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Toda tecnologia avançada pode ser usada para fins pacíficos ou bélicos. Isso ocorre com a eletrônica, a nanotecnologia, a biologia, a engenharia genética e também com a energia nuclear. Os conhecimentos podem ser aplicados – e são – na guerra, mas também podem contribuir para melhorar a qualidade de vida da população. A energia nuclear – conhecida pelas bombas lançadas em 1945 sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, bem como pelos acidentes ocorridos com reatores nos Estados Unidos e na Ucrânia – ganhou um estigma que até hoje prejudica uma discussão ponderada sobre os riscos e benefícios advindos dessa tecnologia. No entanto, inúmeras atividades presentes em nosso dia-a-dia em- pregam, direta ou indiretamente e de modo seguro, as radiações nucleares. Por exemplo, as técnicas nucleares têm sido anualmente responsáveis pela cura ou prevenção do câncer em milhões de pes- soas. A energia elétrica produzida em reatores gera quase 20% desse tipo de energia no mundo e é uma das áreas que mais se preocupam com a segurança, o que levou, nos últimos anos, vários países a optar por essa tecnologia. A energia nuclear também tem sido amplamente empregada no ambiente, na indústria e na pesquisa. Odair Dias Gonçalves e Ivan Pedro Salati de Almeida Comissão Nacional de Energia Nuclear (RJ) A energia nuclear 36 CIÊNCIA HOJE • vol. 37 • nº 220 F Í S I C A

A energia nuclear e seus usos na sociedade

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Toda tecnologia avançada pode ser usada para finspacíficos ou bélicos. Isso ocorre com a eletrônica, ananotecnologia, a biologia, a engenharia genética etambém com a energia nuclear. Os conhecimentospodem ser aplicados – e são – na guerra, mas também

podem contribuir para melhorar a qualidade de vida da população.A energia nuclear – conhecida pelas bombas lançadas em 1945 sobreas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, bem como pelosacidentes ocorridos com reatores nos Estados Unidos e na Ucrânia –ganhou um estigma que até hoje prejudica uma discussão ponderadasobre os riscos e benefícios advindos dessa tecnologia.No entanto, inúmeras atividades presentes em nosso dia-a-dia em-pregam, direta ou indiretamente e de modo seguro, as radiaçõesnucleares. Por exemplo, as técnicas nucleares têm sido anualmenteresponsáveis pela cura ou prevenção do câncer em milhões de pes-soas. A energia elétrica produzida em reatores gera quase 20% dessetipo de energia no mundo e é uma das áreas que mais se preocupamcom a segurança, o que levou, nos últimos anos, vários países a optarpor essa tecnologia. A energia nuclear também tem sido amplamenteempregada no ambiente, na indústria e na pesquisa.

Odair Dias Gonçalves e Ivan Pedro Salati de AlmeidaComissão Nacional de Energia Nuclear (RJ)

A energia nuclear

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mos, que, por sua vez, são caracterizados pela cargaelétrica de seu núcleo e simbolizados pela letra Z.Em física, a descrição adequada do átomo para acompreensão de um determinado fenômeno de-pende do contexto considerado. Para os objetivosdeste artigo, restritos às aplicações da energia nu-clear, podemos considerar o núcleo como compos-to de prótons, com carga elétrica positiva, e nêu-trons, sem carga. Ambos são denominados generi-camente núcleons. A letra Z que caracteriza cadaum dos átomos, naturais ou artificiais, representao número de prótons no núcleo.

A maior parte da massa do átomo está concen-trada em seu núcleo, que é muito pequeno (10-12

cm a 10-13 cm). Prótons e nêutrons têm massaaproximadamente igual, da ordem de 1,67 x 10-24

gramas, e são caracterizados por parâmetros espe-cíficos (números quânticos) definidos pela mecâ-nica quântica, teoria que lida com os fenômenosna escala atômica e molecular.

Os prótons, por terem a mesma carga, se repe-lem fortemente devido à força eletrostática. Issotenderia a fazer com que essas partículas se afas-tassem umas das outras, o que inviabilizaria omodelo. Mas, como os núcleos existem, podemosconcluir que deve existir uma força de naturezadiferente da força eletromagnética ou da forçagravitacional – e muito mais intensa que estas –que mantém os núcleos coesos.

Quanto maior a energia de ligação média (somade todos os valores das energias de ligação dividi-da pelo número de partículas), maior a força decoesão do núcleo. Este artigo irá tratar da energianuclear, que está relacionada a essa força, bemcomo de seus usos na sociedade.

