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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ Luís Fernando Nascimento A [RE]CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE INDÍGENA PELA LITERATURA: Munduruku e o diálogo com a Tradição Taubaté – SP 2010

A [re]construção da identidade indígena pela literatura

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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ

Luís Fernando Nascimento

A [RE]CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE INDÍGENA

PELA LITERATURA:

Munduruku e o diálogo com a Tradição

Taubaté – SP

2010

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Luís Fernando Nascimento

A [RE]CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE INDÍGENA

PELA LITERATURA:

Munduruku e o diálogo com a Tradição

Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação apresentado ao Departamento de Ciências Sociais e Letras da Universidade de Taubaté, como parte dos requisitos para colação de grau no curso de Letras.

Orientadora: Professora Mestre Isabelita Maria Crosariol.

UNITAU

Departamento de Ciências Socia is e Letras

Taubaté – SP

2010

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N244r Nascimento, Luís Fernando

A [re] construção da identidade indígena

pela Literatura: Munduruku e o diálogo com a

Tradição./Luís Fernando Nascimento. - 2010.

51f.

Monografia (graduação) - Universidade de Taubaté,

Departamento de Ciências Sociais e Letras, 2010.

Orientação: Profª Ms. Isabelita Maria Crosariol

Departamento de Ciências Sociais e Letras.

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Luís Fernando Nascimento

A [RE]CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE INDÍGENA PELA LITERATURA:

Munduruku e o diálogo com a Tradição

Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação apresentado ao Departamento de Ciências Sociais e Letras da Universidade de Taubaté, como parte dos requisitos para colação de grau no curso de Letras.

Data:____________________

Resultado: ________________

BANCA EXAMINADORA

Professora Mestre Isabelita Maria Crosariol (orientadora)

_________________________________________________________

Professor Mestre Luzimar Goulart Gouvêa

__________________________________________________________

Professora Mestre Rachel Duarte Abdala

__________________________________________________________

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A todos aqueles que se deixam penetrar por

diálogos multiculturais.

A Adriana de Oliveira Alves Corrêa e tantos

outros que trilharão os caminhos da literatura

indígena.

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AGRADECIMENTOS

A Jesus e Maria, por simplesmente amar.

Ao meu pai, Wanderley Rodrigues do Nascimento, e minha mãe, Marilva Silva do Nascimento,

pelo apoio, conselhos e muitos “puxões de orelha”.

A Lívia Maira do Nascimento Oliveira, minha irmã, e Dione Figueiredo B. de Souza, minha

professora de Literatura no Ensino Médio, por serem o impulso que precisava para ingressar

nesse curso.

À minha segunda família, Geração Adoradora, por me entenderem nas muitas vezes que me

ausentei para prosseguir em minha carreira acadêmica, também pelo apoio incondicional.

A todos do Colégio O Mensageiro, pelo apoio e paciência em tantos momentos difíceis que

passei durante o curso.

A William Toledo Ferreira, pela recomendação de sua monografia e outras leituras.

À Profª. Ms. Rachel Duarte Abdala, pela valiosa sugestão de leitura e por aceitar tão

gentilmente participar de minha banca.

À Profª. Drª. Eveline Mattos Tápias Oliveira, Profª. Drª. Vera Lúcia Batalha de Siqueira Renda,

Profª. Ms. Luciete Valota Fernandes e Profª. Ms. Ana Beatriz Rodrigues Pelógia, que também

se destacaram entre todos os outros professores que tive durante o curso.

A todos os colegas e amigos do DCSL, em especial à terceira família que conquistei durante

esses 4 anos:

- Janaína de Fátima Melo, pelo apoio, carinho, e por ser minha amiga desde o início;

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- Renata Janaína de Carvalho Brunelli, por se emocionar ao me ver evoluir no curso, e torcer

por meu sucesso;

- Germano Sene dos Santos, meu grande irmão, presente em (causa até de) muitos momentos de

alegria que tive neste curso. Germanorum scintilat!

- Adriana Prezoto dos Santos (Gata Seca), minha grande irmã conquistada durante o curso, que

suportou, entendeu, deu apoio e aconselhou em tantos momentos de alegria e dor, em especial

por suportar minha aflição durante a entrega dos documentos necessários para a conclusão do

Estágio Curricular Supervisionado I. Valeu Dri!

- Isabelita Maria Crosariol, minha orientadora. Obrigado pela sugestão desse tema tão

instigante, pela excelente orientação e, sobretudo, pela confiança e amizade. Bastou um ano, e

você se tornou minha inesquecível grande amiga! Valeu Isa!

– Profª. Ms. Teresinha de Jesus Cardoso e Cunha, por acreditar em mim desde o início e por

dizer: “Esse menino cresceu”! Muito obrigado, magistra amata!

– Cláudia Roberta Ribeiro da Silva, por ser seu orgulho e filho adotivo;

e

– Luzimar Goulart Gouvêa, o “gran-mestre” das aulas de Literatura que tive durante esses 4

anos, pelo apoio, afeto, orientações. Exemplo de professor, exemplo de pessoa. Valeu Paizão!

A todos vocês da minha terceira família, o meu muito obrigado! Todos foram fulcrais para que

eu alcançasse o fim de minha primeira monografia, marco de um novo tempo pra mim.

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“Você vai me dizer: o índio está falando, mas é

selvagem. Selvagem é você, milhões de anos

estudando e nunca aprendeu a ser civilizado.

Para que você está estudando? Para destruir a

natureza e no fim destruir a própria vida?”

José Luiz Xavantes

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RESUMO

Nesta monografia discute-se a representação do índio na literatura brasileira, de modo a ressaltar

a importância da perspectiva indígena, em meio a tantas outras expressões nas quais a imagem

do índio se faz presente. Para isso, foram analisados três textos indigenistas, ou seja, textos nos

quais a imagem do índio é concebida a partir de uma perspectiva branca, a fim de verificar se

realmente as imagens que eles apresentam são fiéis à cultura indígena, e qual é a

intencionalidade sugerida nessas criações imagéticas. Após essas análises, procurou-se destacar

a literatura indígena, ressaltando que, nessa literatura, é o índio que fala de si mesmo, e não o

branco que constrói sua imagem. Por fim, analisou-se o livro Sinal do Pajé, de Daniel

Munduruku, com a intenção de nele perceber qual é o compromisso estabelecido com a cultura

indígena, e de que forma o autor desconstrói as imagens feitas pelas literaturas indigenistas.

Percebeu-se, enfim, a referência não só a sua cultura, como também o convite a um diálogo

multicultural. Concluiu-se, desse modo, que a literatura indígena é importante por apresentar a

cultura indígena, segundo o olhar de um de seus membros, e por ressaltar questões fulcrais

como tolerância, respeito e diálogo entre as culturas.

Palavras-chave: índio, indigenismo, literatura indígena, multiculturalismo, Daniel Munduruku.

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ABSTRACT

In this monograph the representations of the Indians in Brazilian literature are discussed, in a

way to emphasize the importance of the Indian perspective, amid many other expressions in

which the Indian image is. For this, three indigenist texts were analyzed, in other words, texts in

which the image of the Indian is conceived from a white man perspective in order to verify if

the image they present is really faithful to the Indian culture, and what intentionality is

suggested in these imagistic creations. After such analysis, the Indian literature was suggested to

be highlighted, emphasizing that, in this literature, the Indian is the one who tells about himself,

not the white man. Finally, the book Sinal do Pajé, written by Daniel Munduruku, was analyzed

with the intention of noticing the engagement established with the Indian culture and how the

author deconstructs the image created by the indigenist texts. Finally, not only the reference to

such culture was realized, but also the calling to a multicultural dialogue. It was concluded,

thereby, that the Indian literature is important for presenting the Indian culture, through the eyes

of one of its members, and for emphasizing key issues as tolerance, respect and dialogue among

cultures.

Keywords: Indian, indigenism, Indian literature, multiculturalism, Daniel Munduruku

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SUMÁRIO

Introdução................................................................................................................... 12

Capítulo 1 – O “selvagem” de Carta.......................................................................... 14

Capítulo 2 – Iracema e a miscigenação...................................................................... 21

Capítulo 3 – O índio “herói” em Macunaíma............................................................. 30

Capítulo 4 – Por que Literatura Indígena?.................................................................. 39

Capítulo 5 – Sinal do Pajé e o compromisso com a Tradição.................................... 45

Considerações finais................................................................................................... 55

Referências.................................................................................................................. 57

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INTRODUÇÃO

Esta monografia tem por objetivo perceber a diferença da abordagem do índio e

de sua cultura nos textos indigenistas, ou seja, de apresentação do índio pelo branco, e

na literatura indígena, em que o próprio índio fala sobre si mesmo e sua cultura, de

modo a ressaltar a visão desse índio, uma vez que, imerso em sua cultura, apresenta

outra visão da mesma.

O índio, desde o “descobrimento”, vem sendo visto por muitos como o

“selvagem” e “atrasado”, o que incide no tratamento dado a ele por tantos anos, que

implicou a supressão de sua língua, de sua cultura e, até mesmo, a morte dos índios que

contrariavam o ideal de ensino branco que supostamente os tiraria do “atraso

ideológico”. Essa abordagem é fruto não só daqueles primeiros textos de informação,

nos quais se pretendia analisar a terra “recém-descoberta” para descobrir se a terra era

habitável, se havia nativos e quem eram. De fato, essa análise é superficial e, portanto,

imperfeita, o que implica em certos equívocos, sobretudo quando se trata do autóctone

da terra “descoberta”.

Entretanto, já no século XVI, com o texto, por exemplo, do chefe Mamboré-

uaçu, em que o mesmo conta o que viu com seus olhos, história de promessas e

desencantos, e, sobretudo, no início do século XXI, em que se promulgou a lei

11.645/2008, que obriga os bancos escolares a tratar da História e Cultura indígenas, há

a necessidade de os próprios índios se valerem da língua que aprenderam, a portuguesa,

para apresentar aos brancos outra visão de si mesmos e de sua cultura, de forma que os

brancos os valorizem e entendam que nos autóctones não há atraso ou selvageria, mas

outra cultura diversa e que, descontextualizada, gera o estranhamento e o conflito.

Para tanto, esse trabalho, tendo como pergunta de pesquisa “Por que Literatura

Indígena?”, analisa não só os textos indigenistas, de forma a perceber a construção, em

diferentes momentos da história, da imagem e da cultura do nativo, notando os acertos e

incongruências, como também a literatura indígena, percebendo se há valorização de

fato da cultura e da identidade do índio.

Assim, no primeiro capítulo, “O selvagem de Carta”, analisa-se o texto gênese

de toda a construção da imagem do índio pelo branco, Carta, de Pero Vaz de Caminha,

percebendo algumas características da colonização na descrição do nativo e dos traços

de sua cultura percebidos pelo viajante, e, desse modo, no que essa abordagem

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justificou a história de massacre e silenciamento que assolou por tantos anos os povos

indígenas.

Dando um “salto” significativo na história, o segundo capítulo, “Iracema e a

miscigenação”, analisa uma das obras mais significativas da construção da imagem

indígena, tido, muitas vezes, por enaltecida, no romance Iracema, de José de Alencar.

Esse romance foi selecionado para análise, pois, além do indígena “enaltecido”, há, pela

primeira vez, a intenção da construção da imagem do índio como imagem da nação.

Partindo de considerações sobre o momento de produção de Alencar, o Romantismo,

avalia-se o enaltecimento do indígena no romance, se essa exaltação partiu de

experiências – se aconteceram – do autor com os índios e sua cultura, ou de

características enaltecedoras advindas da cultura europeia, e qual é a intenção nesse

enaltecimento, percebendo também o papel da cultura europeia no romance.

No terceiro capítulo, “O índio ‘herói’ em Macunaíma”, baseando-se, assim

como se fez na análise de Iracema, em considerações sobre o contexto de produção de

Mário de Andrade, analisa-se, pode-se dizer, a única obra literária pós-romântica a tratar

novamente o índio como personagem principal, o romance-rapsódia Macunaíma, com o

foco na construção da imagem do índio, percebendo também a busca de Mário pela

“brasilidade”, ou seja, a imagem da nação, desligando-se do enaltecimento estabelecido

no Romantismo e, sobretudo, no Parnasianismo.

No quarto capítulo, “Por que Literatura Indígena?”, estabelece-se um cotejo

entre as literaturas indígenistas analisadas nos capítulos anteriores, explicando o porquê

de somente existir literatura indígena quando o índio a fizer, apresentando também

características relevantes de sua cultura, e a importância da literatura do autóctone para

estabelecer o diálogo entre sua cultura e as outras, em especial com a cultura do branco.

No quinto capítulo, “Sinal do Pajé e o compromisso com a Tradição”, analisa-se

a abordagem do índio e de sua cultura em Sinal do Pajé, um dos livros infanto-juvenis

do escritor indígena Daniel Munduruku, percebendo qual é a inovação presente nessa

abordagem, e como Munduruku lida com questões tão pertinentes como tolerância,

respeito e diálogo entre as culturas dentro de seu livro.

Espera-se que este trabalho seja de grande valia para o leitor, especialmente para

os futuros professores que desejam incutir em seu alunos o respeito e o diálogo com

outras culturas.

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1 O “SELVAGEM” DE CARTA

Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência, a vossa! (Cecília Meireles)

Para começar este estudo, é importante ressaltar que, segundo a visão de Bosi

(1999, p. 13), a literatura produzida na época do “descobrimento” é definida como

“textos de informação”, porque os textos produzidos naquele período, incluindo de seu

autor mais relevante, Caminha, tinham cunho de relatório primário da nova terra. Para

Bosi, nesses textos, “a Colônia é, de início, o objeto de uma cultura, o ‘outro’ em

relação à metrópole” (1999, p. 11). Portanto, ainda não se via a terra achada como

nação, mas como terra a ser conquistada, porque colônia, de modo que os textos de

informação trazem considerações sobre a terra recém-descoberta para Portugal.

Entretanto, é importante que se analisem os textos de informação, mesmo que

não seja como palavra-arte, mas “como reflexo da visão de mundo e da linguagem que

nos legaram os primeiros observadores do país” (BOSI, 1999, p. 13). Para que se

compreenda as imagens posteriores do índio1, é preciso que se analise suas primeiras

imagens, presentes nos textos de informação. Mais precisamente, Caminha, sendo,

segundo William Toledo Ferreira (1996, p. 9), o iniciador da pré-historiografia

brasileira, traz, em Carta, documento destinado a D. Manuel, rei de Portugal, essas

primeiras imagens (BOSI, 1999, p. 13). Pode-se partir, então, para a análise dessas

imagens sobre o autóctone.

