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A coesao interna_entre_direitos_subjetivos_e_autonomia_pública_em_habermas-_texto_usp_2008

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A coesão interna entre Direitos subjetivos e autonomia pública em

Habermas.

Resumo.

Em seu livro “Facticidade e Validade”, Habermas pretende dissolver a tensão entre

a positividade do direito, sua facticidade, e a legitimidade a ele associada, sua validade. Esta

teoria fundamenta-se na concepção de um discurso racional por meio do qual uma norma

pode adquirir o sentido de aceitabilidade racional. Buscando uma articulação entre autonomia

privada e pública, a fim de fornecer um modelo teórico de democracia que contemple ao

mesmo tempo um grau suficiente de participação nas questões públicas, o que garante a

moral autônoma, e um espaço para a realização da autonomia privada por meio do direito

positivo, a presente proposta busca debater tal coesão em Habermas.

Palavras-chave: Democracia Deliberativa, Habermas, autonomia privada e pública.

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A Teoria Habermasiana

Para Habermas, uma verdadeira política deliberativa só pode ser efetiva quando se

leva em conta a diversidade das estruturas de comunicação no interior da qual forma-se um

consenso. Tal política pode vir a ser efetivada não apenas pela prática de “auto-entendimento

mútuo de caráter ético”, mas sobretudo pela busca de um equilíbrio entre diversos interesses

e pela busca por acordos, assim como por uma análise da coerência jurídica, “de uma escolha

de instrumentos racional e voltada a um fim específico e por meio, enfim, de uma

fundamentação moral.” (HABERMAS, 2002, p.285)

O conceito de política deliberativa habermasiano tem como seu núcleo normativo,

no processo democrático, uma perspectiva procedimentalista. Disto resulta uma forma

diversa de compreender a dimensão política daquelas apresentadas pelo republicanismo e

pelo liberalismo. Desta maneira, sua teoria do discurso assume elementos de ambos os lados

e os articula de uma forma nova.

Em conformidade com o republicanismo, considera central o processo político de

formação da opinião, sem deixar de levar em conta o aspecto crucial da constituição jurídico-

estatal; para além disto, “a teoria do discurso concebe os direitos fundamentais e princípios

do Estado de direito como uma resposta conseqüente à pergunta sobre como

institucionalizar as exigentes condições de comunicação do procedimento democrático”

(HABERMAS, 2002, p. 288)

A perspectiva teórica do discurso não pressupõe como fundamento da política

deliberativa a existência de um conjunto de cidadãos reunidos coletivamente com capacidade

efetiva de ação, mas, ao contrário, pauta sua política deliberativa na institucionalização de

procedimentos que possibilitam tal ação.

“Ela não opera por muito tempo como conceito de um todo social centrado

no Estado e que se imagina em linhas gerais como um sujeito racional

orientado por seu objetivo. Tampouco situa o todo em um sistema de

normas constitucionais que inconscientemente regram o equilíbrio do

poder e de interesses diversos de acordo com o modelo de funcionamento

do mercado.” (idem)

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Desta forma, a teoria do discurso possui uma intersubjetividade que se encontra

presente nos processos de estabelecimento do consenso, que se desenvolve de um lado

através da institucionalização de influências nas estruturas parlamentares, e de outro lado

pelas redes de comunicação provenientes da opinião pública política. “A formação de

opinião que se dá de maneira informal desemboca em decisões eletivas institucionalizadas e

em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via comunicativa é transformado

em poder administrativamente aplicável.” (HABERMAS,2002, p.289)

Em seu livro “Facticidade e Validade”, Habermas pretende, a partir de sua teoria do

discurso, dissolver a tensão entre a positividade do direito, sua facticidade, e a legitimidade a

ele associada, sua validade. A teoria do discurso é uma teoria do agir comunicativo. E

somente uma reflexão acerca de tal agir pode esclarecer as normas do agir sem recorrer a

dogmas. Esta teoria fundamenta-se na concepção de um discurso racional por meio do qual

uma norma pode adquirir o sentido de aceitabilidade racional.

Dentro do discurso racional só se constituem como normas válidas aquelas que,

com base em bons argumentos, podem ser aceitas por todos os possíveis integrantes do

discurso racional, ou seja, por meio de um consenso racional que só poderá ser alcançado

através de argumentos que, de acordo com o agir comunicativo, possuem uma força

motivadora racional. Serão bons argumentos aqueles que, para os cidadãos de um Estado,

entendidos como autores de uma ordem legal, possam ser reconhecidos como racionalmente

aceitáveis. No interior desta teoria, todo o participante do processo de implementação é ao

mesmo tempo autor e endereçado do direito.