Tipos de radiaçãoNa natureza, existem 92 elementos. Cada elemen-to pode ter quantidades diferentes de nêutrons. Osnúcleos com mesmo número de prótons, mas quediferem no número de nêutrons, são denominadosisótopos de um mesmo elemento. Para determina-das combinações de nêutrons e prótons, o núcleoé estável – nesse caso, são denominados isótoposestáveis. Para outras combinações, o núcleo é ins-tável (isótopos radioativos ou radioisótopos) e emi-tirá energia na forma de ondas eletromagnéticasou de partículas, até atingir a estabilidade.

Dá-se o nome genérico de radiação nuclear à ener-gia emitida pelo núcleo. As principais formas deradiação são: i) emissão de nêutrons; ii) radiaçõesgama, ou seja, radiação eletromagnética, da mesmanatureza que a luz visível, as microondas ou os rai-os X, porém mais energética; iii) radiação alfa (nú-cleos de hélio, formados por dois prótons e dois nêu-trons); iv) radiação beta (elétrons ou suas antipar-tículas, os pósitrons, cuja carga elétrica é positiva).

Nas ciências nucleares, a unidade de energiageralmente utilizada é o elétron-volt (eV). As ener-gias emitidas pelo núcleo são acima de 10 mil eV,valor que é cerca de bilhões de vezes menor queo das energias com que lidamos no dia-a-dia. Essevalor se torna significativo quando lembramos queem cerca de 100 gramas de urânio existem emtorno de 1023 átomos. Uma bomba como a de Hi-roshima contém apenas 20 kg de matéria-prima,aproximadamente.

A liberação de energia do núcleo se dá atravésde dois processos principais: decaimento radioati-vo (também chamado desintegração) e fissão.

Todos os materiais são formados por um número limitado de áto-

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do decaimento. Assim, os radioisótopos podem sercaracterizados pelas emissões produzidas no decai-mento, que servem como uma ‘assinatura’ para ca-da um deles.

A desintegração pelo decaimento pode ocorrerespontaneamente ou ser provocada pela instabili-dade criada em núcleos estáveis, pelo bombardeiocom partículas ou com radiação eletromagnética.

Na natureza, os elementos apresentam-se geral-mente como uma mistura de diferentes isótopos,estáveis ou radioativos. Por exemplo, o urânio, quetem 92 prótons (Z = 92), é encontrado como umamistura de 99,3% de urânio-238 (238U, com 146nêutrons) e 0,7% de urânio-235 (235U, 143 nêu-trons), além de frações muito pequenas de outrosisótopos – o número que segue o nome do elemen-to químico ou antecede sua sigla é o chamadonúmero de massa (A), ou seja, a soma de seusprótons e nêutrons.

Cada isótopo instável tem sua meia-vida ca-racterística. A meia-vida do 238U é de 4,47 x 109

anos, o que significa que são necessários 4,47 bi-lhões de anos para reduzir à metade sua quanti-dade inicial. Ao decair, o 238U produz outro ele-mento instável, o tório-234, cuja meia-vida é de24,1 dias. Este, por sua vez, também decai, produ-zindo outro isótopo instável (protactínio-234) eassim por diante, até que a estabilidade sejaalcançada com a formação do chumbo com 206núcleons (206Pb).

Fissão nuclearNa fissão nuclear, a energia é liberada pela divisãodo núcleo normalmente em dois pedaços menorese de massas comparáveis – para núcleos pesados,

Figura 1.Processo dedesintegraçãonuclear

Figura 2.Processo defissão nuclear

existe a fissão em mais de doispedaços, mas é muito rara, umaem 1 milhão para urânio. Pelalei de conservação de energia, asoma das energias dos novos nú-cleos mais a energia liberadapara o ambiente em forma deenergia cinética dos produtos defissão e dos nêutrons liberadosdeve ser igual à energia total donúcleo original.

A fissão do núcleo raramenteocorre de forma espontânea nanatureza, mas pode ser induzidase bombardearmos núcleos pe-sados com um nêutron, que, aoser absorvido, torna o núcleoinstável.

IMA

GEN

S C

EDID

AS

PELO

S A

UTO

RES

Radiação gama(radiaçãoeletromagnética,de mesmanaturezaque a luz)

Elemento 1instável devidoao excesso deenergia

Elemento 2

Energiacinética

Elétrons

Nêutrons rápidos(de dois a três)

Núcleo deurânio-235

Radiação

Produtosda fissão

Decaimento nuclearO decaimento radioativo ocorre segundo as leis daprobabilidade. O processo é complexo e explicá-loaqui fugiria ao escopo deste artigo. Assim, bastasaber que nele o núcleo se transforma no de umoutro elemento ao ter sua carga elétrica mudadapela emissão de radiação, mudando o número deprótons e/ou nêutrons (figura 1).

