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Anais 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

LABORATÓRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS

André Luis Pereira Miatello (coord.)

Aléssio Alonso Alves (org.)

Felipe Augusto Ribeiro (org.)

PERSPECTIVAS DE ESTUDO EM HISTÓRIA MEDIEVAL NO BRASIL

Anais do workshop realizado nos dias 29 e 30

de setembro de 2011, na Faculdade de

Filosofia e Ciências Humanas da Universidade

Federal de Minas Gerais.

1ª Edição

Belo Horizonte

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

2012

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Perspectivas de estudo em história medieval no Brasil [recurso eletrônico] : anais do worshop

realizado nos Dias 29 e 30 de setembro de 2011, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais / André Luís Pereira Miatello (coord.); Aléssio Alonso Alves, Felipe Augusto Ribeiro (orgs.).- Belo Horizonte : Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2012.

Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-62707-33-9

1. Idade Média – História 2. Idade Média – Estudo e ensino.3. Europa - História. I. Miatello, André Luis Pereira. II. Alves, Aléssio Alonso. III. Ribeiro, Felipe Augusto.

CDD 940.1

CDU: 930.9(08)

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EXPEDIENTE

Reitor da UFMG

Prof. Dr. Clélio Campolina Diniz

Diretor da Fafich

Prof. Dr. Jorge Alexandre Barbosa Neves

Chefe do Departamento de História

Profª. Drª. Cristina Campolina

Coordenadora de Curso de Pós-

Graduação em História

Profª. Drª. Kátia Gerab Baggio

Comissão organizadora do workshop

Idealização e coordenação

Dr. André Luís Pereira Miatello

Ms. Flávia Aparecida Amaral

Monitores

Aléssio Alonso Alves

Bruna Massai do Carmo

Clycia Gracioso Silva

Daniel de Souza Ramos

Felipe Augusto Ribeiro

Ludmila Andrade Rennó

Marco Antônio Sant’Ana Camargos

Stella Ferreira Gontijo

Wanderson Henrique Pereira

Comissão editorial dos anais

Coordenação

Dr. André Luís Pereira Miatello

Organização, editoração e montagem

Aléssio Alonso Alves

Felipe Augusto Ribeiro

Arte

Ludmila Andrade Rennó

Capa

Boaz e os anciãos.

Bíblia de Luís IX, fol. 18v.

Cortesia de: Faksimile Verlag

Consultor: Richard Leson

Disponível em:

http://www.themorgan.org/collections/swf/

exhibOnline.asp?id=235

Acesso em: 25 out 2012.

Revisão dos textos a encargo dos autores

Page 5: Anais 2011

2

AGRADECIMENTOS

O núcleo UFMG do LEME – Laboratório de Estudos Medievais – agradece, por todo

o suporte na realização de nosso workshop e na publicação deste volume, ao Departamento de

História e ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas

Gerais, nas pessoas das professoras Dra. Cristina Campolina de Sá e Dra. Kátia Gerab

Baggio, chefe e coordenadora do departamento e do programa, respectivamente.

O LEME/UFMG agradece também ao professor Dr. Marcelo Cândido da Silva,

coordenador geral deste Laboratório, cuja participação assídua foi essencial para a

concretização do evento. A ele devemos também a apresentação destes anais.

Agradecemos, por fim, à equipe da biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências

Humanas da UFMG, pela catalogação e registro deste volume, bem como a todos os demais

integrantes da comissão organizadora do evento, pelo trabalho e dedicação: Bruna Massai do

Carmo, Clycia Gracioso Silva, Daniel de Souza Ramos, Flávia Aparecida Amaral, Ludmila

Andrade Rennó, Marco Antônio Sant’Ana Camargos, Stella Ferreira Gontijo, Wanderson

Henrique Pereira.

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3

SUMÁRIO

Caderno de resumos ...................................................................................................................5

Apresentação

Marcelo Cândido da Silva ........................................................................................................13

As disputas pelos bens eclesiásticos na Gália merovíngia (séculos VI-VII)

Karen Torres da Rosa ...............................................................................................................16

“Negociar apaz”: o envio de legados francos ao Império no século VI – as Epístolas

Austrasianas

Edward Detmann Loss .............................................................................................................31

Etnogênese e arqueologia das práticas funerárias no norte da Gália (séculos V-VIII)

Bruna Giovana Bengozi ...........................................................................................................42

Raul Glaber e os concílios de Paz de Deus

Diego Ribeiro dos Reis ............................................................................................................55

Jordanes, Isidoro de Sevilha e a origem dos godos

Verônica da Costa Silveira ...................................................................................................... 67

Diferentes visões sobre a economia no Período Carolíngio

Victor Borges Sobreira ............................................................................................................ 86

Os ordálios como procedimentos probatórios no mundo franco

Marcelo Moreira Ferrasin ......................................................................................................106

A morte e os mortos nas Vitae Fratrum de Gerardo de Frachet (século XIII)

Aléssio Alonso Alves .............................................................................................................115

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4

Apontamentos para o estudo hagiográfico: uma proposta de abordagem sobre o

fenômeno da santidade no Ocidente Medieval

Felipe Augusto Ribeiro ..........................................................................................................136

Sir Gawain and the Green Knight e a gentry inglesa no século XV

Vinícius Marino Carvalho ......................................................................................................150

Leis e direito na Itália do século XIV

Letícia Dias Schirm ................................................................................................................159

As relações entre a magia e o segredo no palco da política entre os séculos XV e XVI

Francisco de Paula Souza de Mendonça Jr. ...........................................................................182

O senhorio nos séculos XI e XII: perspectivas historiográficas

Bruno Tadeu Salles ................................................................................................................197

O conceito de Ecclesia e sua funcionalidade política

André Luis Pereira Miatello ...................................................................................................212

Índice remissivo .....................................................................................................................226

Índice onomástico ..................................................................................................................228

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CADERNO DE RESUMOS

As disputas pelos bens eclesiásticos na Gália merovíngia (séculos VI-VII)

Karen Torres da Rosa

A historiografia preocupa-se desde o século XIX com a compreensão das relações de poder na

Idade Média, sendo que a partir de meados do século XX os historiadores passaram a

considerar o acúmulo de bens como uma forma de poder. Isso permitiu que as relações do

episcopado e da Igreja com seus bens fossem discutidas como relações de poder. Assim, este

será o objeto de estudo deste trabalho que analisará e comparará dois testamentos episcopais:

o de Cesário de Arles, da metade do século VI, e o de Bertrand de Mans, de 616. Relacionar

esses dois documentos e os Concílios Merovíngios também será imprescindível, uma vez que

são encontrados vários cânones que pretendem normatizar o tratamento dado pelos bispos aos

bens, referindo-se, em grande parte, à proteção dos bens eclesiásticos. Dessa forma, o foco

estará na compreensão da existência ou não de conflitos em torno dos bens, auxiliado pelo

estudo do problema da ambiguidade das relações entre os bens dos bispos e das igrejas, ou

seja, por aquele em que há a preocupação com uma separação entre tais bens.

PALAVRAS-CHAVE: Bispos. Testamentos. Bens.

“Negociar apaz”: o envio de legados francos ao Império no século VI – as Epístolas

Austrasianas

Edward Detmann Loss

O presente texto tem por objetivo explorar como as “Epístolas Austrasianas” – uma

compilação de 48 epístolas trocadas entre a Austrásia e Bizâncio durante o século VI – vem

sendo utilizadas nas últimas décadas para o estudo das práticas de negociação e de troca de

legações entre as diferentes unidades políticas independentes do mediterrâneo no século VI.

Para tanto, discute-se, em um primeiro momento, as transformações historiográficas da

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segunda metade do século XX acerca da violência medieval que permitiram pensar na

existência de mecanismos de resolução de conflitos no período e possibilitaram que essa

documentação pudesse ser analisada como fonte de estudo dessas práticas. Em seguida,

explora-se as considerações feitas pelos principais estudiosos dessas epístolas sobre as formas

de negociação entre as entidades políticas da Alta Idade Média à partir dessa documentação.

Por último, busca-se problematizar algumas dessas conclusões através da análise de

exemplares da coleção.

PALAVRAS-CHAVE: Epístolas. Austrásia. Embaixadas.

Etnogênese e arqueologia das práticas funerárias no norte da Gália (séculos V-VIII)

Bruna Giovana Bengozi

A busca pelas origens dos francos e do estabelecimento destes no norte da Gália foi assunto

recorrente nos estudos de historiadores, arqueólogos, entre outros, especialmente a partir do

século XIX, período este marcado pela emergência dos Estados nacionais e do nacionalismo

étnico europeu. Diante deste contexto, os “cemitérios em fileiras” (Reihengräberfelder),

comuns no norte da Gália entre o final do século V e início do século VIII, foram utilizados

por medievalistas e arqueólogos para determinar as identidades étnicas dos ocupantes destas

necrópoles, principalmente francos e galo-romanos. Consequentemente, os estudos sobre tais

cemitérios foram usados para permitir a associação direta dos “povos” identificados aos

Estados emergentes no século XIX e para justificar discursos ideológicos e políticos

contemporâneos, postura esta criticada por muitos estudiosos a partir da Segunda Guerra

Mundial. Assim, o objetivo desta comunicação é apresentar um debate historiográfico entre

dois estudos de casos sobre os “cemitérios em fileiras”, produzidos nos séculos XIX e XX, e

refletir sobre como os historiadores e arqueólogos analisaram esse tipo de necrópole, tanto a

fim de identificação dos francos de um ponto de vista étnico quanto para a crítica a esse tipo

de interpretação. A partir dessa reflexão, buscar-se-á elucidar duas posturas historiográficas

distintas diante de discussões ligadas ao problema da etnogênese e ao uso da arqueologia

funerária, que influenciaram o entendimento sobre os francos e o tecido social durante o

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período medieval, mas também suscitaram diversas polêmicas nos campos acadêmicos e

políticos desde o século XIX.

PALAVRAS-CHAVE: Arqueologia funerária. Etnogênese. Francos.

Raul Glaber e os concílios de Paz de Deus

Diego Ribeiro dos Reis

Tradicionalmente, a violência se tornou peça chave e paradigma para os estudos sobre a Idade

Média, um argumento para se “comprovar” a ausência de Estado e o desaparecimento de

instituições públicas. Assim, a Idade Média foi considerada, sobretudo por grande parte da

historiografia do século XIX, como um período atrasado no qual a violência e a desordem

prosperavam em detrimento da ordem política e social. Os estudos se centravam na violência,

e a paz era um tema pouco discutido até a segunda metade do século XX. Durante esses anos,

grande parte desses estudos se circunscrevia, de uma maneira geral, a contrapor esses

elementos, tomando-os como um par antinômico. Deste modo, documentos medievais – como

as Histórias de Raul Glaber, escritas na primeira metade do século XI e as atas dos concílios

judiciários de Paz de Deus dos séculos X, XI e XII, sobretudo – foram tomados como

testemunhos e respostas às desagregações sociais e políticas, e ao estado de violência

generalizada desse período, ou seja, uma tentativa de reestruturação da ordem pública. A

partir disso, o presente trabalho pretende fazer um estudo comparativo entre as concepções de

paz presentes tanto em alguns textos dos concílios de Paz de Deus que ocorreram entre o fim

do século X e as primeiras décadas do século XI, quanto nas Histórias de Raul Glaber,

buscando compreender as particularidades e as características comuns em torno de tais

concepções, assim como indagar a maneira pela qual se descreve a paz, o vocabulário

utilizado e quais os valores dados a ela, tendo em mente a parcialidade desse estudo.

PALAVRAS-CHAVE: Raul Glaber. Paz de Deus. Paz.

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Jordanes, Isidoro de Sevilha e a origem dos godos

Verônica da Costa Silveira

O trabalho objetiva apresentar em linhas gerais e introdutórias a origem dos godos nas

Historiae de Jordanes e Isidoro de Sevilha. Indicaremos inicialmente alguns problemas

envolvidos no estudo do tema com vistas a introduzir os leitores aos debates concernentes a

possibilidade de falarmos na existência de “história” na Idade Média, para em seguida

exemplificarmos uma possibilidade de pesquisa mediante a análise comparativa do De origine

actibusque Getarum, comumente conhecido como Gética, de Jordanes, e do De origine

Gothorum et regno Sueborum et etiam Wandalorum historia librum unum, de Isidoro de

Sevilha à luz dos debates recentes sobre identidades na Antigüidade Tardia.

PALAVRAS-CHAVE: Jordanes. Isidoro de Sevilha. Godos.

Os ordálios como procedimentos probatórios no mundo franco

Marcelo Moreira Ferrasin

Os ordálios, ou “juízos de Deus”, foram utilizados como meios probatórios por diferentes

sociedades, em distintos períodos. Certa historiografia considerou por longo tempo, os

ordálios como provas “irracionais”, típicos das sociedades “bárbaras” da Alta Idade Média.

Igualmente, historiadores generalizaram os “juízos de Deus” como a principal prova judiciária

de um “direito bárbaro”. Essas abordagens desempenharam influência decisiva para a imagem

depreciativa que se fez, e por ora se faz da Idade Média. Neste texto, pretendo destacar o uso

dos ordálios no espaço franco, a partir das disposições normativas expressas nas “leis dos

francos” e na “lei dos burgúndios”, como também das recentes contribuições da historiografia

sobre o assunto. O objetivo desse trabalho é demonstrar como os ordálios, e a título de

exemplo analiso o ordálio da água fervente e o duelo judiciário, inseriam-se no regime

probatório franco, como um último recurso, como um meio excepcional de se provar em casos

graves ou na falta de outras provas.

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PALAVRAS-CHAVE: Ordálios. Lei. Francos.

A morte e os mortos nas Vitae Fratrum de Gerardo de Frachet (século XIII)

Aléssio Alonso Alves

Compostas em momentos de grandes conflitos entre frades e clérigos seculares, as Vitae

Fratrum de Gerardo de Frachet têm como escopo a autoafirmação da Ordem dos Frades

Pregadores como sendo sagrada. Presentes de forma maciça nas histórias exemplares da obra,

a morte e os mortos desempenharam um papel importante na autoapologia da Ordem e é,

portanto, objetivo deste artigo analisar como estes tópicos foram mobilizados em função desse

intuito. Para tanto, primeiramente faremos um panorama sobre os estudos historiográficos a

respeito da morte e dos mortos; em um segundo momento serão analisadas as circunstâncias

de composição da obra e, por fim, trataremos da morte e dos mortos nas Vitae Fratrum.

PALAVRAS-CHAVE: Morte. Mortos. Dominicanos.

Apontamentos para o estudo hagiográfico: uma proposta de abordagem sobre o

fenômeno da santidade no Ocidente Medieval

Felipe Augusto Ribeiro

O presente texto trata sobre o fenômeno da santidade no cristianismo ocidental, com foco na

“Baixa Idade Média”. Ele faz uma reflexão puramente teórica, recuperando o emergir do

fenômeno, ainda na “Alta Idade Média”, e recolhendo, numa análise panorâmica, alguns

conceitos que podem ser importantes no estudo do fenômeno. Esses conceitos parecem

elucidativos na medida em que evidenciam a santidade no cumprimento de papéis que vão

muito além do religioso, tornando-a um bem perfeitamente inserido na dinâmica de trocas

entre centros de poder. Nesse sentido, a santidade emergiria como um fenômeno

principalmente sociológico e histórico, o que tentaremos corroborar testando os conceitos

levantados no caso de São Francisco de Assis (1182-1226) e do seu culto no centro da Itália

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dos séculos XIII-XIV. Seguindo esse caminho, o trabalho espera ampliar os horizontes de

apreensão do fenômeno abordado.

PALAVRAS-CHAVE: Santidade. Cristianismo. Idade Média.

Sir Gawain and the Green Knight e a gentry inglesa no século XV

Vinícius Marino Carvalho

Esse trabalho propõe um olhar crítico sobre o poema cavaleiresco Sir Gawain and the Green

Knight (SGGK), problematizando seu valor como fonte e as dificuldades inerentes ao seu

estudo. Na primeira parte, faz-se uma tipologia da fonte e um apanhado geral sobre a

historiografia sobre ela tecida. Na segunda, desenvolve-se uma tentativa de interpretação,

fundamentada no delineamento de um provável público alvo em meio ao qual o poema possa

ter circulado. Propor-se-á a hipótese de que SGGK possa ter sido lido pelo grupo social

conhecido de gentry ao longo dos séculos XIV e XV. Mobiliza-se como evidência provável a

existência de versões posteriores do poema vinculadas à gentry, tal como uma menção a ele

em um inventário de um gentleman do século XV, Sir John Paston II. Por fim, estabelece-se

algumas ponderações sobre as limitações de tal enfoque, assim como diretrizes para futuros

desenvolvimentos.

PALAVRAS-CHAVE: Inglaterra. Gentry. Cavalaria.

Leis e direito na Itália do século XIV

Letícia Dias Schirm

Na península itálica, durante o século XIV, os juristas se destacaram, dentre os homens de saber,

não apenas por seu conhecimento teórico, mas também por sua atuação prática tanto como

advogados quanto como professores. Ao elaborarem glosas sobre as leis e proporem uma forma

de compreensão do direto esses homens tocaram em diversos problemas que podem ser

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analisados pela história. A presente comunicação tem por objetivo demonstrar as possibilidades

para o estudo da História Medieval por meio das fontes jurídicas, especialmente aquelas

produzidas no século XIV, momento no qual são realizadas grandes compilações e comentários

a cerca do Corpus Iuris Civilis. Espera-se atingir essa meta por meio da discussão sobre o

dominium apresentada por Bartolus da Sassoferrato (1314-1357).

PALAVRAS-CHAVE: Lei. Direito. Bartolus da Sassoferrato.

As relações entre a magia e o segredo no palco da política entre os séculos XV e XVI

Francisco de Paula Souza de Mendonça Jr.

O presente texto busca refletir sobre as relações entre política e magia nos séculos XV e XVI, tendo

em vista o reavivamento de correntes esotéricas como o hermetismo e a cabala, bem como o

surgimento de um agente principesco dedicado à comunicação cifrada, o secretarium. Discutindo

principalmente a Steganographia do abade alemão Johannes Trithemius e o De Magiae Naturalis

do italiano Giambattista della Porta, intentou-se apresentar os pontos de diálogo entre as concepções

de segredo atinentes ao magus e aquelas postas em exercício pelo secretarium. No exercício de

reflexão aqui proposto recorreu-se à discussão de Michel Senellart sobre as transformações do

exercício do poder no recorte temporal já apresentado, e, mais especificamente, aos Arcanae

Imperii, figura conceitual por ele mobilizada para pensar tal questão.

PALAVRAS-CHAVE: Política. Magia. Segredo.

O senhorio nos séculos XI e XII: perspectivas historiográficas

Bruno Tadeu Salles

Nas últimas duas décadas do século XX e no início do XXI, a definição do feudalismo se revelou

um dos temas mais polêmicos da historiografia europeia e norte-americana. A partir do grande

volume de interpretações e de escritos sobre o tema, publicados na primeira década do século XXI,

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propomos uma síntese das opiniões e das abordagens possíveis. Modo de produção, imaginário e

forma de governo foram apenas algumas qualidades que abordagens jurídica, culturais, econômicas,

sociais e – porque não? – políticas elaboraram no decorrer dos séculos XIX e XX sobre o

feudalismo. Do mesmo modo, a amplitude das fronteiras dessas conclusões teria sido expandida.

Falar-se-ia de feudalismo desde o Japão dos séculos XV e XVI até a América Portuguesa. A

despeito de sua amplitude e de seu caráter controverso e pouco consensual, segundo Alain Guerreau

(2002), ele era o único conceito capaz de conceber as sociedades ditas francesas dos séculos XI e

XII como um sistema, interligando aspectos jurídicos, culturais, econômico, sociais e – porque não?

– políticos. Nas discussões historiográficas francesas e anglo-saxônicas acerca do feudalismo, as

especificidades das relações e vínculos de poder senhoriais, bem como a composição do

dominium/senhorio, ocupou um lugar central. Isto à medida que as interdependências senhoriais, a

nível horizontal e vertical, se constituiriam no fator central das relações sociais no complexo sistema

dito feudal. Como definir, portanto, o senhorio? Como analisar suas particularidades? Neste ponto,

mostra-se fundamental mobilizar as reflexões historiográficas sobre o poder senhorial dos séculos

X, XI e XII como coordenada fundamental da presente revisão historiográfica.

PALAVRAS-CHAVE: Dominium/Senhorio. Feudalismo. Historiografia.

O conceito de Ecclesia e sua funcionalidade política

André Luis Pereira Miatello

Neste artigo, discutimos o conceito de sociedade no período medieval, propondo o uso menos

anacrônico do termo latino ecclesia para indicar a simultaneidade dos aspectos políticos e religiosos

durante a chamada Idade Média. Questionamos os limites dos estudos historiográficos que partem

do pressuposto de um Estado reificado em sua forma nacional, liberal e laica como categoria de

análise de outros períodos da história; tal equívoco está na base do recorrente preconceito em

relação à história medieval que, por ser desprovida dos critérios da razão de Estado, passa a ser

considerada vítima de um dogmatismo religioso que impediu a emergência do político. Esperamos

reavaliar essas categorias e propor uma chave de leitura mais apropriada.

PALAVRAS-CHAVE: Igreja. Estado. Cristandade.

