabsurdas que eu não podia classificá-lassob nenhuma categoria que conhecesseem minha realidade anterior. Aquele pe-queno mundo escuro que subitamente meaprisionara escapava, sob todos os pontosde vista, a uma avaliação normal. Eu pre-cisava buscá-la em outro lugar. Será queeu me encontrava em um conto de fadas?Em um lugar saído da imaginação dos ir-mãos Grimm, distante da normalidade?Naturalmente. Strasshof já não estiveraenvolvida em uma aura de maldade? Osdetestados sogros de minha irmã mora-vam ali, em um bairro chamado Sil-berwald.{2} Quando eu era pequena, temia

os encontros com eles no apartamento deminha irmã. O nome do lugar e o humorhostil da família já haviam transformadoSilberwald - e Strasshof também - em umafloresta enfeitiçada mesmo antes de meusequestro. Sim, eu tinha certeza absolutade ter aterrissado em um conto de fadascujo sentido não estava claro para mim.A única coisa que não se adequava aoscontos de fadas malévolos era o banho ànoite. Não me lembrava de ter lido algosobre isso antes. No cativeiro, havia ape-nas uma pia dupla de aço inoxidável eágua fria. O aquecimento de água que osequestrador instalara não funcionava. Eletrazia água quente em garrafas de plástico.Eu tinha de me despir, sentar em uma daspias e colocar os pés na outra. No come-

ço, ele só derramava água quente em mim.Depois, tive a ideia de fazer pequenos bu-racos nas garrafas, como se fosse um chu-veiro. Como havia pouco espaço, ele meajudava no banho. Eu não estava acos-tumada a ficar nua na frente de um ho-mem estranho. Em que ele estaria pensan-do? Eu o olhava insegura, mas ele me es-fregava como se eu fosse um automóvel.Em seus gestos, não havia delicadeza nemagressividade. Ele cuidava de mim comose conservasse um equipamento domésti-co.Justamente nesses dias em que a imagemdos contos de fadas maus começava a seimpor sobre a realidade, a polícia final-mente resolveu investigar a pista da meni-na que vira o sequestro. Em 18 de março

foi divulgada a declaração da única teste-munha, com o anúncio de que, nos próxi-mos dias, setecentas caminhonetes bran-cas seriam examinadas. O sequestrador te-ve tempo suficiente para se preparar.Na Sexta-Feira da Paixão, o quadragésimodia de sequestro, a polícia chegou a Stras-shof e solicitou a Wolfgang Priklopil queapresentasse o automóvel. Ele o encherade entulho e disse à polícia que estavausando a caminhonete para a reforma dacasa. Em 2 de março, segundo a declara-ção de Priklopil, ele passara o dia todo emcasa. Mas não havia testemunhas. O se-questrador não tinha álibi - fato que foiencoberto pela polícia mesmo nos anosseguintes à minha fuga.

Os policiais ficaram satisfeitos e desisti-ram de examinar a casa, o que Priklopilaparentemente oferecera de bom grado.Enquanto eu estava no cativeiro, esperan-do pelo resgate e tentando não perder ojuízo, eles tiraram algumas fotos do auto-móvel com o qual eu fora sequestrada e asanexaram aos autos. Em minhas fantasiasde resgate, os especialistas examinavam aárea em busca de vestígios de DNA ou defibras de minhas roupas. Mas, lá em cima,a imagem era outra - a polícia não fez na-da disso. Eles apenas se desculparam comPriklopil e saíram sem examinar com maiscuidado a caminhonete ou a casa.Somente após a fuga descobri quão pertoo sequestrador esteve de ser preso, se apolícia realmente tivesse levado a sério a

questão. De todo modo, dois dias depois,ficou claro para mim que eu não seriamais libertada.O Domingo de Páscoa do ano de 1998caiu em 12 de abril. O seques- trador metrouxe uma pequena cesta com ovos dechocolate coloridos e um coelho de cho-colate. "Celebramos" a ressurreição deCristo à luz da lâmpada nua na pequenamesa de jardim, em meu cativeiro fedo-rento. Eu me alegrei pelos doces e tentei,por todos os meios, afastar o pensamentodo mundo exterior, de Páscoas anteriores.A grama. A luz. O sol. As árvores. O ar.As pessoas. Meus pais.Nesse dia, o sequestrador me explicouque desistira de pedir o resgate, porquemeus pais não tinham se comunicado.

– Obviamente eles não estão muitointeressados em você - disse. Entãoveio a sentença: prisão perpétua.– Você já viu meu rosto e me co-nhece muito bem. Não posso liber-tá- la. Não vou poder devolvê-la aseus pais, mas vou cuidar de você,na medida do possível.

Minhas esperanças foram destruídas comum único golpe no Domingo de Páscoa.Chorei e pedi que ele me deixasse sair:

– Eu tenho a vida inteira pela frente!Você não pode me prender aqui! Ea escola? E meus pais? - e jurei porDeus e por tudo o que era mais sagra-do que não o denunciaria.

Mas ele não acreditou em mim - livre, euesqueceria rapidamente o juramento ou

não suportaria a pressão da polícia. Eutentava argumentar que ele não queriapassar o resto da vida com uma vítima desequestro no porão e implorei que me le-vasse para longe, com os olhos vendados- eu não seria capaz de encontrar a casae não teria nenhum nome para a políciachegar até ele. Criei até planos de fuga pa-ra ele. Ele podia emigrar, afinal viver emoutro país seria melhor do que me pren-der para sempre no cativeiro e ter de sepreocupar comigo.Solucei, pedi e então comecei a gritar:

– A polícia vai me encontrar! E entãoeles vão prender você! Ou atirar! E seeles não encontrarem, meus pais meencontrarão!

Até que a voz falhou.

Priklopil permaneceu totalmente calmo.– Já esqueceu que eles não se interes-sam por você? E, se eles apareceremaqui, vou matá-los.

Em seguida, saiu e fechou a porta pelo la-do de fora.Eu estava só agora.Somente dez anos depois - dois longosanos depois de minha fuga e durante umescândalo policial em torno dos erros dainvestigação e da tentativa de acobertá-los-, descobri quão perto estive de ser resga-tada pela segunda vez naquela Páscoa. Naterça-feira seguinte, dia 14 de abril, a polí-cia divulgou outra pista. Testemunhas de-clararam ter visto, na manhã do seques-tro, uma caminhonete com vidros escurosnas proximidades do conjunto habitacio-

nal. Na placa, lia-se Gánserndorf - o dis-trito onde se localiza Strasshof.Mas uma segunda pista não foi divulgadapela polícia. No mesmo dia 14 de abril,um adestrador de cães da polícia de Vienaligou para uma delegacia. O oficial em ser-viço ouviu o seguinte aviso (erros no ori-ginal):Em 14 de abril de 1998, às 14h45, um ho-mem desconhecido telefonou e comuni-cou a seguinte informação:Em relação à busca da caminhonete bran-ca com vidros escuros no distrito de Gán-serndorf e ao desaparecimento de Kam-puschNatasche, há uma pessoa em Strasshof/Nordbahn que pode estar associada aodesaparecimento e que também é proprie-

tário de uma caminhonete branca, modeloMercedes, com vidros escuros. O homemé conhecido como um "lobo solitário",tem extrema dificuldade com a vizinhançae problemas de relacionamento. Ele vivecom a mãe em Strasshof/Nordbahn, Hei-nestrasse 60 (casa particular), totalmentegradeada e com sistema de alarme elétrico.O homem possivelmente também guar-da armas em casa. A caminhonete bran-ca, modelo Mercedes, placa desconhecida,com vidros laterais e traseiro totalmenteescurecidos, tem sido vista frequentemen-te diante da casa, na Heinestrasse 60. An-teriormente o homem era engenheiro detelecomunicações na Siemens e talvez ain-da seja funcionário da empresa. Possivel-mente o homem vive com a mãe idosa na

casa e supõe-se que tenha preferência se-xual por "crianças". Não se sabe se temantecedentes criminais relacionados a is-so.O nome do homem é desconhecido doautor da chamada, que só o conhece davizinhança. O homem tem cerca de 35anos, cabelos louros, entre 175 e 180 cen-tímetros de altura e é magro.O autor anônimo da chamada não pôdefornecer mais informações.

ENTERRADA VIVAO pesadelo se torna realidadeA toca do coelho se alongava como um tú-nel e então subitamente parecia mergulhar- tão subitamente que Alice não teve uminstante sequer para pensar em parar, antesde perceber que caía no que parecia ser umpoço muito profundo. [...] Caindo, caindo,caindo. Será que a queda nunca teria fim?[...]

– De que adianta chorar assim? -perguntou-se severamente. - E bomparar com isso agora mesmo!

Em geral, dava bons conselhos a si mesma(muito embora raramente os seguisse),mas às vezes era tão dura que lágrimas lhevinham aos olhos; certa vez ela se lem-brou de ter puxado as próprias orelhaspor trapacear em um jogo de croquet quejogava consigo mesma, pois essa curiosamenina gostava muito de fingir que eraduas pessoas.

– Mas agora não vai adiantar - pensoua pobre Alice - querer ser duas pesso-as! Pois se quase nada restou para fa-zer uma pessoa respeitável!

LLEWISEWIS CCARROLLARROLL,, Alice no País das Maravi-lhas

UM DOS PRIMEIROS LIVROS que li nocativeiro foi Alice no País das Maravilhas, deLewis Carroll. O livro me afetou de modoestranho e desagradável. Alice - uma me-nina da minha idade - segue, em sonho,um coelho branco falante até a casa dele.Quando ela entra na toca do coelho, cainas profundezas e chega a um lugar commuitas portas. Está presa em um mundointermediário debaixo da terra, mas o ca-minho para a superfície está bloqueado.Alice encontra uma chave para a portamenor e um frasco com uma bebida má-gica que a faz encolher. Mal passa pela mi-núscula porta, esta se fecha atrás dela. Nomundo subterrâneo em que entra, nada

faz sentido. As dimensões se modificamcontinuamente, e os animais falantes queela encontra ali fazem coisas que contradi-zem a lógica. Mas ninguém parece se inco-modar com isso. Tudo parece deslocadoe fora de equilíbrio. O livro inteiro é umúnico pesadelo extravagante, em que to-das as leis da natureza são suspensas. Na-da nem ninguém é normal - a menina es-tá sozinha em um mundo que não com-preende e no qual não tem ninguém paraconversar. Ela tem de criar coragem pa-ra não chorar e para agir de acordo comas regras dos outros. Visita os interminá-veis chás do chapeleiro, em que todo tipode convidados malucos aparece, e partici-pa do terrível jogo de croquet da malvadaRainha de Copas, em que, ao final, todos

os outros participantes são condenados àmorte.

– Cortem-lhe a cabeça! - grita a rai-nha, rindo de modo insano.

Alice consegue abandonar esse mundosubterrâneo porque acorda do sonho. Qu-anto a mim, quando eu abria os olhos de-pois de algumas horas de sono, o pesadelocontinuava. Essa era minha realidade.O livro todo, publicado originalmente co-mo As aventuras de Alice no subterrâneo, erauma descrição exagerada de minha condi-ção. Eu também era prisioneira no subter-râneo, em um cômodo que o sequestradorseparara do mundo exterior com muitasportas. Eu também estava presa em ummundo em que todas as regras que eu co-nhecia eram inoperantes. Tudo o que eu

aplicava à minha vida havia muito temponão fazia sentido ali. Eu me tomara parteda fantasia doentia de um psicopata, umafantasia que eu não compreendia. E nãopodia compreender. Não havia mais ne-nhuma conexão com o outro mundo noqual eu vivera. Nenhuma voz conhecida,nenhum ruído familiar que me indicasseque o mundo lá em cima ainda existia.Nessas circunstâncias, como manter umaconexão com a realidade e comigo mes-ma?Eu esperava em vão - como Alice - acor-dar subitamente em meu quarto antigo,assustada com um pesadelo maluco, quenão tinha nenhuma conexão com meu"mundo real". Mas não se tratava de umsonho meu no qual eu estava presa; era o

sonho do sequestrador. E ele não estavadormindo, mas fazia de sua vida a concre-tização de uma fantasia cruel da qual nãohavia saída, nem para ele.Nesse momento, parei de tentar conven-cer o sequestrador a me libertar. Eu sabiaque não adiantaria.O mundo em que eu vivia tinha encolhidopara cinco metros quadrados. Se eu nãoquisesse enlouquecer, teria de tentarreivindicá-lo para mim. E não podia espe-rar, tremendo, pelo terrível "Cortem-lhe acabeça", como os homens feitos de cartasde baralho de Alice no País das Maravilhas,nem me submeter, como as criaturas colo-ridas daquela realidade confusa. Precisavatentar criar, naquele local sombrio, um re-fúgio, uma espécie de casulo protetor que

mantivesse o antigo mundo a meu redor,mesmo sabendo que o sequestrador podiaentrar ali a qualquer momento.Comecei a enfeitar o cativeiro e a trans-formar a prisão do sequestrador em meuespaço, em meu quarto. As primeiras coi-sas que quis foram um calendário e umdespertador. Eu estava presa em uma la-cuna temporal, em que o sequestrador erao dono do tempo. As horas e os minutosse confundiam em uma massa densa, quese estendia, sufocante, sobre tudo. Comoum deus, Priklopil tinha o poder sobre aluz e as trevas em meu mundo. "E Deusfalou: Faça-se a luz. E a luz se fez. E Deuschamou a luz de dia e a escuridão de noi-te." Uma lâmpada me dizia quando dor-mir e quando despertar.

Todos os dias, eu perguntava o dia da se-mana e a data. Não sabia se ele mentia,mas isso não tinha importância. O maisimportante para mim era a sensação deter uma conexão com minha vida anterior,"no andar de cima". Saber se era dia de es-cola ou fim de semana. Se era um feriadoou um aniversário, que eu gostaria de pas-sar com minha família. Medir o tempo -aprendi na época - talvez seja a referênciamais importante em um mundo que ame-aça se dissolver. O calendário me devol-via uma pequena parcela de orientação eimagens às quais o sequestrador não tinhaacesso. Agora, eu sabia se naquele dia asoutras crianças levantariam cedo ou dor-miriam até tarde. Em minha fantasia, euacompanhava a rotina de minha mãe: hoje

ela iria até a loja; depois de amanhã, talvezvisitasse uma amiga e, no fim de semana,viajasse com o namorado. Os números eos nomes dos dias da semana assumiamvida própria, que me dava apoio.O despertador era quase tão importantequanto o calendário. Eu havia pedido umantigo, que acompanhasse o ponteiro dossegundos com um tique-taque alto e mo-nótono. Minha querida avó tinha um des-pertador desses. Quando eu era pequena,detestava o tique-taque, que perturbavameu sono e parecia invadir meus sonhos.Agora eu me agarrava a esse som como al-guém debaixo da água se agarra a um úl-timo canudo, através do qual ainda podesorver um pouco do ar da superfície paraos pulmões. O despertador me mostrava,

a cada tique-taque, que o tempo não haviaparado e que a Terra continuava girando.Em meu estado de suspensão, sem noçãode tempo e espaço, o despertador assina-lava com seu tique-taque minha conexãocom o mundo real.Quando eu me esforçava, me concentravatanto nesse ruído que podia bloquear poralguns minutos o zumbido enervante doventilador, que preenchia o quarto até olimite do suportável. À noite, quando medeitava e não conseguia dormir, o tique-taque do despertador era como uma longatábua de salvação, com a qual eu podiasair do cativeiro e me enfiar em minha ca-ma no apartamento de minha avó. Lá eupoderia dormir tranquila, sabendo que elatomava conta de mim no quarto ao lado.

Nessas noites, eu esfregava um pouco deunguento na mão. Quando a encostava norosto e sentia o cheiro característico, umaincrível sensação de proximidade se apo-derava de mim. Como antigamente, enter-rava o rosto no avental de minha avó, eera assim que conseguia dormir.Durante o dia, me ocupava em arrumar ocômodo minúsculo de modo tão confor-tável quanto possível. Pedira ao seques-trador material de limpeza para afastar ocheiro úmido de prisão e morte suspensono ar. No chão, um mofo preto, superfici-al, se formava graças à umidade extra cau-sada pela minha presença, o que piorava oar fedorento, dificultando a respiração. Olaminado estava encharcado e havia man-chas, porque a umidade do solo penetra-

ra ali. Essas manchas eram uma lembran-ça persistente e dolorosa de que provavel-mente eu me encontrava debaixo da su-perfície da terra. O sequestrador trouxerapara mim uma vassoura vermelha, um po-te de limpador multiuso, um spray ambien-te e panos de limpeza com aroma de tomi-lho que eu vira em propagandas na IV. Euvarria diariamente cada canto do cativeiroe mantinha o chão brilhante. Começava aesfregar próximo à porta. A parede ali eraum pouco mais larga que a porta estrei-ta. Dessa parede, eu ia para a esquerda emângulo oblíquo com a parte do cômodoonde ficavam o vaso sanitário e a pia du-pla. Eu podia passar horas limpando comsolução descalcificante as pequenas gotasde água no metal da pia até que brilhas-

se imaculada, e deixar o vaso sanitário tãolimpo como uma valiosa flor de porcela-na. Então eu limpava cuidadosamente daporta até o restante do cômodo: primeiro,ao longo do lado mais comprido da pare-de; em seguida, ao longo do lado mais cur-to, até chegar à parede estreita diante daporta. Finalmente, empurrava a espregui-çadeira para o lado e limpava o centro docômodo, tomando cuidado para não usarmuito detergente e aumentar ainda mais aumidade.Quando terminava, uma versão químicade frescor, natureza e vida pairava no ar,que eu absorvia com sofreguidão. Depoisde borrifar um pouco de spray ambiente,podia descansar por alguns instantes. Ocheiro de lavanda não era particularmente

bom, mas me dava a ilusão de planíciesem flor. E, quando eu fechava os olhos,a imagem impressa no rótulo do aerossolse tornava um cenário que se desenrolavadiante das paredes de minha prisão - empensamento, eu percorria a sequência infi-nita de flores azul- violáceas, sentia a ter-ra sob meus pés e o aroma fresco da ve-getação. O ar quente estava impregnadode zumbidos de abelhas, e o sol queimavaminha nuca. Acima de mim, estendia-se océu azul, infinitamente alto, infinitamentevasto. Os campos erguiam-se na direçãodo horizonte, sem muros e sem limites. Eeu corria, tão rápido que tinha a sensaçãode voar. Nada podia me deter naquela in-finidade azul-violácea.

Quando abria os olhos, as paredes nuassubitamente me traziam de volta de minhaviagem de fantasia.Imagens. Eu precisava de mais imagens,do meu mundo, que eu pudesse criar. Quenão correspondessem às fantasias doentiasdo sequestrador, que me assaltavam de ca-da canto do cômodo. Comecei, pouco apouco, a pintar com os lápis de cera daescola o revestimento de madeira das pa-redes. Queria deixar nelas uma parte demim, como os prisioneiros que rabiscamas paredes das celas. Com imagens, frasese incisões para cada dia.Agora eu percebia que eles não fazem issopor tédio - desenhar é um meio de evitar asensação de impotência e de estar à mercêdos outros. Eles fazem isso para provar a

si mesmos e a quem quer que entre na ce-la que eles existem, ou ao menos algumavez existiram.As pinturas nas paredes tinham, paramim, uma segunda finalidade: criar um ce-nário no qual podia imaginar que estavaem casa. Primeiro, tentei pintar a área deentrada do apartamento - na porta do cati-veiro, desenhei a maçaneta de nossa portae, na parede ao lado, a pequena cômoda,que ainda hoje fica no corredor do aparta-mento de minha mãe. Desenhei o contor-no meticulosamente e pintei as maçanetasdas gavetas - não tinha muitas cores, maseram suficientes para criar a ilusão. Quan-do me deitava e olhava para a porta, ima-ginava que ela se abriria a qualquer mo-

mento, minha mãe entraria para me beijare deixaria as chaves sobre a cômoda.Depois, desenhei minha árvore genealó-gica na parede. Meu nome ficava embai-xo, depois vinha o nome de minhas irmãs,seus maridos e filhos, de minha mãe e donamorado, de meu pai e da namorada e,por fim, de meus avós. Passei muito tem-po criando essa árvore genealógica. Elame oferecia um lugar no mundo e me ga-rantia que eu era parte de uma família,parte de um todo, e não um átomo disper-so fora do mundo real, como frequente-mente eu me sentia.Na parede oposta, desenhei um grandeautomóvel, um Mercedes SL prata - meupreferido. Eu tinha uma miniatura em ca-sa e queria comprá-lo quando crescesse.

No lugar das rodas, pintei seios fartos. Vi-ra isso em um grafite em uma parede deconcreto próxima ao conjunto habitacio-nal. Não sei mais por que desenhei isso.Aparentemente queria algo forte, supos-tamente adulto. Já nos últimos meses naescola pública, eu provocava os professo-res. Antes do início da aula, podíamos de-senhar com giz no quadro-negro, desdeque apagássemos tudo na hora certa. En-quanto as outras crianças desenhavam flo-res e personagens de desenhos, eu rabis-cava palavras como "Protesto!", "Revolu-ção!", ou ainda "Abaixo os professores!".Não era um comportamento apropriado auma turma pequena de vinte crianças, naqual estudávamos protegidos, como emum jardim de infância prolongado. Não

sei se, na época, havia chegado à puberda-de antes dos colegas de classe ou se que-ria marcar pontos com aqueles que sem-pre me importunavam. De qualquer mo-do, no cativeiro, a pequena rebeldia quehavia nesse desenho me dava força, assimcomo o palavrão que rabisquei em letraspequenas em um local escondido na pa-rede: "m..." Queria mostrar minha capa-cidade de resistir, fazer algo proibido. Osequestrador pareceu não se importar; emtodo caso, não fez comentários sobre aimagem.A mudança mais importante veio com achegada da televisão e de um videocasseteao cativeiro. Eu sempre pedia a Priklopile, um dia, ele trouxe os dois equipamentospara baixo e os colocou sobre a cômoda,

perto do computador. Depois de semanasnas quais eu encontrava "vida" em umaúnica forma - na pessoa do sequestrador-, agora eu podia ter, com ajuda da tela datelevisão, uma imitação colorida de com-panhia humana.No início, ele simplesmente gravava aoacaso a programação de um dia. Mas deviaser cansativo para ele cortar as notíciasque falavam sobre mim. Ele nunca per-mitiu que eu recebesse indícios de quenão havia sido esquecida no mundo exte-rior. A imagem de que minha vida não ti-nha valor para ninguém, em especial parameus pais, era, afinal, um de seus instru-mentos psicológicos para me manter ma-nipulável e dependente.

Por isso, depois de um tempo ele apenasgravava programas isolados ou trazia fitasde vídeo com filmes que gravara no inícioda década de 1990. O peludo Alf o ETei-moso, jeannie é um gênio, Al Bundy, de Ma-tried with Chil-dren, ou a família Taylor, deGente pra frente, foram minha família emeus amigos. Eu me alegrava diariamentepor reencontrá-los e os observava mais deperto que qualquer outro espectador. Ca-da aspecto do relacionamento, cada pe-queno diálogo parecia emocionante e ele-trizante. Eu analisava cada detalhe dos ce-nários, que delimitavam o horizonte a queeu tinha acesso. Eles eram minha única"janela" para outras casas e, no entanto,algumas vezes, eram fabricados de modotão superficial e pobre que a ilusão de

acesso à "vida real" rapidamente desmo-ronava. Talvez essa seja a razão pela qual,mais tarde, me senti atraída sobretudo porséries e filmes de ficção científica: Jornadanas estrelas, Stargate, Contratempos, De voltapara o futuro - tudo que tratasse de viagensno tempo e no espaço me encantava. Osheróis dos filmes viajavam para novos lu-gares, em galáxias desconhecidas. E ti-nham os meios técnicos para poder sim-plesmente desaparecer em situações difí-ceis e circunstâncias ameaçadoras.Um dia, na primavera, que eu acompanha-va pelo calendário, o sequestrador trouxeum rádio para o cativeiro. Mal conseguiconter a alegria. Um rádio significava umaconexão efetiva com o mundo real! No-tícias, os conhecidos programas matinais,

que eu sempre ouvia na cozinha enquantotomava café, música - e talvez uma pistacasual de que meus pais não tinham meesquecido.

– Naturalmente você não poderá ou-vir nenhum programa austríaco - ob-servou o sequestrador, destruindo mi-nhas ilusões de modo inesperado aoligar o aparelho na corrente elétrica.

Apesar de tudo, eu podia ouvir música.Mas, quando o locutor dizia algo, eu nãoentendia uma palavra - o sequestradormanipulara o rádio e eu só recebia trans-missões em tcheco.Eu passava horas mexendo no pequenoaparelho, que poderia ser minha passagempara o mundo exterior. Sempre na espe-rança de ouvir uma palavra em alemão ou

um jingle conhecido. Nada. Apenas umavoz que eu não compreendia - que se, porum lado, me dava a impressão de não es-tar sozinha, por outro fortalecia em mim asensação de estranhamento, de isolamen-to.Desesperada, eu girava milímetro a milí-metro o botão do aparelho para lá e paracá e ajustava a antena. Mas, fora daquelafrequência, só havia estática.Depois, ganhei um walkman do sequestra-dor. Como achava que ele tinha músicade bandas antigas em casa, pedi fitas dosBeatles e do Abba. A noite, quando a luzse apagava, já não deitava mais sozinhana escuridão com meus temores, mas, seas pilhas durassem, podia ouvir música.Sempre as mesmas músicas.

Meu apoio mais importante contra o tédioe a loucura eram os livros. O primeiro li-vro que o sequestrador me trouxe foi Asala de aula voadora, de Erich Kastner. En-tão seguiram-se os clássicos: A cabana dopai Tomás, Robinson Crusoé, Tom Sawyer, Ali-ce no País das Maravilhas, O livro da selva, Ailha do tesouro e A expedição Kon-Tiki. Eu de-vorara as revistas em quadrinhos do Pa-to Donald e seus três sobrinhos, do ava-rento Tio Patinhas e do inventivo Profes-sor Pardal. Mais tarde, quis ler Agatha Ch-ristie, cujos livros eu conhecia por causada minha mãe, e li uma pilha de roman-ces policiais, como Jerry Cotton, e históri-as de ficção científica. Os romances melançavam para um outro mundo e atraíamminha atenção de tal modo que eu esque-

cia durante horas onde estava. E era justa-mente isso o que fazia da leitura algo tãoimportante para minha sobrevivência. En-quanto a televisão e o rádio mantinhama ilusão de companhia no cativeiro, emmeus pensamentos eu podia esquecê-lopor horas a fio com a leitura.Os livros de Karl May tiveram especialimportância nesse primeiro período,quando eu ainda era uma criança de 10anos. Eu devorava as aventuras de Win-netou e Old Shatterhand e lia as históriassobre o "oeste selvagem norte-america-no". Uma canção que os colonizadoresalemães cantaram para Winnetou mori-bundo me tocou tanto que a copiei pala-vra por palavra e a colei na parede comcreme Nivea. Na época, eu não tinha fita

adesiva ou cola no cativeiro. Era uma ora-ção à mãe de Jesus:A claridade do dia finda; e cerra-se agorao silêncio da noite. Ai, se a dor do coraçãopudesse findar como o dia! Lanço a teuspés esta súplica: Leve-a para junto do tro-no de Deus. Oh, Virgem Maria, deixai-mesaudá-la em tom de oração: Ave Maria!A claridade da fé finda; e cerra-se agora aincerteza da noite.A crença da mocidade em Deus deve serabolida.Conservai em mim, Virgem Maria, mes-mo em idade avançada a alegre confiançada fé. Proteja minha harpa e meu saltério;és minha salvação, és minha luz! Ave Ma-ria!

A claridade da vida finda; e cerra-se agoraa morte da noite. A alma quer abrir suasasas e eu devo perecer. Ai, Virgem Maria,em tuas mãos deixo meu último e ardo-roso pedido: Suplique para mim um fimconfiante e uma bem-aventurada ressur-reição! Ave Maria!Eu lia, sussurrava e rezava esse poemacom tanta frequência que ainda hoje pos-so recitá-lo de cor. Parecia que ele haviasido escrito para mim. A "claridade da vi-da" fora retirada de mim e, nas horas maisescuras, eu também não via outra saída docativeiro senão a morte.O sequestrador sabia quanto eu era de-pendente do fornecimento de filmes, mú-sica e publicações e, com isso, tinha um

novo instmmento de poder nas mãos.Retirando-os, poderia me pressionar.Quando eu me comportava, segundo ele,"de modo impróprio", já podia esperarque ele fechasse a porta para o mundo daspalavras e dos sons, que, ao menos emcerta medida, correspondiam a uma diver-são. E isso era particularmente difícil nosfins de semana. Normalmente o seques-trador vinha cedinho e, na maioria das ve-zes, voltava ao cativeiro à tarde ou à noite.Mas, nos fins de semana, eu ficava com-pletamente só - não o via desde a tar-de de sexta-feira e, algumas vezes, desdea noite de quinta-feira até domingo. Eleme fornecia duas porções diárias de refei-ções semiprontas, alguns alimentos fres-cos e água mineral, que trazia de Viena. E

vídeos e livros. Durante a semana, eu re-cebia uma fita cassete gravada com séri-es de duas horas e, quando pedia muito,de quatro. Não era muito, como parece.Todos os dias, eu tinha de sobreviver so-zinha vinte e quatro horas, interrompidasapenas durante as visitas do sequestrador.Nos fins de semana, eu recebia de quatroa oito horas de distração em fita cassetee o volume seguinte da série que estavalendo. Mas apenas quando satisfazia suascondições. Somente quando era "boazi-nha" ele me dava o alimento mental ne-cessário. O que ele entendia por "ser boa-zinha", apenas ele sabia. Algumas vezes, amenor infração era suficiente para ser cas-tigada.

– Você usou muito spray ambientee agora vai ficar sem.– Você estava cantando.– Você fez isso, você fez aquilo.

Com os vídeos e os livros, ele sabia quebotão apertar. Era como se, depois de ti-rar minha verdadeira família, também fi-zesse minha família adotiva dos romancese séries de refém, para que eu seguisse su-as ordens.O homem que, de início, se esforçara paratornar a vida no cativeiro "agradável" eque viajara até o outro lado de Viena sópara conseguir determinada radionovelacom a personagem Bibi, a Bruxinha, pou-co a pouco se transformava, desde queanunciara que nunca me libertaria.

Nessa época, o sequestrador passou a medominar cada vez mais. Com efeito, desdeo começo ele me tinha sob total controle- trancada no cativeiro de cinco metrosquadrados, não havia outra saída senãolhe obedecer. Mas, quanto mais o cativei-ro durava, menos essa óbvia indicação depoder o satisfazia. Agora ele queria con-trolar cada gesto, cada palavra, cada fun-ção de meu corpo. Começou com o tem-porizador. O sequestrador sempre tiverao poder sobre a luz e a escuridão. Quan-do, pela manhã, descia até o cativeiro, liga-va a energia elétrica e, à noite, a desligava.Agora ele instalara um temporizador, quecontrolava a eletricidade no cômodo. En-quanto, no início, eu ainda podia ter luzpor mais tempo, agora tinha de me sub-

meter a um ritmo inexorável que eu nãopodia controlar. Às sete horas da manhã,a energia elétrica era ligada. Durante trezehoras, eu podia fazer uma imitação baratade vida em meu cômodo pequeno e mal-cheiroso: ver, ouvir, sentir calor e cozi-nhar. Tudo artificial. Lâmpadas jamais po-dem substituir o sol, refeições semipron-tas lembram apenas remotamente uma re-feição familiar numa mesa comum, e aspessoas superficiais que se agitavam na te-la da televisão eram substitutas vazias daspessoas de verdade. Mas, enquanto hou-vesse energia elétrica, eu podia ao menosmanter a ilusão de que existia vida além daminha.Às oito horas da noite, o temporizadordesligava a energia elétrica. De uma hora

para outra, eu ficava em total escuridão.A televisão era desligada no meio de umasérie. No meio de uma frase, eu precisavapôr o livro de lado. E, quando não estavana cama, tinha de tatear de quatro até a es-preguiçadeira. Lâmpada, televisão, video-cassete, rádio, computador, chapa elétrica,forno e aquecimento - tudo o que enchiao cativeiro de vida era desligado. Apenaso despertador, com seu tique-taque, e ozumbido inoportuno do ventilador ocu-pavam o cômodo. Durante as onze horasseguintes, eu dependia de minha imagina-ção para não enlouquecer e para manter omedo sob controle.O ritmo diário era como o de uma prisão,estritamente prescrito do exterior, semum segundo de desvio, sem considerar

minhas necessidades. Era uma demons-tração de poder. O sequestrador amava aregularidade e, com o temporizador, tam-bém me forçava a isso.No início, eu ainda tinha um walkman compilhas, que me permitia manter a escuri-dão pesada a distância, quando o tempo-rizador decretava que eu já esgotara mi-nha ração diária de luz e música. Mas osequestrador não gostava do fato de queeu podia usar o walkman para burlar seumandamento divino de luz e escuridão.Então ele começou a controlar o estadodas pilhas. Se desconfiasse que eu usarao walkman durante muito tempo ou comfrequência, tirava-o de mim até que euprometesse me comportar melhor. Certavez, aparentemente ele não havia fechado

a porta externa do cativeiro antes que eume sentasse na espreguiçadeira com os fo-nes de ouvido cantando uma canção dosBeatles em voz alta. Ele ouviu e voltou fu-rioso. Priklopil me castigou por cantar emvoz alta e me tirou a luz e a comida. Nosdias seguintes, tive de dormir sem música.Seu segundo instrumento de controle erao interfone. Quando ele veio ao cativeiropara instalar o cabo, disse:

– De agora em diante, você pode dis-car lá para cima e me chamar. No iní-cio fiquei feliz e senti como se umgrande peso fosse arrancado

de meu peito. Pensar que eu poderia, deuma hora para outra, ter de enfrentar umaemergência me assombrava desde o iníciodo cativeiro. Frequentemente, durante os

fins de semana, eu ficava sozinha e nãopodia nem chamar a atenção da única pes-soa que sabia onde eu estava - o sequestra-dor. Imaginava várias situações: um curto-circuito, o rompimento de um cano, umsúbito ataque de alergia... Eu poderia atémorrer engasgada de maneira miserávelno cativeiro, mesmo se o sequestrador es-tivesse em casa. Afinal de contas, ele sóvinha quando queria. Por essa razão, o in-terfone parecia ser uma tábua de salvação.Só mais tarde descobri o real significadodo equipamento. Um interfone funcionanas duas direções. O sequestrador o usa-va para me controlar e me vigiar, para de-monstrar sua onipotência e garantir queouviria cada som que eu fizesse.

A primeira versão instalada pelo seques-trador tinha um botão, que eu apertava ca-so precisasse de algo. Então uma luz ver-melha se acendia na parte de cima, emum local escondido da casa. Mas ele nemsempre via a pequena lâmpada nem estavadisposto a realizar os complicados proce-dimentos necessários para abrir o cativei-ro sem saber exatamente o que eu que-ria. E ele nunca descia nos fins de semana.Só mais tarde descobri que isso aconteciaporque sua mãe vinha visitá-lo nos fins desemana e passava a noite lá. Seria com-plicado demais e chamaria muito a aten-ção retirar os diversos obstáculos entre agaragem e o cativeiro enquanto ela esti-vesse ali. Pouco tempo depois, ele subs-tituiu o equipamento por outro sistema,

através do qual era possível falar. Ao aper-tar o botão, ele podia dar instruções e fa-zer perguntas no cativeiro:

– Dividiu a comida?– Escovou os dentes?– Desligou a televisão?– Quantas páginas você leu hoje?– Fez os exercícios de matemática?

Eu tomava um susto cada vez que sua vozinterrompia o silêncio. Ele me ameaçavaporque eu era muito lenta para responder.Ou porque comera demais.

– Já comeu tudo?– Eu não disse que você só podiacomer uma fatia de pão à noite?

O interfone era o instrumento perfeitopara me aterrorizar - até que descobri queele me permitia um pouco de poder tam-

bém. Olhando para trás, me espanta que osequestrador, com sua necessidade mani-festa de controlar tudo, nunca tivesse ima-ginado que uma menina de 10 anos exa-minaria o equipamento com atenção. Efoi isso que fiz alguns dias depois.O equipamento tinha três botões. Quan-do você apertava "falar", a linha era abertados dois lados. Ele me mostrara essa fun-ção. Se o interfone estava ligado em "ou-vir", eu podia ouvir a voz dele, mas elenão ouvia a minha. E havia também umterceiro botão - quando ele era pressiona-do, a linha era aberta do meu lado, mas láem cima tudo ficava em silêncio.Ao discutir com ele, eu aprendera a deixaro que ele dizia entrar por um ouvido e sairpelo outro. Agora eu tinha um botão que

fazia justamente isso: quando as pergun-tas, as tentativas de controle e as acusa-ções me pareciam excessivas, eu apertavao terceiro botão. Era uma enorme satisfa-ção que a voz dele se calasse e que eu ti-vesse apertado o botão para isso aconte-cer. Eu adorava esse botão, porque ele mepermitia afastar o sequestrador de minhavida por um curto período. Quando Pri-klopil descobriu a pequena rebelião lidera-da pelo meu dedo indicador, no início fi-cou surpreso, depois indignado e com rai-va. Raramente ele descia ao cativeiro pa-ra me castigar, porque precisava de quaseuma hora para abrir as muitas portas e fe-chaduras. Mas estava claro que ele teria depensar em outra coisa.

De fato, não demorou muito até que eleretirasse o interfone com o maravilhosoterceiro botão. Então desceu ao cativeirocarregando um rádio Siemens. Tirou oconteúdo da caixa e começou a ajustá-lo.Na época, eu não sabia nada sobre o se-questrador, e foi só muito depois que des-cobri que Wolfgang Priklopil fora enge-nheiro de telecomunicações na Siemens.No entanto, o fato de que ele sabia comoalarmes, rádios e outros sistemas elétricosfuncionavam não era novidade para mim.O rádio transformou-se em um terrívelinstrumento de tortura. Ele tinha um mi-crofone tão poderoso que podia transmi-tir para o andar de cima cada pequeno ruí-do que eu fizesse. O sequestrador podiasimplesmente ouvir minha "vida" sem avi-

sar e monitorar cada segundo para ver seeu estava seguindo suas ordens: se eu ti-nha desligado a televisão, se o rádio estavaligado, se eu ainda estava raspando a co-lher no prato, se eu ainda respirava.Suas perguntas me perseguiam até debai-xo do cobertor:

– Você não comeu a banana?– Se empanturrou de comida denovo?– Lavou o rosto?– Desligou a televisão?