O decaimento pode ocorrer sucessivamente,causando uma cadeia de desintegrações, até queresulte um elemento estável. O tempo que umcerto número de núcleos de um radioisótopo levapara que metade de sua população decaia paraoutro elemento por desintegração é denominadomeia-vida do radioisótopo.

A radiação emitida no decaimento é compostade partículas e/ou radiação gama e é característica

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Na medicina nuclear, os ra-diofármacos são injetados no pa-ciente, concentrando-se no locala ser examinado e emitindo ra-diação, que, por sua vez, é de-tectada no exterior do corpo porum detector apropriado, que po-de transformar essa informaçãoem imagens, permitindo ao mé-dico observar o funcionamentodaqueles órgãos.

Os radiofármacos são utiliza-dos no diagnóstico de diversaspatologias (figura 4). Têm meia-vida curta – da ordem de dias ouhoras – e, em um curto períodode tempo, diminuem sua ativi-dade para níveis desprezíveis,minimizando a possibilidade dedano ao paciente.

O principal material empre-gado em medicina nuclear é otecnécio-99m, que tem meia-vi-da de seis horas, ou seja, a cadaseis horas a radiação emitida caipela metade. Outros radiofárma-cos são o tálio-201 (meia-vidade três dias), gálio-67 (meia-vidade três dias), iodo-131 (meia-vida de oito dias) e flúor-18(meia-vida de duas horas).

Uma técnica nova e impor-tante na medicina nuclear é aPET (sigla, em inglês, para tomo-grafia por emissão de pósitrons

O 235U, por exemplo, ao ser bombardeado comum nêutron, fissiona em dois pedaços menores,emitindo normalmente dois ou três nêutrons (figu-ra 2). Se houver outros núcleos de 235U próximos,eles têm uma certa chance de ser atingidos pelosnêutrons produzidos na fissão. Se houver um gran-de número disponível de núcleos de urânio-235, aprobabilidade de ocorrerem novas fissões será alta,gerando novos nêutrons, que irão gerar novas fis-sões. Esse processo sucessivo é chamado reação emcadeia (figura 3).

Controlando-se o número de nêutrons produzi-dos e a quantidade de 235U, pode-se controlar ataxa de fissão ao longo do tempo. Essa reação emcadeia, denominada controlada, é o processo utili-zado em um reator nuclear. Já em uma bombaatômica, as fissões ocorrem todas em um intervalode tempo muito curto, gerando uma enorme quan-tidade de energia e provocando a explosão.

O que torna o urânio conveniente para uso comocombustível é a grande quantidade de energia libe-rada por esse elemento ao se fissionar.

Na saúdeUma ferramenta importante no tratamento e di-agnóstico de doenças são os radiofármacos, quesão obtidos a partir de radioisótopos produzidosem reatores nucleares ou em aceleradores de par-tículas. Esses radioisótopos são, em geral, asso-ciados a substâncias químicas (fármacos) que seassociam a órgãos ou tecidos específicos do corpohumano.

Figura 3.Reação em cadeia

Núcleo deurânio-235

Nêutron

Algunseventosimportantesno uso daenergia nuclear

1896 Descobertaa radioatividade

1898 Isolados o polônioe o rádio. Descobertaa radiação gama

1902 Confirmadaa desintegraçãoradioativa espontânea

1910 Uso ingênuoa de materiais1920 radioativos na

medicina e indústria

1911 Concebida a idéiade usar traçadoresradioativos

1926 Uso de radiação para otratamento de câncer

1934 Primeiro radionuclídeoartificial.Primeira fissão dourânio com nêutrons

1936 Uso em terapiade radioisótoposproduzidos emciclotron

1939 Carta de Einstein sobrea possibilidade de osalemães construírema bomba atômica

1941 Início do programanuclearnorte-americano

1942 Início da construçãode um reatornos Estados Unidos

1945 Lançamento dasbombas atômicassobre Hiroshimae Nagasaki

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e elétrons), que utiliza radioisótopos de meia-vidamuito curta e que têm como característica odecaimento com a liberação de pósitrons, sendoconsiderada por muitos especialistas a melhor emais precisa forma de radiodiagnóstico por ima-gem disponível hoje. Esses radioisótopos são pro-duzidos em aceleradores de partículas específicos(ciclotrons), sendo o principal produto o flúor-18,injetado no sangue do paciente na forma defluorodeoxiglicose (FDG).