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APRESENTAÇÃO

Entre os dias 29 e 30 de Setembro de 2011, o Núcleo UFMG do Laboratório de

Estudos Medievais (LEME), coordenado pelo Prof. Dr. André Pereira Miatello, organizou o

Workshop “Perspectivas de Estudo em História Medieval no Brasil”. Durante dois dias,

alunos de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado da Universidade Federal de Minas

Gerais (UFMG) e da Universidade de São Paulo (USP) apresentaram resultados de suas

pesquisas em curso. Esses trabalhos se encontram reunidos nesta publicação, com o apoio da

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH), do Programa de Pós-Graduação em

História e do Departamento de História da UFMG. Além das sessões de comunicação de

Iniciação Científica, o evento contou ainda com quatro mesas-redondas, das quais

participaram pós-graduandos e professores, com os seguintes temas: “Idade Média e

historiografia”; “Justiça, violência e resolução de conflitos na Alta Idade Média”; “Realeza e

poder público na Baixa Idade Média” e “Ecclesia e Sociedade cristã no Ocidente medieval”.

Esse encontro constituiu um bom indicador de algumas transformações pelas quais passaram

os estudos medievais no Brasil nos últimos anos: diversificação temática, retorno em força da

história política e fortalecimento de grupos de pesquisa estruturados em rede a partir das

universidades públicas. “Perspectivas de Estudo em História Medieval no Brasil” é um marco

na ampliação do LEME para além dos seus núcleos originais, da USP e da Universidade

Estadual de Campinas (UNICAMP), ambos criados em 2005. É também uma etapa

importante na consolidação dos estudos medievais na UFMG: o número, mas, sobretudo, a

qualidade de trabalhos apresentados, demonstram o interesse despertado pela História

Medieval entre os alunos de Graduação e de Pós-Graduação daquela universidade. Um

segundo encontro está previsto para ocorrer em outubro de 2012, o que mostra que a iniciativa

se inscreve numa visão de longo prazo que pretende situar a UFMG de maneira duradoura na

paisagem dos estudos de História Medieval no Brasil.

Um dos aspectos mais importantes dos trabalhos aqui reunidos é a sua diversidade.

De um ponto de vista cronológico, eles cobrem praticamente todo o período que chamamos de

Idade Média e que vai do século VI ao século XIV. Esses trabalhos também são construídos a

partir de uma grande gama de fontes: testamentos, epístolas, cânones conciliares, polípticos,

crônicas e histórias, leis e editos reais, vidas de santos e poemas. Mesmo a historiografia e os

relatórios de escavações arqueológicas são utilizados como “documentos”. As questões

colocadas a esses textos pelos autores são igualmente variadas. Há aquelas de cunho

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eminentemente historiográfico: em que medida a arqueologia funerária contribuiu para a

construção de uma identidade étnica franca (Bruna Bengozi)? De que maneira as críticas à

ideia de “mutação feudal” permitiram uma reavaliação da Ordem Senhorial dos séculos XI e

XII (Bruno Salles)? Outras questões colocadas pelos autores mobilizam tipos específicos de

fontes buscando responder à questão geral, mas não menos legítima, de como essas fontes

permitem um conhecimento da sociedade que as produziu: de que maneira as fontes jurídicas

podem ser úteis para a compreensão da sociedade italiana do século XIV (Letícia Schirm)?

Como o conceito de Ecclesia permite uma melhor compreensão da especificidade do

fenômeno político na Idade Média (André Miatello)? De que forma o “segredo” e o “oculto”

se constituíram como dimensões capitais da vida política no final da Idade Média (Francisco

Mendonça Júnior)? Como a santidade pode ser um instrumento útil na compreensão das

relações sociais (Felipe Ribeiro)? Como um poema – no caso, o Sir Gawain and the Green

Knight – pode ajudar na compreensão da história da Gentry inglesa no século XV (Vinicius

Marino)? Alguns trabalhos optam por uma abordagem comparativa das fontes: qual a relação

entre o significado da “paz” nas Histórias, de Raul Glaber, e aquele que encontramos nos

concílios do mesmo período (Diego Reis)? Qual o lugar dos Ordálios nas fontes narrativas e

nos textos normativos da Gália franca (Marcelo Ferrasin)? De que maneira a análise de

testamentos e de cânones conciliares da época merovíngia pode esclarecer o problema da

disputa pelos bens (Karen Rosa)? E há também aqueles trabalhos que se dedicam a investigar

um problema específico num determinado tipo de fonte: é possível uma história da

historiografia da Antiguidade Tardia (Verônica Silveira)? Como a morte e os mortos foram

mobilizados nas Vitae Fratrum, da Ordem dos Pregadores (Aléssio Alves)? Como as epístolas

austrasianas podem ser utilizadas para o estudo das práticas de negociação no Mediterrâneo

do século VI (Edward Loss)?

Apesar da diversidade de objetos e de enfoques privilegiados, bem como dos

múltiplos estágios da pesquisa, os textos que seguem trazem alguns aspectos comuns que

merecem ser destacados. Nenhum dos autores acredita ser o primeiro a pesquisar seu tema.

Todos situam as suas pesquisas a partir da evocação e, muitas vezes, da discussão das

correntes historiográficas que ajudaram a conformar o objeto que se pretende investigar. Além

disso, há uma preocupação conceitual digna de nota. Os conceitos utilizados são explicitados,

discutidos e submetidos, na maior parte do tempo, a um questionamento fundamental: quais

os limites do seu uso no campo da reflexão histórica? Destacaria também uma preocupação

comum com as sociedades nas quais os textos estudados foram produzidos. Podemos observar

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nos trabalhos aqui reunidos que o diálogo entre os diversos tipos de fontes leva em conta as

distintas condições de sua produção e, algumas vezes, de sua circulação. Isso é feito, no

entanto, sem nenhuma adesão a uma leitura determinista.

Finalmente, não poderia deixar de mencionar o quanto o convite para redigir esta

apresentação possui um significado especial para mim. Foi na UFMG que comecei a estudar

História Medieval, inicialmente como aluno de Iniciação Científica, em 1993, e,

posteriormente, em 1996, como aluno de Mestrado, sob a orientação do Professor Daniel

Valle Ribeiro. A pesquisa em História Medieval, naquele momento, ainda contava com pouco

respaldo institucional, isso sem contar as dificuldades que se apresentavam àqueles que

pretendiam seguir esse caminho: dificuldade de acesso às fontes, bibliotecas com bibliografia

defasada, pouca interlocução entre os pesquisadores da área no Brasil e com os colegas no

exterior. Desde então, importantes e positivas transformações ocorreram: a criação da

Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM), a multiplicação dos grupos de

pesquisa na área, dos Grupos de Trabalho em História Medieval no seio da Associação

Nacional de História (ANPUH), a criação de revistas especializadas, a renovação dos acervos

das bibliotecas nacionais, o aumento do número de publicações de autores brasileiros. O livro

que aqui se apresenta é o produto desse novo cenário acadêmico.

Marcelo Cândido da Silva (USP)

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AS DISPUTAS PELOS BENS ECLESIÁSTICOS NA GÁLIA MEROVÍNGIA

(SÉCULOS VI-VII)

Karen Torres da Rosa1

1 Introdução

A recente discussão em torno dos bens na Alta Idade Média foi estabelecida levando-

se em conta sua relação com o poder. É a intensa circulação desses bens na sociedade que

apresenta o poder daqueles que os detêm. Essas ideias só puderam ser desenvolvidas a partir

da metade do século XX, quando a historiografia passa a discutir os pressupostos modernos

de que o poder só poderia ser adquirido pela autoridade pública. Nessa época, os historiadores

passam a pensar na relação entre propriedade e Igreja2. Assim, foi possível, juntamente com

os estudos realizados por meio do auxílio dos documentos eclesiásticos3, perceber uma

questão pertinente ao estudo das estruturas de poder do período: a ambigüidade das relações

entre os bens dos bispos e das igrejas. Na Gália dos séculos VI e VII, essa questão é bastante

confusa para o historiador que, ao analisar os documentos provenientes deste lugar e período,

encontra divergências e semelhanças.

Esta apresentação se propõe, portanto, a compreender se os bens dos bispos

pertenciam ao patrimônio da Igreja ou se havia uma separação clara entre eles, e como essa

relação era tratada pelos textos normativos. Poderá ser notado que havia um conflito entre os

bispos e as igrejas pela aquisição dos bens eclesiásticos. Nesse sentido, resta discutir como e

porque esse conflito acontecia.

Os trabalhos dos historiadores até a metade do século XX, que se dispuseram a

compreender a questão dos dons e das trocas (ambos sendo formas de circulação de bens)

(BLOCH, 1968: 106-114), eram influenciados pelos ideais do evolucionismo do século XIX

1 Graduanda em História pela Universidade de São Paulo, bolsista pelo programa de auxílio à Iniciação

Científica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e pesquisadora do Laboratório de

Estudos Medievais (LEME). E-mail: [email protected]. 2 A fim de exemplificação, há dois trabalhos importantes publicados pela Mélanges de l’École française de

Rome que tratam da transferência patrimonial como uma forma de poder relacionada, em grande parte, à

Igreja: Sauver son âme et se perpétuer : transmission du patrimoine et mémoire au haut Moyen Âge

(2005) e Dots et douaires dans le haut Moyen Âge (2002). 3 Os historiadores passam a ter interesse em utilizar as coleções de documentos e cartulários (títulos de

propriedade) monásticos e eclesiásticos que até este momento não eram utilizadas sistematicamente por eles.

Isso ocorreu, em grande medida, devido à influência da busca pela história social, em detrimento da história

política (ROSENWEIN, 1999: 563-575).

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17

e, por isso, tinham a perspectiva de que havia uma diferença dos níveis das trocas, sendo o

mais elevado o comércio cuja finalidade era a procura do lucro. (DEVROEY, 2003: 175)

Algumas mudanças nesses estudos relacionados aos bens tendem a aparecer em

meados do século XX devido à influência da Antropologia nos estudos sobre a Idade Média.

Aparentemente, esses historiadores foram influenciados, e alguns o são até os dias de hoje,

pelo sistema de dom e contradom (don-échange ou gift-giving) apresentado pelo antropólogo

Marcel Mauss (1988), cuja primeira edição é de 1923. Muitos historiadores passaram a

utilizar tal sistema somente a partir dos anos 19504, como uma forma de aproximar os estudos

sobre os bens ao campo das relações sociais. Entretanto, esse sistema criado por Mauss é

discutido e debatido dentro do próprio campo da Antropologia, como acontece por meio de

Alain Testart (2001). Segundo este antropólogo, o que separa uma troca de um dom é o

direito proveniente dessas formas de circulação. Se houver o direito de exigir uma

contrapartida, é uma troca; se não, é dom. Mesmo que o dom seja seguido de um contradom,

este não é obrigatório e, portanto, o doador não terá nenhuma legitimidade para exigi-lo.

(TESTART, 2001: 719-720) No campo historiográfico, também há aqueles que, como Eliana

Magnani, acreditam que a Antropologia não é necessária para o estudo do dom. Nesse caso,

critica aqueles que utilizaram o modelo de Mauss para estudar a Idade Média e argumenta que

o teriam feito de forma inadequada, sendo obrigados a adaptar os resultados obtidos a este

quadro teórico (MAGNANI, 2002: 309).

Entre os bens de circulação, é importante não perder de vista a propriedade, pois,

como Jean-Pierre Devroey afirma, “a terra é o principal sinal de riqueza e poder social”

(DEVROEY, 2003: 257). Ela é discutida pelos historiadores em vários aspectos, como os

direitos do proprietário sobre a terra, a possibilidade de alienação, a transmissão por herança

ou por outros meios, etc. Para Devroey, a noção de propriedade, encontrada nos documentos

como dominium, foi herdada do direito romano e possui uma série de dificuldades de

interpretação para o período medieval. O autor admite que outras palavras encontradas nos

documentos como villa, res, locus, não tinham precisão alguma, o que dificulta bastante a sua

interpretação (DEVROEY, 2003: 257-258 e 263).

4 Nesse sistema prevalece a obrigatoriedade do dom (doação feita pelo indivíduo a outro indivíduo ou instituição,

em uma sociedade situada fora do sistema industrial) e do contradom. Um dom poderia ser feito por diversos

motivos, entre eles, há a preocupação em confirmar a relação de família ou de construir ligações intertribais,

entretanto o beneficiário tinha o dever de devolver um contradom e assim por diante. Desse modo, esse sistema

apresenta o caráter social das doações, utilizado por medievalistas como Philip Grierson e Georges Duby para

explicar a natureza da economia na Alta Idade Média. (DEVROEY, 2003: 175-178; ROSENWIEN, 1989: 125-

128; CURTA, 2006: 671-673).

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18

Em outra análise da questão da propriedade, Susan Reynolds nota que a concepção de

propriedade privada na Alta Idade Média não é pertinente, pois se refere a ideias que não são

encontradas no período. Não havia uma distinção clara entre público e privado, o que torna

fraca a distinção entre propriedade e governo, por exemplo (REYNOLDS, 1996: 51-53 e 61).

Segundo a autora, a transmissão de terra acontecia nos povos que ocuparam a região da Gália,

mesmo antes do período merovíngio, por meio de dotes, doações e heranças testamentárias.

Entretanto, nesse período houve uma multiplicação da alienação de propriedades nesta região

que causava tensões entre o proprietário e seus herdeiros. Os documentos mostram que esse

aumento estaria associado a dois tipos de práticas: as testamentárias romanas e as doações à

Igreja (REYNOLDS, 1996: 75-77).

Nota-se a importância das terras para a circulação de bens no período por meio da

frequência do conflito gerado em torno dessa transferência, pois essas terras proporcionariam

poder e riqueza aos seus detentores. Segundo a historiadora Régine Le Jan, esses conflitos dão

margem a duas concepções de propriedade: uma em que há a transferência completa e

definitiva da propriedade e de todos os direitos do doador ao beneficiário; e outra em que se

transfere o dominium sobre um bem, conservando os direitos sobre ele (LE JAN, 1999: 960-

961).

2 A aquisição de bens pelas igrejas

As doações de bens à Igreja poderiam ser feitas por meio das doações pro anima5,

mais populares no final do período merovíngio, assim como por outras formas de doações de

bens à Igreja que tinham em vista a provisão dos pobres, como a esmola e os testamentos. O

testamento no período merovíngio também tinha a preocupação com a salvação da alma do

testador, pois, como propõe Josiane Barbier, ele era um ancestral daquela doação pro anima

(BARBIER, 2005: 20-21).

Desse modo, os bispos na Alta Idade Média trataram de apresentar nos cânones

conciliares (resumos das decisões tomadas pelos bispos sobre os rumos da Igreja) como a

assimilação dos bens pela Igreja é feita em função dos pobres:

Que não seja permitido a ninguém conservar, alienar e remover os bens e recursos

atribuídos legalmente, sob uma forma ou outra de esmola, às igrejas, monastérios e

5 Essas doações pro anima eram como um comércio espiritual com Deus, ou seja, eram atos de caridade ou

esmolas doadas em busca da recompensa na forma de salvação da alma. (CURTA, 2006: 674).

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19

hospícios. Que aquele que o tenha feito, condenado pelas sentenças dos antigos

cânones como assassino dos pobres, seja mantido afastado dos limites da igreja até

que seja restaurado aquilo que foi tomado (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989:

308-309, grifo nosso, tradução da autora)6.

Neste cânone 13 do Concílio de Orléans V de 549 duas informações são importantes

para o tratamento dos bens eclesiásticos: as formas legais de atribuição de bens às instituições

religiosas e a preocupação com a preservação desses bens, representada pela punição dada

àquele que fizesse uso dos bens da igreja em seu benefício, chamado de “assassino dos

pobres” (necatores pauperum).

Vê-se, por exemplo, que no cânone 25 do concílio de Tours II (567) os bens dos

bispos são considerados como bens da Igreja. Isso acontece devido à proteção dada aos bens

episcopais pelo cânone contra os “assassinos dos pobres”. Há também neste cânone o trecho

“que elas (as propriedades dos bispos) também pertençam à igreja” (GAUDEMET;

BASDEVANT, 1989: 384-387) em que se percebe que as propriedades dos bispos faziam

parte da igreja e eram administradas por eles. Esse foi um meio encontrado pelo episcopado

para escapar, juntamente com a Igreja, das usurpações que poderiam ocorrer do seu

patrimônio.

No entanto, o já citado Concílio de Orléans V (549) mostra a preocupação do rei

Childeberto I em manter o bispo da igreja de Lyon sem acesso aos bens do hospício fundado

pelo rei para que não houvesse usurpação dos mesmos.7 Isso mostra que o invasor, o

“assassino dos pobres”, poderia ser alguém de dentro da própria Igreja. (ROSENWEIN, 1999:

42-43) Nesse sentido, os bens dos bispos seriam desvinculados dos bens das igrejas, de modo

que aqueles poderiam ser considerados usurpadores dos bens eclesiásticos.

A partir dessa breve discussão, nota-se claramente uma contradição em quem seriam

os proprietários dos bens eclesiásticos: se seriam os bispos ou a instituição. Esta angústia,

criada pelas primeiras leituras realizadas, foi o ponto inicial para o desenvolvimento desta

pesquisa que utiliza dois tipos de documentos: os testamentos e os concílios - ambos do

período merovíngio. Os testamentos, fonte da expressão da vontade do testador após sua

6 “Qu’il ne soit permis à personne de retenir, aliéner et soustraire les biens et ressources attribués légalement,

sous une forme ou l’autre d’aumône, aux églises, aux monastères ou aux hospices. Que quiconque l’a fait,

condamné qu’il est par les sentences des anciens canons comme assassin des pauvres, soit tenu éloigné du

seuil de l’église jusqu’à ce qu’il ait restitué ce qui a été pris on retenu”. Concílio de Orléans V (549), c. 13. 7 “De tudo o que foi ou será atribuído ao dito hospício, seja bens ou pessoas, [...] que o bispo da igreja de Lyon

jamais se atribua de nada pessoalmente e não transfira nada à propriedade da igreja”. “De tout ce qui a été ou

sera attribué audit hospice en fait des biens et des personnes, [...] que jamais l’évêque de l’église de Lyon ne

s’attribue rien personnellement ni ne transfère rien à la propriété de l’église”. Concílio de Orléans V (549), c.

15. (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 310-313, tradução da autora).

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20

morte, são importantes para verificar como se dá a relação do próprio bispo com seu bem. Já

os textos conciliares tinham por objetivo resolver problemas hierárquicos, doutrinários e

disciplinares. Em um estudo sobre o desenvolvimento da legislação da Igreja, Kenneth

Pennington apresenta que os concílios acabavam limitando a liberdade do bispo para governar

sua igreja, limitando por consequência sua autoridade. Essas normas e procedimentos, em

geral, deveriam ser seguidos por todas as igrejas locais, as quais os concílios abrangiam

(PENNINGTON, 2007: 389-390).

Essas características podem ser percebidas ao longo da maior parte dos cânones

conciliares merovíngios. Há no concílio de Épaone uma demonstração da preocupação do

episcopado com a obediência dessas normas. Este concílio foi reunido para organizar a igreja

do reino burgúndio em 517, logo depois da ascensão do príncipe Sigismundo (GAUDEMET;

BASDEVANT, 1989: 93). Seus cânones, entretanto, são retomados em concílios posteriores

no reino franco. O último cânone deste concílio mostra que as decisões foram tomadas em

comum acordo e sob a inspiração divina e que se um dos santos bispos que confirmaram por

sua assinatura pessoal os presentes estatutos se afastar destes ao negligenciar sua observação

integral, que ele saiba que será tido como culpado ao julgamento de Deus e de seus irmãos

(GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 120-121). Dessa forma, os 24 bispos que assinaram

esse concílio concordavam com o que estava aí escrito. O cânone 12 do referido concílio,

também restringe o poder do bispo, pois declara que nenhum bispo teria o poder de vender os

bens de sua igreja sem a permissão de seu metropolitano (GAUDEMET; BASDEVANT,

1989: 106-107).

Será feito, desse modo, um diálogo entre os dois tipos de fonte do período merovíngio

para verificar sua pertinência no estudo da ambiguidade entre os bens eclesiásticos e

episcopais. Esses documentos apresentam o conflito causado entre os bispos e a entidade da

Igreja com a finalidade de adquirir os bens eclesiásticos. Aqueles utilizados nesta pesquisa

têm como base dois testamentos episcopais (de Cesário de Arles e de Bertrand de Mans), com

uma margem temporal de aproximadamente cem anos entre eles, e alguns concílios,

realizados próximos às datas dos testamentos. Assim, poderão ser observadas suas influências

e até mesmo sua validade como textos que estabelecem algum tipo de norma.

3 Os bispos e os bens eclesiásticos

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21

Os bispos, por serem chefes da Igreja, tinham a função de administrar suas

propriedades. Assim, como ressalta Susan Wood, pode ser observado nos cânones conciliares

que essas propriedades eram inalienáveis, ou seja, havia a preocupação com a proteção de

bens e patrimônios eclesiásticos8. Isso aconteceu devido, principalmente, ao aumento das

doações de bens às igrejas, crescendo o número de suas propriedades.

Para Barbara Rosenwein, a questão da unidade eclesiástica suscita a problemática em

torno da distinção entre o patrimônio das dioceses e dos monastérios. Os bispos poderiam

usurpar os bens monásticos, ignorando a distinção entre as propriedades de sua catedral e de

seus monastérios diocesanos (ROSENWEIN, 1999: 568-569). Há, portanto, dois modos de

alienação patrimonial por parte dos bispos: dos bens eclesiásticos aos seus bens pessoais; e

dos bens eclesiásticos de outras instituições (como os monastérios) aos bens de sua igreja.

