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Capítulo 1 A CARNE HUMANA Rio de Janeiro, 1816 Cunhambebe, o primeiro Rei do Brasil, comera cinco mil portugueses. Cinco mil perós, como diziam os índios. No fundo não foi surpresa ter-me descoberto, em pleno Rio de Janeiro, descendente direta do voraz cacique tupinambá. Eu, Joséphine Pechêur, a Madame de Sade, que durante meus 53 anos de existência na França cometera prostituição, adultério, corrupção de menores, sodomia, ocultação de cadáver, tráfico de drogas e indução ao vício, traidora e assassina de meu mais fiel amante e sócio, tinha a quem puxar. Quem sai aos seus não degenera. Não sem razão meu primeiro mentor fora o Marquês de Sade. Imaginei os devorados, cabeças esmagadas às milhares, braços e pernas arrancados, tripas e miolos humanos cozidos. As fogueiras, os sussurros, os arrotos da mastigação de pedaços às vezes bem pouco tenros de tão singular iguaria, as brigas entre as crianças, 1

A carne humana

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A carne humana romance de Ruth Barros e Marcos Gomes

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Capítulo 1

A CARNE HUMANA

Rio de Janeiro, 1816

Cunhambebe, o primeiro Rei do Brasil, comera cinco mil portugueses. Cinco mil perós, como diziam os índios. No fundo não foi surpresa ter-me descoberto, em pleno Rio de Janeiro, descendente direta do voraz cacique tupinambá. Eu, Joséphine Pechêur, a Madame de Sade, que durante meus 53 anos de existência na França cometera prostituição, adultério, corrupção de menores, sodomia, ocultação de cadáver, tráfico de drogas e indução ao vício, traidora e assassina de meu mais fiel amante e sócio, tinha a quem puxar. Quem sai aos seus não degenera. Não sem razão meu primeiro mentor fora o Marquês de Sade.

Imaginei os devorados, cabeças esmagadas às milhares, braços e pernas arrancados, tripas e miolos humanos cozidos. As fogueiras, os sussurros, os arrotos da mastigação de pedaços às vezes bem pouco tenros de tão singular iguaria, as brigas entre as crianças, disputando os nacos mais macios dadas pelos adultos para que fossem se acostumando desde cedo ao sabor do inimigo. “O Homem é o Lobo do Homem, e às vezes Lobinho”, refleti, fiel ao meu estilo acurado, mas vez e outra pouco original de pensar. Quando me aprofundei no canibalismo descobri, entre suas peculiaridades, a especial predileção de Cunhambebe por polegares humanos, que segurava pelo osso comendo as partes carnudas da mão, como as coxas de galinha devoradas aos montes pelo Príncipe Regente, Dom João. A revelação de minhas verdadeiras origens começara havia algumas semanas, em uma típica manhã carioca, de céu muito azul e calor

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sufocante. Tínhamos pouco mais de seis meses de chegadas de Paris. Odette entrou em meu boudoir com ar enfezado:

- Aí está uma índia velha para falar com Madame. Tentei adiantar o assunto, mas ela teimou a só falar à patroa, bugra atrevida. Em todo caso, quer atendê-la? - perguntou.

Em todos esses anos em minha companhia, primeiro como prostituta, depois como procuradora de novas moças para meu estabelecimento, Madame de Sade, do qual se tornou gerente, minha fiel escudeira nunca conseguiu esconder o ciúme de qualquer ser humano com o qual pudesse dividir minha atenção.

- Estás cada dia mais velha e rabugenta – brinquei, ao ver seus lábios já murchos cerrados em um muxoxo de desdém. - Traz-me a índia. Como se chama?

- Iracema – respondeu, ainda arrufada. - E é difícil entender claramente o que diz, a bugra mistura a língua da terra com o tal tupi.

Abreviei a conversação: - Pois bastou para compreenderes que ela só falaria comigo e

vieste trazer-me o recado, poderei entendê-la muito bem.Logo vi que Odette usara de sua proverbial má-vontade, regida

pela eterna necessidade de monopólio de minha afeição, ao classificar Iracema de velha rabugenta. Em parte era verdade, decerto a índia tinha a idade do tempo. Tudo nela era velho, com exceção dos olhos, negros como asa da graúna, brilhantes como os de uma cunhã em seus mais verdes anos. Pequena e curvada, trazia um vestido de algodão cru que, fervido no chá verde, alcançara belo tom de sépia. Apesar de muito asseada, o estado da roupa, comum às criadas brasileiras revelava, mesmo aos pouco perspicazes, tempos de mau passadiço. O olhar desassombrado, porém, não denotava sombra de vassalagem. Gostei da índia.

- Iracema, por que insististe em ver-me, ao invés de falar a Odette, que se ocupa de meus cuidados com a criadagem?

- Sua criada iria tomar referências com as nhanhãs da redondeza, como todas fazem. E todos iriam mencionar minha fama

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de canibal e aí nhanhã nutria por mim a mesma repulsa das outras nhanhãs brancas.

A palavra canibal caiu como tocha acesa em paiol de pólvora. Despertar minha curiosidade sempre foi uma das melhores formas de atrair-me a atenção. A índia não poderia ter arrumado melhor tática. Não pude deixar de notar seus dentes, afiados como os da piranha, o voraz tigre dos rios brasileiros, da qual tomara conhecimento em uma visita ao mercado da Baía dos Mineiros, o grande ponto de abastecimento do Rio.Turbilhonaram-me na mente as descrições dos 120 Dias de Sodoma do Marquês de Sade de suculentos filés de nádegas de supliciados, a dar como mais leves e saborosos os arrancados a dessangrados vivos. E os cristãos, tontos, não devoram seu próprio Deus durante a missa? Forcei a concentrar-me na ruína que diante de mim se apresentava, a ostentar a majestade de um castelo gótico em escombros.

- E o que te faz pensar que seja eu diferente das outras nhanhãs brancas? – perguntei, copiando Iracema, acrescentando a palavra indígena no meu precário português.

- Porque a senhora é estrangeira, como se percebe por sua adorável fala, parecida com a de meu antigo patrão, o Conde de Castide, que voltou para a França.

-Ah, então trabalhaste com um francês. E quais eram tuas ocupações?

- Lavava, passava e cozinhava. Além disso aprendi a tecer. Meu patrão era um sábio com quem muito aprendi, conhecia mais dos índios que eu mesma. Nhanhã branca também tem ar de sábia.

Agradeci de cabeça o cumprimento, fazendo sinal de que prosseguisse.

- Como a senhora também é mulher de sabedoria, não vai se deixar levar por intrigas e mesquinharias. Índio é animal inferior para perós e brasis. E por me dizerem canibal só consigo colocações miseráveis. Os curtos anos bons foram com meu Conde de Castide, que me queria levar em sua volta.

- E por que não foste?

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- Imaginei, como na França tinha família e mulher, uma senhora a dar-me ordens, atazanando-me a vida. Aqui entre tantos criados de sua casa, por exemplo, eu ia ser apenas mais uma.

Sorriu-me com confiança, os caquinhos de dentes de piranha a contrastar com o brilho de seus olhos, veludo negro dos céus estrelados do Atlântico Sul. Havia ainda um porém:

- Por acaso sabes quantos anos tens? Apesar de teu passo desenvolto me pareces muito fatigada para trabalhos domésticos, que sei pesados por minha própria experiência.

- Preciso de um teto que abrigue esses velhos ossos – declarou, num assomo de sinceridade. - Não sei minha idade, nasci na selva, onde o passar do tempo impõe respeito. Devo beirar 80 invernos, pelas contas dos brancos, mas conservo o olhar afiado do gavião e um tear de madeira com o qual faço alguns panos, veja estes aqui.

As mãos estendidas como garras de ave de rapina, finas e retorcidas, exibiam peças que poderiam perfeitamente ter vestido Helena de Tróia, rústicas e de linda trama. Tinham leve odor de ervas. Mas não conseguia mais refrear-me. Em toda minha vasta vida aprendi, onde há fumaça há fogo. “Nada funciona tão bem quanto os lugares comuns”, pensei. Indaguei sem rebuços: - Tua obra é bela, mas de onde vem tua fama de canibal? Se fores sincera, sei que posso fiar-me em ti, pois não abrigo desleais. Mas se mentires o saberei, não duvides.

Iracema devolveu-me um olhar límpido de milhares de anos de tradição guerreira, mas nada me preparou para a revelação que o acompanharia:

- Minha tribo foi uma das últimas que comiam carne humana, também dela fiz uso, é verdade. Infelizmente, Nhanhã, os índios não são mais os mesmos, não se alimentam mais nem do heroísmo dos inimigos nem com o amor dos parentes, trocaram tudo isso por carne de vaca.

Contive o riso diante desse comentário típico de todas as velhas rabugentas que consideram seus tempos de juventude o melhor período da humanidade, quando os namoricos eram mais inocentes, havia menos doenças, os homens eram mais puros, os

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ares mais benfazejos, a criadagem menos atrevida, e assim por diante. Seguindo essa toada, a índia octogenária lamentava a nobreza da raça perdida com o fim do canibalismo. A conversa estava boa, mas o sol já andava alto e eu tinha afazeres.

- Ficarás aqui. - Chamei Odette e determinei que desse um quartinho no fundo do quintal, separado das outras serviçais. Pelo sim pelo não, era bom não deixá-la muito próxima da carne tenra de minhas jovens escravas...

- Madame, vou lhe trazer os apontamentos do Conde, falam de minha tribo e do maior dos caciques, Cunhambebe.

Sem atentar ao nome, respondi simplesmente: - Traz o que quiseres. Na manhã seguinte, um escravo ajudou Iracema a recolher seus

parcos haveres de um quartinho úmido, onde vivia ainda do resto do dinheiro legado pelo antigo patrão. No final da tarde fui verificar sua instalação. A velha fiandeira aproveitava o resto de luz do entardecer. Admirei a agilidade dos dedos de harpia a tecer tramas. Elogiei os grandes vasos bojudos decorados com ricas pinturas geométricas, com que guarnecera o quarto e ela explicou usar urnas funerárias para plantar flores.

- Estes são potes bons, o barro era moldado pelos homens. As mulheres pintavam as linhas pretas, que são labirintos. Os maus espíritos da natureza neles se perdiam, não conseguindo alcançar os ossos protegidos. Hoje desses índios moços só saem vasos vergonhosos, malfeitos e malpintados. Parece que as mãos habilidosas ficaram enterradas no passado de glória, tornado presente de miséria.