Eu não podia nem mentir, porque não sa-bia há quanto tempo ele estava escutando.E, se tivesse feito algo "errado" ou deixas-se de responder imediatamente, ele gritavano alto-falante até que minha cabeça late-jasse. Ou então entrava no cativeiro sem

avisar e me punia, retirando meus objetospreciosos: os livros, os vídeos, a comida.Eu tinha de fornecer uma descrição arre-pendida de todos os meus erros, de cadamomento de minha vida no cativeiro, nãoimportava quão pequeno fosse. Como senão houvesse nada que eu pudesse escon-der dele.Outro modo de ele se certificar de que euestava sob total controle era deixar os fo-nes pendurados na parte de cima. Então,além do zumbido do ventilador, a estáti-ca alta, distorcida e insuportável penetravano cativeiro, ocupando cada centímetro eme forçando a ouvi-la em cada canto dopequeno cômodo no porão. Ele está aqui.Sempre. Ele respira no outro lado da Unha. Elepodia começar a gritar a qualquer minuto

e eu me assustaria, mesmo se antecipasseisso a cada segundo. Não havia como es-capar de sua voz.Hoje, não me surpreende que, naquelaépoca, eu acreditasse que ele podia me verno cativeiro. Afinal de contas, eu não sa-bia se ele instalara câmeras ou não. Eume sentia observada todos os segundosdo dia, mesmo durante o sono. Talvez eletivesse instalado uma câmera de imagenspor calor para que pudesse me monito-rar mesmo quando eu estivesse deitada naespreguiçadeira, na mais completa escuri-dão. Essa sensação me paralisava e eu difi-cilmente ousava me virar à noite, duranteo sono. De dia, olhava em volta dez vezesantes de usar o vaso sanitário. Eu não ti-nha ideia se ele me observava ou não - e

talvez outras pessoas também estivessemlá.Apavorada, comecei a procurar no cati-veiro inteiro orifícios ou cameras, semprecom medo de que ele visse o que eu estavafazendo e descesse imediatamente. Preen-chia cada mínima rachadura no revesti-mento de madeira com pasta de dente, atéter certeza de que não havia mais vãos.Ainda assim, a sensação de ser constante-mente observada permanecia.Acredito que poucas pessoas sejam capa-zes de avaliar a tortura e a agonia imensasque esse castigo terrível, prolongado du-rante anos, inflige às vítimas; e, ao tentarimaginá-las e ao refletir sobre o que vi emseus rostos e sobre o que -até onde sei -elas sentem, me convenço ainda mais de

que há um grau de terrível tolerância nissoque ninguém, salvo as vítimas, pode com-preender e que nenhum ser humano temo direito de infligir a seus semelhantes.Considero essa intervenção lenta e diá-ria nos mistérios da mente incomensura-velmente pior que qualquer tortura física,porque seus sinais e marcas apavorantesnão são evidentes à visão e ao tato, comoas cicatrizes o são na carne, porque suasferidas não estão na superfície, e ela ar-ranca poucos gritos que o ouvido humanopossa ouvir; por isso, tanto mais eu a de-nuncio.Em 1842, Charles Dickens escreveu essaspalavras sobre o confinamento solitário,que começava a ser posto em prática nosEstados Unidos e ainda hoje é usado. Meu

confinamento solitário - o tempo que pas-sei exclusivamente no quartinho, sem po-der sair daqueles cinco metros quadrados- durou mais de seis meses; meu cativeiro,3.096 dias.A sensação criada pelo tempo em que fi-quei na escuridão completa ou sob cons-tante luz artificial não era algo que eu pu-desse explicar na época. Quando leio osmuitos estudos atuais que tratam dos efei-tos do confinamento solitário e da priva-ção ou inibição dos sentidos, posso enten-der precisamente o que aconteceu comigonaquela ocasião.Um dos estudos documenta os seguintesefeitos do confinamento solitário:

Diminuição significativa da capacidade de funcio-namento do sistema nervosovegetativo:

– alterações significativas nos ní-veis hormonais;– diminuição do funcionamentodos órgãos;– ausência de menstruação semcausas fisiológicas, orgânicas, pormotivo de idade ou de gravidez(amenorréia secundária);– aumento da sensação de fome:cinorexia/apetite insaciável, hipe-rorexia, compulsão alimentar;– em contraposição, redução ouausência de sede;

• rubor severo e/ou sensação de frio nãoatribuída a alterações correspondentes natemperatura ambiente ou a doença (febre,calafrios etc).

Percepção e capacidade cognitiva significativamen-te reduzidas:

– transtornos severos na capacida-de de processar as percepções;– transtornos severos na capacida-de de sentir o próprio corpo;– dificuldades gerais severas deconcentração;– dificuldades severas - ou mesmoincapacidade completa - de ler ouregistrar o que foi lido,

compreendê-lo e colocá-lo em umcontexto significativo;– dificuldades severas - ou mesmoincapacidade completa - de falar ouprocessar pensamentos na formaescrita (agrafia, disgrafia);– dificuldades severas de articulare verbalizar pensamentos, demons-tradas por meio de problemas coma sintaxe, com a gramática e com aescolha de palavras, e que podemincluir afasia, afrasia e agnosia;– dificuldades severas ou incapaci-dade completa de acompanhar diá-logos (resultantes do funcionamen-to reduzido do córtex auditivo pri-mário dos lobos temporais, em de-corrência da falta de estímulo).

Limitações adicionais:

• levar a cabo conversas consigo mesmopara compensar a ausência de estímulosocial e auditivo;

– perda evidente de intensidade desensação (por exemplo, diante defamiliares e amigos);– sensação de euforia que posteri-ormente se transforma em humordepressivo.

Consequências a longo prazo para a saúde:

– dificuldade de contatos sociais,incluindo incapacidade deenvolver-se em relacionamentos

emocionalmente próximos ou ro-mânticos de longa duração;– depressão;– impacto negativo na autoestima;– retorno à situação de confina-mento em sonhos;– alterações da pressão arterial quenecessitam de tratamento;– doenças de pele que necessitamde tratamento;– incapacidade de recuperar habi-lidades cognitivas específicas (porexemplo, em matemática) que oprisioneiro dominava antes doconfinamento solitário.

Os prisioneiros desse estudo sentiam queos efeitos de viver em privação sensorialeram particularmente terríveis. A privaçãosensorial tem efeitos negativos sobre o cé-rebro e o sistema nervoso vegetativo etransforma pessoas autoconfiantes em de-pendentes e abertas à influência de quemquer que encontrem nessa fase de escuri-dão e isolamento. Isso também se aplica aadultos que escolham voluntariamente es-sa situação. Em janeiro de 2008, a BBCtransmitiu um programa chamado Isola-mento total, que me afetou profundamente:seis voluntários foram trancados na celade um bunker nuclear por quarenta e oitohoras. Sozinhos e privados de luz, eles vi-veram a mesma situação que eu, confron-tados pela mesma escuridão e solidão, em-

bora não pelo mesmo medo ou período.Apesar de o intervalo de tempo ter si-do menor, todos os seis informaram pos-teriormente que haviam perdido a noçãotemporal e experimentado alucinações evisões intensas. Uma mulher estava con-vencida de que sua roupa de cama estavamolhada. Três participantes tiveram alu-cinações auditivas e visuais e viram ser-pentes, ostras, automóveis e zebras. Qu-ando as quarenta e oito horas acabaram,todos haviam perdido a capacidade de re-alizar as tarefas mais simples. Nenhum de-les foi capaz de dizer corretamente umapalavra que começasse com a letra F. Umdeles perdeu 36% da memória. Quatro fo-ram muito mais facilmente manipuladosem comparação ao que poderiam ser an-

tes do isolamento. Eles acreditaram emtudo o que a primeira pessoa que encon-traram após o confinamento voluntáriolhes disse. E a única pessoa que encontreifoi o sequestrador.Atualmente, quando leio sobre esses es-tudos e experimentos, fico impressionadacomo consegui sobreviver na época. Demuitos modos, a situação é comparávelàquela que os adultos se impuseram parafins de estudo. Além do fato de que o pe-ríodo de isolamento foi muito mais longo,meu caso incluía mais um fator agravan-te: eu não fazia ideia do motivo pelo qualestava naquela situação. Enquanto a mis-são de prisioneiros políticos pode justifi-car sua prisão, e mesmo aqueles que fo-ram condenados injustamente sabem que

existe um sistema judiciário - com leis,instituições e procedimentos - por trás dareclusão, eu, em compensação, era inca-paz de discernir qualquer tipo de lógicaem meu cativeiro. Não havia nenhuma.O fato de ser só uma criança e de meadaptar à maior parte das circunstânciasadversas mais facilmente do que os adul-tos seriam capazes pode ter ajudado. Masisso também exigia de minha parte umaautodisciplina que, olhando para trás, pa-rece quase inumana. Durante a noite, eucostumava usar viagens imaginárias paranavegar na escuridão. De dia, me manti-nha firme no plano de tomar a vida emminhas mãos ao completar 18 anos. Esta-va firmemente resolvida a obter o conhe-cimento necessário para fazer isso, e pe-

dia por revistas e livros escolares. Apesardas circunstâncias, eu me agarrava teimo-samente à minha identidade e à existênciade minha família.Como o Dia das Mães se aproximava, fizum presente para minha mãe. Não tinhacola nem tesoura - o sequestrador nãome dava nada que eu pudesse usar parame machucar ou machucado. Então pe-guei meus lápis de cera e desenhei várioscorações vermelhos e grandes no papel,rasguei-os com cuidado e colei um emcima do outro com creme Nivea. E meimaginava claramente dando os coraçõesa minha mãe quando estivesse livre nova-mente. Então ela saberia que eu não a es-quecera no Dia das Mães, mesmo que nãopudesse estar com ela.

Enquanto isso, o sequestrador reagia demodo cada vez mais agressivo ao ver queeu passava o tempo fazendo coisas assime quando eu falava sobre meus pais, mi-nha casa e até minha escola.

– Seus pais não querem você. Elesnão a amam - repetia seguidamen-te. Eu me recusava a acreditar nelee dizia:– Não é verdade, meus pais meamam. Eles me disseram isso.

E eu sabia, no fundo do coração, que ti-nha razão. Mas meus pais estavam tão ina-cessíveis que era como se eu estivesse emoutro planeta. E, na verdade, apenas de-zoito quilômetros separavam meu cativei-ro do apartamento de minha mãe. Vinte ecinco minutos de carro, uma distância no

mundo real que, em meu mundo insano,era submetida a uma mudança dimensio-nal. Eu estava tão mais distante que ape-nas dezoito quilômetros, em um mundogovernado por um rei de copas despótico,a quem as pessoas de cartas de baralho te-miam sempre que sua voz ressoava.Quando ele estava comigo, controlava to-dos os meus gestos e todas as minhas ex-pressões faciais - eu era obrigada a ficar depé da maneira como ele ordenava e nun-ca podia olhar para ele diretamente. Emsua presença, ele gritava, eu devia manteros olhos baixos. Não podia falar a menosque fosse convidada a fazê-lo. Ele me for-çava a ser submissa em sua presença e exi-gia gratidão por cada pequena coisa quefazia para mim:

– Eu salvei você - repetia, e pareciaacreditar nisso.

Ele era minha ligação com o exterior - luz,comida, livros, tudo isso eu só podia ob-ter dele, e tudo isso ele podia me negar aqualquer momento. E fez isso mais tarde,quase me levando ao limite da subnutri-ção.Mesmo cada vez mais enfraquecida peloconstante monitoramento e isolamento,eu ainda não era capaz de sentir gratidãopor ele. Claro que ele não me matou nemme violentou, como eu temia e quase es-perava no início. Mas eu também sabiaque ele era um criminoso e que eu podiacondená-lo sempre que quisesse - enfim,eu sabia que não tinha de lhe ser grata.

Certo dia, ele mandou que eu o chamassede "mestre". No início, não levei a sério.Parecia ridículo demais que alguém qui-sesse ser chamado assim. Mas ele insistiu:- Você vai me chamar de "mestre"! Àquelaaltura, eu sabia que não podia desistir. Qu-em resiste sobrevive. Os mortos não po-dem mais se defender. Eu não queriamorrer - nem mesmo interiormente - e,por essa razão, tinha de desafiá-lo.Isso me lembrava uma passagem de Aliceno País das Maravilhas: "Bem! Eu já vi um gatosem sorriso, pensou Alice, mas um sorriso semgato! É a coisa mais curiosa que já vi na vida!"Diante de mim estava uma pessoa cujahumanidade se encolhia, cuja fachada mia,revelando relances de um homem fraco.Uma fraqueza no mundo real, que encon-

trava força ao oprimir uma criança peque-na. Uma imagem lamentável. Uma caretasorridente que exigia que eu o chamassede "mestre".Quando me lembro disso hoje, sei porque me recusei a chamá-lo assim na épo-ca. As crianças são especialistas em mani-pulação. Senti instintivamente que aquiloera importante para ele - e que eu tinhanas mãos a chave para exercer certo podersobre ele. Naquele momento, não penseinas possíveis consequências de minha re-cusa. A única coisa que me passou pela ca-beça foi que eu já havia sido bem-sucedi-da com tal comportamento antes.No conjunto habitacional Marco Polo, al-gumas vezes, eu levava os cães de guardados fregueses de minha mãe para passear.

Os donos me ensinaram a nunca deixar oscães com muita guia - eles teriam vanta-gem pelo fato de ter mais espaço para semover, portanto eu deveria manter a guiao mais próximo possível da coleira, paramostrar a eles que qualquer tentativa deescapar encontraria resistência. E não po-dia demonstrar medo. Se você seguisse es-sas instruções, os cães, mesmo nas mãosde uma criança como eu na época, seriammansos e obedientes.Agora, com Priklopil diante de mim, euestava decidida a não me deixar intimidarpor aquela situação assustadora e a mantera guia próxima à coleira.

– Eu não vou fazer isso - disse comvoz firme, encarando-o. Ele arregalouos olhos, surpreso, protestou e exigiu

seguidamente que o chamasse de"mestre". Depois, finalmente desistiu.

Essa experiência foi determinante paramim, ainda que isso não estivesse claro naépoca. Eu demonstrei força e o sequestra-dor recuou. O sorriso arrogante do gatodesapareceu. O que restou foi um homemque cometera uma má ação, de cujos hu-mores dependia minha vida, mas que, decerto modo, também dependia de mim.Nas semanas e nos meses seguintes, des-cobri que era mais fácil lidar com ele seeu o imaginasse como uma criança pobree indesejada. Em algum lugar, nas muitashistórias e filmes policiais feitos para a te-levisão que eu vira antes, concluíra que aspessoas eram más porque não haviam si-do amadas pelas mães e recebiam muito

pouco carinho em casa. Hoje, perceboque era um mecanismo de proteção ne-cessário à minha sobrevivência que eutentasse ver o sequestrador como umapessoa que não era necessariamente má,mas que se tornara assim no curso da vida.Isso não diminuía, de modo algum, o queele fizera, mas me ajudava a perdoá-lo, namedida em que imaginava que talvez eletivesse passado por experiências terríveis- pelas quais ainda hoje estivesse sofren-do - como órfão em uma casa. Repetia pa-ra mim mesma que ele certamente deviater também um lado bom, afinal me da-va o que eu pedia, comprava doces paramim, cuidava de mim. Acho que, em mi-nha completa dependência, esse era o úni-co modo de manter meu relacionamento

com ele, relacionamento esse tão neces-sário à minha sobrevivência. Se eu o ti-vesse apenas odiado, esse ódio teria meconsumido e me tirado a força de que euprecisava para sobreviver. Como, naque-le momento, pude captar um lampejo doser humano pequeno, desorientado e fra-co por trás da máscara do sequestrador,pude me aproximar dele.Então olhei em seus olhos e disse:

– Eu perdoo você, porque todo mun-do erra às vezes.

Foi um passo que pode parecer estranhoe doentio para muitas pessoas. Afinal decontas, o "erro" dele custara minha liber-dade. Mas era a única coisa a fazer. Eu ti-nha de conseguir conviver com aquele ho-mem, caso contrário não sobreviveria.

Ainda assim, nunca confiei nele; isso eraimpossível. Mas procurei ficar em bonstermos com ele. Eu o "consolei" pelo cri-me que cometera contra mim e apelei, aomesmo tempo, para sua consciência, pa-ra que ele lamentasse o que fizera e pelomenos me tratasse melhor. Ele retribuiusatisfazendo pequenos desejos meus: umarevista sobre cavalos, uma caneta, um li-vro novo. Algumas vezes, me dizia:

– Vou lhe dar o que você quiser! Eeu respondia:– Se você vai me dar o que eu qui-ser, por que não me deixa ir? Sintotanta falta de meus pais...

Mas a resposta era sempre a mesma, e eujá sabia de cor: meus pais não me amavame ele nunca me deixaria ir embora.

Depois de alguns meses no cativeiro, pedi,pela primeira vez, para ele me abraçar. Euprecisava do consolo de um toque, da sen-sação de calor humano. Foi difícil. Ele ti-nha problemas com a proximidade, como toque. De minha parte, senti imediata-mente um pânico cego e uma claustro-fobia quando ele me abraçou com força.Mas, depois de muitas tentativas, encon-tramos um jeito - nem tão próximo, nemtão apertado, de modo que eu suportasseo abraço e ainda conseguisse imaginar umtoque carinhoso. Depois de muitos meses,foi meu primeiro contato físico com outroser humano. Para uma criança de 10 anos,era um tempo infinitamente longo.

CAINDO NO VAZIOComo minha identidade foi roú-badaNo OUTONO DE 1998, mais de seis me-ses depois de meu sequestro, eu estavacompletamente desencorajada e triste. En-quanto meus colegas de classe iniciariamuma nova fase na vida depois do quartoano, eu estava presa ali, riscando os dias nocalendário. Tempo perdido. Tempo solitá-rio. Eu sentia tanta falta de meus pais que,

à noite, me enrolava como se fosse umapequena bola, desejando ouvir uma pala-vra carinhosa deles, desejando um abra-ço. Eu me sentia pequena e fraca - no li-mite de desistir. Quando eu era pequena,minha mãe me dava um banho quente debanheira sempre que eu me sentia triste edesanimada. Ela colocava na água sais debanho coloridos, que brilhavam como se-da, e bastante sabonete, e então eu mer-gulhava em montanhas de nuvens de es-puma cheirosa, que faziam baru-lhinhosagradáveis. Depois do banho, ela me em-brulhava em uma toalha grossa, me secavae, em seguida, me deitava na cama e mecobria. Eu sempre associava esse rituala uma profunda sensação de segurança.

Uma sensação da qual eu sentia falta haviamuito tempo.O sequestrador não conseguia lidar comminha depressão. Quando chegava no ca-tiveiro e me via apática, sentada na espre-guiçadeira,me fitava agitado. Na verdade, ele nuncase referia ao meu humor, mas tentava mealegrar com jogos, um pedaço extra defruta ou mais um episódio de um progra-ma de televisão no vídeo. Mas meu humorobscuro continuava. Como podia evitar?Afinal, eu não estava sofrendo por falta dediversão, mas pelo fato de ser a prisionei-ra inocente da fantasia de um homem queme sentenciara a uma vida inteira na pri-são.

Meu choque não diminuiu, até que umasensação ainda mais forte se impôs sobreo medo: era o ar entrando em meus pul-mões. Respirei fundo repetidamente, co-mo alguém que está morrendo de sede,chega a um oásis no último instante emergulha a cabeça na água que vai lhe sal-var a vida. Após meses no cativeiro, euesquecera completamente como era bomrespirar um ar que não fosse seco nemempoeirado e que não fosse soprado porum ventilador através de um pequeno bu-raco no porão. O zumbido do ventilador,que penetrava em meus ouvidos e eu nãopodia evitar, diminuiu por um instante;meus olhos examinaram cuidadosamenteos contornos desconhecidos e a tensãoinicial se dissipou.

Mas voltou imediatamente quando o se-questrador fez um gesto para que eu nãofizesse barulho. Então me levou até umapassagem e por mais quatro degraus paradentro da casa. Estava escuro, pois todasas persianas estavam abaixadas. A cozi-nha, um corredor, a sala de estar, o hallde entrada. Os cômodos pelos quais pas-sei, um após o outro, pareciam inverossí-meis, ridiculamente grandes e espaçosos.Desde o dia 2 de março, eu fora mantidaem um cômodo no qual a maior distânciamedia dois metros. Eu podia observar opequeno quarto de qualquer canto e ver oque me aguardava. Na casa, as dimensõesdos cômodos me engoliam como uma on-da gigante. Ali uma surpresa desagradável- ou algo ruim - poderia me espreitar atrás

de cada porta, atrás de cada janela. Afinal,eu não sabia se o sequestrador vivia sozi-nho ou quantas pessoas estavam envolvi-das no sequestro - e o que elas fariam co-migo se me vissem no "andar de cima".Ele falava dos "outros" com tantafrequência que eu esperava vê-los em cadacanto da casa. E parecia plausível que eletivesse uma família ali somente esperandopara me atormentar. Para mim, qualquercrime que se pudesse imaginar estava naesfera do possível.O sequestrador parecia agitado e nervoso.A caminho do banheiro, sussurrava repe-tidamente:

– Não se esqueça das janelas e do sis-tema de alarme. Faça o que eu man-dar. E, se gritar, eu a matarei.

Depois de ter visto a passagem para o ca-tiveiro, não me restaram dúvidas quandoele disse que a casa inteira estava armadacom explosivos.Enquanto eu era conduzida até o banhei-ro, mantendo os olhos baixos como elequeria, minha mente não parava de traba-lhar. Eu raciocinava ferozmente sobre co-mo poderia dominá-lo e escapar dali. Masnão conseguia pensar em nada. Nunca fuiuma criança covarde, mas sempre tive me-do. E ele era tão maior e mais rápido que,se eu tentasse fugir, com dois passos ele játeria me agarrado. E abrir as portas e ja-nelas obviamente seria suicídio. Eu conti-nuei acreditando nas medidas de seguran-ça ameaçadoras até o dia em que fugi.

No entanto, não eram apenas as restriçõesexternas, as paredes e portas que eu nãopodia atravessar nem a força física do se-questrador que me impediam de escapar.A base da prisão mental, que me dominoucada vez mais durante o cativeiro, já foraestabelecida. Eu me sentia ameaçada e ti-nha medo.

– Se você colaborar, nada vai lheacontecer.

O sequestrador me fizera acreditar nissodesde o início, me ameaçando com cas-tigos cruéis - incluindo a morte - se euoferecesse resistência. Eu era uma criançaacostumada a obedecer à autoridade dosadultos, sobretudo se a desobediência ti-vesse consequências. Ele era a autoridadepresente. Mesmo se a porta principal esti-

vesse completamente aberta naquele mo-mento, não sei se teria coragem de correr.Um gato que sai pela primeira vez perma-nece na soleira da porta, assustado e mi-ando, porque não sabe como lidar com asúbita liberdade. Atrás de mim, não estavauma casa acolhedora à qual eu podia re-tornar - mas um homem disposto a pros-seguir com o crime até a morte. Eu já es-tava tão profundamente confinada que ocativeiro também se encontrava dentro demim.O sequestrador preparou um banho de es-puma e ficou no banheiro enquanto eume despia e entrava na banheira.Incomodava-me que ele não me deixassesozinha. Por outro lado, já estava acostu-mada com ele me vendo nua por causa

dos banhos no cativeiro, por isso protesteitimidamente. Depois de mergulhar naágua quente e fechar os olhos, pela pri-meira vez em todos aqueles dias, esquecide tudo a meu redor. Montanhas de espu-ma branca se acumulavam sobre meu me-do, dançavam no cativeiro escuro, me ar-rastavam para fora da casa e me levavamaté o banheiro do conjunto habitacional -para os braços de minha mãe, que me es-perava com uma toalha grande e preaque-cida, pronta para me levar para a cama.Essa imagem maravilhosa estourou comouma bolha de sabão quando o sequestra-dor ordenou que eu me apressasse. A toa-lha era áspera e tinha um cheiro estranho.E ninguém me levou para cama - em vezdisso, tive de descer para o cativeiro es-

curo. Pude ouvi-lo trancando as portas demadeira atrás de mim, fechando a portade concreto e trancando-a. E imaginei queagora ele estivesse rastejando pela passa-gem estreita, arrastando o cofre até a aber-tura novamente, empurrando-o contra aparede e puxando a cômoda que ficava nafrente. Desejei não ter visto quão isoladaeu estava do mundo exterior. Deitada naespreguiçadeira, me enrolei e tentei recriara sensação do banho de espuma e da águaquente em minha pele. A sensação de es-tar em casa.Pouco tempo depois, no outono de 1998,o sequestrador novamente mostrou seulado gentil. Talvez fosse apenas por cons-ciência pesada; qualquer que fosse o moti-

vo, meu cativeiro deveria, de alguma ma-neira, parecer mais habitável.O trabalho era lento: cada pedaço de re-vestimento, cada lata de tinta tinha de sercarregado para baixo, um por um, e as es-tantes e armários só podiam ser montadosao chegar ao cativeiro.Pude escolher uma cor para as paredes, eme decidi por um papel de parede granu-lado que eu queria que fosse pintado derosa-bebê, igual ao do quarto em minhacasa. O nome da cor era Elba glanzend. De-pois ele usou a mesma cor para a sala deestar. Não podia haver sobras de uma corde tinta que não tivesse sido usada em al-gum lugar do andar de cima -ele explicou,sempre preparado para uma batida polici-al e ávido por afastar de si qualquer sus-

peita. Como se a polícia ainda estivesse in-teressada em mim, como se quisesse in-vestigar essas coisas, quando não exami-nou nem o carro usado no sequestro, ape-sar das duas pistas fornecidas.Minhas memórias dos primeiros dias e se-manas no cativeiro desapareceram poucoa pouco com as placas de gesso que eleusou para cobrir o revestimento de madei-ra. O desenho da cômoda, a árvore gene-alógica, aAve Maria. Mas o que eu conseguira agoraparecia melhor: uma parede que me faziasentir em casa. Quando finalmente ela foirevestida e pintada, meu pequeno cativei-ro fedia tanto com os produtos químicosque fiquei enjoada por vários dias. O pe-

queno ventilador não era suficiente paraamenizar os vapores da tinta fresca.Em seguida, montamos meu beliche. Pri-klopil trouxe para o cativeiro tábuas e ba-tentes de pinho de cor clara, que parafu-sou cuidadosamente. Quando a cama fi-cou pronta, ocupou quase toda a largurado cômodo, com uma altura de aproxima-damente um metro e meio. Pude decoraro teto em cima dela. Decidi pintar três co-rações vermelhos para minha mãe. Quan-do olhasse para eles, poderia pensar nela.A parte mais complicada foi a montagemda escada do beliche. Ela não passava pelaporta, por causa do ângulo que a passa-gem formava com o cativeiro. O seques-trador tentou várias vezes, até que desapa-receu e voltou com uma chave de fenda

elétrica, que usou para desmontar a pare-de de madeira que dividia o cativeiro daante-sala. Então ele arrastou a escada pa-ra dentro - e, naquele mesmo dia, instalounovamente a parede.Quando ele estava fixando as prateleiraspara os livros, testemunhei, pela primeiravez, um lado do sequestrador que me as-sustou profundamente. Até aquele mo-mento, ele gritara comigo algumas vezes,me xingara, humilhara e ameaçara com to-dos os tipos de castigos para me obrigara colaborar. Mas eu nunca o vira perder ocontrole.Ele estava parado na minha frente, segu-rando a furadeira e fixando uma das tá-buas na parede. Trabalhar com ele no ca-

tiveiro me fizera sentir mais confiante esimplesmente fiz uma pergunta:

– Por que você está parafusando aprateleira aí?

Por um instante, esquecera que podia falarsomente quando ele me desse permissão.Em uma fração de segundo, o sequestra-dor ficou furioso, começou a gritar comi-go e então jogou a pesada furadeira emminha direção. Consegui me abaixar antesque ela batesse na parede atrás de mim.Estava tão espantada que mal conseguiarespirar, fitando-o com os olhos arregala-dos.A súbita explosão de raiva não me atingiufisicamente. A furadeira nem sequer metocou, mas o incidente me deixou muitoimpressionada, porque me mostrava uma

nova dimensão no relacionamento com osequestrador - agora eu sabia que ele re-almente me machucaria se eu não obede-cesse. E isso me deixou ainda mais assus-tada e submissa.Na primeira noite depois da explosão deraiva do sequestrador, me deitei no col-chão fino do beliche novo. O zumbidodo ventilador parecia direcionado para osmeus ouvidos, abrindo caminho até o cé-rebro, e minha vontade era gritar de de-sespero. O ar frio do porão soprava di-retamente sobre meus pés. Se eu sempredormira de costas em casa, bem esticada,agora tinha de me dobrar como um feto eenrolar o cobertor bem apertado nos péspara evitar a desagradável corrente de ar.Mas a cama era muito mais macia que a

espreguiçadeira. Eu podia rolar de um la-do para o outro e tinha mais espaço. E ti-nha o novo papel de parede granulado.Estiquei o braço para tocá-lo e fechei osolhos. E pensei na mobília do quarto emcasa, nas bonecas e nos bichinhos de pe-lúcia também. A posição da janela, da por-ta, as cortinas, o cheiro. Se eu pudesseme lembrar de todos os detalhes, eu podiadormir com a mão na parede do cativeiro- e, no dia seguinte, acordar com a mãoencostada na parede do meu quarto, emcasa. Então minha mãe traria chá na cama,eu tiraria a mão do papel de parede e tudoestaria bem.Agora, todas as noites, eu dormia com amão encostada no papel de parede, com acerteza de que um dia realmente acorda-

ria de novo em meu quarto. Durante a fa-se inicial, acreditava nisso como se fosseuma fórmula mágica que se tornaria realem algum momento. Mais tarde, tocar nopapel de parede era uma promessa paramim mesma, que eu renovava diariamen-te. E a mantive: oito anos depois, quan-do visitei minha mãe pela primeira vezapós o cativeiro, deitei na cama em meuquarto, onde nada havia mudado, e fecheios olhos. Quando toquei a parede, todosos momentos retornaram, especialmenteo primeiro: a pequena Natascha, de ape-nas 10 anos, tentando desesperadamentenão perder a confiança em si mesma, pon-do a mão na parede do cativeiro pela pri-meira vez.

– Voltei - sussurrei. - Veja, funcionou!

Com o passar do ano, minha tristeza au-mentou. Quando risquei os primeiros diasde dezembro no calendário, me sentia tãotriste que nem o Krampus{3} de chocolateque o sequestrador comprou para mim nodia de são Nicolau me animou. O Natalse aproximava. E era insuportável pensarque passaria as festas sozinha no cativei-ro. Como para qualquer criança, o Natalera uma das festas mais importantes paramim. O cheiro dos biscoitos, a árvore en-feitada, a espera pelos presentes, a famíliareunida celebrando o feriado. Eu via essasimagens todas enquanto desembrulhava ochocolate. Eram imagens dos dias de in-fância, que tinham pouco em comum comos últimos Natais que passara com minhafamília. Meus sobrinhos haviam nos visi-

tado como sempre, mas já tinham rece-bido os presentes em casa. Eu era a úni-ca criança que abria embrulhos. Para a de-coração da árvore, minha mãe tinha umaqueda pelas últimas tendências, por issonossa árvore cintilava com enfeites e bo-las violeta. Debaixo dela havia uma pi-lha de presentes para mim. Enquanto euabria um de cada vez, os adultos se sen-tavam no sofá, ouvindo rádio ou vendouma revista sobre tatuagens. Em algunsNatais, eu ficara profundamente desapon-tada. Não tinha convencido ninguém acantar canções de Natal comigo, emboraeu me orgulhasse por conhecer de cor ascanções que ensaiávamos na escola.Só no dia seguinte, que passamos na casade minha avó, comecei a sentir o espírito

natalino. Todos nos reunimos na sala con-tígua e solenemente cantamos "Noite fe-liz". Então ouvi o aguardado sininho to-car. O menino Jesus estivera ali. Quandoabri a porta da sala, a árvore de Natal bri-lhava à luz das velas de cera de abelha, queexalavam um maravilhoso perfume. Mi-nha avó sempre tinha uma árvore de Na-tal rústica e tradicional, decorada com es-trelas amarelas e bolas de vidro delicadascomo bolhas de sabão.Era assim que eu imaginava o Natal - e eraassim que seria naquele ano também. Mascomo? Eu ia passar o feriado familiar maisimportante do ano sem minha família. Aideia me apavorava. Por outro lado, eu ti-nha de admitir que o Natal com a famí-lia era sempre uma decepção. E que, em

meu isolamento, eu romantizava o passa-do. Mas eu podia tentar fazer o Natal nocativeiro parecido com aqueles passadosna casa de minha avó, como eu me lem-brava. O sequestrador colaborou. Na épo-ca, fiquei infinitamente grata a ele por fa-zer um Natal parecido com o da realida-de. Hoje acho que ele não fez isso pormim, mas por sua própria compulsão. Pa-ra ele, celebrar os feriados também eramuito importante - eles ofereciam estrutu-ra, seguiam certas regras, e ele era incapazde viver sem regras e estruturas, as quaiscumpria com um rigor cômico. No entan-to, ele não tinha que atender a meus pedi-dos de Natal. O fato de que os atendessetalvez tivesse relação com o fato de ter si-do criado para satisfazer as expectativas e

se adequar à imagem que os outros que-riam ter dele. Hoje sei que ele falhou, so-bretudo na relação com o pai, justamentenessas questões. A aprovação que ele que-ria insistentemente receber do pai obvia-mente lhe fora negada durante longos pe-ríodos. Em relação a mim, essa atitude vi-nha à tona apenas em algumas fases, mas,quando ocorria, era particularmente ridí-culo. Afinal de contas, fora ele que me se-questrara e me trancara no porão. Não éum cenário no qual você leva em contaas expectativas de outra pessoa - a vítima.Era como se ele estivesse estrangulandoalguém e, ao mesmo tempo, perguntassese a vítima estava deitada confortavelmen-te e se a pressão exercida estava agradável.No entanto, na época, eu não queria ver

isso. Achava maravilhoso que o sequestra-dor se preocupasse tanto comigo.Eu sabia que não poderia ter uma árvorede Natal de verdade, por isso pedi umade plástico. Nós dois carregamos a caixae pusemos a árvore em um dos pequenosarmários. Ganhei um par de anjos e al-guns doces e passei um bom tempo deco-rando a árvore.Na véspera de Natal, assisti à televisão so-zinha até a luz apagar, tentando desespe-radamente não pensar em minha famíliaem casa. O sequestrador estava na casa damãe - ou ela o estava visitando -, tal comoaconteceria nos Natais subseqüentes. Maseu não sabia disso na época. Somente nodia seguinte ele apareceu para celebrar co-migo. Fiquei surpresa, porque ele me deu

tudo o que eu pedira: um pequeno com-putador educativo, como o que ganharade meus pais no ano anterior. Não era tãobom quanto o primeiro, mas eu estava ra-diante pelo fato de poder estudar sem ir àescola. Afinal, eu não queria ficar para trásnos estudos caso conseguisse fugir. Tam-bém ganhei um bloco de papel para dese-nhar e uma caixa de tinta guache. Era igualà que meu pai me dera uma vez, com vintee quatro cores - incluindo dourado e pra-ta -, como se o sequestrador me trouxessede volta uma parte de minha vida. O ter-ceiro embrulho continha um conjunto pa-ra pintar de acordo com os números, comtinta a óleo. Eu também tivera um dessesem casa, e pensava nas muitas horas deatividade que a pintura meticulosa prome-

tia. A única coisa que o sequestrador nãome deu foi terebintina. Provavelmente te-mia vapores nocivos no cativeiro.Nos dias que se seguiram ao Natal, eume ocupei com a pintura e o computadoreducativo. Tentava ao máximo ver o ladopositivo de minha situação e combater asaudade da família, lembrando os aspec-tos negativos de nossos últimos Nataisjuntos. Tentava me persuadir de que erainteressante experimentar o feriado damaneira dos adultos. E me sentia gratapor pelo menos ter uma celebração deNatal.Passei sozinha, no cativeiro completa-mente escuro, minha primeira véspera deAno Novo. Deitei no beliche e me esfor-cei para ouvir os fogos de artifício que ex-

plodiriam à meia-noite no outro mundo.Mas ouvia apenas o monótono tique-ta-que do despertador e o zumbido do ven-tilador. Soube depois que o sequestradorsempre passava a véspera de Ano Novocom seu amigo, Holzapfel. Ele se prepara-va meticulosamente, comprando os maio-res e mais caros fogos de artifício. Certavez - eu já estava com 14 ou 15 anos -,ele me permitiu observar de dentro da ca-sa enquanto explodia um foguete no iní-cio da noite. Aos 16 anos, ele me deixouver no jardim, do lado de fora da casa, umfoguete formar uma chuva de bolas prate-adas no céu. Mas, nessa época, o cativei-ro já se tornara um componente fixo domeu eu, por isso o sequestrador se arrisca-va a me levar para o jardim. Ele sabia que

minha prisão interior tinha muros tão al-tos que eu não aproveitaria a oportunida-de para escapar.O ano em que eu fora sequestrada haviaacabado e eu ainda era mantida em cati-veiro. O mundo exterior afastava-se ain-da mais, e minhas lembranças da vida an-tiga tornavam-se obscuras e irreais. Eradifícil acreditar que um ano antes eu erauma menina da escola pública, que brinca-va durante à tarde, passeava com os pais etinha uma vida normal.Tentava levar da melhor maneira a vidaque fora forçada a aceitar. Não era fácil. Ocontrole do sequestrador continuava ab-soluto. Sua voz no interfone me deixavairritada e nervosa. No minúsculo cativei-ro, sentia-me como se estivesse milhas de-

baixo da terra e, ao mesmo tempo, vivesseem uma espécie de aquário, onde cadamovimento meu era observado.Minhas visitas ao andar de cima ocorriamcom maior regularidade agora: a cada duassemanas, eu podia tomar banho no andarde cima e, algumas vezes, ele me deixavacomer e assistir à televisão à noite. Eu fi-cava satisfeita com cada minuto que podiapassar fora do cativeiro, mas ainda sentiamedo na casa. Agora sabia que ele estavasozinho e que não havia estranhos espe-rando para me atacar. Mas meu nervosis-mo não passava. Como ele era paranóico,fazia as coisas de modo que era impossí-vel relaxar mesmo por um instante. Quan-do estava no andar de cima, sentia-me co-mo se estivesse acorrentada ao sequestra-

dor por uma corrente invisível. Era força-da a ficar sempre de pé e andar à mesmadistância dele - um metro, nem mais, nemmenos -, caso contrário ele teria um ata-que de raiva. Ele me obrigava a manter acabeça baixa e a nunca levantar os olhos.Depois de horas e dias infinitos que eupassara no cativeiro completamente isola-da, estava muito suscetível a suas ordens emanipulações. A ausência de luz e de con-tato humano me enfraqueceu a tal pontoque agora eu só era capaz de lhe opor umapequena resistência. Nunca deixei de re-sistir completamente, o que me ajudava aimpor os limites que eu considerava indis-pensáveis. Mas raramente pensava em es-capar. Parecia que a coleira invisível queele me pusera no andar de cima se tornava

cada vez mais real - como se, de fato, esti-vesse acorrentada a ele e fosse fisicamen-te incapaz de me aproximar ou me afastar.Ele incutira em mim o medo do mundoexterior, onde ninguém me amava, nin-guém sentia minha falta e ninguém procu-rava por mim - tão profundamente que setornara quase maior que meu desejo de li-berdade.Quando estava no cativeiro, tentava memanter sempre ocupada. Nos longos finsde semana que passava sozinha, continua-va a limpar e a arrumar o espaço durantehoras, até que tudo estivesse limpo e comum cheiro agradável. Também pintavamuito e usava cada pedacinho de papel domeu bloco para os desenhos: minha mãede saia comprida, meu pai com a barri-

ga grande e o bigode, e eu sorrindo entreeles. Desenhava o sol amarelo e brilhante,que não via fazia muitos meses, casas comchaminés por onde saía fumaça, flores co-loridas e crianças brincando - mundos defantasia que, durante horas, me permitiamesquecer como era minha realidade. Umdia, o sequestrador me trouxe um livro deartesanato. Era direcionado a crianças dapré-escola e me deixou mais triste do quealegre. Brincar com aviõezinhos de papelera praticamente impossível em um cô-modo de apenas cinco metros quadrados.Um presente melhor foi a Barbie que eleme deu um pouco depois, com um peque-no kit de costura, desses que às vezes seveem em hotéis. E eu agradecia pela com-panhia daquela criatura de pernas longas

feita de plástico. Era uma Barbie amazo-na, com botas de montaria, calças brancas,um casaco vermelho e um chicote. Pediao se- questrador, durante vários dias, queme trouxesse alguns pedaços de pano. Àsvezes, levava muito tempo para ele aten-der aos meus pedidos. E então, só fazia is-so se eu seguisse suas ordens com preci-são. Se eu chorasse, por exemplo, ele ti-rava de mim tudo aquilo de que eu maisgostava, como os livros e vídeos, tão ne-cessários à minha sobrevivência. Para ob-ter algo que eu queria, tinha de lhe mos-trar gratidão e elogiá-lo por algo que fizera- inclusive por ter me trancado.Finalmente consegui convencê-lo, e eleme trouxe uma camiseta velha - uma polobranca feita de jérsei liso e macio, com

uma delicada estampa azul. Era a camisetaque ele vestia no dia do sequestro. Não seise ele se esquecera disso ou queria se livrardela. Usei o tecido para fazer um vestidode festa, com alças finas feitas de linha, eum elegante casaco assimétrico para mi-nha Barbie. Com um barbante que encon-trara entre as coisas da escola, transformeiuma das mangas da camiseta em um esto-jo de óculos. Depois persuadi o sequestra-dor a me deixar ficar com um guardana-po de pano velho, que manchara de azulna máquina de lavar e que ele usava co-mo pano de limpeza. Mais tarde, fiz comele um vestido de baile para a Barbie, comuma fina tira de elástico na cintura.Depois fiz porta-pratos de arame e obrasde arte em miniatura de dobradura. O se-

questrador comprou agulhas de artesana-to para que eu pudesse praticar crochée tricô. No mundo exterior, eu nuncaaprendera a fazê-los direito na escola pú-blica. Quando eu errava, as pessoas logoperdiam a paciência. Agora eu tinha umtempo infinito, ninguém me corrigia e eusempre podia recomeçar, até que meuspequenos projetos de artesanato manualestivessem terminados. Esses projetos setornaram minha tábua de salvação psico-lógica, pois impediam que eu enlouque-cesse com a inatividade solitária que eraforçada a suportar. Ao mesmo tempo, eupodia pensar em meus pais enquanto faziapequenos presentes para eles - para o diaem que estivesse livre novamente.