Os cânones conciliares tratam, na maioria dos casos, da alienação causada pelos reis e

pela elite secular. No entanto, também pode ser observada certa preocupação em relação aos

próprios bispos. Isso ocorre mais freqüentemente nos concílios da primeira metade do século

VI, pois corresponde ao período de aumento das doações às igrejas. Neste caso, o Concílio de

Orléans I (511) realizado no reino franco é exemplar. Há neste concílio dois cânones que se

referem à alienação dos bens doados às igrejas. Os cânones 14 e 15 mostram que os bispos

retêm metade das ofertas feitas pelos fiéis, sendo que a outra metade pertenceria ao clérigo,

mas que todos os bens deveriam permanecer sob a autoridade dos bispos. (GAUDEMET;

BASDEVANT, 1989: 81) Esses cânones apresentam advertências aos bispos sobre o modo

como eles devem gerir os bens e quais são seus limites.

[...] dos bens depositados sobre o altar como oferenda dos fiéis, o bispo retém para

ele a metade, a dividir segundo o posto, as terras permanecem, para as necessidades

gerais, sob a autoridade dos bispos (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 81,

tradução da autora)9.

8 Mesmo os monastérios fundados por bispos, como o de Cesário de Arles, não eram previstos como uma

propriedade episcopal e, por isso, eram proibidos de serem alienados. (WOOD, 2006: 9-10 e 199). Essa

inalienação das propriedades eclesiásticas é encontrada, por exemplo, no cânone 13 do Concílio de Orléans III

(538): Quanto à interdição feita aos bispos de alienar as parcelas de terra e outros bens da igreja, ou de os

anexar por contratos inúteis, que sejam mantidas as disposições dos cânones precedentes: que não seja

permitido alienar ou anexar inutilmente por nenhum contrato os bens da igreja [...]. “Quant à l’interdiction fait

aux évêques d’aliéner des parcelles de terre et d’autres biens de l’église, ou de les engager par des contrats

inutiles, que soient maintenues les dispositions des précédents canons : qu’il ne nous soit pas permis d’aliéner

ou engager inutilement par aucun contrat les biens de l’église. […]”. (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989:

243, tradução da autora). 9 “[...] des biens déposés sur l’autel comme offrande des fidèles, l’évêque retienne pour lui la moitié, à se

répartir selon le rang, les terres demeurant, pour les besoins généraux, sous l’autorité des évêques”. Concílio

de Orléans I (511), c. 14.

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22

Ainda é possível citar dois outros concílios que possuem cânones referentes à disputa

pelos bens eclesiásticos. O de Carpentras (527) foi reunido pelo bispo de Arles, Cesário, e

possui apenas um cânone promulgado que tende a proteger o patrimônio eclesiástico contra as

pretensões excessivas de alguns bispos. (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 144-145)

Enquanto o Concílio de Orléans III (538) retoma, com relação à interdição feita aos bispos de

alienar os bens das igrejas, as disposições dos cânones precedentes. Assim, nota-se que, pelo

menos durante esse período, os concílios retratam uma coerência sobre essa disputa pelos

bens eclesiásticos.

Nesse contexto, em que há a denúncia da alienação dos bens da Igreja por parte dos

bispos realizada por meio dos concílios, o bispo Cesário, ao morrer na metade do século VI,

deixa um testamento com o que ele deseja que seja feito após sua morte (COURREAU;

VOGÜÉ, 1994: 360-397).

No começo do testamento, Cesário se preocupa em justificar o motivo que o levou a

redigi-lo, o qual será o problema central do testamento: ele quer que as freiras do monastério

que ele mesmo fundou sejam beneficiadas com os bens pertencentes à Igreja (COURREAU;

VOGÜÉ, 1994: 360). Acredita que, assim como a Igreja garante ajuda aos estrangeiros e

indigentes pela sua bondade ou porque tal atitude lhe convém, ela também deveria ajudar

outras instituições eclesiásticas10

, como o já citado mosteiro, pois as freiras estão a serviço da

obra de Deus. Para isso, Cesário coloca-se como parte da Igreja, já que não possui bens

próprios, ou seja, não possui bens advindos de sua família para fazer doações pessoais, além

de invocar o sucesso que teve ao duplicar o patrimônio de sua igreja e ao conseguir imunidade

fiscal para a mesma.

[...] quantos dos meus cuidados fizeram crescer o patrimônio da Igreja até vós: ele

quase dobrou. Além disso, é por minha modesta pessoa que o Deus de misericórdia

também nos concedeu de sermos isentos da maioria dos impostos […]

(COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 390-391)11

.

10

“Se, em sua bondade, a Igreja tem o costume de fazer, como convêm, generosidades para socorrer os

estrangeiros e os indigentes, quanto mais quando se apresenta a ocasião ou a obrigação de conceder alguma

coisa aos santos que temem a Deus, ela deve abrir todo seu grande coração cheio de misericórdia e de

bondade”. “Si, dans sa bonté, l’Église a coutume de faire, comme il sied, des largesses pour secourir les

étrangers et les indigents, combien plus, quand se présente l’occasion ou l’obligation d’accorder quelque

chose à des saints qui craignent Dieu, doit-elle ouvrir tout grand son cœur plein de miséricorde et de

bonté” (COURREAU; VOGÜÉ, 1994, p. 380-381, tradução da autora). 11

“… combien mes soins ont fait grandir le patrimoine de l’Église jusqu’à toi: il a presque doublé. En outre,

c’est par ma modeste personne que le Dieu de miséricorde nous a aussi accordé d’être exempts de la plupart

des impôts …”. Esse é um dos motivos por que Cesário acredita que ele teria legitimidade para administrar os

bens eclesiásticos, legando-os a outras instituições que não fosse a própria Igreja. Isso porque o mosteiro não

fazia parte da Igreja.

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23

Os herdeiros presentes em seu testamento são nomeadamente o monastério de Saint-

Jean e o bispo de Arles, seu sucessor. Dessa forma, o testamento é destinado, em sua maior

parte, à leitura do seu sucessor que terá a função de prover o monastério, principalmente por

meio de doações de terras feitas durante a vigência de Cesário no episcopado, ou seja, ele

pede a seu sucessor apenas a confirmação desses atos. Como uma forma de convencê-lo,

Cesário exalta alguns de seus feitos no episcopado ou justifica outros, como no trecho em que

diz que as doações e vendas feitas de bens eclesiásticos ao monastério não prejudicariam a

Igreja e não eram feitas a seculares, ou seja, ela não estaria perdendo seus bens. Estes estariam

ajudando na conservação da “obra de Deus”, uma vez que as freiras são servas de Deus e

trabalhariam por esta obra. Essa passagem seria também uma resposta à crítica do papa com

relação às vendas dos bens da Igreja ao mosteiro (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 365-366).

Graças a Deus, de fato nós não vendemos sem discernimento nem justiça os bens da

Igreja por venda direta a quaisquer seculares, mas somente aquilo que era sem lucro

para a Igreja e sem denúncia (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 388-389, tradução da

autora)12

.

Essa preocupação relacionada à justificativa de seus atos pode representar, em certa

medida, um diálogo com os cânones conciliares promulgados no período. Cesário, ao

justificar o motivo porque faz as transferências patrimoniais de bens que não lhe pertencem,

acaba agindo de acordo com os cânones. Em uma passagem dirigida ao seu sucessor, em que

Cesário pede que as doações feitas de bens da Igreja para o monastério sejam mantidas após

sua morte, este mostra que essas doações foram feitas com o consentimento e a assinatura dos

seus santos irmãos, ou seja, de outros bispos. Isso justifica que a autorização da doação era

feita por meio do consentimento de outros bispos13

.

É importante salientar que Cesário participou do Concílio de Agde e,

consequentemente, da elaboração de seus cânones. Assim, temos uma relação entre estes

cânones e o testamento redigido por Cesário, o que também justifica as precauções

encontradas ao longo do testamento. Os dons feitos ao monastério são apresentados como

operações de interesse eclesiástico, ou seja, os cânones reconheciam positivamente a

12

“Grâce a Dieu, en effet, nous n’avons pas cédé sans discernement ni justice des biens d’Église par vente

direct à des séculiers quelconques, mais seulement ce qui était sans profit pour l’Église et de nul rapport.” O

bispo quer mostrar que as doações e vendas feitas de bens eclesiásticos ao mosteiro não prejudicariam a Igreja

e não seriam feitas a seculares, ou seja, ela não estaria perdendo seus bens. Estes estariam ajudando na

conservação da “obra de Deus”, uma vez que as freiras são servas de Deus e trabalhariam por esta obra. 13

“Que estas almas santas e ocupadas com Deus mantém a perpetuidade aquilo que nós lhe doamos com o

consentimento e a assinatura de nossos santos irmãos”. “Que ces âmes saintes et occupées de Dieu gardent

donc à perpétuité ce que nous leur avons donné avec le consentement et la signature de nos saints frères”

(COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 388-389, tradução da autora).

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24

transmissão desses bens (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 367-370). Quando Cesário fala, no já

citado trecho, que as doações dos bens da Igreja ao mosteiro eram feitas, pois estes bens não

eram úteis ou vantajosos a ela e que ele tinha o consentimento e a assinatura de outros bispos,

ele está se remetendo ao cânone 7 do Concílio de Agde. Este cânon autoriza o bispo a

emprestar os bens fundiários que são menos úteis à Igreja (COURREAU; VOGÜÉ, 1994:

388-389).

Apesar de este cânone apresentar um meio do bispo decidir sobre o futuro de um bem

eclesiástico, alguns cânones do Concílio de Agde de 506 (c. 33) e do Concílio de Épaone de

517 (c. 17), que tratam diretamente dos testamentos episcopais, reprovam o ato dos bispos de

alienar bens eclesiásticos a terceiros que não sejam à sua Igreja. Caso esta alienação indevida

aconteça, o testador deve reparar com sua fortuna pessoal ou de seus herdeiros. Como Cesário

não possui fortuna pessoal, já que prega a pobreza como forma de salvação da alma, ele

justifica suas alienações por meio do seu feito de ter dobrado o patrimônio da Igreja, bem

como ter obtido para ela uma grande imunidade fiscal. (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 370-

371) Neste exemplo vê-se claramente a separação existente entre os bens do bispo e os bens

eclesiásticos, que são administrados pelos bispos, mas que devem obedecer às normas

promulgadas nos concílios, no período merovíngio.

Nesse sentido, é visto que essa separação gera um conflito entre o bispo que almeja

uma autonomia com relação às doações feitas por este por meio de testamento e a Igreja,

representada pelos bispos participantes dos concílios, que não permite a alienação. O já citado

cânone 17 do Concílio de Épaone também apresenta este conflito. O cânone diz que se um

bispo, ao redigir seu testamento, lega um bem que pertence à propriedade da Igreja, este ato

será nulo, a menos que ele o compense com um bem próprio cujo valor seja ao menos igual ao

daquele14

. Ou seja, o bispo não tem autoridade para alienar os bens eclesiásticos, como dito

anteriormente, o que nos faz crer que Cesário utilizou dos próprios cânones para fazer valer a

sua vontade após a morte.

No entanto, não basta saber, com base no testamento, que o comportamento dos bispos

em relação aos bens eclesiásticos é submetido às normas promulgadas nos cânones conciliares

apenas no período da primeira metade do século VI. É necessário verificar se esse panorama

14

Concílio de Épaone, c. 17: Se um bispo, ao redigir seu testamento, lega um bem que provém da propriedade

da Igreja, o legado será anulado, a menos que a compense por um valor ao menos igual tomado de seus

próprios bens. “Si um évêque, em rédigeant son testament, lègue um bien qui relève de la propriété de

l’Église, le legs será nul, à moins qu’il ne le compense par um valeur au moins égale prise sur ses propres

biens (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 108-109).

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permanece até, pelo menos, o século VII, para compreender a ambigüidade entre os bens

episcopais e eclesiásticos e se ela causaria conflitos em torno destes bens.

É válido notar que os concílios têm a necessidade de se adaptar às circunstâncias de

seu tempo presente.15

Assim, entre as preocupações dos bispos nos concílios do final do

século VI e início do VII encontra-se, raramente, alguma relativa à usurpação, ou melhor, à

alienação dos bens eclesiásticos pelos bispos. Existe uma preocupação referente às usurpações

dos bens eclesiásticos, porém, só daquelas feitas por reis, nobres ou laicos, em geral.

No Concílio de Clichy (626-627) há quatro cânones que remetem à relação dos bispos

com os bens eclesiásticos. Eles retomam cânones de concílios realizados no início do século

VI. Em geral, esses cânones referem-se à proibição dos bispos de assimilarem os bens das

igrejas aos seus próprios bens16

, como no cânone 15:

Que os bispos, como prescreveu a antiga autoridade dos cânones, não se permitam

vender as casas ou os escravos da igreja, ou o que quer que seja que pertença à

igreja, nem dispor, por qualquer contrato, para depois de sua morte, daquilo que

vivem os pobres (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 538-539, tradução da autora)17

.

Apesar de este concílio ser elaborado posteriormente ao testamento do bispo Bertrand

de Mans (616), ele pode retratar as necessidades contemporâneas assim como regular aquilo

que ocorria no período em que foi elaborado. Neste caso, essas práticas poderiam ser comuns

no período de Bertrand ou poderiam apresentar uma insegurança da Igreja. De qualquer

forma, é importante notar que esse tipo de preocupação era vigente na época em que Bertrand

redige seu testamento.

Assim como no caso de Cesário, Bertrand tem a preocupação em deixar uma herança

para a instituição religiosa fundada por ele, a basílica Saint Pierre-et-Paul. Entretanto, essa

não é a única questão tratada pelo testamento. Bertrand se dirige, freqüentemente, ao rei

Clotário II, mostrando sua lealdade e fidelidade e também dá ordens expressas do que deve

ser feito com seus bens, destinados, principalmente, à basílica já citada, às igrejas e à catedral

de Mans, entre outros estabelecimentos religiosos, e aos seus sobrinhos (LINGER, 1995: p.

15

No concílio de Paris V (614), os bispos apresentam na introdução que um dos motivos porque se reuniam era

a necessidade de adaptar os antigos cânones conciliares às circunstâncias presentes. (PONTAL, 1989: 205-

206). 16

São os cânones 2, 15, 22 e 24 do Concílio de Clichy. (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 531-543). 17

“Que les évêques, comme l’a prescrit l’ancienne autorité des canons, ne se permettent ni de vendre des

maisons ou des esclaves de l’église, ou quoi que ce soit qui appartient à l’église, ni de disposer, par n’importe

quel contrat, pour après leur mort, de ce dont vivent les pauvres”. Concílio de Clichy (626-627), c. 15. Este

cânone remete-se ao cânone 7 do concílio de Agde (506) e aos cânones 7, 12 e 17 do concílio de Épaone

(517).

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175). Dessa forma, vemos que esse testamento episcopal reintroduz os bens das igrejas na

circulação de mercado, se compararmos com o testamento de Cesário.

Na introdução, Bertrand justifica o motivo porque escreve seu testamento. Segundo o

bispo, o rei Clotário teria permitido que ele transmitisse, por interesse próprio, aos seus fiéis e

próximos os bens que havia herdado de seus pais, obtidos pelos benefícios dados pelo próprio

rei, ou adquiridos por outros meios18

. Essa afirmação de Bertrand se distancia bastante do

testamento de Cesário que em momento algum fala de alguma intervenção real para que

pudesse elaborar seu testamento. Todos os seus bens pertenciam, em primeira instância, à

Igreja e, portanto, o bispo nada poderia fazer para administrá-los após sua morte (conforme os

cânones conciliares), como deseja fazer por meio desse testamento. Todavia, o testamento

apresenta, mesmo que por meio de uma leitura superficial, que o rei possuía poder para julgar

a quem pertenciam os bens. Há uma clara diferença entre os bens episcopais e aqueles

pertencentes à Igreja, porém o próprio bispo não teria poder para administrar aquilo que

possuía, apenas a Igreja tinha esse poder, a menos que o rei interviesse.

Indiretamente, Bertrand faz uma separação entre os bens que já possuía antes de se

tornar bispo, como os bens herdados de seus pais, e aqueles adquiridos já como bispo.

Quando se refere aos bens herdados por ele, utiliza pronomes e verbos na primeira pessoa do

singular (LINGER, 1995: 191, disposição n° 14). Contudo, ao tratar dos bens adquiridos

durante sua permanência no episcopado, Bertrand passa para a primeira pessoa do plural

(LINGER, 1995: 191, disposição n° 11). Estes últimos bens provavelmente pertenciam ao

bispo e à igreja de Mans. Portanto, quando adquiria bens como bispo, não era para a pessoa de

Bertrand que esses bens passariam a pertencer, mas a a sua igreja de origem. O bispo não

tinha propriedade sobre tais bens, como visto na disposição nº 25 do testamento em que este

declara que as vilas que doou à santa igreja pelo testamento ou que foram adquiridos sob sua

gestão permanecessem na posse da igreja.

Nós rogamos ao nosso sucessor e o conjuramos pela Trindade divina que as villae

que eu doei à santa igreja por este testamento ou que foram adquiridas sob a minha

gestão, permaneçam na posse da igreja [...] (LINGER, 1995: 192, disposição nº 25,

tradução da autora)19

.

18

“[...] o altíssimo senhor rei Clotário, [...], doou-me um preceito confirmando de sua mão que ele me atribui a

livre escolha, [...]”. “[...] le très haut seigneur roi Clotaire, […], m’a donné un précepte confirmant de sa

main qu’il m’attribuait le libre choix, […]”. (LINGER, 1995: 190, tradução da autora). 19

“Nous supplions notre successeur et nous le conjurons par la Trinité divine que les villae que moi j’ai

données à la sainte église par ce testament ou qui ont été acquises sous ma gestion, restent en la possession

de l’église …”. O testador mostra que tudo aquilo que adquiriu em sua gestão na igreja de Mans,

Page 30: Anais 2011

27

Um bem importante para Bertrand, presente em várias disposições do testamento, são

as villae que, no entanto, em momento algum são definidas pelo testador20

. Uma justificativa

dessa importância dada às villae seria a de que, neste caso, as villae herdadas eram uma

representação da doação plena da propriedade, não apenas o direito à sua administração.

Por fim, Bertrand elege bispos para serem testemunhas de suas vontades e

transmissores de suas decisões a seu sucessor no episcopado da igreja de Mans, para que elas

não sejam desvirtuadas na sua ausência e possam ser atribuídas como salvação de sua alma.21

Ainda na conclusão faz ameaças, como de excomunhão, lepra, entre outras, a quem não

cumprir sua vontade. Assim, pôde se perceber que a qualificação do testador como

proprietário deve ser questionada por meio deste testamento.

4 Considerações finais

Desse modo, foi visto que há claramente uma distinção entre os bens episcopais e os

bens eclesiásticos, ao menos quando analisados os textos jurídicos elaborados no período

estudado. Ainda foi possível notar que houve confrontos pela propriedade de tais bens

causados pelos próprios religiosos. Os testamentos e os concílios, redigidos no mesmo

período, dialogam entre si na medida em que é apresentado nos dois documentos a

preocupação com a posse desses bens. Apesar de ambos terem sido redigidos pelos próprios

bispos, nota-se essa preocupação é de formas diferentes, e seu uso poderia beneficiar ou

prejudicar o interessado, dependendo da forma como o mesmo documento era utilizado. No

permanecerão em sua posse após a morte de Bertrand. De uma forma indireta, o bispo não permite que outros

reivindiquem esses bens como herança após sua morte. Cesário também apresentou essa preocupação. 20

As villae podem ser uma referência às propriedades em si ou apenas o direto de administrá-las. Em ambos os

casos, o beneficiário teria o dever de administrar a propriedade que ou pertence ao rei ou foi doada por ele.

Por isso, o rei Clotário presenteia Bertrand com tantas villae durante sua vida, aquele precisa de alguém em

quem confia para assegurar as funções sociais de tal região. Portanto, o bispo, ou qualquer um que recebe uma

dessas villae, torna-se uma espécie de administrador público. O benefício que estes possuem por realizar tal

serviço ao rei é o de possuir uma renda por meio da coleta dos impostos de tal propriedade. (LINGER, 1995:

181-182). 21

Josiane Barbier apresenta uma discussão sobre o interesse salvífico presente nos testamentos merovíngios

que, por isso, fariam parte de uma transição entre os testamentos romanos e as doações pro anima que passam

a surgir no período franco. Essas doações teriam uma finalidade única de salvação da alma tendo, assim, mais

facilidade de promover integralmente doações às Igrejas, enquanto nos testamentos haveria mais dificuldades.

(BARBIER, 2005: 7-79) Contudo, no caso específico dos testamentos episcopais essa afirmação da autora não

procede completamente, pois por meio desta análise pôde se perceber que não são todos os testadores que

estão preocupados com a salvação da alma (como o testamento de Bertrand) e que há testamentos, como o de

Cesário, em que o bispo faz doações apenas à Igreja, evitando que seus familiares reivindiquem alguma

herança. Esta última observação contradiz a autora quando esta afirma que os testamentos devem dirigir uma

parte da herança para os familiares mais próximos (herdeiros naturais).

