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A PROMESSA

A promessa-xi

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A PROMESSA

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XI – Um tempo novo lembrando o velho

Com a IIIª Invasão Napoleónica, muitas famílias de lugares mais

distantes esconderam-se em Loriga e onde, pagando algum dinheiro,

encontraram abrigo, apesar de tornarem as casas mais pequenas do que

já eram, possibilitando algum rendimento a quem se viu sem trabalho,

devido à guerra.

Quando o D. Mendonça Arrais chegou a Loriga, tudo estava destruído e

quase só se salvaram os santos dos altares, que não estavam na igreja

de Santa Maria Maior, desde o tempo do terramoto de 1755, que quase

deitou abaixo a igreja e da qual só sobraram as paredes laterais. Há

muito que a reconstrução da igreja de Santa Maria Maior caminhava

devagar e ao sabor das circunstâncias. Com uma vila cheia de gente

estranha e sem abrigo, os três sacerdotes ficaram na sacristia da

igreja, cerca de duas semanas. Com muitos inimigos, a visita da

Excelência Reverendíssima foi mantida em segredo. Se

politicamente, parte da Serra estava ligada à Guarda, a mesma

parte estava ligada a Coimbra, pela religião. Era sonho de

muitos ficarem politicamente ligados a Viseu, pela proximidade e

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à Guarda, pela religião. D. Mendonça Arrais e toda a família, eram

filhos da Serra da Estrela e que a conheciam melhor que as

próprias mãos. Uma nobreza antiga e humilde que trava por tu

todos os da mesma idade e que agradecia que os mesmos assim o

tratassem. Muitas foram as vezes em que D. Mendonça mandava

perguntar pela gente desta ou daquela terra e todos

correspondiam com o mesmo afecto, enviando produtos da terra,

fosse ou não o sacrifício de dar o pouco ou nada que se tinha.

Mais do que a força do corpo, que só a comida permite, o Bispo e

os seus dois braços-direitos levantaram pelas palavras e actos o

que franceses e ingleses deitaram a baixo, em Loriga. Estiveram

no erguer dos ‘cômbaros’ e levadas, nos fornos, courelas e

malhadas, ombro a ombro com o povo. Deve-se a Frei Carlos de São

José de Azevedo e Sousa o carrego de muitas das pedras da levada

que vai de Loriga à Cabeça e que para lá da beleza da paisagem e

das frutas que acompanham o trajecto, são hoje cenário de uma

bela rota turística praticada por muitos e procurada por outros

tantos. Quanto a D. Carlos da Cunha e Menezes, mais conservador

que o Bispo e Frei Carlos, mas não menos apaixonado, valente e

trabalhador, deve-se parte da forma como Loriga começou a

estrumar as terras, a criação de algumas ‘râmbulas’, que na

histórica calçada de Santa Cruz da Covilhã chamam de râmolas, a

organização clara e sem bulha do giro das águas, que tantas

vezes tinha acabado em pancadaria, e as ideias de apego forte e

isolado aos absolutistas, contra a política do futuro pároco da

vila, o padre Costa, liberal, quase vinte anos depois da marcante

e secreta visita do Bispo da Guarda e de Pinhel.

Era também com eles que a gente de Loriga terminava o dia a

cantar ou a contar histórias antigas como aquela, que ainda

hoje se conta, de um magusto de amigos junto ao cemitério cujos

risos desrespeitosos fizeram erguer as alminhas do outro mundo.

Estiveram os visitantes unidos no cuidado dos mais necessitados

e todos juntos como uma família. Pelo meio, D. Mendonça Arrais

reencontrou o afilhado Pina de Aragão e contou no último dia,

algo que marcaria o futuro daquela gente.

Disse o Bispo, à despedida, que num tempo em que os celtiberos que

viviam em castros e foram obrigados a descer a Serra e fixar-se

junto da via romana e das ribeiras, para melhor serem vigiados

pelo invasor romano, um grupo grande de escravos estrangeiros

foi fixado na Lomba do Canho. Eram homens que descendiam de

navegadores fenícios, que foram comerciantes cartagineses e que

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depois da famosa batalha de Zama, tudo teriam perdido. Segundo o

bispo, parte desses homens explorou o ouro, a cassiterite e o

volfrâmio, nas ribeiras de Loriga, de Alvoco, das Forjas, no rio

Alva, no alto do Cabrum, entre a Lapa da Lias e o Soito de

Valcova. E, um dia, depois de os Lusitanos terem sido derrotados

pelos romanos na ilha de Peniche, todos conseguiram fugir pela

Serra acima. Aí, tomando suas algumas mulheres dos Lusitanos,

foram constituindo família e dedicando-se ao comércio, pois pouco

mais sabiam do que vender ou guerrear. O próprio Bispo disse

descender de tal gente e mostrou um escaravelho egípcio enfiado

num fio de ouro e ao lado da cruz, como prova suficiente de tal.