Desta maneira, o princípio do discurso estabelece o ponto de vista a partir do qual

as normas do agir podem ser justificadas de forma imparcial. Este princípio só pode assumir

a forma do princípio de democracia por meio do discurso de fundamentação, ou seja, são

válidas as normas do agir com as quais todos os endereçados, enquanto partícipes do discurso

racional, possam concordar. Somente neste caso o princípio do discurso pode fornecer ao

processo de implementação dos direitos seu poder legitimador. O princípio de democracia

indica o processo pelo qual opiniões e desejos podem encontrar uma expressão racional e vir

a ser institucionalizados.

A gênese dos direitos se inicia com a aplicação do princípio do discurso ao direito

de liberdade de ação e termina com a institucionalização das condições para um exercício

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discursivo da autonomia política. O sistema legal deve conter em si os princípios aos quais o

indivíduo deve submeter-se quando pretende participar da vida comunitária por meio da

ordem legal. Portanto, o sistema legal deve englobar os princípios, que possibilitam a

implementação de direitos.

O princípio do discurso — que é o núcleo central do processo de legitimação de

direitos positivos, por meio do uso público da razão, que ocorre através do debate público e

racional a respeito das questões da vida pública — é operacionalizado através de regras de

argumentação. Estas se constituem no fato de que as questões levantadas devem poder ser

julgadas imparcialmente e de maneira racional. Desta forma, as regras de argumentação são

regras pressupostas pelos indivíduos quando estes se encontram em uma relação

comunicacional, também denominada regras de razão comunicativa.

No interior de uma teoria comunicacional, a possibilidade de acordo entre os

participantes é uma condição para que os argumentos apresentados possuam pretensões de

validade. A este potencial consenso dá-se o nome de consenso fundamentado. Tal consenso é

aquele no qual a aceitação de todos baseia-se somente no poder dos melhores argumentos:

este é o fundamento que deve nos motivar a reconhecer a pretensão de validade de uma

afirmação. Tal consenso só é possível quando há uma igualdade de posições entre os

integrantes do discurso.

Um consenso fundamentado tem como característica a correspondência a

determinadas condições, interpretadas como princípios de uma situação ideal de fala. Este

princípio dirige-se àquela condição realizada sem nenhuma intervenção de elementos

exteriores e sem qualquer tipo de coerção. Este processo é possível quando todos os

participantes do discurso possuem uma chance igual de eleger e realizar atos de fala, ou seja,

possuem igual oportunidade de participação.

Habermas apresenta quatro condições a serem satisfeitas pelo vários modos de agir

comunicacional:

(1) Todos os potenciais participantes do discurso devem

dispor de igual chance de proferir atos de fala, de modo tal que tenham

a oportunidade de levantar questões e fornecer respostas de maneira

livre.

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(2) Todos devem possuir igualdade de oportunidades de

realizar interpretações, afirmações, sugestões, esclarecimentos e

justificações, assim como problematizar as pretensões de validade das

mesmas, de tal modo que nenhuma forma de preconceito permaneça

imune a críticas.

(3) São admitidos no discurso racional apenas os falantes,

que enquanto agentes possuam igual oportunidade de aplicar atos de

fala, ou seja, de expressar suas posições, sentimentos e intenções.

(4) São admitidos no discurso racional somente os falantes

que, enquanto agentes possam realizar atos de fala regulativos, ou seja,

de dar e recusar ordens, permitir e proibir, etc. (conf. HABERMAS,

1997)

Estas regras constituem-se como uma prática comunicacional sem a qual não pode

ocorrer a garantia de um discurso racional, capaz de fundamentar normas e direitos. As

regras da argumentação podem ser aplicadas tanto no domínio moral como no do direito. A

diferença entre ambos os tipos de discurso surge apenas a partir da lógica de questionamento

de cada um e do tipo de argumentação que lhe é correspondente. No discurso de

fundamentação moral, o princípio do discurso assume a forma de um princípio universal; no

discurso de legitimação, ele assume a forma de princípio de democracia.