O Brasil produz esses radioisótopos no Institutode Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), emSão Paulo, e no Instituto de Engenharia Nuclear(IEN), no Rio de Janeiro, ambos da Comissão Na-cional de Energia Nuclear (CNEN). Devido à meia-vida muito curta, os radiofármacos para PET de-vem ser produzidos próximos ao local de uso.

As radiações nucleares são utilizadas tambémem diversas terapias, principalmente no tratamen-to de câncer. Nesse caso, a irradiação das célulascancerosas tem o objetivo de matá-las e impedirsua multiplicação. Uma das formas de aplicaçãoda radiação consiste em se colocar uma fonte ex-terna ao paciente, a uma certa distância do tumora ser tratado (teleterapia). Tradicionalmente, utili-za-se uma fonte de cobalto-60 nesse tratamento,mas esse processo vem sendo substituído por ace-leradores lineares, que produzem feixes de elé-trons que, ao incidir em um alvo, geram fótons,

gue doado, o que reduz em muito no paciente o riscode rejeição do órgão ou do tecido transplantados.

Usos na indústriaA indústria é uma das maiores usuárias das técni-cas nucleares no Brasil, respondendo por cerca de30% das licenças para utilização de fontes radioati-vas. Elas são empregadas principalmente para amelhoria da qualidade dos processos nos maisdiversos setores industriais. As principais aplica-ções são na medição de espessuras e de vazões delíquidos, bem como no controle da qualidade dejunções de peças metálicas.

As fontes mais utilizadas são o cobalto-60, oirídio-192, o césio-137 e o amerício-241. A faci-lidade de penetração da radiação em diversos ma-teriais, bem como a variação de sua atenuaçãocom a densidade do meio que atravessa, tornamseu uso conveniente em medidores de nível, espes-sura e umidade. Na indústria de papel, esses medi-dores são utilizados para garantir que todas asfolhas tenham a mesma espessura (padrão de gra-matura), para atender às exigências de qualidadedo mercado mundial, enquanto, na indústria debebidas, a radiação é usada para controle de en-chimento de vasilhames.

que irão interagir com o tecido.Outra forma de aplicação consis-

te em se colocar pequenas fontes emcontato direto com a área do tecidoa ser irradiada (braquiterapia). Es-sas fontes podem ser aplicadas porum determinado período de tempoe depois retiradas – como é feito,por exemplo, em tratamentos de cân-cer de útero – ou ser implantadas nocorpo do paciente, como no trata-mento de câncer de próstata.

Outro uso da radiação em medici-na é a irradiação de sangue com raiosgama. Esse método é usado no sanguea ser ministrado em pacientes quetêm deficiência imunológica. Entreoutras coisas, o tratamento com a ra-diação diminui a quantidade delinfócitos T (células de defesa) no san-

Figura 4. Radiofármacos produzidospela CNEN. Entre parênteses,está o nome do radioisótopoem cada radiofármaco

ECD (tecnécio-99m)

Estanho coloidal(tecnécio-99m)

Fitato (tecnécio-99m)MIAA (tecnécio-99m)

NaI (iodo-123 e iodo-131)

SAH (cromo-51)

Citrato de gálio (gálio-67)

EDTPM (samário-153)MDP (tecnécio-99m)PIRO (tecnécio-99m)

Pertecnetato (tecnécio-99m)

MAA (tecnécio-99m e iodo-131)

MIBG-123TI (Itálio-201)

Pertecnetato (tecnécio-99m)

DMSA (tecnécio-99m)Hippuran (iodo-123 e iodo-131)EDTA (cromo-51)GHA (tecnécio-99m)DTPA (tecnécio-99m)

Semente de iodo (iodo-125)

Dextram 500 (tecnécio-99m)

Fio de irídio (irídio-192)

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Outro uso importante das radiações nuclearesestá na aplicação de traçadores radioativos. Nessemétodo, uma substância com material radioativo éinjetada em um meio, e é feito um acompanha-mento de seu comportamento nos processos que sedeseja observar. Traçadores radioativos tambémtêm sido cada vez mais utilizados para detectarproblemas de vazamentos e mau funcionamentoem grandes plantas da indústria química, permi-tindo economia de tempo e de dinheiro.

Na exploração de petróleo, fontes de nêutronssão utilizadas em processos para determinar operfil do solo, enquanto outras podem auxiliar adistinguir, nesse processo, a quantidade de água,gás e óleo existentes no material extraído, facili-tando e barateando o processo de exploração.