Page 31: Anais 2011

28

caso de Cesário, por exemplo, o bispo conseguiu encontrar nos próprios cânones conciliares

uma maneira de argumentar a favor de suas vontades no testamento, que em tese eram

condenáveis pelos concílios.

Nesse sentido, a presente pesquisa tem como principal objetivo a compreensão dessas

disputas geradas em torno dos bens eclesiásticos pelos bispos e pela entidade eclesiástica. Por

meio do que foi apresentado, já é possível notar que o confronto entre os dois documentos de

caráter normativo apresenta bons resultados referentes à natureza dos bens descritos, apesar

de não serem suficientes para esgotar o tema proposto. A análise dos documentos suscita mais

questões que ainda precisam ser analisadas e discutidas.

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Page 34: Anais 2011

31

“NEGOCIAR A PAZ”: O ENVIO DE LEGADOS FRANCOS AO IMPÉRIO NO

SÉCULO VI – AS EPÍSTOLAS AUSTRASIANAS

Edward Dettmam Loss1

Durante o século XIX – momento de transformação da História em disciplina

acadêmica – a Idade Média tornou-se um lugar privilegiado de interesse dos historiadores.

Preocupados com as prerrogativas do Estado Nacional, vários intelectuais, principalmente

franceses e alemães, buscavam situar no período o momento de nascimento de suas

respectivas nações, ou seja, a busca das origens era a grande tônica de suas produções. Ao

mesmo tempo em que empreendiam esse esforço fundacional, que acabava de certa forma por

valorizar um pouco o período, também lhes cabia a exaltação da superioridade da organização

estatal moderna em detrimento de todas as outras experiências políticas vividas até então.

Esse objetivo fez com que autores como Augustin Thierry (1833) e François Guizot

(1840) – imbuídos da ideia de que a única violência legítima era aquela monopolizada pelo

Estado – produzissem, através da análise de fontes do período, como os escritos de Gregório

de Tours, um quadro da Alta Idade Média marcado pela desordem e pelo caos, fruto de uma

violência descontrolada e, sobretudo, de caráter privado, que seria a clara demonstração da

ausência de um poder público e de estruturas de direito.

Essa ideia de desordem e de violência desenfreada não se restringia ao interior dos

chamados reinos bárbaros, sendo também projetada para a dimensão externa, ou seja, das

relações desses reinos entre si e com o Império Romano do Oriente. É o que encontramos em

trabalhos de ínicios do século XX, como o artigo escrito por Amos Hershey, intitulado: The

history of international relations during antiquity and the middle ages. Obra na qual, o autor

descreve a Alta Idade Média como marcada por violentas e permanentes guerras entre os reis

bárbaros e pela ausência de formas pacificas de negociação e de mediação pelo menos até os

séculos XI e XII, momento do chamado renascimento do direito romano2.

Tal perspectiva persistiu na historiografia durante um longo tempo, sendo somente

questionada mais sistematicamente a partir da segunda metade do século XX. Nesse

1 Bacharel e Licenciado em História pela Universidade de São Paulo. Bolsista de iniciação científica da

FAPESP. 2 “It has been said that ‘international law reached its nadir in the west’ at this period or during the so-called

‘Dark Ages’, between the final disappearance of the Western Empire in 476 and the coronation of

Charlemagne as Emperor of the West by Pope Leo III in 800 A. D. In spite of the pacific teaching of Christ and

the early Fathers of the Church, ‘the history of the wars of Clovis, the hero of orthodox clergy, is the tale of

savage murder and the most hateful treachery’” (HERSHEY, 1911: 922).

Page 35: Anais 2011

32

momento, emergiam, com os processos de descolonização africana, formas de organização

política até então desconhecidas por grande parte da intelectualidade do Ocidente, que

tornavam possível se repensar a influência dos paradigmas do Estado Moderno nas análises

históricas de outros períodos.

Foi também decisiva a aproximação dos estudos históricos com a Antropologia.

Através do contato com as pesquisas sobre a faida africana fundados por E. E. Evans-

Pritchard e de estudos de outros autores, principalmente ligados à Antropologia jurídica

anglo-saxã, os historiadores reviram suas concepções a cerca da prática da vingança, base da

ideia de violência desenfreada medieval (BOUGARD, 2006: 1). Neste sentido, a obra de John

Michael Wallace-Hadrill, The Long-Haired Kings, constituiu um marco. Nesse trabalho o

autor mostrou como a própria realização da vingança na Alta Idade Média seguia parâmetros

e normas estabelecidas pela própria sociedade, não ameaçando, desta forma, a ordem social e

nem as instituições públicas.

Aceitava-se assim que os conflitos entre os dissidentes no interior dos reinos bárbaros

não levavam necessariamente a choques sanguinários, mas passavam por mecanismos de

negociação, de mediação e de arbitragem, mesmo que a violência de alguma forma fizesse

parte deles. Tal perspectiva permitiu também que fosse reavaliada a forma como se

concebiam as relações entre os reinos bárbaros e o Império, que, como exposto anteriormente,

eram marcadas pela ideia de guerra permanente e de ausência de formas pacificas de

negociação.

Desta maneira, surgia um interesse em se entender como se davam essas relações entre

as diferentes entidades políticas independentes do Mediterrâneo e quais eram as suas

características e os mecanismos empregados, já que um cenário de generalização irracional do

conflito bélico não podia mais ser aceito.

Neste processo, uma série de correspondências trocadas entre os principais soberanos

dos séculos VI e VII, que chegaram até nós na forma de compilações epistolares, deixaram de

ser tratadas como exercícios de puro estilo, esvaziadas de conteúdo real – por seus redatores

se declararem imbuídos de aspirações morais elevadas e mencionarem mais a palavra “Paz”

do que “Guerra”3, algo que destoava da visão que se tinha sobre a violência e a avidez dos

3 Essas compilações seriam, em ordem cronológica, primeiramente as Variae de Cassiodoro (†583), referentes ao

reino Ostrogodo e escritas nas primeiras décadas do século VI, depois as cartas de Avito de Viena (†518), que

tratam sobre o período de governo do rei dos Burgúndios, Sigismundo (†524), também do início do século VI.

Em terceiro lugar, as Epístolas arlesianas, um dossiê de cartas trocadas entre os francos e Bizâncio no

momento da Reconquista de Justiniano, seguidas pelas Epístolas austrasianas, reunidas, ao que tudo indica, nos

anos 590, que serão melhor explicadas adiante, devido à sua posição de destaque nesta pesquisa. Em quinto

Page 36: Anais 2011

33

bárbaros – e passaram a ser consideradas importantes fontes para o estudo das formas de

resolução de conflito entre os reinos bárbaros e o Império no período.

Entre essas compilações epistolares da Alta Idade Média encontram-se as “Epístolas

Austrasianas”, um conjunto de 48 epístolas escritas por reis francos e bispos da Gália e

endereçadas a diversos personagens do Reino Franco e da corte do Império Romano do

Oriente durante o século VI. Preservados através de um cópia manuscrita do século IX – o

Palatinus Latinus 869 – esses documentos foram em parte negligenciados até finais do século

XIX, quando Wilhelm Gundlach fez o primeiro estudo sistemático do conjunto das epístolas,

no qual estimou a sua data de reunião, o século VI, a sua proveniência geográfica, a Austrásia,

e levantou questões sobre a identidade do compilador e do objetivo de criação da coleção

(GUNDLACH, 1888: 377). O autor terminaria por publicar a versão que ainda hoje é

considerada a mais importante dessas fontes, incluíndo-a nos Monumenta Germaniae

Historica, os M.G.H., sob o título de Epistolae Austrasicae. Tal versão teve tamanho impacto

na historiografia que o P. L. 869 seria conhecido e mencionado pelo nome de “Epístolas

Austrasianas” em trabalhos escritos mais de um século após a publicação de Gundlach4.

Ao analisar a sua composição, percebe-se que apesar dessas epístolas terem sido

organizadas no seu século de criação como uma unidade, a coleção possui uma estrutura

interna bipartide. Por um lado, um conjunto de 24 epístolas (1-24), trocadas entre os bispos da

Gália, restritas à região da Austrásia e cobrindo um espaço temporal de aproximadamente 130

anos, e, por outro, o grupo formado pelos exemplares de 25 a 48, enviados ao Império em

nome dos reis merovíngios, abrangendo geograficamente a Austrásia, o Reino Lombardo e o

Império Romano do Oriente e centrado nas últimas décadas do século VI.

Levando em consideração as mudanças relativas ao ideal de violência na Alta Idade

Média, destacadas anteriormente nesse texto, e a consequente importância dada aos estudos

das formas pacíficas de resolução de conflitos no período, neste artigo buscar-se-á explorar

como as “epístolas dos reis” (DUMÉZIL; LIENHARD, 2011: 69), os exemplares de 25 a 48,

das Epístolas Austrasianas vem sendo utilizadas nas últimas décadas como fontes para o

lugar, a correspondência do papa Gregório o Grande (†604), também do século VI, e em seguida o Codex

visigodo de Oviedo, de inícios do século VII. Tal documentação contém a Segunda vida de São Desidério de

Viena (†608), texto hagiográfico de grande importância no estudo das relações do Reino Visigodo com os

outros reinos. O autor adiciona também a esses seis exemplares, duas outras coleções que considera

problemáticas: a correspondência de Venâncio Fortunato (†609), também do século VI, que possui um estatuto

textual complexo, e o formulário de Marculfo (†558), que teria um alto grau de dificuldade de avaliação e de

datação. (DÚMEZIL, 2011: passim). 4 Como exemplo, citamos o trabalho de Bruno Dumézil e Thomas Lienhard, produzido na primeira década do

século XXI. Cf. DUMÉZIl, LIENHARD, 2011.

Page 37: Anais 2011

34

estudo das práticas de negociação e de troca de legações entre as diferentes unidades políticas

independentes do mediterrâneo no século VI.

Tem-se por objetivo demonstrar que algumas das conclusões tecidas por autores como

Paul Goubert e Bruno Dúmezil em relação a essas práticas podem ser problematizadas através

de uma análise cuidadosa de epístolas dessa coleção. Um exemplo que será dado através do

estudo de caso da epístolas de número XL e XLII.

Comecemos por um dos primeiros trabalhos de análise realizados nessa direção e até

hoje considerado entre os mais importantes sobre as “Epístolas Austrasianas”: o de Paul

Goubert. Em um tomo de sua coleção sobre Bizâncio antes da expansão islâmica, intitulado:

Byzance et l'occident sous les successeurs de Justinien. I- Byzance et les Francs, o autor se

dedica ao estudo das relações entre o Império e os francos.

Nesta obra, Goubert situou as “Epístolas Austrasianas” no contexto da política

ocidental do Imperador Maurício, que tinha como objetivo a expansão da autoridade bizantina

a todo o antigo território do Mare Nostrum do Império romano. Ele identificou que as

“epístolas dos reis” faziam parte das tentativas de comunicação franco-imperial, devendo,

desta forma, ser consideradas fruto de embaixadas cuidadosamente organizadas e trocadas

entre o Reino Franco e Bizâncio com o objetivo último de obtenção da paz e do bom

relacionamento entre a Austrásia e o Império, que, devido a outros conflitos com os Persas e a

presença lombarda na Península Itálica, necessitava da ajuda franca para alcançar seus

objetivos

Partindo dessa constatação, Goubert realiza um estudo preciso da documentação,

enumerando e pondo em discussão o número e o caráter dessas embaixadas, assim como o

papel dessas cartas no interior dessas expedições, cujos itinerários ele faz questão de traçar,

além de estimar os seus possíveis membros5. O autor ainda destaca a utilização frequente de

bispos e outras figuras eclesiásticas no exercício dessas funções.

Também a partir da análise do conteúdo das epístolas, o pesquisador francês versa

sobre as táticas utilizadas por Bizâncio ao negociar com os reinos bárbaros, como o envio de

dinheiro, a busca de apoio do ascendente papado, o sequestro de pessoas da família real e o

suporte de personagens que reclamam direito ao trono franco6.

De forma geral, podemos dizer que Goubert sinalizou através de sua análise das

epístolas a existência de uma preocupação sistemática com a organização e o envio de

5 Paul Goubert dedicará cinco capítulos inteiros deste tomo as epístolas austrasianas e a essa análise.

(GOUBERT, 1955: 93-202). 6 Sobre o assunto Paul Goubert se dedica grande parte do seu livro a narrar o caso do usurpador Gundovaldo.

Page 38: Anais 2011

35

legações no século VI, algo salientado pela mobilização de agentes de grande prestígio da

corte austrasiana no papel de legados, pelo grande número de embaixadas enviadas em um

relativamente curto período de tempo e finalmente, pelos recursos empregados na manutenção

desses envios, que, em muitos casos, levavam meses para atingir o seu destino.

Durante mais de 50 anos as considerações de Paul Goubert foram praticamente as

únicas sobre as “Epístolas Austrasianas” e as práticas de negociação entre os reinos bárbaros e

o Império na Alta Idade Média. Tal perspectiva foi retomada e aprofundada recentemente, já

no século XXI, pelo pesquisador Bruno Dúmezil. Em seu artigo Les Lettres austrasiennes :

dire, cacher, transmettre les informations diplomatiques au haut Moyen Âge, o autor define

uma série de aspectos interessantes sobre aquilo que chama de “Diplomacia Merovíngia”

através do estudo dos exemplares das “Epístolas Austrasianas” e da sua comparação com

crônicas bizantinas e francas do período.

A principal característica explorada por Dúmezil diz respeito à função da mensagem

diplomática e do seu componente escrito, a epístola, no interior de uma legação enviada. Para

o autor, o papel do documento escrito em uma embaixada era bastante secundário em relação

ao objetivo da legação. Ele se limitaria a dar credibilidade ao seu portador e a assinalar que

esse recebeu instruções secretas que deveria pessoalmente expor. Desta forma, as epístolas

conteriam apenas elementos gerais sobre o assunto a ser discutido (DÚMEZIL; LIENHARD,

2011: 72).

Tal aspecto secundário para o professor francês faria com que o conteúdo desses

documentos tivesse um caráter bem mais ideológico do que descritivo, tendo por função mais

seduzir e mover o destinatário do que informar minuciosamente sobre as questões tratadas no

envio (DÚMEZIL; LIENHARD, 2011: 70).

Uma vez que a legação atingia o seu destino, a epístola teria o seu conteúdo lido em

voz alta diante da corte estrangeira, um aspecto que, para Dúmezil, exigiria a utilização de

uma linguagem cheia de eufemismos nesses textos, que evitasse de qualquer forma causar

indisposições e ofensas entre os dois soberanos que se comunicavam. A presença de vários

elementos formais comuns à todas as “epístolas dos reis” fez com que o autor acreditasse na

existência de padrões chancelerescos que eram seguidos pelos dictatores na composição das

epístolas confiadas aos embaixadores (DÚMEZIL; LIENHARD, 2011: 71).

Em um outro artigo seu intitulado Les ambassadeurs occidentaux au VIe siècle:

recrutement, usages et modes de distinction d'une élite de représentation à l’étranger, Bruno

Dúmezil explora os critérios de escolha desses embaixadores e das características que esses

Page 39: Anais 2011

36

deveriam ter. Através de análises prosopográficas dos indivíduos mencionados no corpo das

epístolas como legados, o autor argumenta que esses personagens seriam do mais alto escalão,

jamais de uma qualidade menor do que de Vir Illuster, provenientes das melhores famílias e,

geralmente, com passagem pela escola do palácio.

De acordo com o pesquisador, existiriam três tipos de pessoas que seriam empregadas

em uma legação: 1) Indíviduos da família real – em casos bastante excepcionais; 2) Ofíciais

civis – os mais frequentemente utilizados; 3) Bispos e figuras eclesiásticas importantes

(DÚMEZIL, 2009: 1).

O número de legados mobilizados também seria algo digno de nota. Normalmente,

uma embaixada era composta por dois indivíduos, aumentando esse número de acordo com o

impacto e a importância que se buscava dar ao envio. (DÙMEZIL, 2009: 3)

Devido à variedade de características e à riqueza de detalhes apresentadas até aqui,

pode-se dizer que os trabalhos de Bruno Dúmezil constitui uma grande contribuição para a

análise das “Epístolas Austrasianas” como fontes para o estudo da diplomacia merovíngia.

Deve-se também a ele a exploração da circulação e da influência dessa coleção, enquanto um

modelo de formulários chancelerescos, nas atividades de diplomatas ao longo da Alta Idade

Média, incluindo a própria chancelaria de Carlos Magno.

Passar-se-á agora para a última parte deste texto, na qual gostaria-se de analisar

algumas das afirmações apresentadas pelos autores anteriormente mencionados à luz da

leitura de trechos de alguns exemplares da coleção. Infelizmente, devido ao reduzido tempo

dessa exposição concentrar-se-á na exploração de um aspecto em particular: as afirmações

acerca da linguagem bastante restritiva desse tipo de documentação, que seria marcada pela

presença de eufemismos e de um tom predominantemente elogioso7.

Na construção de tal argumento Bruno Dúmezil, como visualizamos nas notas de

rodapé de seu texto, utiliza-se das epístolas de número 26, 30, 36 e 37. De fato, esses

exemplares são bastante curtos, com aproximadamente 10 linhas cada, estão repletos de

termos laudatórios aos seus destinatários, e, em relação ao conteúdo, pouco dizem sobre o

objetivo da comunicação, com exceção de indicar que foram designadas instruções aos

embaixadores que os portavam.

7 “Ajoutons qu’étant donné que la lettre est lue en public, toute critique un peu trop ouverte est perçue comme

une agression. [...] Toute franchise étant dangereuse, mieux vaut confier les récriminations à la parole des

ambassadeurs qui s’entretiendront en secret avec le roi. La plupart des lettres officielles savent donc rester les

plus élogieuses possible” (DÚMEZIL, LIENHARDT, 2011: 75-76).

Page 40: Anais 2011

37

Entretanto, chama-se a atenção para a presença na mesma sequência da documentação

referente às “epístolas dos reis”, de exemplares bastante informativos, compostos por mais de

três páginas de texto, como o de número XLII. Escrita pelo imperador Maurício e enviada ao

rei Childeberto II, essa epístola trata de uma reclamação por parte do imperador do não

cumprimento da promessa feita pelo rei da Austrásia de enviar tropas para a expulsão dos

lombardos da Península Itálica. O que impressiona em tal documento, e que destaca-se aqui, é

o tom e a linguagem nele utilizados.

Comecemos pela própria saudação da epístola, na qual se apresentam o destinatário e

o remetente do documento. Encontramos o seguinte enunciado:

EM NOME DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, O IMPERADOR CÉSAR

FLÁVIO MAURÍCIO TIBÉRIO, FIEL EM CRISTO, GENTIL, MÁXIMO,

BENÉFICO, PACÍFICO, ALAMÂNICO, GÓTICO, ÁNTICO, ALÂNICO,

VANDÁLICO, ERÚLICO, GÉPIDO, AFRICO, PIO, FELIZ, ILUSTRE,

VITORIOSO E TRIUNFADOR, SEMPRE AUGUSTO, AO HOMEM GLORIOSO,

CHILDEBERTO, REI DOS FRANCOS (EPÍSTOLA AUSTRASIANA, nº XLII)8.

É possível notar que estão associados ao nome do imperador romano todos os títulos

dos povos já conquistados pelo Império, algo que não encontramos em todas as epístolas da

coleção escritas pelo imperador, que frequentemente só citam “do Imperador Romano

Maurício”.

Temos aqui uma clara tentativa de demonstração do poderio do Imperador e de sua

superioridade em relação à figura do rei da Austrásia, que recebe quase que somente o

adjetivo de rei. Esse tom mais agressivo se intensifica ao longo do texto da epístola.

Selecionamos três trechos que enfatizam esse aspecto:

E nos parece estranho se, afirmando ter justa intenção e que é neste ponto provada a

antiga unidade entre a nação franca e o governo romano, Vossa Eminência deu a

impressão de não mostrar até agora nenhum gesto concreto que seja coerente com

a amizade, enquanto as promessas expressas por escrito e confirmadas pela

intervenção de bispos e corroboradas por terríveis juramentos, passado tanto tempo,

não tenham sortido efeito algum (EPÍSTOLA AUSTRASIANA nº XLII, grifo

nosso)9.

8 “IN NOMINE DOMINI DEI NOSTRI IESU CHRISTI, IMPERATOR CAESAR FLAVIUS MAURICIUS

TIBERIUS, FIDELIS IN CHRISTO, MANSUETUS, MAXIMUS, BENEFICUS, PACIFICUS, ALAMANNICUS,

GOTHICUS, ANTICUS, ALANICUS, WANDALICUS, ERULICUS, GYPEDICUS, AFRICUS, PIUS, FELIX,

INCLITUS, VICTOR E TRIUMPHATOR, SEMPER AUGUSTUS, CHILDEBERTO VIRO GLORIOSO, REGI

FRANCORUM”. 9 “Et mirum nobis videtur si, rectam habere mentem atque priscam gentis Francorum et dicioni Romanae

unitatem esse conprobatam adfirmans, nihil operis usque adhuc amicitiae congruum Eminentia Tua ostendens

visa est, dum in scriptis pollicita atque per sacerdotis firmata et terribilibus iuramentis roborata, tanto

tempore excesso, nullum effectum perceperunt”.