Encerrei a conversa, sem paciência para seu ressentimento em relação ao jovem ano de 1816. Dias depois, entediada pelo calor do meio-dia, que pouca margem de atividade dava, resolvi voltar ao tugúrio da índia, o canto mais fresco da casa pelas urnas funerárias transformadas em útero para a viva seiva das plantas. Queria divertir-me e soltar-lhe a língua. Havia separado uma garrafa de aguardente. Eu nunca a vira beber, mas já me informara que era useira e vezeira desse álcool forte destilado da cana, como de resto a

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maioria dos índios da cidade. Odete, que tinha feito a intriga das libações de Iracema, fez cara feia ao dar com a garrafa:

- O que faz Madame com essa pinga na mão em pleno sol do meio-dia, logo a senhora, que sempre primou pela temperança? Garanto que vai fazer um agrado àquela índia velha, agora é como se não existisse mais, logo eu, fiel capacho que sempre fui.

Evitei responder-lhe diretamente e apreciei a sagacidade de minha sempre astuta companheira. “Pinga” era palavra que entrara na moda recentemente entre os próprios brasileiros e ela, eterna procuradora, já descobrira o último jargão.

- Odette, sempre com teus ciúmes bobos, sabes que para mim és minha mais fiel escudeira. Avia-te, vai à Baía dos Mineiros procurar peixe para nossa ceia, se tardas não conseguiremos nada.

Livrando-me dela, penetrei o covil cheio de sombra e frescor.- Eis aqui um agrado para aliviar-te o calor, minha cara – disse-

lhe gentilmente, exibindo a garrafa.Ao constatar a transparência do regalo, os olhos negros

brilharam como dois tições. - Obrigada, generosa cunhã – disse-me, arrebatando-a de

minhas mãos. Ao perceber-me a fitá-la com curiosidade, refreou-se.- Beba, para isso a trouxe - encorajei-a.Não era preciso. Metade do conteúdo evaporou-se na goela

enrugada da índia, como tragada pelo calor sufocante do dia. Ela tolheu-se de novo em minha presença, como a desculpar-se pela evidente avidez.

- Madame me desculpe, mas não consigo mais mascar mandioca para meu próprio cauim, meus cacos de dentes ferem minha carne em vez de triturar a raiz.

- Não te preocupes, Iracema, sei bem o que é envelhecer. As memórias da vida passada me parecem recentes, enquanto titubeio para recordar o que fiz ontem. Tens lembranças do sabor da carne humana?

Minha impaciência ardia. Aí estava uma chance de saber algo que meu mentor, o Marquês de Sade, só lera em livros. As narinas da índia fremiram, toda a rabugice desvaneceu-se, ela parecia

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entrada em um transe da mais pura alegria. Sua boca se abriu em um sorriso beatífico e as mãos tremeram, parecia tomada por êxtase místico.

- É macia e doce como a carne de preá, entre o porco e o frango. É melhor com pouca gordura e mais ainda ao compartilharmos os relatos dos feitos do guerreiro morto ou do parente querido que está sendo comido. Com o coração a encher-se de orgulho, a boca faz água, nós curumins mal podíamos esperar o moquém, comíamos praticamente cru.

Sei bem da urgência infantil, também fui criança sans culotte. Assim como eu ansiava pelos refugos das bonecas despedaçadas da Marquesa, minha patroa, os indiozinhos aguardavam os restos humanos. Iracema fora transportada a um estranho paraíso de carne e sangue. De sua boca saiu um tênue fio de baba, mistura da cachaça às recordações da gula.

- Para nós, curumins, a espera parecia eterna. No caso de morte na taba, nunca chegavam ao fim as muitas rezas para cortar o corpo que era colocado ao lado das fogueiras, nos moquéns. Mas a grande festa mesmo era o sacrifício dos prisioneiros.

- Li há muito tempo o relato de um alemão, Hans Staden, que passou anos com índios e não foi comido. Ah, ainda se não me falha totalmente a memória, era prisioneiro da aldeia do tal cacique, Cunhambebe, que mencionaste outro dia.

- Quando Madame se der ao trabalho de examinar os livros que trouxe verá quem é Cunhambebe. Esse tal de Hans Staden - é assim mesmo que fala? - eu desconheço, mas o que diz não destoa da verdade. Os prisioneiros às vezes passavam meses e até anos morando na aldeia, bem tratados e podiam se servir das mulheres, pois se deitar com eles era hospitalidade, assim como fazíamos com os viajantes. Filhos que nascessem também eram comidos.

Não consegui conter certo dó pelas crianças devoradas.- Não poupavam nem os bebês?- Não, pois tinham o sangue do inimigo, muito apreciados pela

carne tenra, embora pouca, e maior delicadeza do bucho.

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Não se pode condenar apenas os índios por impiedade com o próprio sangue. Pois não eram os próprios portugueses, os perós, que vendiam como escravos os próprios filhos nascidos das índias e das negras? Mas a prosa estava a interessar-me. Busquei mais detalhes dos banquetes humanos:

- E os prisioneiros eram trancados?- Qual o quê, moravam em ocas abertas, fugir seria dar provas

de covardia. Com orgulho de guerreiros declamavam de cor belas falas da hora da morte, pintavam-se e participavam da sua última festa com muito empenho.

- Como era essa festa?- Durava horas. Chegada a lua escolhida, o inimigo é levado ao

pátio central da aldeia, atado por uma corda a cintura, esticada por dois homens. As mãos ficam livres e alcançam com facilidade o cesto de pedras e frutas verdes que um índio da tribo segura perto dele, a incitá-lo: “vinga-te antes de morreres”, diz. Aí o prisioneiro gaba seus feitos, conta quantos de nós ele e seus parentes mataram e comeram, atira pedras com toda a sua força. Os homens servem de escudo para mulheres e crianças, que riem muito. Cheguei a ver um deles morrer com uma pedra que lhe acertou o olho, acabou moqueado junto ao prisioneiro. O banquete misturava o choro pelo parente perdido aos gritos de alegria pela morte do inimigo.

- Deve ter sido sem dúvida uma ocasião muito especial – encorajei-a, sem saber muito o que pensar sobre comer o amigo e o inimigo no mesmo bocado. - Mas, afinal, como matavam o prisioneiro?

- Calma, nhanhã. O carrasco, até então escondido, sai de uma das ocas com plumas presas a seus ombros, braços e pernas. Carrega um grosso tacape que leva como um cetro de um de vossos reis. Ele empertiga o corpo e engrossa a voz: “Não és tu da nação inimiga? Não tens matado e devorado nossos pais e amigos?”, pergunta ao prisioneiro com o tom rouco a reviver os antepassados já mortos. “Sim, sou da nação valente, que matou e comeu teus pais” – responde o prisioneiro. E o índio emplumado então diz: “Agora estás em nosso poder, serás morto por mim e comido por todos.”

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Sabedor de que chegou sua hora, o prisioneiro responde altivo: “Meus parentes me vingarão.”

Eu já não agüentava mais, parecia ter-me assenhoreado da gulodice dos curumins a esperar o festim.

- E a morte, afinal?- O tacape esmaga a cabeça num ruído seco e certeiro. A massa

empastada rega com borbotões de sangue o corpo que cai, as pernas e os braços ainda se sacodem por algum tempo. Os homens da tribo nem esperam a imobilidade da morte, com lanças pontudas abrem o ventre, recolhem vísceras tremelicantes. Machados de pedra dividem o corpo, a esmigalhar os ossos. As mulheres, aos gritos, repartem a carne e levam-na a moquear. As tripas são lavadas no rio antes colocadas a cozer no calor e na fumaça. O cauim cuspido pelas mulheres nos dias anteriores rega o festim. Ficam todos muito alegres e bêbados na doce espera dos assados. - Era possível recusar tão refinada iguaria, algum índio que não apreciasse carne humana?

- Impossível, nhanhã. As mulheres de minha tribo, como minha mãe, passavam sangue dos sacrificados nos peitos para dar o leite, nós curumins desde a mais tenra idade já sabíamos o sabor do inimigo. O grande tempero é a vingança, pois esse maldito que hora é refeição terá comido muitos dos nossos, ou seus parentes, o que vem a dar na mesma.

- Quer dizer então que acabas devorando tua própria carne e teu próprio sangue, já que os de tua tribo comidos pelo inimigo agora habitam dentro dele, como tu mesma o dizes

- Madame é mulher muito atilada – respondeu Iracema, visivelmente encantada. – Claro que ao comer nosso inimigo a força de nossos parentes por ele engolidos voltava a habitar-nos e nos revigorava. Mas isso não afastou a desgraça da nossa tribo.

- O que foi essa desgraça?Ela veio de vários lados, não sei o que foi pior, se os perós, que

mataram os homens das aldeias e levaram mulheres e crianças como escravos, ou se os missionários jesuítas a pregar o grande pecado de comer carne humana.

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Interrompi a conversa nesse ponto, sem certeza de que meu comentário seria entendido:

- Para a Igreja Católica, uzeira e vezeira de fazer devorar seu próprio Deus sob aparência de uma côdea de pão, não deveria ser tão escandaloso...

- Pois veja, Nhanhã, mais uma razão do abandono em que se encontram os brancos. Pregaram seu Deus a um tronco e por isso Ele já não pode ajudá-los.

Concordei com a sabedoria da velha e despedi-me a meditar. Se ao menos Ele tivesse proposto que O comessem de verdade, em vez de transubstanciar-se no pão e no vinho, certamente teria sido mais útil. Quem sabe os valores de amor eterno pregados pela Igreja não viriam em Sua carne? Pelo menos combateria a fome, um dos mais nobres propósitos de Roma. Queria saber quem fora Cunhambebe, já citado duas vezes. Procurei os apontamentos do ex-patrão de Iracema, que até então não tocara.

Eram oito grossos cadernos de couro com o título em letras góticas, Voyage au Bout du Brèsil, pour Roger Castide. Algarismos romanos marcavam a sequência. Escritos a bico de pena em letra pequena na frente e no verso, traziam em francês nomes de terras e datas seguidos de comentários e esboços de cenas, paisagens, plantas, animais e tipos humanos. Havia trechos inteiros riscados e reescritos, indicando rascunho, pois números e setas mudavam os parágrafos de lugar. O tal Castide provavelmente passara a limpo seu trabalho, deixando o primeiro original como lembrança a sua velha índia para não carregar peso inútil. Em linguajar castiço, o primeiro tomo começava:

“Detesto as viagens e os exploradores, mas sem eles não haveria muito a dizer ou a escrever, pois alargaram o mundo com experiências raras aos olhos europeus. Tendo sustentado minha própria viagem, não vim como procurador de assuntos que interessam aos príncipes da Europa, como a existência de pedras preciosas ou minas de ouro e prata, que os viajantes às vezes narram, simulando ater-se a descrever palmeiras ou costumes de silvícolas quando suas palavras, com freqüência tanto mais

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alegóricas quanto mais fantasiosas, apontam para o que está debaixo da terra, a verdadeira riqueza para esses reis colonizadores. Eu, pelo contrário, não escrevo senão para registrar o por mim visto e vivido.”