Claro que eu não podia dizer ao seques-trador que estava fazendo algo para meuspais. Escondia os desenhos e falava commenos frequência deles, porque ele reagia,cada vez mais indignado, quando eu men-cionava a vida do lado de fora, antes docativeiro.

– Seus pais não amam você. Eles nãose importam, senão já teriam pago oresgate - dissera ele no início, aborre-cido sempre que eu dizia que estavacom saudade deles.

Então, na primavera de 1999, veio a proi-bição: eu não podia mais mencionar meuspais nem falar sobre nada que vivera antesdo cativeiro. Minha mãe, meu pai, minhasirmãs e sobrinhos, minha última viagempara esquiar, meu décimo aniversário, a

casa de férias do meu pai, meus gatos.Nosso apartamento, meus hábitos, a lojada minha mãe. Minha professora, meusamigos da escola, meu quarto. Tudo o queexistira antes estava proibido.Proibir o passado tornara-se umcomponente-padrão de suas visitas ao ca-tiveiro. Sempre que mencionava meuspais, ele ficava fora de si. Quando eu cho-rava, ele desligava a luz e me deixava namais completa escuridão, até eu me tornar"boazinha" novamente. Ser "boazinha"significava ser grata a ele por ter me "res-gatado" da vida antiga.

– Eu a salvei e agora você é minha- ele dizia com frequência. Ou en-tão:

– Você não tem mais família. Ago-ra eu sou sua família: seu pai, suamãe, sua avó e suas irmãs. Sou tudopara você. Você não tem mais pas-sado - insistia. - Você está muitomelhor comigo. Sorte sua que eu atrouxe para cá e que tomo conta devocê. Você é minha agora. Eu a cri-ei.

Pigmalião, com ódio da vida lasciva, abo-minava todas as mulheres e desprezava oserros com que a natureza lhes presenteara.Por isso, decidiu viver sozinho e evitou secasar, satisfeito por não querer uma con-sorte. Temendo, porém, a preguiça, mãede todos os males, na escultura exerciaseu feliz engenho e entalhou em mármore

uma tal mulher, tão bela como não haviaoutra (Ovídio, Metamorfoses).Hoje acredito que, ao cometer um crimeterrível, Wolfgang Priklopil queria apenascriar seu próprio mundinho perfeito, comuma pessoa que estivesse ali só para ele.Provavelmente ele nunca teria podido fa-zer isso do jeito normal e decidira, assim,forçar e modelar alguém para isso. Em es-sência, ele não queria nada mais do queas outras pessoas: amor, aprovação, calor.Queria alguém para quem ele fosse a pes-soa mais importante do mundo. Ele pare-cia não ter visto outro modo de conseguirisso senão sequestrando uma menina tími-da de 10 anos e a afastando do mundo ex-terior, até que ela estivesse tão psicologi-camente alheia que ele pudesse "recriá-la".

Quando fiz 11 anos, ele tirou de mim mi-nha história e minha identidade. Eu nãodevia ser mais que uma folha de papel embranco sobre a qual ele pudesse escreversuas visões doentias. Ele negava até meureflexo no espelho. Se eu não podia mever refletida em minhas interações sociaiscom outras pessoas além do sequestrador,queria ao menos ser capaz de ver meu ros-to, para não me perder de mim comple-tamente. Mas repetidamente ele recusavameu pedido por um espelho pequeno. So-mente anos depois ganhei um armário debanheiro com espelho. Quando me vi ne-le, não consegui mais identificar os traçosinfantis que eu tivera, e sim um rosto des-conhecido.

Então ele conseguiu me recriar? Sempreque me pergunto isso, não consigo res-ponder de modo inequívoco. Por um la-do, ele escolhera a pessoa errada. Eu con-tinuava resistindo às tentativas de apagarminha identidade e de me transformar emsua criatura. Ele nunca me dobrou.Por outro, o esforço dele para me trans-formar em uma nova pessoa caiu em ter-reno fértil. Antes do sequestro, eu estavacansada da vida e tão insatisfeita comigomesma que decidira mudar alguma coisa.E, minutos antes que ele me enfiasse nacaminhonete, eu imaginara claramenteque me jogaria na frente de um carro emmovimento - porque odiava a vida que eraforçada a viver.

Claro que não poder ter minha própriahistória me deixava infinitamente triste.Eu sentia que era uma grande injustiça elenão me permitir mais ser eu mesma oufalar sobre a dor profunda que a perdade meus pais causava. Mas o que restaraefetivamente de minha própria história?Agora eram apenas memórias, que poucotinham a ver com o mundo real que conti-nuava a girar sem mim. A classe da escolapública não existia mais; meus sobrinhospequenos haviam crescido e talvez nemme reconhecessem, mesmo se eu apare-cesse diante deles. E talvez meus pais re-almente estivessem aliviados por ter fica-do livres das longas e cansativas discus-sões a meu respeito. Ao me isolar de tu-do por tanto tempo, o sequestrador criara

a base perfeita para permitir que eu afas-tasse o passado de mim. Conscientemen-te, e diante dele, eu me mantinha firmena opinião de que o sequestro era um cri-me grave, mas suas ordens de considerá-lo meu salvador, repetidas constantemen-te, se aprofundavam cada vez mais emmeu subconsciente. No fundo, era maisfácil considerá-lo meu salvador e não umapessoa má. Em uma tentativa desesperadade me forçar a ver os aspectos positivosdo cativeiro - e não deixá-lo me destruir -,dizia para mim mesma:

– Pelo menos, não pode ficar pior.Diferentemente do que ocorrera na maiorparte dos casos que vira na televisão, atéaquele momento ele não me violentaranem me assassinara.

O roubo de minha identidade me permi-tiu, porém, uma grande liberdade. Hoje,quando penso no que sentia, isso pare-ce incompreensível e paradoxal, tendo emconta o fato de que eu fora completa-mente destituída de minha liberdade. Mas,na época, pela primeira vez na vida, eume sentia livre de opiniões preconcebidas.Havia muito deixara de ser uma pequenaengrenagem em uma família em que ospapéis já haviam sido atribuídos - e naqual me conferiram o papel de gordinhadesajeitada. Uma família na qual eu metornara um peão para os adultos, cujas de-cisões frequentemente eu não compreen-dia.Embora eu estivesse em meio a um sis-tema de total opressão e tivesse perdido

a liberdade de movimento, com uma úni-ca pessoa controlando cada detalhe de mi-nha vida, essa forma de opressão e mani-pulação era direta e clara. O sequestradornão era o tipo de pessoa que agia com su-tileza - ele queria exercer o poder de mo-do aberto e direto. À sombra de seu poder- que ditava como eu devia fazer as coisas-, eu me sentia paradoxalmente capaz deser eu mesma, pela primeira vez na vida.Um sinal disso era o fato de que, desde osequestro, eu nunca mais molhara a cama.Embora estivesse submetida a um fardodesumano, um certo tipo de estresse pare-cia ter sido retirado de mim na época. Setivesse de resumir em uma frase, diria que,ao desistir de minha história e me subme-ter à vontade do sequestrador, eu me sen-

tia querida - pela primeira vez em muitotempo.No fim do outono de 1999, o "esvazia-mento" de minha identidade se comple-tou. O sequestrador me disse para esco-lher um novo nome:

– Você não é mais Natascha. Você éminha agora.

Eu me recusei por muito tempo a isso,em parte porque achava que os nomesnão eram importantes. Havia apenas "eu"e "ele", e "você" já era suficiente para sa-ber de quem se tratava. Mas o nome "Na-tascha" despertava tanta raiva e desagradonele que acabei concordando. Além dis-so, não era verdade que eu sempre detes-tara esse nome? Quando minha mãe merepreendia, ele tinha o som feito das or-

dens e expectativas não realizadas, que eununca satisfazia. Desde pequena, semprequisera um daqueles nomes que as outrasmeninas tinham: Stefanie, Jasmin, Sabine.Qualquer coisa, menos Natascha. O no-me "Natascha" continha tudo de que eunão gostava em minha vida antiga. Tudode que eu queria me livrar, tudo o que euera forçada a deixar para trás.O sequestrador sugeriu "Maria" comomeu novo nome, porque suas duas avósse chamavam Maria. Embora não gostas-se da sugestão, concordei, porque era meunome do meio. No entanto, ele não estavasatisfeito, porque a questão era que euprecisava ter um nome completamentenovo. Ele me forçou a sugerir algo dife-rente. Naquele instante.

Folheei o calendário, que trazia o nomedos santos de cada dia e, em 2 de dezem-bro, encontrei uma possibilidade imedi-atamente depois de Natascha: "Bibiana".Durante os sete anos seguintes, Bibianafoi minha nova identidade, ainda que o se-questrador nunca tenha conseguido apa-gar completamente a antiga.O sequestrador tirou de mim a família, avida, a liberdade e a antiga identidade. Aprisão física do cativeiro no subterrâneo,por trás das muitas portas pesadas, poucoa pouco fora complementada pela prisãopsicológica, cujos muros eram ainda maisaltos. E comecei a agradecer ao carcereiroque a construíra. Porque, no fim do ano,ele realizou um de meus maiores desejos:um instante fora de casa, ao ar livre.

Era uma noite fria e clara de dezembro.Ele já havia me comunicado as regras parao dia "do lado de fora":

– Se você gritar, eu te mato; se vocêcorrer, eu te mato; mato qualquer umque a ouça ou veja, se você for burrade tentar chamar atenção.

Não bastava ameaçar me matar. Ele tam-bém me impunha a responsabilidade so-bre qualquer pessoa a quem eu pudessepedir ajuda. Acreditei em seus planos ho-micidas sem pensar duas vezes. Mesmohoje, acredito que ele seria capaz de matarqualquer vizinho inocente que acidental-mente prestasse atenção em mim. Umapessoa que faz um esforço tão grande pa-ra manter um prisioneiro em um porãonão hesitaria em matar.

Quando ele agarrou meu braço e abriua porta para o jardim, fui invadida poruma sensação de profunda felicidade. Oar gelado gentilmente acariciou meu rostoe meus braços, o cheiro de podridão e oisolamento desapareceram, e minha cabe-ça parecia mais leve. Pela primeira vez emquase dois anos, eu sentia o chão maciosob meus pés. Cada folha de grama queabria passagem sob a sola dos sapatos meparecia uma criatura singular e preciosa.Ergui a cabeça e olhei o céu. O espaço in-finito que se abria diante de mim me dei-xou sem fôlego. A lua estava baixa no ho-rizonte, e algumas estrelas piscavam sobremim. Eu estava do lado de fora da casa.Pela primeira vez desde que fora jogadaem uma caminhonete no dia 2 de março

de 1998. Inclinei a cabeça e mal pude con-ter um soluço.O sequestrador me levou através do jar-dim até a cerca viva. Chegando lá, estiqueia mão, tocando com cuidado as folhas es-curas de alfena. Elas cheiravam bem e bri-lhavam à luz da lua. Parecia um milagretocar algo vivo. Arranquei algumas folhase guardei-as no bolso. Eram uma lem-brança da vida no mundo exterior.Depois de um breve momento, ele me gi-rou sem dizer nada e voltamos para casa.Pela primeira vez, eu a via à luz da lua pe-lo lado de tora: era uma casa amarela, comum telhado inclinado e duas chaminés. Asmolduras das janelas eram brancas. O gra-mado em que pisávamos parecia curto de-mais e bem conservado. Subitamente fui

invadida por dúvidas. Eu via grama, árvo-res, folhas, uma parte do céu, uma casa,um jardim. Mas era aquele o mundo deque me lembrava? Tudo parecia superfici-al e artificial demais. A grama era verde, eo céu, grande, mas dava para perceber queeram cenários! Ele acrescentara os arbus-tos e a casa para me enganar. Eu estavaem uma espécie de produção teatral, ondeeram filmadas as cenas externas de umasérie televisiva. Não havia vizinhos, nemcidade, nem família a apenas vinte e cin-co minutos de distância de carro. Em vezdisso, só havia cúmplices do sequestrador,que fingiam que eu estava do lado de fo-ra enquanto me observavam em grandesmonitores e riam de minha ingenuidade.Apertei firme as folhas no bolso, como se

elas pudessem provar algo: que aquilo erareal, que eu era real. Mas não senti nada.Apenas um grande vazio que se sobrepu-nha sem dó, como uma mão fria.

MAUS-TRATOS E FOMEA lúta diaú ria para sobreviverMINHA INFÂNCIA ACABOU aos 10 anos deidade, quando fui sequestrada. Deixei deser criança no cativeiro, no ano de 2000.Uma manhã, acordei com dor no abdômene vi manchas de sangue no pijama. imedi-atamente soube o que estava acontecendo.Havia anos esperava pela menstruação. Eusabia a marca dos absorventes que queria,por causa de um comercial que o seques-trador gravara depois de alguns seriados de

televisão. Quando ele veio ao cativeiro,pedi sem rodeios que comprasse algunspacotes.O sequestrador ficou totalmente confusoao ser confrontado com esse novo fato, esua paranóia atingiu um nível inédito. Atéentão, ele recolhia cuidadosamente cadapedaço de algodão, limpava freneticamen-te cada impressão digital para eliminarqualquer vestígio meu, e agora se tornarapraticamente histérico para garantir queeu não me sentasse em nenhum local dacasa. Para isso, colocava uma pilha de jor-nais primeiro, em uma tentativa absurdade evitar que a menor gota de sangue su-jasse a casa. Ele ainda se preocupava dia-riamente que a polícia aparecesse e exami-nasse a casa atrás de vestígios de DNA.

O comportamento dele me incomodava -era como se eu fosse intocável. Foi umaépoca confusa, em que eu precisava ur-gentemente conversar com minha mãe oucom uma de minhas irmãs mais velhas so-bre as mudanças físicas que subitamen-te tinha de enfrentar. Mas a única pessoacom quem eu podia conversar era um ho-mem, totalmente despreparado para esseassunto. Que me tratava como se eu fossesuja e repugnante. E que obviamente nun-ca vivera com uma mulher.Seu comportamento em relação a mim so-freu uma clara mudança quando entrei napuberdade. Enquanto eu era criança, era"permitido" ficar no cativeiro e cuidar deminhas coisas, dentro do estreito limite desuas regras. Agora que virara mulher, ti-

nha de estar a seu serviço e executar tare-fas na casa sob sua estrita supervisão.No andar de cima da casa, eu me sentiacomo se estivesse em um aquário, comoum peixe em um recipiente pequeno de-mais, que olha com saudade para o mun-do exterior, mas que não pula para foraenquanto puder sobreviver na prisão. Por-que cruzar a linha significaria morte certa.A linha que demarcava onde o exteriorcomeçava era tão absoluta que, para mim,parecia insuperável. Como se a casa esti-vesse em uma dimensão diferente em re-lação ao mundo que ficava fora de seusmuros amarelos. Como se a casa, o jardime a garagem com o cativeiro se localizas-sem em uma matriz diferente. Às vezes,um toque de primavera chegava por uma

janela entreaberta. De tempos em tempos,eu podia ouvir um carro passando pela ruatranquila. Fora isso, não se podia perce-ber mais nada do mundo exterior. As per-sianas estavam sempre abaixadas, e a ca-sa inteira era banhada por uma luz fraca.Os sistemas de alarme nas janelas estavamativados - pelo menos, eu achava que es-tavam. Havia momentos em que eu pen-sava em fugir. Mas não tinha mais planosconcretos. O peixe não pula para fora daborda do aquário de vidro se a morte esti-ver esperando por ele.Mas eu continuava desejando a liberdade.Agora eu era constantemente observada.Não podia dar um único passo sem queele ordenasse antes. Tinha de ficar em pé,sentar ou andar sempre que o sequestra-

dor quisesse. Tinha de pedir permissãoquando queria me levantar ou me sentar,antes de virar a cabeça ou esticar o braço.Ele me dizia em que direção olhar e meacompanhava até o banheiro. Não sei oque era pior - o tempo que passava sozi-nha no cativeiro ou a época em que nãoficava sozinha nem por um segundo.A vigilância permanente reforçava a sen-sação de ter entrado em um experimentoabsurdo. A atmosfera da casa intensificavaessa impressão. Por trás da fachada bur-guesa, ela parecia estar fora do tempo edo espaço. Sem vida, desabitada como ocenário de um filme sombrio. Do ladode fora, ajustava-se perfeitamente ao am-biente: convencional, extraordinariamentebem conservada, com arbustos grossos ao

redor do grande jardim, para manter os vi-zinhos cuidadosamente distantes. Olharescuriosos não eram bem-vindos ali.Strasshof é um local sem identidade nemhistória, sem um centro e sem característi-cas próprias, como seria de esperar de umlugar com uma população de cerca de no-ve mil habitantes. Após os limites da cida-de, as casas inclinam-se em direção à pla-nície de Marchfeld, ladeando uma passa-gem e a linha ferroviária, interrompida devez em quando por áreas comerciais co-muns aos subúrbios pobres de qualquercidade grande. Em particular o nomecompleto da cidade, Strasshof an derNordbahn, ou Strasshof sobre a LinhaFerroviária do Norte, é uma pista de queessa é uma comunidade que vive da pro-

ximidade com Viena. As pessoas vão em-bora de lá, passam por lá em viagens, masnão vão para lá sem uma boa razão. Asatrações do local incluem um "monumen-to à locomotiva" e um museu ferroviáriochamado Heizhaus. Há um século, viviamali menos de cinquenta pessoas; hoje seushabitantes trabalham em Viena e retor-nam para as casas suburbanas, alinhadasmonotonamente, apenas para dormir.Nos fins de semana, as máquinas de cor-tar grama fazem seu zumbido caracterís-tico, os carros são polidos e os cômodosaconchegantes permanecem ocultos portrás de cortinas fechadas e persianas, emescuridão parcial. Ali, o que conta é a fa-chada, e não o que você pode descobrir

por trás dela. O local perfeito para uma vi-da dupla. O local perfeito para um crime.A casa fora construída como um edifíciotípico do início da década de 1970. Noprimeiro andar, havia um longo corredorem que uma escada conduzia ao andar decima. Do lado esquerdo, o banheiro; dolado direito, a sala de estar e, no fim docorredor, a cozinha. Era um cômodo re-tangular com um balcão de cozinha ame-ricana do lado esquerdo e armários comportas rústicas de madeira escura enverni-zada. O piso tinha uma coloração laranja-amarronzada e desenhos de flores. Umamesa, quatro cadeiras com forro de teci-do, ganchos com desenhos de flores noestilo Prilblume sobre a parede de azulejosbranca e cinza e flores decorativas verde-

escuras na pia. A parte mais impressio-nante da cozinha era o mural de papelque cobria a parede do lado direito: umafloresta verde, com troncos delgadosalongando-se para cima, como se tentas-sem fugir da atmosfera opressiva do cô-modo. Quando olhei para ele pela pri-meira vez, me pareceu absurdo que al-guém que podia estar em comunhão coma natureza a qualquer momento, que po-dia sair sempre que quisesse, se cercassede natureza morta, artificial, enquanto eutentava desesperadamente trazer vida aoquarto no porão, mesmo que fossem ape-nas algumas folhas arrancadas.Não sei quantas vezes esfreguei e poli ochão e os azulejos da cozinha, até que bri-lhassem, impecáveis. Nem o menor ris-

co, nem a menor migalha podiam estragaras superfícies lisas. E, quando eu pensavaque havia acabado, tinha de deitar no chãopara verificar os cantos. O sequestradorficava sempre atrás de mim, dando or-dens. Nunca estava suficientemente limpopara ele. Nem sei quantas vezes ele pegouo pano de minha mão e me mostrou co-mo limpar "certo". Ele ficava furiosoquando eu sujava uma bela e delicada su-perfície com uma impressão digital oleosa,destruindo a aparência de algo puro e in-tocável.Para mim, a pior coisa era limpar a sala deestar. Era um cômodo grande que dissipa-va uma penumbra que não vinha apenasdas persianas fechadas, mas também doteto decorado, escuro, quase preto, do re-

vestimento de madeira escura, do sofá decouro verde e do carpete marrom-claro.Havia uma estante marrom-escura, con-tendo obras como O processo, de Kafka,e Nur Puppen haben keine Tranen [Apenasbonecas não choram], de Peter Kreuder.Uma lareira sem uso, um atiçador e, noconsole, um suporte de vela de ferro for-jado, um relógio, um capacete em minia-tura de uma armadura medieval, além dedois retratos medievais na parede acimada lareira.Sempre que eu passava algum tempo na-quele cômodo, tinha a impressão de quea penumbra penetraria através das roupasem cada poro de meu corpo. A sala de es-tar parecia o reflexo perfeito do "outro"lado do sequestrador. Conservador, con-

formista e bem ajustado na superfície, malcobrindo a camada escura abaixo.Hoje sei que Wolfgang Priklopil pratica-mente não modificou a casa dos paisconstruída na década de 1970. Ele queriareformar de acordo com suas especifica-ções apenas o andar de cima, que tinhatrês quartos e o sótão. Uma janela deágua-furtada permitiria a entrada de maisluz, e o sótão empoeirado com as vigasde madeira ao longo do telhado inclinadoseria equipado com placas de reboco etransformado em sala de estar. Para mim,isso significava que uma nova fase do ca-tiveiro iria começar.Nos meses e anos seguintes, por causa dareforma, eu passava a maior parte do tem-po no andar de cima. Priklopil há mui-

to não tinha um trabalho fixo, embora al-gumas vezes desaparecesse sob o pretex-to de fazer "negócios" com o amigo, Hol-zapfel. Só mais tarde descobri que eles re-formavam apartamentos para alugar. Masnão podiam ter muitos serviços novos,pois o sequestrador passava a maior partedo tempo reformando a própria casa. Euera o único operário. Um operário que elepodia trazer do cativeiro sempre que pre-cisasse para fazer o trabalho pesado - pa-ra o qual a maior parte das pessoas teriade contratar mão de obra especializada -, eque ele então coagia a cozinhar e a limpar"depois do expediente", antes de trancá-lonovamente no porão.Olhando para trás, eu realmente era jo-vem demais para fazer todos os serviços

que ele me ordenava. Sempre que vejo cri-anças de 12 anos reclamando e se rebe-lando quando são instadas a realizar tare-fas simples, sorrio pensando naquela épo-ca. Não tenho inveja dos pequenos atosde rebeldia. Eu não podia me rebelar, sópodia obedecer.O sequestrador, que não queria trabalha-dores na casa, responsabilizou--se por to-da a reforma e me obrigou a fazer coisasque estavam muito além de minha forçae minhas capacidades. Com ele, eu arras-tava placas de mármore e portas pesadas,erguia sacos de cimento, quebrava concre-to com cinzel e marreta. Montamos a ja-nela de água-furtada, isolamos e cobrimosas paredes, instalamos o piso, em seguidaos canos de aquecimento e os cabos elé-

tricos, cobrimos as paredes de gesso, que-bramos uma abertura entre o piso do se-gundo andar e o novo piso do sótão econstruímos uma escada de ladrilhos demármore.O segundo andar seria o próximo. O pisoantigo estava arranhado e colocamos onovo. As portas foram retiradas, e os ba-tentes, lixados e pintados novamente. Ovelho papel de parede marrom foi arran-cado e um novo foi colado e pintado.Construímos um novo banheiro com la-drilhos de mármore no sótão. Eu era, aomesmo tempo, assistente e escrava: tinhade ajudá-lo a carregar as coisas e fornecia-lhe as ferramentas, como lixas, cinzel, tin-ta. Ou ainda tinha de segurar a bacia coma argamassa durante horas, enquanto ele

alisava as paredes. Quando ele se sentavapara fazer uma pausa, eu tinha de lhe ser-vir bebidas.O trabalho tinha um lado positivo tam-bém. Após dois anos durante os quais eumal podia me mover em meu pequenocômodo, agora praticava atividade físicaexaustiva. Os músculos de meus braçoscresceram, e eu me sentia forte e útil. So-bretudo no início, eu gostava de poderpassar várias horas por dia durante a se-mana fora do cativeiro. claro que os mu-ros ao meu redor continuavam intranspo-níveis. E a corrente invisível estava maisforte que antes. Mas eu tinha, pelo menos,uma mudança de ritmo.Ao mesmo tempo, na parte de cima dacasa, eu estava à mercê da maldade e do

lado sombrio do sequestrador. Eu sabia,desde o episódio com a furadeira, que eleera suscetível a explosões incontroláveisde raiva quando eu não era "boazinha".No cativeiro, não havia muitas oportuni-dades para não ser "boazinha". Mas ago-ra, trabalhando, eu podia cometer um erroa qualquer segundo. E o sequestrador nãogostava de erros.

– Passe a espátula - ele disse, emum dos primeiros dias no sótão.Mas eu lhe dei a ferramenta errada.– Merda! Você não consegue fazernada direito, não é? - ele se irritou.De uma hora para outra, seus olhosescureceram, como se uma nuvemlançasse uma sombra sobre a íris.Seu rosto se contorceu, ele agarrou

um saco de cimento que estavaperto, ergueu-o e atirou-o contramim com um grito. Fui pega desurpresa, e o saco pesado me atin-giu com tanta força que, por ummomento, perdi o equilí-brio.congelei. Não era a dor queme causava espanto. O saco era pe-sado e o impacto machucara, maseu podia ter aguentado. O que mefez perder o fôlego foi a agressi-vidade do sequestrador. Afinal decontas, ele era a única pessoa emminha vida, e eu dependia total-mente dele. Essa explosão era umaameaça extrema. Eu me sentia co-mo um cão que apanhara e que nãopodia morder a mão que batera ne-

le, porque era a mesma que o ali-mentava. A única saída era fugirpara dentro de mim. Fechei osolhos, bloqueei tudo a meu redor enão me movi um centímetro.

O ataque de raiva do sequestrador acaboutão rápido quanto começou. Ele veio atémim, me sacudiu, tentou erguer meus bra-ços e fazer cócegas.

– Pare com isso, me desculpe - pediu.- Não foi nada.

Continuei parada ali, de olhos fechados.Ele me deu um beliscão e puxou os cantosde minha boca em um sorriso atormenta-do, no sentido mais literal da expressão.

– Agora volte ao normal, me descul-pe. O que posso fazer para você vol-tar ao normal?

Não sei por quanto tempo fiquei paradaali, sem me mexer, em silêncio e de olhosfechados. Mas meu pragmatismo infantillevou a melhor:

– Quero sorvete e ursinhos de gelati-na!

Metade de mim explorou a situação paraganhar doces. A outra metade queria darmenos importância ao ataque com aquelepedido. Ele repetia que sentia muito e queaquilo não aconteceria novamente - assimcomo o marido violento promete à mu-lher e aos filhos que acabaram de apanhar.Mas esse ataque pareceu ter aberto as por-tas. Ele começou a me bater regularmen-te. Não sei que botão foi pressionado ouse ele simplesmente acreditava que, emsua onipotência, podia fazer o que quises-

se. Agora eu já estava no cativeiro haviamais de dois anos. Ele não fora desco-berto e tinha tal controle sobre mim queeu não poderia fugir. Quem estava lá pa-ra castigá-lo? A seus olhos, ele tinha o di-reito de fazer exigências e de me castigarfisicamente se eu deixasse de satisfazê-lasimediatamente.Desde então, ele reagia à menor desaten-ção com mudanças bruscas de humor. Al-guns dias depois do incidente com o sacode cimento, ele me ordenou que lhe en-tregasse uma placa de reboco. Achou queeu fui muito lenta, por isso agarrou minhamão e a girou, esfregando-a com tantaforça na placa que tive uma queimaduraque levou anos para sarar. Repetidamenteo sequestrador reabriria essa ferida - na

parede, nas placas de reboco e até na su-perfície lisa da pia ele conseguiu esfregarminha mão com tanta força que o sanguecomeçou a jorrar. Até hoje tenho a marcana mão direita. Outra vez, quando reagilentamente a uma ordem, ele apontou umcanivete para mim. A lâmina afiada, quepode cortar um tapete com facilidade,perfurou meu joelho e ficou presa ali. Ador queimou tanto minha perna que mesenti enjoada. Sentia o sangue escorrendo.Quando ele viu aquilo, gritou feito louco:

– Não mexa! Vai manchar!Então me agarrou e me arrastou até o ba-nheiro para estancar o sangue e costurar aferida. Eu estava em choque e mal podiarespirar. Furioso, ele jogou água em meurosto e gritou:

– Pare de chorar!Depois, me deu um sorvete.Em pouco tempo, começou a me xingarenquanto eu fazia as tarefas domésticas.Sentava-se na cadeira de couro na salade estar, me fitava, ajoelhada, esfregandoo chão, e fazia comentários depreciativossobre cada um de meus gestos.

– Você é burra demais até para fa-zer limpeza.– Você não consegue limpar nemuma mancha.

Eu fitava o piso em silêncio, agitada pordentro, enquanto esfregava com energiaredobrada. Mas isso não bastava. Semmais nem menos, eu começava a levarchutes dos lados ou na perna. Até que tu-do estivesse brilhando.

Uma vez, quando eu tinha 13 anos, comonão limpei a bancada da cozinha com ra-pidez suficiente, ele me chutou tão forteno cóccix que bati na beirada do fogão eme cortei na altura do quadril. Embora eusangrasse bastante, ele me levou de vol-ta para o cativeiro sem curativos nem ata-duras, furioso com o aborrecimento que aferida aberta causara. Levou semanas parasarar, porque ele costumava me empurrarcontra a beirada do fogão na cozinha. Demodo inesperado, casual e proposital. Re-petidamente a casca fina que se formavasobre a ferida no quadril era arrancada.Ele não suportava quando eu chorava dedor. Agarrava-me e secava as lágrimas emmeu rosto com o dorso da mão, com tan-ta força que o medo me fazia parar. Se

isso não funcionasse, ele apertava minhagarganta, me levava até a pia e empurravaminha cabeça embaixo da torneira. Emseguida, pressionava a traqueia e esfregavameu rosto com água fria até eu quase per-der a consciência. Ele odiava ter de lidarcom as consequências de seus abusos. Lá-grimas, hematomas, ferimentos - não to-mava conhecimento de nada. O que vocênão vê não existe.O que se tornava cada vez pior não era aviolência sistemática a que ele me subme-tia - e que eu podia antecipar -, mas os sú-bitos ataques de fúria. Talvez porque, ca-da vez que ele ultrapassava um limite, per-cebia que poderia fazer isso sempre e sairimpune. Talvez porque fosse incapaz de

fazer algo para interromper aquela espiralde violência.Acho que sobrevivi àquela época porqueseparava essas experiências de mim mes-ma. Não era a decisão consciente de umadulto, mas o instinto de sobrevivência deuma criança que se manifestava. Eu deixa-va meu corpo sempre que o sequestradorme batia e, a distância, observava a meni-na de 12 anos deitada no chão sendo chu-tada.Mesmo hoje, só posso descrever esses ata-ques como se eles não tivessem aconte-cido comigo, mas com outra pessoa.Lembro-me claramente da dor dos golpes,que me acompanhava durante vários dias.Lembro que tinha tantos hematomas queera difícil encontrar uma posição para me

deitar. Lembro-me do tormento de diasseguidos e de como o púbis doía depoisde um chute. Também me lembro das le-sões e lacerações da pele. E das vértebrascervicais estalando, quando ele atingia mi-nha cabeça com um soco.Mas, emocionalmente, eu não sentia nada.O único sentimento que eu não era capazde evitar era o medo mortal que tomavaconta de mim nessas horas. Ele penetravaem minha mente -a vista escurecia, os ou-vidos zumbiam e a adrenalina era liberada- e ordenava: Fuja! Mas eu não podia. Aprisão, que no início era apenas do lado defora, agora me mantinha encarcerada pordentro também.Em pouco tempo, os primeiros sinais deque o sequestrador poderia surtar a qual-

quer momento eram suficientes para fazermeu coração disparar. A respiração encur-tava e eu empalidecia de medo. Mesmoquando estava no cativeiro - que agora pa-recia mais seguro -, eu era tomada por ummedo mortal sempre que ouvia que o se-questrador estava desparafusando o cofreque bloqueava o corredor. O sentimentode pânico, que o corpo guarda na memó-ria ao experimentar o medo mortal e querecorda ao menor sinal de uma ameaça se-melhante, é incontrolável. E me imobili-zava com suas garras de ferro.Depois de dois anos assim, aos 14 anoscomecei a reagir. Primeiro, era uma espé-cie de resistência passiva. Quando ele co-meçava a gritar e se preparava para me ba-ter, eu começava a me estapear no rosto

até que ele me mandasse parar. Eu queriaforçá-lo a olhar. Ele tinha que ver comome tratava; ele mesmo tinha que levar osgolpes que até então eu recebia. Tambémnão havia mais sorvete nem ursinhos degelatina.Aos 15 anos, revidei pela primeira vez. Eleme encarou surpreso e, de certa forma, es-pantado quando o atingi no estômago. Eume sentia sem forças; meu braço se movialentamente e o soco saiu hesitante. Mas eureagi e o atingi. Ele me agarrou e me deuuma chave de braço até que eu parasse.Claro que eu não tinha chance contra elefisicamente. Ele era maior, mais forte eme dominava facilmente, mantendo-me adistância, de modo que os socos e ponta-pés atingiam quase sempre o vazio. Ape-

sar de tudo, revidar tornou-se essencialpara minha sobrevivência. Ao agir assim,provei a mim mesma que era forte e quenão perdera o respeito próprio. Ao mes-mo tempo, mostrava para ele que havia li-mites que eu não lhe permitiria ultrapas-sar. Foi um momento decisivo na relaçãocom o sequestrador - o único ser humanoem minha vida e a pessoa que me trazia osustento. Quem sabe do que ele teria sidocapaz se eu não tivesse revidado.Ao entrar na puberdade, teve início o ter-ror com a comida. Uma ou duas vezes porsemana, o sequestrador trazia uma balan-ça para o cativeiro. Na época, eu pesavaquarenta e cinco quilos e era rechonchu-da. Nos anos seguintes, eu cresci - e lenta-mente emagreci. Depois de uma fase, du-

rante o primeiro ano, em que eu era rela-tivamente livre para pedir o que quisessecomer, gradualmente ele passou a contro-lar e ordenar que eu racionasse a comidatambém. Além de me proibir de assistir àtelevisão, me deixar sem comer era umade suas estratégias mais eficazes para memanter na linha. Eu tinha 12 anos e esta-va passando pela fase do estirão, quandoele começou a associar o racionamento decomida a xingamentos e acusações.

– Olhe só para você: é feia e gorda.– Você é uma comilona. Ainda vaime levar à falência.– Quem não trabalha não come.

Suas palavras me atingiam como flechas.Mesmo antes do cativeiro, eu estava pro-fundamente insatisfeita com meu corpo,

que me parecia ser o grande obstáculo pa-ra uma infância tranquila. A consciênciade que eu era gorda me enchia de umódio torturante e destrutivo. O sequestra-dor sabia exatamente o que fazer para mi-nar minha autoestima. E fazia isso sem pi-edade.Ao mesmo tempo, era inteligente o bas-tante para me fazer sentir realmente gratanas primeiras semanas e meses. Afinal, eleestava me ajudando a alcançar um demeus maiores objetivos: emagrecer.

– Olhe para mim. Eu praticamentenão como nada - repetia. - Você temque considerar isso uma cura.

E, na verdade, eu quase podia me ver per-dendo toda a gordura e me tornando ma-gra e musculosa. Até que o racionamento

de comida supostamente com boas inten-ções se transformou em uma campanhade terror que me conduziu, aos 16 anos,ao limite da fome.Hoje acredito que o sequestrador - queera extremamente magro - lutava contra aanorexia, que então transferiu para mim.Ele tinha uma profunda desconfiança emrelação a alimentos de todos os tipos.Acreditava que a indústria alimentícia eracapaz de cometer homicídios coletivos,envenenando a comida a qualquer mo-mento. Nunca usava temperos, porque le-ra que vinham da índia e haviam sido ex-postos a radiação lá. Além disso, era mes-quinho, o que se tornou patológico duran-te meu cativeiro. Mesmo o leite passou aser caro demais.

As rações de comida foram drasticamentereduzidas. De manhã, ele me dava uma xí-cara de café e duas colheres de sopa decereal com um copo de leite, ou uma fa-tia tão fina de bolo que quase se podia lero jornal através dela. Eu só ganhava do-ces depois de apanhar muito. Na hora doalmoço e à noite, recebia um quarto deum "prato adulto". Quando o sequestra-dor trazia a comida que a mãe prepararaou uma pizza, era aplicada a seguinte re-gra: três quartos para ele, um quarto paramim. Quando eu preparava minha comidano cativeiro, ele fazia uma lista do que eupodia comer - por exemplo, duzentos gra-mas de vegetais congelados ou metade deuma refeição semipronta. Além disso, po-dia comer um kiwi e uma banana por dia.