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E se as coisas estão assim, com qual propósito canseis em vão os vossos legados

particulares, por um espaço deveras amplo de terra e de mar, sem confiar-lhes

respostas, com vanglória e discursos juvenis, que não possuem nenhuma

utilidade? (EPÍSTOLA AUSTRASIANA Nº XLII, grifo nosso)10

.

E desejamos que vós, se quiserdes conquistar a nossa amizade, vigorosamente e sem

esitação, examinais cada aspecto e não somente o digais em palavra, mas façais

cumprir virilmente, como se espera de um rei, aquilo que tivésseis dito, e dos

pares espereis a nossa pia benevolência (EPÍSTOLA AUSTRASIANA Nº XLII,

grifo nosso)11

.

Nesses trechos, percebemos, através da qualificação por parte do Imperador de que as

atitudes do rei Childeberto II eram vãs e juvenis, que a mensagem é bastante clara: ou o rei

atende as exigências do Imperador ou perde o apoio e a amizade do Império.

Tal constatação é bastante interessante. Através dela podemos pensar em que medida,

ao invés de seguir um padrão tão marcado, necessariamente apaziguador, a linguagem dessas

epístolas não poderia ser mais flexível variando de acordo com a posição de um interlocutor

em relação ao outro, e, principalmente, com as circunstâncias em que eles se encontravam.

Ora, no momento de composição da epístola analisada o Império detinha posse do neto da

rainha da Austrásia, Atanagildo, como refém em Constantinopla. Fator que, acreditamos,

justificaria a mudança no teor da requisição imperial de ajuda militar.

Ainda em relação ao caráter pouco informativo das epístolas sobre o assunto do qual

elas tratavam, ressaltado por Dúmezil e Lienhard nos exemplares que fazem menção às

mensagens a serem entregues oralmente pelos legados ao destinatário, a leitura da epístola de

número XL apresenta alguns elementos interessantes. Também destinada ao rei Childeberto

II e escrita pelo Imperador Maurício, como o exemplar anteriormente analisado, essa epístola

tem por objetivo informar ao rei franco da ação dos comandantes de seu exército na Península

Itálica, enviado para auxiliar o Imperador na expulsão dos lombardos.

A riqueza de detalhes desse exemplar chama a atenção. Nele encontramos a

localização específica de agentes imperiais;

Mas antes que os vossos comandantes entrassem no território da Itália, Deus por sua

misericórdia e pelas suas orações nos fez entrar, combatendo, até Modena, e também

a Altino e a Mântova – combatendo e abatendo as muralhas, de tal modo que o

exército dos Francos pôde tomar conhecimento – com a ajuda de Deus entramos,

10

“Et si hoc ita est, quid per tante spatia terrae atque maris inaniter sine responsu necessarios vestros

legatarios fatigatis, iuvenalis sermonis, qui nihil utilitatis induxerunt, iactantes?”. 11

“Et optamus vos, si amicitiam nostram appetere desideratis, valide atque incunctanter omnia disceptare et

non solum dictionibus enarrare, sed enarrata viriliter, quomodo regem oportet, peragere atque similiter

nostram piam benevolentiam expectare”.

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apressadamente, para evitar que o nefastíssimo povo Lombardo pudesse se organizar

contra o exército dos Francos, enquanto o homem magnífico Hethin estava a 20

milhas, nos arredores de Verona, e consideramos necessário dirigir-nos a ele sem

esitação, esperando com ele podermos ver de perto e de poder dispor, através de

decisões comuns, sobre o que fosse útil à destruição daquela gente infiel

(EPÍSTOLA AUSTRASIANA. Nº XL)12

.

os planos a serem executados em relação aos lombardos;

E já que Autari tinha se enclausurado em Pávia e os outros comandantes e todo o seu

exército tinha se enclausurado em diversos castelos, no tratado estabelecemos o

seguinte: ir, com o exército romano e com os dromones13

- enquanto Hethin estava

em uma outra parte nos arredores (como já dissemos, 20 milhas) - para sitiar Autari

(e, junto a ele, a maior parte da vitória teria sido obtida) e então, enfim, se

tivessemos alguma coisa a dizer (ou seja, fazer) com eles, tudo teria sido dito

primeiro a vós: isso acreditamos que mesmo o poderoso exército dos Francos

quereria fazer (EPÍSTOLA AUSTRASIANA. Nº XL)14

.

e por fim, o conteúdo de acordos estabelecidos entre a Austrásia e o Império:

Além disso, aquilo que Vossa Glória deve fazer por iniciativa sua, imploramos para

que vós o cumprais: ou seja, que ordenai que os Romanos capturados pelo exército

Franco sejam soltos em vosso mérito e de vossos filhos e netos; pois diversos são os

juramentos presentes nos tratados, incluindo, que os prisioneiros devem ser soltos, e

essa é a intenção de vosso pai, o cristianíssimo imperador, de obter mérito convosco,

dia a dia, pela libertação das almas (EPÍSTOLA AUSTRASIANA. Nº XL)15

.

A presença desses elementos descritivos minuciosos em exemplares16

da coleção foi

mais um indício que nos levou a refletir sobre a inadequação do estabelecimento de critérios e

normas tão rigorosos para as práticas chancelerescas e para o envio de legados no período. As

12

“Ante vero quam fines Italiae vestri duces ingrederentur, Deus pro sua pietate vetrisque orationibus et

Motennensem civitatem nos pugnando ingredi fecit, pariter et Altinonam et Mantuanam civitatem – pugnando

et rumpendo muros, ut Francorum videret exercitus – Deo adiutore sumus ingressi festinantes, ne gente

nefandissimae Langobardarum se contra Francorum exercitum adunare liceret, Etheno viro magnifico in

viginti milibus prope Veronensi civitate resedente, ad quem necessarium duximus sine mora diregere,

sperantes ab eo ut nos videremus in comminus et quae essent utilia ad delendam gentem perfidam

disponeremus communi consilio”. 13

“Embarcações bizantinas ligeiras e velozes, utilizadas na águas do Pó para atacar a Pávia” (MALASPINA,

2001: p. 290). 14

“Et hoc habuimus in tractatu, quia Autharit se in Ticeno inclauserat aliique duces omnesque eius exercitus

per diversa se castella reclauserat: ut nos cum Romano exercitu et dromonibus – Etheno ab alia parte in

vicino (sicut diximus, in viginti milibus) resedente – ad obsedendum Autharit veniremus (eoque capto maxima

pars fuerat adquaesitam victuriae) et tunc demum, si forte aliqua cum eis loquenda (est ut facienda) essent,

omnia prius ad vestram notitiam differrentur: quam rem et Francorum florentissimus credemus quia facere

volebat exercitus”. 15

“Praeterea quod ex se Gloria Vestra facere consuevit, implenda deposcimus, ut Romanus, quos praedavit

Francorum exercitus, pro mercede vestra et filiorum ac nepotum vestrorum relaxare praecipiates; quia et

alia sunt in pactis posita sacramenta, est ut captivi debent relaxari, et patris vestri, christianissimi principis,

haec est intentio, ut cottidiae de animarum liberatione vobiscum mercedem adquirat.” 16

Apresentamos aqui a análise apenas do exemplar XL, como exemplo, mas, esse tipo de afirmação seria válido

também para as epístolas XLVI e XLVIII.

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Epístolas Austrasianas, que são somente uma das compilações epistolares da Alta Idade

Média que chegaram até nós, já apresentam uma heterogeneidade estilística e de conteúdo

suficiente para que essas regras não possam ter sido tão demarcadas.

Fazemos aqui, somente uma provocação para a reflexão do papel das relações de

poder na produção e nas fórmulas utilizadas nesses documentos. Uma preocupação que

implica na consideração de que a análise do termos utilizados e de sua variação em cada uma

das epístolas configura-se, desta forma, num importante objeto de estudo.

Neste artigo buscamos mostrar as mudanças historiográficas a cerca da violência que

tornaram possível pensar na existência de formas complexas de resolução de conflitos entre os

reinos bárbaros e o Império, ou como alguns autores preferem, na existência de uma

“Diplomacia” dos diferentes reinos da Alta Idade Média. Apontamos em seguida, para o

crescente interesse dos historiadores na temática e a consequente tentativa de reabilitação dos

principais documentos que versavam sobre esses contatos: As correspondências epistolares.

Entre essas fontes, chamamos a atenção para a riqueza e as possibilidades da

compilação de epístolas conhecida como “Epistolas Austrasianas”, e, como através do seu

estudo foram feitos avanços significativos na delimitação de características dessas relações

nas últimas décadas.

Nosso principal objetivo foi salientar o quanto ainda é excassa a exploração das fontes

e a produção historiográfica sobre a temática, que, como demonstra o número de colóquios e

encontros realizados (2) neste e no último ano sobre o assunto, ainda terá um longo caminho a

trilhar.

REFERÊNCIAS

1 Fontes

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et karolini aevi (M. G. H. ep. mer.) ed. Gundlach, W. Berlim, 1892.

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di Cultura Romanobarbarica, Roma: Herder, 2001.

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Page 44: Anais 2011

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Pratiques des elites au Haut Moyen Âge. Conception, Perception et Realisation Sociale.

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<http://www1.uni-hamburg.de/tagung-eliten/Dumezil_Ambassadeurs.pdf>.

___________ Les correspondances diplomatiques: une autre vision de la violence publique

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DUMÉZIl, B., LIENHARD, T., Les Lettres austrasiennes : dire, cacher, transmettre les

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Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public: Les relations diplomatiques au

Moyen Âge: sources, pratiques, enjeux. Lyon, 3-6 de Junho de 2010. Paris : Publications de

la Sorbonne, 2011.

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Page 45: Anais 2011

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ETNOGÊNESE E ARQUEOLOGIA DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS NO NORTE DA

GÁLIA (SÉCULOS V-VIII)

Bruna Giovana Bengozi1

1 Breve panorama sobre a relação entre arqueologia, nacionalismo e identidades étnicas

A relação entre arqueologia, identidade étnica, processo de etnogênese, entre outros,

não é recente, já que as tentativas feitas para se descobrir a “etnia” de indivíduos sepultados,

especialmente no período das Grandes Migrações, estiveram entre os principais e polêmicos

objetivos de arqueólogos e historiadores, especialmente a partir do século XIX2. É nesse

período que a História e outras disciplinas, como a filologia, a antropologia física e a

arqueologia, institucionalizadas nas Universidades, consolidam-se como ferramentas do

nacionalismo étnico europeu. Estes campos de pesquisas foram empregados por intelectuais e

políticos dos Estados nacionais emergentes, como França e Alemanha, para o estabelecimento

de uma relação direta não apenas com o período clássico, mas principalmente com a época

medieval (GEARY, 2005: 27-50). Logo, como afirma Benedict Anderson, os Estados

nacionais de base étnica dos dias de hoje poderiam ser descritos como “comunidades

imaginadas”, geradas a partir dos esforços criativos desses estudiosos a partir do século XIX

(ANDERSON, 1983 apud GEARY, 2005: 28). Estes teriam se utilizado de antigas tradições

românticas e nacionalistas, mas também de lendas, fontes escritas (como os textos de caráter

etnográfico provenientes da Antiguidade Clássica e também de influência bíblica), entre

outros, para a criação de programas políticos a fim de forjar unidade ou autonomia política no

passado (GEARY, 2005: 27-28).

Deste modo, as disciplinas já citadas, baseadas em diversos tipos de estudos, como a

frenologia e a etnoarqueologia, foram utilizadas para permitir uma ligação entre o passado

medieval e os séculos XIX e XX. A etnoarqueologia, por exemplo, esteve fortemente atrelada

1 Graduanda em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de

São Paulo (USP) e bolsista FAPESP de Iniciação Científica. Email para contato: [email protected]. 2 As seguintes referências são exemplos de estudos recentes sobre o período medieval e que trazem uma visão

crítica sobre a relação entre nacionalismo, uso da arqueologia, entre outros: GILLET, Andrew (ed.). On

Barbarian Identity: Critical Approaches to Ethnicity in the Early Middle Ages. Turnhout: Brepols Publishers,

2002; GAZEAU, Véronique, BAUDUIN, Pierre, MODÉRAN, Yves (dirs.). Identité et Ethnicité: concepts,

débats historiographiques, exemples – IIIe-XII

e siècle. Caen: Centre de Recherches Archéologiques et

Historiques Médiévales, 2008; CURTA, Florin. “Some remarks on ethnicity in medieval archaeology”. Early

Medieval Europe, nº 15, 2007, pp. 159-185.

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à filologia, pois a partir do momento em que um “povo” era identificado por meio de

evidências lingüísticas, os arqueólogos buscavam provas concretas das especificidades

culturais do povo em questão por meio dos artefatos (GEARY, 2005: 39-44).

A relação entre filologia, arqueologia e etnicidade teve grande destaque nos trabalhos

do arqueólogo alemão Gustaf Kossina. Ele foi o mais importante defensor da teoria de que

tradições específicas da cultura material encontrada poderiam ser relacionadas a comunidades

lingüísticas e estabeleceu uma relação direta entre língua, cultura material e os povos

conhecidos a partir das fontes históricas (GEARY, 2005: 48-49).

O uso da arqueologia para justificar domínios, áreas de contato e ancestralidade

baseou-se na idéia de cultura arqueológica, conceito desenvolvido por Kossina. Na década de

1920, o termo foi utilizado largamente para indicar que os achados arqueológicos que eram

uniformes em uma vasta área ou ocorriam repetidamente juntos constituíam determinada

cultura arqueológica. Segundo Sian Jones (1997: 24), a noção de cultura arqueológica,

baseada na relação direta entre entidades culturais homogêneas, limitadas e povos específicos,

grupos étnicos, tribos ou raças, estava assentada em uma concepção normativa de cultura, ou

seja, que dentro de um dado grupo as práticas e crenças seguiam regras de ação e possuíam

uma natureza essencialmente conservativa. Por outro lado, a interpretação de culturas

arqueológicas associadas aos grupos étnicos não foi uma invenção de Kossina, mas uma

noção diretamente inspirada pela ideia romântica de cultura como reflexo da alma nacional

(Volksgeist) em cada um de seus elementos (CURTA, 2007: 161-162). Logo, este conceito foi

essencial dentro da metodologia adotada por Kossina, chamada por ele mesmo de

“arqueologia de assentamento”, que se baseava no mapeamento dos achados arqueológicos

característicos para estabelecer fronteiras de distribuição e, por fim, identificar os grupos

étnicos (JONES, 1997: 16; RIBEIRO, 2007: 47-48). Por meio dessa interpretação, Kossina e

diversos estudiosos traçaram rotas migratórias dos povos da Alta Idade Média, que partiram

de suas terras nativas e penetraram no mundo romano (GEARY, 2005: 49).

Diante de todos esses aspectos levantados, é importante lembrar que os trabalhos de

Kossina foram diversas vezes associados ao uso político da arqueologia e até mesmo ao

nazismo, recebendo, portanto, inúmeros ataques (CURTA, 2007: 162-165). A partir do

conceito de cultura arqueológica, a arqueologia étnica, que se baseou na identificação de

supostos locais de domínio cultural ou de ancestralidade de um povo, foi particularmente

importante para as reivindicações territoriais nos séculos XIX e XX. No caso do século

passado, o nazismo pode ser considerado o ápice do nacionalismo na arqueologia, justificando

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as conquistas do período, por exemplo, a reivindicação da Alemanha por territórios a leste

europeu durante o Terceiro Reich era vista como um “retorno” e não como uma “conquista”

(GEARY, 2005: 49-50; RIBEIRO, 2007: 47-48)3.

Tais pressupostos dominantes foram colocados em debate, principalmente, a partir do

final da Segunda Guerra Mundial, sob influência de vários trabalhos sociológicos e

antropológicos (JONES, 1997: 26-28). Assim, os anos 1950/1970 foram marcados pelo

debate entre teorias “primordialistas” e “instrumentalistas” (JONES, 1997: 65; BAUDUIN,

2008: 10). A visão “primordialista” se prendeu à ideia de um pedestal cultural imutável,

suficientemente forte e coercitivo para se impor aos indivíduos. A partir do imperativo

primordialista, afirmou-se que os laços primordiais entre os indivíduos eram dados pelo

nascimento, ou seja, “sangue”, língua, religião, território e cultura, que poderiam ser

distinguidos de outros laços sociais com base na importância “inexplicável” do próprio

vínculo em questão. Já as interpretações “instrumentalistas”, que dominaram as pesquisas

sobre a etnicidade nas décadas de 1970 e 1980, salientavam as escolhas e as estratégias dos

atores sociais mobilizados por algum interesse comum e pela obtenção de vantagens políticas

e/ou econômicas. Dentro desta perspectiva “instrumentalista”, a abordagem antropológica da

etnicidade, da identidade étnica, da etnogênese, entre outros, foi pensada em termos de

construção oportunista e de relações de poder (JONES, 1997: 76-79). Pode-se dizer que a

teoria “instrumentalista” contribuiu na descrição e explicação dos aspectos dinâmicos e

situacionais da etnicidade.

Tal abordagem teve grande influência nos trabalhos de medievalistas, que

consideraram a identidade étnica como o produto de condições ligadas a um contexto

particular. Logo, esta identidade foi colocada como um fenômeno socialmente e culturalmente

construído, utilizado em certos momentos e expresso de diversas formas. Os povos também

passaram a ser interpretados não como condição da história, mas sim o seu resultado, pois,

segundo Walter Pohl (2008: 25), atualmente não se pode mais afirmar o progresso quase

teleológico do desenvolvimento de uma nação, pois esta é marcada por agregações étnicas

jamais acabadas e regulada por lógicas mistas. Neste sentido, a etnia não foi mais vista como

um dado imutável e estável e a etnogênese também passou a ser colocada como flexível e

dinâmica. Assim, o estudo da etnogênese colocou-se como objeto principal de pesquisa para

3 Retomando o arqueólogo Kossina, o trabalho deste estabeleceu as bases da metodologia da arqueologia

germânica até meados do século XX. Apesar das críticas às suas interpretações, especialmente, em relação ao

uso da “cultura arqueológica”, pesquisas continuam focando na identificação de culturas arqueológicas e, pelo

menos de forma implícita, na definição de grupos étnicos ou povos (JONES, 1997: 16).

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vários períodos da Idade Média, especialmente para a Alta Idade Média (BAUDUIN, 2008:

14). Um exemplo dessa influência da teoria instrumentalista nos estudos medievais pode ser

encontrado na obra de Patrick Geary, Ethnicity as a Situacional Construct in the Early Middle

Ages, publicado em 1983, na qual ele afirmou que a identidade étnica, na época medieval, era

uma “construção situacional”. Segundo Geary, as filiações étnicas, ou melhor, as “escolhas

étnicas” tinham um caráter dinâmico e, muitas vezes, contraditório, ou seja, os limites étnicos

não seriam estáticos, principalmente, durante o período de migrações, quando provavelmente

as pessoas viviam em um estado de “ambiguidade étnica”. Como o mesmo autor afirmou, as

etnias não eram fenômenos objetivos, tampouco se pode falar de algo inteiramente arbitrário

(GEARY, 1983: 15-26). No caso dos francos, essa situação fica mais clara, pois estes não se

identificavam apenas com unidade menores e com sua confederação, mas também com o

mundo romano, como sugere a inscrição em uma lápide de um túmulo panônio do século III:

“Francus ego civis, miles romanus in armis” (Minha nacionalidade é franca, mas, como

soldado, sou romano), ou seja, há uma grande evidência de manipulação de identidades,

principalmente, entre os militares (GEARY, 2005: 105).

Além disso, a reflexão contemporânea sobre a identidade étnica é reconhecidamente

influenciada pela teoria de etnogênese, formulada por Reinhard Wenskus (1961), retomada e

modificada por diferentes especialistas da Escola de Viena, tais como Walter Pohl e Herwig

Wolfram. O trabalho de Wenskus, que também permitiu romper com a concepção de uma

identidade étnica imutável, refuta a idéia de que, ao longo de todo o período das Grandes

Migrações, os povos bárbaros eram formados por grandes entidades coerentes e afirma que

estes grupos funcionavam com base em confederações compostas por elementos

heterogêneos, ou melhor, por bandos de guerreiros conduzidos por seus chefes. Estas elites

militares eram constituídas de famílias ligadas a um nome identitário (“francos”,

“lombardos”, etc.) e a um “núcleo de tradições” (Traditionskern), que poderia portar uma

memória de origens, uma crença, uma língua, alguns costumes (entre eles, possivelmente,

costumes funerários), rituais de poder, e assim por diante. Assim, o processo de etnogênese

resultava da adesão desses grupos heterogêneos a um núcleo de tradição, difundido pelas

famílias reais, de acordo com as circunstâncias favoráveis (BAUDUIN, 2008: 14).

A partir da teoria de Wenskus, admite-se que não existe apenas um modelo de

etnogênese, mas sim diversos tipos de formação, associados a diferentes povos. Patrick

Geary, por exemplo, elencou três tipos de etnogênese, porém, o tipo de etnogênese mais

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conhecido retoma o trabalho de Wenskus e à ideia de um “núcleo de tradição” (GEARY,

2001: 107-129).