Em um primeiro momento, após terem atracado as embarcações, Caminha relata

as primeiras características do homem habitante da terra: “pardos, todos nus, sem

nenhuma roupa que lhes cobrisse suas vergonhas” (apud VOGT e LEMOS, 1982, p.

12). Bosi afirma ser essa abordagem ingênua “no sentido de um realismo sem pregas”

(1999, p. 14), o que indica que, para os colonizadores portugueses, mesmo que lhes

fosse peculiar alguma característica do habitante da terra achada, ela deveria ser exposta

dentro dos textos para que se tivesse o máximo de impressões possível da terra a ser

colonizada. Do ponto de vista da análise contextual, é importante salientar também que 1O termo índio, para Brás de Oliveira França (1999 apud VIEIRA, 2006, p. 42-45), do povo Baré, assim como para muitos habitantes de outras tribos, representa toda a história de massacre dos europeus à sua história, ao seu povo, à sua cultura e sua língua. De fato, há muitas outras questões problemáticas que envolvem esse termo, e algumas serão expostas no quarto capítulo. Resta saber que a palavra índio será usada neste trabalho de forma meramente didática, para fácil identificação e acesso.

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a exposição das características da cor da pele, e, principalmente da nudez dos índios,

como elucidam Luciene Costa e Tânia Faria (2007, p. 40-42), se faz em contraste com o

modus vivendi, ou seja, o habitual dos colonizadores, acostumados, por exemplo, a

tantas roupas, por causa de seu clima frio, sua cor da pele, branca, e a sua religião, o

cristianismo (mais especificamente, o catolicismo).

Isso justifica, de certa forma, a ênfase que Caminha apresenta na falta de

vestimenta dos índios e o fato de ele afirmar que “a inocência desta gente é tal que a de

Adão não seria maior quanto à vergonha” (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 23):

A feição deles é serem pardos, quase avermelhados, de rostos regulares e narizes bem feitos; andam nus sem nenhuma cobertura; nem se importam de cobrir nenhuma coisa, nem de mostrar suas vergonhas. E sobre isto são tão inocentes, como em mostrar o rosto. (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 13)

Caminha ainda traz outras características do índio encontrado, de forma a traçar

bem a imagem do mesmo para o leitor, ressaltando o que o incomoda:

Traziam, ambos, os beiços de baixo furados e, cada um, metido neles ossos de osso mesmo, brancos, medindo uma mão travessa e da grossura de um fuso de algodão e agudo na ponta, como furador. (...) E de tal maneira o trazem ali encaixado que os não magoa, nem estorva a fala, nem o comer ou o beber. (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 13, grifo nosso)

Há outro fragmento dessa carta que também é importante destacar, pois se trata

de um dos pontos mais conhecidos, quando o índio mostra, segundo Caminha, onde se

encontra o ouro na terra:

O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, com uma alcatifa aos pés, por estrado, e bem vestido com um colar de ouro muito grande ao pescoço. (...) Um deles viu o colar do Capitão e começou a acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como a dizer-nos que havia ouro em terra. (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 14)

Sobre esse ponto, Costa e Faria (2007) comentam que, visto a filosofia cultural

europeia embutida em Caminha, como a Europa carecia de metais preciosos, exigência

de sua atividade comercial, o cronista ressaltou a curiosidade diante do colar, da mesma

forma que a falta de vestimenta nos índios.

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Retomando a análise da inocência dos índios relatada em Carta, há um momento

em que o capitão das naus “mandou dar, a cada um, camisas novas e também carapuças

vermelhas e dois rosários de contas brancas de osso” (apud VOGT e LEMOS, 1982, p.

14). Nesse ponto, percebem-se os primeiros traços de colonização que os europeus

desejavam para a terra. Mais do que começar pela exploração da natureza em busca das

riquezas das Índias Ocidentais (como era conhecido o continente americano no século

XVI), o colonizador tem, pela sua visão de mundo, de certa forma, o dever de fazer o

que ele considerava certo para começar uma convivência com o habitante encontrado.

Bosi também compreende alguns dos aspectos da colonização como reafirmação da

própria cultura, ou seja, usando os termos de Carl Siger, uma “válvula de segurança” da

cultura europeia (apud BOSI, 2006, p. 22).

É importante, aqui, destacar a noção da ambivalência no discurso colonial,

segundo a qual os elementos da cultura do nativo, como usar adereços diferentes e andar

nus, “que não precisam de prova, não pudessem na verdade ser provados jamais no

discurso” (BHABHA, 1998, p. 105). Ou seja, enquanto o colonizador percebe essas

características e as relata, no mesmo momento ele as rejeita e tenta as modificar,

segundo sua cultura, demonstrando, nos dizeres de Bhabha, uma postura narcisista.

Ainda segundo o teórico, a força da ambivalência garante, ao discurso colonial,

[...] sua repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes; embasa suas estratégias de individualização e marginalização; produz aquele efeito de verdade probabilística e predictabilidade que [...] deve estar sempre em excesso do que pode ser provado empiricamente ou explicado logicamente. (1998, p. 106, grifo nosso)

Assim, ao ressaltar, a cada nova descrição, aquilo que, no nativo, estranha ao

europeu, garante-se a fixação do estereótipo, principal estratégia discursiva da fixidez do

discurso colonial, que “conota rigidez e ordem imutável como também desordem,

degeneração e repetição demoníaca” (1998, p. 105). Contudo, muito além do ressaltar a

diferença, é preciso que se “amanse” a característica conquistadora do discurso colonial,

uma vez que, detectada a diferença, é necessária a reafirmação da própria cultura.

Dessa forma, “em 1556, quando já se difundia na Europa cristã a leyenda negra

da colonização ibérica, decreta-se na Espanha a proibição oficial do uso das palavras

conquista e conquistadores, que são substituídas por descubrimiento e pobladores, isto

é, colonos” (BOSI, 2006, p. 12). Entendendo a gênese de colonizador, isto é, aquele que

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“toma conta de” (BOSI, 2006, p. 12), essa palavra, de certa forma, “amansa” o

verdadeiro intuito da ida das naus até a nova terra: a conquista, que tem conotação mais

agressiva, pois, como já foi dito, eles não se viam como conquistadores, muito menos

como exterminadores de uma cultura, mas como colonizadores, ou seja, aqueles que

cuidam, que têm a cultivar, nos nativos que encontram, algo “bom”.

É importante notar que os colonizadores não reconheciam nos índios alguma

cultura relevante, já que os julgavam “inocentes” e “receptivos”, ao mesmo tempo que

“selvagens” e “aqueles que precisam de salvação”:

Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, a qual, praza a Nosso Senhor que os traga porque, na verdade, esta gente é boa e de bela simplicidade. (...) E Ele nos por aqui trouxe, creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E praza a Deus, que com pouco trabalho seja assim! (apud VOGT e LEMOS, 1982, p.21, grifos nossos)

Sobre esse trecho, ressalta-se que os degredados, ou seja, os prisioneiros

políticos de Portugal, são tratados também como missionários da “santa fé”, uma vez

que, segundo o que foi relatado por Caminha, a sua permanência na “nova terra” fará

cristãos os nativos, uma vez qualificados bons e de bela simplicidade.

Indo além, pode-se afirmar que há no discurso colonial também o fetiche, no

sentido de que há no discurso colonial a necessidade de provar toda e qualquer atitude

que, até então, se repudiaria na cultura do colonizador (nesse caso, o que se recusaria

entre os europeus). Então, uma vez que a ambivalência do discurso colonial permite

que, usando da “cópula é” (SAID apud BHABHA, 1998, p. 112), se considere o índio

como ainda selvagem, o fetiche permite que se use de toda prática, como a violência

corporal e sexual, refutável entre os europeus, porém aceitável para com os nativos, uma

vez que necessitam da mão do branco para se purificar. Dessa forma, “estava decretado

o genocídio, o etnocídio, os massacres e as operações dirigidos àqueles que passaram a

ser chamados de índios” (FRANÇA apud VIEIRA, 2006, p. 42).

Retomando na análise do trecho citado, sobretudo, percebe-se que Caminha

apresenta grande desejo de acrescentar à dita gente boa a fé católica, uma vez que

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explicita claramente, como já foi dito, a visão missionária que os europeus têm sobre si

mesmos, já que não foi sem causa que o Senhor os trouxe até a terra dos índios. A visão

missionária dos europeus é que, fulcralmente, vai outorgar todo tipo de prática de

conquista, vista para eles como colonização, cultivo, algo que seria necessário para que

os nativos aderissem à santa fé católica.

Para refletir um pouco mais sobre o papel da fé no discurso colonial, se faz

fulcral analisar a percepção do europeu da atitude indígena frente ao ritual religioso

católico relatado por Caminha. Segundo Eneida Leal Cunha, é a cena da primeira missa

“que põe em cena todos os elementos instituintes da história colonial” (2006, p. 121),

uma vez que é, para ela, “a estampa originária da dependência” (2006, p. 122).

E, chantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção. (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 22, grifos nossos)

Esse trecho traz claramente o índio (eles) e o europeu (nós) na forma de

comparação, que é metonímica, porque os separa (eles como nós), e é metafórica, pois

reafirma a cultura europeia (“E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos,

eles se puseram assim como nós) (BHABHA, 1998, p. 122), o que levanta uma outra

questão: a da fantasia, uma vez que se instaura a esperança e necessidade de que o índio

assimile a cultura e religião branca, e instaura todos como inocentes e bons.

Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto [...], não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, a qual, praza a Nosso Senhor que os traga porque, na verdade, esta gente é boa e de bela simplicidade (apud VOGT e LEMOS, 1982, p.21)

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Assim, o papel da religião é claramente levantar essa fantasia, para que se

estabeleça uma noção geral do nativo, segundo a cultura europeia, para que assim se

reafirme essa cultura e mostre a cultura do autóctone como passiva.

As representações plásticas da “Primeira Missa” [...] recortam a imagem congelada dos índios: pacíficos, atentos, reverentes, integrados e submetidos ao fascínio do ritual civilizado, os olhares convergidos para o centro, para a cruz sob a qual estão o altar e o celebrante. (CUNHA, 2006, p. 122)

Dessa forma, mais do que o relato pré-historiográfico e construção da imagem

dos povos achados, a intenção de Caminha em dar suas primeiras impressões ao rei de

Portugal tinha o intuito de descobrir o que precisava ser mudado e o que neles era útil

ao colonizador, no sentido de descobrir quais características eram interessantes para

ressaltar a diferença.

Para Bhabha, “é a visibilidade dessa separação que, ao negar ao colonizado a

capacidade de se autogovernar, a independência, os modos de civilidade ocidentais,

confere autoridade à versão e missão oficiais do poder colonial” (1998, p. 127).

Portanto, esse discurso, além de deixar bem clara a posição de degredados e imitadores,

permite, como já dito, ao europeu, quaisquer atitudes civilizatórias necessárias para

amansar o índio, uma vez que “o melhor fruto que nela [na terra achada] se pode fazer,

me parece que será salvar esta gente; e esta deve ser a principal semente que Vossa

Alteza nela deve lançar” (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 23).

Para concluir este capítulo, a análise de Carta pode refletir as intenções do

discurso colonial como um todo. Essas intenções, conforme essa análise, de certa forma,

mostra, podem se desconstruir em três formas: a dominação pela cultura, pelo povo e

pela fé. Entende-se a primeira como toda e qualquer dominação dentro da cultura do

colonizado, envolvendo também a língua, “que é social em sua essência” (SAUSSURE,

1972, p. 27); a segunda refere-se à dominação que envolva a conquista propriamente

dita, isto é, o uso da força, da violência, de forma a fazê-los se purificar pelos castigos; a

terceira, por fim, abrange a sobreposição da religião do colonizador sobre o colonizado,

e esta é a dominação fulcral do discurso colonial, uma vez que reafirma as outras duas.

Indo mais além, já que na língua indígena faltava as letras l, f e r, o intuito dos

colonizadores seria dar aos índios lei (o signo da dominação pelos costumes sociais, já

que, para os portugueses, eram selvagens sem cultura), fé (o signo da dominação pela

religião, “visto que não têm nem entendem crença alguma” (apud VOGT e LEMOS,

Page 20: A [re]construção da identidade indígena pela literatura

24

1982, p. 21)), e rei (o signo da dominação pelo povo, uma vez que os portugueses se

denominam o povo civilizado, enquanto o outro é o que precisa da intervenção do

branco para adquirir a civilidade).

Como já se abrangeu o que era interessante para este primeiro capítulo, pode-se

prosseguir para a análise da obra Iracema, de José de Alencar, em que se pode ver se há

exaltação real do índio brasileiro ou não.

Page 21: A [re]construção da identidade indígena pela literatura

25

2 IRACEMA E A MISCIGENAÇÃO

Ora, a história é a matéria-prima para as ideologias nacionalistas ou étnicas ou fundamentalistas [...]. O passado é um elemento essencial, talvez o elemento essencial nessas ideologias. Se não há nenhum passado satisfatório, sempre é possível inventá-lo. (Eric J. Hobsbawm)

Para introduzir este segundo capítulo, é necessário afirmar que, antes do período

do Romantismo (século XIX), não havia literatura genuinamente nacional (BOSI, 1999,

p. 12-13), uma vez que, como já se havia dito antes na análise de Carta, o Brasil ainda

era visto como colônia. A literatura anterior ao Romantismo dialogava com o contexto

português (em Padre Antônio Vieira, por exemplo (BOSI, 1999, p. 44-46)), ou com

outros contextos da Europa (como em Gregório de Matos, do período Seiscentista, que

estabelecia contato com a grande poesia do Barroco espanhol (BOSI, 1999, p. 39)).

Isso posto, Graziely da Silva Santos afirma que:

Com a elevação do país a Reino Unido de Portugal e Algarve e a abertura dos portos, não cabiam mais as estruturas do Pacto Colonial [...]. A elite, inclinada a aceitar o interesse inglês, que apoiava as independências, [...] acaba por decretar a independência, com o apoio de D. Pedro, que renuncia ao trono português e se torna Imperador do Brasil. (2005, p. 15)

Assim,

Na metade do século XIX, o Brasil já se havia desvencilhado politicamente dos portugueses. A sensação de ufanismo se infiltra em cada um e nas artes não poderia ter sido diferente. Já havia passado a hora, o momento de formar uma literatura mais próxima de nossas características, de nossos costumes, de nossos heróis (?), uma literatura genuinamente brasileira (SILVEIRA, 2009, p. 11)

Por isso, essa literatura brasileira teria de mostrar um país moderno, de natureza

exuberante, e de gigante potencial (SILVEIRA, 2009, p. 12). Dessa forma, segundo

Silva Santos, “durante todo o século XIX, vai haver uma discussão em torno das ideias

sobre um projeto de Brasil” (2005, p. 15). Entretanto, Silveira já ressalta que, uma vez o

branco ligado à nação colonizadora, sua presença como imagem nacional seria hipótese

descartada (2009, p. 17).