Se eu violasse as regras e comesse maisdo que era permitido, podia ter certeza deque ele teria um de seus ataques de fúria.Ele me estimulava a emagrecer e moni-torava meticulosamente as anotações queregistravam meu peso.

– Eu sou um exemplo para você - di-zia.

Sim, um exemplo. Eu sou uma comilona. Estoumuito gorda. Mas a sensação de fome cons-tante e torturante permanecia.Na época, ele não me trancava no cativei-ro por longos períodos sem comida - is-so só aconteceu mais tarde. Mas as con-sequências da má alimentação já eram vi-síveis. A fome afeta o cérebro. Quandovocê não come o suficiente, não conseguepensar em outra coisa a não ser: Quando

vou comer de novo? Quando vou poderbeliscar um pedaço de pão? Como possomanipulá-lo para ganhar pelo menos umpouquinho da porção de três quartos de-le? Eu só pensava em comida e, ao mes-mo tempo, me culpava por ser "tão comi-lona". Pedia para ele trazer encartes de su-permercado para o cativeiro e avidamen-te os folheava sempre que estava sozinha.Depois inventei um jogo que eu chamavade "gostos". Imaginava, por exemplo, umpedaço de manteiga na língua. Gelada edura, derretendo lentamente, até o gostoimpregnar minha boca. Então pensava emGrammelknòdel; em pensamento, mordiaum, sentindo o bolinho macio de batataentre os dentes e o recheio de bacon cro-cante. Ou morangos: o suco doce nos lá-

bios, a sensação das pequenas sementesno céu da boca, a leve acidez nos lados dalíngua.Eu podia jogar esse jogo durante horas, eera tão boa nisso que quase podia sentir acomida de verdade. Mas as calorias imagi-nárias não eram suficientes para meu cor-po. Cada vez mais, sentia vertigem ao melevantar subitamente enquanto fazia as ta-refas diárias ou tinha de me sentar, porqueestava tão fraca que mal me aguentavaem pé. Meu estômago roncava constante-mente e, às vezes, parecia tão vazio que eudeitava na cama com cólicas, que tentavaaplacar tomando água.Precisei de muito tempo para entenderque o sequestrador não estava preocupa-do com meu corpo, mas usava a fome pa-

ra me enfraquecer e me manter obediente.Ele sabia exatamente o que estava fazen-do, embora ocultasse de todas as maneirasa verdadeira motivação. Mas, às vezes, di-zia coisas reveladoras:

– Você está sendo muito teimosa denovo. Acho que está comendo de-mais.

Quando não se tem o que comer, é difícilpensar com clareza, e mais difícil aindapensar em revolta ou fuga.Um dos livros na prateleira da sala de es-tar que o sequestrador mais valorizava eraMinha luta, de Adolf Hitler. Frequente-mente ele falava de Hitler com admiraçãoe dizia:

– Ele estava certo de enviar os judeuspara as câmaras de gás.

Seu ídolo político contemporâneo eraJõrg Haider, líder da extrema direita doPartido da Liberdade da Áustria. Priklopilgostava de xingar os estrangeiros, que elechamava de Tschibesen,{4} na gíria de Do-naustadt, onde ele crescera. Era uma pa-lavra que eu conhecia das piadas racistasdos fregueses da loja de minha mãe. Qu-ando os aviões se chocaram contra oWorld Trade Center, em 11 de setembrode 2001, ele sentiu um prazer malicioso aovê-los; dizia que eles estavam atingindo "acosta oeste norte-americana" e a "conspi-ração para a dominação mundial judaica".Embora eu não acreditasse totalmenteque ele tivesse atitudes nazistas -elas pare-ciam artificiais, como se ele imitasse os slo-gans -, havia algo que ele internalizara pro-

fundamente. Para ele, eu era alguém queele poderia comandar sempre que quises-se. Ele se sentia parte da raça dominante.E eu era um ser humano de segunda clas-se.E deveria parecer um.No início, sempre que ele vinha me pegarno cativeiro, eu tinha de esconder o cabe-lo debaixo de uma sacola plástica. A ob-sessão do sequestrador com limpeza al-cançou a paranoia. cada fio de cabelo meuera um perigo para ele; se a polícia apare-cesse, poderia me encontrar e jogá-lo naprisão. Por isso, eu tinha de prender o ca-belo com fivelas e grampos, pôr na cabe-ça uma sacola plástica e prendê-la com umelástico grosso. Sempre que uma mecha sesoltava e caía em meu rosto enquanto eu

trabalhava no andar de cima, ele imedia-tamente a puxava para debaixo da sacolaplástica. cada fio de cabelo encontrado eraqueimado com um isqueiro ou um ferrode soldar. Depois que eu tomava banho,ele recolhia meticulosamente cada fio decabelo meu e derramava meia garrafa delimpador cáustico de ralo para eliminar dosistema de esgoto todos os vestígios deminha presença.Era quente e coçava debaixo da sacola deplástico. As imagens impressas nas sacolasdeixavam faixas vermelhas e amarelas emminha testa, os grampos afundavam nocouro cabeludo e eu tinha manchas ver-melhas de irritação por toda parte. Sem-pre que eu reclamava desse tormento, elesussurrava:

– Se você fosse careca, não teria esseproblema.

Durante muito tempo, me recusei a isso.O cabelo era uma parte importante dapersonalidade. Eu achava que estaria sa-crificando uma parte muito grande demim mesma se o cortasse. Um dia, porém,simplesmente não aguentei mais. Peguei atesoura doméstica que ele me dera, segu-rei o cabelo do lado da cabeça e cortei me-cha por mecha. Levei mais de uma horaaté que o cabelo estivesse tão curto que sóuma penugem me cobrisse a cabeça.No dia seguinte, o sequestrador comple-tou o serviço. Com um aparelho de barbe-ar, raspou os últimos pelos da cabeça. Euestava careca agora. O processo foi repeti-do regularmente nos anos seguintes, sem-

pre que ele me dava banho na banheira.Não podia haver nem um minúsculo fiode cabelo. Em parte alguma.Eu devia ser uma visão triste. Minhas cos-telas eram aparentes, as pernas e os braçosestavam cobertos de hematomas e as bo-chechas eram fundas.Mas o homem que fizera isso comigo pa-recia gostar de minha aparência. Porque,desse momento em diante, ele me obrigoua trabalhar na casa seminua. Na maioriadas vezes, eu usava calcinha e boné. Àsvezes, vestia uma camiseta e calça legging.Mas nunca estava completamente vestida.Ele sentia prazer em me humilhar dessamaneira. E certamente era uma de suas tá-ticas pérfidas para evitar que eu fugisse.Ele estava convencido de que eu não ou-

saria correr na rua seminua. E estava cer-to.Durante esse período, meu cativeiro tinhadupla função. Claro que eu ainda o con-siderava uma prisão, e as muitas portasatrás das quais ele me trancava criavamem mim um estado claustrofóbico noqual, em desespero, eu buscava por umapequena fissura em um dos cantos, ondepudesse cavar um túnel secreto para o la-do de fora. Mas não havia nenhuma. Aomesmo tempo, a cela minúscula tornou-se o único local onde eu estava a salvo dosequestrador. Quando ele me levava parabaixo nos fins de semana e me dava livros,vídeos e comida, eu sabia que, ao menospor três dias, não teria de trabalhar nemapanhar. Então limpava, arrumava e me

sentava para uma tarde agradável assistin-do à televisão. Frequentemente eu comiaquase todas as rações do fim de semana nasexta-feira à tarde. Ficar de barriga cheiapelo menos uma vez me ajudava a esque-cer que, depois, teria de passar fome.No início de 2000, ganhei um rádio noqual podia ouvir estações austríacas. Elesabia que, depois de dois anos de desa-parecimento, a busca por mim havia sidoabandonada e o interesse da mídia dimi-nuíra, por isso me permitia ouvir as no-tícias também. O rádio era minha ligaçãocom o mundo exterior, e os locutorestornaram-se meus amigos. Eu podia dizerquem estava de férias ou se aposentara.E tentava formar uma imagem do mundoexterior, ouvindo os programas transmi-

tidos pela estação cultural e educativa, aÒl. Na FM4, treinava meu inglês. Quandoameaçava perder o sentido de realidade,os shows rotineiros, nas transmissões ma-tinais da Ó3-Wecker, com as pessoas te-lefonando do trabalho e pedindo músicas,eram minha salvação. Às vezes, eu tinha asensação de que o rádio também era par-te do elaborado show que o sequestradorcriara ao meu redor, em que todos atu-avam, incluindo os DJs, os participantese os locutores das notícias. No fim, po-rém, quando algo surpreendente invadiaos alto--falantes, eu era trazida de volta àrealidade.O rádio foi meu companheiro mais im-portante nesses anos. Ele me dava a cer-teza de que, além do martírio no porão,

havia um mundo que continuava a girar -um mundo ao qual valia a pena voltar umdia.Minha segunda paixão eram as históriasde ficção científica. Eu li centenas de li-vros das séries Perry Rhodan e Orion, emque os heróis viajavam para galáxias dis-tantes. A possibilidade de trocar de espa-ço, tempo e dimensão de um momentopara o outro me fascinava. Quando ga-nhei uma pequena impressora térmica,aos 12 anos, comecei a escrever meu pró-prio romance de ficção científica. Os per-sonagens eram parecidos com a tripulaçãoda nave Enterprise, de Jornada nas estrelas:a nova geração, mas eu passava horas e meesforçava para criar personagens femini-nos particularmente fortes, independentes

e autoconfiantes. Criar histórias commeus personagens, que eu equipava comas últimas novidades tecnológicas, foi mi-nha salvação nas noites escuras no cativei-ro por vários meses. Durante horas, mi-nhas palavras tornavam-se uma espécie decasulo protetor, que me envolvia e nãopermita que nada nem ninguém me ma-chucasse. Hoje só tenho páginas vazias doromance. Ainda durante o cativeiro, as le-tras da impressora térmica desbotaram atédesaparecer por completo.Foram as séries e os livros cheios de via-gens no tempo que me deram a ideia defazer isso também. Uma vez, durante ofim de semana - eu tinha acabado de com-pletar 12 anos -, a sensação de solidãome atingiu de tal modo que temi perder o

controle. Acordei molhada de suor e des-ci com cuidado a escada estreita do beli-che, na escuridão total. O espaço livre nochão do cativeiro se reduzira para cerca dedois ou três metros quadrados. Eu trope-çava, girando em círculos, sem senso dedireção, batendo continuamente na me-sa e na estante. Fora do espaço. Sozinha.Uma criança assustada, faminta e enfra-quecida. Eu queria um adulto, uma pessoaque pudesse vir me salvar. Mas ninguémsabia onde eu estava. A única possibilida-de era ser meu próprio adulto.Antes eu já havia encontrado confortoimaginando como minha mãe me encora-jaria. Agora, assumia seu papel e tentavatransferir um pouco de sua força paramim. Imaginei Natascha adulta, me aju-

dando. Minha vida inteira passou diantede mim como um feixe cintilante de tem-po que se estendia até o futuro. Lá estavaeu aos 12 anos. E, diante de mim, me viaos 18. Grande e forte, confiante e inde-pendente, como as mulheres de meu ro-mance. Meu eu de 12 anos lentamente se-guiu na direção do feixe, enquanto meu euadulto vinha em minha direção. Na meta-de do caminho, meus dois eus se deramas mãos. O toque era macio e quente e,ao mesmo tempo, eu sentia a força do euadulto sendo transferida para o mais jo-vem. A Natascha adulta abraçou a Natas-cha menor, que nem tinha mais esse no-me, e a confortou, dizendo:

– Vou tirar você daqui, prometo. Vo-cê ainda não pode fugir, porque é

muito pequena. Mas, quando tiver 18anos, vou dominar o sequestrador elibertar você desta prisão. Não vouabandoná-la. Naquela noite, fiz umpacto com meu próprio eu mais ve-lho. E mantive a palavra.

ENTRE O DELÍRIO E OMUNDO PERFEITOAs dúas faces do seqúestrador

Ás VEZES, EM PESADELOS, vocêacorda e sabe que foi apenas um sonho.Durante o primeiro período no cativeiro,me apeguei à possibilidade de acordar da-quele pesadelo também, e passava muitasdas horas solitárias planejando os primei-ros dias no mundo exterior. Durante essetempo, o mundo que fora tirado de mimainda era real. Ainda era habitado por pes-

soas reais, que eu sabia que se preocu-pavam comigo a cada segundo e faziamo máximo para me encontrar. Eu podiaimaginar cada detalhe desse mundo: mi-nha mãe, meu quarto, minhas roupas,nosso apartamento. Enquanto isso, omundo em que caíra tinha as cores e ocheiro de um mundo irreal.O cômodo era pequeno demais, e o ar,muito fedorento para ser real. O homemque me sequestrara estava surdo aos argu-mentos que se originavam do mundo ex-terior: que eles me encontrariam; que eleteria de me deixar sair; que o que ele es-tava fazendo comigo era um crime gravee haveria punição. E, ainda assim, diaria-mente eu percebia que estava presa nessemundo subterrâneo e que não tinha mais

nas mãos a chave de minha vida. Resis-ti, procurando me sentir à vontade naque-le ambiente estranho, saído da fantasia deum criminoso que o projetara nos míni-mos detalhes e me colocara nele como umobjeto de decoração.Mas não se pode viver para sempre emum pesadelo. Nós, seres humanos, temosa capacidade de criar a aparência de nor-malidade mesmo nas circunstâncias maisanormais, para não enlouquecer - para so-breviver. Às vezes, as crianças fazem issomelhor que os adultos. O menor canudopara respirar é suficiente para evitar que seafoguem. Para mim, esses canudos erammeus rituais, tais como as refeições juntos,a celebração de Natal coreografada ou afuga para o mundo dos livros, vídeos e sé-

ries televisivas. Eram momentos que nãoeram totalmente sombrios, mesmo quehoje eu saiba que meus sentimentos seoriginavam de um mecanismo de defesapsicológico. Os horrores que vi duranteanos seriam suficientes para enlouqueceruma pessoa. E esses pequenos momentosde suposta normalidade eram aqueles aosquais me agarrava, que garantiam minhasobrevivência. Um registro em meu diáriosublinha claramente meu desejo de nor-malidade:Querido diário,Não tenho escrito há muito tempo por-que estava em uma fase difícil de depres-são. Por isso, vou contar rapidamente oque aconteceu. Em dezembro, colocamoso piso, mas não instalamos a descarga até

o início de janeiro. E foi assim que passeia véspera de Ano Novo: dormi no andarde cima de 30 para 31 de dezembro e pas-sei o dia inteiro sozinha. Mas, pouco an-tes da meia-noite, ele veio. Tomou banhoe nós derramamos o chumbo.{5} À meia-noite, ligamos a televisão e ouvimos o si-no tocar e os sons da valsa Danúbio azul.Enquanto isso, brindamos e olhamos pe-la janela para admirar os fogos de artifício.Mas minha felicidade foi estragada. Quan-do um foguete passou pelo nosso pinhei-ro, ouvi um trinado. Tenho certeza queera um passarinho que estava bastante as-sustado. Não gostei de ouvir o passarinhopiar. Dei o limpador de chaminé que fizpara ele, e ele me deu uma moeda de cho-colate, biscoitos de chocolate e uma mini-

atura de limpador de chaminé de choco-late. No dia anterior, ele já tinha me da-do um bolo de limpador de chaminé. Emmeu limpador de chaminé tinha Smarties,não, mini M&Ms, que eu dei para Wolf-gang.As coisas não são totalmente pretas oubrancas. E ninguém é totalmente bom oumau. Isso também vale para o sequestra-dor. Essas são palavras que as pessoas nãogostam de ouvir de uma vítima de seques-tro. Porque os conceitos de bom e mau jáestão claramente definidos, conceitos queas pessoas querem aceitar para não perdero rumo em um mundo cheio de tons decinza. Quando falo sobre isso, posso vera confusão e o repúdio no rosto de mui-tas pessoas que não estavam lá. A empatia

que sentem pela minha história se congelae se transforma em negação. Pessoas quenão têm ideia das complexidades do cati-veiro me negam a capacidade de julgar mi-nhas próprias experiências ao pronunciartrês palavras: "síndrome de Estocolmo"."Síndrome de Estocolmo é um termo usa-do para descrever um fenômeno psicoló-gico em que os reféns manifestam senti-mentos positivos em relação aos seques-tradores. Esses sentimentos fazem comque as vítimas simpatizem ou mesmo co-laborem com os criminosos" - isso é oque dizem os compêndios. Um diagnósti-co classificatório que rejeito enfaticamen-te. Por mais simpático que pareça ser ouso do termo, seu efeito é terrível, poistransforma as vítimas em vítimas nova-

mente, ao tirar delas a capacidade de inter-pretar a própria história e ao transformaras experiências mais significativas em pro-duto de uma síndrome. O termo aproxi-ma de algo censurável o próprio compor-tamento que contribui significativamentepara a sobrevivência da vítima.Aproximar-se do sequestrador não é umadoença. Criar um casulo de normalidadeno âmbito de um crime não é uma sín-drome. É justamente o oposto. É uma es-tratégia de sobrevivência em uma situa-ção sem saída -e é muito mais verdadeiroque a ampla categorização dos criminososcomo bestas sanguinolentas e das vítimascomo cordeiros indefesos, na qual a soci-edade quer se basear.

Para o mundo exterior, Wolfgang Priklo-pil parecia um homem cortês, tímido, quesempre parecia jovem demais em suasroupas bem cortadas. Usava calças limpase camisas de botão ou polo. O cabelo pa-recia sempre recém-lavado e cuidadosa-mente penteado, em um corte um pou-co antiquado para o início do novo milê-nio. Provavelmente parecia humilde paraas poucas pessoas com quem lidava. Nãoera fácil perceber o que ocorria por trásdaquela fachada, porque isso ele encobriacompletamente. ParaPriklopil, manter as convenções sociaisera menos importante - ele era um escravoda manutenção das aparências.Não era só uma questão de amar a ordem- ela era necessária para sua sobrevivência.

A ausência de ordem, o caos e a sujeira odesconcertavam completamente. Ele pas-sava boa parte do tempo mantendo os ca-nos (além da caminhonete, também tinhaum BMW vermelho), o jardim e a casalimpos e bem conservados. Para ele, nãobastava limpar depois de preparar a comi-da. A bancada tinha de estar imaculada,cada tábua de cortar, cada faca usada pa-ra preparar a refeição tinha de ser lavada,mesmo que a comida estivesse no fogão.As regras eram tão importantes quanto aordem. Priklopil podia se ocupar duran-te horas lendo instruções, as quais seguiameticulosamente. Se as instruções paraaquecer a refeição semipronta diziam"aquecer por quatro minutos", ele retiravaa refeição do forno depois de exatos qua-

tro minutos, sem se importar se estavaquente ou não. Devia causar uma impres-são tremenda nele o fato de que, apesarde seguir todas as regras, ele não podiamanter sua vida sob controle. Isso deviaaborrecê-lo tanto que, um dia, decidiuquebrar uma regra maior e me sequestrou.Mas, embora isso fizesse dele um crimi-noso, ele continuava a acreditar em regras,instenções e estruturas de modo quase re-ligioso. Às vezes, me fitava pensativamen-te e dizia:

– Que ridículo você não vir com ins-truções de uso.

O fato de que sua nova aquisição - umacriança - não funcionasse sempre comodeveria e que, em certos dias, ele não sou-

besse como fazer para ela voltar a funcio-nar o tirava do sério.No início do cativeiro, suspeitei que o se-questrador fosse órfão e que a falta de ca-rinho na infância o tivesse transformadoem um criminoso. Agora que eu o conhe-cia melhor, percebia que criara uma falsaimagem dele. Ele tivera uma infância pro-tegida, em um ambiente familiar clássico:pai, mãe, filho. Karl, o pai, trabalhava parauma grande empresa de bebidas alcoólicascomo caixeiro- viajante, estava sempre fo-ra e aparentemente traía a esposa, o quedescobri depois. Mas as aparências erammantidas. Os pais ficaram juntos. Priklo-pil me contou sobre as viagens de fim desemana ao lago Neusiedl, os feriados paraesquiar e as caminhadas. A mãe se preo-

cupava excessivamente com o filho. Tal-vez zelosa demais. Quanto mais tempo eupassava no andar de cima da casa, maisestranha parecia a presença da mãe pai-rando sobre tudo na vida do sequestrador.Levei algum tempo para descobrir quemera a pessoa sinistra que ocupava a casanos fins de semana, me forçando a pas-sar dois ou três dias sozinha no cativeiro.Li o nome "Waltraud Priklopil" nas car-tas próximas à porta de entrada. Eu co-mia a comida que ela preparava duranteo fim de semana, uma refeição para ca-da dia em que o filho ficaria sozinho. E,às segundas-feiras, quando eu podia su-bir para a casa, percebia os vestígios queela deixara: tudo estava perfeitamente lim-po. Nem uma mancha de poeira indica-

va que alguém vivia ali. Todo fim de se-mana ela esfregava o chão e tirava a po-eira para o filho, que, por sua vez, me fa-zia limpar a casa durante o resto da sema-na. Às quintas-feiras, ele me levava a cadaum dos cômodos com um pano de chão.Tudo tinha que estar brilhando antes dachegada da mãe. Era como uma compe-tição de limpeza absurda entre mãe e fi-lho, cujo impacto eu tinha que aguentar.Assim, depois dos fins de semana solitá-rios, eu sempre me animava ao descobrirsinais de que a mãe estivera ali: roupas re-cém passadas, bolo na cozinha. Nunca viWaltraud Priklopil em todos aqueles anos,mas, por meio desses pequenos sinais, elase tornou parte de meu mundo. Eu gosta-va de pensar nela como uma amiga mais

velha, e me imaginava sentada com ela àmesa da cozinha tomando uma xícara dechá. Mas nunca encontramos tempo paraisso.O pai de Priklopil morreu quando ele ti-nha 24 anos. Essa morte deve ter criadoum vazio em sua vida. Raramente ele fa-lava do pai, mas podia--se perceber quenunca superara sua perda. E parecia man-ter inalterado um cômodo no primeiro pi-so da casa para recordá-lo. Era decoradoem estilo rústico, com um sofá acolcho-ado no canto e candelabros de ferro for-jado - chamado de Stüberl{6} na Áustria -,onde as pessoas costumavam jogar cartase beber, quando o pai ainda era vivo. Asamostras de produtos do fabricante de be-bidas alcoólicas para o qual ele trabalhava

ainda estavam nas prateleiras. Mesmo ten-do reformado a casa, o sequestrador dei-xara aquele cômodo intocado.Waltraud Priklopil também parecia ter si-do atingida pela morte do marido. Nãoquero julgar sua vida ou interpretar coisasque talvez não sejam verdade, afinal nun-ca a vi. Mas, do meu ponto de vista, pa-recia que, após a morte do marido, elase apegara mais ao filho, transformando-oem companheiro substituto. Priklopil, quehavia se mudado para o próprio aparta-mento, voltou para a casa de Strasshof,onde nunca pôde resistir à influência damãe. Constantemente esperava que elavasculhasse o guarda-roupa e a roupa suja,e prestava atenção para ter certeza de quenão havia vestígios de minha presença em

alguma parte da casa. E definia o ritmoda semana e como lidar comigo de acordocom a mãe. Os mimos exagerados dela e ocomportamento de Priklopil, que os acei-tava, pareciam pouco naturais. Ela não otratava como adulto, e ele não agia comoum. Ele vivia na casa da mãe - ela se mu-dara para o apartamento de Priklopil, emViena - e a deixava cuidar dele em todosos sentidos.Não sei se ele vivia com o dinheiro delatambém. Ele perdera o emprego comoengenheiro de telecomunicações na Sie-mens, onde fizera estágio, antes do se-questro. Depois disso, provavelmente seregistrara como desempregado por mui-tos anos. Às vezes, me dizia que ia parauma entrevista de emprego, mas agia de

maneira estúpida para que não lhe dessemo cargo. Isso lhe permitia satisfazer aagência de empregos e, ao mesmo tempo,manter o auxílio-desemprego. Depois, elepassou a ajudar o amigo e parceiro de ne-gócios, Ernst Holzapfel, a reformar apar-tamentos.

Holzapfel -que conheci depois de fugir -descrevia Priklopil como alguém correto,decente e confiável. Talvez um pouco tí-mido, pois não tinha amigos nem namora-das. Mas, acima de tudo, uma pessoa co-mum.Esse jovem elegante, incapaz de impor li-mites à mãe, educado com os vizinhos edecente de maneira pedante, também sa-bia manter as aparências. Ele punha seus

sentimentos reprimidos no porão, permi-tindo que, depois, ressurgissem na cozi-nha escura. Onde eu estava.Eu era testemunha das duas faces deWolfgang Priklopil, que provavelmenteeram desconhecidas de todos. Uma tinhaforte tendência ao poder e à dominação; aoutra, uma necessidade absolutamente in-saciável de amor e aprovação. Ele me se-questrara e me "moldara" para que pudes-se expressar essas duas faces contraditóri-as.No ano de 2000, vi, ao menos no papel,quem se escondia por trás das aparências.

– Pode me chamar de Wolfgang -ele disse um dia, em tom casual, en-quanto trabalhávamos.

– Qual seu nome completo? - per-guntei.– Wolfgang Priklopil - ele respon-deu.

Era esse o nome que eu vira no andar decima da casa, nas etiquetas de endereçodos folhetos de propaganda que ele em-pilhava cuidadosamente na mesa da co-zinha. Agora eu tinha a confirmação. Aomesmo tempo, percebi naquele momentoque não sairia viva da casa. Caso contrá-rio, ele nunca teria dito seu nome comple-to.De vez em quando, eu o chamava de"Wolfgang" ou mesmo "Wolfi" -um ape-lido que aparentava certa intimidade, en-quanto, ao mesmo tempo, sua maneira deme tratar alcançava um novo nível de vi-

olência. Olhando para trás, parece que eutentava chegar até a pessoa que havia portrás da máscara, enquanto aquela diantede mim sistematicamente me torturava eme batia.Priklopil era um doente mental. Sua para-nóia ultrapassava até mesmo o nível quese esperaria de alguém que tranca uma cri-ança sequestrada em um porão. Suas fan-tasias de onipotência misturavam-se à pa-ranóia. Em muitas delas, ele desempenha-va o papel de governante absoluto.Por isso, ele me disse um dia que era umdos deuses egípcios da série de ficção ci-entífica Stargale, que eu gostava de assistir.Os "maus" entre os extraterrestres erambaseados nos deuses egípcios, que bus-cavam jovens como corpos hospedeiros.

Eles penetravam no corpo pela boca oupela nuca e viviam como parasitas, con-trolando completamente o hospedeiro nofim. Esses deuses tinham uma jóia, queusavam para forçar as pessoas a se ajoe-lhar e para humilhá-las.

– Eu sou um deus egípcio - disse Pri-klopil, um dia, no cativeiro. - Você de-ve fazer o que eu mandar.

No começo, não sabia se era alguma piadaestranha ou se ele estava usando minhasérie de televisão favorita para me forçara mais humilhações. Suspeitei que ele re-almente se considerava um deus, em cujomundo de fantasia absurdo o único papelque me sobrara fora o de oprimida, que aomesmo tempo o tornaria mais importan-te.

Suas referências aos deuses egípcios meassustavam. Afinal, eu realmente estavapresa no subterrâneo, como em um sar-cófago, enterrada viva em um cômodoque se tornara minha sepultura. Eu viviano mundo patologicamente paranóico deum psicopata. Se não quisesse enlouque-cer completamente, teria de tomar partenele na medida do possível. Quando eleme disse para chamá-lo de "mestre", per-cebi por sua reação que eu não era apenasum peão de sua vontade, mas que tinhameios modestos à minha disposição paradefinir alguns limites. Do mesmo modoque o sequestrador abrira uma ferida emmim, na qual durante anos injetara o ve-neno de que meus pais haviam me aban-donado, eu sentia que tinha uns poucos

grãos de sal em minhas mãos que tambémpoderiam ser dolorosos para ele.

– Você tem que me chamar de "meusenhor" - ele exigia.

Era absurdo que Priklopil, cuja posição depoder era óbvia, fosse tão dependente dedemonstrações verbais de humildade.Quando me recusei a chamá-lo de "meusenhor", ele gritou e se enfureceu, e umavez até me bateu por isso. Mas, com a re-cusa, eu não apenas mantinha um poucode dignidade pessoal, mas também encon-trara uma alavanca que poderia ser útil.Mesmo que tivesse de pagar por isso comuma dor incomensurável.Vivi a mesma situação quando ele me or-denou, pela primeira vez, que me ajoe-lhasse diante dele. Ele estava sentado no

sofá, esperando que eu lhe servisse algopara comer, quando, do nada, ordenou:

– Ajoelhe-se!Respondi calmamente:

– Não vou fazer isso.Ele se levantou de um pulo, com raiva, eme empurrou para o chão. Fiz um movi-mento rápido para me apoiar com o bum-bum, em vez de cair de joelhos. Ele nãoteria a satisfação - nem mesmo por umsegundo - de me ver ajoelhar diante dele.Ele me agarrou, girou para o lado e do-brou minhas pernas como se eu fosse umaboneca de borracha. Pressionou minhaspanturrilhas contra a parte de trás das co-xas, erguendo-me do chão como um pa-cote atado com cordas, e tentou me em-purrar novamente para que eu me ajo-

elhasse. Enrijeci, joguei todo o peso docorpo para baixo e girei desesperadamen-te para me libertar. Ele me socou e mechutou. Mas, no fim, levei a melhor. Du-rante todos os anos em que ele me orde-nou veementemente que o chamasse de"senhor", eu nunca o fiz. E nunca me ajo-elhei diante dele.Talvez fosse mais fácil me ajoelhar, por-que assim teria evitado levar alguns socose pontapés. Mas, naquela situação de totalopressão e completa dependência em re-lação ao sequestrador, eu tinha de preser-var certo espaço de manobra. Os papéisque representávamos eram claros e, comoprisioneira, eu era, sem dúvida, a vítima.No entanto, a batalha em torno da pala-vra "senhor" e de me ajoelhar tornou-se

um palco secundário onde disputávamoso poder como em uma guerra. Eu esta-va em posição inferior quando ele me hu-milhava e me maltratava a seu bel-prazer.Eu estava em posição inferior quando eleme trancava, desligava a energia elétrica eme usava em trabalhos forçados. Mas, na-quele momento, eu o enfrentei. Chamava-o de "criminoso" quando ele queria queo chamasse de "senhor". Às vezes, falava"benzinho" ou "querido", em vez de"meu senhor", para demonstrar o carátergrotesco da situação em que ele nos colo-cara. E ele sempre me punia por isso.Foi necessária uma força tremenda parapermanecer constante em meu compor-tamento em relação a ele durante todo operíodo do cativeiro. Sempre resistindo,

sempre dizendo não, sempre me defen-dendo dos ataques e explicando calma-mente que ele fora longe demais e quenão tinha o direito de me tratar daquelejeito. Mesmo em dias em que eu pareciater desistido de mim mesma, sentindo-mecompletamente desprezada, não podia de-monstrar fraqueza. Em dias assim, diziapara mim mesma, em minha visão infantildas coisas, que eu fazia isso por ele, paraque ele não se tornasse uma pessoa pior.Como se fosse minha responsabilidadeevitar sua decadência completa em umabismo moral.Quando ele tinha ataques de raiva e mebatia com socos e pontapés, não havia oque fazer. Do mesmo modo, me sentiaimpotente para fazer qualquer coisa em

relação ao trabalho forçado, a ser trancadaou passar fome e às humilhações que so-fria enquanto limpava a casa. Esse tipo deopressão formava o contexto em que euvivia; eram parte integral de meu mundo.O único modo de lidar com isso era per-doar as transgressões do sequestrador. Euo perdoei por me sequestrar e por todasas vezes que me bateu e atormentou. Per-doá- lo me deu poder sobre minha experi-ência e tornou possível conviver com ela.Se eu não tivesse adotado essa atitude ins-tintivamente desde o início, provavelmen-te teria me consumido em raiva e ódio -ou sido destruída pelas humilhações a queera submetida diariamente. Desse modo,eu teria sido eliminada; teria sofrido con-sequências ainda mais terríveis que o rou-

bo de minha identidade, meu passado,meu nome. Ao perdoá-lo, afastei suasações de mim. Elas não podiam mais mediminuir ou destruir, afinal eu as perdoara.Ele cometera ações más, e isso recairiaapenas sobre ele, não mais sobre mim.E eu tinha minhas pequenas vitórias.Recusar-me a chamá-lo de "meu senhor"ou "mestre", recusar-me a me ajoelhar.Meus apelos à sua consciência, que algu-mas vezes caíam em solo fértil. Tudo issoera essencial à minha sobrevivência e medava a ilusão de que eu era uma parte igualna relação dentro de certos parâmetros -porque me dava uma espécie de capacida-de de resistência contra ele e me mostravaalgo muito importante: que eu ainda exis-

tia como pessoa e não fora degradada aum objeto sem vontade própria.Paralelamente a suas fantasias de opres-são, Priklopil alimentava um desejo pro-fundo por um mundo perfeito. Eu, a pri-sioneira, deveria estar à sua disposição pa-ra isso, como um acessório e como pes-soa. Ele queria fazer de mim a compa-nheira que nunca tivera. Mulheres "reais"estavam fora de questão. Seu ódio pelasmulheres tinha raízes profundas, era irre-conciliável e explodia de vez em quandoem pequenas observações. Não sei se eletivera contato com mulheres antes, oumesmo uma namorada cm sua estada emViena. Durante o cativeiro, a única "mu-lher em sua vida" era a mãe - uma relaçãodependente com uma figura superideali-

zada. A libertação dessa dominação, queele era incapaz de obter na vida real, deve-ria ocorrer no mundo do cativeiro, inver-tendo a relação - ao me colocar no papelde mulher submissa, que aquiesce e o ad-mira.Sua imagem de família ideal vinha da dé-cada de 1950. Ele queria uma mulherzinhaque trabalhasse duro, preparasse o jantarquando ele voltasse para casa, não lhe res-pondesse e realizasse as tarefas domésti-cas com perfeição. Ele sonhava com "co-memorações familiares" e passeios, gosta-va de nossas refeições juntos e celebravaos dias dos santos, aniversários e Nataiscomo se não houvesse porão nem cativei-ro para mim. Era como se ele estivesse vi-vendo uma vida através de mim e não pu-

desse fazer isso do lado de fora da casa.Como se eu fosse uma bengala que eletivesse pego no meio-fio para apoiá-loquando a vida não fosse do jeito que elequeria.

– Eu sou seu rei - ele dizia -, e vocêé minha escrava. Você me obedece.Ou então:– Sua família é um bando de prole-tários. Você não é dona de sua vi-da. Está aqui para me servir.

Ele precisava daquele crime insano paraconcretizar sua visão de um mundo per-feito e intacto. Mas, no fim, realmentequeria apenas duas coisas de mim: aprova-ção e afeto. Como se o objetivo por trásde toda aquela crueldade fosse forçar umapessoa a amá-lo incondicionalmente.

Quando fiz 14 anos, passei pela primeiravez a noite no andar de cima. Não foi umasensação libertadora.Deitei rígida de medo na cama do seques-trador. Ele trancou a porta e colocou achave em um armário tão alto que só al-cançava se ficasse na ponta dos pés. Eunão conseguiria alcançá-lo. Então, ele sedeitou ao meu lado e prendeu meu pulsoao dele usando algemas de tiras plásticas.Depois que fugi, uma das primeiras man-chetes sobre o sequestrador foi: "O mons-tro sexual". Não vou falar sobre essa partedo sequestro

– é a última porção de privacidadeque eu gostaria de preservar, agoraque minha vida no cativeiro foi es-miuçada em relatórios, interrogatóri-

os, fotografias etc. Mas quero dizeruma coisa: em sua avidez pelo sensa-cionalismo, os jornalistas da imprensamarrom estavam completamente er-rados. Em muitos aspectos, o seques-trador era um monstro, muito maiscruel do que se pode imaginar. Mas,nesse sentido, não era. Naturalmente,ele me submeteu a assédios sexuaismenores; eram parte dos abusos diári-os, como as pancadas, socos e chutesem minhas pernas. Mas, quando mealgemava nas noites em que eu ficavano andar de cima da casa, não se tra-tava de sexo. O homem que me batia,me trancava no porão e me deixavasem comer queria alguém para abra-çar. Algemada e sob controle, eu era

algo que ele podia segurar durante anoite.

Eu poderia gritar quão dolorosamente pa-radoxal era minha situação. Mas eu nãopodia emitir nenhum som. Deitava a seulado e tentava me mexer o menos pos-sível. Minhas costas, em geral, estavamcheias de hematomas. Doíam tanto que eunão podia deitar direito, e as algemas cor-tavam minha pele. Eu sentia a respiraçãodele atrás do pescoço e enrijecia.Permanecia algemada ao sequestrador atéa manhã seguinte. Quando queria ir ao ba-nheiro, tinha de acordá-lo, e ele ia comi-go, com o pulso algemado ao meu. Quan-do ele dormia a meu lado, eu pensava emcomo quebrar as algemas - mas logo de-sisti. Quando eu virava o pulso e enrijecia

os músculos, o plástico não cortava ape-nas meu braço, mas o dele também. Inevi-tavelmente ele acordaria e perceberia mi-nha tentativa de fuga. Hoje sei que a polí-cia também usa tiras plásticas quando fazprisões. De qualquer modo, elas nunca sequebrariam com a força física de uma me-nina de 14 anos. Então fiquei deitada, al-gemada ao sequestrador, pela primeira demuitas noites em sua cama. Na manhã se-guinte, tomei café da manhã com ele. Pormais que eu gostasse do ritual quando eracriança, me enojava a hipocrisia com queele me forçava a sentar à mesa da cozinha,tomar leite e comer duas colheres de sopade cereal e nem uma migalha a mais. Ummundo ideal, como se nada tivesse acon-tecido.

No verão, pela primeira vez, tentei o sui-cídio.Nessa fase do cativeiro, eu não pensavamais em fugir. Aos 15 anos, a prisão psi-cológica estava completa. A porta da casapoderia até permanecer aberta - eu não te-ria dado um passo. Fugir, para mim, sig-nificava a morte. Para mim, para ele, paratodos que me vissem. Não é fácil explicaro que o isolamento, as surras e humilha-ções fazem a uma pessoa. Como, depoisde tantos maus-tratos, o simples som deuma porta abrindo pode causar pânico evocê não consegue nem respirar, que dirácorrer. Como o coração dispara, o sanguepulsa nos ouvidos, e então subitamente al-go no cérebro é acionado e você não sen-te nada, a não ser paralisia, que o deixa in-

capaz de agir e de raciocinar. A sensaçãode medo mortal marca inegavelmente suamente, e todos os detalhes da época emque você sentiu medo pela primeira vez -os cheiros, os sons e as vozes -são pre-servados em seu subconsciente. Se um de-talhe reaparece - uma mão erguida, porexemplo -, o medo retorna; mesmo quea mão não esteja apertando sua garganta,você se sente sufocar.Assim como os sobreviventes de atenta-dos a bomba podem entrar em pânico aoouvir fogos de artifício no Ano Novo, eusentia isso com milhares de outros deta-lhes. O som que ouvia quando as pesadasportas do cativeiro eram abertas. O zum-bido do ventilador. A escuridão. A luzforte. O cheiro no andar de cima da casa.