É necessário considerar que a diversidade e a complexidade dos processos de

etnogênese se tornaram mais evidentes no período de instalação dos bárbaros nas províncias

do Império e coabitação destes com as populações romanas. Esta situação favoreceu a

emergência de novas identidades, realçando ou minimizando diferenças ou similaridades entre

os grupos (GEARY, 2005: 113-140). Este contexto histórico também coloca dificuldades em

se definir e qualificar um povo. Os homens da época clássica e, posteriormente, do período

medieval possuíam nomenclaturas (como gens, natio, populum, entre outros) e tradições

etnográficas próprias. Logo, termos como “povo”, “etnogênese”, “etnicidade” têm uma longa

história, que começa por volta do século V a.C. ou até mesmo antes disso. Possivelmente,

estes conceitos foram empregados com significados muito diferentes daqueles que os

estudiosos atuais utilizam, pois o entendimento que se faz desses termos não é imutável e

objetivo, como as pesquisas e discursos podem sugerir (GEARY, 2005: 57-80; BAUDUIN,

2008: 15-16).

Desta forma, a abordagem inicial colocada anteriormente sobre a relação, desde o

século XIX, entre nacionalismo e arqueologia e sobre o papel da etnogênese no período

medieval dentro desta perspectiva tornou-se necessária, já que todos esses elementos

exerceram grande influência nas análises históricas e arqueológicas sobre os “cemitérios em

fileiras” (Reihengräberfelder). Nesses estudos, as explicações étnicas, baseadas em artefatos

arqueológicos, mostraram-se mais fortes e problemáticas. Assim, as considerações sobre os

estudos arqueológicos sobre esse tipo de cemitério e as suas implicações na definição de uma

“etnogênese franca” serão apontadas a seguir.

2 Os “cemitérios em fileiras”: análises dos estudos arqueológicos

Durante os séculos XIX e XX, historiadores e arqueólogos buscaram usar os restos

arqueológicos e humanos para identificar crenças religiosas, status social, mas,

principalmente, a identidade étnica dos enterrados durante a Alta Idade Média (EFFROS,

2003: 6).

Para a análise de muitos dos elementos acima, os estudiosos buscaram trabalhar com

os “cemitérios em fileiras”, conhecidos como Reihengräberfelder (row grave cemeteries;

cimetières par rangées), ou seja, necrópoles comuns no norte da Gália, entre o final do século

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V e início do VIII. Tais cemitérios eram compostos por fileiras irregulares de sepulturas e

podiam conter de vinte a duas mil tumbas. As sepulturas eram de diferentes tamanhos,

profundidades e construções e, apesar de muitas delas possuírem bens funerários de diversos

tipos, várias tumbas eram desprovidas de artefatos (EFFROS, 2003: 192-193). A distinção

entre um Reinhengräberfelder e um cemitério sem bens funerários, provavelmente do mesmo

período, era explicado durante o século XIX, apenas em termos raciais e nacionais, pois,

enquanto um Reinhengräberfelder seria de invasores ou imigrantes germânicos, os demais

cemitérios (que poderiam conter sepulturas com utensílios cerâmicos) eram de descendentes

de romanos. Já os cemitérios que combinavam os traços dos dois grupos eram caracterizados

como necrópoles de comunidades racialmente mistas (JAMES, 1989: 25). Além disso, esse

tipo de cemitério foi fortemente associado aos francos, pois teria surgido e sido difundido na

mesma época em que este grupo avançou pela Gália (a partir de 486). Assim, o mapeamento

destes cemitérios ajudaria a buscar e definir tanto a etnia franca quanto os locais de

assentamentos francos, principalmente na região do norte da Gália (PÉRIN, 1980: 537-542).

É importante lembrar que a busca pela identificação e definição de francos e galo-

romanos, por exemplo, estava ligada aos anseios nacionalistas, expressos em estudos

arqueológicos produzidos entre o final do século XIX e início do XX. Ademais, as escavações

dos “cemitérios em fileiras” tentaram não apenas identificar a etnia franca ou de outros

“povos”, mas também se inseriam em uma arqueologia nacionalista praticada pelas potências

européias, que competiam pela posse de artefatos arqueológicos e que, por sua vez, seriam

expostos em grandes museus, como o Louvre ou Museu Britânico.

Nesse sentido, o primeiro estudo arqueológico analisado nesta pesquisa mostrou-se

apropriado para uma análise sobre muitos dos aspectos levantados anteriormente,

principalmente, no que diz respeito à associação entre a arqueologia funerária e o

nacionalismo étnico do século XIX. Este estudo foi publicado em 1854 e escrito pelo abade

Jean-Benôit-Désiré Cochet, chamado La Normandie souterraine, ou Notices sur des

cimetières romains et des cimetières francs explorés en Normandie.

O autor foi integrante de importantes associações ligadas à área de arqueologia e

história na Europa, já que foi inspetor dos monumentos históricos do Sena inferior,

correspondente da comissão de Monumentos Históricos e do Comitê da Língua, da História e

das Artes da França, além de Membro da Sociedade de Antiquários da França, da Normandia,

de Picardie e de Morinie, da Academia de Arqueologia da Bélgica, da Associação

Arqueológica da Grã-Bretanha, entre outros (COCHET, 1854: I). A atuação nessas áreas

Page 51: Anais 2011

48

parece ter tido grande influência na sua pesquisa, pois Cochet lembra já na introdução do seu

livro que sua preferência por escavações de cemitérios galo-romanos e franco-merovíngios se

devia ao interesse por uma parte pouco conhecida e explorada da arqueologia nacional (no

caso, francesa). Além disso, o autor atentou para a vantagem de obtenção abundante de peças

de coleção para os museus. Assim, ao longo do texto, Cochet deu grande destaque às posses

de objetos funerários de museus e à importância da descoberta de ossadas para o bem da

ciência, que iria enriquecer várias áreas, como a etnologia e a paleontologia (COCHET, 1854:

VII-IX).

Mes explorations, qui ont porté d'abord sur des villas romaines, se sont, dans la

suite, fixées préférablement sur les cimetières gallo-romains et francs-mérovingiens.

La raison de cette préférence de ma part a été d'abord l'intérêt que présente cette

partie de notre archéologie nationale, encore inexplorée et peu connue; puis

l'avantage d'obtenir plus abondamment pour notre Musée départemental des pièces

de collection. Sous ce dernier rapport le succès a été tel, que plus de 800 objets

antiques sont entrés dans le Musée de Rouen, et que plusieurs montres ont été

entièrement garnies par eux. La collection mérovingienne de Rouen est, à cette

heure, la plus curieuse et la plus importante qui existe, non seulement en France,

mais même en Angleterre et peut-être en Europe (COCHET, 1854: VIII, grifo

nosso).

Por outro lado, seu livro, marcado por explicações históricas e religiosas e pela

concepção de cultura imutável, apresenta uma série de binômios claramente antagônicos,

comuns em diversos estudos sobre o período medieval, no século XIX. É possível perceber já

no título de sua obra que o autor organizou suas escavações por meio de uma divisão clássica

entre cemitérios galo-romanos, sem bens funerários e cemitérios francos, com objetos nas

sepulturas, como armas e jóias. Além disso, ao longo de todo o texto, o autor opõe romanos e

bárbaros, paganismo e cristianismo, alta civilização romana e barbárie profunda dos tempos

merovíngios (COCHET, 1854: 42). Desta forma, foi por meio dos artefatos funerários e do

modo de inumação que Cochet identificou a nacionalidade (termo usado pelo próprio autor)

dos sepultados (COCHET, 1854: 28). Por exemplo, ele definiu que algumas sepulturas eram

francas devido à presença de lanças, machados (entre eles, a francisca, objeto este que será

analisado adiante), etc., o que expressaria, por sua vez, o caráter guerreiro e grosseiro do

homem franco, ainda que este fosse ancestral da civilização e da monarquia modernas

(COCHET, 1854: 15-20).

Tais pressupostos encontrados no texto de Cochet marcaram o entendimento sobre os

francos, tanto no campo da história quanto da arqueologia, desde o século XIX. Porém, após a

Segunda Guerra Mundial, diferentes abordagens colocaram em discussão a associação dos

Page 52: Anais 2011

49

artefatos arqueológicos aos processos de etnogênese durante a Alta Idade Média (CURTA,

2007: 159-185). Como colocado anteriormente, tais discussões foram influenciadas,

principalmente, pelos trabalhos e teorias de Reinhard Wenskus e da Escola de Viena, que

romperam com a idéia de identidades étnicas e culturas materiais imutáveis e etnias

biologicamente determinadas, concepções freqüentes desde o século XIX e que podem ser

percebidas no trabalho de Cochet, apresentado neste texto. Assim, estas novas abordagens

destacaram a importância de fatores regionais e cronológicos para justificar a presença dos

“cemitérios em fileiras” no norte da Gália. Também atentaram para outras questões que não

poderiam ser ignoradas no estudo dessas sepulturas, relativas às relações de poder, status

social do enterrado, gênero e idade, zonas de contatos culturais, entre outros.

O segundo estudo analisado nessa pesquisa ajuda a elucidar essas interpretações mais

recentes. Trata-se de um manual intitulado Les Francs, escrito por Patrick Périn, em parceria

com Laure-Charlotte Feffer, e publicado em 1997. Nesse estudo, Périn sugere outras

explicações para as modificações no mobiliário funerário e para o surgimento dos “cemitérios

em fileiras”. Para ele, esse tipo de necrópole não teria surgido na Germânia, mas teria origens

dentro do próprio Império Romano, mais especificamente no norte da Gália, com exemplos

encontrados antes mesmo das invasões do século V. Além disso, como apontado pelo autor

em Les Francs e em um artigo publicado em 1980, os artefatos funerários ditos “germânicos”,

ou melhor, “francos”, não teriam uma correspondência étnica, mas seriam apenas evidências

de uma evolução cronológica normal dos modos de vestimenta e funerários. Desta forma,

enquanto os elementos considerados “francos” eram, de fato, representativos do começo do

período merovíngio, aqueles ditos “indígenas/galo-romanos” apareceram na segunda parte da

época merovíngia:

Il n’y à vrai dire guère de nouveautés dans ces thèses, déjà exposées par E. Salin à

diverses reprises et que nous semblent fort contestables. En effet, F. Stein, comme E.

Salin et d’autres auteurs, ont pose em termes ethniques une question qui, selons

nous, est essentiellement chronologique. Un certain nombre de travaux récents,

menés dans de nord-est de la France, ont ainsi permis de démontrer que les

caracteres ‘francs’ étaient en fait ceux de la première partie de la période

mérovingienne dans ces régions, avec mobilier funéraire abondant et varie, qu’il

s’agisse de l’armement masculin ou de la parure féminine, absence des sarcophages

et rareté des réinhumations. Quant aux caracteres ‘indigénes/gallo-romains’, ils

correspondaient aux usages funéraires de la seconde partie de l’époque

mérovingienne, ou l’armement se réduit au Seul scramasaxe et à des accessoires

vestimentaires moins abondants et moins diversifiés, tandis que se multiplient les

inhumations ‘pauvres’ en sarcophages ou en coffrages de pierres sèches, les

réinhumations étant fréquents (PÉRIN, 1980: 538-539).

Page 53: Anais 2011

50

A análise de Périn também traz uma importante reflexão sobre a associação de objetos

específicos a determinado grupo étnico, neste caso, um tipo de machado, chamado francisca,

e os “francos”, ligação esta muito comum em diversos estudos, como no trabalho de Cochet,

por exemplo. Périn lembra que muitas referências a esse machado, encontradas em textos

sobre os francos, como na obra de Isidoro de Sevilha, foram interpretadas pelos estudiosos

como uma arma usada por esse “povo” nos séculos V e VI.

Porém, há problemas em se definir exatamente o que era a francisca e qual a sua

origem, evidenciando, assim, a complexidade em atribuir esse tipo de arma aos francos.4 Essa

caracterização teria sido feita por autores romanos e não há evidências concretas de que o uso

desses machados contribuiu para o sentimento de identidade franca. Para Patrick Geary (2005:

94), os machados atribuídos aos francos são citados por esses autores sem nenhuma

consistência e, provavelmente, eram referências que seguiam mais o hábito romano de

classificação do que de práticas reais dos bárbaros. Neste caso, os próprios francos pareciam

menos cientes desse tipo de machado do século V como parte da “tradição franca” do que

seus inimigos (POHL, 1998: 33-38). Além disso, as armas e os tipos de vestimenta se

difundiram e foram adotados por outros povos, por exemplo, entre os anglo-saxões do século

VII, que apresentavam importantes traços da cultura material merovíngia (DUMÉZIL, 2009:

29).

De um modo geral, muitos desses estudiosos reconheceram que não é possível

interpretar com absoluta certeza quais coleções de artefatos foram empregadas por

comunidades nos funerais e, principalmente, quais objetos indicavam, de fato, uma filiação

étnica. A cultura material não constituiria, assim, uma prova de etnicidade, pois os artefatos

seriam apenas um suporte para a identidade, suporte este facilmente manipulável (POHL,

1998: 21-22; DUMÉZIL, 2009: 31).

3 Considerações finais

Como exposto anteriormente, o uso da arqueologia para a interpretação dos

“cemitérios em fileiras”, vistos como espaços privilegiados para a identificação e

4 A francisca é um machado perfilado utilizado essencialmente como arma de arremesso. Em alguns textos

clássicos, ela aparece como um machado duplo, porém, esse tipo de arma não aparece entre os artefatos

arqueológicos Um tipo de lança-arpão, conhecida como angon também foi interpretada como arma típica dos

francos. Ela é basicamente uma espécie de dardo com haste de ferro instalada na madeira, podendo atingir até

dois metros de comprimento. Essa lança estaria presente apenas nas sepulturas mais ricas, por exemplo, nas

“tombes de chefs” de Saint-Dizier (VARÉON, 2009: 99).

Page 54: Anais 2011

51

classificação de etnias na Alta Idade Média, mostrou-se problemático, assim como o próprio

papel das identidades étnicas neste período histórico. Os dois estudos arqueológicos

analisados nesta pesquisa, ainda que de forma superficial, ofereceram um bom panorama

sobre a utilização destes cemitérios na identificação dos francos e as limitações desta

perspectiva. O segundo estudo abordado ajuda, principalmente, a repensar o paradigma da

etnogênese e a associação desta aos artefatos funerários. Essa nova interpretação sobre os

papéis das identidades e dos próprios artefatos arqueológicos no entendimento da sociedade

no norte da Gália vai de encontro às diversas abordagens comuns desde o século XIX até

meados do século XX, muitas delas presentes no estudo de J. Cochet.

É interessante destacar que, por meio das análises dos “cemitérios em fileiras”, nota-se

que a sugestão feita por arqueólogos e antropólogos sobre a existência de divisões biológicas

ou culturais claras entre os grupos étnicos (neste caso, entre os galo-romanos e os francos)

apresenta uma série de problemas. Reinhard Wenskus criticou o papel exercido pela

concepção de raça nas discussões sobre identidade étnica, como se tal ideia tivesse existido na

Antiguidade e na Alta Idade Média (concepção esta claramente percebida no estudo de

Cochet). Para ele, as distinções étnicas não nascem naturalmente, de forma biológica, mas sim

são categorias criadas e que poderiam ser fortemente definidas em casos de necessidade

política ou conquista militar (WENSKUS, 1961: 14-93, apud EFFROS, 2003: 104).

Medievalistas, como Guy Halsall (1992; 1995) e Walter Pohl (1998; 2005), consideram que

as marcas étnicas tradicionais (língua, armas e estilos de combate, modos de vestimentas,

penteados e também práticas funerárias) não são imutáveis, pelo contrário, todos esses

símbolos estariam inseridos em estratégias políticas. Logo, não seriam meros reflexos

passivos da etnicidade e da realidade social, mas sim elementos ativos na negociação do

poder. Diante deste contexto, as identidades, entre elas a identidade étnica, seriam dinâmicas,

construídas e reconstruídas, acentuadas ou negligenciadas de acordo com as circunstâncias.

Porém, enquanto muitos historiadores e arqueólogos aceitam o caráter flexível dos

processos de etnogênese e interpretam os vestígios arqueológicos como elementos de

negociação de poder entre diversos grupos, outros pesquisadores, como o medievalista

Sebastian Brather (2002), têm uma visão muito mais pessimista com relação ao papel da

arqueologia enquanto uma disciplina que seria capaz de esclarecer dúvidas ou fornecer

“pistas” sobre as origens de determinados grupos, símbolos étnicos, e assim por diante.

Brather faz várias críticas às interpretações advindas da antropologia e da sociologia, muitas

delas expressas no trabalho de Ian Hodder (1982), e que enfatizam a seleção flexível de sinais

Page 55: Anais 2011

52

culturais para marcar fronteiras sociais e étnicas. Uma dessas críticas se refere à capacidade

da arqueologia em identificar esses sinais. Logo, ele questiona a possibilidade de se ter acesso

à carga ideológica desses supostos símbolos. Para o autor, sem uma referência nas fontes

escritas sobre a função e utilização de determinados objetos, torna-se impossível associar os

artefatos às práticas, aos significados e aos grupos. Além disso, para ele, muitos dos artefatos

encontrados nas tumbas, como as vestimentas e as armas, demonstram primordialmente uma

estratificação social, ou seja, não teriam a função de expressar uma identidade étnica, mas sim

demonstrar um status e fazer distinções dentro de uma comunidade e não entre comunidades

(BRATHER, 2002: 153), visão esta que diverge de outros autores, como Patrick Geary.

Por fim, os estudos arqueológicos também ajudam a refletir sobre a presença dos

elementos ligados ao tema e que foram citados em discursos que utilizaram o período

medieval para fins políticos e ideológicos. Segundo a historiadora Agnès Graceffa (2009: 13-

15), ocorreu um movimento de desconstrução nacionalista do discurso científico sobre a

história da Alta Idade Média, especialmente, a partir da década de 1990. Entretanto, tal

desconstrução nacionalista aparentemente foi substituída por anseios mais amplos, ou seja,

europeus. Dessa forma, as discussões permanecem em aberto, já que ainda hoje, apesar de

vários trabalhos, como a obra de Andrew Gillet (2006), que problematizam e limitam o uso da

teoria da etnogênese e das fontes arqueológicas como “provas de uma etnia”, a arqueologia e

os estudos sobre a Alta Idade Média continuam exercendo funções centrais nos debates

políticos e nacionais europeus, influenciando o desenvolvimento de uma identidade européia

única baseada no passado medieval. Ademais, cada vez mais conceitos, como “grupos

étnicos”, são utilizados de forma generalizada e arbitrária. Percebe-se, assim, a pertinência e

atualidade do assunto, que suscita inúmeras polêmicas nos campos acadêmicos e políticos.

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Page 58: Anais 2011

55

RAUL GLABER E OS CONCÍLIOS DE PAZ DE DEUS

Diego Ribeiro dos Reis1

1 Introdução

A história da Idade Média foi estruturada tendo como contraponto a Modernidade, isto

é, como um período marcado pela violência endêmica e generalizada, além da ausência do

Estado e de instituições públicas que pudessem guiar as diretrizes da sociedade e detivessem

o monopólio da violência. A violência se tornou, portanto, peça chave e paradigma para os

estudos sobre a Idade Média, um argumento da historiografia para “comprovar” a privatização

do poder e o desaparecimento das instituições públicas (BARROS ALMEIDA, 2010: 52).

Além de ser tomada como campo de provas da origem de povos e nações modernas, a Idade

Média foi considerada principalmente pelos autores da historiografia do século XIX,

profundamente imbuída por concepções do Estado nacional moderno e projetos políticos

nacionais, como F. Guizot e J. Michelet, um período atrasado no qual a violência e a

desordem prosperavam em detrimento da ordem política e social. Uma sociedade em vias de

sua dissolução. Os estudos se centravam na violência, e a paz era um tema pouco discutido até

a segunda metade do século XX. Durante esses anos, grande parte desses estudos se

circunscrevia, de uma maneira geral, a contrapor esses elementos, tomando-os como um par

antinômico.

Deste modo, vários escritos de autores medievais foram tomados como reflexos dessas

crises, como foi o caso das Histórias2, de Raul Glaber

3 – um monge pertencente ao círculo de

beneditinos reformados por Cluny que viveu entre os anos de 980 ou 985 até 1047. Essa obra

foi lida por grande parte da historiografia como um testemunho de temores milenaristas e de

distensões sociais, isto é, guerras intermitentes, proliferação de heresias, milenarismo, e

violência generalizada. Nesse sentido, algumas passagens das Histórias foram utilizadas para

a comprovação dessas interpretações, como os capítulos que retratam a expansão e a reforma

1 Aluno de iniciação científica do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas – USP, sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo Cândido da Silva. Bolsista FFLCH. E-mail:

[email protected]/[email protected]. 2 A edição utilizada é a tradução francesa feita por ARNOUX, Mathieu. Histoires. Turnhout: Brepols, 1996.

3 A s Histórias de Raul Glaber foram escritas na Borgonha, entre os anos de 1016 e 1047. Sua escrita foi

interrompida na primeira metade da década de 1030 para a composição da Vida de Guilherme de Volpiano, a

outra obra do autor. Dela, só nos restaram um único manuscrito (Paris, BN, latin, 5390). Sobre essa obra ver

GAZEAU; GOULLET (2008).

Page 59: Anais 2011

56

das igrejas e mosteiros (III: 13), aquele que narra uma grande fome que teria ocorrido em

torno de 1033 (IV, 10), assim como as referências à Paz e à Trégua de Deus (IV: 14-16; V:

15-16). Esses capítulos dariam unidade à obra (BARROS ALMEIDA, 2011: 90). As

Histórias fazem parte, portanto, do rol de textos utilizados para a estruturação da imagem de

Idade Média marcada pelo tripé explicativo: a ausência de Estado, ausência de instituições

públicas e pela violência endêmica.