O princípio de democracia, a partir do qual resultam os direitos positivos,

representa a aplicação do princípio do discurso às normas do agir, que participam do sistema

legal. Estas normas do agir possuem a pretensão de estarem em concordância com as normas

morais. Porém, enquanto o princípio moral estende-se apenas sobre as normas do agir, que

podem justificar-se por meio de argumentos morais, a validade das normas legais tem por

base não apenas argumentos morais, mas também pragmáticos e ético-políticos. Portanto,

serão legítimas as normas legais quando, ultrapassando a moral, fornece uma compreensão

real da comunidade, capaz de expressar uma justa consideração dos interesses e valores

defendidos como uma escolha racional de estratégias e meios.

Tal princípio esclarece como demandas racionais podem institucionalizar-se. Por

meio do processo de implementação dos direitos positivos, torna-se possível fornecer às

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exigências morais uma expressão legal. Desta forma, a atribuição de direitos pode ser

compreendida como um complemento moral. Para além de um instrumento de

institucionalização das normas morais, os direitos positivos deverão também servir para

finalidades políticas. Desta maneira, a distinção entre normas morais e direitos não será

somente uma distinção que se remete à validade de cada uma, mas também a seus fins

(HABERMAS, 1997, p.567)

Assim, Habermas diferencia normas morais e direitos positivos. Os direitos básicos

não são os resultados de um discurso de fundamentação ou de um processo de

implementação de direitos, mas sim uma condição para tal. Os assim chamados direitos

básicos não se relacionam aos direitos institucionalizados, mas sim às condições da

possibilidade do agir comunicativo, ou seja, à ética do discurso. Estes direitos fundamentam

o status de cidadão livre e igual.

A relação entre esfera pública e sociedade civil no modelo habermasiano.

O conflito entre Estado, mercado e mundo da vida leva este último a organizar-se

em movimentos sociais fundadores da democracia que, na visão de Habermas, são a

institucionalização no sistema político, nas sociedades modernas, dos princípios normativos

da racionalidade comunicativa. A esfera pública constitui o local de disputa entre os

princípios divergentes de organização da sociabilidade, sendo que os movimentos sociais são

os atores que reagem à reificação e burocratização, propondo a defesa das formas de

sociabilidade ameaçadas pela racionalidade sistêmica. Tais movimentos disputam com o

Estado e o mercado a preservação de um espaço autônomo e democrático de organização,

reprodução cultural e formação de identidade e solidariedade.

A esfera pública constitui-se como a arena de formação da vontade coletiva, espaço

do debate público e do embate dos diversos atores da sociedade. Este espaço público

autônomo apresenta uma dimensão dupla: por um lado, desenvolve processos de formação

democrática da opinião pública e da vontade política coletiva; e do outro se vincula a um

projeto de ação democrática efetiva, em que a sociedade civil se torna uma instância

deliberativa e legitimadora do poder político, na qual os cidadãos são capazes de exercer seus

direitos subjetivos públicos.

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Portanto, o espaço público é visto como uma esfera de discurso autônoma em

relação ao sistema político, como o local onde se realiza a interação intersubjetiva de

cidadãos conscientes, solidários e participativos. Assim, a valorização do conceito de

cidadania propiciou a revalorização das práticas sociais, levando a participação política a

ultrapassar o mero ato de votar.

Neste raciocínio, a política transcende os interesses privados: neste ponto,

Habermas se distingue dos liberais por conferir centralidade à ação social, tornando

secundários os aspectos individuais. O espaço público não é, como na visão liberal, um

espaço de neutralidade que está dissociado dos interesses concretos dos atores sociais,

embora permita a institucionalização da neutralidade e a possibilidade do consenso por meio

de procedimentos comunicativos exercidos na esfera pública, fornecendo os critérios éticos

de regulação dos discursos práticos.

Portanto, a esfera pública é a instância geradora de decisões coletivas e legitimadora

da democracia. Habermas também se distingue dos pensadores republicanos, na medida em

que unifica a ação na esfera comunicativa procedimental, e não nos valores cívicos. No

espaço público serão desenvolvidos debates públicos em torno dos interesses coletivos,

possibilitando uma ação comum a partir do princípio do discurso.