O deslocamento de ar antes de a mão deleme atingir, seus dedos em minha gargan-ta, sua respiração em meu pescoço. Nossocorpo é programado para sobreviver e re-age por meio da paralisia. Chega um mo-mento em que o trauma é tão grande quemesmo o mundo exterior não produz alí-vio, mas se torna um terreno ameaçadorassociado ao medo.Pode ser que o sequestrador soubesse oque eu estava passando, que entendesseque eu não fugiria quando me permitiuficar no jardim pela primeira vez. Poucotempo antes, ele me deixara tomar sol porcurtos períodos. No primeiro andar da ca-sa, havia um cômodo com janelas que iamaté o chão, que ninguém podia ver do ladode fora quando ele fechava uma das per-

sianas. Eu podia deitar em uma espregui-çadeira e receber a luz do sol. O seques-trador encarava isso como uma espécie de"manutenção". Ele sabia que uma pessoanão pode sobreviver sem a luz do sol, porisso queria que, de vez em quando, eu to-masse um pouco. Para mim, foi uma reve-lação.A sensação dos raios quentes sobre a pelepálida era indescritível. Fechei os olhos. Osol fazia círculos vermelhos sob minhaspálpebras. Lentamente adormeci e sonheique estava em uma piscina, ouvindo vozesalegres de crianças e sentindo a água fria,do modo como ela molha a pele quandovocê pula com o corpo quente. O que eunão daria para nadar, só uma vez!

Como o sequestrador, que, de tempos emtempos, aparecia em meu cativeiro vestin-do calção de banho. Os vizinhos - paren-tes distantes dos Prik-lopil - tinham umapiscina igual à dele no jardim, só que a de-les continha água e podia ser usada. Quan-do eles estavam fora, e o sequestrador to-mava conta da casa ou molhava as plantas,algumas vezes ele nadava. Eu sentia muitainveja.Um dia de verão, ele me surpreendeu aodizer que eu poderia nadar com ele. Os vi-zinhos não estavam em casa, e os jardinsdas duas casas eram ligados por um cami-nho que ia direto até a piscina, sem quefosse visto da rua.A grama fazia cócegas em meus pés nus,e o orvalho da manhã cintilava como di-

amantes em miniatura entre as folhas. Euo segui pelo caminho estreito até o jardimdos vizinhos, me despi e entrei na água.Era como renascer. Debaixo da água, ocativeiro, o porão, a opressão, tudo de-sapareceu por um momento. Toda a ten-são se dissolveu na fria água azul. Emergie boiei na superfície. As pequenas ondasturquesa cintilavam sob o sol. Acima demim, erguia-se o infinito céu azul-celeste.Meus ouvidos estavam debaixo da água, etudo ao meu redor não era mais que ummurmúrio.Quando o sequestrador nervosamente or-denou que eu saísse da água, precisei deum minuto para reagir. Era como se eu ti-vesse que retornar de um local muito dis-tante. Segui Priklopil dentro de casa, da

cozinha até o corredor, e dali para a ga-ragem e o cativeiro. Então ele me tran-cou novamente e voltei a ter a lâmpada,controlada pelo temporizador, como úni-ca fonte de luz. Por um longo tempo, elenão me deixou voltar à piscina. Mas es-sa vez foi suficiente para me lembrar que,apesar do desespero e da impotência, euainda queria a vida. A memória daquelemomento me mostrou que valia a pena es-perar até que eu pudesse fugir.Eu era imensamente grata ao sequestradorpor esses pequenos prazeres, como o ba-nho de sol ou o mergulho na piscina dosvizinhos. E mesmo hoje ainda lhe sou gra-ta. Por mais estranho que pareça, possover que havia pequenos momentos de hu-manidade durante o cativeiro. O seques-

trador era incapaz de se fechar completa-mente à influência da menina com quempassava tantas horas. Olhando para trás,eu me agarrava ao menor gesto humano,porque precisava ver bondade no mundoem que eu nada podia mudar, e em um se-questrador com quem tinha de lidar sim-plesmente porque não podia fugir. Essesmomentos estavam lá e eram preciosospara mim. Momentos em que ele me aju-dava a pintar, desenhar ou fazer algumacoisa, encorajando-me a começar de novoquando algo não dava certo. Quando meajudava a revisar as matérias da escola,quando me passava problemas de mate-mática para resolver, mesmo que tivesseum prazer especial em corrigir meus errose só prestasse atenção na gramática e na

ortografia em minhas redações. As regrastinham de ser seguidas. Mas ele estava lá,passando comigo o tempo que eu tinha desobra.Pude sobreviver porque inconsciente-mente suprimi e afastei de mim os horro-res que vivi. E, com as terríveis experiên-cias durante o cativeiro, aprendi a ser for-te. Talvez até a desenvolver uma força quenão teria se estivesse em liberdade.Hoje, anos depois da fuga, passei a evitardizer estas coisas - que, no interior do mal,breves momentos de normalidade e mes-mo de compreensão mútua eram possí-veis. Foi isso que quis dizer quando afir-mei que nem tudo é branco ou preto,nem na realidade nem em situações extre-mas, mas que há muitos tons sutis que fa-

zem a diferença. Para mim, essas nuanceseram decisivas. Quando percebia suas al-terações de humor, eu era capaz de evitaruma surra. Ao apelar cada vez mais para aconsciência do sequestrador, talvez ele te-nha me poupado de coisas piores. Ao vê-lo como um ser humano, com um lado es-curo e outro um pouco mais claro, tam-bém pude me manter humana, porque eleera incapaz de me derrotar.Por isso, recuso veementemente ser clas-sificada como vítima da síndrome de Es-tocolmo. A expressão surgiu depois deum assalto a banco em Estocolmo, em1973. Os ladrões mantiveram quatro fun-cionários reféns durante cinco dias. Para asurpresa dos meios de comunicação, umavez libertados, os reféns tinham mais me-

do da polícia que dos ladrões - e tinhamdesenvolvido uma compreensão dos cri-minosos. Algumas das vítimas pediramclemência para os ladrões e os visitaramna prisão. A opinião pública não compre-endia a "simpatia" que elas demonstravamem relação aos criminosos e transformouo comportamento das vítimas em uma pa-tologia. O achado: a compaixão pelo cri-minoso denotava uma doença. E a recém-criada doença foi chamada, desde então,de síndrome de Estocolmo.Hoje, costumo observar as reações de cri-anças pequenas que esperam pelos paisque não viram durante o dia, e eles ascumprimentam com palavras desagradá-veis, às vezes até batem nelas. Pode-se di-zer que cada uma dessas crianças sofre

da síndrome de Estocolmo. Elas amam aspessoas com quem vivem e de quem sãodependentes, mesmo que estas não as tra-tem muito bem.Eu também era criança quando começoumeu cativeiro. O sequestrador me separoudo mundo que eu conhecia e me colocouem seu próprio mundo. A pessoa que meroubou, que retirou minha família e minhaidentidade, se tornou minha família. Eunão tinha escolha a não ser aceitá-lo comotal, e aprendi a obter felicidade dessa afei-ção e a reprimir o que era negativo. Assimcomo qualquer criança que cresce em umafamília disfuncional.Depois da fuga, fiquei surpresa - não pelofato de que eu, como vítima, fosse capazde fazer essa diferenciação, mas de que a

sociedade na qual entrara após meu cati-veiro não permitisse a menor nuance. Co-mo se eu não pudesse refletir de maneiraalguma sobre a pessoa que fora a única emminha vida durante oito anos e meio. Nãoposso nem aludir ao fato de que precisodesse recurso para tentar superar o queaconteceu sem despertar incompreensão.Ao mesmo tempo, percebi que, em cer-ta medida, também idealizei a sociedade.Vivemos em um mundo em que mulhe-res apanham e são incapazes de abando-nar o homem que bate nelas, embora, emtese, a porta esteja aberta. Uma em cadaquatro mulheres é vítima de violência ex-trema. Uma em cada duas mulheres sofreassédio sexual durante a vida. Esses cri-mes estão em toda parte e podem ocorrer

atrás de qualquer porta do país, em qual-quer dia, e talvez só provoquem um darde ombros ou uma indignação superficial.Nossa sociedade precisa de criminososcomo Wolfgang Priklopil para dar umrosto ao mal e afastá-lo dela mesma. Épreciso ver imagens desses porões paraque não se vejam os muitos lares em quea violência ergue sua face burguesa e con-formista. A sociedade usa as vítimas des-ses casos sensacionalistas, como o meu,para se despir da responsabilidade pelasmuitas vítimas sem nome dos crimes pra-ticados diariamente, vítimas que não rece-bem ajuda - mesmo quando pedem.Crimes assim, como o que foi cometidocontra mim, formam a estrutura austera,em branco e preto, das categorias de Bom

e Mau nas quais a sociedade se baseia.O criminoso deve ser um monstro, paraque possamos nos ver ao lado dos bons.O crime deve ser acrescido de fantasiassadoma-soquistas e orgias selvagens, atéque seja tão extremo que não tenha maisnada a ver com nossa própria vida.E a vítima deve ficar destruída e perma-necer assim, para que a externa-lização domal seja possível. A vítima que se recusa aassumir esse papel contradiz a visão sim-plista da sociedade. Ninguém quer ver is-so, porque, caso contrário, as pessoas teri-am de olhar para dentro de si mesmas.Por essa razão, acabei estimulando aagressividade inconsciente de certas pes-soas. Talvez o que aconteceu comigo des-perte a agressividade, e, como sou a única

ao alcance, depois do suicídio do seques-trador, elas atiram contra mim. De modoparticularmente violento quando tento fa-zer a sociedade ver que quem me seques-trou também era um ser humano, que vi-via entre nós. Quem é capaz de reagiranonimamente, postando comentários naInternet, descarrega seu ódio diretamentecontra mim. É o ódio da própria socieda-de que se volta contra ela mesma, levan-tando a questão de por que se permite quealgo assim ocorra, por que pessoas entrenós desaparecem tão facilmente, sem queninguém perceba, por mais de oito anos.Aqueles que se encontram comigo em en-trevistas e eventos são mais sutis. Eles metransformam - a única pessoa que viveuo cativeiro - em vítima pela segunda vez,

ao usar estas três palavras e dizer apenas:"síndrome de Estocolmo".

NA PIORQúando a dor fíúsica alivia o tor-mento psicoloú gicoA ESCADA ERA ESTREITA, inclinada eescorregadia. Eu estava equilibrando umatigela pesada de vidro que havia lavado noandar de cima e que estava carregando ago-ra para o cativeiro. Não conseguia vermeus pés e tateava pelo caminho. Entãoaconteceu: escorreguei e caí. Bati a cabeçanos degraus e ouvi a tigela se partir em pe-

daços, fazendo um barulho alto. Apagueipor um instante. E, quando voltei a mime ergui a cabeça, me senti mal. O sangueescorria de minha cabeça sem cabelos pa-ra os degraus. Wolfgang Priklopil estavabem atrás de mim, como sempre. Ele des-ceu, me ergueu e me carregou para o ba-nheiro para lavar o sangue, xingando bai-xinho:

– Como você pode ser tão desajeita-da!

Reclamava dos problemas que eu lhe arru-mava. Eu era burra demais até para andar!Então, desajeitadamente, pôs um curativono local para estancar o sangue e me tran-cou no cativeiro.

– Agora vou ter que pintar os degrausde novo - gritou, antes de aferrolhar aporta.

Na manhã seguinte, voltou com uma latade tinta e pintou os degraus de concretocinza, onde se viam feias manchas escu-ras. Minha cabeça doía. Quando tentavaerguê-la, uma dor aguda e pungente atra-vessava meu corpo e tudo ficava escuro.Passei alguns dias na cama sem poder memover. Acho que tive uma concussão.Mas, naquelas longas noites, quando a dorme mantinha acordada, eu temia ter que-brado o crânio. Mas não ousava pedir paraver um médico. O sequestrador nuncaquisera me ouvir falar de dor e me castiga-ra também dessa vez por ter me machuça-

do. Nas semanas seguintes, ele me bateurepetidamente no local do machucado.Depois da queda, percebi que o sequestra-dor preferiria me deixar morrer a procurarajuda numa emergência. Até aquele mo-mento, eu simplesmente tivera sorte: nãotinha contato com o mundo exterior e nãocorria o risco de pegar doenças. Priklopilpreocupava-se de modo tão histérico emevitar germes que eu estava a salvo de do-enças, apesar do contato com ele. Nun-ca tive mais que resfriados com um pou-co de febre em todos os anos de cativeiro.Mas um acidente poderia ter acontecido aqualquer momento durante o trabalho pe-sado na casa e, às vezes, parecia um mi-lagre que eu saísse das surras apenas comgrandes hematomas, contusões e lesões,

e que ele nunca tivesse me quebrado umosso. Mas agora eu tinha certeza de quequalquer doença grave, qualquer acidenteque precisasse de tratamento médico sig-nificaria morte certa para mim. Além dis-so, nossa "vida em comum" não era exa-tamente como ele imaginara. A queda nosdegraus e o comportamento posterior de-le eram característicos de uma fase de bri-gas duras que continuaria pelos dois anosseguintes. Uma fase em que eu oscilariaentre a depressão e pensamentos suicidas,por um lado, e a certeza, por outro, de quequeria viver e que tudo daria certo no fi-nal. Uma fase em que ele lutava para har-monizar seus violentos ataques com o so-nho de uma vida "normal" em comum.

Ele tinha cada vez mais dificuldade de fa-zer isso, o que o atormentava.Quando fiz 16 anos, a reforma da casa- na qual ele investira toda sua energia emeu trabalho - estava perto de acabar. Aobra, que durante meses e anos lhe ofe-recera uma rotina diária, chegaria ao fimsem substitutos. A criança que ele seques-trara tornara-se uma jovem mulher - emoutras palavras, transformara-se na per-sonificação do que ele odiava profunda-mente. Eu não queria ser a marionete semvontade própria - como ele talvez esperas-se, para não se sentir humilhado. Eu erateimosa e, ao mesmo tempo, ficava cadavez mais deprimida, tentando me afastarsempre que podia. As vezes, ele tinha queme forçar a sair do cativeiro. Eu chora-

va por longas horas e não tinha forças pa-ra ficar de pé. Ele odiava resistência e lá-grimas, e a passividade o enfurecia, poisele não tinha nada para enfrentar. Na épo-ca, deve ter ficado claro que ele não ha-via acorrentado apenas minha vida à de-le, mas também a dele à minha. E quequalquer tentativa de romper essa corren-te terminaria na morte de um de nós.Wolfgang Priklopil se tornou cada vezmais instável com o passar das semanas,e sua paranóia aumentou. Ele me olhavadesconfiado, sempre esperando que eu oatacasse ou fugisse. À noite, sempre queele caía em estado de profunda ansiedade,me levava para sua cama, me algemava aele e tentava se acalmar com o calor demeu corpo. Mas as variações de humor se

intensificaram, e era em mim que ele des-contava essas oscilações. Agora ele come-çava a falar de uma "vida em comum".Com maior frequência que nos anos an-teriores, me informava de suas decisões eme falava de seus problemas. O fato deque eu era sua prisioneira e de que ele mo-nitorava todos os meus movimentos eraalgo com que ele parecia não se importarem sua busca por um mundo ideal. Se eupertencesse a ele completamente um dia- se ele tivesse certeza de que eu não es-caparia -, então poderíamos ter uma vidamelhor, dizia ele com os olhos brilhantes.Ele tinha ideias vagas sobre o que signifi-cava essa vida melhor. Mas seu papel ne-la estava claramente definido: em todas asversões, ele se via como o dono da casa,

reservando vários papéis para mim. Às ve-zes, eu era dona de casa e fazia trabalhosforçados para ele - desde construir até co-zinhar e lavar. Outras vezes, era a compa-nhia na qual ele encontrava apoio e tam-bém uma mãe substituta, o depósito dolixo psicológico, o saco de pancadas noqual ele costumava descontar sua impo-tência no mundo real. O que nunca mu-dou foi sua ideia de que eu tinha de estarcompletamente a seu dispor. Em seu ro-teiro de uma "vida em comum", ele nun-ca me representou com uma personalida-de própria, com minhas necessidades oumesmo um pouco de liberdade.Minha reação a esses sonhos era ambígua.Por um lado, eles pareciam absurdos paramim. Ninguém que pensasse de modo

claro imaginaria uma vida em comumcom a pessoa que sequestrara, em quembatera durante anos e a quem aprisionara.Ao mesmo tempo, o mundo distante eatraente que ele pintara começou a criarraízes em meu subconsciente. Eu tinhaum desejo imenso de normalidade. Queriaver outras pessoas, sair de casa, fazercompras, nadar. Ver o sol sempre que qui-sesse, conversar com outras pessoas sobreum assunto qualquer. Essa vida em co-mum na mente do se- questrador, em queele me permitiria alguma liberdade, emque eu poderia deixar a casa sob sua su-pervisão, parecia, alguns dias, ser o má-ximo que eu conseguiria nesta vida. A li-berdade, a verdadeira liberdade, era algoque dificilmente eu poderia imaginar de-

pois de todos aqueles anos. Eu temia meaventurar fora da estrutura estabelecida -no interior da qual eu aprendera a tocarcada nota do teclado. Esquecera o som daliberdade.Eu me sentia como um soldado que ouveque está tudo bem depois da guerra. Nãoimporta que ele tenha perdido uma pernanesse meio tempo

– fazia parte da guerra. Para mim,tornara-se uma verdade irrefutávelcom o passar do tempo que eu ti-nha de sofrer antes de a "vida me-lhor" começar. Minha vida melhorno cativeiro.– Você deveria estar feliz por eutê-la encontrado. Você não podiamais viver do lado de fora. Quem

ia querê-la, afinal? Você tem queme agradecer porque a tirei de lá.

A guerra acontecia em minha mente, queabsorveu essas palavras como uma espon-ja.Mas mesmo essa forma de cativeiro me-nos rigorosa era uma promessa para umfuturo distante. E o sequestrador me cul-pava por tudo. Uma tarde, na cozinha, eledisse:

– Se você não fosse tão rebelde, teriauma vida melhor. Se eu tivesse certezade que você não fugiria, não a tranca-ria nem a algemaria.

Quanto mais velha eu ficava, mais eletransferia para mim a responsabilidade pe-la prisão. Se eu apanhava e ficava tranca-da, era por minha culpa - se eu cooperasse

mais, fosse mais humilde e obediente, po-deria viver no andar de cima da casa comele. E eu respondia:

– Mas foi você que me trancou! É vo-cê que me mantém prisioneira! Masparecia que havia muito tempo eleperdera a capacidade de enxergar a re-alidade. E, em certo sentido, me arras-tava com ele.

Em dias bons, essa imagem - a dele, quese tornara minha também - se tornava pal-pável. Em dias ruins, ele se tornava maisimprevisível ainda. Com mais frequênciaque antes, me usava como um capachopara seu mau humor. E as noites em queele não conseguia dormir por causa da si-nusite que o atormentava eram as piores.Se ele não podia dormir, eu também não

poderia. Nessas noites, se eu deitasse emminha cama no cativeiro, sua voz zumbiapelos alto-falantes durante horas. Ele mecontava cada detalhe de como passara odia e me perguntava sobre cada passo, ca-da palavra que eu lera, cada movimento:

– Você fez faxina? Como dividiu a co-mida? O que ouviu no rádio?

Eu tinha de responder, fornecendo todosos detalhes no meio da noite, e, se não ti-vesse nada para dizer, tinha de inventar al-go para acalmá-lo. Em outras noites, elesimplesmente me perturbava:

– Obedeça! Obedeça! Obedeça! -gritava pelo interfone, repetida-mente. Sua voz ressoava pelo pe-queno cômodo, ocupando cadacanto:

– Obedeça! Obedeça! Obedeça!E eu não podia evitá-la, mesmo que pu-sesse a cabeça debaixo do travesseiro. Avoz estava sempre lá para me irritar. Eunão podia suprimi-la. Ela sinalizava paramim, dia e noite, que ele me tinha emseu poder. E sinalizava, dia e noite, queeu não podia desistir. Em momentos demaior objetividade, meu desejo de sobre-viver e fugir era inacreditavelmente maisforte. Mas, na rotina diária, dificilmente ti-nha forças para pensar nisso até o fim.A receita da mãe dele estava na mesa dacozinha. Eu a lera várias vezes para nãocometer erros: separar os ovos, peneirar afarinha com o fermento em pó, bater asclaras até ficarem firmes. Ele ficava obser-vando atrás de mim, nervoso.

– Mamãe não bate os ovos dessejeito!– Mamãe sabe fazer muito melhor!– Você é muito desajeitada. Cuida-do!

Um pouco de farinha caiu na bancada. Elegritou e disse que estava demorando mui-to. Sua mãe, o bolo... Eu fazia o melhorque podia - mas, não importava o que fi-zesse, nunca era suficientemente bom pa-ra ele.

– Se sua mãe pode fazer melhor, porque não pede para ela fazer o bolo pa-ra você? - falei sem querer.

E foi o que bastou.Ele me bateu como se fosse uma criançarebelde, jogou a tigela com a massa nochão e me empurrou contra a mesa da co-

zinha. Então me arrastou até o porão eme trancou. Era dia claro do lado de fo-ra, mas ele não me permitiria luz alguma.Ele sabia como me torturar. Deitei na ca-ma e balancei, em silencio, de um lado pa-ra o outro. Não conseguia chorar nem meimaginar longe daquilo. A cada movimen-to, a dor das contusões e dos hematomasgritava em mim. Mas eu continuava cala-da, deitada na escuridão absoluta, como seestivesse fora do tempo e do espaço.O sequestrador não apareceu. O desper-tador fazia seu tique-taque baixinho e meassegurava que o tempo passava. Talvezeu tivesse cochilado nesse meio tempo,mas não conseguia me lembrar. Tudo semisturava: sonhos se transformavam emdelírios, nos quais eu me via caminhando

no mar com jovens da minha idade. A luzem meu sonho era muito brilhante, e aágua, azul-escura. Eu soltava uma pipa so-bre a água, o vento mexia meus cabelos eo sol queimava meus braços. Era um sen-timento de dissolução absoluta dos limi-tes, uma intoxicação com a sensação deestar viva. Em minha fantasia, eu estavaem um palco, e meus pais, na plateia; eucantava uma canção em voz alta e forte.Minha mãe aplaudia, erguendo-se, e vinhame abraçar. Eu usava um belo vestido detecido cintilante, leve e delicado. Sentia-me bonita, confiante, a salvo.Quando acordei, ainda estava escuro. Odespertador fazia o tique- taque monóto-no. Era o único sinal de que o tempo não

parara. A escuridão durou o restante dodia.O sequestrador não apareceu à noite nemveio na manhã seguinte. Eu sentia fome,meu estômago roncava e lentamente co-meçaram as cólicas. Eu tinha um poucode água no cativeiro e mais nada. Mas be-ber água não ajudava. Eu só conseguiapensar em comida. Teria feito qualquercoisa por uma fatia de pão.Durante o dia, comecei a perder o contro-le sobre meu corpo e meus pensamentos.Sentia dor no estômago, fraqueza, tinhacerteza de que ultrapassara meus limitese que agora ele me deixaria morrer umamorte terrível. Sentia como se estivesse abordo do Titanic, que afundava. A luz jáse fora e o barco, lenta e inexoravelmente,

se inclinava para o lado. Não havia saída.Eu sentia a água escura e fria subindo. Eua sentia nas pernas e nas costas, espirran-do em meus braços, envolvendo as coste-las, subindo cada vez mais... Aí! Um raiode luz brilhante me ofuscou momentane-amente a vista. Ouvi alguma coisa cair nochão com um som abafado. E uma voz:

– Tome. Isso é para você.E uma porta bateu. Ainda estava muitoescuro.Confusa, ergui a cabeça. Estava molhadade suor e não tinha ideia de onde me en-contrava. A água que queria me levar paraas profundezas se fora. Mas tudo oscila-va. Eu oscilava. E abaixo de mim não ha-via nada, mas era um nada escuro, sem-pre impedindo minha mão de chegar ao

vazio. Não sei quanto tempo fiquei apri-sionada nessa visão, até que percebi queestava deitada no beliche do cativeiro. Pa-receu uma eternidade antes que eu pudes-se reunir forças para tatear até a escadae descê-la de costas, degrau por degrau.Quando cheguei ao chão, comecei a en-gatinhar. Minha mão roçou uma pequenasacola plástica. Eu a rasguei avidamente,e minhas mãos tremiam tanto que deixeio conteúdo cair e rolar pelo chão. Tateeiao redor, em pânico, até sentir uma coisalonga e fria nos dedos. Uma cenoura?Limpei-a com a mão e a mordi. Ele jogaraum saco de cenouras no cativeiro. De jo-elhos, deslizei pelo piso frio até encontrartodas. Então levei uma por uma para obeliche. Subir a escada era como subir

uma imensa montanha, mas ativava a cir-culação e fazia a pressão subir. Finalmen-te, eu as devorei, uma após a outra. Minhabarriga roncava alto e se contraía em cóli-cas. As cenouras desciam até o estômagocomo pedras, e a dor era terrível. Somentedois dias depois o sequestrador me deixousubir para o andar de cima de novo. Nosdegraus da garagem, tive de fechar osolhos, pois mesmo a parca claridade meofuscava a vista. Respirei fundo por saberque sobrevivera mais uma vez.

– Vai ser boazinha agora? - ele per-guntou quando alcançamos a casa. -Você tem que tentar ser melhor, se-não vou ter que trancá-la de novo.

Eu estava fraca demais para contradizê-lo.No dia seguinte, vi que a pele da barri-

ga e da parte interna das coxas se tornaraamarelada. O betacaroteno das cenourasse depositara nos últimos vestígios de gor-dura sob a pele branca, quase transparen-te. Eu pesava trinta e oito quilos, tinha 16anos e um metro e setenta e cinco.Pesar-me diariamente transformara-se emobrigação, e eu observava o indicador dabalança se mover para trás dia após dia. Osequestrador perdera todo o senso de pro-porção e ainda me acusava de estar gor-da. E eu acreditava nele. Hoje sei que meuíndice de massa corporal na época era de14,8. Segundo aOrganização Mundial da Saúde, um índicede massa corporal equivalente a 15 já indi-ca subnutrição. O meu estava abaixo dis-so.

A fome é uma experiência física extrema.No início, ainda me sentia bem. Quandoo alimento é retirado, o corpo é estimula-do, a adrenalina flui, e eu me sentia cheiade energia. É provável que o corpo se uti-lizasse desse mecanismo para me sinalizar:"Ainda tenho reservas, mas você precisausá-las para procurar comida". No entan-to, trancada no subsolo, não era possívelencontrar alimento. Os picos de adrenali-na não serviam para nada. Então, o estô-mago começava a roncar e eu fantasiavao ato de comer. Só pensava na próximamordida. Depois, perdi o contato com arealidade e comecei a delirar. Não sonha-va mais, simplesmente oscilava entre doismundos. Via bufês, grandes pratos de es-paguete, bolos e doces à minha disposi-

ção. Miragens. As cólicas moviam todomeu corpo, e eu sentia como se o estô-mago estivesse se devorando. A dor quea fome pode causar é insuportável. Nin-guém pode compreender isso se acha quefome é apenas quando a barriga ronca. Eugostaria de nunca ter sentido cólicas comoaquelas. Finalmente, me sentia fraca. Malpodia erguer o braço, a pressão baixava, e,quando eu ficava de pé, a visão escureciae eu desmaiava.Meu corpo já dava sinais de inanição e fal-ta de luz. Eu era pele e ossos. Nas pantur-rilhas, havia marcas azuis e pretas sobre apele branca. Não sei se eram consequên-cia da fome ou dos períodos sem luz. Maseram preocupantes, como marcas em umcadáver.

Quando o sequestrador me deixava semcomer por um longo período, lentamentevoltava a me dar comida, até que eu esti-vesse forte o suficiente para trabalhar. Is-so levava tempo, porque, depois de umafase mais longa sem me alimentar, eu sóconseguia comer algumas colheradas.Embora não conseguisse pensar em maisnada, durante vários dias o cheiro de co-mida me revirava o estômago. Quandome tornava "muito forte" para ele, ele co-meçava novamente a me negar alimento.Priklopil usava a fome de maneira direcio-nada:

– Você está muito teimosa, tem muitaenergia - dizia, às vezes, antes de reti-rar a última porção de minhas peque-nas refeições.

Ao mesmo tempo, seu próprio transtornoalimentar - que ele transferia para mim -também se intensificou. Suas tentativas decomer de modo saudável assumiram for-mas absurdas.

– Vamos beber uma taça de vinho to-dos os dias para evitar ataques cardía-cos - disse certa vez.

E, a partir de então, eu tinha de beber umcopo de vinho diariamente. Tomava só al-guns goles, porque o gosto não me agra-dava. Engasgava, como se estivesse to-mando um remédio amargo. Ele tambémnão gostava de vinho, mas se forçava abeber uma taça pequena durante a refei-ção. Para ele, não era uma questão de pra-zer, mas de introduzir uma nova regra que

ele teria de seguir rigorosamente - e eutambém.Em seguida, declarou que os carboidratoseram o grande inimigo:

– Agora vamos seguir a dieta cetogê-nica.

Açúcar, pão e frutas eram proibidos. Eleme dava alimentos ricos em gorduras eproteínas, em pequenas porções, e meucorpo esquelético piorava com esse trata-mento. Sobretudo quando eu ficava tran-cada durante vários dias no cativeiro, semcomida, e depois recebia carnes gorduro-sas e um ovo no andar de cima. Quandoeu comia com o sequestrador, devoravaminha ração rapidamente. Se eu terminas-se antes dele, talvez ele me desse mais umpouco, pois achava desagradável que eu o

observasse comendo. A pior coisa era terde cozinhar quando estava faminta. Umdia, ele pôs no balcão uma das receitas damãe e um pacote com pedaços de baca-lhau. Descasquei as batatas, passei o ba-calhau na farinha, separei os ovos e mer-gulhei os pedaços de peixe na gema. Emseguida, aqueci um pouco de óleo na fri-gideira, passei o peixe na farinha de roscae o fritei. Como sempre, ele se sentou nacozinha e comentou:

– Mamãe faz isso dez vezes maisrápido.– Não está vendo que o óleo estáficando muito quente, vaca estúpi-da?– Não descasque a batata desse jei-to. Assim você desperdiça.

O cheiro de peixe frito invadiu a cozinha,me deixando maluca. Eu tirava as porçõesda frigideira e as colocava sobre papel-to-alha para secar.Minha boca se enchia de água. Havia pei-xe suficiente para um banquete. Será queeu podia comer duas porções? E um pou-co de batata também?Não lembro exatamente o que fiz de erra-do nesse momento. Só sei que Priklopil selevantou de um pulo, tirou de minha mãoo prato que eu queria usar para levar a co-mida à mesa e gritou:

– Você não vai ganhar nada hoje!Nesse momento, perdi totalmente o con-trole. Eu sentia tanta fome que podia ma-tar alguém por um pedaço de peixe. Agar-rei o prato com uma das mãos, peguei um

pedaço de peixe e tentei enfiá-lo inteirona boca. Mas ele foi mais rápido e o ti-rou de minha mão. Tentei pegar um se-gundo pedaço, mas ele agarrou meu pul-so e o apertou com tanta força que eu olarguei. Abaixei-me para pegar os pedaçosque haviam caído no chão durante a bri-ga. Tentei pôr um pequeno pedaço na bo-ca. Mas ele imediatamente me segurou pe-la garganta, me ergueu, me arrastou até apia e empurrou minha cabeça. Com a ou-tra mão, afastou meus dentes e me estran-gulou até que eu cuspisse o peixe proibi-do.

– Isso vai lhe ensinar uma lição.Então pegou o prato de servir da mesa e olevou para o corredor. Parei em frente aos

armários da cozinha, humilhada e indefe-sa.O sequestrador me mantinha fraca usan-do esses métodos - e me prendia em umamistura de dependência e gratidão. Não semorde a mão que o alimenta. Para mim,havia apenas uma mão que podia me sal-var da fome. Era a mão do mesmo ho-mem que sistematicamente retirava minhacomida. Desse modo, as pequenas raçõesde comida às vezes pareciam presentes ge-nerosos. Lembro- me claramente da sala-da de frios que a mãe dele preparava devez em quando, nos fins de semana, e queainda hoje considero um prato especial.Quando eu podia voltar para o andar decima, depois de dois ou três dias no cati-veiro, às vezes ele me dava uma pequena

tigela dessa salada. Geralmente só sobra-vam no molho cebolas e uns poucos pe-daços de tomate, pois ele retirava os friose os ovos cozidos. Mas esses restos eramum banquete para mim. E, quando ele medava mais uma porção de seu prato oumesmo um pedaço de bolo, eu ficava ra-diante. E muito fácil se ligar a alguém quetira sua comida.Em 1 ° de março de 2004, teve início, naBélgica, o julgamento do assassino em sé-rie Mare Dutroux. Eu me lembro muitobem do caso, ocorrido na minha infância.Eu tinha 8 anos quando a polícia invadiua casa dele, em agosto de 1996, e libertouduas meninas - Sabine Dardenne, de 12anos, e Laetitia Delhez, de 14. Os corpos

de quatro outras meninas foram encontra-dos.Durante meses, acompanhei as notíciassobre o julgamento no rádio e na televi-são. Ouvi sobre o martírio de Sabine Dar-denne e sofri com a acareação entre ela eo criminoso no tribunal. Ela também fo-ra jogada em uma caminhonete e seques-trada a caminho da escola. O quarto ondefora trancada era ainda menor que o meu,e sua história no cativeiro foi diferente.Ela vivera o pesadelo com que o seques-trador me ameaçava. Embora houvessediferenças significativas, o crime, desco-berto dois anos antes de meu sequestro,pode ter servido como modelo para o pla-no doentio de Wolfgang Priklopil. No en-tanto, não há provas disso.

O julgamento me emocionou, mesmoque, naquele momento, eu não me visserefletida em Sabine Dardenne. Ela fora li-bertada após oitenta dias de cativeiro. Es-tava muito zangada e sabia que estava cer-ta. Chamou o sequestrador de "monstro"e "canalha", e exigiu que ele se retratassena corte, o que não aconteceu.O tempo do cativeiro de Sabine fora curtodemais para que ela perdesse o juízo. Naépoca, eu estava presa havia 2.200 longosdias e noites. Minha percepção começaraa se alterar fazia muito tempo. Intelectual-mente, eu sabia que era vítima de um cri-me. Mas, emocionalmente, o longo perío-do de contato com o sequestrador, neces-sário à minha sobrevivência, me fez inter-

nalizar suas fantasias psicopatas. Elas setornaram minha realidade.Aprendi duas coisas com aquele julga-mento. Primeiro, que nem sempre se acre-dita nas vítimas de crimes violentos. Opaís inteiro parecia convencido de queMare Dutroux era apenas o testa de ferrode uma grande organização, que chegavaaté ao alto escalão. No rádio, ouvi sobreos insultos a que Sabine Dardenne erasubmetida porque se recusava a confirmaressas teorias, insistindo no fato de quenunca vira outra pessoa com Dutroux. E,em segundo lugar, aprendi que a compai-xão e a empatia em relação à vítima nãosão ilimitadas e podem se transformar ra-pidamente em agressividade e rejeição.

Na mesma época, ouvi meu nome no rá-dio pela primeira vez. Sintonizara a esta-ção cultural austríaca 01, para ouvir umprograma baseado em fatos reais, quandodei um pulo: "Natascha Kampusch". Du-rante seis anos, não ouvira ninguém pro-nunciar meu nome. A única pessoa quepodia fazê-lo tinha me proibido demencioná-lo. O locutor do rádio o men-cionou em conexão com um novo livroescrito por Kurt Totzer e Günther Kal-linger, intitulado Spurlos: die spektakulãrstenVermisstenfã Ue der Interpol [Sem vestígios:os casos de pessoas desaparecidas mais es-petaculares da Interpol]. Os autores fala-ram da pesquisa que fizeram - e de mim,um caso misterioso em que não havia ves-

tígios nem corpo, diziam. Sentei diante dorádio e quis gritar:

– Estou aqui! Estou viva!Mas ninguém podia me ouvir.Depois da transmissão de rádio, minha si-tuação ficou mais desesperadora do quenunca. Sentei na cama e subitamente vi tu-do muito claro. Eu sabia que não podiapassar minha vida daquele jeito, e tambémsabia que não seria mais resgatada. Fugirparecia impossível. Só havia uma saída.Aquele dia não foi a primeira vez quetentei o suicídio. Simplesmente desapare-cer no nada distante, onde não havia dornem sentimentos, na época me pareceuum ato de autonomia. Caso contrário, euteria muito pouco poder para tomar de-cisões sobre minha vida, meu corpo, mi-

nhas ações. Tirar minha própria vida erameu último trunfo.Aos 14 anos, tentei várias vezes me es-trangular usando peças de roupas, masnão consegui. Aos 15, quis cortar os pul-sos. Cortei a pele com uma agulha de cos-tura grande e continuei até não aguentarmais. A dor no braço era insuportável,mas, ao mesmo tempo, liberava a dor queeu sentia por dentro. As vezes, era um alí-vio quando a dor física abafava o tormen-to psicológico por alguns instantes.Dessa vez, eu queria escolher outro mé-todo. Era uma daquelas tardes em que osequestrador me trancara no cativeiro eeu sabia que ele não voltaria até o dia se-guinte. Arrumei o cômodo, dobrei minhaspoucas camisetas e dei uma última olha-

da no vestido de flanela com que fora se-questrada e que agora estava penduradodebaixo do beliche. Em pensamento,despedi-me de minha mãe:

– Perdoe-me por ir embora agora. Epor ter saído sem me despedir de você- sussurrei.

O que poderia acontecer?Então andei lentamente em direção à cha-pa elétrica e a acendi. Quando ela aque-ceu, pus papel e rolos de papel higiênicoem cima dela. Levou algum tempo para opapel começar a queimar, mas funcionou.Então subi no beliche e me deitei. O cati-veiro se encheria de fumaça e eu seria gen-tilmente conduzida, como havia planeja-do, para fora de uma vida que já não mepertencia.

Não sei quanto tempo fiquei deitada nacama esperando pela morte. Pareceu umaeternidade, mas provavelmente foi tudomuito rápido.Quando a fumaça asfixiante chegou ameus pulmões, comecei a inspirar profun-damente. Mas então a vontade de viver,que eu acreditava estar perdida, veio à to-na com mais força ainda. Cada fibra demeu ser se preparou para fugir. Comecei atossir, segurei o travesseiro diante da bo-ca e desci depressa a escada. Abri a tornei-ra, molhei alguns panos e os joguei sobreo papel. A água fez um chiado e a fumaçaengrossou. Tossindo e com lágrimas nosolhos, girei a toalha em torno do cômodopara dispersar a fumaça. Eu tentava pen-sar em algo para esconder do sequestra-

dor minha tentativa de me asfixiar. O sui-cídio era o ato derradeiro de desobediên-cia, a pior ofensa imaginável.Mas, na manhã seguinte, o cativeiro aindacheirava como uma casa de defumação.Priklopil entrou e inspirou o ar, que o ir-ritou. Ele me arrancou da cama, me sacu-diu e gritou comigo. Como eu ousava ten-tar escapar?! Como me aproveitara de suaconfiança dessa maneira?! Seu rosto refle-tia uma mistura de raiva e medo ilimita-dos. Medo de que eu pudesse arruinar tu-do.