As pessoas nem disseram que sim, nem que não.

A história teria ficado por aí se Sebastião no meio de várias

pessoas, não tivesse assegurado, de forma bem sonora e audível,

que o Jaime da ‘Alfredina’ e o Joaquim da Maria do Carmo

‘Calhandrona’ tinham uns ‘bichos’ iguais ao pescoço. A gente riu,

até que Sebastião abriu a camisa e mostrou o peito. Também ele

tinha um fio de ouro amarelo que fora do falecido pai, onde uma

cruz de Cristo e um escaravelho egípcio, em pedra sabão, se

seguravam.

O povo calou-se e sossegou, mas ninguém dormiu bem naquela

noite. No dia seguinte, já o Bispo estava em Melo, mas ainda a

conversa não saíra do adro e da praça de Loriga. Sebastião

começou a ser tratado com mais respeito e também ele, tentou

saber mais sobre os mercadores da Serra da Estrela. Explorou

sozinho e para o resto da vida, locais como as penhas do Gato e

dos Abutres, a Canada, a Cama da Moura, o Talegre, a Lapa das

Naves, o ribeiro do Fuso, a vinha do Negas, o Covão da Areia e

tantos outros locais. Buscava achar algo sobre umas origens

fabulosas e místicas ou achar algo do pai que nunca conhecera

nem lembrava.

Quando via um mercador, pedia-lhe para ver o pescoço e em muitos

encontrou ao pescoço um escaravelho igual ao seu, preso em

cordão de oiro, num baraço ou fio de couro. Nenhum sabia

explicar o porquê, mas todos tinham recebido o mesmo de seus

pais e avós. Aquele mistério permaneceu toda a vida, mas deu-lhe

força até à morte.

A destruição de Coimbra não foi culpa inteira dos franceses. O

exército aliado vencera a batalha do Buçaco no dia 27 de

Setembro de 1810, e até em Coimbra comemorou-se efusivamente, no

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entanto e como escreveu Maria Antónia Lopes, “Mas Wellington

decidiu rumar a Lisboa, abandonando aquela cidade, onde só na

madrugada do dia 29 de Setembro se percebeu que o exército

inimigo se encontrava às suas portas. Foi ordenada a total

evacuação da urbe e a destruição de tudo o que não pudesse ser

transportado. Em pânico, pobres e ricos, padres e freiras, velhos

e novos, fugiram em direcção a Lisboa e ao porto da Figueira da

Foz ou embrenharam-se por matos e pinhais, mas muitos foram

capturados e violentados na estrada real. Outros,

impossibilitados de caminhar por doença ou velhice ou

esperançados na clemência do invasor, permaneceram e sofreram

as consequências. Igrejas, conventos, colégios, recolhimentos,

câmara municipal, seminário, misericórdia, lojas, casas

particulares... tudo foi saqueado.” E acrescenta, “Só a

Universidade escapou parcialmente, protegida pelos cuidados dos

oficiais portugueses que integravam as tropas invasoras. As

residências das populações humildes também não foram poupadas.

Quando regressaram não possuíam uma peça de mobiliário ou um

fato com que se cobrissem.”

Também por aqueles dias, José Benedito fugira da casa de família

no Ribatejo. Entrou depois em Coimbra a pé, deixando dois cavalos

escondidos, nos arredores da cidade. Procurando ali e acolá,

encontrou a Conservatória do Registo Civil, que funcionava na

Universidade. Lá, queixou-se de que os ingleses lhe pediam a

identificação a torto e a direito; não a tendo, pois nunca fora

registado, afirmava. No local, trataram do Assento e o mesmo

adoptou pela primeira vez o único apelido que sabia do pai e

inventou um apelido para a mãe, tendo apagado para sempre

‘Benedito’ e ‘Veiga’. Tinha agora uma segunda vida e esperava de

vez apagar a primeira, que tanta dor lhe ocupava o pensamento.

Dos Veiga, restava apenas o ferro de marcar o gado com que

queimara o peito quando abandonou tudo.