Cada vez mais utilizados, os irradiadores indus-triais são instalações com compartimentos onde omaterial a ser tratado é exposto à radiação que irámatar bactérias e microrganismos, podendo serusado como um processo de esterilização. Existemno mundo hoje cerca de 160 irradiadores indus-triais funcionando, sendo seis no Brasil. Essas ins-talações são utilizadas para irradiar e esterilizarmateriais cirúrgicos, remédios, alimentos, mate-riais de valor histórico etc.

O cobalto-60 é o material mais utilizado comofonte de radiação. A exposição à radiação gamanão contamina os materiais irradiados nem os trans-forma em materiais radioativos. Portanto, ao ces-sar o processo, não existe mais radiação nos ma-teriais. Leva grande vantagem sobre substânciasquímicas que são, às vezes, usadas para o mesmofim e que deixam resíduos tóxicos. Também levavantagem sobre a esterilização com calor – na qualos materiais são submetidos a altas temperaturas–, uma vez que a técnica permite a irradiação demateriais plásticos, como seringas e fios cirúrgi-cos, sem afetar sua integridade.

Nos alimentos para consumo humano, a radi-ação gama elimina microrganismos patogênicos,como a Salmonella typhimurium. A irradiação defrutas, além de suprimir infestações indesejadas,eleva a vida útil do produto e aumenta o tempopara seu consumo, ao contrário da desinfecçãocom calor, que acelera o processo de amadureci-mento.

Outra aplicação na agroindústria é o uso datécnica de ‘macho estéril’ para o combate a pra-gas na lavoura. Nessa técnica, são produzidos ma-chos esterilizados da praga a ser combatida e quedepois são soltos na região infestada, diminuindoa população ao afetar sua capacidade de repro-dução. Esse processo é usado por países comoEstados Unidos, México, Guatemala e Argentinano combate à mosca-da-fruta (Ceratitis capitata).

No Brasil, está em implantaçãoum projeto semelhante no Nor-deste, na região de produção demangas e uvas, com patrocíniode prefeituras, governos estaduale federal, contando com auxílioda Agência Internacional deEnergia Atômica (AIEA).

Na pesquisae no ambienteA utilização de radioisótopos napesquisa permite obter dadosque seriam inviáveis por outrosprocessos. Um grande número deprocessos físicos e biológicos in-vestigativos emprega materialradioativo. Na alimentação ani-mal, por exemplo, é possível ve-rificar e acompanhar o metabo-lismo de rações e outros alimen-tos utilizando radioisótopos queemitem radiação ao longo doprocesso metabólico.

Na pesquisa de plantas, os ra-dioisótopos permitem verificar aabsorção de nutrientes e o efeitode microrganismos, enquanto, noestudo de solos, possibilita ob-servar os processos de infiltra-ção de água no solo (lixiviação),bem como o processo de filtra-gem (percolação), possibilitandoa verificação da qualidade doterreno estudado e das formas demelhorar sua produtividade.

Vale comentar, ainda que bre-vemente, mais três aplicações detécnicas nucleares no meio am-biente: i) a análise por irradia-ção com nêutrons, que permitemedir quantidades extremamen-te pequenas de poluentes; ii) ouso de traçadores radioativos pa-ra mapear a origem de vazões daágua e de contaminantes, o quepossibilita obter, entre outrascaracterísticas, o tempo de recar-ga de aqüíferos, facilitando seumanejo e uso racional; iii) a este-rilização de lixo e dejetos orgâ-nicos, de forma a garantir que �

1949 União Soviéticaexplode sua primeirabomba nuclear

1951 Criação do ConselhoNacional de Pesquisas(CNPq), motivadapela era nuclear

1952 Estados Unidosexplodem a primeirabomba de hidrogênio

1952 Criação do Instituto dePesquisas Radioativas(IPR), mais tardeCentro deDesenvolvimentode Tecnologia Nuclear(CDTN/CNEN),em Belo Horizonte

1953 União Soviéticaexplode sua bombade hidrogênio

1954 Estados Unidosdificultam entrega detrês ultracentrífugascompradas pelo Brasilda Alemanha

1955 Início doabastecimento urbanode energia elétricade origem nuclear

1956 Instalado o primeiroreator de pesquisado hemisfério Sul,no Instituto deEnergia Atômica (SP).Criação da ComissãoNacional de EnergiaNuclear (CNEN)

1957 Criada a AgênciaInternacional deEnergia Atômica (AIEA)

1962 Criação do Institutode Engenharia Nuclear,no Rio de Janeiro (RJ)

1963 Início da produçãorotineirade radioisótopose radiofármacosno Brasil

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não contenham microrganismos nocivos, é parti-cularmente útil no tratamento de esgotos ou delixo hospitalar.