MEDO DA VIDAA prisaã o interior se completaSocos e pontapés, estrangulamento, arra-nhões, contusão e esmagamento do pu-nho, espremido no batente da porta. Atin-gida por um martelo (pesado) e socos noestômago. Hematomas: no quadril (ladodireito); antebraço ( 5 x 1 cm) e braço (cer-ca de 3,5 cm de diâmetro) direitos; nas co-xas esquerda e direita, no lado externo (es-querda: 9-10 cm de comprimento, colora-ção de preta profunda a arroxeada, cerca de

4 cm de largura), assim como nos doisombros. Lesões e arranhões em ambas ascoxas e na panturrilha esquerda.Trecho do diário, janeiro de 2006Eu TINHA 17 ANOS quando o seques-trador trouxe para o cativeiro o filme Ple-asantville: a vida em preto e branco. Era a his-tória de um casal de irmãos que vivia nosEstados Unidos na década de 1990. Naescola, os professores falavam sobre assombrias perspectivas de emprego, a aidse a ameaça de destruição do planeta emvirtude das mudanças climáticas. Em casa,os pais divorciados brigavam pelo telefo-ne para ver quem ficaria com as criançasno fim de semana. Com os amigos, sóproblemas. O irmão foge para o mundodas séries de televisão da década de 1950:

"Bem-vindo a Pleasantville! Moral e de-cência. Cumprimentos carinhosos: 'Que-rida, cheguei!' A comida certa. Você querbiscoitos?' Bem-vindo ao mundo perfeitode Pleasantville. Apenas no TV Time!"Em Pleasantville, a mãe serve o jantarquando o pai chega em casa do trabalho.As crianças se vestem bem e sempre acer-tam na cesta quando jogam basquete. Omundo tem somente duas ruas, e os bom-beiros têm apenas uma tarefa: tirar gatosde árvores, porque ali não há incêndios.Depois de brigar pelo controle remoto, osirmãos subitamente chegam a Pleasantvil-le. Eles estão presos nesse estranho lu-gar, onde não há cores e os habitantes vi-vem de acordo com regras que os doisconsideram incompreensíveis. Quando se

adaptam e se integram à sociedade, desco-brem que viver em Pleasantville pode sermuito agradável. Mas, quando eles que-bram as regras, os amáveis habitantes setransformam em uma multidão furiosa.O filme era uma parábola da vida queeu levava. Para o sequestrador, o mundoexterior era sinônimo de Sodoma e Go-morra: perigos, sujeira e vício espreitavampor toda parte. Um mundo que, para ele,se tornara símbolo de seu fracasso e queele queria manter longe - dele e de mim.Nosso mundo por trás das paredes amare-las deveria ser como Pleasantville: "Vocêquer biscoitos?" "Obrigado, querida." Erauma ilusão - que ele invocava repetida-mente em suas conversas - de que pode-ríamos ter uma vida melhor, na casa bri-

lhante e com a mobília que quase se su-focava na própria convencionalidade. Masele continuava a trabalhar nessa fachada,investindo em sua - em nossa - nova vida,para, no minuto seguinte, demoli-la a so-cos.No filme, havia uma cena em que alguémdizia: "Minha realidade é tudo o que co-nheço". Hoje, quando folheio meu diário,às vezes fico chocada ao ver como meadaptei ao roteiro de Priklopil, com todasas suas contradições:Querido diário,E hora de abrir meu coração, sem reser-vas, sobre a dor que sinto. Tudo começouem outubro. Eu não sei como estavam ascoisas, mas

o que aconteceu não foi muito bom. Eleestava plantando arbustos de tuia, que pa-reciam muito bonitos. As vezes ele nãoia muito bem, e, quando não estava bem,transformava minha vida em um inferno.Sempre que ele tinha dor de cabeça e to-mava um comprimido, tinha uma reaçãoalérgica e seu nariz começava a escorrer.Mas o médico havia receitado gotas. Dequalquer maneira, era complicado. Haviacenas desagradáveis. No fim de outubro, anova mobília do quarto chegou com o so-noro nome de Esmeralda. Os cobertores,travesseiros e colchões vieram um poucodepois. Tudo tinha que ser hipoalergênicoe lavável em alta temperatura. Quando acama chegou, tive que ajudá-lo a desmon-tar o antigo guarda-roupa. Isso levou três

dias. Tínhamos que desmontar as peças,carregar as pesadas portas espelhadas pa-ra o escritório, e os lados e prateleiras pa-ra baixo. Então fomos à garagem e abri-mos toda a mobília e parte da cama. Amobília incluía duas mesinhas de cabecei-ra com duas gavetas cada e maçanetas delatão dourado, duas cômodas, uma alta eestreita com... [interrompido]Maçanetas de latão dourado, polidas peladona de casa perfeita, que punha o jantarna mesa e cozinhava de acordo com asreceitas da mãe dele, mais que perfeita.Enquanto eu fazia tudo direito e transi-tava entre os cenários, a ilusão funciona-va. Mas, se houvesse qualquer mudançano roteiro e eu não percebesse, era se-veramente punida. A imprevisibilidade do

sequestrador havia se tornado meu maiorinimigo. Mesmo quando estava conven-cida de que fizera tudo direito, mesmoquando pensava que sabia que requisitoera necessário e em que momento, não ti-nha nenhuma garantia de estar segura. Seeu o fitasse por muito tempo, se colocas-se o prato errado na mesa - aquele que nodia anterior fora o correto -, ele tinha umataque de raiva.Um pouco mais tarde, escrevi:Socos violentos na cabeça, no ombro di-reito, no estômago, nas costas e no rosto,além da orelha e do olho. Ataques de raivaincontroláveis, imprevisíveis e súbitos.Gritos, xingamentos e empurrões enquan-to eu descia as escadas. Ele me estrangu-lou, sentou em cima de mim e apertou mi-

nha boca, me sufocando. Sentou nas jun-tas dos braços, se ajoelhou em meus de-dos e apertou meus braços com as mãos.Nos antebraços, tenho hematomas commarcas de dedos, um arranhão e uma le-são na axila esquerda. Ele se sentou emminha cabeça ou, ajoelhado em meu tron-co, bateu minha cabeça no chão com for-ça. Fez isso várias vezes, com toda força,me deixando com dor de cabeça e enjoa-da. Depois levei socos e ele jogou objetosem mim, me empurrando com violênciacontra a mesinha de cabeceira. [... ]A mesinha com as maçanetas de latão.Então ele me deixava fazer coisas que medavam a ilusão de que se importava. Porexemplo, deixou meu cabelo crescer denovo. Mas isso era parte da encenação,

porque então eu tinha de pintar o cabelode loiro para me adequar à imagem queele tinha da mulher ideal: loira, obedientee trabalhadora.Eu passava cada vez mais tempo no andarde cima da casa, cada vez mais horas lim-pando, arrumando e cozinhando. Comosempre, ele não me perdia de vista nempor um segundo. O desejo de me contro-lar completamente fez com que ele em-penasse as portas dos banheiros - ele nãopodia me perder de vista nem por dois mi-nutos. Essa presença permanente me le-vava ao desespero.Mas ele também era prisioneiro do pró-prio roteiro. Sempre que me trancava nocativeiro, precisava me dar comida e ou-tras coisas. Sempre que me levava para o

andar de cima, precisava me controlar acada minuto. Seus métodos eram sempreos mesmos. Mas a pressão sobre ele cres-cia. E se centenas de socos não fossemsuficientes para me controlar? Então eletambém fracassaria em sua Pleasantville.E não haveria volta.Priklopil sabia dos riscos. Por isso, faziatudo para que eu entendesse o que meaguardava se ousasse deixar seu mundo.Lembro de uma vez em que ele me humi-lhou tanto que imediatamente corri paradentro de casa.Uma tarde, eu estava trabalhando no an-dar de cima e pedi que ele abrisse a janela.Tudo o que eu queria era um pouco maisde ar e ouvir os pássaros no lado de fora.Mas ele gritou:

– Você só quer que eu abra a janelapara poder gritar e fugir! Jurei quenão ia fugir:– Vou ficar, juro. Nunca vou fugir.

Ele me olhou desconfiado, então me agar-rou pelo braço e me levou até a porta dafrente. Era dia e, embora a rua estivessevazia, era uma manobra arriscada. Eleabriu a porta e me empurrou para o ladode fora, sem soltar meu braço:

– Vai! Corre! Vai! Veja até onde vocêvai vestida assim!

Fiquei paralisada de medo e vergonha. Eunão vestia praticamente nada e tentava co-brir o corpo com a mão livre. A vergonhapor um estranho me ver tão magra, cheiade hematomas e com o cabelo curtinhoera maior do que a pouca esperança de

que alguém pudesse ver a cena e achar es-tranho.Ele fez isso algumas vezes, me empurran-do nua na frente da casa e dizendo:

– Vai! Corre! Veja até onde você che-ga!

E, a cada vez, o mundo lá fora pareciamais e mais ameaçador. Eu enfrentava umgrande conflito entre o desejo de conhe-cer o mundo e o medo de dar esse passo.Durante meses, pedi que ele me deixasseir até o lado de fora por pouco tempo, eele sempre me perguntava:

– O que você quer lá fora? Você nãoestá perdendo nada! O lado de fora éigual ao de dentro. Além disso, se vo-cê gritar, vou ter que matá-la.

Ele, por sua vez, oscilava entre a paranoiapatológica, o medo de tero crime descoberto e o sonho de uma vidanormal, em que teríamos de sair para omundo exterior. Era um círculo vicioso e,quanto mais ele se sentia ameaçado porseus próprios pensamentos, mais agres-sivamente se voltava contra mim. Comoantes, ele se baseava em uma mistura deviolência física e psicológica. Pisoteavasem piedade o que restara de minha au-toestima e repetia as mesmas palavras desempre:

– Você não vale nada. Deveria meagradecer por ter pegado você. Nin-guém mais ia querer.

E dizia que meus pais estavam na cadeia eque ninguém vivia em nosso apartamento.

– Para onde você iria se fugisse? Nin-guém a quer. Você voltaria rastejando,cheia de remorso.

E me lembrava com insistência que ma-taria qualquer pessoa que testemunhasseminha tentativa de fuga. As primeiras ví-timas, segundo ele, provavelmente seriamos vizinhos. E eu certamente não queriaser culpada por isso, queria?Ele se referia às pessoas que viviam na ca-sa ao lado. Desde que começara a nadarna piscina de vez em quando, me sentialigada a eles de modo particular, comose fossem os únicos que me permitissemdesfrutar de minha pequena fuga da vidacotidiana na casa. Eu nunca os vi, mas àtarde, no andar de cima da casa, às vezespodia ouvi-los chamando os gatos. As vo-

zes pareciam amigáveis e preocupadas, depessoas que cuidam com carinho de quemdepende delas. Priklopil tentou reduzir aomínimo o contato com eles. Às vezes, tra-ziam um bolo ou uma lembrança das via-gens. Uma vez, tocaram a campainha en-quanto eu estava na casa, e tive de meesconder rapidamente na garagem. Ouvia voz deles quando estavam na porta dafrente com o sequestrador, oferecendo-lhe comida caseira. Ele sempre jogava acomida fora imediatamente. Com sua ob-sessão por limpeza, nunca comia nada,porque a comida dos outros lhe causavanojo.Quando ele me levou para fora pela pri-meira vez, não tive uma sensação de liber-dade. Eu queria tanto ser finalmente le-

vada para fora da prisão. No entanto, mesentei no banco do carona e fiquei parali-sada de medo. O sequestrador repetira oque eu deveria dizer se alguém me reco-nhecesse:

– Primeiro, você tem que fingir quenão sabe do que estão falando. Se issonão funcionar, tem que dizer: "Não,vocês estão enganados". E, se alguémperguntar quem você é, diga que é mi-nha sobrinha. Havia muito Nataschadeixara de existir. Então ele ligou ocarro e saiu lentamente da garagem.

Dirigiu pela Heinestrasse, em Strasshof:jardins, cercas vivas e casas atrás delas. Arua estava vazia. Eu sentia o coração que-rendo sair pela boca. Pela primeira vezem sete anos, saía da casa do sequestra-

dor. Ele dirigia por um mundo que euconhecia apenas de minhas lembranças ede pequenos vídeos que ele fizera paramim anos antes. Imagens que mostravamStrasshof e, de vez em quando, algumaspessoas. Quando ele virou em direção àrua principal, mais movimentada, vi, decanto de olho, um homem caminhandona calçada. Ele andava de modo estranhoe monótono, nunca parava, não fazia ummovimento inesperado, como um solda-do de corda com uma chave saindo dascostas.Tudo o que eu via parecia irreal. Era co-mo a primeira vez em que fora para o jar-dim à noite, aos 12 anos - duvidei da exis-tência das pessoas, que se moviam pelasredondezas de modo tão natural e tran-

quilo, em um ambiente que eu conhecia,mas que se tornara estranho para mim. Aluz clara que banhava todas as coisas pa-recia vir de um imenso holofote. Naquelemomento, tive certeza de que o sequestra-dor arranjara tudo. Era tudo um cenáriode filme, como o cenário gigantesco dofilme O show de Truman. Todas as pessoaseram figurantes, tudo era encenado parame fazer acreditar que eu estava do ladode fora, quando, na realidade, continuavaaprisionada em uma cela maior. Só maistarde percebi que meu cativeiro se trans-formara em uma prisão psicológica.Saímos de Strasshof, seguindo pelo cam-po por algum tempo, e paramos em umpequeno bosque. Por alguns instantes, pu-de sair do carro. O ar tinha cheiro de plan-

tas e madeira, a luz do sol atravessava asagulhas secas dos pinheiros. Ajoelhei-mee toquei o chão com cuidado. As agulhasme picaram, deixando marcas vermelhasna palma da mão. Andei alguns passos nadireção de uma árvore e encostei a testano tronco. A casca áspera estava quentedo sol e exalava um odor intenso de resi-na. Assim como as árvores que eu lembra-va de minha infância.No caminho de volta, nenhum de nós fa-lou. Quando o sequestrador me deixousair do carro na garagem e me trancou nocativeiro, uma tristeza profunda me inva-diu. Eu tinha ansiado por tanto tempo pe-lo mundo exterior, imaginando-o em co-res tão vívidas. E agora eu o tinha atra-vessado como se fosse um mundo ima-

ginário. Minha realidade se transformarano papel de parede da cozinha. Esse era oambiente em que eu sabia como me mo-ver. Do lado de fora, caminhava sem ru-mo, como se estivesse no filme errado.Essa impressão diminuiu quando pudesair novamente. O sequestrador se anima-ra com minha atitude submissa e assusta-da nos primeiros passos hesitantes do la-do de fora da casa. Poucos dias depois,me levou a uma farmácia na cidade. E meprometera algo bonito de lá. Estacionouna frente da loja e sussurrou para mim no-vamente:

– Nem uma palavra. Senão todos aídentro vão morrer.

Então saiu, deu a volta no carro e abriu aporta para mim.

Caminhei até a loja na frente dele. Podiaouvi-lo respirando baixinho bem atrás demim e imaginava sua mão no casaco dajaqueta segurando uma pistola, dispostoa atirar em todos se eu fizesse um únicomovimento errado. Mas eu seria boazi-nha. Não queria pôr ninguém em risco.Não ia correr. Só queria sentir um pouqui-nho o que era a vida das outras garotas daminha idade e andar pela seção de cosmé-ticos da farmácia. Embora eu não pudesseusar maquiagem - o sequestrador não medeixava nem usar roupas normais -, con-seguira permissão para escolher dois itensque eram parte da vida normal de umaadolescente. Para mim, rímel era indispen-sável. Eu lera sobre isso nas revistas paraadolescentes que

o sequestrador trazia para o cativeiro devez em quando. Lia várias vezes as pá-ginas com dicas de maquiagem, me ima-ginando maquiada para a primeira ida aoclube. Rindo e me arrumando com as ami-gas na frente do espelho, experimentandouma blusa, depois outra. Meu cabelo estábom? Vamos logo!E agora lá estava eu, entre as longas pra-teleiras com inúmeros frascos e tubos queeu não conhecia e que exerciam uma atra-ção mágica sobre mim, mas também meperturbavam. Era muita coisa de uma sóvez, e eu não sabia o que fazer, com medode derrubar algo.

– Vamos! Rápido! - disse a voz atrásde mim.

Rapidamente peguei uma embalagem derímel e um pequeno frasco de óleo essen-cial de menta em uma prateleira de madei-ra. Eu queria mantê-lo aberto no porão,na esperança de que disfarçasse o cheirode mofo. Durante todo o tempo, o se-questrador ficou parado atrás de mim. Eleme deixava nervosa; eu me sentia comouma criminosa que ainda não fora reco-nhecida, mas que a qualquer momento se-ria descoberta. Fiz um esforço para andaraté o caixa da forma mais tranquila possí-vel. Uma mulher gorda, com cerca de 50anos e cachos cinza meio bagunçados, es-tava sentada no balcão. Quando me dis-se um alegre "Olá", dei um salto. Eramas primeiras palavras que um estranho medirigia em mais de sete anos. A última vez

que falara com alguém que não fosse euou o sequestrador, eu ainda era uma crian-ça pequena e gorducha. Agora a caixa mecumprimentava como uma cliente adultade verdade. Ela me tratou com um for-mal "senhora" e sorriu enquanto eu colo-cava, em silêncio, os dois produtos na es-teira rolante. Fiquei agradecida à mulherpor prestar atenção em mim, por ver queeu existia. Eu poderia ter ficado de pé nobalcão do caixa durante horas, apenas pa-ra sentir a proximidade com outra pessoa.Nunca me ocorreu lhe pedir ajuda. O se-questrador estava a apenas alguns centí-metros de mim, e eu tinha certeza de queestava armado. Eu nunca poriaem risco avida da mulher que, apenas por um mo-mento, me deu a sensação de estar viva.

Nos dias seguintes, as surras aumentaram.O sequestrador passou a me trancar commais frequência, e eu deitava na cama co-berta de hematomas, lutando comigomesma. Eu não podia me deixar consumirpela dor, não podia desistir, não podiame entregar ao pensamento de que a pri-são era a melhor coisa que já me acon-tecera. Tinha de repetir para mim mesmaque eu não tinha sorte por estar viva como sequestrador, apesar de ele dizer issoconstantemente. Suas palavras caíam so-bre mim como armadilhas. Sempre que eudeitava no escuro consumida pela dor, sa-bia que ele estava errado. Mas o cérebrohumano rapidamente suprime o sofri-mento. E, no dia seguinte, ficava satisfeitapor me submeter à ilusão de que ele não

era de todo mal e por acreditar em seusdevaneios.Mas, se eu quisesse fugir do cativeiro, teriaque me libertar dessas armadilhas.

I want once more in my life some happiness Andsurvive in the ecstasy of livingI want once more see a smile and a laughing for awhileI want once more the taste of someone's love{7}

Trecho do diário, janeiro de 2006

Nessa época, comecei a escrever mensa-gens curtas para mim mesma. Quando vo-cê vê algo em branco e preto, as coisas setornam mais tangíveis. Elas se tornam re-alidade em um nível do qual seu pensa-mento tem mais dificuldade de escapar. A

partir de então, passei a escrever sobre ca-da surra, de maneira sóbria e sem emoção.Ainda tenho esses registros. Alguns delesforam feitos em um caderno escolar deformato A5, em letra clara e precisa. Ou-tros foram escritos em folhas verdes A4,com linhas muito próximas umas das ou-tras. As anotações naquela época tinham omesmo objetivo que hoje, porque, olhan-do para trás, as pequenas experiências po-sitivas durante o cativeiro estão mais pre-sentes em minha mente do que os horro-res inacreditáveis a que fui submetida aolongo de anos.20de agosto de 2005. Wolfgang me bateupelo menos três vezes no rosto, me deuuma joelhada no cóccix umas quatro ve-zes e uma vez no púbis. Ele me forçou a

me ajoelhar diante dele e me cortou comum chaveiro no cotovelo esquerdo, fazen-do um hematoma e uma lesão com secre-ção amarela. Então veio a gritaria e o tor-mento. Seis socos na cabeça.21de agosto de 2005. Queixas matinais.Xingamentos sem motivo. Depois, socose surra. Pontapés e empuuões. Seis tapasno rosto, um soco na cabeça. Xingamen-tos e tapas no rosto, um soco na cabeça.Xingamentos e tapas, café da manhã semcereal. Depois, escuridão lá embaixo/semdiscussão/frases tolas para me manipular.E arranhou minha gengiva com o dedo.Apertou meu queixo e me estrangulou.22 de agosto de 2005. Socos na cabeça.23 de agosto de 2005. Pelo menos 60 tapasno rosto. 10-15 socos na cabeça que me

deixaram com náusea, quatro tapas com apalma da mão aberta na cabeça, um sococom toda a força na orelha direita e namandíbula. Minha orelha ficou preta. Es-trangulamento, soco no queixo, fazendo amandíbula estalar, mais ou menos 70 gol-pes com o joelho no cóccix e no bum-bum. Socos no cóccix e na coluna, na cos-tela e entre os seios. Golpes com uma vas-soura no cotovelo esquerdo e braço (he-matoma preto-amarronzado) e no pulsoesquerdo. Quatro socos no olho que mefizeram ver luzes azuis. E muito mais.24 de agosto de 2005. Joelhadas no estô-mago e nos genitais (queria que eu me ajo-elhasse). E na base da coluna também. Ta-pas na cara, um soco forte na orelha direi-

ta (coloração preta e azul). Depois a escu-ridão do cativeiro, sem comida ou ar.25de agosto de 2005. Socos no quadril eno esterno. Em seguida, os xingamentosde sempre. Escuridão no cativeiro. Du-rante todo o dia, comi sete cenouras cruase bebi um copo de leite.26de agosto de 2005. Socos com o punhona parte posterior da coxa e no bumbum(tornozelo). Tapas no bumbum, costas,laterais das coxas, ombro direito, axilas epeito, que deixaram pústulas vermelhas.Esse era o horror de uma única semana,que se repetiu inúmeras vezes. De vez emquando, era tão ruim que eu tremia a pon-to de não poder segurar a caneta. Raste-java até a cama, choramingando, cheia demedo de que as imagens do dia me as-

sombrassem à noite também. Então fala-va com meu outro eu, que esperava pormim e me levaria pela mão, não importavao que acontecesse. Eu imaginava que ooutro eu podia me ver no espelho de trêspartes, que agora estava pendurado sobrea pia, no cativeiro. Se eu me olhasse portempo suficiente, poderia ver meu eu for-te refletido em meu rosto.Da próxima vez - prometera para mimmesma - eu não ignoraria uma possibilida-de de ajuda. E teria força para pedir so-corro a alguém.Uma manhã, o sequestrador me trouxeuma calça jeans e uma camiseta. Ele queriaque eu o acompanhasse até uma loja dematerial de construção. Minha coragemcomeçou a diminuir quando viramos na

estrada para Viena. Se ele continuasse na-quela estrada, iríamos na direção de meuantigo bairro. Era o mesmo caminho queeu tomara no dia 2 de março de 1998, nadireção oposta - agachada na traseira dacaminhonete. Na época, eu temia morrer.Agora, aos 17 anos, sentada no banco dafrente, eu temia viver.Seguimos até Süssenbrunn, a apenas algu-mas ruas da casa de minha avó. Tudo pa-recia perdido para sempre, como se fossede um século distante. Vi as ruas, as ca-sas, os paralelepípedos familiares, onde eubrincava de amarelinha. Mas eu não faziamais parte daquilo.

– Olhe para o chão - ordenou Pri-klopil, ao meu lado. Obedeci imedi-atamente. Estar tão próxima dos lu-

gares de minha infância me deu umasensação de aperto na garganta e ten-tei evitar as lágrimas. Em alguma par-te do lado direito, estava a rua paraRennbahnweg. Em alguma parte dolado direito, no grande conjunto ha-bitacional, minha mãe talvez estivessesentada à mesa da cozinha. Com cer-teza, ela agora achava que eu estavamorta, mas ali estava eu, passando porela, a poucas centenas de metros. Eume senti abatida e muito, muito maisdistante do que aquelas poucas ruasentre nós. Essa impressão aumentouquando o sequestrador virou em di-reção ao estacionamento da loja deconstrução. Inúmeras vezes, minhamãe esperara no sinal vermelho da es-

quina para virar à direita, porque alificava o apartamento de minha irmã.Hoje sei que a mãe do sequestrador,Waltraud Priklopil, também moravaali perto.

O estacionamento da loja estava lotado.Um casal fazia fila em um es-tande de co-mida na entrada. Outros empurravam car-rinhos de compras até o carro. Operáriosde calça azul manchada carregavam vigasde madeira no estacionamento. Meus ner-vos estavam a ponto de explodir. Eu olha-va para fora da janela. Uma daquelas mui-tas pessoas me veria e perceberia que algonão estava certo. O sequestrador parecialer meus pensamentos.

– Você vai ficar sentada. Vai sairquando eu disser. Então vai ficar na

minha frente e andar lentamente atéa entrada. Não quero ouvir nem umpio!

Caminhei até a loja na frente dele. Ele meorientava com uma leve pressão da mãoem meu ombro. Podia perceber que eleestava nervoso, pois os músculos dos de-dos estavam tensos.Observei o longo corredor à minha fren-te. Homens de uniforme estavam paradosdiante das prateleiras, segurando listas eocupados com as próprias tarefas. Comquem eu deveria falar? O que deveria di-zer? Olhava cada um deles com o cantodo olho. Mas, quanto mais eu olhava, maiso rosto deles se deformava em caretas.Subitamente, eles me pareceram hostis epouco amigáveis, pessoas ocupadas consi-

go mesmas e cegas para o que aconteciaà sua volta. Eu não conseguia parar depensar. De repente, pareceu absurdo pe-dir ajuda a alguém. Quem acreditaria emmim, uma adolescente esquelética, confu-sa, que mal conseguia falar? O que acon-teceria se eu me virasse para uma dessaspessoas e perguntasse se ela podia me aju-dar?"Minha sobrinha faz isso sempre. Coitadi-nha. Infelizmente ela tem problemas men-tais e precisa de remédios", diria Priklopil,e todos assentiriam, enquanto ele me ar-rastaria pelo braço e me levaria para forada loja. Por um instante, pude ouvir gar-galhadas insanas. O sequestrador não pre-cisaria matar ninguém para esconder seucrime! Tudo se encaixava. Ninguém ligava

para mim. Ninguém pensaria que eu esta-va dizendo a verdade ao pedir ajuda: "Porfavor, me ajude! Fui sequestrada!"Sorria, você está no programa de pegadinhas! Eo apresentador disfarçado sairia detrás dasprateleiras e revelaria a piada. Ou talvez osimpático tio por trás da garota estranha.Vozes gritavam enlouquecidas em minhamente: "Meu Deus! Lamento por ele. Nãodeve ser fácil cuidar de alguém assim...Mas que bom que toma conta dela".

– Posso ajudar?A pergunta ecoou em meus ouvidos co-mo uma zombaria. Precisei de um mo-mento para entender que ela não vinha daconfusão de vozes em minha mente. Umvendedor da seção de limpeza estava pa-rado à nossa frente.

– Posso ajudar? - repetiu. Seu olharpassou por mim e fixou-se no se-questrador. Que ingênuo! Sim, vocêpode me ajudar! Por favor! Comecei atremer, e manchas de suor se for-maram na camiseta. Eu estava en-joada e meu cérebro se recusava ame obedecer. O que eu queria dizeragora há pouco?– Obrigado, está tudo certo - dissea voz atrás de mim.

Em seguida, sua mão agarrou meu braço. Obri-gado, está tudo certo. E, caso eu não veja você,bom dia, boa tarde e boa noite. Assim como emO show de Truman.Como em um transe, continuei pela lojade construção. Acabou. Acabou. Eu per-dera a oportunidade. Talvez ela nem ti-

vesse existido. Eu me sentia como se es-tivesse presa em uma bolha transparente.Podia mover braços e pernas, afundar namassa gelatinosa, mas era incapaz de rom-per a película. Vacilava pelos corredores evia gente em toda parte. Mas eu não eramais um deles. Não tinha direitos. Eu erainvisível.Depois dessa experiência, percebi que se-ria incapaz de pedir ajuda. O que as pesso-as do lado de fora sabiam sobre o mundoobscuro em que eu fora presa? E quem euarrastaria para dentro dele? O vendedornão podia me impedir de aparecer em sualoja. Que direito eu tinha de fazê-lo cor-rer o risco de Priklopil enlouquecer? Em-bora a voz do sequestrador soasse neutrae dissimulasse o nervosismo, eu quase po-

dia ouvir o coração batendo em seu peito.Então senti o aperto no braço, seus olhosme fitando durante todo o percurso na lo-ja e a ameaça de que ele matasse todos ali,somada à minha fraqueza, incapacidade eincompetência.Fiquei acordada durante muito tempoaquela noite, pensando no pacto que haviafeito com meu outro eu. Eu tinha 17 anos.O momento em que planejara cumprir opacto se aproximava. O incidente na lojade construção me mostrara que eu tinhade fazê-lo sozinha. Ao mesmo tempo,sentia minha força se dissipar e me viaafundando cada vez mais no mundo bi-zarro e paranoico que o sequestradorconstruíra para mim. Mas como meu eufraco e assustado se tornaria o eu forte

que me pegaria pela mão e me conduziriapara fora da prisão? Eu não sabia. A únicacoisa que sabia era que precisaria de muitaforça e autodisciplina. Onde quer que asencontrasse.O que me ajudava na época eram as con-versas com meu segundo eu e minhasanotações. Iniciei uma segunda série depáginas. Agora eu não registrava as surras,mas tentava me encorajar a escrever, pois,sempre que estivesse deprimida, poderialê-las em voz alta para mim mesma. Às ve-zes era como atirar flechas na floresta es-cura, mas funcionava.Não fique deprimida quando ele diz quevocê é muito burra para alguma coisa.Não fique deprimida quando ele bate emvocê.

Não responda quando ele diz que você éincapaz.Não responda quando ele diz que vocênão pode viver sem ele.Não reaja quando ele apaga a luz.Perdoe-o por tudo e não fique zangadacom ele.Seja forte.Não desista.Nunca, nunca desista.Não permita que ele a deixe deprimida,nunca desista. Mas era mais fácil escreverdo que pôr em prática. Por muito tempo,meus pensamentos se concentraram emsair do porão, em sair da casa. Agora, issoacabara. E nada mudara. Eu estava tãoconfinada do lado de fora quanto do ladode dentro. As paredes externas pareciam

se tornar mais permeáveis, mas as internasestavam cimentadas como nunca. Alémdisso, havia o fato de que nossas "saídas"levavam Wolfgang Priklopil ao limite dopânico. Dividido entre o sonho de uma vi-da normal e o medo de que eu pudessedestruir tudo tentando escapar ou apenaspor meu comportamento, ele se tornavacada vez mais instável. Seus ataques deraiva se tornaram mais frequentes. Ele na-turalmente me culpava e afundava em umestado alucinatório paranóico, recusando-se a se acalmar diante de meu comporta-mento tímido e ansioso em público. Nãosei se secretamente suspeitava que eu fin-gia estar apreensiva. Mas minha incapaci-dade de fingir tomou-se evidente em ou-

tra saída para Viena, que poderia ter aca-bado com meu cativeiro.Estávamos seguindo pela Brünnerstrassequando o tráfego ficou mais lento. Erauma blitz. Vi o carro da polícia e os guar-das, que desviavam os veículos para oacostamento. Priklopil respirou fundo enão se mexeu no banco, mas pude obser-var suas mãos segurando firme o volan-te e as juntas dos dedos ficarem brancas.Ele aparentava calma ao parar o carro noacostamento e abrir a janela.

– Carteira de motorista e documentodo carro, por favor. Lentamente erguia cabeça. O rosto do policial pareciasurpreendentemente jovem sob oquepe, e o tom de voz era firme, massimpático. Priklopil procurou os do-

cumentos, enquanto o policial o ob-servava. Seus olhos fitaram os meuspor um instante. Uma palavra tomouforma em minha mente, uma palavraque parecia flutuar no ar, como se es-tivesse em uma grande bolha, comonas histórias em quadrinhos: socorro!Eu podia vê-la tão claramente diantede mim que não acreditava que o po-licial não reagisse imediatamente. Masele pegou os documentos, impertur-bável, e os examinou.

Socorro! Tire-me daqui! Você acabou de pararum criminoso! Pisquei e revirei os olhos, co-mo se falasse em código Morse. Deve terparecido que eu estava tendo algum tipode ataque. Mas era apenas um SOS de-sesperado, comunicado pelas pálpebras de

uma adolescente magricela no banco docarona de uma caminhonete branca.Um turbilhão de pensamentos me passoupela cabeça. Talvez eu pudesse pular dacaminhonete e correr. Eu poderia ir até ocarro de polícia. Afinal, ele estava na mi-nha frente. Mas o que eu diria? Será queeles me ouviriam? O que aconteceria seeles fossem embora? Priklopil me pegarianovamente, se desculparia pela cena e porsua sobrinha retardada que estava fazen-do aquela confusão. E mais: uma tentati-va de fuga era o que de pior eu poderiafazer. Se eu falhasse, não ia querer nemimaginar o que o sequestrador reservariapara mim. Mas o que aconteceria se fun-cionasse? Então imaginei Priklopil pisan-do no acelerador e cantando pneus. Ele

entraria no tráfego em sentido contrárioe pisaria nos freios. Haveria estilhaços devidro, sangue e morte. E Priklopil pende-ria sem vida sobre a direção, as sirenes seaproximando.

– Obrigado. Está tudo em ordem!Boa viagem!

O policial sorriu brevemente, enfiando osdocumentos de Priklopil pela janela. Elenão fazia ideia de que acabara de parar acaminhonete na qual uma criança fora se-questrada oito anos antes, e que ela eramantida prisioneira havia quase oito anosno porão do sequestrador. Também nãofazia ideia de quão próximo estivera de re-solver um crime e de se tornar testemunhada tentativa desesperada de fuga de Pri-klopil. Uma palavra minha teria sido su-

ficiente, uma frase corajosa. Em vez dis-so, eu me afundei no banco do carro e fe-chei os olhos quando o sequestrador ligouo motor.Eu provavelmente havia acabado de per-der a maior oportunidade de deixar paratrás aquele pesadelo. Somente mais tardepercebi que nunca pensara em outra op-ção: simplesmente me dirigir ao policial.Meu medo de que Priklopil fizesse algoa alguém com quem eu tivesse contatotornara-se totalmente paralisante.Eu era uma escrava, uma subordinada.Valia menos que um animal de estimação.Eu não tinha mais voz.Durante o cativeiro, sonhara várias vezesem esquiar no inverno. O céu azul, o solbrilhante sobre a neve reluzente, cobrindo

a passagem como um cobertor de flocosimaculados. O estalo sob os sapatos, ofrio que deixava as bochechas vermelhas.E depois um chocolate quente, comoocorria quando eu patinava.Priklopil era um bom esquiador e saíraem constantes viagens para as montanhasnos últimos anos do cativeiro. Enquantoeu arrumava as coisas, de acordo com lis-tas meticulosamente organizadas, ele fica-va bastante animado. Cera de esqui. Lu-vas. Barra de cereais. Protetor solar. Hi-dratante labial. Gorro. Sempre morria devontade de ir, mas ele me trancava no ca-tiveiro e deixava a casa para esquiar na ne-ve das montanhas sob o sol. Eu não podiaimaginar nada melhor.

Pouco antes do meu décimo oitavo ani-versário, ele falava com frequência em melevar para esquiar em um desses passeios.Para ele, era o passo mais importante emdireção à vida normal. Talvez quisesse sa-tisfazer um de meus pedidos. Mas, sobre-tudo, o que ele queria era obter a confir-mação de que o crime terminara com êxi-to. Se nas montanhas eu não rompesse acorrente que nos prendia, a seus olhos eleteria feito tudo corretamente.Os preparativos levaram dias. O seques-trador revisou o velho equipamento de es-qui, separando alguns objetos para que euos experimentasse. Um dos casacos meserviu, uma coisa peluda da década de1970. Mas eu ainda precisava de calças deesqui.

– Vou comprá-las para você - prome-teu o sequestrador. - Vamos juntos.

Por um momento, ele parecia animado efeliz.No dia em que fomos ao shopping center,eu não havia comido nada. Estava grave-mente subnutrida e mal podia ficar de péquando entrei no carro. Era uma sensaçãoestranha voltar ao shopping onde eu haviapasseado tantas vezes com meus pais. Ho-je ele está a apenas duas paradas de me-trô de Rennbahnweg. Na época, eram du-as paradas de ônibus. O sequestrador ob-viamente se sentia muito seguro.O Donauzentrum é um shopping center típi-co do subúrbio de Viena. As lojas ocupamdois andares, uma ao lado da outra. O am-biente cheira a batata-frita e pipoca, e a

música, apesar de muito alta, dificilmen-te abafa as vozes dos adolescentes, que sereúnem em frente às lojas por falta de ou-tro local. Mesmo quem está acostumado aaglomerações logo acha o movimento ex-cessivo e anseia por um momento de paze ar fresco. Eu não era capaz de me ori-entar em meio àquele barulho, às luzes eà multidão, que mais pareciam um muroou um matagal impenetrável. Fiz um es-forço para me lembrar. Não fora naquelaloja que eu estivera com minha mãe? Porum breve momento, me vi pequena nova-mente, experimentando meia-calça. Masas imagens do presente se sobrepuseramàs lembranças. Havia gente em toda parte:adolescentes, adultos com sacolas grandese coloridas, mães com carrinhos de bebê,

uma confusão. O sequestrador me levoupara uma grande loja de roupas. Um labi-rinto de araras, objetos expostos e mane-quins com sorrisos sem expressão, apre-sentando a moda do inverno.As calças na seção de adultos não coube-ram em mim. Enquanto Priklopil me davadezenas de calças para experimentar, umatriste figura me fitava no espelho. Eu es-tava branca como uma folha de papel, ocabelo loiro estava desalinhado, e era tãomagra que até o tamanho PP ficava gran-de em mim. A constante troca de roupaera uma tortura, e me recusei a repetir oprocedimento de vestir e despir no depar-tamento infantil. O sequestrador teve en-tão de pôr as calças de esqui na frente domeu corpo para verificar o tamanho. Qu-

ando finalmente ficou satisfeito, eu nãoconseguia mais ficar de pé.Fiquei aliviada por voltar para o carro. Navolta para Strasshof, minha cabeça pare-cia que ia explodir. Depois de oito anos deisolamento, eu não era mais capaz de pro-cessar tantos estímulos.Os preparativos para a viagem tambémdiminuíram minha alegria. Havia uma at-mosfera de barulhenta tensão. O seques-trador estava agitado e irritado, fazendoas contas de quanto ia gastar comigo. Eleme fez elaborar um mapa com o númeroexato de quilômetros até a estação de es-qui e calcular os gastos com gasolina, alémdaqueles com bilhetes, aluguel de esquise alimentação. Em sua avareza patológica,ele gastaria somas incríveis. E para quê?

Para que eu o desobedecesse e abusassede sua confiança.Quando seu punho bateu no tampo damesa a meu lado, larguei a caneta com me-do.

– Você está explorando minha boavontade! Você não é nada sem mim!Nada!