Interessei-me imediatamente pelo relato do viajante francês, enaltecedor da liberdade que os próprios haveres asseguram ao pensador. “Para os habitantes locais é estranho ver um louco que ajunta borboletas, capins, folhas e insetos como se fossem tesouros, o que para eles não passa de mato. Por isso eu, naturalista estrangeiro, sou visto com misto de compaixão pela minha loucura e desconfiança sobre minhas reais intenções. Minha figura só ganha respeito quando os curo com as plantas de seus próprios quintais.”

Propriedades de plantas eternamente me encantam, estudiosa que sempre fui do assunto, filha de meu pai, jardineiro chefe da casa de Sade e descendente dos toupinamboux brasileiros. Interessada, aproveitei a calma da semana para passar tardes lendo. Lamentei os rabiscos que encobriam trechos inteiros, a tornar algumas conclusões incompreensíveis. Amiúde, pequenas frases em outra língua estranha estavam inseridos nos parágrafos em francês. Descobri por acaso tratar-se de tupi: eram confissões da vida íntima do pesquisador, tão afeito aos prazeres de Sodoma como meu querido Marquês. Iracema, inquieta pelo meu desaparecimento, viera à minha procura, não sei também se na esperança de outra garrafa de aguardente. Deslocados no mar de rugas do rosto, seus olhos faiscaram de alegria ao perceber-me mergulhada em seu legado:

- Que beleza, a senhora lendo os cadernos de meu patrão. - São interessantíssimas as narrativas do Conde, mas algumas

coisas vem numa língua da qual nada compreendo. - Sei que escrevia algumas coisas em tupi, que conheço bem.

Ao contrário dos jesuítas, que amestravam os índios com a Bíblia para melhor dominá-los, Monsieur ensinou-me minha própria língua.

- Leia então para mim essas frases, por favor.

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Iracema demonstrou absoluto espanto ao começar a ler as revelações em seu idioma: “O negro carregador tem vara grande e grossa, duríssima quando excitada, da qual suguei o néctar por quatro vezes ao longo do dia.” (Kiripi-tatá toka nicoia tipiti, mnhã tema kulola inkituma kolá, kiripi-ona kopiti nhuma curema iara.)

- Era por isso que o patrão vivia a dar trela a Emmanuel – bradou. O Conde não saía de casa sem ele, um escravo alto e belo como uma palmeira, que se apresentava como Filho de Ogum.

O culto de Castide aos falos avantajados era feito em linguagem desbragada, pois, em tupi, o naturalista não economizava detalhes de sua vida sexual Para acalmar os pruridos de Iracema, chamei uma das escravas e ordenei servir-lhe aguardente. A índia olhou gulosamente tanto o copo quanto o braço roliço a empunhá-lo. Parecia um cão faminto a cobiçar com olhos imantados o pedaço de carne da ceia da família. Virou o copo. Li para ela mais um trecho de Castide em voz alta:

Emmanuel aprendeu a secar bem as borboletas que aprisiona. No afã de distinguir-se como escravo de naturalista, à moda deles entrou a cravá-las em ponta de finas hastes de bambu que finca no chapéu de feltro. Esguio e apolíneo, tresanda uma vitalidade livre e feminina, atraindo os olhares nas ruas, pois parece que os insetos à volta de seu chapéu esvoaçam-no como uma auréola de santo. A índia ajudou-me com o tupi: E como rebola esse negro bem dotado que todos os dias tem me oferecido a lomba e a vara, além de sugar como ninguém! (Kiripi-tatá toka nicoia tipiti, mnhã tema kulola inkituma kolá, kiripi-ona kopiti nhuma curema iara!)

Iracema acabou se rendendo as perversidades nunca sonhadas de seu patrão e acabamos rindo muito ao prosseguir desvendando-as. Eram tão engraçadas e desaforadas as relações entre meu compatriota e o escravo do chapéu de borboletas que acabei esquecida do que me levara àquela obra. Só no meio do quarto volume cheguei finalmente a Cunhambebe, o Primeiro Rei do Brasil:“Ao contrário dos portugueses, que massacravam os índios, nós, franceses, sempre procuramos neles parceiros comerciais. Nicolas Durant de Villegagnon, que foi colega de Calvino nas

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classes escolares, usou os protestantes perseguidos pela intolerância dos católicos franceses para conseguir do Rei Henrique II e do Almirante Gaspar de Coligny apoio e crédito para uma grande expedição colonial que lhes permitisse fundar na América uma França cristã, acima das divisões religiosas. Mas enquanto Calvino foi bem sucedido em criar uma nova pátria para os protestantes na América do Norte, a França Antártica, fundada em 1555, na então selvagem região do Rio de Janeiro, não passou de um efêmero sonho tropical que durou até 1567.

Ao chegar, trazendo em seus navios boa parte do problema, pois neles vinham igualmente católicos e protestantes com os ódios acesos pelas condições da viagem, o almirante francês estabeleceu uma relação de compadrio com os índios. A simpatia deles fora já conquistada pelos contrabandistas franceses. E meados do século XVI os franceses já contavam com 25 trouchements, franceses que ainda crianças haviam sido deixados entre os índios por mercadores para que aprendessem a língua. Muitos viviam entre os índios, com lábios perfurados por pedras, o corpo depilado e até praticando o canibalismo. Os índios eram tidos por facilmente exploráveis, a fornecer em troca de ninharias pesadas toras de pau-brasil, em sua língua ibirapitanga, além de preciosas especiarias. Mas, em guerra com os portugueses, os índios já não eram tão ingênuos, queriam armas de fogo, facões, arados agrícolas e panelas de ferro, além dos tradicionais espelhos e quinquilharias.

Nascido na Provence, Villegagnon distinguiu-se por bravura na guerra de Carlos V contra Argel, combateu os turcos na Hungria e participou da campanha do Piemonte. Era natural então que o aguerrido militar procurasse aliança com o primeiro rei do Brasil contra os portugueses. Meio século depois da chegada de Cabral, eles continuavam a escravizar índios e a expulsá-los de suas terras, enquanto rapinavam em cima ou embaixo do solo. Mas não contaram com Cunhambebe. Com um tino militar digno de um Napoleão Bonaparte, o cacique de Ariró, aldeia da baía de Angra dos Reis, a trinta léguas do Rio, compreendeu que em luta eterna contra uns e outros, não poderiam vencer os perós. Provando-se

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grande líder, colocou sob seu comando dezenas de tribos, apesar de Cunhambebe significar “língua que corre rasteira”, por causa da fala arrastada, quase gaga.

Seus dotes parlamentares, apoiados a um físico hercúleo de quase dois metros de altura, permitiram que sua fala mansa amalgamasse a Confederação dos Tamoios, a espraiar-se desde o litoral sul da Província de São Paulo até os confins de Cabo Frio, ao norte do Rio de Janeiro. Passava meses viajando entre as diversas tribos a costurar estratégias e por vezes recusava-se a tocar qualquer alimento, declarando que só comeria se houvesse algum português cevado. Depois de dois ou três dias de jejum não é difícil imaginar a gana Cunhambebe a atirar-se às presas. Ao contrário de nossos Luíses, que receberam o trono por herança e foram dele defenestrados por Napoleão, Cunhambebe foi aclamado Rei do Brasil por suas qualidades de guerreiro, assim como o Pequeno Caporal se fez coroar pelos franceses. Em uma grande guerra de canoas, rechaçou os portugueses durante treze anos, de 1550 a 1563.

Para meu encantamento, Castide se dera ao trabalho de descrever uma dessas batalhas navais entre dois mundos:

Grandes naus de 50 canhões eram atacadas por todos os lados por centenas de pequenas canoas onde índios de pé, nus, apenas com o corpo pintado para a guerra, disparavam flechas certeiras. Muitos navios de guerra foram assim invadidos e destruídos. Os portugueses sobreviventes eram levados para as aldeias e devorados pelas tribos. Talvez se as tribos do Norte tivessem resistido unidas os invasores acabassem expulsos, o que infelizmente não ocorreu. Esses índios viveram e ainda vivem na era em que,pouco mais que um macaco, o europeu aprendeu a polir as pedras. Foram as guerras entre as diferentes tribos européias que formaram os diversos povos, com suas lendas e seus nobres, que também descendem de chefes vitoriosos a polir pedras e comer carne de seus semelhantes. Se os índios tivessem vencido, certamente teriam surgido no Brasil estirpes reais como a de um Cunhambebe I, o Rei canibal.

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Consola-me saber que os primeiros brasileiros, a quem coube o papel de perdedores na História, não deixaram de ter seu grande general. Com muita propriedade o Vice-Rei da França, Nicolas Villegaignon, recebeu Cunhambebe com pompas de chefe de Estado, como mandante supremo da Confederação dos Tamoios e Rei do Brasil Austero e bem informado, almirante tivera o cuidado de determinar que os soldados da guarda da fortaleza se perfilassem para a passagem do rei dos selvagens e proibiu qualquer manifestação de riso. Assim não houve gracejos nem sussurros na fortaleza de pedra que sediava o governo da França Antártica, quando Cunhambebe, nu, pintado para a guerra, passou em revista as tropas, trajando apenas de um enorme cocar que lhe chegava quase aos pés. A bater nas pernas e no peito, vangloriava-se de feitos gastronômicos aos gritos, repetindo ter comido cinco mil perós. Por intermédio de um trouchement vindo muitos anos atrás com os piratas e havia se tornado índio, pôs-se a dialogar com Villegagnon.

Se os estranhos costumes do selvagem Rei guerreiro causaram espécie aos franceses, o mesmo não ocorreu com sua estratégia militar, pois mostrou-se exímio na arte da guerra, Deitado em uma rede que mandara estender na sala de conferências do forte francês onde se hospedara, dava instruções certeiras como fortificar todas as ilhas e a foz de cada rio do continente. O Rei do Brasil muito elogiou os franceses, explicando-lhes que a palavra mair, como eram chamados pelos índios, significa pessoa com qualidades divina. Já peró,ou seja, o português, quer dizer simplesmente feroz em tupi, mostra que essa língua elogia até os inimigos, ao enaltecer sua valentia.

Além do alemão Hans Staden, que o elogia no relato dos anos em que ficou refém de sua tribo, o outro único europeu que deixou registro de contato pessoal com “o grande Rei selvagem, o mais temido de todo o País” foi André Thevet, capelão franciscano que acompanhou Villegaignon na mistura de expedição de conquista e experiência religiosa que foi a França Antártica. Os preciosos relatos de frei André Thevet sempre encantaram a mim, viajante

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francês, pois me davam a oportunidade de me deslocar também no tempo e visualizar como teriam sido as conversas com o grande Rei canibal: “Cunhambebe nos louvava e exortava deitado em seu leito; e nós, ao ouvi-lo discorrer com sua grossa voz, imaginávamos ter de volta a sua raça e a de seus pais, consumida pelo dilúvio.” Além de encontrar-se com Villegagnon, Cunhambebe ainda teve tempo de vencer batalhas no curto período de três meses em que Thevet esteve na França Antártica: “Esse grande e temido Cunhambebe atacou e tomou seis navios a portugueses e índios inimigos, que foram na maioria mortos e devorados”.