Page 22: A [re]construção da identidade indígena pela literatura

26

José de Alencar, inserido nesse contexto de independência, como já mencionado,

almejava compor, em sua obra, um panorama do Brasil. Alfredo Bosi, ao mencionar o

prefácio a Sonhos d’ Ouro, romance escrito por Alencar em 1872, afirma que o escritor

“traçou um quadro retrospectivo da sua ficção, onde se mostrava consciente de ter

abraçado todas as grandes etapas da vida brasileira” (1999, p. 136).

No prefácio, Alencar afirma que a literatura daquele período apresentava três

fases. A primeira fase, chamada de primitiva, ou aborígene, era composta por “lendas e

mitos da terra selvagem e conquistada” (apud BOSI, 1999), e nela se incluía o romance

Iracema, literatura “cheia de santidade e enlevo” (apud BOSI, 1999, p. 136); a segunda,

chamada de histórica, apreende o lento nascimento do povo americano, que devia

deixar a “origem” lusa, para continuar na nova terra “as gloriosas tradições de seu

progenitor” (apud BOSI, 1999), terminando com a Independência, pertencendo essa

fase os romances O Guarani e As Minas de Prata; e a terceira, por fim, aborda o

nascimento da literatura de gosto “nacional”, que, primeiramente, vai tratar da ligação

com o passado, em Tronco do Ipê, Til e O Gaúcho, e, em seguida, a adolescência, que

luta entre “o espírito conterrâneo e a invasão estrangeira” (apud BOSI, 1999, p. 137),

em Lucíola, Diva, A Pata da Gazela e Sonhos d’Ouro.

Da classificação feita por Alencar, a fase que mais interessa a este trabalho é, de

fato, a primeira, pois ela possibilita problematizar se, em Iracema, o fato de uma índia

aparecer como protagonista revela o desejo de valorização da cultura indígena, ou o que

se verifica, na verdade, é somente a exposição de um “novo tipo” de imagem colonizada

do índio.

Com essa questão inserida é que se pode iniciar a análise do romance proposto,

com o objetivo de não só respondê-la, mas, sobretudo, de perceber as intencionalidades

de Alencar ao reconstruir a imagem do índio.

Primeiramente, a personagem principal do romance, Iracema, possui

características de notável beleza. O romance começa a descrevendo como:

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águias. (ALENCAR, 1991, p. 14)

Page 23: A [re]construção da identidade indígena pela literatura

27

As orações adjetivas elencadas sobre a personagem Iracema, de certa forma,

espelham uma imagem de beleza e santidade. A construção da personagem sempre com

base na fauna e flora brasileiras, as quais são projetadas de forma edênica no romance,

faz com que as personagens indígenas (e também a branca, Martim, como se

argumentará mais adiante) sejam projetadas da mesma forma, como frutos do Éden, ou

seja, perfeitos (característica que será questionada mais adiante). Ao comentar sobre a

necessidade de “fundar” o Brasil nos romances românticos, Cassio Silveira afirma que:

O Brasil de verdade seria fundado agora [...]. Porém, é claro que, hoje sabemos, esse Brasil “de verdade” possui muito de ficção, pois o Brasil de verdade fornecido pelos primeiros escritores nacionalistas era o Brasil esplendoroso, de matas, rios e céus incomparáveis, cujo clima agradável parecia abençoar as pessoas que viviam unidas e felizes, pois habitavam uma espécie de novo Jardim do Éden na Terra, gigante e encantador pela própria natureza (!). (2009, p. 14)

Ainda segundo Silveira, a comparação das personagens com a natureza, sendo

ela uma “pré-metáfora”, é “um grande achado do escritor cearense” (2009, p. 44). Isso

porque muitos documentos do século XVI relatam que era comum, para os índios, a

definição dos elementos a sua volta por meio da metáfora. Assim, nos dizeres do

pesquisador, é nos “incontáveis exemplos de comparação com a natureza [que] o autor

parece estar ainda mais próximo dos indígenas, dando-lhes uma espécie de

‘autonomia’” (SILVEIRA, 2009, p. 44).

Contudo, como adverte Silveira, a união dos elementos por meio da metáfora

pode até recordar “o que ocorre, na visão do romance, entre o colonizador e o indígena:

eles se ligam, se unem, a partir de um termo em comum, para que o colonizador

continue sendo ele mesmo, mas com a influência do aborígene e vice-versa” (2009, p.

46). Portanto, essa ligação entre índio e branco por meio da linguagem metafórica, que

permite ao colonizador permanecer com sua cultura e suas crenças, mas integrando-se

com o indígena, segundo Silveira (2009), não pode ser descartada.

Entretanto, mesmo que aconteça a ligação entre o autóctone e o europeu a partir

de um ponto comum, como a linguagem, a presença do branco sempre se sobressairá à

do índio. Ao discorrer sobre a relação entre Martim, o branco, e Iracema, a indígena,

Silveira assevera que:

É a relação entre o sol e a lua, que estão sempre ligados um ao outro, mas sempre distantes: “A luz brilhante do sol empalideceu a virgem

Page 24: A [re]construção da identidade indígena pela literatura

28

do céu, como o amor do guerreiro desmaia as faces da esposa”. A descrição acima, que não é apenas a descrição do entardecer, demonstra a ligação entre o português Martim e sua amada Iracema. Primeiramente, ele é o guerreiro branco que ilumina, ele é o agente, aquele que faz, é a fonte de luz e da ação, enquanto Iracema se encontra no papel de paciente, objeto, aquele que sofre a ação do outro. [...] Portanto, o guerreiro é o Sol, é aquele que ilumina, dá vida, clareia os caminhos, enquanto a índia, a virgem do céu, a lua, romântica [...]. (SILVEIRA, 2009, p. 101, grifos do autor)

Dessa forma,

Na configuração romântica da origem, o encontro entre índio e europeu é deslocado da circunstância religiosa [...] para ser representado no plano mais produtivo da conjunção familiar, legitimada pelo afeto. Na reapresentação corrigida da origem, entretanto, são os mesmos elementos em cena: a atividade do colonizador, a receptividade do índio e um projeto de Estado que, para se efetivar, necessita da interação, mesmo que apenas no simbólico instituído, das duas partes em confronto [...]. As novas representações da origem estão marcadas pelo sentido mais puro de corrigir, que não suporta rupturas ou alterações de fundo. (CUNHA, 2006, p. 124)

Pode-se notar, então, a total submissão de Iracema a Martim, a qual se evidencia

ainda mais no momento em que, ao ver seu já amado ser ameaçado pela tribo dela que a

veio buscar dos campos dos pitiguaras (tribo de Poti, amigo e irmão de Martim), a índia

afirmar ser capaz de assassinar Caubi (seu irmão) para que as mãos de Martim não se

maculassem:

Iracema, unida ao flanco de seu guerreiro e esposo, viu de longe Caubi e falou assim: — Senhor de Iracema, ouve o rogo de tua escrava; não derrama o sangue do filho de Araquém. Se o guerreiro Caubi tem de morrer, morra ele por esta mão, não pela tua. [...] — Iracema antes quer que o sangue de Caubi tinja sua mão que a tua; porque os olhos de Iracema vêem a ti, e a ela não. (ALENCAR, 1991, p. 48)

Assim,

[...] sabemos que a personagem-título não abandona seu amado Martim, mesmo sabendo que nunca mais estará junto de sua família e (pior) que será obrigada a conviver exatamente com os pitiguaras, inimigos de sua nação. É certo que Iracema não é tão servil quanto Peri, [...] mas os sentimentos e ideais também são inabaláveis, principalmente em relação ao seu amado. (SILVEIRA, 2009, p. 47)

Page 25: A [re]construção da identidade indígena pela literatura

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Interessante notar, também, que, assim como a tribo de Iracema (tabajaras) é

inimiga da tribo do fiel amigo de Martim (Poti) e vice-versa, a tribo de Poti também é

inimiga dos tupinambás e dos guaraciabas, seus aliados. Esse comportamento dos

personagens frente a outras tribos, além do fato que todos os índios relatados são

guerreiros e foram feitos, de certa forma, para o combate, de tal modo que, uma vez que

não pode mais combater, se lamenta por estar incapaz (ALENCAR, 1991, p. 61-62),

pode ser comparado à cultura guerrilheira que regia os romanos e também os

conquistadores na Idade Média. Segundo Pereira (apud SILVEIRA, 2009, p. 48),

“Alencar vai lhe atribuir [ao índio] valores heroicos e honras de cavaleiro medieval,

próprios à tradição das noções colonialistas”. Adianta-se que isso embate com a cultura

real dos indígenas, sempre pacífica: “Para nós, que somos os irmãos maiores dos

brancos, ele deu a ordem de ficarmos calmos, vivemos unidos e de maneira pacífica”

(LANA apud VIEIRA, 2006, p. 39).

Entretanto, ao mesmo tempo em que Alencar constrói o índio robusto e guerreiro

para com os que o ameaçam, também o caracteriza como um ser puro, ingênuo,

receptivo para com o branco, que parece não ameaçador. Segundo Silveira, “aí está uma

das grandes questões em relação às obras indianistas de Alencar: ele realmente

acreditava na nobreza do indígena ou a construiu para conciliá-la com seu objetivo de

descobrimento e exaltação de nosso país recém-independente” (SILVEIRA, 2009, p.

48)? Para compreender esse objetivo, é necessário analisar o papel do europeu no

romance de Alencar.

Assim, retomando ao início do romance, Martim chega a ser atacado com uma

flecha na fronte por Iracema. Contudo, quando ela percebe que ele não “ameaça”, a

índia o recebe prontamente dizendo: “Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos

tabajaras” (ALENCAR, 1991, p. 16). Ao entrar na cabana do pajé da tribo, Martim

também é prontamente recebido, até profeticamente, quando Iracema diz: “Ele veio,

pai”. Isso se confirma quando o mesmo pajé, Araquém, o recebe: “É Tupã que traz o

hóspede à cabana de Araquém” (1991, p. 17) e diz: “O estrangeiro é senhor na cabana

de Araquém” (1991, p. 17). E, como tal, Martim, em toda a sua estadia na tribo de

Iracema é muito bem protegido pelo Pajé e Caubi, irmão de Iracema e grande guerreiro,

e da mesma forma amparado por Iracema, a “filha de Araquém”, e as outras mulheres

da tribo – e esse amparo ainda não incluía a relação sexual, uma vez que Iracema devia

permanecer virgem, por ser a guardiã dos segredos da jurema, o que pode simbolizar

também que Iracema seria a natureza virgem (o Brasil) e Martim, aquele que a

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30

desbrava. Portanto, por ser recém-chegado, ainda não era o momento de Martim

conquistar Iracema por completo, já que ainda era estranho.

Prosseguindo, os índios defendem o europeu de tal modo que lutam uns contra

os outros para que Martim esteja a salvo:

Araquém viu entrar em sua cabana o grande chefe da nação tabajara, e não se moveu. Sentado na rede, com as pernas cruzadas, escutava Iracema. A virgem referia os sucessos da tarde; avistando a figura sinistra de Irapuã, saltou sobre o arco e uniu-se ao flanco do jovem guerreiro branco. Martim a afastou docemente de si, e promoveu o passo. A proteção, de que o cercava a ele guerreiro a virgem tabajara, o desgostava. — Araquém, a vingança dos tabajaras espera o guerreiro branco; Irapuã veio buscá-lo. — O hóspede é amigo de Tupã; quem ofender o estrangeiro ouvirá rugir o trovão. — O estrangeiro foi quem ofendeu a Tupã, roubando a sua virgem, que guarda os sonhos da jurema. (ALENCAR, 1991, p. 28)

Nesse ponto, pode-se perguntar: Por que tanta afeição a um estrangeiro mal

chegado à tribo? A resposta parece bastante clara: Não só simplesmente por ser o

europeu, “filho de Tupã”, mas por ser a peça-chave da intenção nacionalista do

romance: a miscigenação.

De certa forma, pode-se afirmar que Iracema não seria a personagem principal

do romance, e sim Martim, uma vez que a índia o defende, o ampara e o atende (e não o

contrário), assim como os amigos índios do europeu. Ele, que, no início do romance é

“a sombra, o escuro, que oculta a visão de Iracema, é o intruso, é aquele que invade sem

ser percebido e tapa os olhares para as belezas naturais que estão por toda a parte”

(SILVEIRA, 2009, p. 96), pouco a pouco, conforme se entranha nos costumes e

preceitos dos indígenas, passa a utilizar a mesma linguagem deles, aquela por meio de

metáforas: “Teu hóspede fica, virgem dos olhos negros: ele fica para ver abrir em tuas

faces a flor da alegria, e para sorver, como o colibri, o mel de teus lábios” (ALENCAR,

1991, p. 28). Martim chega a “renunciar” às raízes de sua terra para aderir aos costumes

da nova terra, sendo pintado e batizado com o nome de Coatiabo. Sobre esse ponto,

Silveira afirma:

Martim é [...] o rio, a água, o meio pelo qual saiu de sua terra natal e chegou ao Novo Mundo, é o meio de ligação entre o europeu e o selvagem, para formar um novo povo. [...]

Page 27: A [re]construção da identidade indígena pela literatura

31

Assim, mesmo com o “batismo”, momento simbólico da passagem de Martim do caráter europeu para o caráter pitiguara, que ocorrera momentos antes, Martim não se esquece de sua terra natal. Logo, Martim não é mais completamente um português, pois adquiriu até mesmo um nome entre os índios (Coatiabo), vive a par dos costumes indígenas, graças ao seu amor por Iracema, mas, ao mesmo tempo, não é completamente um indígena, pois não pode desprezar toda a sua vida do outro lado do oceano. (SILVEIRA, 2009, p. 97)

Por esse motivo, um capítulo depois do “batismo” de Martim, ele começa a

olhar, da praia, para o mar, e lhe bate a nostalgia de suas terras, de tal modo que ele se

esquece quase completamente de seu amor por Iracema, ao ponto de ela mesma

perceber o desprezo:

Uma vez o cristão ouviu dentro em sua alma o soluço de Iracema: seus olhos buscaram em torno e não a viram. A filha de Araquém estava além, entre as verdes moitas de ubaia, sentada na relva. O pranto desfiava de seu belo semblante; e as gotas que rolavam a uma e uma caíam sobre o regaço, onde já palpitava e crescia o filho do amor. Assim caem as folhas da árvore viçosa antes que amadureça o fruto. — O que espreme as lágrimas do coração de Iracema? — Chora o cajueiro quando fica tronco seco e triste. Iracema perdeu sua felicidade, depois que te separaste dela. — Não estou eu junto a ti? — Teu corpo está aqui; mas tua alma voa à terra de teus pais, e busca a virgem branca, que te espera. (ALENCAR, 1991, p. 74)

Desse ponto, pode-se concluir que Martim, na verdade, mesmo que essa não

fosse a intenção do autor, somente tinha a função de ser essa ponte entre o europeu e a

nova terra, de forma a gerar, nessa ponte, o “Brasil”. Silveira (2009, p. 99-100) até

mesmo sugere que o nome do europeu (MARtim), mesmo que seja ligado a um

personagem histórico (Martim Afonso), está ligado à sua dicotomia: Europa versus

Novo Mundo.