Não responda quando ele diz que você não podeviver sem ele. Levantei a cabeça e o olhei. Fi-quei surpresa ao ver o medo em seu rostocontorcido. Aquela viagem era um gran-de risco. Um risco que ele não ia assumirapenas para satisfazer a um antigo desejomeu. Tudo fora encenado para que ele pu-desse viver suas fantasias. Esquiando comsua "parceira", enquanto ela o admiravapor esquiar tão bem. Aparências perfei-

tas, uma autoimagem alimentada por mi-nha humilhação e opressão, pela destrui-ção do meu eu.Perdi o desejo de continuar com aquelaencenação absurda. No caminho até a ga-ragem, disse-lhe que queria ficar em casa.Vi seus olhos escurecerem, e então ele ex-plodiu:

– O que você pensa que está fazen-do?! - gritou, erguendo o braço, en-quanto segurava a alavanca que usavapara abrir a passagem até o cativeiro.

Respirei fundo, fechei os olhos e tenteinão me importar, mas ele bateu com todaforça a alavanca em minha coxa, que co-meçou a sangrar.Ele estava tenso enquanto dirigia pela es-trada, no dia seguinte. Por outro lado, eu

sentia apenas um vazio. Ele me deixaracom fome e desligara a eletricidade parame disciplinar. Minha perna doía. Masagora eu estava bem, tudo estava bem, enós íamos para as montanhas. As vozesgritavam de modo caótico em minhamente:Você tem que pegar a barra de cereais no casacode esqui! No bolso tem algo para comer!Nesse meio tempo, uma vozinha delicada dizia:Você tem que fugir! Tem que fazer isso desta vez.Saímos da estrada próximo à cidade deYbbs. Lentamente as montanhas emergi-ram da neblina à nossa frente. Em Gós-tling, paramos em uma loja de aluguel deesquis. O sequestrador tinha um medoparticular dessa etapa. Afinal, ele teria deir comigo até uma loja onde o contato

com funcionários seria inevitável. Eles meperguntariam se o tamanho das botas es-tava certo e eu teria de responder.Antes de entrarmos, ele repetiu que mata-ria qualquer pessoa a quem eu pedisse aju-da - e a mim também.Quando abri a porta do carro, uma incô-moda sensação de estranheza me invadiu.O ar estava frio e cheirava a neve. As ca-sas inclinavam-se ao longo do rio e, comneve nos telhados, pareciam fatias de bolocom creme. As montanhas se projetavamà direita e à esquerda, e não me admirariase o céu fosse verde, de tão surreal que meparecia a cena.Quando Priklopil me empurrou pela por-ta da loja de aluguel de esquis, o ar quentee úmido atingiu meu rosto. Havia pessoas

suando debaixo dos casacos no balcão docaixa, rostos em alegre expectativa, risose, de vez em quando, o som agudo das fi-velas das botas. Um funcionário veio emnossa direção. Bronzeado e jovial, um tí-pico instrutor de esqui, de voz alta e rou-ca, que gostava de contar as piadas costu-meiras. Ele me trouxe um par de botas ta-manho 37 e se ajoelhou na minha frentepara vê-las em meus pés. Priklopil não ti-rava os olhos de mim nem por um se-gundo, enquanto eu dizia ao funcionárioque elas não estavam apertadas. Não po-dia imaginar um local menos adequadopara chamar atenção para um crime doque aquela loja. Todos felizes, tudo ótimo,uma eficiência alegre a serviço da diver-são. Fiquei quieta.

– Não podemos andar no teleférico.É muito perigoso. Você poderia falarcom alguém - disse o sequestradorquando chegamos ao estacionamentona estação de Hochkar, no fim deuma estrada longa e sinuosa. - Vamosdireto para a pista.

Paramos o carro um pouco longe. As pis-tas de neve erguiam-se dramaticamente àesquerda e à direita. À frente, podia-se verum teleférico. Eu podia ouvir baixinho amúsica do bar na estação do vale. Ho-chkar é uma das poucas estações de es-qui facilmente acessíveis de Viena. É pe-quena -seis teleféricos e um par de teles-quis levam os esquiadores até os três pi-cos. As pistas são estreitas, e quatro de-

las estão marcadas em preto - a categoriamais avançada.Fiz um esforço para me lembrar. Quandotinha 4 anos, estivera ali uma vez com mi-nha mãe e uma família amiga. Mas nadalembrava a menininha que na época anda-va na neve profunda em uma roupa de es-qui grossa e cor-de-rosa.Priklopil me ajudou a pôr as botas e a su-bir no esqui. Insegura, deslizei através daneve escorregadia. Ele me puxou sobre osmontes de neve da beira da estrada e meempurrou para a borda, diretamente paraa ladeira. Parecia perigosamente íngremepara mim, e eu estava apavorada com avelocidade com que desceria. Os esquis eas botas provavelmente pesavam mais queminhas pernas. Eu não tinha os múscu-

los necessários para guiar e provavelmen-te esquecera como se fazia aquilo. As úni-cas aulas de esqui que tivera na vida foramna época da escola - na semana que pas-samos em um albergue em Bad Aussee.Senti medo e, no início, não quis coope-rar, tão vívidas eram as memórias do bra-ço quebrado. Mas o instrutor de esqui erasimpático e me animou a tentar dar umimpulso. Devagar, fiz progressos e parti-cipei da grande corrida na pista de trei-namento no último dia. Ao fim, ergui osbraços e comemorei. Então caí na neve.Nunca me sentira tão livre e orgulhosa.Livre e orgulhosa - uma vida que estava aanos-luz de distância.

Tentei frear desesperadamente. Mas, naprimeira tentativa, fiquei presa e caí na ne-ve.

– O que você está fazendo? - cri-ticou Priklopil, parando perto demim e me erguendo. - Você temque esquiar fazendo curvas! Assim!Levou algum tempo para que eufosse capaz de ficar sobre os es-quis, pelo menos por um instante,e para avançarmos alguns metros.Meu desamparo e minha fraquezapareciam tranquilizar o sequestra-dor, que decidiu comprar bilhetespara o teleférico para nós dois. En-tramos na longa fila de esquiado-res, que riam, se acotovelavam emal podiam esperar pelo teleférico

que os deixaria no próximo pico.Em meio àquelas pessoas de rou-pas coloridas, eu me sentia uma cri-atura de outro planeta. Recuavaquando elas passavam bem pertode mim. E recuava sempre quenossos esquis e bastões se engan-chavam, quando eu subitamenteme via entre estranhos, que pro-vavelmente não prestavam atençãoem mim, mas cujos olhares eu acre-ditava perceber. Você não faz partedisso. Este não é o seu lugar. Priklopilme empurrava.– Acorda! Anda! Anda!

Depois do que pareceu uma eternidade,finalmente sentamos no teleférico. Eu flu-tuava através da paisagem gelada da mon-

tanha - um momento de paz e tranquili-dade, que eu tentava saborear. Mas meucorpo se rebelava contra o esforço des-conhecido. Minhas pernas tremiam e eucongelava miseravelmente. Quando o te-leférico adentrou a estação da montanha,entrei em pânico. Não sabia como pulare, em minha agitação, me atrapalhei comos bastões. Priklopil me xingou, me agar-rou pelo braço e me puxou do teleféricono último minuto.Depois de algumas tentativas, voltei a terum pouco de autocontrole. Eu podia memanter firme por algum tempo, paraaproveitar pequenas corridas antes de cairna neve novamente. Sentia a animação re-tornando e, pela primeira vez em muitotempo, experimentei uma espécie de feli-

cidade. Parava sempre que podia para vera paisagem. Wolfgang Priklopil, orgulho-so por conhecer a geografia local, des-crevia as montanhas que víamos à nos-sa volta. Do cimo de Hochkar, podia-sever além da sólida Òtscher, atrás da qualas cadeias de montanhas desapareciam nanévoa.

– Ali está a Estíria - explicava. - E lá,do outro lado, pode-se ver quase todaa República Tcheca.

A neve brilhava ao sol, e o céu era de umazul intenso. Respirei profundamente vá-rias vezes, querendo parar o tempo. Maso sequestrador me apressava:

– Este dia está me custando umafortuna! Vamos aproveitar ao má-ximo agora!

– Preciso ir ao banheiro! Priklopilme fitou, aborrecido.– Preciso ir!

A única coisa que ele podia fazer era es-quiar comigo até o alojamento seguinte.Ele decidiu pela menor estação do vale,pois os banheiros ficavam em um edifícioseparado, sem que fosse preciso atraves-sar a área do restaurante. Retiramos os es-quis. O sequestrador me levou ao banhei-ro e disse para eu me apressar. Ele ia es-perar por mim e controlar o tempo. Deinício, me admirei por ele não ter entradocomigo, afinal ele podia dizer que se enga-nara, mas preferiu permanecer do lado defora.Quando entrei, o banheiro estava vazio.Mas, quando estava na cabine, ouvi a por-

ta se abrindo. Eu estava apavorada - tinhacerteza de que demorara muito e que o se-questrador entrara no banheiro femininopara me tirar de lá à força. Mas, quandovoltei correndo para a pequena ante-sala,havia uma mulher loira diante do espelho.Pela primeira vez desde o início do cati-veiro, eu estava sozinha com outra pessoa.Não lembro exatamente o que disse. Lem-bro apenas que reuni todas as forças e fa-lei com ela. Mas o som que saiu foi umruído baixinho.A mulher de cabelos loiros sorriu paramim, simpática, virou-se e saiu. Ela nãoentendera o que eu dissera. Pela primeiravez eu falara com alguém e, como emmeus piores pesadelos, as pessoas não po-

diam me ouvir. Eu me tornara invisível enão tinha esperança de obter ajuda.Somente depois que fugi, descobri que amulher era uma turista da Holanda e sim-plesmente não entendera o que eu estavadizendo. Na época, a reação dela foi umgolpe para mim.Tenho uma lembrança confusa do restan-te da viagem. Novamente eu perdera aoportunidade. À noite, quando voltei pa-ra o cativeiro, estava mais desesperada doque jamais estivera.Em pouco tempo chegaria a data decisiva:meu aniversário de 18 anos. Era a dataque eu antecipara por dez anos, e eu es-tava determinada a comemorar o dia ade-quadamente - mesmo que estivesse no ca-tiveiro.

Nos anos anteriores, o sequestrador medeixara preparar um bolo. Dessa vez, euqueria algo especial. Eu sabia que o sóciodele organizava festas em um armazémdistante. O sequestrador me mostrara ví-deos com casamentos turcos e sérvios.Ele queria usá-los para fazer um vídeo dedivulgação do local do evento. Eu absor-via avidamente aquelas imagens de pesso-as comemorando, pulando em círculos, demãos dadas, dançando de maneira esqui-sita. Em uma daquelas festas, um tuba-rão inteiro estava no bufê; em outra, haviauma fileira de tigelas com comidas estra-nhas. Mas o que mais me fascinava eramos bolos. Obras de arte em camadas, comflores de marzipã ou pão- de- ló em for-mato de carro. Eu queria um bolo assim,

no formato de um "18" - o símbolo damaioridade.Quando subi para a casa na manhã de 17de fevereiro de 2006, lá estava, em cima damesa da cozinha: um "1" e um "8" de pãode ló macio, coberto com glacê rosa e de-corado com velas. Não lembro que outrospresentes ganhei aquele dia. Havia muitosoutros, porque Priklopil gostava de co-memorar esses dias especiais. Mas, paramim, aquele "18" foi o ponto alto da mi-nha pequena celebração. Era um símbo-lo de liberdade. Era o símbolo, o sinal deque chegara o momento de cumprir mi-nha promessa.

SÓ RESTA MORRERMinha fúga para a liberdadeAQUELE DIA COMEÇOU como os ou-tros - sob o comando do temporizador.EU estava deitada no beliche quando a luzdo cativeiro se acendeu, me acordando deum sono confuso. Fiquei na cama por al-gum tempo, tentando decifrar o significadodos fragmentos do sonho. Mas, por maisque tentasse juntá-los, eles sempre escapa-vam de mim. Restou apenas um sentimen-to vago sobre o qual eu refletia, espantada.

Uma profunda determinação. Não mesentia assim havia muito tempo.Pouco depois, a fome me fez levantar. Eunão havia jantado e minha barriga ronca-va. Desci a escada, pensando em comeralguma coisa. Antes de chegar ao chão,lembrei que não havia nada para comer.Na véspera, o sequestrador me dera umpequeno pedaço de bolo para o café damanhã no cativeiro, mas eu já o comera.Frustrada, escovei os dentes para tirar daboca o gosto amargo do estômago vazio.Então, olhei em volta sem saber o quefazer. Naquela manhã, o cativeiro estavauma grande bagunça. Havia roupas espa-lhadas por toda parte e papel empilhadona mesa. Em outros dias, eu teria come-çado a arrumar tudo imediatamente, or-

ganizando e tornando meu pequeno cô-modo mais confortável. Mas, naquela ma-nhã, não sentia vontade de fazer nada. Ti-ve uma sensação estranha e distante emrelação àquelas quatro paredes que havi-am se tornado meu lar.Com um vestido curto cor de laranja doqual me sentia orgulhosa, esperei o se-questrador abrir a porta. Além do vestido,tinha apenas calças legging e camisetas commanchas de tinta, um pulôver de gola alta,que era do sequestrador, para os dias frios,e algumas peças limpas e simples para aspoucas saídas dos últimos meses. Com ovestido, eu parecia uma garota normal. Osequestrador o comprara para mim co-mo recompensa pelo trabalho no jardim.Na primavera, depois de meu décimo oi-

tavo aniversário, ele me permitira traba-lhar de vez em quando do lado de fora,sob sua supervisão. Ele se tornara menoscauteloso, mas sempre havia o risco deos vizinhos me verem. Duas vezes,cumprimentaram-me do outro lado dacerca, enquanto eu arrancava as ervas da-ninhas.

– Ajuda temporária - disse o seques-trador a título de explicação, quandoo vizinho me cumprimentou.

O homem pareceu satisfeito com a infor-mação, e fui incapaz de dizer algo.Quando a porta do cativeiro finalmentese abriu, vi Priklopil parado no degrau dequarenta centímetros. Era uma visão quesempre me assustava, mesmo depois detanto tempo. Ele parecia tão grande, uma

sombra dominadora, distorcida pela lâm-pada na antessala - como o carcereiro deum filme de horror. Mas aquele dia elenão me pareceu ameaçador. Senti-me for-te e confiante.

– Posso vestir a calcinha? - pergun-tei, antes mesmo de cumprimentá-lo. O sequestrador olhou paramim, surpreso.– Claro que não - respondeu.

Dentro de casa, eu sempre trabalhava se-minua e, no jardim, não podia vestir a cal-cinha. Era uma de suas táticas para memanter sob controle.

– Mas é mais confortável - acres-centei. Ele balançou a cabeça comenergia.

– De jeito nenhum. Que ideia é es-sa? Venha!

Eu o segui até a passagem, esperando queele engatinhasse até o outro lado. A portade concreto pesada e arredondada, que setornara um acessório permanente no ce-nário de minha vida, estava aberta.Sempre que via diante de mim aquele co-losso feito de concreto armado, sentia umnó na garganta. Nos últimos anos, eu tive-ra muita sorte. Qualquer acidente com osequestrador seria uma sentença de mor-te para mim. A porta não abria pelo ladode dentro e não podia ser encontrada pelolado de fora. Eu imaginava toda a cena.Como eu perceberia depois de alguns diasque o sequestrador desaparecera, como eucorreria enlouquecida pelo cômodo, co-

mo um medo mortal me dominaria, comoeu tentaria derrubar as duas portas de ma-deira com minhas últimas forças. Mas aporta de concreto seria o fator decisivopara minha vida ou morte. Diante dela, eumorreria de fome ou de sede. Era um alí-vio sempre que eu atravessava a estreitapassagem atrás do sequestrador. Mais umavez era um novo dia, e ele abrira a porta,sem me deixar em uma situação difícil.Mais uma vez, eu saíra da sepultura sub-terrânea. Quando subi as escadas da gara-gem, inspirei fundo. Eu estava no andarde cima.O sequestrador me mandou pegar duasfatias de pão com geleia na cozinha paraele. Eu o observava comer com prazer,enquanto minha barriga roncava. Os den-

tes dele não deixavam marcas. O pão pa-recia delicioso e crocante, com manteiga egeleia de damasco, mas não pude comernada, porque já recebera o bolo. E nãoousaria dizer a ele que comera a fatia secana véspera.Depois que Priklopil terminou o café damanhã, lavei a louça e fui até o calendáriona cozinha. Como fazia todas as manhãs,arranquei a página com o número em ne-grito e rasguei-a em pedacinhos. Olhei pa-ra a data por um longo tempo: 23 de agos-to de 2006. Euestava presa havia 3.096 dias.Naquele dia, Wolfgang Priklopil estava debom humor. Seria o início de uma novaera, a aurora de um período menos difícil,sem preocupações financeiras. Naquela

manhã, ele daria dois passos decisivos.Primeiro, queria se livrar da antiga cami-nhonete, usada oito anos e meio antes pa-ra me sequestrar. E, em segundo lugar,anunciara na Internet um apartamentoque havíamos reformado nos últimos me-ses. Ele o havia comprado seis meses an-tes, na esperança de que o valor do aluguelreduzisse a constante pressão financeirasob a qual o crime o pusera. O dinheiro,conforme me dissera, vinha dos negócioscom Holzapfel.Pouco antes do meu décimo oitavo ani-versário, ele me contara a notícia, anima-do:

– Temos uma nova reforma. Por isso,vamos agora para Hollergasse. Sua sa-tisfação era contagiante, e eu precisa-

va de uma mudança de cenário. A da-ta mágica de entrada na idade adultapassara e nada mudara. Eu continuavaoprimida e monitorada como antes.Exceto pelo botão que fora desativa-do dentro de mim. Minha incertezasobre se o sequestrador, afinal, estariacerto e se eu estaria melhor com eleque do lado de fora desaparecia lenta-mente. Agora eu era adulta. Meu ou-tro eu me mantinha firme, e eu sabiaque não queria continuar a viver da-quela maneira. Eu sobrevivera à mi-nha adolescência como escrava do se-questrador, como seu saco de pan-cadas e sua companhia. Eu mesmafizera daquela casa meu lar, porquenão havia outra opção. Mas agora essa

época havia acabado. Sempre que euestava no cativeiro, me lembrava dosplanos que fizera, desde criança, paraesse momento de minha vida. Euqueria ser independente, queria seratriz, escrever livros, tocar um instru-mento, conhecer outras pessoas, serlivre. Nunca quis aceitar o fato de queera prisioneira de sua fantasia para to-da a eternidade. Eu só tinha de es-perar pela oportunidade certa. Talvezfosse a reforma do apartamento. De-pois dos anos passados acorrentada àcasa, pela primeira vez eu poderia tra-balhar em outro local. Sob a supervi-são rigorosa do sequestrador, mas ain-da assim poderia ser uma oportunida-de.

Lembro-me de nossa primeira viagem atéo apartamento em Hollergasse. O seques-trador não pegara a via mais rápida na es-trada - era muito pão--duro para pagar opedágio. Em vez disso, enfrentou o con-gestionamento no Gürtel de Viena. Erade manhã e os últimos apressadinhos dahora do rush forçavam passagem de am-bos os lados da caminhonete. Observei aspessoas por trás do volante. Homens comaparência cansada olhavam para nós decaminhonetes próximas. Espremidos nobanco, obviamente trabalhadores da Eu-ropa Oriental, selecionados pelas constru-toras austríacas durante a manhã ao lon-go das estradas principais, para ser nova-mente dispensados à noite. Imediatamen-te senti simpatia por aqueles trabalhadores

temporários: sem documentos, sem per-missão de trabalho, totalmente explora-dos. E essa era a realidade que eu tinhatanta dificuldade para suportar aquela ma-nhã. Afundei no banco e sonhei acorda-da: eu estava no caminho para um servi-ço normal e regular com meu chefe - co-mo os outros que também viajavam noscarros próximos. Tornara-me uma especi-alista em minha área, e meu chefe atribuíagrande importância à minha opinião. Euvivia em um mundo adulto, onde eu tinhauma voz que era ouvida.Já havíamos atravessado quase toda a ci-dade quando Priklopil virou na estação detrem ocidental, na Mariahilferstrasse, afas-tando- se do centro e passando ao lado deum pequeno mercado, onde apenas meta-

de dos estandes estava ocupada. Então vi-rou em uma pequena rua lateral e parou ocarro.O apartamento ficava no primeiro andarde um prédio antigo. O sequestrador es-perou um longo tempo antes de me deixarsair. Ele temia que alguém nos visse esó queria me deixar sair para a calçadaquando a ma estivesse vazia. Passei osolhos pela rua: pequenas oficinas mecâ-nicas, quitandas turcas, estandes de kebabe bares apertados e suspeitos estavam es-palhados entre os edifícios antigos de corcinza, construídos durante o Gründerzeit, a"Época dos Fundadores" de Viena, apósa depressão, no fim do século XIX, e queserviam de abrigo para as massas trabalha-doras pobres das terras da Coroa. Mesmo

agora a área era habitada, sobretudo, porimigrantes. Muitos dos apartamentos nãotinham banheiros, que ficavam no cor-redor e eram compartilhados pelos vizi-nhos. O sequestrador comprara um des-ses apartamentos.Ele esperou até que a rua estivesse vaziae em seguida me levou até a escada. Apintura das paredes estava descascada, e amaioria das caixas de correio, aberta. Qu-ando ele abriu a porta de madeira do apar-tamento e me empurrou para dentro, malpude acreditar em como era pequeno. De-zenove metros quadrados - apenas qua-tro vezes maior que o cativeiro. Uma salacom janela virada para o pátio na parte detrás. O ar fedia a suor, mofo e óleo de co-zinha velho. O carpete, que provavelmen-

te fora verde em algum momento, adqui-rira uma cor cinza-amarronzada indefini-da. Na parede, uma grande mancha úmidacom larvas. Respirei fundo. Eu teria mui-to trabalho ali.Daquele dia em diante, ele me levou aoapartamento de Hollergasse várias vezespor semana. Apenas quando tinha de fa-zer longas viagens é que me trancava nocativeiro o dia inteiro. A primeira coisaque fizemos foi arrastar a mobília velha egasta do apartamento para a rua. Quan-do saímos do edifício, uma hora depois,ela sumira: fora levada por vizinhos quetinham tão pouco que até aquela mobíliaservia para eles. Começamos então a re-forma. Gastei dois dias inteiros apenas pa-ra arrancar o carpete. Um segundo carpete

apareceu embaixo do primeiro, com umagrossa camada de poeira. A cola aderira detal forma ao piso ao longo dos anos quetive de raspar centímetro por centímetro.Então, nivelamos o chão com uma cama-da de concreto e sobre ela colocamos opiso laminado - igual ao do cativeiro. Qu-ando tiramos o papel de parede antigo,preenchemos as rachaduras e os buracos ecolamos um papel novo, que depois pin-tamos de branco. Montamos os armáriosda cozinha minúscula e do pequeno ba-nheiro, pouco maior que o box e o tapetenovo à sua frente.Eu trabalhava feito um peão de obra. Ti-nha de cortar, carregar, lixar, nivelar e as-sentar o piso. Colava o papel de parede noteto, de pé, sobre uma tábua equilibrada

entre duas escadas, e arrastava a mobília.O trabalho, a fome e a luta constante con-tra a queda de pressão eram tão grandesque eu nem pensava em fugir. No início,ficava esperando o momento em que o se-questrador me deixaria sozinha. Mas essemomento nunca chegava. Eu era constan-temente vigiada. Os esforços que ele fa-zia para evitar minha fuga eram impres-sionantes. Sempre que ele ia até o corre-dor para usar o banheiro, empurrava tábu-as e vigas na frente da janela para que eunão pudesse abri-la nem gritar. Quandoele sabia que teria de sair por mais de cin-co minutos, parafusava as tábuas. Até aliele construíra uma prisão para mim. Qu-ando a chave girava na fechadura, eu eratransportada em pensamento para o cati-

veiro. O medo de que algo pudesse acon-tecer a ele e de que eu pudesse morrer na-quele apartamento me invadia novamen-te. Cada vez que ele voltava, eu respiravaaliviada.Hoje esse medo me parece estranho. Afi-nal, em um prédio de apartamentos, eupoderia gritar ou bater nas paredes. Lá eupoderia ser encontrada rapidamente. Nãohavia razão para temer. Mas meu medoemergia de meu cativeiro interior.Um dia, um homem desconhecido subita-mente apareceu no apartamento.Tínhamos acabado de trocar o laminadodo primeiro piso. A porta estava entrea-berta quando um homem de cabelos gri-salhos entrou e nos cumprimentou. Elefalava alemão tão mal que eu quase não

o entendia. Ele nos deu as boas-vindas eprovavelmente queria bater papo sobre otempo e a reforma. Priklopil me puxoupara trás e se livrou dele com respostascurtas. Eu senti o medo crescer dentro de-le e me deixei contaminar também. Em-bora aquele homem pudesse significar mi-nha salvação, eu também me sentia ame-açada por sua presença. Já internalizara aperspectiva do sequestrador. Naquela noi-te, no cativeiro, deitei no beliche e reence-nei o que ocorrera mais cedo. Será que euagira errado? Será que deveria ter gritado?Será que perdera outra oportunidade de-cisiva? Eu precisava treinar para agir commais decisão da próxima vez. Em minhamente, imaginava a distância entre minhaposição atrás do sequestrador e o vizi-

nho desconhecido como um pulo sobreum abismo intransponível. Eu me ima-ginava correndo em sua direção, aumen-tando a velocidade na beira do abismo epulando. Mas não conseguia me ver che-gando ao outro lado. Por mais que ten-tasse, não conseguia formar uma imagem.Mesmo em minha fantasia, o sequestradorsempre agarrava minha camiseta e me pu-xava. As poucas vezes em que eu conse-guia me soltar, flutuava no ar por algunssegundos antes de me precipitar no abis-mo. Essa imagem me atormentou a noi-te inteira, como uma espécie de aviso deque eu estava prestes a fazer isso, mas quefalharia no momento decisivo. Uns diasdepois, o vizinho voltou. Dessa vez, tra-zia uma pilha de fotografias. O sequestra-

dor me puxou de lado, mas pude vê-laspor alguns instantes. Eram fotos de famí-lia, que mostravam sua antiga casa na Iu-goslávia e um time de futebol. Ele fala-va sem parar, enquanto segurava as foto-grafias debaixo do nariz de Priklopil. Euentendia apenas fragmentos da conversa.Não. Não havia possibilidade de pular so-bre o abismo. Como eu seria compreendi-da por esse homem? Será que ele enten-deria se eu sussurrasse algo em um mo-mento em que o sequestrador não esti-vesse me observando, o que talvez nun-ca acontecesse? Natascha quem? Quem foiseqüestrada? Mesmo que ele me entendesse,o que faria? Chamaria a polícia? Será queele tinha telefone? E depois? Dificilmentea polícia acreditaria nele. Mesmo que uma

viatura viesse até Hollergasse, o sequestra-dor teria muito tempo para me agarrar eme colocar de volta no carro sem ser per-cebido. E eu nem podia imaginar o queaconteceria depois.Não. Aquele apartamento não me ofere-cia oportunidades de fuga. Mas a chanceviria. Estava convencida disso agora. Sóprecisava reconhecer a oportunidade nahora certa.Naquela primavera de 2006, o sequestra-dor percebeu que eu estava tentando melivrar dele. Ele estava incontrolável e demau humor, e a sinusite crônica o ator-mentava, sobretudo à noite. Durante odia, ele redobrava os esforços para me do-minar. E eles se tornavam cada vez maisabsurdos.

– Não responda! - gritava assim queeu abria a boca, mesmo que ele tivesseperguntado algo.

Ele queria obediência absoluta.– Que cor é essa? - gritou uma vez,apontando para uma lata de tintapreta.– Preta - respondi.– Não! É vermelha! E é vermelhaporque estou dizendo. Diga que évermelha!

E, se eu me recusasse a obedecer, ele tinhaum ataque de raiva, que agora durava maistempo do que antes. Depois vinham ossocos. Algumas vezes, ele me batia tantoque pareciam horas. Mais de uma vez,quase perdi a consciência antes que ele me

levasse para baixo de novo, me trancassee apagasse a luz.Percebi como me era cada vez mais difícilresistir. Seria tão mais fácil entregar ospontos. Era como uma corrente que mearrastava inexoravelmente para as profun-dezas, enquanto eu ouvia minha própriavoz sussurrando: E um mundo perfeito. É ummundo perfeito. Está tudo bem. Nada pode darerrado.Eu tinha que nadar contra a corrente comtodas as minhas forças e construir um pe-queno bote para mim - as minhas anota-ções, nas quais eu novamente descrevia assurras. Hoje, quando seguro o bloco emque registrava essas brutalidades com le-tra legível, completando-as com desenhosdos ferimentos, me sinto mais leve. Na

época, eu as escrevia para mantê--las a dis-tância, como se fossem uma prova da es-cola:15 de abril de 2006.Ele bateu tão forte e durante tanto tempoem minha mão direita que senti o sangueliteralmente formando uma poça do ladode dentro. O dorso da mão ficou azul evermelho, e os hematomas se estendiamaté a palma da mão e se espalhavam atécobri-la toda. Além disso, ele me deu umsoco no olho (também do lado direito),deixando um roxo que originalmente selocalizava no canto externo e se tornouuma mancha vermelha, azul e verde e, emseguida, se deslocou para a parte de cimada pálpebra.

Outras surras que ocorreram recentemen-te, se é que me lembro bem delas e nãoas reprimi: no jardim, ele me atacou com atesoura de poda porque tive medo de su-bir na escada. Eu tinha um corte de coresverdeada abaixo do tornozelo esquer-do e a pele descascava facilmente. Umavez ele jogou uma lata pesada contra mi-nha bacia e fiquei com um feio hematomamarrom-avermelhado. Outra vez me re-cusei a voltar para o andar de cima comele, por medo. Ele arrancou as tomadasda parede, jogou o temporizador em cimade mim e o que mais ele tinha nas mãoscontra a parede. Eu tinha uma marca pro-funda e vermelha no lado externo do joe-lho direito e na panturrilha. Além disso, ti-nha um hematoma preto e violeta no bra-

ço esquerdo, com cerca de oito centíme-tros, que eu nem sei como consegui. Eleme deu socos e pontapés muitas vezes, aténa cabeça. Repetidamente, fez meus lábi-os sangrarem; certa vez fiquei com um ca-roço do tamanho de uma ervilha no lábioinferior. Outra vez, ele me bateu e fiqueicom o lado direito abaixo da boca incha-do. Tenho também um corte no queixo(não lembro como aconteceu). E ele jo-gou a caixa de ferramentas nos meus pés,deixando hematomas verde-claros. Bateumuitas vezes no dorso da minha mão comumachave inglesa, chave de fenda ou coisa pa-recida. Tenho dois hematomas simétricos,pretos, abaixo das omoplatas e na coluna.Hoje ele me deu um soco no olho direito

que me fez ver luzes, e na orelha direita,e senti a dor da pancada, um ruído e umestalo. E ele continuou batendo na minhacabeça.Em dias melhores, ele imaginava um futu-ro feliz. - Se eu pudesse acreditar que vocênão vai fugir... - suspirava, sentado à me-sa da cozinha. - Eu a levaria a qualquerlugar comigo. Levaria você ao lago Neu-siedl ou ao lago Wolfgang e lhe compra-ria um vestido de verão. Nós nadaríamose, no inverno, esquiaríamos. Mas eu teriaque confiar cem por cento que você nãofugiria.Em momentos como esse, sentia pena dohomem que me perseguira durante oitoanos. Eu não queria magoá-lo; queria queele tivesse o futuro cor-de-rosa que tanto

desejava. Ele parecia tão desesperado esozinho consigo mesmo e com seu crimeque, às vezes, eu esquecia que era a vítima- e que não era responsável pela felicidadedele. Mas nunca me deixei sucumbir total-mente à ilusão de que tudo daria certo seeu cooperasse. Você não pode obrigar al-guém a ser eternamente obediente e cer-tamente não pode forçar ninguém a amarvocê.Mesmo assim, nessas horas eu jurava queficaríamos juntos e o confortava, dizendo:

– Eu não vou fugir. Prometo. Vou fi-car sempre com você.

É claro que ele não acreditava em mim, eme partia o coração ter que mentir. Nósdois oscilávamos entre a realidade e asaparências. Eu estava presente fisicamen-

te, mas minha mente já o abandonara.Contudo, ainda não conseguia me imagi-nar chegando ao outro lado em segurança.A ideia de subitamente emergir no mun-do real, do lado de fora, me assustava tre-mendamente. Algumas vezes, eu chegavaa acreditar que me mataria assim que o fi-zesse, assim que deixasse o sequestrador.Não podia suportar a ideia de que minhaliberdade o colocaria atrás das grades pormuito tempo. É óbvio que eu queria queas outras pessoas fossem protegidas da-quele homem, que era capaz de qualquercoisa. Naquele momento, eu ainda provi-denciava essa proteção, absorvendo todasua energia violenta. Depois, seria respon-sabilidade da polícia e da justiça evitar queele cometesse outros crimes. Ainda assim,

a ideia não me alegrava. Não sentia ne-nhum desejo de vingança contra ele - aocontrário. Parecia que, se eu o entregas-se à polícia, apenas inverteria o crime queele cometera contra mim. Primeiro ele metrancou, então eu o faria ser trancado. Emminha visão de mundo às avessas, o cri-me não seria anulado, mas intensificado.O mal no mundo não diminuiria, mas semultiplicaria.Essas ideias eram, de certo modo, o ápicelógico da insanidade emocional a que eufora submetida durante anos, pelas duasfaces do sequestrador, pela alternância en-tre violência e pseudonormalidade, porminha estratégia de sobrevivência de blo-quear o que ameaçava me matar. Até queo preto deixou de ser preto e o branco

deixou de ser branco, e tudo se tornouapenas uma névoa cinzenta, fazendo comque eu perdesse as referências. Eu inter-nalizara tudo isso a tal ponto que, às ve-zes, trair o sequestrador tinha mais impor-tância que trair minha própria vida. Talvezeu devesse ter sucumbido ao meu desti-no, pensei mais de uma vez, quando esta-va em risco de afundar e perder de vistameu bote salva-vidas.Outras vezes, eu quebrava a cabeça, pen-sando em como o mundo exterior reagiriaà minha volta depois de todos aquelesanos. As imagens do julgamento de Du-troux ainda estavam presentes em minhamente. Eu não queria ser apresentada co-mo as vítimas daquele caso, pensava. Du-rante oito anos eu fora a vítima, e não

queria passar o resto da vida como vítima.Imaginava como lidaria com os meios decomunicação. E preferia que me deixas-sem em paz. Mas, se falassem de mim, quenunca usassem meu primeiro nome. Que-ria voltar à vida como uma mulher adulta.E queria poder selecionar os meios de co-municação com os quais conversaria.Era uma noite no início de agosto e eu es-tava sentada à mesa da cozinha, comen-do com o sequestrador. No fim de sema-na, a mãe dele havia feito a salada de fri-os e guardado na geladeira. Ele me deuos legumes e empilhou os frios e o queijoem seu prato. Mastiguei lentamente umpedaço de pimentão, na esperança de ob-ter energia de cada fibra vermelha. Nessemeio tempo, havia engordado um pouco e

agora pesava quarenta e dois quilos, mas otrabalho no apartamento em Hollergasseme cansara bastante, e eu me sentia fisica-mente exaurida. Em pensamento, porém,estava alerta. Agora que a reforma acaba-ra, uma outra fase do cativeiro tambémchegara ao fim. O que viria em seguida? Aloucura cotidiana? O refúgio de verão nolago Wolfgang, que começaria com sur-ras, acompanhadas de humilhações e, co-mo tratamento especial, um vestido? Não.Eu não queria mais aquela vida.No dia seguinte, trabalhamos na garagem.A distância, pude ouvir uma mãe chaman-do alto pelos filhos. De vez em quando,uma leve brisa trazia o cheiro do verãoe da grama recém-cortada até a garagem,onde reformávamos o piso da velha cami-

nhonete branca, na qual eu fora sequestra-da e que agora ele queria vender. Não eraapenas o mundo de minha infância queestava se afastando - agora todos os com-ponentes dos primeiros anos de cativei-ro estavam desaparecendo também. A ca-minhonete era minha ligação com o diado sequestro. E eu ajudava a apagar tudoisso: a cada pincelada, parecia que eu ci-mentava meu futuro no porão.

– Você criou uma situação para nósem que apenas um vai poder sair vivo- eu disse, subitamente.

O sequestrador me olhou, surpreso. Nãome calei:

– Sou grata por você não ter me ma-tado e por ter cuidado de mim. Foi

muita gentileza sua. Mas não pode meforçar a ficar com você.

Sou uma pessoa com necessidades própri-as. Essa situação tem que acabar.Em resposta, Wolfgang Priklopil tirou opincel de minha mão sem dizer uma pala-vra. Vi em seu rosto que ele estava bastan-te assustado. Por todos aqueles anos, eletemera esse momento. O momento emque teria certeza de que sua opressão nãodera frutos, de que não fora capaz de medobrar. E continuei:

– É natural que eu vá embora. Vocêdeveria ter imaginado isso desde o co-meço. Um de nós tem que morrer,não há outra saída. Ou você me mataou me deixa ir embora.

Priklopil balançou a cabeça devagar.

– Você sabe que nunca farei isso - dis-se baixinho.

Esperei que a dor explodisse em algumaparte de meu corpo e me preparei men-talmente para isso. Não desista. Não desista.Não vou desistir de mim. Mas nada aconte-ceu, ele apenas continuou parado diantede mim. Então respirei fundo e disse coi-sas que mudaram tudo:

– Já tentei me matar tantas vezes... Eaqui estou: a vítima sou eu. Seria bemmelhor se você se matasse. Você nãovai encontrar outra saída. Se você sematasse, todos os problemas acabari-am na mesma hora.

Naquele momento, alguma coisa dentrodele pareceu morrer. Vi o desespero emseus olhos quando ele se afastou e mal pu-

de aguentar. Aquele homem era um crimi-noso - mas era a única pessoa que eu tinhano mundo. Vi cenas específicas do passa-do diante de meus olhos, como se eu asrebobinasse. Hesitei e me ouvi dizer:

– Não se preocupe. Se eu fugir, me jo-go na frente de um trem. Nunca colo-caria sua vida em perigo.

O suicídio parecia um tipo de liberdadesuprema, uma libertação de tudo, de umavida que já fora há muito arruinada.Naquele momento, eu quis não ter ditoessas coisas. Mas agora já havia dito: eufugiria na próxima oportunidade. E um denós não sobreviveria.Três semanas depois, eu estava na cozinhaolhando para o calendário. Joguei no lixoa página que arrancara e me virei. Não po-

dia pensar muito sobre as coisas, pois osequestrador estava me chamando para otrabalho. Na véspera, eu o ajudara a termi-nar os anúncios do apartamento em Hol-lergasse. Priklopil trouxera um mapa deViena e uma régua. Medi a rota do apar-tamento até a estação de metrô mais pró-xima, verifiquei a escala e calculei quantosmetros essa distância daria a pé. Depoisele me chamou no corredor e ordenouque eu andasse rapidamente de um extre-mo a outro, enquanto cronometrava como relógio de pulso. Então calculei quan-to tempo levaria para sair do apartamen-to e ir até a estação de metrô e à para-da de ônibus seguinte. O sequestrador eratão meticuloso que queria saber a distân-cia exata do apartamento até o transpor-

te público, incluindo os segundos. Quan-do finalizamos os anúncios, ele telefonoupara um amigo, que deveria divulgá-los naInternet. Respirou fundo e sorriu.