Em seu livro “Mudança estrutural da esfera pública”, Habermas analisa como a

esfera pública perde seu caráter de racionalização da dominação por meio da publicidade,

enquanto uso público da razão, para tornar-se uma esfera meramente plebiscitária através de

uma publicidade de tipo demonstrativo. Ou seja, a publicidade perde seu caráter crítico,

tornando-se apenas um instrumento pelo quais os partidos e organizações de interesses

coletivos expõem questões previamente resolvidas e acordadas. 1

O autor começa a obra analisando a esfera pública burguesa, na qual havia uma

rígida separação entre esfera pública e privada. Nesta configuração da esfera pública os

indivíduos formulavam suas concepções a respeito das questões coletivas no âmbito da vida

1 “No interior desta passagem entre o público que pensa a cultura ao público que consome cultura, o que

anteriormente ainda se permitia que se distinguisse como esfera pública literária em relação à esfera política

perdeu o seu caráter específico. ...A esfera pública assume funções de propaganda, quanto mais ela pode ser

utilizada como meio de influir política e economicamente, tanto mais apolítica ela se torna no tipo e tanto mais

aparenta estar privatizada.” (HABERMAS, 2003, p. 207-08)

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íntima para depois discuti-las em público. Portanto, as discussões no interior deste público

estão relacionadas a questões coletivas, não entrando em pauta matérias econômicas ou

pessoais consideradas de foro íntimo.

Contudo, na medida em que grupos começam a se organizar em torno de interesses

comuns e a levar para a esfera pública tais questões, esta esfera perde sua base. “Assim que,

no entanto, os interesses privados, organizados coletivamente, foram obrigados a assumir

uma configuração política, também na esfera pública passaram então a ser descarregados

conflitos que alteraram na base a estrutura do pacto político”. (HABERMAS, 2003, p. 232).

Desta forma, a noção de esfera pública politicamente ativa precisa ser reavaliada, na

medida em que Estado e sociedade se interpenetram mutuamente e que, portanto, estarão

presentes, no interior do Estado, interesses privados organizados coletivamente, visto que

estes precisam afirmar sua autonomia privada por meio de uma autonomia política no interior

da esfera pública. Tais organizações fazem um uso da publicidade de tipo demonstrativo.

Desta maneira, torna-se necessária uma reestruturação da esfera pública para que esta possa

exercer sua função crítica.

Enquanto antigamente a natureza pública das negociações e atividades devia

assegurar a todos a continuidade entre a discussão pré-parlamentar e a discussão parlamentar,

garantindo a unidade da esfera pública e da opinião pública que aí se constituía, hoje, em

virtude de sua alteração estrutural, ela só pode exercer uma função crítica quando se sujeita

ao uso público da razão2.

Portanto, a reconstrução do espaço público ocorre, segundo Habermas, dentro de

uma perspectiva emancipatória, quando se contempla procedimentos racionais, discursivos,

participativos e pluralistas que permitam aos atores da sociedade civil um consenso

comunicativo e uma auto-regulação, fonte da legitimidade das leis. Nem o espaço doméstico

nem o da produção contêm este potencial.

2 “O parlamento deliberativo [era visto] como meio, mas também como parte do público, hoje ela não faz nada

semelhante; ela nem sequer o pode, pois a própria esfera pública, tanto dentro como fora do parlamento, alterou

sua estrutura... A esfera pública só pode exercer sua função de crítica política e de controle à medida que, além

da co-gestão de compromissos políticos, está ela mesma sujeita, sem limitações, às condições de coisa pública e

da publicidade”. (HABERMAS, 2003, p. 241-44).

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A autonomia do espaço público participativo revaloriza o primado da comunidade e

da solidariedade, possibilitando a libertação da sociedade civil dos controles burocráticos do

Estado e das imposições do mercado. Disto deriva que o espaço público é entendido

democraticamente como o locus da criação de procedimentos sociopolíticos, de cuja

formulação e adoção podem participar todos os afetados por normas sociais gerais e decisões

políticas coletivas.

Habermas compartilha com os liberais a idéia de que a legitimidade deriva do

embate público. Contudo, para o autor, este debate não pressupõe o constrangimento da

neutralidade: sendo julgado por critérios de um modelo de discurso prático, a esfera pública

só é possível quando todos os indivíduos afetados empreendem um discurso prático,

avaliando suas pretensões de validade.

Portanto, podemos perceber que a democracia deliberativa, tal como concebida por

Habermas, tem um duplo papel, marcado pela existência de duas formas de esfera pública

correspondente ao seu grau de deliberação efetiva e de poder discursivo: de um lado,

encontramos a esfera pública geral, caracterizada pelo debate público de problemas; por

outro lado, há a esfera pública procedimentalmente regulada, na qual reside o papel

efetivamente deliberativo; ou seja, nela repousa o sistema político que é o responsável pelas

decisões que refletem os interesses e influências da esfera pública geral, ou dos locais de

discussão extra-institucional3.