Sobre essa integração, faz-se mister refletir que, após a Independência do Brasil,

quem tomou o poder foi a elite branca, representada por D. Pedro I, e não uma elite

autóctone, ainda vista como “atrasada” e “selvagem”. Portanto, era necessário que o

europeu se integrasse à nova terra, e que essa integração fosse enaltecida, para se

construir a imagem perfeita pensada por essa elite: um Brasil belo, puro, heroico, mas

branco.

Entretanto, como se pode ver em Graziely da Silva Santos (2005, p. 24-25), o

objetivo do romance de Alencar, de acordo com as tendências da época, era usar o índio

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(na pureza e robustez) e o europeu (na civilidade, religiosidade, língua, entre outros)

como matrizes na formação de um “bem maior”: no caso, o primeiro cearense. Sendo

esse cearense o novo herói do novo mundo, o predestinado, esse seria o plano perfeito

da criação da imagem de uma identidade nacional, uma vez que, mesmo que o europeu

se integrasse à cultura indígena, ele ainda seria o europeu, o estrangeiro. O cearense,

filho da índia – símbolo, como já se discorreu, da terra a ser desbravada, une os genes

da nova terra, que é edênica e heroica, com o sangue da Europa, “civilizada por

excelência” na ótica da elite brasileira.

Segundo Bosi,

À medida que nossos narradores iam aclimando à paisagem e ao meio nacional os esquemas de surpresa e de fim feliz dos modelos europeus, o mesmo público acrescia ao prazer da urdida o do reconhecimento ou da auto-idealização. Vistos sob esse ângulo, são exemplares os romances [...] de Alencar, que respondem, cada um a seu modo, às exigências mais fortes de tais leitores: reencontrar a própria e convencional realidade e projetar-se como herói ou heroína em peripécias com que não se depara a média dos mortais(1999, p. 128).

Assim, o nascimento de Moacir, filho de Iracema e Martim, dá ao Brasil o

caráter de predestinado, fruto da coragem, beleza e robustez do índio e da civilidade,

decência e racionalidade europeia: “O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da

terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça?” (ALENCAR, 1991, p. 86)

Por fim, é interessante transpor alguns trechos do último capítulo de Iracema,

para perceber o fim último dessa análise: perceber a europeização do índio, mostrada

como prática desejável, indício de seus primeiros passos rumo à civilização.

O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará, levando no frágil barco o filho e o cão fiel. [...] Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar com ele a mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua religião, de negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem. Poti foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho; não sofria ele que nada mais o separasse de seu irmão branco; por isso quis tivessem ambos um só deus, como tinham um só coração. Ele recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei, a quem ia servir, e sobre os dois o seu, na língua dos novos irmãos. Sua fama cresceu, e ainda hoje é o orgulho da terra, onde ele viu a luz primeiro. A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará, medrou. A palavra do Deus verdadeiro germinou na terra selvagem; e

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o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá. (ALENCAR, 1991, p. 86-87)

Vê-se que, como ilustra esse último capítulo, o fim foi muito semelhante ao do

texto de Caminha. Embora o europeu antes se entranhasse quase completamente na

cultura dos indígenas, ao voltar de sua terra natal, trouxe outros europeus consigo com a

mesma finalidade: fazer os europeus e índios possuírem “um só coração”. Percebe-se,

também, que Poti se fez o primeiro “amansado” pelos europeus, por sua fidelidade a

Martim, que se tornou eterna. Sobre esse ponto, Eneida Leal Cunha, discorre que,

mesmo que o encontro tenha se deslocado para a relação familiar (a fidelidade de

Iracema a Martim até a morte da mesma), o narrador utiliza a mesma cena da

colonização que Caminha relatou: “a atividade do colonizador, a receptividade do índio

e um projeto de Estado que, para se efetivar, necessita da interação, mesmo que apenas

no simbólico constituído, das duas partes em confronto” (2006, p. 124). Desse modo,

constata-se que, nesse contexto, [...] é a si mesmos, enquanto escritores e enquanto herdeiros dos colonizadores, que é preciso legitimar. Nesta perspectiva, a família original composta por europeu e índia – ou vice-versa – passa a ser vista prioritariamente como a montagem de uma ascendência ideal, purificadora e particularizadora, que aplaca a conturbação posta por duas evidências: a primeira, de que, a rigor, se é intelectualmente tão europeu quanto os que aqui celebraram a primeira missa; a segunda, que a matriz para ser europeu aqui é ocupar o lugar do habitante da terra na primeira missa: ser receptivo aos rituais que o imaginário colonizador produz, contemplá-los mais ou menos a distância, repeti-los incessantemente, sem interferir na sua lógica própria e já dada. (CUNHA, 2006, p. 124-125)

Concordando com as palavras de Eneida, por fim, pode-se concluir essa análise

com a última frase de Iracema: “Tudo passa sobre a terra” (ALENCAR, 1991, p. 87).

Esse último trecho exprime toda a experiência de Martim nas terras cearenses. Todo o

amor que ele cultivou já não passa de doces lembranças “de uma noite de verão”.

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3 O ÍNDIO “HERÓI” EM MACUNAÍMA

Tem uma música do Caetano, tem uma poesia dele que fala disso, o nativo levanta o braço e pega um caju. As pessoas estão preferindo em nome do progresso instalar aquelas casas com aquelas placas luminosas e distribuir Coca-Cola na praia. (Aílton Krenak)

Primeiramente, faz-se importante expor os objetivos dos autores modernistas da

“fase heroica”, da qual Mário de Andrade, autor de Macunaíma, fazia parte. Para Daniel

Faria (2006), dois outros escritores do período, Oswald e Paulo Prado buscavam a

reconstrução do conceito de brasilidade.

Conforme analisado no subcapítulo anterior, a imagem de brasilidade para os

românticos consistia em suprimir os sofrimentos de um Brasil em construção de

independência para construir um Brasil idealizado, em que todos se vissem como

“predestinados” na criação de uma nova nação, “desligada” de Portugal. No movimento

modernista, porém, segundo a ótica de Paulo Prado e Oswald de Andrade, a

preocupação estava em encontrar a “brasilidade”, isto é, a imagem da nação, num

âmbito muito maior, no sentido de que a mentalidade brasileira era vista por eles como

dualista, ou seja, ao mesmo tempo em que os brasileiros expressavam, nas ruas, uma

cultura singular, também era visto como intelectual o brasileiro fortemente ligado à

cultura europeia.

O movimento modernista buscava romper com as imagens construídas no

parnasianismo, pois esse último não buscava, de certa forma, compromisso social. Não

foram poucas as críticas produzidas no período contra o Parnasianismo. Para

exemplificar, Ronald de Carvalho, na semana de 22, grande marco que revolucionou as

bases do Modernismo brasileiro, declamou o poema Os Sapos, de Manuel Bandeira,

“sob um coro de coaxos e apupos” (ANDRADE, 1999, p. 166), no qual o sapo

representava os parnasianos.

As inovações atingem os vários estratos da linguagem literária, desde os caracteres materiais da pontuação e do traçado gráfico do texto até as estruturas fônicas, léxicas e sintáticas do discurso. Um poema da Paulicéia Desvairada ou [...] uma passo qualquer extraído de Macunaíma (...) nos dão de chofre a impressão de algo novo em

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35

relação a toda a literatura anterior a 22: eles ferem a intimidade da expressão artística, a corrente dos significantes. Vista sob esse ângulo, a “fase heroica” do Modernismo foi especialmente rica de aventuras experimentais tanto no terreno poético como no da ficção. (BOSI, 1999, p. 345)

Mário, não obstante a seu tempo, inovou não só as estruturas da linguagem

literária, ao explorar elementos da fauna, flora e ambiência brasileiras – assim como

José de Alencar, a quem considerava “patrono santo da língua brasileira” (PROENÇA,

1969, p. 47) –, mas também no caráter sintático da linguagem. A rapsódia2 mais

significativo de Mario foi inteiramente construída na linguagem falada do Brasil, e é

repleta de expressões, provérbios, danças e cantigas (o único momento que Mário muda

sua linguagem do informal para o formal é no capítulo “Carta pras Icamiabas”, clara

paródia ao parnasianismo, segundo Bosi (1999) e Proença (1969)). Feitas essas

observações, pode-se adentrar para a análise da imagem do índio na obra e sua relação

com o contexto apresentado.

Primeiramente, o livro se passa “no fundo da mata virgem”, numa abertura que,

segundo Bosi (1999, p. 353), é feita em estilo solene, lendário, e nela nasce Macunaíma,

“preto retinto e filho do medo da noite” e “uma criança feia” (ANDRADE, 1999, p. 13).

Nesse ponto, Daniel Faria, ao analisar um dos adjetivos dados para Macunaíma, afirma

que “o herói de nossa gente nasceu num tempo e espaço não históricos: é filho de uma

noite absoluta. Não pertencendo a uma tradição qualquer, tem com seu nascimento um

começo, uma origem também significada pela ausência do Pai” (2006, p. 10). Segundo

Cavalcanti Proença, não tendo ele um pai, “nasce, como verdadeiros herois, de mãe

virgem” (1969, p. 160). A abertura também diverge da feita em Iracema, “virgem dos

lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna” (ALENCAR,

1991, p. 14).

Mais adiante, a narrativa de Mário assume um estilo jocoso, cômico, de crônica: Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:

2 O próprio Mário de Andrade chegou a cogitar o nome rapsódia para sua obra, sendo “emprestado”, usando o termo de Bosi (1999), o nome “romance” para concorrer a um prêmio literário. Contudo, todos os teóricos estudados são unânimes em caracterizar Macunaíma como rapsódia. Segundo Bosi (1999, p. 353), esse nome seria pela grande capacidade da obra de articular entre o estilo de lenda, o cômico e o paródico. Já Cavalcanti Proença (1969, p. 11) afirma que “Macunaíma apresenta como as rapsódias musicais uma variedade de motivos populares, a que Mário de Andrade seriou, de acordo com as afinidades existentes entre eles”. Portanto, a obra Macunaíma aqui será abordada como rapsódia.

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- Ai! Que preguiça!.... e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem (ANDRADE, 1999, p. 13).

Já se nota desde o primeiro capítulo que o índio apresentado, embora herói, é, no

mínimo, uma figura desconcertante. A imagem de um índio preguiçoso rompia com o

ideal de “mancebo” viril e ativo, construído pelo romance de Alencar.

Koch-Grünberg, ao relatar a lenda de Makunaíma oriunda dos povos arecuná e

taulipang, afirma que “ainda era menino, porém mais safado que todos os outros

irmãos” (apud ANDRADE, 1999, p. 168), o que realmente pode ser comprovado no

heroi de Mário, já que, toda vez em que a cunhada Sofará o leva para o campo para

passear, “brincam”, mesmo sendo pequeno, e, quando já maior, têm relações com Iriqui,

outra mulher de Jiguê.

Outro ponto a se notar são as transformações de Macunaíma, que pode se

transformar em qualquer animal ou planta desejada, o que confirma o dito por Nestor

Victor sobre o espaço-tempo de Macunaíma: “Como nós sonhamos à noite, assim

vivem os seus personagens de dia. Tudo em torno desses imaginados seres é sonho e

sonho (...). Para essa fauna supostamente humana o espaço e tempo em que vivemos

sujeitos não existem” (apud BOSI, 2003, p. 189-190). Bosi ainda acrescenta que:

Em Macunaíma, como no pensamento selvagem, tudo vira tudo. O ventre da mãe-índia vira cerro macio; Ci-Mãe do Mato, companheira do herói, vira Beta do Centauro; o filho de ambos vira planta de guaraná; a boiúna Capei vira Lua. (1999, p. 352)

É importante ressaltar que, na primeira parte da rapsódia, assim como já

elucidado por Daniel Faria, os lugares citados pelo narrador têm nomes como “Cafundó

do Judas” e “Campo das Flores”, e não nomes convencionais como Salvador e Roraima,

o que alude, segundo o pesquisador, às ruas de Itacoatiara, cidade dos sonhos de Mário,

produto de suas experiências com a natureza do norte do país: De acordo com o diário de viagem, na noite de 3 de junho Mário de Andrade sonhou com uma cidade encantada, Itacoatiara. A cidade tinha setecentos palácios triangulares de granito, com uma única porta vermelha. Itacoatiara era composta por ruas líquidas, nas quais o modo de locomoção era o peixe-boi, para os homens, e o boto, para as mulheres [...]. As ruas da cidade tinham nomes idílicos, como rua do Meu Bem, rua da Rainha do Café e rua das Meninas [...]. Assim, a

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Itacoatiara do sonho de Mário de Andrade era uma cidade utópica, no sentido de que punha fim aos conflitos políticos, às limitações mundanas, sendo a concretização dos anseios estéticos do autor. Esteticamente, a cidade encantada despertava as mesmas sensações que a beleza sublime da natureza amazônica. Em Itacoatiara o mundo natural, o social e o político estavam harmonizados. (FARIA, 2006, p. 268)

Pode-se inferir que era essa mesma Itacoatiara se faz presente na primeira

Uraricoeira, onde Macunaíma não tinha preocupações com sua vida, somente se

ocupava de dormir, “brincar” e aprontar com seus irmãos. Tanto que, nesse período,

Macunaíma torna-se Imperador do Mato Virgem ao “possuir”, nos termos de Koch-

Grünberg (apud PROENÇA, 1969), Ci, líder das amazonas. Assim como no romance

Iracema, Ci chega a gerar filhos de Macunaíma. Entretanto, enquanto Iracema morre

para Moacir a substituir, Macunaíma não tem herdeiros, já que seus filhos morrem após

sugar muito pouco do que Ci tinha, devido ao assalto de uma cobra sugadora de leite, e

ela, após cumprir sua função, também morre, virando a constelação Beta do Centauro.