Muitos dos franceses vestiam agora a roupa de muitas das suas

vítimas, pois as suas fardas ficaram a cobrir espantalhos, com

que enganaram o exército aliado, na fuga da linha de Torres

Vedras. Ao sair de Coimbra, José seguiu pelo caminho de retirada

dos franceses e depois de Arganil, tentou encontrar a aldeia de

Cabeça, pois apenas sabia a origem do pai e nada mais. No

caminho, parou por momentos, junto a Coja e lá foi surpreendido

por outro miúdo que lhe roubou um dos dois cavalos que levava.

Galopou e persegui-o, mas o larápio, pouco habituado ao animal,

malhou e acabou por fugir a pé e tombar na Cascata da Fraga da

Pena, no caminho do Piodão, em terras de Benfeita. José não

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desistiu e atirou-se também à água. Estava pronto a dar uns

muros no atrevido. Deu, no entretanto, com o miúdo, da mesma idade

que a sua, desmaiado e cheio de sangue. Galgou a margem com o

ferido nos braços e procurou ajuda. Depois de muito procurar e de

gritar, lá apareceu um agricultor que o levou a um curandeiro,

dos muitos que sempre existiram pelo Alva. Foi aliás, a um desses

muitos curandeiros a quem um dia, mais de cem anos depois, já

depois da segunda metade do Século XX, o lendário e sorridente

Dr. Fernando Vale levou o seu amigo e escritor Miguel Torga,

quando no pescoço deste apareceu uma coisa ruim. E lá se safou o

médico e escritor transmontano, tendo durado muitos mais anos,

depois da maleita.

O curandeiro deu pouca esperança, mas José só abandonou o local

após cinco dias, quando o bandido parecia quase recuperado. Com

o atrevimento ou percalço, ficou sem um dos cavalos e o outro

manifestava muito cansaço. O malandro era orgulhoso, teimoso e

avesso aos tratamentos do curandeiro mas, no final, agradeceu ao

José o facto de ele o ter socorrido. Disse-lhe mesmo que se algum

dia precisasse de ajuda que afirmasse ser amigo de “Vaz Patto”.

José sorriu e não ligou, mas alegrou-se por terem reconhecido o

bem que tinha feito. Era tão raro o seu sorriso, desde a morte do

avô, que até achou estranho sorrir.

Quando chegou à aldeia de Cabeça, José tentou saber mais sobre o

pai e quando se atreveu a dizer de quem era filho, os olhos das

pessoas ou se tornaram reprovadores ou miravam-no como mais um

infeliz.

Constava na terra, que o homem que procurava como pai e que

violara a mãe, tinha fugido de várias terras, de onde roubara

pertences ou tirara a virtude a muitas raparigas. O resto da

família abandonara a terra com vergonha e apenas havia uma

casa abandonada, que José fez sua e que a ninguém preocupou.

Depois, quando pela primeira vez visitou Loriga, o cavalo e a

forma como bem montava fê-lo notar e logo o Senhor Manuel Luís o

quis contratar como moço de mulas. Sem quase nada para comer,

José aceitou e nesse dia passou a ser o ‘Zé da Cabeça’.

Dias depois, pela noite, o cavalo foi roubado. O barulho acordou-o

e quando foi ver, apenas sentiu uma dor valente na testa. Como

acordou todo dolorido e sem cavalo, teve que passar a andar a pé.

Por isso, também foi gozado por uns tantos fulanos da aldeia, que

lhe invejavam os modos finos. Viu-se mesmo aflito com falta de

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dinheiro e valeram-lhe a fruta gamada que ladeia a levada, a

bondade do Senhor Manuel Luís que lhe adiantou uns trocos e o

dono do lagar da Cabeça, que lhe deu algum azeite para molhar a

broa de milho de Loriga. Longe ia o tempo do carinho do avô e dos

lençóis de cetim. Agora, até a broa de milho era amarela, pois a

branca estava limitada a quem tivesse mais dinheiro. Logo ele,

que nunca comera pão que não fosse trigo bem moído e clarinho.

Por outro lado, se os franceses matavam e os ingleses destruíam

o que restava, não se devem confundir os exércitos ou o poder do

Estado com o povo.

Na Grã-Bretanha, nessa altura, arrecadaram-se grandes somas de

dinheiro para as vítimas portuguesas da Guerra Peninsular.