3 “A formação da opinião, desatrelada das decisões, realiza-se em uma rede pública e inclusiva de esferas

públicas subculturais que se sobrepõem uma às outras, cujas fronteiras reais, sociais e temporais são fluidas. As

estruturas de tal esfera pública pluralista formam-se de modo mais ou menos espontâneo, num quadro garantido

pelos direitos humanos. E através da esfera pública que se organiza no interior de associações movimentam-se

os fluxos comunicacionais, em princípio ilimitados, formando os componentes informais da esfera pública

geral. Tomados em sua totalidade, eles formam um complexo “selvagem” que não se deixa organizar

completamente. Devido à sua estrutura anárquica, a esfera pública geral está muito mais exposta aos efeitos de

repressão e de exclusão do poder estatal – distribuído desigualmente –, da violência estrutural e da comunicação

sistematicamente distorcida, do que as esferas públicas organizadas do complexo parlamentar, que são

reguladas por processos. De outro lado, porém, ela tem a vantagem de ser um meio de comunicação isento de

limitações, no qual é possível captar melhor novos problemas, conduzir discursos expressivos de auto-

entendimento e articular, de modo mais livre, identidades coletivas e interpretações de necessidade. A formação

democrática da opinião e da vontade depende de opiniões públicas informais que idealmente se formam em

estruturas de uma esfera pública política não desvirtuada pelo poder. De sua parte, a esfera pública precisa

contar com uma base social na qual os direitos iguais do cidadão conseguiriam eficácia social” (HABERMAS,

1997, p. 32)

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O modelo discursivo parece adequado às sociedades modernas, pois, com o

ingresso de novos grupos na esfera pública e a expansão dos direitos de cidadania na

modernidade, não é mais possível imaginar um espaço público homogêneo e politicamente

igualitário. O modelo habermasiano amplia a esfera da atividade política, fecundando-a com

os influxos comunicativos provenientes da sociedade civil.

Habermas, em sua teoria da ação comunicativa, sustenta uma diferenciação entre

sistema e mundo da vida como o resultado de problemas modernos. O sistema é composto

por dois subsistemas: o Estado e o mercado. A racionalidade que opera no interior de tais

processos são a ação pautada na racionalidade instrumental. Em contrapartida, o mundo da

vida estrutura-se por meio da ação comunicativa e refere-se a todo o quadro societário

compartilhado — tradição, cultura, solidariedade e a cooperação. Na compreensão de

Habermas,

“O agir comunicativo distingue-se, pois, do estratégico, uma vez

que a coordenação bem sucedida da ação não está apoiada na

racionalidade teleológica dos planos individuais de ação, mas na

força relacionalmente motivadora dos atos de entendimento,

portanto, numa racionalidade que se manifeste nas condições

requeridas para um acordo obtido comunicativamente.”

(HABERMAS, 1990, p. 72).

Com a modernização, estes sistemas se desequilibraram no que tange à sua

integração. Este processo foi denominado por Habermas uma “colonização do mundo da

vida”: se por um lado o mundo da vida responde pela produção da integração social, o

sistema, pautado na ação instrumental, é responsável pela “integração sistêmica”, que se

caracteriza pela reprodução social.

O desequilíbrio entre estas instâncias de racionalidade ocorre devido a uma

disseminação do caráter sistêmico sobre o mundo da vida. Porém, este desequilíbrio, que é

uma marca das modernas sociedades, possibilita uma ampliação das estruturas

comunicativas, visto que.

“No campo da comunicação moral, do saber prático, do agir

comunicativo e de regulamentação consensual dos conflitos de

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ação... estruturas de racionalidade que encontram expressão nas

imagens do mundo, nas idéias morais e nas formações de

identidade, que têm eficácia prática nos movimentos sociais e

que, por fim, se materializam em sistemas de instituições”

(HABERMAS, 1990, p. 13).

As relações entre direito positivo, moral autônoma, autonomia privada e pública.

Com a implementação de direitos subjetivos que possibilitam aos cidadãos

espaço para a realização de suas preferências, o direito moderno efetiva o princípio no qual

tudo aquilo que não é proibido pode ser objeto de ação do indivíduo. Tal atribuição de

primazia do direito frente aos deveres pode ser compreendida a partir dos modernos

conceitos de pessoa do direito e da comunidade jurídica.