Até esse ponto, relacionou-se várias características em que Macunaíma diverge

de Iracema, e o ambiente criado era idealizado para que Macunaíma não se preocupasse

com outra coisa a não ser continuar preguiçoso. Contudo, ao se direcionar para São

Paulo em busca da muiraquitã perdida, o ambiente transforma-se, e muitas outras

características de Macunaíma podem ser notadas em suas peripécias na cidade grande.

Antes disso, Macunaíma, com seus irmãos, no caminho para São Paulo, encontra

uma gruta com um poço. Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era a marca do pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indianada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas. (ANDRADE, 1999, p. 40)

Há certa paródia nesse trecho de Macunaíma, já que, segundo Cavalcanti Proença

(1969, p. 188), Sumé seria acrônimo de São Tomé, e, conforme ele mesmo relata, há

uma lenda de que São Tomé teria feito uma peregrinação apostólica no Brasil. Ora, no

fenômeno do índio se tornar branco ao se lavar nas águas do poço de Sumé, se indaga o

conceito de puro que os europeus têm, já constatado no desejo de conversão dos índios

em Caminha e na criação do “predestinado” Moacir em Alencar. Aqui há a referência

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clara à ótica de embranquecimento3 que se tinha – e ainda se tem – no Brasil. Assim, a

intenção do batismo, do “plano de salvação” dos índios, nada mais era que uma

tentativa de “embranquecimento” do indígena, o que seria uma forma de intolerância.

Na afirmação do narrador de que “ninguém não seria capaz de indicar nele um filho da

tribo retinta dos Tapanhumas”, pode-se perceber que o batismo, naquela concepção,

destitui o índio de sua cultura, fazendo com que ele se torne um branco, um “ser-outro”.

Quando Macunaíma chega à cidade de São Paulo, Macunaíma percebe que o

dinheiro que usava na Terra do Mato Virgem já não serviria mais, e que teria de arranjar

trabalho, mas, como era preguiçoso, larga a empresa que o contratou e vive com o que

conseguiu na troca do seu dinheiro com a moeda local. Então Macunaíma entra em

contato com uma São Paulo envolvida na promessa das máquinas e no brasileiro com

ânsias de europeu. A ligação com as máquinas era tanta que Macunaíma pensa-a ser um

deus, tenta “brincar” com a máquina para ser imperador também do povo de São Paulo,

ao passo que as pessoas zombam de sua atitude. Segundo elas: [...] isso de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha deus não e que com a máquina não brinca porque ela mata. A máquina não era deus não, nem possuía os distintivos femininos de que o herói gostava tanto. Era feita pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com fumo, os homens aproveitando as forças da natureza [...]. Macunaíma passou então uma semana [...] só maquinando nas brigas sem vitórias dos filhos da mandioca com a Máquina. A Máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máquina... [...]. Até que uma noite, suspenso no terraço dum arranhacéu com os manos, Macunaíma concluiu: - Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nessa luta. Há empate. (ANDRADE, 1999, p. 42- 43)

A conclusão de Macunaíma é emblemática não só por demonstrar que a

máquina, mesmo submissa à mão do homem, o submetia também, não só pelo medo,

mas, pode-se concluir pela característica do período, pelo fascínio e esperança de uma

São Paulo mais moderna.

É a característica do paulista de ser ligado com o moderno que Mário parodiza

na “Carta pras Icamiabas”, em que brinca não só com a linguagem parnasiana,

3 O embranquecimento, aqui, reflete algo que ainda caracteriza o Brasil: a visão do negro como alguém sujo, impuro, que as “águas do batismo” irão purificá-lo da mácula da outra origem. Mário de Andrade, não obstante a outros autores anteriores, como Padre Vieira e Santa Rita Durão, também carrega esse estereótipo em sua rapsódia. Essa é uma das grandes críticas feitas pela comunidade negra a essa rapsódia.

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mesclando português arcaico com certos deslizes de linguagem, (PROENÇA, 1969),

mas com o fascínio do paulista pelo estrangeiro moderno, ao Macunaíma afirmar

“admirado” que, ao mesmo tempo em que fala um dialeto “bárbaro” (BOSI, 1999, p.

80) e “desprezível” (1999, p. 80), ao escrever, este dialeto se torna uma língua tal que

pode ser nominada “língua de Camões” (ANDRADE, 1999). A personagem ainda se

espanta ao afirmar que “á grande e quasi total maioria, nem essas duas línguas bastam,

senão se enriquecem do mais lídimo italiano” (ANDRADE, 1999, p. 80).

Contudo, mesmo que tenha feito essa paródia com o dualismo dos paulistas,

Macunaíma também é, em São Paulo, de certa forma, dual. Bosi afirma que, enquanto

Macunaíma era “descrito como luxurioso, ávido, preguiçoso e sonhador” (1999, p. 353)

enquanto vivia no Mato Virgem, ao entrar em contato com a “metrópole nova [...] funde

instinto e asfalto, primitivismo e modernismo” (1999, p. 353).,Enquanto consegue, em

episódios anteriores, se relacionar com as moças, se disfarçar de francesa para negociar

com Venceslau Pietro Pietra, e, posteriormente, de pintor para embarcar para a Europa,

Macunaíma também mantêm suas raízes “primitivas” ao associar seus grandes inimigos

de São Paulo, ao conhecê-los, antes mesmo de sua carta às amazonas, com monstros da

mitologia indígena, sendo Venceslau o gigante Piaimã e sua mulher, Ceuci, uma

caipora. Como já posto, embora crítica social, tudo na rapsódia gira em torno do

fantástico, da fábula.

Esse ponto se confirma também no espaço-tempo em São Paulo. Se na mata

virgem, como já foi dito, o índio vivia em lugares com nomes relacionados ao sonho de

Itacoatiara de Mário, em São Paulo, eles recebem seus devidos nomes, mas a locomoção

mágica é semelhante. Assim, na rapsódia, Macunaíma interpreta, além de São Paulo, o

Brasil como “sua selva”, mesmo sem ter dominado a Máquina na sua chegada a São

Paulo. Para exemplificar, quando, disfarçado de francesa, tentou fugir do cesto em que

Venceslau Pietro Pietra o tinha colocado, [...] assoprou raiz de cumacá em pó que bambeia cordas, bambeou o amarrilho do cesto e pulou pra fora. Ia saindo quando topou com o jaguara do gigante, que chamava Xaréu, nome de peixe pra não ficar hidrófobo. O herói teve medo e desembestou numa chispada mãe parque a dentro. O cachorro correu atrás. Correram correram. Passaram lá rente à Ponta do Calabouço [Rio de Janeiro], tomaram rumo de Guajará Mirim [fronteira de Mato Grosso e Amazonas] e voltaram pra leste. Em Itamaracá [Pernambuco] Macunaíma passou um pouco folgado e teve tempo de comer uma dúzia de maga-jasmim que nasceu do corpo de dona Sancha, dizem. Rumaram pra sudoeste e nas alturas de Barbacena [Minas Gerais] o fugitivo avistou uma vaca

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no alto duma ladeira calçada com pedras pontudas. Lembrou de tomar leite (ANDRADE, 1999, p. 53-54, adendos nossos). Macunaíma chega a São Paulo quando o Brasil é uma república, mas durante as suas correrias encontra João Ramalho dos primórdios da fundação de Santo André da Borda do Campo, conversa com Maria Pereira que está viva ainda hoje e amofumbada num grotão da beira do São Francisco, desde o tempo da invasão holandesa; convida Bartolomeu de Gusmão para viajar com ele no dorso de um tuiuiú, e o padre voador, que morreu na Espanha, está caminhando e suando num areal do Maranhão (PROENÇA, 1969, p. 11-12).

Portanto, como já se afirmou anteriormente, mesmo estando em uma cidade

civilizada, o que se nota nas nominações padrão dos lugares por onde passa, Macunaíma

ainda transita no mítico, o que lhe permite não só deslocar de um estado a outro

rapidamente, também dialoga naturalmente com personagens de tempos diferentes do

atual da narrativa. Retomando a questão do trânsito rápido entre os lugares, essa

“desregionalização” acontece também em diversos pontos em que o narrador enumera

fauna e flora de diversas regiões do país que Macunaíma pratica, mesmo antes de sua

vinda a São Paulo, quando habitava a “Terra do Mato Virgem”. Segundo o próprio

Mário de Andrade, essa desregionalização foi intencional. Nas palavras do autor, Um dos meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia e a fauna e a flora geográficas. Assim desregionalizava o mais possível a criação ao mesmo tempo que conseguia o mérito de conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea um conceito étnico nacional geográfico (apud FARIA, 2006, p. 271).

Ao analisar a rapsódia, a “concepção literária de Brasil” acontecia em um outro

sentido não muito diverso no próprio Macunaíma. Remetendo ao início do livro, ao ser

chamado de “herói de nossa gente” e “batizado” no poço de Sumé, durante sua ida a

São Paulo, Macunaíma representava não só a sua tribo Tapanhumas, mas toda a nação.

Essa característica não só o aproxima do Moacir de Iracema, mas também, como será

argumentado mais adiante, o faz “tomar posição” em defesa do seu território, que já não

se chamará mais “Terra do Mato Virgem”, mas Uraricoera, palco de disputas coloniais.

Continuando a análise da narrativa, ao conseguir recuperar a muiraquitã de

Venceslau Pietro Pietra, já que este foi morto por Macunaíma, após cômica disputa, ao

ser jogado em um caldeirão de macarronada fervente, e retorna ao seu lugar de origem,

transformando São Paulo num grande bicho preguiça de pedra. Quando retorna ao Mato

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Virgem, ele já o chama de Uraricoera. Nota-se que, nesse ponto da narrativa,

Macunaíma já não vê mais a Beta do Centauro no céu, que era Ci, a Mãe do Mato.

Nesse local, ele primeiro fica doente de impaludismo (malária), mas não chega a

progredir na doença nem espalhá-la. Contudo, ao fazer maldição num anzol feito de

presa de sucuri, infecta o irmão Jiguê com a lepra, e esse o infecta também, e

Macunaíma, por meio da associação metafórica das formigas com os índios, que “já foi

gente que nem nós” (ANDRADE, 1999, p. 146), dissemina a lepra por toda a sua tribo.

Após sua tribo toda morrer de lepra, Macunaíma vai ao vale de Lágrimas, para

afogar seus desejos, já que não há mais ninguém. Encontra com Uiara (Iara) e, seduzido

por ela, vai ao seu encontro e é despedaçado por ela, perdendo sua muiraquitã

definitivamente. Como já perdeu sua muiraquitã e a proteção de Ci, está sozinho e já

não tem pra onde ir, desiste da vida e vai para o céu virar a constelação Ursa Maior.

Mário de Andrade, ao comentar sobre o final da rapsódia em carta a um de seus

amigos, afirma que pouco lhe importou se foram cômicas certas partes do livro, mas ver

o herói desistir de toda sua vida lhe causou comoção muito grande, a ponto de ele se

recusar a o ler novamente “não porque ache ruim, mas porque detesto sentimentalmente

ele” (apud BOSI, 2003, p. 206).

Para Bosi, essa confissão de Mário

[...] não poderia ter sido mais franca nem mais patética. A evasão mágica que sela o livro é mais um exemplo de aproveitamento em chave crítica de uma narrativa mitológica. É a multiplicidade do ser, é a fratura insanável do “eu sou trezentos”, é enfim a instabilidade comum ao poeta e ao herói que tem por efeito a renúncia aos seus modos-de-existir passados ou recentes [...]. O seu destino [...] vem a ser precisamente este: não assumir nenhuma identidade constante (2003, p. 206).

Macunaíma, portanto, vira uma estrela por não possuir identidade nenhuma

(BOSI, 2003), por ser tão plural, assumindo identidades tão diversas, como índio,

mágico, brasileiro, uma francesa, entre outras.

Daniel Faria vai um pouco mais além. Faz-se mister, aqui, explicitar sua análise

sobre o texto de Koch-Grünberg, cujo personagem principal, Makunaima, foi base para

a construção do Macunaíma de Mário. Daniel, ao comentar sobre a situação da região

do rio Uraricoera, afirma que

Se o antropólogo lá esteve entre 1911 e 1913, vale notar que (obviamente naquilo que concernia a ingleses e brasileiros) apenas em 1904 as fronteiras de Roraima com a Guiana inglesa foram

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delimitadas. Vinte e quatro anos antes de Macunaíma aparecer como “herói de nossa gente”, o mato virgem estava em pleno litígio colonial. Além disso, se Koch-Grünberg lá esteve como cientista, a região já vinha sendo visitada, descrita e estudada por burocratas, missionários, enfim, uma série de escritores que tinham relações bem mais evidentes com as guerras coloniais. Sendo assim, o próprio estatuto dado a indígenas como povos “naturais”, sem lei nem rei, fazia parte da disputa territorial (FARIA, 2006, p. 274).

Ainda, o fato de Daniel Faria ter ressaltado a definição de indígenas “como

povos ‘naturais’” foi para que se percebesse o tema central: “a estetização da natureza

como resposta romântica a conflitos políticos específicos” (2006, p. 275). Portanto, não

só o espaço da narrativa, como também o próprio Macunaíma representavam uma

natureza mágica, descompromissada com a realidade em si. Quando Macunaíma é

interrogado a verdadeiramente tomar uma posição, a sobreviver, no sentido de que a

sobrevida seria o lutar para conquistar sua identidade, ele resolve ir ao céu e se tornar

uma constelação. Mesmo que não exista mais a mágica Uraricoera em que habitava

dantes, Macunaíma procura viver com Ci, e ter, na imensidão do céu estrelado, o seu

lugar de refúgio das tensões.

Logo, para Daniel,

Longe de ser um brilho inútil, porém, a Ursa Maior ganhava no texto uma rica sobreposição de sentidos: a promessa da magia natural do mato virgem, a advertência à brasilidade no sentido de que não se deixasse levar pelo caos da civilização (2006, p. 278)

Isso significa que o índio de Macunaíma, muito além de ser preguiçoso,

brincalhão e luxurioso, por meio dessa mesma preguiça, silencia uma série de conflitos

que assolavam as fronteiras, e as tribos que lá habitavam, e, mesmo que seja tão plural

na sua cultura, assume uma posição de brasilidade, no sentido de que espera que o

Brasil não se deixe vencer pelos inúmeros conflitos ou influências exteriores, mas passe

a viver por si mesmo, e busque no seu território, de natureza tão bela e plural, a sua

fonte de inspiração.

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4 POR QUE LITERATURA INDÍGENA?