O franciscano parecia ter os guerreiros americanos na conta de seres primitivos entre os estados animal e humano: “É um prazer ver nossos selvagens voltarem para suas choças, alegremente, tocando seus instrumentos de conchas e frutos secos, e tirando deles tal harmonia que diríamos as trombetas de nossos cocheiros acrescidas de cantos.” Nossos selvagens? Ça va bien....

Thevet, entretanto, teimava em enxergar nas palavras de Cunhambebe as confirmações de suas próprias idéias e crenças, gerando comentários contraditórios, ao meu ver um indício de má ciência. Apesar de ter escrito: “Eu sei com segurança que esse povo não tem religião, nem escrituras, nem práticas rituais, nem conhecimento das coisas divinas”, frei Thevet nos conta, por exemplo, que Cunhambebe disse acreditar num deus criador do mundo, a quem chamava de Monan, manifestando também grande respeito e interesse pela fé cristã: “Cunhambebe tinha tão grande prazer em nos ver rezando que se prostrava de joelhos e alçava as mãos ao céu, como fazíamos; e ficou tão interessado em conhecer nossas preces, que me pediu que lhe ensinasse algumas. Procurei então, com ajuda de um escravo cristão, traduzir para a sua língua nossa oração dominical, a saudação angelical e o sinal dos apóstolos, a fim de atrair esse grande Rei e seus seguidores ao conhecimento de sua salvação e à admiração das obras de Deus”. Depois de ter privado com Cunhambebe na fortaleza de Villegagnon, frade Thevet visitou a própria residência do Cacique, na Aldeia de Ariró, em Angra dos Reis: a casa teria cerca de 100

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pés de comprimento por 18 de largura e era coberta por folhas de palmeira e cascas de árvores, encimada por altas fileiras de crânios de perós e índios das tribos inimigas que tivera o cuidado de transpassar em longas varas fincadas no chão. No pátio da aldeia estavam seis canhões tirados de caravelas portuguesas destruídas, dos quais o próprio Thevet conta ter comprado um, que levou em sua pesada bagagem de volta à França. O franciscano francês garante que Cunhambebe era capaz de atirar simultaneamente dois canhões pilhados de navio que postava sobre os ombros, o que certamente não passa de um exagero. O atento escrivão da companhia de Jesus vangloriou-se de ter caminhado 60 léguas pelas matas guiado por guerreiros de Cunhambebe. Coletou pedras e esmeraldas e definiu a região de Angra dos Reis como “importantíssima”: “É das mais belas e agradáveis que já vi, tanto em florestas verdejantes, e são muitas, e também porque dessas belas montanhas se poderia tirar grande proveito, por suas minas de ouro.” O capuchinho francês conta que havia lobos e leopardos nas montanhas, além de um tipo de macaco especialmente “inclinado à luxúria”. Eu já ouvira o nome de André Thevet apenas como capelão de Catarina de Medicis e não sabia dessas suas aventuras na terra do pau-Brasil. E já não era pouco manter tal posto junto viúva de Henrique 2, que tentou matar o líder dos protestantes, Coligny. Como não c conseguiu, jogou o filho Carlos IX contra os protestantes, convencendo-o a ordenar uma matança geral para impor o catolicismo como única religião. A mortandade começou no dia 24 de agosto de 1572, dia de São Bartolomeu, e foi até 17 de setembro, estendendo-se, nas províncias ainda até o dia 3 de outubro. Estima-se que mais de 50 mil pessoas tenham sido mortas. Nas praças, pessoas se atolavam em sangue.

Catarina tornara-se adepta do rapé e das cigarrilhas de tabaco, que lhe tinham sido trazidas pelo cônsul da França em Portugal. Por ironia do destino, o cônsul francês levou a fama de descobridor do tabaco ao apresentá-lo a rainha que logo se encantou para sempre com os efeitos calmantes e relaxantes da fumaça. O abade Thevet, já

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o fumava desde 1555, quando entrou em contato com a planta, ao. Não só Thevet se tornara usuário do cigarro como também tomou o cuidado de Levar da França Antártida para a França muitas sementes e centenas de mudas para garantir seu suprimento e o dos amigos que iniciasse na tradicional arte indígena de mudar a consciência. Além disso, descreveu a planta no seu livro Les Singularitez de la France Antarctique, publicado com sucesso em 1558. Os cientistas não resistiram aos encantos de Catarina de Médici. Lery conta como era usado pelos índios: “Em vista das virtudes que lhe são atribuídas goza essa erva de grande estima entre os selvagens, colhem-na e preparam-na em pequenas porções que secam em casas. Tomam depois quatro ou cinco folahs que enrolam em uma palma como se fossem um cartucho de especiaria; chegam ao fogo a ponta mais fina, acendem e põem a outra na boca para tirar a fumaça que, apesar de solta de novo pelas ventas e pela boca, os sustenta principalmente na guerra ou quando a necessidade os obriga a abstinência.

O fato de ter sido cronista e cosmógrafo da efêmera França Antártica, que aliás havia sido por ele mesmo batizada com esse nome, permitiu que lhe financiassem livros que o tornariam famoso, descrevendo as paisagens, os costumes locais, as plantas, animais e predras. Afinal, os franceses também ficavam sabendo que Villegangnon havia garantido para os índios que não tomaria suas terras e que os considerava os verdadeiros donos do Brasil, com os quais se punha predisposto a conferenciar. Foi nessa qualidade de representante máximo da França na nova colônia que ele recebeu Cunhambebe, que ficou hospedado um mês no Forte de Villegagnon,

Cunhambebe esteve presente a um terço do tempo que Thevet ficou no Brasil. Durante um dos três meses em que esteve no Brasil,

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colhendo amostras e fazendo relatos que o tornaram uma espécie de Pero Vaz de Caminha de Villegagnon. Chamava Chumambebe de Quoniambec e fala dele na Cosmographie Universelle, louvando sua estratégia militar. Em outra obra, Les Vrais Portraits, o capelão coloca Cunhambebe ao lado dos grandes líderes da humanidade, como o Júlio César dos romanos, considerando-o como o grande líder da resistência dos índios brasileiros.

Mas a aliança com os franceses foi fatal para os tamoios. Venceram os lascivos portugueses e seu comando de ferro.

A batalha final aconteceu no dia 20 de janeiro de 1563. Cunhambebe morreu ainda no meio dessa guerra, vitimado por uma epidemia de cólera, espalhada por roupas infectadas jogadas nos rios pelos portugueses, um lance que decidiu o confronto, junto com os canhões e os cavalos trazidos da Europa. Foi sucedido por Aimberê, filho de um cacique que fora escravizado por Brás Cubas, fundador de Santos. Cada dia mais era massacrado por Mem de Sá e seu sobrinho, Estácio, Aimberê, sentindo a gravidade da situação, reuniu o conselho e pediu aos franceses que partam para salvar suas vidas, principalmente seu genro Ernesto. Este, em nome dos patrícios, recusa-se e diz que ficarão ao lado dos companheiros, lutando até morrer como um Tamoio.

Era o fim. Centenas de portugueses e Tupiniquins comandados por Araribóia foram ao encontro dos bravos Tamoios. Milhares de flechas cruzavam o céu, ao rimbombar dos canhões e tiros de escopeta. Os combates corpo a corpo deixaram as águas da Guanabara tingidas de sangue em um trecho que até hoje é conhecido como praia vermelha. Na praia, jaziam corpos de índios e portugueses que as ondas teimavam em sepultar. Após 48 horas de combate, estava arrasado o último reduto dos Tamoios. Seus chefes estavam mortos. Aimberê, Igaraçu, Pindobuçu e seu filho Parabuçu, o francês Ernesto e sua mulher Guaraciaba tiveram suas cabeças cortadas e espetadas em estacas, porque “daquela raça maldita de Tamoios nada haveria de subsistir nas terras conquistadas pelos portugueses”.

O terror se estendeu, e estendeu-se o luto profundo: tudo eram lágrimas, prantos e espectros de morte; já há quinze dias, a estrela da manhã, ressurgindo do fundo oceano à frente do carro do sol resplendente,

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contemplava NOSSO EXÉRCITO A PERCORRER DENSAS MATAS, INCENDIAR CASAS, TALAR CAMPOS, MATAR INIMIGOS.

Morreram muitos à míngua perdidos na selva, e, com as próprias mãos, pais mataram os filhos, que pelos bosques os seguiam chorando, para que o choro deles não atraísse o inimigo. Os franceses sobreviventes se mandaram , alguns mais pobres vivaraão índios e os tamoios se fud eram.

Em minha modesta opinião, um dos grandes entraves de Villegagnon foi tentar instaurar a moralidade nas terras por ele ocupadas, proibindo seus marujos de deitarem-se com as índias. Para tentar resolver o problema da escassez de mulheres instituiu severa moral e mandou vir moças casadoiras da França, na ânsia de atender a um velho preceito católico: “Antes casar do que arder.” Quando seu sobrinho veio em outra expedição, trouxe apenas cinco mulheres brancas. O fato é que aqui no Brasil houve furor entre os que não foram escolhidos para maridos, vários deles fugiram para as matas para saciar seus instintos. Controlar a natureza exuberante dessas terras não vingou, com toda sua crueldade vingaram os portugueses, lascivos, que adoravam se deitar com as índias, sendo igualmente por elas apreciados.

Nesse ponto interrompi a leitura e fui ter com Iracema. Há dias estava praticamente sem falar a pessoa, entretida em devorar, com o perdão do trocadilho, a obra do naturalista pederasta. Seus caquinhos de dentes, como lâmina de serrote, mostraram-se em franco sorriso ao ver-me, e arreganharam-se ao dar com a garrafa.

- Madame, que amável surpresa, cuidava que algo sério acontecera, há tempos não honra sua pobre índia com o prazer de uma visita.

Por mais estranho que fosse, com sua boca de piranha e suas vestes toscas, ela incorporava cada dia mais os maneirismos e o linguajar de Odette. Em meu período de imersão nos livros atentei para constante burburinho entre elas, estavam a tornar-se amigas. Antes

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assim, abomino disputas sob meu teto, já tinha visto ódio suficiente na casa dos Sade e em outras onde vivera.

- Está tudo bem, nada te falta?

- Nada, Madame, nhanhã Odette é muito boa. Se me permite, vi buraco feio a atrair incautos a quedas no meio do jardim, posso criar alguns peixes nele. A senhora tem alguma preferência?