Mesmo os mais pobres de Inglaterra juntavam dinheiro para

ajudar Portugal, de onde vinham relatos de horrores e

atrocidades praticadas por franceses. Se o poder e o exército

britânico sonhavam converter Portugal a uma colónia, o povo da

Grã-Bretanha via Portugal como o mais fiel e amigo dos aliados.

Foi, aliás constituída uma comissão central em Lisboa, a “Junta

dos Socorros da Subscrição Britânica”, que encarregou os bispos

da distribuição dos donativos que configurou um caso

absolutamente único, exemplar e histórico na política

assistencial portuguesa, servindo de exemplo para a criação

futura e helvética da Cruz Vermelha Internacional, mais de cem

anos depois. Ainda hoje, o Arquivo da Universidade de Coimbra

guarda algumas centenas de petições de vítimas suplicando o

auxílio. Eram dadas roupas, distribuído dinheiro e alguns

alimentos. Em 1814, segundo Maria Antónia Lopes e citando o

Arquivo da Misericórdia de Coimbra, as saias de baeta custavam

cerca de 2.200 réis, um cobertor 2.400, um capote 3.150, o enxoval

necessário para uma rapariga entrar como criada para o

mosteiro do Lorvão, 18.685 réis. Como o ordenado de uma criada de

servir não ia além dos 3.000 réis por ano, já contando com o que

não pagavam no alojamento e na alimentação em casa dos patrões,

os donativos provenientes do subsídio britânico, embora muito

longe de colmatar as carências dos peticionários, foram uma

ajuda não desprezível e preciosa. Foi essa ajuda que contribuiu

para que as pessoas voltassem a olhar com bons olhos os

ingleses e eles fossem bem recebidos em Loriga, quando uma

pequena colónia lá se instalou, nos meados do Século XIX.

Inicialmente, este pequeno grupo chegou para vender teares e

depois dedicou-se a explorar volfrâmio, no Sorgaçal e no alto do

Cabrum, talvez por culpa das muitas lendas contam na região,

como a do sino de ouro, o bezerro de ouro, o pote de ouro, os figos

de ouro e do moinho que moía ouro, entre outras histórias.

O alto do Cabrum e a Selada, estão para Loriga e Alvoco da Serra,

como Olivença está para Espanha e Portugal, desde a Guerra das

Laranjas. Se Olivença parece um caso perdido, julgo que o Cabrum

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e a Selada nunca deixarão de ser questões controvertidas e

desavindas entre Loriga e Alvoco da Serra. Mas verdade se diga,

que tanto uma como a outra localidade, como em tudo na vida, só

ganharam e cresceram enquanto se deram bem. Loriga não deve

esquecer o papel do 1º Barão de Alvoco na sua luta constante por

uma estrada que só surgiria nos anos vinte do século XX e a

carreira da Rodoviária Nacional, luta e vitória do

reverendíssimo padre Jaime, nos finais do mesmo século. Hoje,

tempo em que as novidades tecnológicas tornam-se obsoletas em

menos de meia dúzia de anos, parece inacreditável que a ligação

por alcatrão entre Loriga e Alvoco da Serra tenha demorado

tantos anos, porque a mesma estrada que chegou a Loriga em 1918

só chegaria a Alvoco da Serra em 1937. Uma légua e meia de

alcatrão demorou quase vinte anos a ser espalhada pelo chão. É

obra!

No entanto e como eu escrevi, para não fugir ao assunto, a ajuda

britânica após a IIIª Invasão Francesa foi sem dúvida uma ajuda

superior, marcante e mais impressionante do que a que existiu

após a IIª Grande Guerra, do Século XX e que ainda hoje perdura

na memória de muitos portugueses.

Também por essa altura, os gémeos e o sobrinho de D. Mendonça

Arrais, Luís, já se tinham transformado em espiões sobre a

orientação do amigo Francisco Gomes da Silva, o ‘Chalaça’, agora

protegido de D. João e amigo de D. Pedro de Alcântara e várias

vezes desembarcado no Porto, onde o pai de Luís, cavaleiro da

Ordem de Cristo, era também Juiz Desembargador da Relação. Os

três amigos, sempre que chegavam à cidade Invicta tinham por

hábito rezar um Padre-Nosso e três Avé-Marias na antiga capela

da Nossa Senhora da Piedade ou do Cais, que depois de 1821,

passou a ser conhecida por capela da Nossa Senhora do Ó, por ter

sido transferida para lá a imagem da Santíssima.