Geração de energiaUma das principais utilizações da energia nuclearé a geração de energia elétrica. Usinas nuclearessão usinas térmicas que usam o calor produzido nafissão para movimentar vapor de água, que, porsua vez, movimenta as turbinas em que se produza eletricidade. Em um reator de potência do tipoPWR (termo, em inglês, para reator a água pres-surizada), como os reatores utilizados no Brasil, ocombustível é o urânio enriquecido cerca de 3,5%.Isso significa que o urânio encontrado na natureza,que contém apenas 0,7% do isótopo 235U, deve serprocessado (‘enriquecido’) para que essa propor-ção chegue a 3,5% (figura 5). Em reatores de pes-quisa ou de propulsão – estes últimos usados comofonte de energia de motores em submarinos e na-vios –, o enriquecimento pode variar bastante. Paraa confecção de bombas nucleares, é necessário umenriquecimento superior a 90%.

O processo completo de obtenção do combus-tível nuclear é conhecido como ciclo do combus-tível e compreende diversas etapas: i) extração dominério do solo; ii) beneficiamento para separar ourânio de outros minérios; iii) conversão em gás doproduto do beneficiamento, o chamado yellow cake

(ou ‘bolo amarelo’); iv) enriquecimento do gás, noqual a proporção de 235U é aumentada até o níveldesejado; v) reconversão do gás de urânio enrique-cido para o estado de pó; vi) fabricação de pasti-lhas a partir da compactação do pó; vii) e final-mente a montagem dos elementos combustíveis,quando se colocam as pastilhas em cilindros me-

tálicos que irão formar os elementos combustíveisdo núcleo do reator.

Atualmente, no mundo, estão em operação 440reatores nucleares voltados para a geração de ener-gia em 31 países. Outros 33 estão em construção.Cerca de 17% da geração elétrica mundial é deorigem nuclear, a mesma proporção do uso de ener-gia hidroelétrica e de energia produzida por gás.Alguns países desenvolvidos têm seu abastecimentode energia elétrica com um alto percentual de ge-ração nuclear. Entre eles, a França tem 78%, aBélgica 57%, o Japão 39%, a Coréia do Sul 39%, aAlemanha 30%, a Suécia 46%, a Suíça 40%. So-mente nos Estados Unidos, os 104 reatores em fun-cionamento, que geram 20% da eletricidade daque-le país, produzem mais eletricidade que todo o sis-tema brasileiro de geração elétrica. Além dessesreatores, funcionam mais 284 reatores de pesquisaem 56 países, sem contar um número estimado de220 reatores de propulsão em navios e submarinos.

Confiança e resíduosA confiança na utilização de energia nuclear parageração de energia elétrica sofreu bastante em anosrecentes devido a dois acidentes. O primeiro foi ode Three Mile Island (Estados Unidos), que, apesarde não ter tido conseqüências radiológicas signifi-cativas, levou os países ocidentais a fazer uma re-visão das medidas de segurança nas usinas nuclea-res em funcionamento, aumentando o rigor do li-cenciamento nuclear. O segundo foi o de Cherno-

Figura 5.Esquema defuncionamentode um reatora águapressurizada

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Edifício do reator

Contenção

Circuitoprimário

Reator

Pressurizador

Gerador de vapor

Circuitosecundário

Turbina

Tanquede água

Água decirculação

Gerador elétrico

Condensador

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zidos pelas áreas médica e in-dustrial. Os rejeitos de alta ati-vidade, provenientes dos com-bustíveis já utilizados das usinasnucleares, são armazenados naspróprias usinas, que contam comlocal adequado para armazenartodo o volume produzido em suavida útil, até que surja soluçãodefinitiva para o problema.

Milhões de dólares vêm sen-do gastos na busca de uma so-lução – de preferência, que tor-ne o resíduo não radioativo einócuo. Em todo o mundo, osdepósitos de rejeitos radioati-vos têm que ser gerenciados eadministrados pelo país, sendocontrolados pelas respectivasagências reguladoras de ativida-des nucleares, segundo normasnacionais e internacionais, demodo a garantir a segurança dosmesmos.

Energianuclear no paísO Brasil tem um programa am-plo de uso de energia nuclear pa-ra fins pacíficos. Cerca de 3 milinstalações estão em funciona-mento, utilizando material oufontes radioativas para inúme-ras aplicações na indústria, saú-de e pesquisa. No ano passado,o número de pacientes utilizan-do radiofármacos foi superiora 2,3 milhões, em mais de 300hospitais e clínicas em todo opaís, com um crescimento anualda ordem de 10% nos últimos10 anos.