O texto segundo se organiza a partir de uma meditação silenciosa e traiçoeira sobre o primeiro texto, e o leitor, transformado em autor, tenta surpreender o modelo original nas suas [...] lacunas, desarticula-o e o rearticula de acordo com as suas intenções, segundo sua própria direção ideológica, sua visão do tema apresentado desde o início pelo original. (Silviano Santiago)

Primeiramente, para se compreender, de certa forma, a razão de existência da

literatura indígena e porque a ler, é mister discorrer sobre os pontos principais

levantados dos textos analisados nos três capítulos anteriores, já que é necessário

compreender a situação da imagem do índio produzida por eles, para se compreender

em que pontos a literatura indígena dialoga com esses textos e se reforça por meio dos

mesmos.

Uma primeira questão a se ressaltar sobre esses textos é que todos são

indigenistas, ou seja, é o branco que discorre sobre o índio, que apresenta e define o

autóctone e sua cultura. Posto isso, pode-se relembrar o que se constatou nos três

capítulos anteriores, para retomar as características dos autóctones retratados em cada

um dos textos indigenistas analisados neste trabalho.

Na obra de Caminha, o que se notou foi não só o índio mancebo, robusto e

amistoso, mas, principalmente, o índio facilmente domesticável que Caminha relata.

Ora, essa leitura simplista que Caminha faz do caráter de compreensão multicultural do

índio é, sobretudo, na intenção de torná-lo um cristão, um colaborador. Concordando

com Eneida Leal Cunha, a cena da primeira missa presente em Carta é mister para toda

a construção da imagem “dócil” e “receptiva do selvagem”, pois, ao colocar “em cena

todos os elementos instituintes da história colonial” (2006, p. 121), o texto enfatiza a

facilidade do índio em, por meio da cópia, incorporar a cultura europeia. Assim,

Caminha afirma que, quando entendessem a cultura do branco (tomada como padrão),

os índios “seriam logo cristãos” (1817, p. 21). Mais especificamente, Carta explicita a

tentativa de embranquecer a cultura indígena, como já se discutiu em Macunaíma.

Luzimar Goulart Gouvêa, no resumo de sua dissertação de mestrado entitulada

O homem caipira nas obras de Lobato e Mazzaropi, corrobora as possibilidades da

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construção na literatura do “não ser e do ser outro” (2001, p. 15). Tais conceitos podem

ser relacionados, segundo o autor, respectivamente à construção de um estereótipo da

imagem – como no caso de Lobato, que, conforme a análise de Gouvêa, apresenta o

caipira como praga do campo em Velha Praga e Urupês, sendo que “o lugar social de

fato e de fala em Lobato não promove aproximações, nem trocas” (2001, p. 55) –, e a

construção da imagem como outra, no sentido de, no caso do caipira de Jeca Tatuzinho,

transformá-lo em capitalista americano, saudável, que fala inglês, veste os animais e

trabalha para ganhar dinheiro, não para o sustento, transformando-se “num legítimo

‘estranja’, adepto a novas tecnologias” (2001, p. 116, grifo do autor).

Esse último conceito, isto é, de ser outro, ou “estranja”, pode ser justaposto à

intenção de Caminha em catequizar o índio, como também (e mais claramente) na cena

ilustrada em Iracema, quando Poti (“filho” da tribo pitiguara e amigo fiel de Martim, o

guerreiro branco) é batizado. Nesse momento, na perspectiva de Alencar, os dois, isto é,

Martim e Poti, se tornam, pode-se dizer, irmãos, uma vez que comungam da mesma fé.

Ora, essa irmandade explicitada na obra não ocorre mediante a permanência das duas

culturas como são, mas na sobreposição da cultura daquele considerado mais forte, no

caso, o branco.

Ainda nesse romance alencariano, constata-se que a imagem que do índio não é

mais de alguém sem crença, já que a narrativa traz imagens de deuses panteístas como

Tupã. Alencar que, para Mário de Andrade, seria o “patrono santo da língua brasileira”

(apud PROENÇA, 1969, p. 47), também é, pode-se dizer, o primeiro escritor a usar

elementos do próprio Brasil em sua narrativa, mesmo que não ousasse na linguagem

como Mário. Dessa forma, a obra indianista de Alencar não pode ser desprezada. Mais

ainda, como já foi constatado, para Alencar, o índio seria o protótipo “perfeito” de

imagem do Brasil “origem”, e não o europeu, já que é o habitante primeiro da terra

achada, e era conhecido por ser guerreiro, robusto e belo, além de não ser como o negro:

escravo e “sem alma”.

Entretanto, além da afirmação de que o índio seria a imagem do Brasil ser

questionável, uma vez que ele tem de defender o branco para ser enaltecido, esse

mesmo índio não professava a religião cristã e não comungava da mesma “civilidade” e

“cultura” do branco, o que era incompatível com o ideal de construção do Brasil

projetado pela elite. A meta, portanto, era juntar o selvagem com o civilizado, o branco,

para que o fruto dos dois fosse um brasileiro, belo, robusto, guerreiro e, ao mesmo

tempo, cristão, culto e nativo na língua portuguesa.

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Por fim, em Macunaíma, o índio Macunaíma perde seu caráter de indígena e

passa a ser a imagem do próprio Brasil, que se encontrava perdido em tantas culturas e,

ao final da rapsódia, clama para que o Brasil “esqueça” os conflitos exteriores e

interiores e busque na natureza tão bela e tranquila, ilustrada na Itacoatiara dos sonhos

de Mário, a sua identidade, protegido por Macunaíma, que “banza [...] no campo vasto

do céu” (1999, p. 159), tão vasto quanto a natureza brasileira sonhada por Mário.

Dessa forma, compreendendo um pouco melhor as narrativas indigenistas

analisadas, pode-se notar um ponto que as une: as três foram construídas por autores

brancos que não tomaram contato com a cultura indígena. Mesmo Alencar e Mário, que

construíram suas narrativas por meio de relatos de outros viajantes, também construíam

seus relatos conforme aquilo que lhes interessava. Além disso, a situação cultural

indígena, quer seja um ritual ou uma contação de histórias, por exemplo, relatada por

esses viajantes era reduzida, e essa redução era lida por Mário e Alencar. Assim,

conclui-se que, provavelmente, muitas características importantes, que seriam notadas

na experiência com a cultura indígena, foram tolhidas antes da construção dessas

narrativas, e elas, tomando contato com os relatos tolhidos, cortavam ainda mais, o que

provocou equívocos e, até mesmo, preconceitos quanto à cultura indígena.

Nesse capítulo, portanto, o que se questiona é a visão da cultura indígena nas

narrativas analisadas - mesmo na de Mário, apesar de seu estudo acurado de tantas obras

históricas. Embora Macunaíma tivesse apresentado tantas cantigas, costumes e ditados

do Brasil, por que não ousou da mesma forma abordando a diversidade de culturas

indígenas presentes no Brasil? Por que, se Alencar e Mário leram a tantas obras de

análise da cultura indígena feitas por etnólogos, antropólogos e historiadores, não

perceberam que havia uma diversidade literária e cultural riquíssima entre os povos

indígenas?

Maria Andrade Vieira, ao analisar o conceito de cultura, afirma que o termo

“compreende do seu estado mais concreto (ação, processo ou efeito de cultivar a terra) à

relação do homem com a terra que, a partir do momento em que deixa seu hábito

nômade, começa a plantar raízes próprias em um determinado local” (2006, p. 12).

A partir desse momento, o homem começa a plantar tanto seu alimento físico, como também passa a cultivar princípios morais. Esses princípios morais, permeados de juízos de valor, farão com que ele perceba o mundo através da forma própria daquele “meio de cultivo”, tecendo um conjunto de padrões de comportamento, crenças,

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conhecimentos, costumes etc. que distinguem seu grupo social dos demais. (VIEIRA, 2006, p. 12, grifo nosso)

Se a fixação do homem a um local implica o desenvolvimento de uma cultura

própria e, se esse processo não procede da mesma forma com todos os indivíduos e em

todos os lugares, consequentemente o conceito de cultura deve ser sempre pensado de

modo plural. Como se sabe, existem centenas de tribos diferentes presentes no Brasil,

que já estão enraizadas em um determinado local. Pode-se ter então a noção de que cada

tribo possui sua própria visão de mundo, seus próprios valores e crenças.

José Ribamar Bessa Freire4 afirma que o primeiro equívoco é acreditar que todos

os índios falam uma mesma língua. Segundo ele, “vivem no Brasil mais de 200 etnias,

falando 188 línguas diferentes [e] cada povo tem sua língua, sua religião, sua arte, sua

ciência, sua dinâmica histórica própria, que são diferentes de um povo para outro [...],

tão diferentes [...] como o português do alemão” (2009, p. 84). Freire ainda afirma que

“muitos estudiosos recolheram no Pará e [...] no Amazonas, uma literatura oral de

primeiríssima qualidade” (2009, p. 90).

Couto de Magalhães foi presidente de três províncias: Mato Grosso, São Paulo e Pará. Ele não tinha, em princípio, qualquer motivo para simpatizar com os índios e compartilhava todos os preconceitos [...]. No entanto, quando viajou ao Pará, no barco ouviu um índio contando histórias, durante horas, para uma plateia atenta de tripulantes, que ria e participava ativamente. Curioso, Couto de Magalhães se aproximou e ouviu que falavam uma língua que ele não entendia: o Nheengatu. Ele decidiu então aprender essa língua, só para conhecer as histórias. Ficou apaixonado com a beleza da literatura indígena, ele diz que é literatura de primeiríssima qualidade, equiparando-a à literatura grega. Recolheu e registrou muitas histórias, como aquelas que têm por personagem o jabuti. Essas narrativas tinham na verdade uma função educativa, de transmitir valores, formas de comportamento. Couto de Magalhães comentou, em uma observação muito inteligente, que um povo cuja literatura tem um personagem como o jabuti, lento e feio, que consegue vencer outros animais belos e fortes como a onça e o jacaré, só usando a astúcia, é um povo que tem civilização para dar e vender. “Um povo que ensina que a inteligência vence a força, é um povo altamente civilizado é um povo altamente sofisticado”, ele reconhece (FREIRE, 2009, p. 91).

4 Recomenda-se a leitura da palestra por ele proferida em 2008, por ocasião da lei 11.645/08, e que foi transcrita em um capítulo do livro “Educação, cultura e relações interétnicas”, organizado por Ahyas Siss e Aloísio Jorge de Jesus Monteiro, em 2009. Essa palestra traz muitas questões esclarecedoras sobre a cultura indígena, por meio da desconstrução de cinco ideias equivocadas que se tem sobre ela. Para mais informações, cf. “Referências”.

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47

Diante dessa constatação de Bessa Freire, ressalva-se a pergunta: Se Couto de

Magalhães chegou a conhecer tal diversidade muito antes de Mário, por que o mesmo

não trouxe tal riqueza e diversidade para o seu tão diverso Macunaíma?

Nesse sentido, pode-se tomar o que Roberto Damatta denomina “Cultura com

‘C’ maiúsculo” (apud VIEIRA, 2006, p. 14), representando a cultura tida por superior,

de alto padrão. Segundo ele,

A “Cultura”, imbricada pela noção evolucionista, que prega as conquistas tecnológicas com a ideia de progresso, interrompe o processo natural das diferentes, pois “canibaliza as ‘culturas’, fechando espaços para manifestações locais e singulares, quase sempre lidas como ‘atrasadas, ‘ingênuas’, ‘primitivas’ e, naturalmente ‘desinformadas’, ‘elementares e ‘subdesenvolvidas’” (apud VIEIRA, 2006, p. 15).

Portanto, nesse sentido, a visão que o “branco” tem do outro estará sempre

pautada não só em juízos de cultura tidos por superiores, como sempre se terá a visão

mínima da cultura indígena, uma vez que a palavra índio, por exemplo, segundo Bessa

Freire (2009), carrega a ideia de “um povo só”.

Contudo, Vieira ainda ressalta que a mesma fronteira5 que separa as culturas

também se torna ponto de encontro (2006, p. 18). Se em tempos anteriores, sobretudo

em Caminha e Alencar, essa fronteira representava algo “ameaçador” e que causava,

nos termos de Bhabha (1998), “atração/repulsa”, em tempos de pós-colonialismo, em

que, pouco a pouco, se desvencilha do discurso colonial, há a possibilidade das culturas

dialogarem-se e compreender as suas diferenças. Segundo Certeau, o relato exerce o

papel decisivo nesse diálogo, uma vez que tem “a função primeira de autorizar o

estabelecimento, o deslocamento e a superação de limites” (apud VIEIRA, 2006, p. 18,

grifo do autor).

Entretanto, é importante ressaltar que esse relato não pode ser feito pelas mãos,

pode-se dizer, “de fora”, ou seja, de alguém que não viveu a cultura indígena, uma vez

que, para esse alguém, no caso, o branco, somente a palavra índio já traz uma série de

pré-conceitos e estereótipos que já deturpam o relato. E, nesse sentido, a literatura “de

5 Faz-se mister aqui especificar que o conceito de fronteira cultural, segundo Vieira, iniciou-se em Ferdinand Braudel, no ano de 1949, “por oferecer uma forma possível de tratar da fragmentação” (2006, p. 17) entre as culturas, e que, no caso das culturas do Brasil, “por compartilharem aspectos comuns, como o espaço e a maioria delas uma mesma linguagem [...], o trânsito de ideias não é impedido, mas existe, de acordo com Braudel, as zonas de resistência a tendências culturais, como seu poder de sobrevivência” (2006, p. 17), sendo a zona de resistência aqui entendida como o discurso colonial.

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fora” tenderá sempre para o indigenismo, ou seja, a construção da imagem do índio, ou

ainda, segundo José Carlos Mariátegui, a construção que “busca informar sobre o

universo e o homem indígenas” (apud GRAÚNA, 2008, p. 3) o que menosprezará de

alguma forma sua cultura, sua religião, se caracterizando por um objetivismo, pode-se

dizer, falho.

Nas palavras de Certeau, “o enfoque da cultura começa quando o homem ordinário

se torna o narrador” (apud VIEIRA, 2006, p. 26). Assim, pode-se argumentar, com base

nas considerações anteriores, que a literatura somente vai ter uma visão plena do índio,

permitindo o diálogo adequado entre fronteiras, quando ele mesmo puder relatar,

ultrapassando os estereótipos e pré-conceitos, uma vez que faz parte dessa cultura

singular.

Mariátegui certamente corrobora a afirmação de Certeau quando expõe que

“uma literatura indígena, se tiver de vir, virá [...] quando os próprios indígenas

estiverem prontos para produzi-la” (apud GRAÚNA, 2008, p. 3). O intelectual indígena

Ailton Krenak, por sua vez, reforça a importância da nova perspectiva presente na

literatura indígena ao destacar a necessidade de sua divulgação “mesmo que essa arte,

essa criação e esse pensamento não coincidam com a [...] ideia de obra de arte

contemporânea, de obra de arte acabada, diante da sua visão de estética, porque senão

você vai achar bonito só o que você faz ou o que você enxerga” (apud VIEIRA, 2006, p.