“O universo moral sem limites no espaço social e no tempo

histórico estende-se por sobre todas as pessoas naturais em sua

complexidade biográfica, e a própria moral se estende até a

defesa da integridade da pessoas plenamente individuadas. Em

face disso, uma comunidade jurídica respectivamente situada no

tempo e no espaço protege a integridade de seus integrantes

exatamente na medida em que esses últimos assumem o status

artificialmente criado de portadores de direitos subjetivos.Por

isso subsiste entre direito e moral uma relação que é mais de

complementaridade do que de subordinação.” (HABERMAS,

2002, p. 296-97)

Desta maneira, para Habermas, as regulamentações jurídicas relacionam-

se não apenas com questões morais mas também com questões de cunho pragmático e ético,

assim como a formação de consenso entre interesses diversos: “A práxis legislativa

justificadora depende de uma rede ramificada de discursos e negociações — e não apenas de

discursos morais.” (idem).

Na concepção habermasiana, a noção de uma hierarquia de direitos com

padrões de dignidade diversos é a responsável por uma interpretação confusa destes, na

medida em que os direitos seriam mais bem compreendidos tendo em vista que o direito

positivamente legítimo pode equilibrar as debilidades de uma moral exigente que não

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possibilita nada além de “resultados cognitivamente indefinidos e motivacionalmente pouco

seguros”.

Contudo, tais afirmações não liberam as questões judiciais das

preocupações com a moralidade; o que Habermas argumenta é que as regulamentações

jurídicas possuem uma característica demasiadamente concreta para legitimar-se apenas pelo

fator de consonância moral4.

“Assim como a moral, também o direito deve defender

eqüitativamente a autonomia de todos os envolvidos e atingidos.

Ora, o direito também deve comprovar sua legitimidade a partir

desse mesmo aspecto de assessoramento da liberdade.

Interessante, porém, é que a positividade obriga a uma

decomposição peculiar da autonomia para a qual não há

contrapartida do lado da moral.”(HABERMAS, 2002, p. 297-98)

Em sentido kantiano, a autodeterminação constitui-se como um conceito

unitário, visto que requer de cada pessoa uma ação orientada pelas normas formuladas por

ela mesma, que se constitui como o resultado de um juízo imparcial próprio. Desta forma,

para Habermas, o aspecto impositivo das normas jurídicas remetem não exclusivamente a

processos de formação de opinião e vontade, mas sobretudo a decisões vinculadas

coletivamente, por meio de instâncias formadoras e aplicadoras do direito5.

“Resulta daí de maneira conceitualmente necessária uma partilha

de papéis entre atores que firmam (e enunciam) o direito, bem

como entre destinatários que estão submetidos ao direito vigente.

A autonomia, que no campo da moral é monolítica, por assim

4 “Assim como a moral, também o direito deve defender eqüitativamente a autonomia de todos os envolvidos e atingidos.Ora, o direito também deve comprovar sua legitimidade a partir desse mesmo aspecto de

assessoramento da liberdade. Interessante, porém, é que a positividade obriga a uma decomposição peculiar da

autonomia para a qual não há contrapartida do lado da moral.” (HABERMAS, 2002, p. 297-98)

5 “Resulta daí de maneira conceitualmente necessária uma partilha de papéis entre atores que firmam (e enunciam) o direito, bem como entre destinatários que estão submetidos ao direito vigente. A autonomia, que

no campo da moral é monolítica, por assim dizer, surge no campo do direito apenas sob a dupla forma de

autonomia pública e privada.” (HABERMAS, 2002, p. 298)

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dizer, surge no campo do direito apenas sob a dupla forma de

autonomia pública e privada.”(HABERMAS, 2002, p. 298)

Para Habermas, estes momentos devem ser mediados, a fim de que uma

forma de autonomia não cause problemas à outra. Pois a liberdade de ação em sentido de não

impedimento e a autonomia pública do cidadão em consonância com o Estado possibilitam-

se de maneira recíproca.

Portanto, a noção de autonomia jurídica dos cidadãos requer que os

endereçados destes direitos também se sintam como seus autores. Desta maneira, se os

direitos humanos fossem considerados como fatos morais estabelecidos previamente, sendo

portanto apenas positivados, tal idéia entraria em conflito aberto com a noção de autonomia.