Novos ciclotrons, que permi-tem a produção de radioisótopospara o uso de técnicas nuclearesavançadas, foram instalados emSão Paulo e no Rio de Janeiro –a CNEN irá instalar, nos próxi-mos anos, ciclotrons em BeloHorizonte e Recife, para tornardisponível essa tecnologia à po-pulação dessas regiões.

byl (Ucrânia), que lançou na atmosfera grandequantidade de material radioativo.

Enquanto Three Mile Island fez com que se au-mentassem os custos das usinas nucleares em fun-cionamento – devido à exigência de investimentosadicionais nos sistemas de segurança, causandoatraso no licenciamento dos projetos em andamento–, Chernobyl aumentou a desconfiança em relaçãoàs centrais nucleares. Não foi devidamente conside-rado e divulgado, entretanto, o fato de aquela usinater projeto e dispositivos de segurança totalmentediferentes dos reatores ocidentais.

Em parte em função desses fatores, os paísesocidentais passaram algum tempo para voltar ainvestir em centrais nucleares. A exceção foi aFrança, que reafirmou sua opção pela energianuclear, tornando-se o grande exportador de ener-gia elétrica da Europa. Mesmo sem novas usinas,entretanto, a geração nuclear elétrica aumentou,graças à maior eficiência das usinas.

Nos Estados Unidos, as empresas nucleares pas-saram a modernizar suas usinas e, através da trocade alguns equipamentos, estão prorrogando a vidaútil dos reatores por até mais 20 anos. Já se subme-teram a esse processo e conseguiram aprovação 32usinas nucleares. Estão sendo analisadas mais 16, ecerca de 30 outras já manifestaram seu interessepela prorrogação. A previsão é de que, nos próxi-mos anos, cerca de 80% das usinas nucleares norte-americanas tenham sua vida útil prolongada.

Na Ásia, não houve paralisação na construçãode usinas nucleares. No Ocidente, outros paísesestão revendo sua posição. O que se observa é umagrande mudança, com vários países voltando aconsiderar a energia nuclear como opção viável,principalmente após a verificação do efeito críticodos poluentes emitidos por outras formas de gera-ção de energia elétrica. A Finlândia está começan-do a construir o que seria a primeira usina na Eu-ropa ocidental fora da França em muitos anos. ASuécia e a Suíça se recusaram a rejeitar a opçãonuclear, deixando em aberto essa possibilidade. AAlemanha e a Itália, apesar de terem feito no pas-sado uma opção por deixar de utilizar a energianuclear na geração elétrica, hoje utilizam energiade origem nuclear importada da França. A Itália,em particular, já está reavaliando a questão.

Vale ressaltar que, entre as formas de geraçãode energia, a nuclear é uma das que produzemmenor volume de rejeitos e a que tem maior cui-dado com o acondicionamento e guarda deles. Adificuldade com essas ações é que os rejeitos ra-dioativos podem durar até milhares de anos e, porisso, devem ficar isolados e protegidos.

O maior volume dos rejeitos corresponde àque-les de baixa e média atividade, que são os produ- �

1967 Brasil assina Tratadopara a Proscriçãode Armas Nuclearesna América Latinae Caribe

1968 Estabelecidopela AIEA o Tratadode Não-proliferação

1972 Assinado comos Estados Unidosacordo para aconstrução de Angra 1

1981 Autorizadofuncionamentoprovisório de Angra 1

1982 Brasil passaa produzir boloamarelo (yellow cake)

1984 Angra 1 entra emoperação comercial

1987 Brasil inicia produçãode urânio enriquecido.Acidente em Goiâniacom césio-137

1988 Inaugurado o reatorMB/01 concebido econstruído no Brasil

1991 Brasil e Argentinaassinam acordo parauso pacífico da energianuclear

1994 Entra em vigoro Tratado para aProscrição de ArmasNucleares na AméricaLatina e Caribe

1995 Brasil passa a produziro radiofármacotálio-201

2000 Início de operaçãode Angra 2

2004 Entra emoperação a usinade enriquecimentonuclear emResende (RJ)

Page 9: A energia nuclear e seus usos na sociedade

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F Í S I C A

SUGESTÕESPARA LEITURA

MARTINS, J. B. Ahistória do átomo– de Demócritoaos quarks(Ciência Moderna,Rio de Janeiro,2001).

CAULLIRAUX, H.Hiroshima 45,o grande golpe:da concepção doátomo à tragédiade Hiroshima(Lucerna,Rio de Janeiro,2005).