– Agora tudo será mais fácil.Ele parecia ter esquecido completamentenossa discussão sobre fuga e morte.Pouco antes do meio-dia, no dia 23 deagosto de 2006, fomos ao jardim. Os vi-zinhos não estavam lá. Colhi os últimosmorangos diante da cerca viva de alfenase todos os damascos no chão ao redor daárvore. Em seguida, lavei as frutas na co-zinha e guardei-as na geladeira. O seques-trador acompanhou meus passos e em ne-nhum momento tirou os olhos de mim.Por volta do meio-dia, ele me levou aosfundos da propriedade à esquerda, onde

o depósito do jardim era separado da pe-quena trilha por uma cerca. Priklopil sem-pre fechava o portão do jardim. E o tran-cava mesmo quando saía por um brevemomento para espanar a sujeira dos tape-tes do BMW vermelho. A caminhonete -que seria levada nos próximos dias - esta-va parada entre o depósito e o portão. Pri-klopil pegou o aspirador de pó, ligou natomada e ordenou que eu limpasse cuida-dosamente o interior, os bancos e os tape-tes do carro. Enquanto eu limpava, o ce-lular dele tocou. Ele se afastou alguns pas-sos do carro, cobriu o ouvido com a mãoe perguntou duas vezes:

– Quem está falando?Dos poucos fragmentos que ouvi emmeio ao barulho do aspirador, deduzi que

se tratava de alguém interessado no apar-tamento. Priklopil estava radiante. Absor-vido na conversa, ele se virou e se afastoualguns metros na direção da piscina.Eu fiquei só. Pela primeira vez desde oinício do cativeiro, o sequestrador me dei-xara longe de sua vista, do lado de forada casa. Fiquei imóvel diante do carro poralguns segundos, enquanto segurava o as-pirador, e uma sensação de paralisia seespalhou por meus braços e pernas. Mi-nhas costelas pareciam me apertar, comose fossem um espartilho de ferro. Eu malpodia respirar. Lentamente abaixei a mãoque segurava o aspirador. Imagens confu-sas e desordenadas invadiram minha men-te: Priklopil voltando, percebendo que euhavia fugido. Ele procuraria por mim e

então começaria a atirar. Um trem em altavelocidade. Meu corpo sem vida. O corpodele sem vida. Viaturas. Minha mãe. Osorriso de minha mãe.Então tudo aconteceu muito rápido. Comuma força sobre-humana, me livrei daareia movediça paralisante que envolviaminhas pernas. A voz do meu outro eu fa-lava em minha mente: Se você tivesse sido se-questrada hoje, estaria correndo agora. Você temque agir como se não conhecesse o sequestrador.Ele é um estranho. Corra! Corra! Corra, droga!Larguei o aspirador e fui até o portão do jardim.Estava aberto. Hesitei por um momento. Voupara a direita ou para a esquerda? Onde estão aspessoas? Onde estão os trilhos do trem? Não pos-so perder o controle nem sentir medo agora. Nãoolhe em volta, apenas ande. Apressei-me até a pe-

quena trilha, virei para a Blasselgasse e corri nadireção do conjunto habitacional na rua ao lado- havia pequenos jardins entre casinhas construí-das em antigos loteamentos. Meus ouvidos zumbi-am e meus pulmões doíam. E eu tinha certeza deque o sequestrador se aproximava a cada segun-do. Pensei ter ouvido seus passos e senti seus olhosem minhas costas. Eu o imaginava atrás de mime pensei ter sentido sua respiração em minha nu-ca. Mas não me virei. Perceberia quando ele mejogasse no chão, me arrastasse de volta para ca-sa e me matasse. Qualquer coisa seria melhor quevoltar para o cativeiro. E eu já escolhera a morte,com o trem ou com o sequestrador. A liberdade deescolher, a liberdade de morrer. Pensamentos con-fusos me atravessavam a mente enquanto eu cor-ria. Somente quando vi três pessoas caminhando

em minha direção na rua soube que queria viver.E que conseguiria.Corri até eles e, ofegante, falei:

– Vocês têm que me ajudar! Precisode um celular para chamar a polícia!Por favor!

Os três me fitaram, surpresos: um senhor,um menino de uns 12 anos e um homem,provavelmente pai do garoto.

– Não podemos - ele disse.E os três deram a volta por mim e con-tinuaram caminhando. O senhor virou-semais uma vez e disse:

– Lamento. Não trouxe meu celular.Lágrimas subitamente encheram meusolhos. Afinal, o que eu era para o mundoexterior? Eu não tinha uma vida ali. Eraalguém em situação ilegal, uma pessoa

sem nome nem história. O que acontece-ria se ninguém acreditasse em mim?Parei, tremendo, no meio-fio, com a mãoapoiada em uma cerca. Para onde iria? Eutinha que sair da rua. Priklopil já deviater percebido que eu fora embora. Deiuns passos para trás, pulei a cerca de umdos jardins e toquei a campainha. Mas na-da aconteceu; parecia não haver ninguém.Corri, pulei cercas vivas e canteiros, de umjardim para o outro. Finalmente avisteiuma senhora através de uma janela abertaem uma das casas. Bati na moldura da ja-nela e pedi:

– Por favor, me ajude! Chame a po-lícia! Fui sequestrada. Chame a po-lícia!

– O que você está fazendo no meujardim? O que você quer? - inter-rompeu a voz através da janela. Asenhora me olhava com desconfi-ança.– Chame a polícia, por favor! Rá-pido! - repetia sem fôlego. - Fui ví-tima de um sequestro. Meu nomeé Natascha Kampusch... Chame apolícia de Viena. Diga a eles que éum caso de sequestro. Peça que ve-nham em um carro sem identifica-ção. Meu nome é Natascha Kam-pusch.– Por que você veio justo até a mi-nha casa?

Recuei. Mas então percebi que ela hesitou.

– Espere na cerca viva! E não pise nogramado!

Assenti em silêncio enquanto ela se afasta-va e desaparecia de meu campo de visão.Pela primeira vez em sete anos eu disserameu nome. Eu estava de volta.Parei ao lado da cerca viva e aguardei.Passaram-se alguns segundos. Eu estavacom o coração na boca. Sabia que Wolf-gang Priklopil estava me procurando e te-mia que ele estivesse completamente furi-oso. Após alguns instantes, vi duas viatu-ras com luzes azuis próximas à cerca dojardim. Ou a mulher não transmitira meupedido de um carro sem identificação oua polícia não o levara em consideração.Dois jovens policiais desceram e entraramno pequeno jardim.

– Fique onde está e ponha as mãospara cima! - gritou um deles. Nãoera desse jeito que eu havia imagi-nado meu primeiro encontro coma liberdade recém-descoberta. Comas mãos para cima, como uma cri-minosa, parada ao lado da cerca,disse ao policial quem eu era.– Meu nome é Natascha Kampus-ch. Você deve ter ouvido falar domeu caso. Fui sequestrada em1998.– Kampusch? - perguntou um de-les.

E me lembrei das palavras do sequestra-dor: "Ninguém vai sentir sua falta, lodosestão felizes porque você se foi".

– Data de nascimento? Domicílio?

– 17 de fevereiro de 1988, residenteem Rennbahnweg 27, bloco 38, 7o

andar, apartamento 18.– Sequestrada quando e por quem?– Em 1998. Fui mantida em cati-veiro em uma casa na Heinestras-se 60. O nome do sequestrador éWolfgang Priklopil.

Não poderia haver um contraste maiorentre a sóbria verificação dos fatos e amistura de euforia e pânico que literal-mente me invadia.A voz do policial, que se comunicava porrádio para confirmar minhas declarações,chegava aos meus ouvidos com dificulda-de. A tensão estava quase me destruin-do interiormente. Eu havia corrido pou-cas centenas de metros; a casa do seques-

trador ficava a um passo dali. Tentei inspi-rar e expirar para controlar o medo. Nãoduvidei nem por um segundo de que seriafácil para ele eliminar os dois policiais. Fi-quei de pé junto à cerca, paralisada, e meesforcei para ouvir algo. O pio dos passa-rinhos, um carro a distância. Mas pareciaa calmaria antes da tempestade. Tiros seri-am ouvidos a qualquer momento. Reteseios músculos. Eu dera o salto e finalmentechegara ao outro lado. E estava pronta pa-ra lutar pela liberdade recém-descoberta.

EXTRA

Caso Natascha Kampusch: Mulher alegaser pessoa desaparecida Polícia tenta com-provar sua identidadeViena (APA) - O caso de Natascha Kam-pusch, desaparecida por mais de oito anos,sofreu uma reviravolta surpreendente.Uma jovem alega ser a menina que desa-pareceu em 2 de março de 1998 em Vie-na. A Delegacia de Polícia Criminal Fede-ral austríaca iniciou uma investigação paracomprovar a identidade da mulher. "Não

sabemos se, de fato, ela é a desaparecidaNatascha Kampusch ou se está apenas de-sorientada", disse Erich Zwettler, da De-legacia de Polícia Criminal Federal, àAPA. A mulher está na delegacia de po-lícia em Deutsch-Wagram, na Baixa Áus-tria.22de agosto de 2006Eu não era uma jovem desorientada. Eradoloroso para mim que pensassem algoassim. Mas, para a polícia, que teve decomparar as fotografias que mostravamuma menina rechonchuda em idade esco-lar com a jovem magricela diante deles,era uma possibilidade. Antes de entrar-mos no carro, pedi um cobertor. Nãoqueria que o sequestrador me visse, por-que eu pensava que ele ainda estava nas

redondezas ou que alguém pudesse estarfilmando a cena. Não havia cobertor, masos policiais me protegeram da visão daspessoas.Entrei no carro e me encolhi no banco.Quando o policial ligou o motor e o carrocomeçou a se mover, uma onda de alíviome invadiu. Eu conseguira. Havia fugido.Na delegacia de polícia de Deutsch-Wa-gram, fui recebida como uma criança de-saparecida.

– Mal posso acreditar que você estáaqui! Que está viva!

Os policiais que haviam trabalhado nomeu caso se juntaram ao meu redor. Amaioria deles estava convencida de quemeu era; apenas um ou dois queriam esperarpelo teste de DNA. Eles me disseram que

por muito tempo haviam procurado pormim. Que forças-tarefa especiais haviamsido formadas e substituídas por outras.Suas vozes vinham de toda parte. Eu ten-tava me concentrar, mas estava atônita,por causa do longo tempo que não falavacom ninguém. Fiquei parada, sem poderfazer nada no meio daquelas pessoas, mesentindo muito fraca, até que comecei atremer, usando apenas o vestido fino. En-tão uma policial me deu seu casaco.

– Você está gelada. Vista isso - dissecarinhosamente.

Gostei dela na mesma hora.Lembrando de tudo, fico impressionadaque eles não tenham me levado direto pa-ra um local tranquilo e esperado pelo me-nos um dia antes de me interrogar. Afinal,

eu estava completamente em pânico. Du-rante oito anos e meio, acreditara no se-questrador quando ele me dizia que aspessoas morreriam se eu fugisse. Agoraeu fizera isso e nada acontecera. Mas eupodia sentir o medo me assombrando, enão me sentia segura ou livre na delegaciade polícia. Não tinha ideia de como lidarcom a chuva de perguntas e com a simpa-tia. Sentia-me completamente desprotegi-da. Hoje, acho que eles deveriam ter medeixado descansar um pouco, sob cuida-dos.Na época, não questionei a confusão. Semparar para respirar, sem ter um segundode descanso, fui levada para uma sala con-tígua depois que anotaram minhas infor-mações pessoais. A policial simpática que

me dera o casaco foi a responsável pelointerrogatório.

– Sente-se e conte-me tudo calma-mente - disse.

Olhei em volta, insegura. Estávamos emuma sala com muitos arquivos policiais euma atmosfera ligeiramente abafada, quetranspirava eficiência. O primeiro lugarem que passei algum tempo depois do ca-tiveiro. Havia me preparado tanto para es-se momento, mas a situação toda aindame parecia surreal.A primeira coisa que a policial me pergun-tou foi se poderia me chamar de "você".Ela disse que seria mais fácil para mimtambém. Mas eu não queria isso. Eu nãoqueria ser a "Natascha", que podia ser tra-tada como criança e levada para qualquer

parte. Eu tinha fugido, era adulta e ia bri-gar para ser tratada assim.A policial assentiu, me fez perguntas semimportância e pediu alguns sanduíches.

– Coma alguma coisa. Você está que ésó pele e ossos - falou.

Peguei o sanduíche que ela me ofereceu,mas não sabia o que fazer. Estava tão con-fusa que as tentativas de ajuda e as suges-tões bem intencionadas pareciam ordensàs quais eu não me sentia capaz de obede-cer. Eu estava muito tensa para comer; fi-cara tanto tempo sem alimento que sabiaque teria cólicas estomacais terríveis se co-messe um sanduíche inteiro naquele mo-mento.

– Não consigo comer agora - sussur-rei.

Mas o hábito de obedecer a ordens preva-leceu. Como um rato, mordisquei a beira-da do sanduíche. Levou algum tempo pa-ra a tensão diminuir, para que eu pudesseme concentrar na conversa.A policial imediatamente me fez perceberque eu podia confiar nela. Enquanto ospoliciais me intimidavam, e eu os olhavacom extrema cautela, sentia que podia bai-xar um pouco a guarda com uma mulher.Fazia tanto tempo que não ficava próximaa uma mulher que não podia deixar deobservá-la, fascinada. O cabelo escuro es-tava repartido de lado, e uma mecha maisclara suavizava a aparência. Um pingentedourado em formato de coração balança-va no pescoço e ela usava brincos. Eu mesentia segura com ela. Comecei a lhe con-

tar minha história, desde o início. As pala-vras literalmente escorriam da minha bo-ca, e senti que um peso saía de mim a ca-da frase que falava sobre o cativeiro. Co-mo se pôr tudo aquilo em palavras, na só-bria sala da delegacia de polícia, ditando-as para um relatório policial, pudesse levarembora todo o horror. Falei de como so-nhava com uma vida adulta, na qual toma-ria minhas próprias decisões, de meu de-sejo de ter um apartamento, um trabalho edepois uma família. Sentia que fizera umaamiga. Ao fim do interrogatório, a policialme deu seu relógio de pulso. Isso me fezsentir como se eu realmente fosse donado meu tempo de novo. Não recebia maisordens de ninguém, não dependia mais do

tem- porizador, que decretava quando es-tava claro e quando estava escuro.

– Por favor, não dê entrevistas - eudisse ao nos despedirmos. - Mas, sevocê falar com a imprensa, diga algu-ma coisa boa sobre mim.

Ela riu.– Prometo que não vou dar entrevis-tas. Quem ia querer me fazer pergun-tas!

A policial a quem eu confiara minha vidasó conseguiu manter a promessa por algu-mas horas. No dia seguinte, não resistiu àpressão dos meios de comunicação e apa-receu na televisão, revelando detalhes dointerrogatório. Mais tarde, ela me pediudesculpas. Ela lamentava - assim como to-

dos os outros - o fato de ter sido comple-tamente dominada pela situação.Seus colegas policiais em Deutsch-Wa-gram também trataram a situação comuma ingenuidade incrível. Ninguém esta-va preparado para o circo que se armouquando as notícias da fuga vazaram. De-pois do interrogatório, segui o plano quehavia elaborado durante meses, mas a po-lícia não tinha uma estratégia pronta.

– Por favor, não diga nada à im-prensa - eu repetia sempre. E elesriam:– A imprensa não vem.

Mas estavam muito enganados. Ao sairpara ser transferida para a delegacia de po-lícia em Viena, naquela tarde, o prédio jáestava cercado. Felizmente, eu tivera pre-

sença de espírito para pedir que colocas-sem um cobertor sobre minha cabeça an-tes de deixar a delegacia. Mas, mesmo de-baixo do cobertor, podia sentir os flashesdas câmeras fotográficas.

– Natascha! Natascha! - ouvia de to-dos os lados.

Amparada por dois policiais, caminhei atéo carro. A imagem das pernas brancas,cheias de hematomas, debaixo de um co-bertor azul, revelando apenas uma faixado vestido laranja, percorreu o mundo. Acaminho de Viena, descobri que a buscapor Wolfgang Priklopil avançava. A po-lícia fora até a casa, mas não encontraraninguém.

– Está ocorrendo uma caçada huma-na - disse um dos policiais. - Nós ain-

da não o encontramos, mas todos osnossos homens estão trabalhando nis-so. O sequestrador não tem para ondeir. Nem para o estrangeiro. Nós o pe-garemos.

Desse momento em diante, aguardei asnotícias de que Wolfgang Priklopil tinhase matado. Eu detonara uma bomba. Oestopim estava aceso e não havia comoapagá-lo agora. Eu escolhera a vida. Sórestava a morte para o sequestrador.Reconheci minha mãe imediatamente aovê-la entrar na delegacia de polícia em Vi-ena. Um total de 3.096 dias haviam sepassado desde a manhã em que deixara oapartamento de Rennbahnweg sem dizeradeus. Oito anos e meio, durante os quaiseu ficara de coração partido por não po-

der me desculpar. Toda minha adolescên-cia longe da família. Oito Natais, os ani-versários de 11 a 18 anos, noites incon-táveis em que eu queria uma palavra, umtoque. Agora ela estava na minha frente equase não mudara, como um sonho quesubitamente se torna realidade. Ela solu-çava alto, ria e chorava ao mesmo tem-po quando correu em minha direção e meabraçou.

– Minha filha! Minha filha! Você estáaqui! Eu sempre soube que você vol-taria!

Respirei fundo seu perfume.– Você está aqui - minha mãe sussur-rava repetidamente. - Natascha, vocêestá aqui!

Nós nos abraçamos por muito tempo. Euestava tão desacostumada de contato físi-co que essa proximidade me fez ficar ton-ta.Minhas irmãs chegaram à delegacia poucodepois. Ao me abraçarem, também chora-ram. Meu pai veio depois. Ele correu atémim, olhando sem acreditar, e primeiroprocurou a cicatriz de um machucado daépoca de criança. Então me abraçou, meergueu e soluçou:

– Natascha! É você!O grande e forte Ludwig Koch choravafeito um bebê, e eu também.

– Te amo - sussurrei quando ele mepôs no chão pouco depois, assim co-mo nas muitas vezes em que me dei-

xara em casa depois de passarmos ofim de semana juntos.

É estranho como, depois de tanto temposeparados, todos nós queríamos fazer per-guntas triviais.

– Meus gatos ainda estão vivos?– Você e seu namorado ainda estãojuntos?– Como você parece jovem!– Como você cresceu!

Como se precisássemos de tempo paranos conhecer melhor. Como se fosse umaconversa com uma pessoa estranha dequem - por educação ou porque não hámais nada a dizer - você não quer chegartão perto. Para mim, em particular, erauma situação inacreditavelmente difícil.Eu passara os últimos anos me reprimin-

do, e não podia simplesmente apertar umbotão para derrubar o muro que sentiaque havia entre mim e minha família, ape-sar da proximidade física. Como se eu es-tivesse em uma redoma e os observasse rire chorar enquanto minhas lágrimas seca-vam. Eu vivera em um pesadelo por tem-po demais; minha prisão psicológica aindaestava lá, entre mim e minha família. Emminha percepção, eles pareciam os mes-mos de oito anos antes, enquanto eu dei-xara de ser uma menina em idade escolare me transformara em mulher. Sentia co-mo se fôssemos prisioneiros em bolhas detempo diferentes, que por um breve mo-mento haviam se tocado e agora se afasta-vam rápido demais. Não fazia ideia de co-mo eles haviam passado os últimos anos e

o que acontecera em seu mundo. Mas sa-bia que para o que eu vivera não havia pa-lavras - e que eu não podia deixar aflora-rem as emoções que causavam meu rede-moinho interior. Eu as bloqueara por tan-to tempo que não conseguia abrir tão fa-cilmente a porta para meu cativeiro emo-cional.O mundo ao qual eu retornara não eraaquele que deixara. E eu também não eramais a mesma. Nada seria como antes -nunca. Isso ficou claro quando pergunteipara minha mãe:

– Como está a vovó?Ela baixou os olhos e disse:

– Ela faleceu há dois anos. Sinto mui-to.

Engoli em seco e imediatamente ocultei anotícia triste atrás da grossa armadura queeu construíra durante o cativeiro. Minhaavó. Lembranças começaram a girar emminha mente. O cheiro do unguento e asvelas da árvore de Natal. O avental, a sen-sação de proximidade e o fato de que pen-sar nela me ajudara em muitas noites nocativeiro.Agora que meus pais já haviam me iden-tificado, foram acompanhados até a saída.Minha obrigação era estar disponível paraos procedimentos policiais. E eu aindanão tivera um momento de paz.A polícia disponibilizou uma psicólogapara me apoiar nos dias seguintes. Sempreme perguntavam como eles podiam fazercom que o sequestrador se entregasse. Eu

não sabia responder. Tinha certeza de queele se mataria, mas não tinha ideia de co-mo ou onde. Em Strasshof, segundo ouvi,a casa fora examinada em busca de explo-sivos. No fim da tarde, os policiais des-cobriram o cativeiro. Enquanto eu estavasentada na delegacia, especialistas de uni-forme branco examinavam o cômodo quefora minha prisão e meu refúgio por oitoanos. Havia poucas horas eu acordara lá.Naquela noite, fui levada para um hotelem Burgenland em um carro de políciasem identificação. Após as tentativas mal-sucedidas da polícia de Viena de me en-contrar, uma força-tarefa de Burgenlandassumira o caso. Fui entregue à supervisãodeles. Já era tarde da noite quando chega-mos ao hotel. Acompanhada da psicólo-

ga da polícia, os policiais me conduziramaté um quarto com uma cama de casal eum banheiro. O andar inteiro fora inter-ditado e estava guardado por policiais ar-mados. Eles temiam que o se- questrador- que ainda estava à solta - tentasse se vin-gar.Passei a primeira noite em liberdade coma psicóloga, que falava sem parar e cujaspalavras vinham em um fluxo constante.Novamente eu fora afastada do mundoexterior - dessa vez, para minha proteção,me diziam os policiais.Provavelmente eles estavam certos, maseu quase enlouqueci naquele quarto. Eume sentia trancada e queria apenas umacoisa: ouvir o rádio. Descobrir o queacontecera com Wolfgang Priklopil.

– Isso não é bom para você - diziaa psicóloga repetidamente. Interior-mente eu não conseguia me acalmar,mas segui suas instruções.

Mais tarde, naquela noite, tomei um ba-nho de banheira. Mergulhei na água e ten-tei relaxar. Eu podia contar nos dedosquantas vezes havia tomado banho de ba-nheira durante os anos de cativeiro. Ago-ra, podia tomar banho sozinha e colocar aquantidade de espuma que quisesse. Masnão consegui aproveitar. Em alguma partelá fora, havia um homem que, durante oi-to anos e meio, fora a única pessoa em mi-nha vida e que agora procurava um modode se matar.Ouvi a notícia no dia seguinte, na viaturaque me levava de volta a Viena.

– Alguma notícia do sequestrador?- foi a primeira coisa que pergunteiao entrar no carro.– Sim - disse o policial cautelosa-mente. - O sequestrador está mor-to. Ele cometeu suicídio se jogandona frente de um trem, às 20h59,próximo a Nordbahnhof, em Vie-na.

Ergui a cabeça e olhei pela janela. Do ladode fora, a plana paisagem de verão de Bur-genland passava por mim na estrada. Umbando de pássaros levantou voo. O solestava baixo no céu e banhava as planí-cies do verão tardio com uma luz quen-te. Respirei fundo e abri os braços. Umasensação de calor e segurança atravessoumeu corpo, movendo-se do estômago pa-

ra as pontas dos dedos das mãos e dospés. Minha mente estava leve. Não haviamais nenhum Wolfgang Priklopil. Estavatudo acabado.Eu estava livre.

EPÍLOGO

You don't own meI'm notjust one of your many toysYou dont own me{8}

PASSEI NA ALA PSIQUIÁTRICA para Crian-ças e Adolescentes do Hospital Geral deViena os primeiros dias de minha nova vi-da em liberdade. Era um longo e cautelosoretorno à vida normal - e também uma pré-via do que me aguardava. Recebi toda aten-ção possível, mas eu não podia sair da ala

fechada. Separada do mundo exterior parao qual eu acabara de fugir, na enfermaria,passava o tempo conversando com jovensanoréxicas e crianças que praticavam vio-lência contra si mesmas. Do lado de fo-ra, para além dos muros protetores, cres-cia o frenesi dos meios de comunicação.Fotógrafos subiam em árvores para obterminha primeira imagem. Repórteres ten-tavam entrar no hospital, disfarçadas deenfermeiras. Meus pais foram bombarde-ados com pedidos de entrevista.Segundo os especialistas em comunica-ção, meu caso foi o primeiro em que osmeios de comunicação da Alemanha e daÁustria - normalmente mais contidos -tentaram obter notícias a todo custo. Ima-gens do cativeiro apareceram nos jornais.

A porta de concreto estava aberta agora.Minhas poucas coisas - os diários e algu-mas peças de roupa - haviam sido jogadassem cuidado algum pelos homens de uni-forme branco. Marcadores amarelos comnúmeros podiam ser vistos claramente namesa e na cama. Fui forçada a observarmeu pequeno mundo particular - tranca-do há tanto tempo – chegar às primeiraspáginas dos jornais. Tudo o que eu tenta-ra esconder, inclusive do sequestrador, eraagora trazido à esfera pública, que tentavaimpor sua própria versão da verdade.Duas semanas depois da fuga, decidi pôrum fim às especulações e contar minhahistória. Dei três entrevistas: para a emis-sora de televisão ORF, para o jornal mais

lido da Áustria, o Kronenzeitung, e para a re-vista News.Antes de dar esse passo publicamente, fuiaconselhada por muita gente a mudar meunome e a me esconder. Eles me diziamque, de outro modo, eu nunca teria achance de levar uma vida normal. Mas quetipo de vida é essa, em que você não po-de mostrar o rosto, não pode ver sua fa-mília e renega o próprio nome? Que tipode vida seria essa, especialmente para al-guém como eu, que, durante os anos decativeiro, lutara para não perder a identi-dade? Apesar da violência, do isolamento,de ser trancada no escuro e de todos osoutros tormentos, continuei sendo Natas-cha Kampusch. Após minha fuga, eu nun-ca abriria mão do bem mais importante:

minha identidade. E me apresentei dian-te das câmeras com meu nome comple-to e sem disfarces, e ofereci um vislum-bre do tempo de cativeiro. Mas, apesar deminha franqueza, os meios de comunica-ção não me deixavam em paz. Eram de-zenas de manchetes, e especulações cadavez mais absurdas dominavam o noticiá-rio. Parecia que a verdade terrível não eraterrível o bastante, então eles acrescenta-vam coisas muito além do suportável, ne-gando, com isso, minha autoridade comointérprete do que eu vivera. A casa ondeeu fora forçada a passar os anos de mi-nha adolescência vivia cercada de curio-sos. Todos queriam sentir o calafrio doterror. Para mim, seria absolutamente ter-rível se um admirador pervertido do se-

questrador comprasse a casa e ela se tor-nasse um local de peregrinação para aque-les que viam suas fantasias mais obscu-ras transformadas em realidade. Por isso,certifiquei-me de que ela não fosse vendi-da, mas doada a mim como indenização.Assim, conquistei e passei a controlar umaparte de meu passado.No primeiro momento, a onda de simpa-tia era impressionante. Eu recebia milha-res de cartas de pessoas completamenteestranhas que se alegravam com minha fu-ga. Após algumas semanas, me mudei pa-ra a residência das enfermeiras, próximaao hospital, e, poucos meses depois, parameu apartamento. As pessoas me pergun-tavam por que eu não morava com minhamãe novamente. Mas a questão parecia

tão estranha que nem sequer tinha umaresposta. Afinal, sempre fizera parte dosmeus planos, aos 18 anos, me tornar inde-pendente das pessoas que haviam me sus-tentado até ali. Agora eu queria que issofosse real; queria andar com meus própri-os pés e finalmente tomar conta de minhavida. Eu tinha a sensação de que precisa-va descobrir o mundo. Eu era livre e tinhao direito de fazer o que quisesse, qualquercoisa: tomar um sorvete em uma tarde deverão, dançar, retomar a escola. Eu anda-va em um mundo grande, colorido e ba-rulhento, que me intimidava e me deixa-va eufórica, e absorvia aquilo tudo avida-mente, nos mínimos detalhes. Havia mui-tas coisas que eu não compreendia, depoisde ficar isolada por tanto tempo. Eu preci-

sava aprender como o mundo funcionava,como os jovens interagiam, que códigose gestos usavam e o que queriam expres-sar com suas roupas. Eu desfrutava de mi-nha liberdade e aprendia, aprendia, apren-dia. Perdera toda a minha adolescência etinha muito o que pôr em dia.Mas, pouco a pouco, fui percebendo quecaíra em outra prisão. Centímetro a centí-metro, as paredes que substituíram o cati-veiro se tornaram visíveis. Eram mais su-tis, construídas com o interesse públicoexcessivo, que julgava cada movimentomeu. Assim, coisas simples como pegar ometrô ou ir ao shopping em paz se torna-ram impossíveis para mim. Nos primeirosmeses depois da fuga, uma equipe de con-selheiros organizou minha vida, dando-

me pouco espaço para refletir sobre o queeu realmente queria fazer. Acreditei que,ao satisfazer à curiosidade da mídia, seriacapaz de retomar minha história. Só de-pois descobri que uma tentativa como es-sa nunca teria êxito. Nesse mundo quebuscava por mim, a questão não era eu.Eu me tornara conhecida por causa de umcrime terrível. O sequestrador estava mor-to - não havia um caso Priklopil. Eu era ocaso: o caso Natascha Kampusch.A simpatia oferecida à vítima é engana-dora. As pessoas amam a vítima apenasquando se sentem superiores a ela. Já nasprimeiras cartas, recebi dúzias de mensa-gens que despertavam uma sensação nau-seante. Havia muitos perseguidores, cartasde amor, pedidos de casamento e cartas

anônimas perversas. Mas mesmo as ofer-tas de ajuda indicavam o que ocorria noíntimo das pessoas em muitos casos. Éum reflexo humano que faz com que apessoa se sinta melhor quando ajuda al-guém mais fraco, a vítima. Isso fúncionaquando os papéis estão definidos clara-mente. A gratidão em reação a quem doaé maravilhosa - mas, quando é usada deforma incorreta, para evitar que o outrodesenvolva seu pleno potencial, toda essahistória adquire uma conotação negativa."Você poderia viver comigo e me ajudarcom as tarefas domésticas. Ofereço salá-rio e moradia. Embora seja casado, te-nho certeza de que daremos um jeito", es-creveu um homem. "Você pode trabalharna minha casa para que aprenda a limpar

e a cozinhar", escreveu uma mulher, queachava que aquela "atenção" era o bastan-te. Nos últimos anos, eu quase só fize-ra limpar. Não me entendam mal. Eu fi-cava profundamente emocionada com asgenuínas expressões de simpatia e com to-do o interesse honesto em minha pessoa.Mas é difícil ser reduzida a uma garota queprecisa de ajuda. Esse é um papel com oqual eu não concordei e que não gostariade assumir no futuro.Resisti a todo o lixo psicológico e às fanta-sias obscuras de Wolfgang Priklopil e nãome permiti ser dominada. Agora eu esta-va do lado de fora, e era isso que as pes-soas queriam ver: uma pessoa enfraque-cida, que nunca se recuperaria e sempredependeria da ajuda dos outros. Mas, no

momento em que me recusei a carregar amarca de Caim pelo resto da vida, o hu-mor mudou.Pessoas muito prestativas, que me envia-vam roupas velhas e me ofereciam servi-ços de limpeza em sua casa, perceberame desaprovaram o fato de que eu queriaviver de acordo com minhas próprias re-gras. E rapidamente fui rotulada de ingra-ta, chegando a ouvir que tentava ganhardinheiro com minha situação. As pesso-as achavam estranho que eu pudesse pa-gar um apartamento. Histórias sobre so-mas enormes em troca de entrevistas co-meçaram a surgir. Pouco a pouco, a sim-patia transformou-se em ressentimento einveja - e, algumas vezes, em ódio declara-do.

O que as pessoas menos toleravam eraque eu me recusasse a julgar o sequestra-dor do modo como o público esperavaque eu fizesse. Ninguém queria ouvir quenão há mal absoluto nem preto e branco.É claro que o sequestrador roubara minhaadolescência, me trancara e atormentara -mas, durante os anos mais importantes,dos11 aos 18, ele fora a única referência emminha vida. Ao escapar, eu não apenas melibertara de meu torturador, mas tambémperdera uma pessoa que era, por força dascircunstâncias, próxima a mim. Mas tris-teza, mesmo que fosse difícil de compre-ender, era algo que não me era permitido.Assim que comecei a pintar uma imagemmais nuançada do sequestrador, as pesso-

as disfarçaram e desviaram a atenção. To-dos se sentem desconfortáveis quando ca-tegorias como Bem e Mal começam a ruire é preciso enfrentar o fato de que o Malpersonificado tem um rosto humano. Olado escuro não cai simplesmente do céu,e ninguém nasce um monstro. Somos for-mados pelo contato com o mundo, comas outras pessoas, e é isso que nos tornaquem somos. Temos, portanto, a respon-sabilidade final pelo que acontece em nos-sa família, em nosso ambiente. Admitir is-so para nós mesmos não é fácil. E maisdifícil ainda é quando alguém segura umespelho que nos obriga a enxergar. Commeus comentários, botei o dedo nessa fe-rida, e, com minhas tentativas de discer-nir o lado humano por trás das aparências

de torturador e senhor limpinho, desper-tei a incompreensão. Depois da fuga, meencontrei com Holzapfel, amigo de Wolf-gang Priklopil, para falar sobre o seques-trador, pois queria entender por que ele setornara a pessoa que fizera aquilo comi-go. Mas rapidamente abandonei tais tenta-tivas. Não me era permitido elaborar mi-nhas experiências dessa maneira - simples-mente fui rotulada como vítima da síndro-me de Estocolmo.As autoridades também começaram a metratar de modo diferente com o passar dotempo. Fiquei com a impressão de que, decerto modo, eles se ressentiam do fato deque eu me libertara sozinha. Nesse caso,eles não eram os salvadores, mas aquelesque haviam falhado durante anos. A frus-

tração crescente de todos os responsáveisveio à tona em 2008. Herwig Haidinger,ex-diretor da Delegacia de Polícia Crimi-nal Federal, revelou que líderes políticos epoliciais encobriram os próprios erros nocaso após minha fuga. Ele divulgou a pis-ta do adestrador de cães que, seis semanasapós o sequestro, apontara Priklopil comoo sequestrador - uma pista que a polícianão investigou, apesar de ter tentado detodas as formas me encontrar, como ale-gavam.A força-tarefa especial, que mais tarde as-sumiu o caso, nada sabia sobre essa evi-dência essencial. O arquivo "desaparece-ra". Herwig Haidinger o encontrou depoisde examinar todos os arquivos do casoapós minha fuga. E alertou a ministra do

Interior sobre o erro. Mas ela não quis en-frentar um escândalo político logo após aseleições do outono de 2006 e interrompeuas investigações. Apenas em 2008, apóssua transferência, Haidinger revelou essahistória e divulgou o seguinte e-mail queenviara ao parlamentar Peter Pilz em 26de setembro de 2006, um mês depois daminha fuga:Prezado Comandante,O teor das instruções iniciais a mim en-viadas era a de que nenhuma investigaçãoda segunda pista (isto é, do adestradorde cães da polícia de Viena) deveria serfeita. De acordo com a chefia do minis-tério, segui essas instruções - ainda quesob protesto. As instruções também con-tinham um segundo aspecto: aguardar o

fim das eleições gerais no domingo se-guinte. Entretanto, mesmo após as elei-ções, ninguém ousou tratar do assunto,e todas as informações pertinentes foramencobertas.Quando Haidinger veio a público em2008, suas declarações quase geraram umacrise no governo. Criou-se uma nova co-missão para as investigações. Por mais es-tranho que pareça, os esforços não foramdirigidos à investigação dos erros, mas aoquestionamento das minhas declarações.Recomeçou a busca por cúmplices, e a co-missão me acusou de acobertados - eu,que sempre estivera à mercê de apenasuma pessoa e que não poderia saber o queocorria ao meu redor. Fui interrogada porhoras, mesmo durante a preparação des-

te livro. Eles não me tratavam mais comovítima, mas quase me acusavam de abafarou ocultar peças-chave, chegando a espe-cular se eu estaria sendo chantageada pe-los cúmplices. Parece mais fácil para asautoridades acreditar na grande conspira-ção por trás de um crime desses do queadmitir que negligenciaram um único ban-dido que agia sozinho e parecia inofen-sivo. As novas investigações terminaramsem êxito. Em 2010, o caso foi encerra-do. A descoberta das autoridades: não ha-via cúmplices. Wolfgang Priklopil agiu so-zinho. Fiquei aliviada com essa conclusão.Agora, quatro anos após a fuga, posso res-pirar e me dedicar a encerrar o capítulomais difícil em relação ao que aconteceu:acertar as contas com o passado e olhar

para o futuro. Novamente vejo pessoas- anônimas, na maioria - que reagem demodo agressivo ao que eu digo. Entretan-to, a maior parte das pessoas que conhe-ci me apoiou ao longo do caminho. Lentae cuidadosamente, estou dando um passode cada vez e aprendendo a confiar nova-mente.Nesses quatro anos, me reaproximei deminha família e voltei a ter uma relaçãocarinhosa com minha mãe. Obtive o certi-ficado de conclusão do ensino médio e nomomento estou estudando idiomas. Meucativeiro é algo com que vou ter de lidardurante toda a minha vida, mas, aos pou-cos, acredito que não serei mais dominadapor ele. Ele é parte de mim, mas não é tu-do. Existem muitos outros lados da vida

que eu gostaria de experimentar. Ao es-crever este relato, tentei encerrar o capí-tulo mais longo e sombrio de minha vi-da. Sinto-me aliviada, porque pude encon-trar palavras para o que considero indes-critível e contraditório. Rever tudo em mi-nha mente, em branco e preto, me ajuda aolhar para o futuro com confiança. O quevivi me dá força - sobrevivi ao cativeirono porão, fugi e permaneci de pé. Sei queposso viver minha vida em liberdade tam-bém. E essa liberdade começa agora, qua-tro anos depois do dia23 de agosto de 2006. Somente agora, nes-tas páginas, posso deixar o passado paratrás e dizer verdadeiramente: Estou livre.

{1} Maçã ácida, em alemão. (N. da T.){2} Floresta de prata, em alemão. (N. da T.){3} Krampus é uma criatura mitológica que acompanhaSão Nicolau na época do Natal e pune as crianças que fo-ram más durante o ano. (N. da T.){4} "Chinas." (N. da T.){5} Costume tradicional na celebração de Ano Novo naÁustria. Derrete-se uma pequena quantidade de chumbosobre uma vela que, então, é resfriada em água. O forma-to da vela indica a sorte para o ano seguinte. (N. da T.){6} Pequeno quarto. (N. da T.){7} Escrito por Natascha em inglês: "Quero novamentefelicidade em minha vida/ E sobreviver no êxtase da vida/Quero novamente ver um sorriso e uma gargalhada porum instante/ Quero novamente o sabor do amor de al-guém". (N. da T.){8} Não sou sua/ Não sou um de seus brinquedos/ Nãosou sua (da música You Don't Own Me, letra de JohnMandara e David White).

Multibrasil Download - www.multibrasil.net