30, grifos nossos).

É, portanto, o relato que vai fazer das fronteiras culturais o ponto de encontro

entre as culturas, e, nesse sentido, uma literatura que é primeiramente ágrafa, passa a ser

transmitida em palavras escritas por escritores indígenas, como Eliane Potiguara, Olívio

Jekupé e Daniel Munduruku, autor de grande variedade de obras da literatura infanto-

juvenil sobre a cultura indígena, uma das quais será analisada no próximo capitulo.

Convém aqui destacar que, segundo Vieira, “a cultura indígena é essencialmente

oral e ágrafa” (2006, p. 19), por ter essa característica de transmissão contínua de

valores e conhecimento que se reforçam a cada novo momento de enunciação. Para

finalizar esse capítulo, fica então uma questão: se “traduzir do oral para o escrito é um

dos maiores desafios e obstáculos para o estudo das culturas assentadas sobre a

oralidade, como é o caso da cultura indígena” (VIEIRA, 2006, p. 20), como os

escritores indígenas enfrentam esse desafio ao adentrarem no universo da escrita

literária? É sobre isso que se pretende discorrer no capítulo a seguir.

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49

5 SINAL DO PAJÉ E O COMPROMISSO COM A TRADIÇÃO

A liberdade das almas, ai! com letras se elabora... (Cecília Meireles)

Porém, não podemos mais esperar a passagem das gerações. Temos de resistir à formação de mitos nacionais, étnicos e outros, no momento em que estão sendo formados. (Eric J. Hobsbawm)

Em primeiro lugar, é importante ressaltar a importância de Daniel Munduruku,

autor do livro que será analisado, no contexto de produção da literatura indígena, no

sentido de perceber qual é o compromisso assumido por sua literatura majoritariamente.

Para isso, é primordial apresentar alguns de seus dados biográficos.

Daniel Monteiro da Costa “nasceu em Belém do Pará, em 1964, e viveu entre a

aldeia munduruku e a cidade até os sete anos” (ALMEIDA, 2008, p. 12). No entanto,

embora tenha vivido na aldeia munduruku, mesmo que em transição entre ela e a

cidade, Daniel Munduruku produz sua literatura estando dentro da matéria literária, ou

seja, suas obras são, genuinamente, vinculadas à literatura indígena, como se percebe

em seus livros (Histórias de Índio, Um Estranho Sonho de Futuro, Banquete dos

Deuses, Coisas de Índio).

Graduado em Filosofia, Munduruku é também licenciado em História e em

Psicologia, além de ser Mestre em Antropologia e Doutor em Educação pela

Universidade de São Paulo (USP). Tendo mais de quarenta livros sobre a temática

indígena publicados, pode-se dizer que suas obras apresentam grande receptividade

frente ao público, tal é a atualidade da discussão sobre os estereótipos construídos ao

longo de tantos anos de literatura. Desse modo, quando se pensa em literatura indígena,

o nome de Munduruku não pode de nenhum modo ser ignorado:

Diretor presidente do Inbrapi (Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual), comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República e pesquisador do CNPq [...], Daniel Munduruku recebeu alguns prêmios por seu trabalho como escritor. Dentre eles, na categoria Reconto da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil, em 2001, por As Serpentes que Roubaram a Noite e Outros Mitos e o prêmio para Obras Voltadas a Preservação da

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Cultura Brasileira, do CNPq, em 2003. Também recebeu o prêmio Jabuti por Coisas de Índio – Versão Infantil, em 2004, e ainda Meu Avô Apolinário foi escolhido pela UNESCO e recebeu menção honrosa em Literatura para Crianças e Jovens na Questão da Tolerância (ALMEIDA. 2008, p. 13, adendo do autor).

Assim, as obras produzidas por Daniel Munduruku são bem vistas no contexto

literário, por trazerem questões pertinentes como a tolerância e a preservação da cultura,

que também são tematizados no livro Sinal do Pajé, que será analisado mais adiante.

Antes disso, é mister elucidar que a maior parte de suas histórias são voltadas ao

público infantil e infanto-juvenil. Sobre isso, Munduruku afirma:

Trabalho essencialmente com a literatura infanto-juvenil porque é importante que as crianças aprendam desde cedo a cultura e a sabedoria dos povos indígenas para assimilar valores vitais para a nossa continuidade enquanto povo (apud ALMEIDA, 2008, p. 13).

Concordando com Munduruku no que tange à necessidade de se promover entre

crianças e jovens (não apenas indígenas) um diálogo produtivo que lhes possibilite lidar

respeitosamente com outras culturas, pode-se perceber que, desse modo, em vez de ser

concebida como marca de inferioridade, a diferença cultural pode ser desde cedo

percebida como mais uma possibilidade dentre as muitas existentes.

E de que forma Munduruku constrói a narrativa de modo a expor questões como

tolerância, respeito e diálogo com as culturas indígenas? E qual é a imagem de índio

trazida em suas histórias, questão tão problematizada nos textos indigenistas analisados

anteriormente? São essas questões que se pretende responder mediante a análise de seu

livro Sinal do Pajé (2003).

Na obra, o personagem-principal, Curumim, como o próprio nome ilustra

[culumi, ou seja, criança], é um jovem em fase de crescimento que terá de passar pelo

ritual da maioridade, entrando na “Casa dos Homens”, local onde todos os homens da

tribo abandonariam sua infância para lutar pelos interesses da tribo. No início do livro,

ele está assentado sobre uma pedra enquanto assiste sua avó banhar-se no rio. Enquanto

a observa, reflete sobre a vida dessa mulher, que já “viu gente nascer e morrer; viu o

chão tremer com os ataques dos povos inimigos; viu as flechas passarem voando sobre

sua cabeça e atingirem corpos de jovens guerreiros que defendiam a aldeia”

(MUNDURUKU, 2003, p. 11). O importante a ressaltar sobre isso é a sabedoria e

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51

experiência demonstrada nos mais velhos logo no início do livro, já que a avó “tinha

vivido muitas coisas em sua longa vida” (2003, p. 11).

Logo após, Curumim vê um mutum sobrevoar o local e pensa: “É o sinal do pajé

[...] Ele deve estar perto daqui” (MUNDURUKU, 2003, p. 12). É interessante notar a

ligação que Curumim faz da passagem do animal com a presença do pajé. Sobre essa

ligação se argumentará mais ao fim deste capítulo. Contudo, é importante registrar que a

aproximação do sinal do pajé com o mutum toca no ponto fulcral da narrativa: o

compromisso com a Tradição, sobre o qual se discorrerá mais adiante. O importante

nesse ponto é que, logo em seguida, sua avó levanta a mesma hipótese que o menino

havia pensado, o que o alegra “ao perceber que estava conseguindo ler o pensamento

dela” (MUNDURUKU, 2003, p. 12). Assim, pode-se notar que o menino demonstra

grande admiração pelos pensamentos dos mais velhos, já que, para ele, o fato de poder

atribuir o mesmo significado ao voo do mutum que sua avó é sinal de sabedoria.

Ainda sobre a sabedoria dos mais velhos relatada por Munduruku, percebe-se

que, em todas as ações e palavras dos sábios (ou seja, o pajé e outros superiores a

Curumim), sempre há um ensinamento que é acolhido pelo jovem. Assim, ao prosseguir

a leitura do livro, nota-se que, quando o pajé se aproxima, ele derrama sobre si um

pouco de água, e avisa: “Hoje vai chover, minha velha. O vento está trazendo esta

notícia. É bom que os rapazes que saíram para a caçada retornem até o fim da tarde”

(MUNDURUKU, 2003, p. 12). Curumim olha para o céu e não vê nenhum sinal de

chuva. Contudo, “nada pergunta, pois sabia que a palavra do pajé era incontestável”

(2003, p. 13).

Mais adiante, quando o jovem navega com o pai para pescar, o pai, subitamente,

para o barco e levanta seus instrumentos de caça, e Curumim o observava “sem tirar os

olhos da água, procurando a razão do gesto paterno” (MUNDURUKU, 2003, p. 41).

Tudo isso, contudo, sem dizer uma palavra, esperando que o pai se explicasse ou que ele

mesmo entendesse. Esses pontos refletem num dos pontos importantes que o livro

ressalta, tanto para os indígenas, quanto para os brancos, seu público-alvo: o respeito

para com seus antecessores.

Ao se retomar a análise de Carta, relembra-se que, por exemplo, o fato de

nenhum dos índios esconder dos portugueses o ouro presente na terra era porque não era

interessante para eles o uso de tal minério, já que os índios não se pautavam pelo

princípio capitalista já existente nos europeus, mas viviam a base da troca daquilo que

lhes era importante. Bessa Freire, por sua vez, afirma que, muito além da troca de

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objetos, os indígenas estavam (e estão) abertos à interculturalidade, definida por ele

como um diálogo, em que “tudo aquilo que o homem produz em qualquer cultura e em

qualquer parte do mundo – no campo da arte, da técnica, da ciência – tudo o que ele

produz de belo merece ser usufruído por outro homem de qualquer outra parte do

planeta” (2009, p. 93). Portanto, muito além da troca de objetos para o lucro comercial,

o objetivo dos autóctones na cena descrita por Caminha era conhecer melhor a cultura

do outro em troca de permitir que eles também conhecessem a sua.

Dessa forma, ao se notar esse primeiro apelo de Munduruku ao leitor, percebe-se

que o autor almeja também resignificar as fronteiras culturais, não como pontos

simplesmente de diferença e conflito entre as culturas, mas como, nas palavras de

Certeau, “pontos de diferenciação entre dois corpos [que] são também pontos comuns”

(apud VIEIRA, 2006, p. 18, adendo nosso). E, para tanto, um dos primeiros pontos para

o diálogo intercultural é o respeito entre as culturas.

Analisando alguns aspectos das relações entre as fronteiras, aqui entendidas

como a cultura indígena e a cultura branca, a qual abrange tanto a cultura europeia, isto

é, do colonizador, quanto a brasileira, que herdou do colonizador “em boa parte sua

forma de entender Cultura” (VIEIRA, 2006, p. 18), pode-se afirmar, como já se

comprovou nas análises das literaturas indigenistas, sobretudo em Carta, que a cultura

branca não se abriu ao diálogo com a cultura indígena, pois a primeira objetivava

transformá-los em cristãos (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 21), portanto, tornando-os

outros.

Enfatizando melhor a falta de diálogo que a cultura europeia demonstrou para

com a cultura indígena, retomando a análise de Sinal do Pajé, o pajé afirma a Curumim,

relembrando o passado doloroso que o povo no livro relatado passou, ao ser indagado

do que aquele povo tinha medo, que:

Naquela ocasião, não sabíamos direito do que tínhamos medo, mas o fato é que aquelas pessoas que estavam vindo para cá encontrar-se conosco eram muito estranhas, muito feias, selvagens. Seus olhos eram diferentes, seus rostos sujos de pelos nos causavam medo. Seus rostos não nos permitiam ver sua pele; não sobrava nada onde se pudesse fazer uma pintura de boas-vindas. Então, não ficávamos seguros sobre o que eles realmente queriam (MUNDURUKU, 2003, p. 14, grifos nossos).

Sobre a pintura de boas-vindas, é importante relembrar o caso do batismo de

Martim em Iracema (ALENCAR, 1991, p. 67-68). Do mesmo modo, quando Martim

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53

decide se integrar completamente (o que é questionável, já que a análise de Silveira

mostrou que sempre Martim estaria ligado à sua terra, a Portugal (SILVEIRA, 2009, p.

97)), é pintado segundo os costumes da tribo de Poti (o que também é questionável, já

que a visão de Alencar ainda era de que as culturas indígenas eram uma só, a selvagem),

sendo, por isso, batizado de Coatiabo (gente pintada). Entretanto, ao mostrar que, na

verdade, não restava uma parte do rosto que permitisse aos índios fazer sua pintura de

boas-vindas, Munduruku utiliza-se da falta de espaço nos “rostos sujos de pelos” como

metáfora para a falta de diálogo que, desde o começo, existiu dos brancos para com os

autóctones, desmistificando a aparência “dócil” que o branco demonstra em Iracema.

Além disso, essa atitude de repulsa, já que os indígenas passaram por sucessivos

ataques dos brancos, relatados, por exemplo, em “Nós não éramos índios”, de Brás de

Oliveira França (apud VIEIRA, 2006, p. 42-45), causou no povo de Curumim, mais do

que o medo, uma atitude de defesa e também de repulsa, quando o pajé afirma que, no

tempo em que os brancos invadiam suas aldeias, “éramos jovens e torcíamos para que

nossos líderes permitissem que interceptássemos [...] os homens brancos de roupa

comprida. Mas tínhamos medo, muito medo” (MUNDURUKU, 2003, p. 13, grifos

nossos). Assim, uma vez que os brancos legitimam sua repulsa por meio da guerra, o

medo dos atingidos os leva também a se defender por meio da guerra.

Entretanto, ao analisar a atitude dos brancos, o pajé afirma que, “com medo, as

pessoas fazem coisas sem pensar direito. E se temos medo de algo, nosso primeiro

pensamento é destruir o que nos assusta. Eles iriam destruir nossa terra, disso tínhamos

certeza” (MUNDURUKU, 2003, p. 15, grifos nossos). Sobre essa certeza da destruição,

remete-se ao aviso profético, pode-se dizer, compartilhado pelo povo de Curumim e o

povo de Brás de Oliveira França sobre a chegada dos brancos, em que Ponaminari,

grande mensageiro do povo Tupana, afirma que “vai aparecer do rio maior e mais

poderoso inimigo de vocês” (apud VIEIRA, 2006, p. 42). Entretanto, o pajé justifica os

brancos – e também eles mesmos, já que também almejaram a guerra – sob a

perspectiva do instinto [atitude primeira], ao dizer que a repulsa e destruição do que é

estranho é o primeiro impulso do ser humano. Resta à inteligência a capacidade de

conter esse impulso, para ser – pode-se dizer – “civilizado” e aberto ao diálogo. Para tal

– insiste-se – a educação para o respeito não só com a própria cultura, como para a

cultura do outro, é fundamental para controlar o impulso da repulsa e aniquilação do

diferente.