Na verdade o motivo que me levava a Iracema passava longe do tanque vazio. Queria saber mais sobre as relações libidinosas entre colonizadores e índios descritas por Castide.

- Usa os peixes que quiseres, devo-te um favor, ajudaste-me a decifrar a verdadeira linguagem de teu travesso patrão. O que achastes de tão bizarros atos?

- Nossa Senhora me acuda – persignou-se a índia, esquecendo por um momento de sua eterna rixa com a Santa Madre Igreja, por ela considerada causa do extermínio moral dos índios, enquanto trocava seu eterno fiar por um copo de aguardente. Esse grau de civilização Odette já conseguira lhe incutir, ela não emborcava mais diretamente o gargalo da garrafa.

- Tu vives a queixar-te dos portugueses, que exterminaram teu povo. Por que teu patrão fala que as índias preferiam os perós?

O rosto vincado não chegou ao êxtase de Santa Tereza d’Ávila ao recordar-se do sabor da carne humana, mas foi quase igualmente beatífico:

- Ah, os índios nos penetram sem jeito, o gozo rápido lhes basta, se é que me entende, Madame. Pode imaginar a primeira vez em que me deitei com um português? Insaciável, corria a beijar-me por todas as partes, meu corpo tremia, como se sacudido por um êxtase perpétuo.

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Não bastasse me dar inúmeros prazeres todos os meus buracos, tinha um membro bem mais avantajado que os da minha tribo. Enquanto me enchia de sua seiva me dizia, “estou-me a vir, estou-me a vir”... Abraçava-me na rede e algum tempo depois recomeçava todos os folguedos...

Achei poética a maneira de a velha índia se referir ao êxtases do coito, seu orgulho em confidenciar-me que aquela carne velha já conhecera momentos de raro esplendor. Bateu-me um sentimento de brio nacional.

- E os franceses, como eram, chegaste a te deitar com algum patrício?

- As antigas conversas das mais velhas da minha tribo, já perdidas no tempo, contavam que ofereciam com prazer suas vulvas abertas como flores na beira dos lagos para os mairs atracados nas pedra. Era uma espécie de orgulho para as cunhãs, de risadas e conversas entre as amigas, contar que os momentos na rede podiam ser muito melhores com os brancos. E para capturar a seiva daqueles aliados, muito pai índio encaminhava as filhas aos locais onde se banhavam os mair.

Imaginei as vulvas roxo sépia das índias, oferecidas ao homem branco, cobiçada presa das nativas. Através das pantalonas, aqueles olhos amendoados tentavam adivinhar o tamanho avantajado do membros rosado do branco, em comparação ao fúcsia da vara eternamente exposta de seus homens, cada dia mais escassos, dizimados pelas pelejas entre as tribos.

- E os negros?

- Ah, esses vim a conhecer quando vim para a cidade em meus verdes anos, escrava de bandeirantes. Além de delicados eram extremamente bem dotados.

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- É por isso que os mestiços nessa terra, apesar de serem chamados de negros, vê-se bem que são cruzamentos de índios, negros, brancos, pardos, europeus. Não é atoa que volta e meia surgem olhos verdes ou azuis a iluminar peles trigueiras como dois faróis a guiar navios em meio a escuridão da tempestade.

Achei que já estava indo longe demais nas divagações sobre mestiçagem. Tornei a Iracema:

- E como chegaste a te engraçar com os negros?

- Vim do norte, muito longe, em uma travessia que acabou matando vários dos poucos sobreviventes da chacina de minha tribo. Manietados por cipós, éramos praticamente arrastados. Quem tombasse por doença ou fraqueza era simplesmente abandonado, cortavam-se as amarras e o infeliz ficava jogado para morrer de fome ou ser devorado pelas onças.

- Chegaste direto ao Rio de Janeiro?

- Foi, depois de vários ranchos pelo mato, léguas infindáveis de espinhos e tormentas, cheguei ao Rio mais viva que morta. Estava tão alquebrada que fui vendida a baixo preço a uma senhora, Maria Clara, que tinha uma filha bela e inútil, Maria Engrácia. Ela só animou-me a levar para me ensinar fazer rendas, pois gostou da forma das minhas mãos. Assim comecei a tecer, e logo depois a vender meus produtos na rua, a aprender a falar a língua e lidar com dinheiro dos brancos.

- Tua primeira senhora era boa para ti?

- Não sei. Passava o dia deitada em um estrado, acompanhada pela filha, deitada em outro a seu lado. Nada tinham de seu, mas comportavam-se como fidalgas de alto bordo, o dinheiro era eu

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quem aportava. E no tabuleiro conheci Benedito, pois vendia refrescos de aluá.

- O que é aluá?

- É uma fermentação de farinha de milho que pode ser feita com cascas de frutas como a do abacaxi, gengibre e caldo de cana de açúcar, além de um pouco de limão. Benedito fabricava os refrescos, pois era liberto, e os trazia em grandes tinas. Comecei a notar que sempre procurava montar o tabuleiro perto do meu. E ajudava-me a montar e desmontar meus teréns, facilitava quando eu tinha problemas com troco, era um verdadeiro anjo negro.

- E esse anjo nada pedia em troca de seus favores? – indaguei. Para quem tinha passado anos da vida entrevistando moças desejosas de prestar seus favores na casa de Madame de Sade, o mais famoso bordel da França, sabia exatamente como conduzir essas questões.

- No princípio não, mas eu notava que ficava em constante ereção em minha presença. Morava com uma mulata já com o porte arruinado pelo grande número de filhos pequenos. A minha juventude, aliada a alimentação, ainda que não muito farta, da casa das Marias, havia recuperado-me das agruras da viagem. Certa manhã de fevereiro, curiosa para ver o que era o entrudo, o tal carnaval do qual os ambulantes tanto me preveniam, pedi a Nhanhã Maria Clara para sair à rua.

- Eu mesma ainda não vi nenhum.

- Madame se prepare, as brancas raramente se misturam nesses desvarios, a população parece tomada de furor animal, atiram limões de cera com água perfumada, arrancam as roupas das negras que vem pelas ruas e jogam farinha nos corpos molhados.

- Os negros devem virar fantasmas brancos de farinha.

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- Justamente, madame. Estava eu atordoada com toda esse manifestação, tão diferente das festas de minha tribo, embalada pelos cânticos das fanfarras, meio assustada com o burburinho quando vi um rosto amigo. Era o Benedito. Trazia vazio o barril dos aluás.“Vendeste bem”, comemorei, um pouco tonta. “Muito, vamos a uma taberna celebrar. Algum dia tomaste aguardente?” A única bebida que tomara em minha vida era o caulim, e lembro-me do agrado que

o torpor me causara. Concordei e segui-o.

Entramos em um lugar assim assim. Sentamos, ele ordenou uma garrafa, eu engasguei e tossi com o primeiro gole. Passou rápido. O calor que me invadia só encontrava igual nas lindas noites de devorar um inimigo. Benedito tagarelava alegremente, embalado pelo álcool, eu o olhava fascinada. Sempre o achara simpático e prestativo, mas agora não conseguia tirar os olhos dos seus e imaginei como seria um negro nu – a última vez que estivera com um homem fora meses antes, durante a travessia para o Rio. O peró não fizera jus à fama de seus patrícios, fora rápido e desajeitado, apesar de mesmo assim ter deixado saudades.

– Sexo é bom mesmo quando é ruim – argumentei. E eu também já tive 20 anos, sei bem como são essas coisas. E desde então te quedaste também pela pinga, pelo visto, repliquei, ao constatar que a garrafa estava já quase vazia.

- E pelo Benedito, Madame. Ele tomou-me pela cintura e saímos naquele burburinho, já nos atracando em meio a multidão. O álcool e o cheiro indescritível daquele homem alto e belo me deixavam completamente zonza. Mas nada me preparou para o tamanho e a pujança do membro que colocou em minhas mãos, sem a menor cerimônia, quando finalmente alcançamos o primeiro areal vazio.

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Levantou-me a saia e deitou-se sobre mim, rasgando-me as entranhas.

Lembrei-me de Emma e Fatoumbi a copular na sala dos espelhos do Madame de Sade, ébano e marfim entrelaçados para o deleite da assistência de plantão. Imaginei a cena, ébano e oliva no areal.

- Eu arqueava as cadeiras e não conseguia conter os gemidos, enquanto ele vinha cada vez mais fundo e rápido, com aquele membro que parecia partir-me em duas. Lutamos embolados por vários minutos, até que seus gritos me avisaram que chegara o momento. Repousou sobre mim alguns minutos, arfantes, falando-me ternuras e sandices. E logo senti seu membro pulsante de novo em minha vulva. E recomeçamos o jogo.

- E aí?

- Mal víamos a hora de fechar os tabuleiros e escapulir para as tavernas, praias, areais, estrebarias, qualquer canto que pudesse abrigar dois amantes famintos. A mulata odiava-me, mas acho que por instinto feminino, pois ele continuava a cumprir seus deveres domésticos, tanto que teve mais uma filha com ela, quase ao mesmo tempo em que nascia a nossa. Maíra durou apenas dois anos, vitimada pelas febres e amarelões. Depois que ela morreu ainda saí com Bene algumas vezes, mas as chama se fora. Nos despedimos na tristeza da filha morta e continuamos colegas de camelotagem.

Iracema tomou o último copo de pinga.

- Já me tornara exímia fiandeira e consegui outros amantes, pardos, cafuzos, brancos, mamelucos, estrangeiros, perós, maíres, mas nada me satisfazia. Minha patroa estava satisfeita com o lucro dos novos tecidos, mas um dia, chegando em casa, depois de uma bebedeira

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com Bené, dei de cara com a tenra Maria Engrácia, adormecida, com a carne branca e cevada de todos esses anos de divã.

Iracema salivava:

- Mordi aquele braço branco, tentei arrancar-lhe um naco. A moça acordou aos berros, que alertaram a mãe, encontrou-me a sugar avidamente o sangue do braço roliço. Horrorizada, vendeu-me em um bairro mais distante, pois não queria perder dinheiro, ao contrário ganhou ao exibir minha habilidade no tear. Tentei mais uma vez morder um braço de uma escrava. Fui novamente vendida, até que minha fama começou a se espalhar. Acabei liberta, ninguém me queria comprar e achavam que não valia o risco de ter alguém que pudesse devorá-los. Errei por empregos miseráveis até o meu patrão francês abrigou-me, fazendo-me prometer que nunca mais comeria carne humana, pois não podia arriscar-se. Já estava velha, prometi e cumpri.

Compreendi melhor a verdadeira síndrome de abstinência que atacava Iracema, parecia Juliette, a negra do saiote de bananas, quando lhe faltavam doses de beladona. Juliette matara-se de overdose, mas a Iracema ainda restara a possibilidade de afogar as mágoas na cachaça. Antes assim, pensei. E voltei a minha leitura. Nos últimos cadernos de anotações, Castide deixara de lado sua fixação por falos grandes e voltara-se para a história do país e dos grandes viajantes.