Vale destacar que a importância das Histórias como objeto de estudo e como

documentação para a análise do período se traduz de diversas formas. Ela é peça-chave e um

dos textos utilizados pela historiografia para a estruturação de uma imagem de Idade Média

caracterizada pela violência endêmica, ausência de instituições públicas eficazes e época de

trevas. Portanto, é uma documentação na qual há uma enorme variedade de temas retratados,

além de ser uma fonte de inesgotáveis problemáticas. Das Histórias só restaram hoje um

manuscrito do qual constam algumas folhas do próprio Raul (Paris, BN, latin, 10912) e mais

duas cópias medievais (BARROS ALMEIDA, 2011: 84).

Os concílios de Paz de Deus, que também são tratados nas Histórias, foram – e, em

grande medida, ainda são – concebidos por grande parte da historiografia como respostas às

desagregações sociais e políticas ocorridas no Ano Mil (que corresponderia aos anos entre

980 e 1040, grosso modo)4 e ao estado de violência generalizada desse período, ou seja, uma

tentativa de reestruturação da ordem pública e forma de conter a proliferação da violência,

tendo a Igreja um papel proeminente. Nesse sentido, se inserem os trabalhos de Georges Duby

(DUBY, 1967; 1982; 1989). Para ele, a Paz de Deus seria uma resposta às tais desordens,

competindo primeiramente à Igreja a missão pacificadora dos conflitos, devido à

fragmentação da autoridade pública. Assim, a Idade Média continuou a ser lida como uma

época na qual o poder (jurídico, político) passa a ser exercido de forma indiscriminada pelos

poderosos. Para tanto, Raul Glaber é para Duby, um testemunho dessas distensões.

Essas interpretações acabaram por influenciar uma parte significativa da historiografia,

sobretudo os autores cunhados de “mutacionistas”, como J.-P. Poly (POLY, 1976), P.

Bonnassie (BONNASSIE, 1976), e outros como Thomas Head (HEAD, 1999) e Richard

Landes (LANDES, 1991). Esses autores concebem o período do Ano Mil como uma época

4 O Ano Mil corresponde, grosso modo, ao período abarcado pelos anos 980 e 1040. Tido por parte da

historiografia como um período de ruptura e de grandes transformações sociais, políticas e econômicas. Além

de ser para os historiadores “mutacionistas” uma época marcada pela espera milenarista e/ou escatológica.

Page 60: Anais 2011

57

marcada por uma “mutação feudal”5, ou seja, uma revolução política e social abrupta da

sociedade, bem como pelos terrores apocalípticos e milenaristas. A Paz de Deus seria, para

eles, um reflexo dessas crises.

Por outro lado, em grande medida pela contribuição da antropologia jurídica anglo-

saxã, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, ocorre um processo de renovação

da historiografia acerca das questões de paz e violência6. Os estudos passam a se centrar não

mais no problema da violência como fator de desagregação social, mas sim na paz e nos

meios pelos quais ela era obtida e assegurada, como a resolução de conflitos. Como alguns

expoentes desses estudos estão J.M. Wallace-Hadrill (WALLACE-HADRILL, 1959), e mais

recentemente Dominique Barthélemy (BARTHÉLEMY, 1999). Para este último, a Paz de

Deus é lida como um produto de conflitos entre a Igreja que se encontrava em vias de

institucionalização e outras esferas de poder. Sendo, portanto, um meio de afirmação da

autoridade eclesiástica, de controle do patrimônio ameaçado e da manutenção da ordem

social. Por conseguinte, se dá a crise de alguns paradigmas interpretativos, como é o caso da

violência, paradigma fundamental para as interpretações sobre a Idade Média. De uma

maneira geral, esses estudos procuram repensá-la. Portanto, estudar a paz, e também sua

relação com a violência, tem um papel importante sobre os modos de se interpretar o período

medieval.

Tomando contribuições dos debates históricos acerca das Histórias de Raul Glaber e

dos concílios de Paz de Deus, o presente trabalho se propõe a fazer um estudo comparativo

sobre as concepções de paz presentes tanto em alguns textos dos concílios de Paz de Deus,

que ocorreram entre o fim do século X e as primeiras décadas do século XI – a saber, os

concílios de Charroux (989), que é para uma grande parte da historiografia o primeiro concílio

de Paz, assim como os concílios de Saint-Paulien (994) e o de Verdun-sur-le-Doubs (em

1021-1022) – quanto nas Histórias de Raul Glaber, buscando apontar e compreender as

particularidades e as características comuns em torno de tais concepções, assim como indagar

a maneira pela qual se descreve a paz, o vocabulário utilizado e os sentidos e valores dados a

5 A tese da “mutação feudal” defendida por autores como Jean Pierre Poly, Eric Bournazel e Pierre Bonnassie

consiste em uma mudança abrupta nas ordens política, econômica e social na transição dos séculos X para o

XI. Assim, este período seria marcado por uma violência endêmica, desagregação dos princípios do direito e

crise de instituições públicas. O poder antes, de certo modo, centralizado cede lugar a um período de

soberanias múltiplas, refletindo uma fraqueza da monarquia e o fortalecimento dos poderes particulares locais

(privatização e patrimonialização de poderes e funções públicas). Tem-se também a formação de estruturas

feudais. Nesse sentido, o século X o marcaria o início do feudalismo. 6 Há nesse período um processo de renovação da historiografia no qual as diversas formas de estado e as

organizações sociais primitivas emergem como objetos de estudo e, assim, ocorre um recuo das pesquisas

centradas na concepção de Estado moderno e há uma renovação dos trabalhos em relação à paz e a violência.

Page 61: Anais 2011

58

ela. E, dessa forma, por meio desses dois gêneros documentais, pretende-se compreender de

uma maneira mais completa como a paz era concebida durante aquele período, tendo em

mente a parcialidade do estudo e os riscos desse exercício, tais como imprecisões ou mesmo

simplificações.

2 A “paz” nas Histórias e nas atas dos concílios

Ao longo dos cinco livros de suas Histórias, Raul Glaber se propõe a escrever sobre

“diversos eventos memoráveis que aconteceram tanto nas igrejas de Deus quanto entre os

povos” (GLABER, 1996: I, 1) ou seja, fazer uma história com pretensões universais, que

transmitisse à posteridade eventos que ele julgasse dignos como elementos de ilustração e de

exemplo. Por meio desses “eventos memoráveis” sua história7 cumpriria uma função moral e

pedagógica, servindo de memória tanto aos homens do presente quanto aos do futuro8.

Com um intenso uso de etimologias, analogias e exegeses, Raul descreve eventos

como disputas e acordos entre reinos e reis, querelas por sucessões, como também reserva um

papel importante às relações entre o Império e o Papado. Ele trata de questões teológicas,

reitera em várias partes da obra o ideal de reforma do clero e dos costumes, como a crítica à

simonia.9 Glaber retrata as peregrinações à Jerusalém, guerras, eclosão de heresias e eventos

incomuns, como fomes devastadoras e aparecimento de eclipses e cometas, além de aparições

do diabo para atentar aos homens e a ele próprio. Ademais, Raul Glaber faz uma descrição da

emergência dos concílios de Paz e de Trégua de Deus10

, seu aparecimento na Aquitânia e sua

difusão, seus ideais, objetivos e diretrizes.

Muitas das referências à paz presentes nas Histórias têm relação com disputas e

guerras entre reis, querelas por sucessões, ou com os movimentos de Paz e Trégua de Deus.

Assim, é sobretudo sobre esses temas que a presente pesquisa se reportará com mais vagar,

7 Sobre o conceito de história para Raul Glaber ver BARROS ALMEIDA (2011: 90).

8 No capítulo I do Livro I Raul Glaber destaca que tomará como base cronológica os reis e a realeza, como

Henrique, rei dos Saxões e futuro imperador, e Roberto, rei dos Francos. Sua história é orientada a partir deles.

A realeza, portanto, faz parte durante toda a obra, de seu horizonte de análise. Isso é, segundo Néri de Barros

Almeida, um argumento decisivo que retrata que Glaber não questiona, nas Histórias, autoridade real nem o

desaparecimento dos poderes públicos. Cf. BARROS ALMEIDA (2010: 58). 9 Glaber trata também de invasões estrangeiras como a dos húngaros e dos vikings e suas posteriores conversões

à fé católica; toma nota sobre contatos com o mundo árabe a partir das referências aos sarracenos. E por meio

de anedotas de homens ilustres e sábios ou santos, como Odilon de Cluny e Guilherme de Volpiano, narra

eventos e situações que eles presenciaram, como forma de exaltação de suas ações e de suas integridades. 10

Sobre as passagens nas quais Raul Glaber descreve a Paz e a Trégua de Deus nas Histórias, ver os capítulos

14 a 16 do livro IV, e 15 e 16 do livro V, respectivamente.

Page 62: Anais 2011

59

principalmente no que se refere à Paz de Deus11

, uma série de concílios judiciários presididos

por bispos (autoridade eclesiástica), que contavam com a presença de relíquias de santos

(espécie de intercessores junto à esfera divina), e visavam, dentre outras coisas, a regulação de

conflitos. De uma maneira geral, esses concílios propunham, a partir de juramentos em prol

da justiça e sob a ameaça de multas, excomunhão e anátema12

àqueles que desobedecessem

aos juramentos, regras como a regulação dos conflitos (sendo um espaço de negociação para o

restabelecimento da paz); a proteção das igrejas (e a consequente ratificação da sacralidade

desses espaços); bem como a proteção dos clérigos, dos pauperes e suas respectivas

propriedades e bens. Propunha-se, portanto, a defesa do direito de propriedade contra

espoliações e a salvaguarda de pessoas desarmadas e lugares sacros, assim como se pregava a

reforma do clero e dos costumes, além das práticas do jejum, da castidade e do celibato.

Segundo autores como D. Barthélemy, E. Lalou e G. Brunel (BRUNEL, LALOU,

1992), Raul Glaber, juntamente com o restante da população, recebe com entusiasmo a Paz de

Deus, em meio ao contexto de calamidades naturais, pestes e após a terrível fome narrada no

livro IV das Histórias (GLABER, 1996: IV, 9-13). Ao longo da obra, nota-se que os períodos

de desgraças são sucedidos por outros de otimismo e esperança, em uma constante

recomposição (BARROS ALMEIDA, 2011: 91).

Raul Glaber retrata o nascimento da Paz na Aquitânia, sua difusão para a Borgonha e

para o reino capetíngio, além de sua transformação em Trégua de Deus13

. Ele dá grande

destaque para o papel conjunto de bispos, príncipes e abades no movimento, assim como para

a presença de relíquias de santos, as penitências, condenações e os juramentos de paz. Nesse

contexto, como destaca D. Barthélemy, a Paz de Deus seria, para o monge, um esforço de

proteção das igrejas e de seus bens, a limitação das violências interpessoais, do roubo e a

interrupção das calamidades naturais enviadas por Deus para punir os homens

(BARTHÉLEMY, 1999: 24-34). Isso pode ser observado na passagem que se segue, extraída

do capítulo 15 do quarto livro:

11

Sobre o debate historiográfico acerca da Paz de Deus, ver: GUIZOT (1824); DUBY (1967); POLY (1980);

LANDES (1991); HEAD, LANDES (1992); BARTHÉLEMY (1999); BARTHÉLEMY (1997a); GERGEN,

(2004). 12

Vale acrescentar que Raul Glaber não faz menção a anátemas em sua obra. 13

A Trégua de Deus foi uma retomada (ou confirmação, segundo estudiosos como Thomas Gergen e Dominique

Barthélemy) de várias propostas dos concílios de Paz de Deus, no que trata da resolução de conflitos e a

obtenção da paz, e a reaproximação dos homens com a Igreja. São concílios com uma legislação mais regrada

e mais desenvolvida do que a Paz de Deus, que se refere não somente à guerra e aos conflitos, mas também ao

tempo litúrgico e à autoridade eclesiástica. Sobre a Trégua de Deus ver: GERGEN,2004;“Et meam

considerans culpam... La Paix de Dieu comme sourec juridique pour la résolution de conflits. Actes dês

XXémes Journeés d’Histoire du Droit.” (GERGEN, 2005); BARTHÉLEMY,1999; BARROS ALMEIDA,

2010.

Page 63: Anais 2011

60

Redigiu-se também capítulos precisando aquilo que estava proibido e aquilo que se

prometia como oferecimento ao Senhor todo-poderoso pelo espírito de devoção. A

parte mais importante diz respeito à manutenção de uma paz inviolável: os homens

de qualquer condição, quaisquer que pudessem ser suas faltas anteriores, poderiam

sem temor permanecer desarmados. O saqueador ou o usurpador do bem de outrem

ficaria submetido ao rigor das leis e condenado a penas severas, multas ou castigos

corporais. Os lugares sacros, que são todas as igrejas, eram a esse ponto objeto de

honra e de reverência, que se um culpado lá se refugiasse, qualquer que fosse sua

falta, permaneceria impune, a menos que não tivesse arcado com esse pacto de paz:

nesse último caso, seria perseguido até o altar para lhe infligir a pena prevista. Do

mesmo modo, clérigos, monges, freiras e aqueles que percorressem o país com eles,

não deveriam sofrer a violência de ninguém(GLABER, 1996: IV, 15)14

.

A “paz inviolável” descrita nessa passagem faz alusão à tranquilidade pública

resultante da conformidade às determinações estabelecidas pelo acordo. Aqueles que

transgredissem o pacto de paz seriam penalizados com sanções legais, como multas ou

castigos corporais. Desta maneira, a situação de "paz inviolável" seria aquela em que ficavam

suspensas as práticas hostis à regra estabelecida para a resolução dos conflitos e a restauração

da paz, tais como os as pilhagens, vinganças e roubos. Nesse sentido, a paz diz respeito a uma

situação ou estado de cessação de hostilidades, e à instituição de uma concórdia das relações

sociais. Além disso, nota-se a preocupação com o respeito aos locais sacros, que deveriam

permanecer como espécies de lugares de exceção. A paz remete também à proteção dos

eclesiásticos e de seus acompanhantes, do mesmo modo que se propõe – o que também é

recorrente em vários cânones dos concílios – colocar os bens eclesiásticos no plano espiritual,

ao se criar um clamor para defender um novo estatuto desses bens, sob jurisdição somente da

Igreja. Esses elementos também podem ser observados nos seguintes exemplos, o primeiro

cânone do concílio de Charroux (989), e o sexto cânone de Saint-Paulien (994),

respectivamente:

Anátema àquele que viola as igrejas: se alguém roubar uma igreja santa ou se ele

quer retirar de lá alguma coisa pela força, que ele seja anatematizado – a menos que

14

“Erat quippe descriptio capitatim digesta, qua continebantur tam illa que fieri prohibebantur quam ea que

devota sponsione omnipotenti Domino offerre decreverant. In quibus potissimum erat de inviolabili pace

conservanda ut scilicet viri utriusque conditionis, cuiuscumque fuissent antea rei obnoxii, absque formidine

procederent armis vacui. Predo namque aut invasor alterius facultatis, legum districtione artatus, vel donis

facultatum seu penis corporis acerrime mulctaretur. Locis nichilominus sacris omnium ecclesiarum honor et

reverentia talis exiberetur ut, si quis ad ea cuiuscumque culpe obnoxius confugium faceret, inlesus evaderet,

nisi solummodo ille qui pactum predicte pacis violasset; hic tamen captus ab altare prestatutam vindictam

lueret. Clericis similiter omnibus, monachis et sanctimonialibus, ut, si quis cum eis per regionem pergeret,

nullam vim ab aliquo pateretur”.

Page 64: Anais 2011

61

faça reparação (MANSI, J. D., 1774 apud LA RONCIÈRE; DELORT; ROUCHE;

CONTAMINE, 1969)15

.

Que ninguém se apodere de um camponês ou de uma camponesa para obter resgate,

salvo por um delito, salvo se se trate de um camponês que lavrou ou cultivou a terra

de outrem, e salvo se se trate, por quem quer se seja, de sua própria terra ou de seu

benefício (BRUNEL; LALOU, 1992: 130-131).

Nota-se, a partir desses exemplos, a preocupação com a proteção das igrejas, dos

clérigos e de seus respectivos bens, a salvaguarda de pessoas desarmadas, com especial

destaque aos pauperes, além do direito à propriedade. Outro ponto importante se refere à

partícula de exceção “salvo se”, constantemente encontrada nos concílios. D. Barthélemy

destaca a presença de ressalvas em vários decretos, assim como as possibilidades de

reparações e multas ao invés de excomunhões ou anátemas, por exemplo (BARTHÉLEMY,

1999: 263). Isso poderia abrir alguma brecha para a ocorrência de práticas de violência que

não seriam punidas, por estar em conformidade com as determinações do concílio.

Deste modo, a concepção de paz presente nas Histórias converge em vários sentidos

com aquela encontrada nesses concílios. A paz se relaciona, sobretudo, com a interrupção das

guerras ou conflitos indiretos, como pilhagens a camponeses ou às possessões da Igreja

cometidos pelos guerreiros laicos, em represália à disputa com outro senhor, por exemplo.

Como diz Barthélemy, a Paz de Deus tinha como um dos principais objetivos a limitação da

vingança indireta (BARTHÉLEMY, 1999: 260). Com isso, pode-se inferir que não são todos

os conflitos que eram proibidos. A paz descrita por Raul e pregada nos concílios não diz

respeito às guerras diretas travadas entre os grandes nobres, as quais, portanto, pertenceriam a

uma outra lógica de regulação.

Além disso, ao longo das Histórias, Raul Glaber faz uma análise da condição humana

como submetida à divina Providência. A esse respeito, os bons seriam agraciados com

recompensas e benesses, e aqueles que se encontrassem em estado de pecado seriam punidos.

Dessa forma, Glaber associa as calamidades a punições divinas (LALOU, BRUNEL, 1992:

126). Para ele, os homens se afastavam da Fé Cristã, e a Paz de Deus seria um meio de

reafirmação de um pacto com Deus, por meio da “restauração da paz e da instituição da fé”

(GLABER, 1996: IV, 14). Esse pacto, ao mesmo tempo em que agradece, suplica a divina

misericórdia. A seguinte passagem é ilustrativa a esse respeito:

15

“Anathema infractoribus ecclesiarum. Si quis ecclesiam sanctam infregerit, aut aliquid exinde per vim

abstraxerit, nisi ad satis confugerit factum, anathema sit”. Os decretos de Charroux também estão

reproduzidos em BARTHÉLEMY (1999: 284-285).

Page 65: Anais 2011

62

O entusiasmo era tal que os bispos elevavam seus báculos ao céu, e todos estendiam

suas palmas para Deus. ‘Paz! Paz! Paz!’, clamavam todos, como para pôr seu selo

no acordo concluído nessa ocasião entre Deus e eles, prometendo que ao fim de

cinco anos ele seria renovado para confirmar a paz, do mesmo modo admirável

(GLABER, 1996: IV, 16)16

.

Clamava-se pela paz com entusiasmo decorrente também da alegria proporcionada

pelas curas promovidas pelos santos e pelas abundantes colheitas mencionadas por Glaber.17

Da mesma maneira, pela referida citação, pode-se apreender que a paz remete a um pacto com

Deus, ou seja, à reconciliação e à reaproximação com a fé católica e com os mandamentos,

através da tomada de consciência da situação de pecado e da reforma dos costumes dos

homens (sejam eles laicos ou clérigos). Com isso, a paz alude a uma harmonia também com a

esfera divina.

Outro importante elemento diz respeito ao caráter renovável do acordo, o que sugere

que a paz seria uma espécie de situação ou estado provisório, que deveria ser constantemente

confirmado e/ou renovado. O 15º cânone de Verdun-sur-le-Doubs (de 1021/1022) ilustra essa

situação e vai de par com a descrição de Raul.

Eu observarei tudo isso [as determinações estipuladas pelo concílio, como a defesa

das igrejas, dos clérigos, dos pauperes e de suas respectivas propriedades, de uma

maneira geral], até a presente festa de são João Batista e durante sete anos a partir

dela (HEFELE, 1855: 1407-1410)18

.

Esse trecho revela o caráter temporário e contratual do acordo (BARROS ALMEIDA,

2011: 100), ou seja, o alcance de suas decisões era limitado não apenas espacialmente, como

observa D. Barthélemy19

, circunscrito à província eclesiástica, mas era um pacto de certo

modo contratual, muitas vezes momentâneo. A partir de determinado momento – neste caso

depois de sete anos após a festa de são João Batista – ele deveria ser renovado.

Ao mesmo tempo em que a paz implicava a aproximação com Deus, a partir da

reforma dos costumes com a proibição da simonia e a valorização do celibato, a paz não

16

“Quibus universi tanto ardore accensi, ut per manus episcoporum baculum ad celum elevarent, ipsique palmis

extensis ad Deum: ‘Pax! pax! pax!’ unanimiter clamarent, ut esset videlicet signum perpetui pacti de hoc

quod spoponderant inter se et Deum, in hac tamen ratione ut evoluto quinquennio confirmande pacis gratia

id ipsum ab universis in orbe fieret mirum in modum”. 17

Essa passagem também é ilustrativa do papel proeminente dos bispos, isto é, agindo como agentes

mantenedores da ordem, uma autoridade responsável pela resolução de conflitos, inclusive. 18

«Haec omnia supradicta adtendam usque ad praesentem festivitatem Sancti Johannis Baptistae, et ab illa

usque in septem annis». Os decretos de Verdun-sur-le-Doubs também são reproduzidos em BRUNEL,

LALOU, 1992: 132. 19

Segundo, BARTHÉLEMY (1999: 261), não se pode falar em um “movimento”, mas sim em ações locais. O

alcance de suas decisões se circunscrevia a províncias eclesiásticas (“À vrai dire, Il vaut mieux évoque les

paix de Dieu, car rien ne ressemble là à un grand mouvement”).