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54

Interessante notar que, após a afirmação do pajé citada anteriormente, ele se

cala, e Curumim respeita tal atitude, já que, para seu povo, há “um tempo certo de falar

e calar, e este tempo tinha chegado ao final” (MUNDURUKU, 2003, p. 15). Muito além

de Curumim ter respeito e saber que o pajé não responderia a mais nada que ele

perguntasse, a afirmação de que há um tempo de falar e calar, e que o tempo de falar

havia chegado ao fim anuncia que o tempo das denúncias chegou ao fim, e que é tempo

de se abrir ao diálogo. Verifica-se então que o autor não ressalta somente o respeito da

própria cultura, como da cultura do outro também. Desse modo, Daniel Munduruku

respeita o fato de que na cultura do branco também houve uma Tradição que a fez agir

como agiu.

Na obra, além de trabalhar o tema do respeito, é importante que Munduruku

discuta também a força da Tradição, no sentido de mostrar sua permanência do passado

para um presente, desmistificando, assim, sob outra perspectiva, o equívoco ressaltado

por Bessa Freire de que a cultura dos índios é atrasada e primitiva (2009, p. 86). Para

tanto, também Curumim expõe, em relação a sua própria cultura, os mesmos

questionamentos que um jovem branco faria. Trata-se de uma resposta à proposta já

anunciada por Munduruku na contra capa do livro, ao indagar o leitor sobre o que ele

diria “a um jovem indígena que vive angústias semelhantes às suas” (MUNDURUKU,

2003). Assim, no capítulo “Ocaso da Tradição”, Curumim chega a questionar o que

aprenderá na casa dos homens, pensando não haver mais sentido, por exemplo, em

aprender a guerrear já que não há mais guerras (MUNDURUKU, 2003). Além disso,

pergunta se os rituais por que passavam todos os homens da aldeia não seriam antigos

demais (2003, p. 17-18).

Entretanto, a avó de Curumim, no capítulo “Na panela de barro, o que há para

comer?”, ensina a Curumim importantes lições sobre o motivo de seu povo manter

tantas tradições. Nesse capítulo, a avó do jovem ensina que, muito mais do que fazer um

instrumento útil para cozinhar alimentos, a opção por criar uma panela de barro a usar

uma de alumínio (MUNDURUKU, 2003, p. 34) deve-se ao fato de que o barro remete

seu povo à terra, à raiz de tudo, à Tradição, sobre a qual afirma que “não é apenas uma

lembrança fugaz da vida; ela é memória viva” (MUNDURUKU, 2003, p. 32).

Mais adiante, quando Curumim relembra a história contada por uma idosa de

outro povo, ele se lembra de que, uma vez que nem os sábios da aldeia e nem a natureza

pode responder às suas angústias, somente a Tradição pode respondê-lo, já que, segundo

a história, “o que os velhos sabem é um pequeno círculo; o que a natureza sabe é um

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médio círculo; o que a Tradição sabe, engole os dois” (MUNDURUKU, 2003, p. 52).

Desse modo, a Tradição é de tal forma viva que sabe suprimir os questionamentos de

seu povo e manter forte suas raízes. De fato, Daniel Munduruku, ao ser indagado sobre

o que seria vida para os índios, atreve-se a afirmar que o autóctone “não faz esse tipo de

questionamento” (MUNDURUKU, 2009, p. 28). Segundo ele,

As conjecturas trazem consigo a angústia. No pensar de um povo existe o presente e tudo o que o presente acarreta como custo e benefício. O presente, no entanto, está atrelado ao passado. Não a um passado físico, mas a um passado memorial, dos feitos dos criadores, dos heróis e do início dos tempos. Esta memória é reinventada no cotidiano para que todos possam caminhar conforme os ensinamentos, as regras de conduta e os valores individuais e sociais que regem a sociedade. Viver é, portanto, ter os pés assentados no agora e o pensamento e o coração amarrados na Tradição (MUNDURUKU, 2009, p. 28).

Dessa forma, uma vez que o povo não se assenta sobre a Tradição para construir

o presente, está fadado a caminhar para sua própria destruição (MUNDURUKU, 2003,

p. 33). Em Sinal do Pajé, a importância da Tradição também pode ser verificada no

momento em que o pai de Curumim afirma que, quando se perde o gosto pela Tradição,

o homem constrói cercas que não permitem o trânsito de outras pessoas

(MUNDURUKU, 2003, p. 41).

Faz-se necessário, portanto, o compromisso com a Tradição. Esse compromisso,

segundo o pai de Curumim, remete-se à criação de seu povo, uma vez que o Criador

[entendendo-se aqui como o Criador para aquele povo, não necessariamente o judaico-

cristão] criou aquele povo depois da criação dos “homens da cidade”, “com a firme

obrigação de manter acesa a chama da criação” (MUNDURUKU, 2003, p. 41). Dessa

forma, ao levar Curumim para o mesmo local onde seu pai o levou, no monte aonde

“veio seu espírito quando se desprendeu do corpo”, antes de entrar para a casa dos

homens, pode-se afirmar que esse pai também destinou Curumim a ser o guardião da

Tradição assim como ele o foi.

O homem, já homem de muito tempo, baixou o paneiro no chão. Olhou à sua volta com ares de admiração e graça, abriu os braços e rodopiou como uma criança tendo os olhos do filho como espectadores atentos de seus gestos. Depois estancou. Chamou o garoto para junto de si. – Desde criança não venho aqui, meu filho. Meu pai me trouxe quando estava para completar minha maioridade. Era seu lugar

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preferido. Seu avô dizia que quando morresse, seu espírito viria habitar estas montanhas [...]. – Mas você nunca voltou aqui desde então? – Não. Não estava na hora. Este é um lugar sagrado. Meu pai o passou para mim e agora eu o passo para você, meu filho. Na hora certa você deverá passar para seu filho (MUNDURUKU, 2003, p. 43).

Também a avó de Curumim, comentando um pouco mais sobre seu motivo de

fazer panelas de barro, afirma estar feliz de saber fazer somente panelas de barro,

sabendo-se um ponto pequeno, mas ainda relevante para manter viva a história de seu

povo, já que as panelas que fabrica carregam o alimento que mantem os jovens fortes e

sadios e os faz poder continuar a Tradição (MUNDURUKU, 2003, p. 35). O próprio

Curumim chega a concluir, momentos antes, que os costumes de seu povo mostram que

os Espíritos estão contentes com eles, e, mais adiante, que deve continuar a sabedoria da

Tradição (MUNDURUKU, 2003).

Entretanto, a Tradição o faz refletir que não se pode fugir de uma realidade que

sufoca sua gente, seus sonhos, sua terra (MUNDURUKU, 2003, p. 29), de que há

questões da outra cultura que os questiona e os impulsiona também a compreendê-los. É

para tanto que o pajé os prepara, no último capítulo da narrativa, para serem os

mensageiros de um povo “de memória presente de uma realidade passada”

(MUNDURUKU, 2003, p. 57). O pajé chega a assumir que realmente uma das grandes

guerras que seu povo enfrenta é a tentação de largar a sua Tradição para se lançar à vida

na cidade (MUNDURUKU, 2003, p. 58). E, de fato, muito antes do pajé dizer isso, no

capítulo “Ocaso da Tradição”, Curumim chega a ver um dos jovens resolver ir à cidade

contra a vontade de sua namorada, a qual chega a chorar e a afirmar a Curumim, quanto

aos homens da cidade: “Nós não somos iguais a eles, somos diferentes. Tu achas que

um filhote de capivara vai viver bem no meio das onças? Eles são as onças e nós, as

capivaras. A memória de nossa gente está correndo riscos” (MUNDURUKU, 2003, p.

21).

De fato, é mister lembrar a figura do sinal do pajé que foi abordada no início

deste capítulo: o mutum. Ela é uma das aves brasileiras em risco de extinção, o que

simboliza o medo de seu povo na figura do mutum, que era o sinal do pajé. Entretanto,

no momento final da narrativa, o sinal deixa de ser o mutum, ave em extinção, para ser

um gavião (MUNDURUKU, 2003, p. 63), ave altiva, forte, guerreira, símbolo de uma

Tradição forte, que identifica seus portadores aonde quer que vão (MUNDURUKU,

2003).

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57

Assim, o pajé encerra do seguinte modo a cerimônia de início de sua jornada na

casa dos homens (lugar onde os jovens da tribo adentram para somente sair tornados

homens):

Um perfume tirou o garoto-quase-homem [Curumim] de seus pensamentos. Era o pajé que reiniciava o rito final da cerimônia [...]. O sábio ancião entrou na casa dos homens e incensou todo o espaço para deixá-lo purificado. Em seguida saiu, dirigindo-se ao grupo com a panela nas mãos. – Este incenso, extraído da madeira cheirosa de nossa floresta, foi usado pelo nosso Pai Primeiro no dia em que nos criou. Ele disse aos nossos avós que deveríamos nos perfumar no dia em que entrássemos pela primeira vez na casa do conselho dos homens. E vocês sabem para quê? – ... – Para sermos dignos de representá-Lo com nossa coragem e determinação [...]. [...] – O conselho dos anciãos esteve reunido durante essas últimas horas. Juntos pedimos a proteção e as luzes dos antepassados. Eles não nos abandonaram. O mais velho entre nós disse que o tempo havia chegado e que era a hora de fazermos a antiga profecia acontecer; que era a hora de enfrentarmos o nosso maior inimigo: o medo. Decidimos, então, preparar esses jovens e enviá-los para o lugar das luzes [a cidade]. Vocês aprenderão os segredos da Tradição e ensinarão estes segredos para os homens e mulheres da cidade (MUNDURUKU, 2003, p. 61-62, adendos e grifos nossos).

Essa antiga profecia a que o pajé se refere, provavelmente, é a feita por

Purnaminari, antes da chegada do povo europeu, de que “vocês agora vão ser

dominados por outras pessoas, até quando vocês se lembrarem de mim, aí então vocês

irão ao rio tomar banho e chorar mostrando suas caras, para que assim eu vos reconheça

e Tupana devolva aquilo que sempre foi de vocês” (apud VIEIRA, 2006, p. 45). França

esclarece essa visão, afirmando que, após um longo período de tempo, depois que os

índios se reconhecessem – assumissem a sua tradição, que sempre foi deles –

reconquistariam seu respeito, agindo como dignos de sua própria terra.

Portanto, para o pajé, era a hora de enfrentar o medo de abandonar suas raízes,

se assumirem como guardiões do segredo da Tradição, e ensinar os povos da outra

cultura, tendo-os não como inimigos, e sim como aprendizes e portadores de outro saber

diverso, que pode os fortalecer em sua própria cultura.

Finaliza-se aqui este capítulo com a seguinte fala da Tradição, dirigida a

Curumim nas montanhas de seus antepassados, e que resume – muito bem – os três

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pontos levantados por Munduruku durante o livro, e que foram aqui abordados: o

respeito, a força e o compromisso com a Tradição:

Curumim, esta terra nunca nos pertenceu. Não é de ninguém. Aprecie-a, viva-a, cuide dela como herança dos antigos para os homens de hoje. Aconteça o que acontecer, saiba ouvir as vozes da antiga Tradição de nosso povo e não permita que isso tudo seja destruído (MUNDURUKU, 2003, p. 44-45, grifos nossos).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se pode perceber nas análises das literaturas indigenistas, a formação da

imagem do índio pela cultura branca sempre estará permeada de muitos estereótipos e

de valores incertos que tornarão essa imagem defeituosa e infiel, porque apresenta uma

perspectiva “de fora” da matéria literária. Entretanto, o objetivo da análise do texto de

informação Carta, de Pero Vaz de Caminha, do romance Iracema, de José de Alencar, e

da rapsódia Macunaíma, de Mário de Andrade não foi diminuir essas obras, já que todas

elas deram o pontapé inicial para as reflexões sobre a representação do índio no

contexto brasileiro. Se Caminha foi o primeiro a expor a imagem do índio, sobretudo,

Alencar e Mário de Andrade foram inovadores ao começarem a criar uma linguagem

genuinamente brasileira em suas obras, sendo que Mário conseguiu compreender boa

parte da cultura brasileira em Macunaíma.

Também, essas obras serviram de fonte de questionamento por parte dos

escritores indígenas, que puderam criar uma literatura rica em respeito, auto-afirmação,

no sentido de manter sempre firmes suas raízes perante o outro (nesse caso, o branco),

mas sem o depreciar, e estabelecer o diálogo. É o caso de Daniel Munduruku, que

procura, em seus textos, compreender o outro em suas atitudes, jamais fechando sua

cultura em si mesma. Tal é a ousadia das literaturas indígenas que elas se dispuseram a

empregar a linguagem do outro para expor a sua cultura, como nós fazemos quando

escrevemos em outras línguas (que não a nossa)com o intuito de levar aos outros povos

a riqueza de nossa cultura.

A obra Sinal do Pajé não se constitui uma fiel transcrição de histórias orais, já

que a linguagem escrita suprime elementos próprios da oralidade. Entretanto, isso não

significa que não haja literatura indígena com histórias orais transcritas. É o caso da

literatura oral indígena, aqui entendida como a transcrição das histórias contadas

oralmente, isto é, as oralituras indígenas.

Convém, no entanto, ressaltar que a concepção da cultura indígena em Sinal do

Pajé reflete o ponto de vista do autor da obra, o que implica a existência de uma

perspectiva em meio a várias outras possíveis. Há, como Bessa Freire (2009) ressaltou,

muitos outros povos indígenas com muitas outras visões também enriquecedoras da

cultura indígena, que não é uma só, mas variada entre os povos, como é variada a

cultura brasileira em suas diferentes regiões.

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Dessa forma, segundo a reflexão de Aílton Krenak (apud VIEIRA, 2006), o

marco do descobrimento,1500, não foi o ponto único de contato.Esse contato acontece

até os dias atuais, uma vez que os brasileiros conhecem novas tribos, e também são

tempos em que não se percebe a importância de valorizar, compartilhando nossa cultura

e aprendendo com outras culturas, a diversidade cultural.

Nesse sentido, de abertura a diálogos, por fim, creio que o tema que motivou

este trabalho foi cumprido. Entretanto, convido o leitor a aprofundar-se no estudo das

raízes de nossa cultura, por vezes tão problemática – e, mesmo assim, tão diversa – por

meio das literaturas indígenas (sem desconsiderar os textos indigenistas, com os quais

os autores indígenas estabelecem diálogo), como também a conhecer as culturas

indígena, negra, nipônica, italiana, entre outras tantas culturas que presenteiam o nosso

Brasil de diálogos multiculturais. Somente alguém firme em sua Tradição, e aberto a

outras tradições, pode romper com o estereótipo e, seguramente, conhecer as outras

culturas.

Todos nós também precisamos passar pela “Casa dos Homens”, para deixarmos

de ser meros portadores e reprodutores de ideologias, para nos tornarmos verdadeiros

guardiões de nossa cultura, a qual também conserva características da cultura indígena,

diferente, mas também comum à nossa. A verdade nunca nos pertenceu.

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