Mas a grande revelação que mudaria minha vida ainda estava por vir: no final das anotações, num parágrafo circulado para ser colocado em rodapé, Castide descreve a seguinte genealogia, que transcrevo literalmente: “Insaciável diante das ordens da natureza Cunhambebe teve 14 mulheres e numerosa descendência, incluindo o filho que herdou seu nome e morreu em guerra contra os portugueses. e um neto, Poty, que foi levado para a França pelo capitão da Marinha Real Hervé de Tocqueville. Como outros índios que chegaram a se misturar ao populacho francês, deixando seus traços em uma ou outra região, consta que Poty teve muitos filhos.

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1’ Quem gostava de me contar velhas histórias de família era meu pai, que se vangloriava de ser descendente de Poty, o protegido de Hervé de Tocqueville. Capitão da Marinha Real, ele trouxera o índio da antiga França Equinocial no século XVII, da longínqua terra tropical conhecida como Vera Cruz. Poty, camarão na língua dos topinamboux, ganhou correspondente em francês, rebatizado por Tocqueville como Pierre Pêcheur, ou Pescador.

A maioria dos selvagens transplantados para a Europa terminaria morrendo de gripe ou sarampo, mas Poty, que gostava de andar nu, viveu até idade avançada. Teve tempo mais que suficiente para casar-se com a tecelã Marie, em 1610, e produzir vasta prole. Por sinal do destino, talvez, Marie Pêcheur tingia seus fios com um produto vermelho vindo da terra natal do marido, extraído da árvore pau-brasil. Eu não podia acreditar no que estava lendo. Eu, Josephine Pécher, era a descendente direta de Poty, o herdeiro de Cunhambebe levado para a França. Herdara dele o sangue que meu coração disparado fazia zunir nos meus ovidos.

Não era atoa tão ilustra ascendência. Esse gosto pelo sangue jovem vinha desde a casa dos Conde, a nobreza francesa de alta linha que dera origem ao Marques de Sade. Lembrei-me de minha primeira experiência sexual, no mesmo dia em que desceu minha primeira regra, deixando-me embaraçada frente a todos os convidados do Marques de Sade.

Eu Josephine Pêcheur, filha da arrumadeira já morta, Margueritte e de Jean Pierre Pêcheur, jardineiro-chefe, contava 13 primaveras. Minha interessante combinação dos olhos azuis e da pele branca da mãe, francesa de origem operária com os cabelos negros e lisos do pai, descendente de tupinaboux brasileiros, cativara a atenção de meu devasso patrão, Alphonse Donatien, o Marquês de Sade. Corria o ano de 1776 e ele viera esconder-se no castelo para fugir da polícia a procurá-lo por acusações de sodomia e perversidade. Em um teatrinho para os hóspedes, em que eu era a

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noiva, linda em um dos vestidos velhos da patroa, acabei publicamente humilhada pela marquesa, que denunciou os convidados meu primeiro sangue menstrual a manchar a roupa branca. E condenou-me a descer aos porões, como ajudante de cozinha.

Meu ódio por ela aumentou mil vezes. Meu primeiro pecado tinha sido invejá-la. Queria usar vestidos como os dela, dormir num quarto enorme em vez de viver no porão. Por que ela podia ser rica, cortejada, poderosa, e eu não? Principalmente, queria ter o marido dela, com seus modos refinados e roupas sofisticadas parecia um príncipe de contos de fadas perto dos rapazes rudes da aldeia e das cavalariças.

Implorei a meu pai que usasse suas plantas para fabricar alguma forma de ajudar-me – afinal de contas, ele repetia que as plantas são remédio para corpo e alma. A princípio recusou-se. Depois, convencido pelos meus rogos e súplicas, deu-me a receita do Floral da Inveja com as flores roxas da íris da primavera, sempre almejando o que não são. Fiz o floral com água e flores. Tinha tanta fé na ciência de meu pai que nem por um minuto duvidei de seu efeito. Dividida entre a brincadeira e a esperança, assinei com o nome de quem contava me transformar, em breve: Madame de Sade. Passei o dia inquieta, como me tornaria a Marquesa? ]

À noite, decepcionada com a aparente ausência de modificações, caí em sono profundo. Nada seria capaz de me despertar, exceto o toque fino a tapar-me a boca. Acordei em pânico, reconhecendo as mãos aristocráticas do Marquês. Os lençóis abaixados e a camisola erguida deixavam meu traseiro de fora, e ele acariciava minha bunda com a mão livre. Não havia como livrar-me de seu braço. Amordaçou-me com um trapo e beijou-me o traseiro, acariciando-o com a língua, enquanto a mão deslizava na direção da minha vulva suja de sangue, pois ainda estava em minha primeira menarca. Quando tocou-me ali, em leves movimentos circulares, eu já não queria resistir. Com a mão molhada no meu sangue, Sade untou meu traseiro já umedecido por sua saliva. E então, de repente,

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cravou-me as unhas nas nádegas, afastando-as, e meteu-me por dentro um estranho pedaço de carne dura e quente.

Perdi o fôlego de dor, meu grito foi abafado. A vara rasgou-me em duas. Quando achei que morria, um gemido desconhecido escapou-me da garganta. Percebi que os movimentos do Marquês cravado a meu traseiro produziam estranhos arrepios na minha espinha, enquanto seus dedos hábeis acariciavam meu grelo. Comecei ondular a bunda no ritmo dele e minhas mãos agarraram o lençol da cama, convulsivamente. Eu já não respirava, arquejava, quando ouvi a gargalhada de Sade, alta e fria. Deitando-se em minhas costas, tirou minha mordaça e avisou, sério:

- Se quiseres mais, vais ter de pedir.Enquanto o ar entrava em meus pulmões, ele retirou de mim

sua espada de carne. A sensação era a de estar perdendo o céu. - Não pare. Mais – implorei. -

Às gargalhadas, ele meteu de uma vez só sua vara pulsante e, em movimentos muito rápidos, foi me jogando cada vez mais fundo em um túnel onde só o prazer havia. Eu chorava e ria ao mesmo tempo, sem saber o que era mais forte, o sofrimento ou o gozo, a humilhação ou a excitação. Nesse momento esses sentimentos antagônicos se fundiram dentro de mim, para sempre contíguos e inseparáveis.Ao acabar deu uma palmada no meu traseiro sujo de sangue, esperma e merda, dizendo irônico:

- Levas jeito, pequena. Ao alcançar a porta falou com um certo laivo de carinho:

- Terei prazer em ensinar-te que a decência e os princípios morais são costumes a que hoje se liga muito pouca importância, de tanto que contrariam a natureza. Ter prazer é o único sinal de que se está agindo em conformidade com as leis naturais. Se tu gostas do que é perverso, isso só significa que a natureza desejou que fosses perversa. E seria contrário à natureza não obedecer a ela...

Uma lição difícil de esquecer. Adormeci sem sequer tentar lavar-me. Ao acordar corri ao espelho. Algo teria mudado em meu

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rosto, como acontecia com as mulheres que conhecem o sexo, segundo asseguravam as criadas mais velhas? Aparentemente, tudo continuava igual: a boca pequena e carnuda, o cabelo escuro um pouco despenteado, a pele clara, o nariz delicado, os olhos... Os olhos não eram mais os francos olhos azuis herdados de minha mãe. Exibiam reflexos muito escuros, estavam quase roxos como as pétalas das íris. E como se chamado por meus desejos, vi no espelho o rosto do Marquês sobrepor-se ao meu, os olhos dele idênticos aos meus, também roxos. O Floral da Inveja funcionara, eu me tornara pela porta dos fundos herdeira do dark side de Sade.

O primeiro dos pecados levou a todos os outros e ajudou-me a erguer meu império, através da Gula, Luxúria, Soberba, Ira, Preguiça, que por sinal, foi quem me trouxe ao Brasil..

Avistei Gizeh, correndo no jardim em direção ao tanque vazio. Bom atleta, o anão que nos fora dado por um oficial de Napoleão e não nos quisera abandonar em nossa saída da França. Ele costumava fazer piruetas no tanque vazio, onde se atirava em saltos mortais. Lembrei-me de que Iracema havia enchido o tanque com peixes e tentei avisá-lo. Gritei, o anão virou-se e me acenou alegremente, sem entender. Sua mão foi a última coisa que vi. Gizé foi como tragado pela água, corri temendo que se estivesse afogando. Nada me preparou para o horror que vi a seguir.

Quase mais nada restava do meu querido e pequeno mameluco. Peixes vorazes disputavam cada naco seu. ..cvascata das piranhas. Meus olhos se turvaram de lágrimas. Entendi que não havia salvação, eu assistia impotente dezenas de bocas vorazes se atirando..boseira, boseira.....No final um gorrinho, como se de criança fora, flutuava manchando de sangue vermelho.

Aos gritos, chamei Iracema. Odette, atraída pelo reboliço, correu na frente da índia, que acorreu com seu passo ligeiro. Quando chegou não entendeu nada, mas abraçou-me. /eu soluçava, apontando a mancha de sangue que turvava o espelho d’ água:

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- Os peixes comeram Gizeh.

Ato contínuo, a ira me possuiu. Empurrando Odette, contive-me para não estrangular Iracema:

- Como ousaste encher este tanque com esses perigosos animais selvagens?

- A senhora me desculpe, madame, mas disse que escolhesse de minha preferênciaMadame, mil perdões, disse a índia ajoelhando-se a meus pés. Nunca imaginei que nosso pobre querido pequeno fosse ser vítima de tal armadilha.........

- Animal, foste logo escolher piranhas?

- Não tenho palavras para exprimir meu pesar, mas escolhi peixes que comem carne, pelo menos eles não desvirtuaram os ensinamentos dos antepassados.

Me deu vontade de rir entre as lágrimas. Enquanto dominava-me acalmei-me, era justo, eu mesma liberara a velha louca pra fazer o que quisesse. Mas Odette estava inconsolável:

- Ai, logo eu, que dei a maior força para essa bugra, dei-lhe os carregadores ontem pra encher o tanque. Quem diria que isso ia custar meu querido, oh, índia selvagem, não passas de um animal sem alma, como vamos viver em uma casa com uma canibal velha e seus peixes assassinos?

Achei que estava a passar dos limites. Depois de saber-me descendente de um canibal e ter-me lembrado de minha entrada no mundo, não seria um tanque de piranhas que iria me matar. E ainda poderia ser boa defesa e além de bom lugar de desovar inimigos.

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- Disso cuido eu, mande cercar o tanque para evitar novos horrores. E Iracema, recolhe-te a teus aposentos até que te mande chamar.

Tratei de acalmar Odette, voltando de braço dado com ela para casa. De repente me dei conta de nosso andar vagaroso, éramos mesmo duas velhas, pensei.