NA INTERNEThttp://www.cnen.

gov.br (apostilase informaçõesgerais)

http://www.iaea.org(estatísticas,história e dadoscompletos sobrea área nuclear,em inglês)

http://www.inb.gov.br(ciclo docombustível)

http://www.uic.com.au/nip22.htm(informaçõessobre o acidenteem Chernobyl,em inglês)

http://www.world-nuclear.org(informaçõessobre a áreanuclear,em inglês)

A produção de radioisótopos por reatores tam-bém tem aumentado, graças à modernização dosequipamentos e da melhoria dos métodos de pro-dução. Novas técnicas de combate ao câncer, commaior eficácia e menos efeitos colaterais, têm sur-gido, fazendo aumentar a procura pelos radiofár-macos, de forma que a demanda sempre supera aprodução brasileira.

O uso de técnicas com materiais radioativos naindústria tem aumentado com a modernização dosequipamentos importados e com a sofisticação dastécnicas de controle de processos e de qualidade.A demanda por controle de qualidade leva a indús-tria a utilizar cada vez mais os processos de aná-lise não destrutiva com radiações.

Na área de geração de energia, o Brasil é umdos poucos países do mundo a dominar todo oprocesso de fabricação de combustível para usinasnucleares. O processo de enriquecimento isotópicodo urânio por ultracentrifugação, peça estratégicadentro do chamado ciclo do combustível nuclear,é totalmente de domínio brasileiro.

Hoje, o combustível utilizado nos reatores depesquisa brasileiros pode ser totalmente produ-zido no país. Entretanto, comercialmente aindafazemos a conversão e o enriquecimento no exte-rior. As reservas brasileiras de urânio já confirma-das são de 300 mil toneladas e estão entre as seismaiores do mundo. Em termos energéticos, mesmocom apenas uma terça parte do país prospectado,essas reservas são da mesma ordem de grandezadaquelas atualmente existentes em petróleo e se-riam suficientes para manter em funcionamento

10 reatores equivalentes aos existentes – Angra 1e Angra 2 – por cerca de 100 anos. O funciona-mento dessas duas usinas foi importante no perío-do de falta de energia no Brasil.

O Ministério da Ciência e Tecnologia coorde-nou um grupo de trabalho encarregado de rever oprograma nuclear e formular planos de médioprazo. O grupo apresentou um plano realista paraser executado em 18 anos e que objetiva o forta-lecimento de todas as atividades, inclusive a aqui-sição de novos reatores para chegar em 2022 com,pelo menos, a mesma participação nuclear (4%)na matriz energética brasileira. A proposta encon-tra-se em análise na presidência da República.

A segurançaA geração de eletricidade por reatores nucleares éuma das áreas tecnológicas que mais se preocupamcom a segurança. Prova dessa segurança é que, entretodos os reatores em funcionamento, o único aci-dente com vítimas foi o de Chernobyl, onde as con-dições de segurança eram notadamente insipientes.

A segurança nuclear é constantemente aperfei-çoada, sendo fruto de um esforço internacional,com projetos e sistemas cada vez mais seguros econfiáveis, procurando reduzir as possibilidadesde falhas e acidentes com conseqüências. Os novosaperfeiçoamentos são introduzidos nos reatoresmais antigos, atualizando sempre a condição desegurança. A garantia de que as experiências e no-vas exigências sejam estendidas a todos os paísesé dada pelos acordos internacionais, geridos pelaAIEA. Outros acordos, destacando-se o Tratado deNão-proliferação (TNP), garantem um amplo con-trole que inibe a proliferação das armas nuclearese que busca a redução dos arsenais existentes.

No Brasil, esse controle é responsabilidade daCNEN, que licencia e inspeciona as instalações queutilizam material nuclear em todas as áreas, inclu-sive instalações médicas e industriais, para garantirque esse uso seja feito dentro das mais modernasnormas de segurança. Além disso, a CNEN credenciaos profissionais responsáveis pela segurança, que,por lei, devem ter um vínculo formal ou fazer partedo corpo de funcionários da instalação.

Como já mencionado, toda tecnologia carregaalgum risco, e acidentes podem acontecer, mascabe à humanidade criar condições para que asvantagens superem de forma ampla e compensa-dora os riscos existentes. Isso é o que tem sido fei-to com a energia nuclear, cada vez mais segura ecada vez mais presente e indispensável em nossocotidiano. ■

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ASAs reservas

brasileiras deurânio – 300 miltoneladas – sãosuficientes paramanter emfuncionamento10 reatoresequivalentesaos existentes(Angra 1 eAngra 2, na foto)por 100 anos