Contudo, para Habermas, atualmente não é possível que os cidadãos escolham livremente a

forma de tornar efetiva sua autonomia. No atual processo legislativo, cabe aos cidadãos, para

tornar-se sujeito de direito, validar-se como o medium do direito.

“Contudo, quando se trata de decidir se cabe ou não

institucionalizar sob a forma de direitos políticos do cidadão os

pressupostos da comunicação com base nos quais os cidadãos

julgam se é legitimo o direito que eles mesmos firmam à luz do

princípio discursivo, aí então o código jurídico precisa estar

como tal à disposição. Para a instituição desse código, entretanto,

é necessário criar o status das pessoas do direito que pertençam,

como portadores de direitos subjetivos, a uma associação

voluntária de jurisconsortes e que efetivamente façam valer por

meios judiciais suas respectivas reivindicações judiciais.”

(HABERMAS, 2002, p.301)

Nesta perspectiva, a autonomia pública só pode efetivar-se por meio da

existência prévia da autonomia privada de pessoas de direito. Desta forma, sem os direitos

fundamentais que asseguram a autonomia privada, não haveria um medium para a

institucionalização jurídica das condições necessárias para o uso da autonomia pública.

“Dessa maneira, autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente, sem que os

direitos humanos possam reivindicar um primado sobre a soberania popular, nem essa sobre

aquele.” (idem)

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Esta relação pode ser expressa pelo fato de que os cidadãos só podem

fazer uma utilização efetiva e adequada de sua autonomia pública quando são independentes.

Tal independência remete à autonomia privada, que deve ser assegurada de maneira

eqüitativa; entretanto, só será possível alcançar o consenso por meio de um uso correto de

sua autonomia política enquanto cidadãos do Estado6.

“Em lugar da controvérsia sobre ser melhor assegurar a

autonomia das pessoas do direito por meio de liberdades

subjetivas para haver concorrência entre indivíduos em

particular, ou então mediante reivindicações de benefícios

outorgadas a clientes da burocracia de um Estado de bem-estar

social, surge agora uma concepção jurídica procedimentalista,

segundo a qual o processo democrático precisa assegurar ao

mesmo tempo a autonomia privada e pública: os direitos

subjetivos ...não podem ser formulados de modo adequado sem

que os próprios envolvidos articulem e fundamentem os aspectos

considerados relevantes para o tratamento igual ou desigual em

casos típicos.Só se pode assegurar a autonomia privada de

cidadãos em igualdade de direitos quando isto se dá em conjunto

com a intensificação de sua autonomia civil no âmbito do

Estado.” (HABERMAS, 2002, p. 305)

Pode-se perceber, portanto, que Habermas busca uma articulação entre

autonomia privada e pública, a fim de fornecer um modelo teórico de democracia que

contemple ao mesmo tempo um grau suficiente de participação nas questões públicas, o que

garante a moral autônoma, e um espaço para a realização da autonomia privada por meio do

direito positivo.

Neste aspecto, sua teoria toma de empréstimo tanto elementos do

comunitarismo quanto do liberalismo: não deixa de postular a necessidade de alguma

participação dos cidadãos, o que lhe assegura a afirmação de uma base moral minimamente

6 “Em lugar da controvérsia sobre ser melhor assegurar a autonomia das pessoas do direito por meio de liberdades subjetivas para haver concorrência entre indivíduos em particular, ou então mediante reivindicações

de benefícios outorgadas a clientes da burocracia de um Estado de bem-estar social, surge agora uma concepção

jurídica procedimentalista, segundo a qual o processo democrático precisa assegurar ao mesmo tempo a

autonomia privada e pública: os direitos subjetivos ...não podem ser formulados de modo adequado sem que os

próprios envolvidos articulem e fundamentem os aspectos considerados relevantes para o tratamento igual ou

desigual em casos típicos.Só se pode assegurar a autonomia privada de cidadãos em igualdade de direitos

quando isto se dá em conjunto com a intensificação de sua autonomia civil no âmbito do Estado.”

(HABERMAS, 2002, p. 305)

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fundada no consenso coletivo, sem contudo sobrecarregar o indivíduo com o “peso”

constante de sua presença nos assuntos públicos, carga que pode ser “aliviada”, tal como o

exigem as condições de vida das sociedades contemporâneas, por meio do depósito de parte

da condução da vida coletiva às instituições político-jurídicas, tal como prevê o ideário

liberal.

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