- Vamos tratar de encomendar a alma de nosso Gizeh, pois não sobraram nem os ossos, afaguei-a. O nosso mascate sírio deve conhecer alguma cerimônia.

A trágica morte de Gizeh gerou vários comentários nos primeiros dias, que me eram trazidos pelos serviçais da rua. Depois, como tudo na vida, foi pouco a pouco diminuindo, acabou esquecida. No afã de agradar-me, principalmente depois de eu ter poupado suas piranhas assassinas, Iracema parecia nunca mais se desgrudar dos teares e da roca. Parecia ter sido tomada por uma maldição de contos de fadas, aquelas tarefas hercúleas, repetitivas, em que as bruxas malvadas condenavam a pobre princesa a fiar quantidade desmesurada de fio e elas se desincumbiam com a proteção de um ente de outro mundo. O resultado foram tecidos belíssimos, de vários tons encarnados a lembrar o sangue do anão a diluir-se cada vez mais na água. Eram em tamanha quantidade que resolvi aproveitá-los.

A maioria do meu mobiliário viera comigo da Casa da Marquesa de Sade e sofria com a umidade do clima tropical. Resolvi reestofá-los com os tecidos da índia, mais adequados. As poltronas Chippendale ganharam motivos indígenas no encosto. Por um gosto meu, a lembrar-me de um vaporoso vestido branco da outra Joséphine, a imperatriz, mulher de Napoleão, no qual o tradicional modelo diretório, preso abaixo do busto, trazia aplicações de ananás, algumas foram enfeitadas por bordados dessa fruta. Por sua vez, os canapés foram ornados por motivos de flores brasileiras e aves belíssimas. Adicionei a isso alguns aparadores brasileiros, de formas

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secas, elegantes e retas. O resultado foi maior frescor e espaço na casa, que ficou mais clara e alegre, com novos vasos de plantas dentro de casa e nos jardins. Eu não precisava mais da estufa parisiense para cultivar minhas amadas lavandas e miosótis. O Novo Mundo marcava mais um tento.

Optei por manter minha magnífica porcelana de Limoges, os cristais de Sevres e os talheres de prata, a contrastar sofisticadamente com o estilo mais despojado. Acostumada aos leilões de carne humana, em Paris a abastecer lupanares e aqui no Rio casas grandes e senzalas, Odette, sempre prática, sugeriu dar o mesmo destino aos móveis europeus que não encontram espaço nessa nova ordem. Anunciei na Gazeta do Rio de Janeiro: “Viúva francesa recém chegada vende finíssimo mobiliário a preços confortadores. Domingo, dia tal, 12h, endereço tal” Alguns escravos vieram trazer recados dos patrões interessados, alguns de minha própria vizinhança mas, para minha surpresa no domingo cedo, uma dama em uma liteira parou à porta. Um negro veio avisar da presença de sua patroa. Pedi-lhe que entrasse

- Sou Maria da Glória Paranhos, dama de honra de Sua Alteza, a princesa regente Carlota Joaquina de Bourbon, que se mostra bastante interessada nessas peças finas anunciadas pela senhora.

- Será uma imensa honra tão ilustre visita, vou recebê-la com todo gosto, assegurei.

Esmerei-me nos preparativos. Era a primeira vez que eu abria os salões de meu novo endereço, pois até então limitara-me às visitas de vizinhos e muito raramente retribui-las. Ainda que fosse um simples leilão, a presença da princesa regente dava-lhe novo peso, os mexericos que ouvia da boca das escravas e das poucas pessoas com quem convivia haviam-me atiçado a imaginação. Nascida em Aranjuez, em 1775, portanto, mais nova que eu 12 anos, Carlota Joaquina de Bourbon COLOCAR AQUI O NOME INTEIRO, filha

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do Rei da Espanha, Felipe IV, e de Luisa de Parma, fora tirada de casa aos dez para casar-se com o príncipe de Portugal. Era culta ardilosa. Aos trinta, em 1805, tentou declarar o próprio esposo incapaz para arrebatar-lhe a coroa. A conjuração descoberta, o casal separou-se, mas não desfez o casamento de conveniência, cada um vivendo em seu palácio, ela Queluz e ele em Mafra.

Em 1807 a iminente invasão francesa obrigou-os a singrar juntos os mares. Mal chegados ao Brasil, rumaram novamente a seus novos Palácios, dessa vez Carlota no Quinta da Boa Vista e Dom João na puta que pariu. Diziam-na inconformada em aqui habitar, pois, além de cobiçar uma coroa em sua própria cabeça, faziam-lhe muita falta os ademanes das cortes européias, aos quais era grandemente afeiçoada. Sentia que o Rio de Janeiro já nascera pequeno para ela, aspirante a ser pelo menos a Rainha da Espanha. Sua solitude ao norte do Trópico de Capricórnio era mitigada pela predileção por militares, especialmente os encarregados de sua guarda, tinha fama de ninfomaníaca, a atirar-se sobre qualquer um que usasse calças e estivesse perto o suficiente para aplacar-lhe o desejo insaciável.

A semana foi consumida em compras e ordens ditadas às criadas e escravas, a preparar as mais saborosas delícias. No domingo coloquei um vestido relativamente simples, de cassa branca. Como jóia portava apenas a estrela de esmeraldas, da qual nunca me separava, presa a uma fita de veludo no pescoço. Uma anfitriã nunca deve sobrepujar o brilho das convidadas. Em compensação, vesti as escravas como princesas. Misturei sedas francesas e tecidos de Iracema a envolvê-las em riquíssimas mantilhas. As que não ostentavam orquídeas nos penteados eram coroadas por tiaras de diamantes, reservas que trouxera da França quando resolvi vir para o Brasil. Eram mais fáceis de portar e a ocultar na travessia que barras de ouro. Fiz um semicírculo com as escravas do lado de fora da porta principal, postando-me ao meio, O sol do meio-dia reluzia nas jóias das moças, seu brilho e a cor das flores a contrastar com a pele negra. Formávamos um conjunto magnífico.

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Já postados, percebi uma caravana de liteiras em fila indiana ladeada por vários negros. Pararam e os escravos colocaram as liteiras no chão para que as negras de honra ajudassem as damas a sair. Foi visível o encantamento hipnótico da comitiva frente ao requinte de meu serviço doméstico. As damas acorreram a uma liteira, visivelmente a mais luxuosa. Uma escrava abriu a porta, deixando descer uma mulher com um chamativo vestido vermelho e a cabeça envolta em tecidos. Os mexericos davam conta de que fora praticamente devorada por piolhos durante a viagem de Lisboa ao Rio, daí raramente expor a cabeleira, pois tornara-se muito rarefeita. Os turbantes, até então restritos aos pobres e aos escravos que na África eram muçulmanos, viraram moda na corte, foram tomados por último grito da corte lisboeta. Dirigiu-se a mim de forma afável, em escorreito francês:

- Que bela casa tem aqui, Madame, que luxo nota-se até em suas escravas. Já se faz comentar no Rio de Janeiro pela elegância, até que enfim alguém de gosto e móveis refinados, no meio desses bugres sem civilização. Constatei que tinha dentes horrivelmente estragados e respondi fazendo-lhe uma reverência:

- Seja bem vinda, princesa, muito me honra recebê-la.

Os destinados à casa entraram, trocando impressões e exclamações. Escravos e liteiras foram acomodados no pátio. Odette ficou encarregada de receber os outros postulantes, que já chegavam. Dona Carlota Joaquina encantou-se com a transparência das cristaleiras em que guardava livros como se fossem estantes. Eram as mesmas da casa de Madame de Sade e protegiam bem obras preciosas da fumaça dos charutos e dos eflúvios do álcool. Mas tomara o cuidado de guardar as mais libertinas e deixar a vista um catálogo o The Gentlemen and Cabinet Makers, uma espécie de

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bíblia da alta marcenaria escrita pelo inglês Thomas Chippendale. Mostrei o manual dos cavalheiros e dos marceneiros à princesa. Despertar o interesse para as Chippendale remanescentes era minha certeza de obter melhor preço quando soasse o martelo.

- Essas cadeiras, como a senhora pode ver, foram feitas com árvores brasileiras, essa madeira é o legítimo acaju – valorizei.

- Que maravilha, um sopro de civilização, suspirou a princesa dos dentes podres. - Pelo menos essas árvores soberbas tiveram nobre fim.

Lembrei-me que o Conde Castide, em seus escritos sodomitas, já lamentava a exploração desenfreada dos colonizadores portugueses e negociantes franceses construíra e mobiliara a Europa, tendo conseguido substituir por material nobre de baixo custo os caros e quase extintos carvalhos, que haviam mobiliado a Idade Média. “A perda dessas magníficas florestas é uma lástima: afinal, nós dependemos delas e elas podem muito bem passar sem nós.” Do vigamento ao mobiliário, atinei que a Europa moderna era feita principalmente de mogno, imensa árvore da região das Amazonas, e não mais dos carvalhos que um dia tinham sido deuses na Grande Bretanha e na Germânia. Achei melhor não comunicar esses pensamentos à princesa, afinal de contas fora a Coroa portuguesa a responsável pelo final das árvores. Embora ainda em 1799 o próprio rei de Portugal tenha definido em lei as madeiras que deveriam ser preservadas, numa lista de lindos nomes, como jataíbas, perobas, vinháticos, sucupiras, jatobás, sapucaias e cedros, as madeiras-de-lei viraram letra morta e sua coleta nunca foi contida. Relembrei Castide e outros naturalistas constatando já não ser possível encontrar, neste alvorecer do século XIX, os exemplares de pau-brasil que três homens não conseguiam abraçar citados nas crônicas quinhentistas. A voz da princesa interrompeu meus pensamentos. Ela já tinha esquecido os paus e estava curiosa sobre mim:

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- O que veio uma senhora tão refinada fazer nestes tristes trópicos?

- Vim em busca do sol – respondi simplesmente.

Na verdade recomendara a Odette e ao falecido Gizeh que não dessem muitas explicações sobre minha verdadeira origem. Como todos os meus anos à frente de meus empreendimentos deixaram-me um patrimônio imenso, passava por viúva de posses e estava bom assim. Entre a essência e a existência, a mais famosa cafetina da França, Madame de Sade, sobrevivia apenas dentro de mim. Assentei as damas no sofá, mas era difícil aquietarem-se, atraídas pelas novidades da casa. Tudo queriam tocar e alisar, como crianças curiosas, dando gritinhos de entusiasmo. Os graciosos traseiros dos bronzes de Cupido, parte do meu passado do qual também me desfazia, fizeram furor dentre a corte carioca. Mandei servir vinho do Porto e licores da terra, muito apreciados. Encarreguei Iracema de ver se os negros a cantar lundus no pátio estavam bem-servidos de mandioca, carne assada e refresco de aluá. Esses preparativos não tomaram mais que alguns minutos, findos os quais tornei a sua Alteza. A primeira pergunta veio dela.

- É verdade que a senhora tem um tanque de piranhas? Soube da tragédia, que lástima, um de seus criados morreu nela.

Novamente com exclusividade para meus botões, figurei que Corte devia ser muito desenxabida para haver atenção a comezinhas domésticas, um assunto tão pequeno para quem sonhava ser a Rainha do Mundo... Sendo assim, ofereci-me para levá-la a ver as piranhas. Aceitou com entusiasmo. Municiei-me de um generoso naco de um cavalo recém sacrificado por ter quebrado uma pata e fomos ao jardim, escoltadas por escravas a portar sombrinhas de seda. Uma série de pequenos gritos histéricos acompanhou a voracidade das piranhas a dar cabo da presa em instantes. Ao ver o ar de asco misturado a fascínio de Carlota Joaquina, herdeira da Espanha, resolvi provocá-la.

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- Pois sabia a senhora que me tem em tão alta conta, francesa de grande civilização, sabia que sou descendente direta de um bugre, como os chama, um índio brasileiro e ainda por cima canibal? Pelas contas que fiz Cunhambebe vem a ser bisavô do meu avô?

Para meu deleite, em vez de horrorizar-se, Carlota Joaquina deu uma risada que seria mais sonora não fosse o efeito desastroso da dentadura.

- Uma nobre ascendência. Pois saiba que até na Corte da Espanha conhecem-se histórias de seu avô. Li sobre Hans Staden, o alemão que foi tomado por português e ficou que foi prisioneiro dele durante ......E aqui no Brasil soube de versões bem mais vergonhosas do que a que esse sobrevivente contou.

Entrei a imaginar o que teria causado espécie à princesa regente. Seriam as catorze mulheres de Cunhambebe, chocantes até para quem era difamada como promíscua? Não, definitivamente, questões de poligamia não iriam melindrar a degredada nos Trópicos.

- Alguns nobres brasileiros, que se interessam por histórias de canibais, dizem que Hans Staden só se salvou porque borrou-se inteiro no momento da cerimônia de sua morte. Cunhambebe então ordenou que não o executassem, “pois não comia covardes”.

- Ah, então foi esse destempero de covardia que salvou Hans Staden, como por um milagre a escorrer de suas pernas bambas?

- Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay. Se Cunhambebe nutria-se do inimigo para absorver suas qualidades e valentias, não poderia querer assenhorear-se da covardia do alheio - retrucou a princesa, com muito espírito.

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- Deve ser por ter-lhe salvo a vida que Hans Staden o endeusa em seu relato, trata-o como um grande guerreiro e naturalmente, não faz menção a seu providencial desarranjo - observei.

Dona Carlota riu. Achei-a menos feia.

- Afinal, os homens são todos iguais, cantam a canção de quem lhes dá o pão.

A Viagem de Hans Staden, que conta sua estada no litoral sul de São Paulo de 1550 a 1554, eu já conhecia, não me trouxe novidades, a não ser a memória de um encontro entre o marujo alemão e o Cacique dos Caciques, Cunhambebe, de quem ele agora era prisioneiro. Havia anos Hans Staden ouvia falar nos sucessivos triunfos de Cunhambebe e no medo e no ódio que despertava nos portugueses. Estava trabalhando como soldado do português Mem de Sá, o maior flagelo dos tamoios, quando foi aprisionado na tomada de um forte, que infligiu mais uma derrota na guerra dos índios contra o flagelo portugues.

O viajante alemão que passou o resto da vida ganhando dinheiro com a narrativa de seus quatro anos de dissabores e prisão entre os índios tupinambás conta que em momentos de guerra os rituais dos índios eram mais rápidos, sendo os portugueses devorados aos montes e o restante de sua carne moqueada fornecia o farnel para as expedições de caça nos dias seguintes. Hans Staden foi inicialmente tomado por mentiroso ao dizer que não era português, mas que havia sido aprisionado pelos portugueses e obrigado a atacar os tamoios. Ele chegou a ser chamado de português covarde, pois muitos mentiam, dizendo que eram na verdade prisioneiros franceses, aliados dos tamoios.

Mas Hans Staden conta que não disse que era francês e sim alemão, uma tribo européia aliada dos franceses, segundo ele. A duvida se ele era realmente português adiou diversas vezes sua morte, mas não

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conseguiu aplacar a sentença e acabou tendo de enfrentar o ritual da morte. Na noite em que seria comido, no meio dos ritos e momentos antes de ser morto com um bordunada, Hans Staden recebeu misteriosamente um grito de Cunhambebe, que lhe concedeu o perdão E depois dizem que o Cacique continuou protegendo Hans Staden até facilitou a volta para os seus, ao trocá-lo por quinquilharias com um navio mercante francês. O trecho que mais me interssou foi o da narrativa do primeiro encontro entre Hans Staden e o Cacique Cunhambebe:

“- Você é Cunhambebe? Ainda está vivo? – perguntou Hans Staden.- Sim, ainda estou vivo – respondeu o Cacique tupinambá.- Já ouvi falar de vosmecê, vosmecê é um homem cheio de virtudes.Cunhambebe ficou orgulhoso. Tinha uma grande pedra verde metida no lábio e no pescoço um colar de conchas brancas

Continuamos a prosa. Mandei servir o almoço. Os convidados e a Corte se atiraram a um bufê coberto de iguarias, onde tivera o cuidado de misturar delícias muito apreciadas na terra a outras que costumava fazer na França. Foi assim então que crepes delicadas, feitas de farinha, ovos e leite, na melhor tradição francesa, embebiam-se de recheios tipicamente brasileiros, doces como compotas de manga, coco ou goiaba, ou salgados como a carne-de-sol desfiada, alternando-se a presuntos defumados, lombos cuidadosamente assados, um delírio para os olhos. Chamava atenção um cuscuz de camarão, uma massa de farinha de milho com tomate, enfeitada por vários crustáceos. Os portugueses que conheciam o cuscuz em sua versão moura o substituíram nas novas terras por esses ingredientes, eu provara e aprovara a receita. Para servir esse bolo salgado dos tuaregues utilizei uma vasilha de prata coberta por folhas de bananeira.

Usei metades de ananás escavados e deitados à mesa à guisa de recipientes para camarões grandes e fritos, um lindo contraste da casca vermelha com a crosta dourada, na qual tive o cuidado de

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conservar a verde coroa. Peixes havia-nos em grande quantidade, alguns assados inteiros, a moda indígena, e outros preparados com delicados molhos franceses. Assim também fiz com os leitões, além dos inteiros preparei lombos cozidos no suco das laranjas, o que foi grandemente apreciado. Cozinhei carnes em vinhos tintos portugueses, uma adaptação do bourgnon francês, pois recusei-me a usar as garrafas de borgone de fina safra que trouxera, preferindo servi-los em taça.

Como sobremesa, ao lado da mais fina pâtisserie, bolos rústicos de aipim e cenoura, creme caramel, cocadas de várias cores. Para aproveitar as dezenas de claras postas ao lado na confecção dos quindins, que seguindo a tradição portuguesa levavam apenas as gemas, as escravas fizeram suspiros finíssimos. Compotas de várias frutas como laranja e limão, minhas favoritas, enfeitavam jarras de cristal claríssimos com as cores vivas da manga, do figo, da jabuticaba, do caju e do mamão. Cheiroso café acompanhado de petit fours amanteigados, biscoitinhos e licores diversos encerrou o repasto.

Ainda trocando impressões sobre a riqueza do almoço, lamentando que mais não lhes permitia a natureza comer, os interessados dirigiram-se ao leilão. No calor do entusiasmo gerado pelo banquete, em menos de duas horas, tudo foi arrematado: estátuas, estatuetas, porcelanas, tapeçarias, quadros sem muito valor que portara, pois antes de deixar a França tomara a providência de doá-los para o Louvre. Outra providência que adotei foi trazer no navio algumas garrafas de champanhe. Abri uma para comemorar o sucesso do martelo e fui oferecer um brinde à regente. As borbulhas acenderam ainda mais nossa mútua simpatia. Despedimo-nos, dona Carlota e eu, com promessas mútuas de revermo-nos em breve, o que nunca mais aconteceu.

Depois de ter contado o dinheiro apurado e colocado em um cofre seguro, dormi aquele sono pesado causado pela refeição farta regada

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a boa bebida. Acordei na madrugada aborrecida, pois era pouco afeita a tardes de siesta, que me causavam longas horas de insônia. Levantei-me só, a Corte se fora e a casa parecia maior e mais vazia, ainda que impecavelmente arrumada, Odette e as escravas eram impecáveis, ninguém diria que por ali houve animada festa. Despi-me, pois ainda portava o vestido branco e, nua, assentei-me na poltrona a ver pela janela a lua cheia no jardim. Acompanhei um raio de luar que traçava um facho de luz no quarto. No final dele, em cima de um aparador, havia um esqueleto de piranha seco ao sol por Iracema, a lamentar-se a morte de um de seus peixinhos de estimação.

Prateada pelo luar, a mandíbula de piranha parecia fosforescente meio à escuridão do quarto. Imaginei que teria sido uma das que devorou o gentil Gizeh e meu coração doeu-se. Imaginei o horror dos últimos momentos do pequeno e desavisado ser e lembrei-me de Hans Staden, a borrar-se de medo perante a borduna que o levaria ao moquém. Decididamente eu também não gostaria de ser vítima, preferia o papel de meu antepassado, Cunhambebe, assim como meu eterno mentor, Sade, o de eterna senhora. Não sabia que Cunhambebe era natural ou cruel. Reflexão sobre canibalismo, crueldade, como queria Sade, ou natural, como queria Cunha. O próprio Napoleão Bonaparte, a quem concedi meus favores ainda quando ele tinha 25 anos na prisão, levado pela morte de Robespierre, antes de tornar-se o rei do mundo, costumava dizer “prefiro devorar a ser devorado”.

Levantei-me e tomei em minhas mãos os ossos da piranha. Eu acabara de descobri que a forma também poderia ser usada para transferir poderes. Coloquei um roupão e fui em busca de alguns utensílios. Novamente sob a luz da lua, reduzi a pó alguns dentes do esqueleto com uma lixa de pirarucu. Dissolvi-o em aguardente límpido e deixei sob a luz da lua. Novamente lembrei-me de Gizeh e o apelido maldoso, dado pela conformação da enorme cabeça, a lembrar a esfinge do deserto, imediatamente acudiu-me o enigma que aterrorizou Édipo Rei, decifra-me ou devoro-te. Tomei do copo

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e tomei fartos goles. Não sei se pelos poderes do Elixir da Piranha ou se pelo amortecimento da cachaça, dormi profundamente.

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