Page 66: Anais 2011

63

supunha necessariamente a oposição com a violência guerreira, por exemplo, sendo ela um

dos meios empregados – e reconhecidos – para a resolução de conflitos e querelas.

A paz e os meios para a pacificação são temas recorrentes nas descrições de Raul

Glaber. Isso questiona algumas interpretações anteriores que consideram não apenas os

concílios de paz, mas várias passagens das Histórias como testemunhos do estado de

violência generalizada. Como nota a professora Néri de Barros Almeida, não há nas Histórias

elementos que comprovem o estabelecimento desses concílios como instrumentos utilizados

pelos nobres, em aliança com a Igreja, para conter essa violência (BARROS ALMEIDA,

2010: 69). Raul Glaber não interpreta a violência por si só como fator de desagregação da

ordem pública. Ele concebe no controle das guerras e da violência guerreira um papel

ordenador e construtivo da vida pública. A paz é um tema de grande relevo para Glaber. Deste

modo, os meios e os instrumentos de pacificação, como os concílios de Paz e de Trégua de

Deus, a participação de árbitros20

, ou mesmo alianças guerreiras, batismos, casamentos e

conversões são de grande importância para o entendimento que o cronista tem da concepção

de paz.

Sobretudo nos livros I e II, Raul Glaber retrata guerras e disputas entre reinos e reis

que são apaziguadas por meio de casamentos, batismos ou alianças guerreiras, no intuito de

derrotar um inimigo comum. A seguinte passagem é ilustrativa a esse respeito. Ela se refere

aos conflitos entre o rei Cnut e Ricardo, rei da Normandia, e, posteriormente, entre o rei Cnut

e o rei da Escócia, Malcolm II (ARNOUX apud GLABER, 1996: 94-97).

Assim, depois da morte do rei Éthelred, do reino daqueles que se chamam

dinamarqueses, o rei Cnut que esposara uma irmã do duque de Rouen, Ricardo,

invadiu o reino deste, isto é, o reino da Normandia. Posteriormente, após grandes

expedições guerreiras e de grandes destruições dessa pátria, ele fez a paz com

Ricardo, e esposou a irmã dele21

, viúva de Éthelred [que se chamava Emma], e

reinou sobre os dois reinos. Em seguida, Cnut tentou, com um imponente exército,

estabelecer seu poder sobre os escoceses, cujo rei Malcolm era um homem valente e,

coisa ainda mais importante, muito cristão tanto pela fé quanto pelas obras.

Esperando que Cnut, audaciosamente, procurasse invadir seu reino, ele reuniu seus

homens e resistiu com obstinação. Cnut persistiu longamente em suas tentativas, até

que, persuadido por Ricardo, duque de Rouen e pela irmã dele22

, ele renunciou à sua

ferocidade e se converteu à doçura da paz; melhor ainda, preferindo fazer alianças

20

Como exemplos da presença de árbitros na tarefa de pacificação pode-se citar a participação do abade Odilon

de Cluny como intermediário de negociações de pacificação dos conflitos entre os reis Roberto, o Piedoso, e

Landri, conde de Nevers, em torno do ano 1000, sem obter, no entanto, sucesso em sua empreitada (II, 15); e a

participação de Foulques Nerra, que age como árbitro de paz, forçando a esposa de Roberto, o Piedoso, e seus

filhos a aceitarem a paz, após a morte do rei Roberto e a deflagração de conflitos pela sucessão real (III, 36). 21

Esse casamento se deu entre Emma, viúva do rei Éthelred, e o rei Cnut em 1017. 22

Essa passagem também é ilustrativa da ação de árbitros ou intermediários no intuito de se obter uma

pacificação.

Page 67: Anais 2011

64

de amizade com o rei dos escoceses, ele foi até as fontes batismais segurar o filho

deste rei. A partir desse momento, quando o duque de Rouen sentia a necessidade de

alguma guerra, uma forte armada, vinda das ilhas, atravessava o mar para vir em

ajuda. Tão bem que a nação dos Normandos e os povos das ilhas observaram

fielmente a paz entre eles. Eles se faziam temer por povos de outras regiões no lugar

de temê-los. Não há nada de espantoso: lá onde a discórdia ruinosa se esfacelou

diante do temor de Deus se estabelecem, em favor da paz do Cristo, a alegria e a

felicidade de um reino nobremente governado (GLABER, 1996: II, 3)23

.

Nesse caso nota-se que o casamento foi um meio usado para o estabelecimento de

pacificação dos conflitos, assim como para a negociação de alianças de cooperação guerreira,

isto é, os reinos em acordo se comprometeriam na ajuda em caso de guerras contra reinos

inimigos, por exemplo. Com isso, pode-se inferir também que as alianças em prol da paz

podem englobar a guerra e a violência guerreira, e assim, a paz não remeteria, para Raul

Glaber, à ausência total de qualquer tipo de hostilidade, mas a um equilíbrio das relações de

forças no qual havia um convívio entre paz e violência, sendo esta um meio legítimo utilizado

nas práticas sociais para a obtenção da paz. A paz, nesse sentido, não é desvinculada da

prática guerreira.

Além disso, as conversões podiam fazer parte de negociações para a obtenção de

alianças e da paz. Os normandos, embora tivessem devastado várias partes das regiões

costeiras, convertem-se à mesma fé e se aliam, como diz o autor, ao conde da Borgonha e ao

duque da Normandia no sentido de suspender (ou mesmo cessar) as ameaças ou o

enfrentamento militar com essas nações. A conversão à mesma fé seria mais um elemento

para a união e a criação de alianças, do mesmo modo que o batismo era um meio possível de

se selar compromissos24

, assim como a negociação por pacificação. Por fim, outro ponto

importante é a descrição do acordo de pacificação como laços de amizade, no caso entre

23

“Denique mortuo rege Adalrado, in regno scilicet illorum qui Danimarches cognominantur, qui etiam uxorem

duxerat sororem Richardi, Rotomagorum ducis, invasit regnum illius rex videlicet Canuc occidentalium

Anglorum. Qui etiam, post crebra bellorum molimina, ac patrie depopulationes pactum cum Richardo

stabiliens eiusque germanam, Adalridi videlicet uxorem, in matrimonium ducens utriusque regni tenuit

monarchiam. Post hec quoque isdem Canuc cum plurimo exercitu egressus ut subiugaret sibi gentem

Scottorum; quorum videlicet rex Melculo vocabatur, viribus et armis validus, et quod potissimum erat, fide

atque opere christianissimus. Ut autem cognovit quoniam Canuc audacter illius quereret invadere regnum,

congregans omnem sue gentis exercitum, potenter ei ne valeret restitit; ac diu multumque talibus procaciter

Canuc inserviens iurgiis, ad postremum tamen predicti Richardi Rotomagorum ducis eiusque sororis

persuasionibus pro Dei amore omni prorsus deposita feritate, mittis effectus in pace deguit; insuper et

Scotorum regem amicicie gratia diligens illiusque filium de sacro baptismatis fonte excepit. Cepit ergo ex illo

fieri ut, si qua hostilis necessitas Rotomagorum duci incumberet, a transmarinis insulis in sui auxilium

exercitum sumeret copiosum. Sicque diutius gens Normanorum scilicet ac predictarum populi insularum tuti

pace fidissima, ut ipsi potius formidine sue potentie plerosque exterarum provinciarum terrerent populos,

quam ipsi ab aliis terrerentur. Nec mirum quippe quoniam, a quibus bonorum extirpatrix Dei timore expulsa

fuerat discordia, in eisdem pace previa Christi nobile regnum felix obtinuit tripudium”. 24

Neste caso, ocorre o batismo do filho de Malcolm, da Escócia, pelo rei Cnut.

Page 68: Anais 2011

65

Malcolm e Cnut, o que pode sugerir o caráter de acordo e de negociação do vínculo, além do

compromisso das partes em respeitá-lo, com a reconciliação das relações sociais e políticas

entre os reinos. Desta forma, a paz, descrita em termos de amizade (“amizade pacífica dos

novos reis”) supõe uma harmonia de interesses e das relações, e um estado de concórdia no

qual há o respeito aos termos do pacto de paz25

.

REFERÊNCIAS

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__________Três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982.

__________ A sociedade cavaleiresca. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

25

Há outros exemplos da descrição da paz em termos próximo à amizade, ao longo das Histórias. Como

exemplo pode-se citar o capítulo 23 do livro IV, no qual Glaber retrata o estabelecimento de um pacto de paz

e de amizade entre o imperador Conrad e o rei dos francos, Henrique. (“Tranquilizado pela vitória [contra a

nação bárbara dos liutices] o imperador [Conrad], reunindo seu exército novamente, ganhou a Itália e avançou

até Roma, esmagando, no espaço de um ano onde ele permaneceu, todos aqueles que haviam tentado se

revoltar contra ele. Ele concluiu com Henrique, filho de Roberto, rei da França, uma pacto de paz e de

amizade, como o imperador Henrique havia feito com seu pai, e enviou um gigantesco leão ao rei, em sinal

de amizade.” (GLABER, 1996: IV, 23).

Page 69: Anais 2011

66

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67

JORDANES, ISIDORO DE SEVILHA E A ORIGEM DOS GODOS

Verônica da Costa Silveira1

1 Introdução

A primeira pergunta que emerge quando lidamos com história da historiografia na

Idade Média é elementar: existiu história na Idade Média? Se sim, quais são suas

características? No que ela difere da história conforme sua acepção contemporânea?

Autores como F. Châtelet (CHÂTELET, 1963) e H. White (WHITE, 1980) foram

céticos quanto a possibilidade da existência de história no período medieval. Para o primeiro,

a percepção da dimensão política das ações humanas é o motor que nos guia para o ímpeto de

fazer história. O homem, enquanto um sujeito auto-consciente de seu papel na história, passa

a entender o tempo tendo a ele mesmo como mensura e a história, o curso do tempo, tem

igualmente ele como epicentro. No que concerne à Idade Média, O autor reconhece o peso da

produção, pelo menos autodenominada “história”, dos escritores cristãos do medievo para o

desenvolvimento da história-ciência do final do século XVIII e decorrer do XIX, cuja

paternidade é atribuída à L. von Ranke e Niebuhr. Duvida, no entanto, que autores cristãos

dos séculos que se seguira à “Queda de Roma” tivessem sido capazes de possuir uma

concepção histórica séria. Eram eles incapazes de compreender corretamente a experiência

histórica por não possuírem a percepção essencial que permite o conhecimento histórico: a

consciência do papel dos sujeitos no curso do tempo.

Já White, em seu comentário sobre os anais de Santo Gall, que cobrem os eventos

ocorridos entre os séculos VIII e X, atribuiu à falta de conexão entre os eventos uma espécie

de dificuldade por parte dos autores em entender o “sistema social” como relevante. Os

acontecimentos eram fortuitos e alheios à vontade humana, que os vivenciavam passivamente

diante da impossibilidade de revertê-los. Os humanos simplesmente viviam, sem qualquer

possibilidade de atuar em seus destinos. Segundo ele, os lapsos no texto dos anais indicam

dois fatos: a inexistência de coerência narrativa no texto e a inexistência de qualquer noção de

ordem política e social. O autor corroborou com Hegel ao salientar que um escrito

genuinamente historiográfico depende justamente da figuração dos dois elementos faltantes

1 Doutoranda do Programa do Pós-Graduação em História Social. FFLCH-USP – Laboratório de Estudos

Medievais. Bolsista FAPESP.

Page 71: Anais 2011

68

nos anais descritos. White, ainda na trilha das colocações de Hegel, estabelece que a narrativa

e a idéia de ordem social pressupõem a existência de um Estado e de uma organização

jurídica, estes últimos, por fim, constituem a condição de possibilidade tanto da historicidade

quanto da narratividade.

Forçosamente, o que podemos inferir a partir das leituras desses dois autores é que

para eles, cada um a seu modo, o conhecimento histórico depende de uma espécie de

consciência histórica. Consciência histórica, nas palavras de H.-G. Gadamer é: “o privilégio

do homem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da

relatividade de toda opinião” (GADAMER, 2003: 17).

A consciência histórica é, então, não só uma noção dos processos históricos, mas

também uma percepção de que toda opinião é relativa, ou seja, são as próprias opiniões

revestidas de historicidade. Essa tomada de consciência histórica e percepção da historicidade

das coisas é latente no surgimento de confrontos de idéias. As disputas no Kampf der

Weltanschauugen (confrontos de visão de mundo) é ao mesmo tempo sintoma e consequência

da consciência histórica.

Uma suposta visão providencialista da história, segundo a qual os seres humanos eram

incapazes de intervir nos acontecimentos já que eles eram fruto dos desígnios divinos,

impossibilitaria a existência da “consciência histórica” e, destarte, do conhecimento histórico

concretizado mediante a historiografia. Essa consciência histórica, imperativo para a

historiografia, surgiria apenas do decorrer do século XVIII, com a emergência do Estado

moderno - por vezes retratado como causa, por vezes como conseqüência, da consciência

histórica (KOSELLECK, 2004).

Néri de Barros Almeida sumariza perfeitamente o ceticismo frente à existência da

história na Idade Média:

Devido à “barbarização” da sociedade, gêneros narrativos antigos aí quase nada

conservariam da tradição anterior além do nome. Seria isso que se daria com as

narrativas chamadas de “história”. Este seria não apenas um gênero inexistente, mas

impossível tendo em vista limites culturais intrínsecos. A história não existiria na

Idade Média, época desprovida de meios para uma percepção, recorte e análise

objetivos dos acontecimentos. A principal causa dessa desconfiança seria o

comprometimento da razão com a fé. Ficava de fora dessa apreciação –

particularmente viva no ambiente historiográfico francês – a complexidade da

cultura cristã medieval (ALMEIDA, 2010: 84-85).

O artigo de Almeida é, entretanto, muito mais do que uma reflexão historiográfica

sobre a crítica à escrita da história no medievo e uma defesa da história na Idade Média, é

Page 72: Anais 2011

69

sobretudo um apontamento sobre o quanto a reflexão sobre esse tópico, dentre outros como

“feudalismo”, “heresias”, etc emergem num contexto acadêmico mais amplo que repensa a

própria Idade Média, ou a “reinventa”, conforme as palavras da autora. Reinvenção que se

inicia com a crítica da modernidade e a revalorização do Estado que não é mais tido como o

depositório da ordem, mas comumente como fonte de coerção. Assim, o suposto caos

institucional medieval ganha uma nova abordagem transmutando-se num objeto para o estudo

de experiências sociais num ambiente de fragilidade estatal, ou mesmo ausência de Estado2.

E se nessa reinvenção da Idade Média certos axiomas foram postos na berlinda, a

leitura sobre as histórias no medievo também ganhou novos tons. Retomaremos a questão a

seguir. Por hora nos limitaremos a um elemento um tanto quanto mais evidente. Ora, a

despeito dos questionamentos sobre a existência da história, histórias foram escritas ao longo

dos mil anos que convencionamos qualificar como medievais. É pertinente, então, negarmos o

qualificativo “história” para obras que receberam o título de “história” por conta de um

hipotético lapso de consciência histórica?

Poderíamos retomar as considerações de Ernst Cassirer. Conforme ele, a linguagem

atua decisivamente na atividade do conhecimento, permitindo-o (CASSIRER, 1972). O

surgimento de palavras para designar experiências indica os meandros do conhecer. A partir

disso é possível inferir que a própria figuração do substantivo “História” já aponta para uma

preocupação sobre a história. Nesse sentido não cabe utilizar a qualidade narrativa dessas

histórias para julgar se elas são efetivamente obras historiográficas, como faz White.

Contudo, utilizar a existência de uma palavra como evidência da gênese de uma

determinada forma de conhecer que tão-somente progrediu consiste numa generalização

alheia aos diversos sentidos assumidos por dado vocábulo. Uma história da historiografia

antes de mirar para o progresso da história deve atentar para os múltiplos significados que o

esforço por registrar o passado assumiu. Não se trata de erigir um sólido monumento

conceitual para A História, mas sim desvendar as faces das mais diversas histórias. A partir de

então, torna-se pertinente a indagação: qual é o papel da história na sociedade específica que a

registrou?

2 Cabe ainda mencionar a reflexão historiográfica conduzida pelo há pouco publicado livro de L.D. Rust (2011,

p. 33-77), obra que propõe uma retomada da história institucional do papado. Como o autor sublinha no seu

primeiro capítulo, a história institucional passou pelos extremos da supervalorização e total desvalorização,

estando hoje ainda às voltas com o impasse. Interessante perceber como os historiadores no Brasil, como a já

mencionada Néri de Barros Almeida, mas ainda Marcelo Cândido da Silva, Maria Filomena Coelho e Renan

Frighetto enfrentam a difícil questão sob uma ótica inovadora. (CÂNDIDO, 2012; COELHO, 2007;

FRIGHETTO, 2012).

Page 73: Anais 2011

70

2 A História em Jordanes e Isidoro de Sevilha

Historia é a narração de acontecimentos, pela qual se conhecem os sucessos que

tiveram lugar em tempos passados. O nome de história deriva do grego historeîn,

que significa ver ou conhecer. E é que entre os antigos não escrevia história quem

não tenha sido testemunha e havia visto os feitos que deveriam narrar. Melhor

conhecemos os feitos que observamos com nossos próprios olhos que os que

conhecemos por ouvido. 2. as coisas que se vê podem ser narradas sem falsidade.

Esta disciplina se integra à gramática porque às letras se confia quando é digno de

recordação (Etymologiarum, 1975: I, 41)3.

A definição de “história” nas Etimologias de Isidoro de Sevilha é ilustrativa da

concepção mais fundamental sobre o significado do termo. História jamais é empregada na

obra do Hispalense, e tampouco o fora na de Jordanes, para se referir ao tempo passado

propriamente dito. História era um gênero narrativo cujo objeto era os eventos passados, sua

raiz etimológica vem do grego que significa ver e conhecer, pois a peculiaridade da narrativa

histórica era narrar sem falsidade o que era digno de recordação. Mas a restrição à narrativa

de feitos testemunhados impediria a escrita da história de um passado longínquo? Não, pois as

fontes para esses eventos pretéritos eram as próprias histórias. Como registrou Isidoro de

Sevilha no seu De origine Gothorum et regno Sueborum et etiam Wandalorum historia

librum unum4 : “Por muitos séculos [os godos] foram governados por reis, cuja cronologia,

nomes e atuação convém expor por ordem e sucessivamente, servindo-se para isso de dados

tirados das histórias”5. Usar histórias como referências para o ordenamento dos eventos – no

caso de Isidoro de Sevilha a sucessão dos reis, garantia a confiabilidade das informações. Em

Jordanes o valor das histórias como fonte é mais claro.

3 “Historia est narratio rei gestae, per quam ea, quae in praeterito facta sunt, dinoscuntur. Dicta autem Graece

historeîn, id est a videre cognoscere. Apud veteres enim nemo conscribebat historiam, nisi is qui interfuisset, et

ea quae conscribenda essent vidisset. Melius enim oculis quae fiunt deprehendimus, quam quae autitione

colligimus. 2. Quae enim videntur, sine mendacio proferuntur. Haec disciplina ad Grammaticam pertinet, quia

quidquid dignum memoria est litteris mandatur”. 4 A Historia de Isidoro de Sevilha é mais conhecida como “Historia Gothorum, Sueborum et Wandalorum”.

Empregamos aqui o título apresentado por Bráulio de Saragoza na Recapitulatio que ele fez dos escritos

isidorianos, pois esse aparentemente foi o título dado por Isidoro de Sevilha para o texto. (COUMERT, 2007,

p. 103-104), o título mais utilizado acaba por obnubilar alguns aspectos do título original de modo a

comprometer a interpretação da obra. Isidoro falou da origem dos godos, sobre os vândalos e suevos, ele tratou

da origem de seus reinos, a diferença não é desimportante. 5 “Per multa quippe retro saecula ducibus usi sunt, postea regibus, quorum oportet tempora per ordinem cursim

exponere et quo nomine actuque regnauerint, de historiis libata retexere” (De Origine, Versão longa, 3).

Page 74: Anais 2011

71

Jordanes, conforme as palavras iniciais da Gética, escreveu a pedido de Castalius que

o requisitou para sumarizar os doze livros sobre a história dos godos de Cassiodoro. Ele

salientou que não estava com a obra de Cassiodoro enquanto escrevia e que apenas a leu há

um certo tempo. Para dar conta desse lapso Jordanes afirmou que se fiaria em histórias latinas

e gregas além de detalhes inseridos por ele mesmo. Além desse trecho de abertura, Jordanes

acrescentou mais a frente: “aut certe si quis eos aliter dixerit in nostro urbe, quam quod nos

diximus, fuisse exortos, nobis aliquid obstrepebit: nos enim potius lectioni credimus quam

fabulis anilibus consentimus” (Getica6, 38). (“Certamente que se alguém em nossa cidade

contar, de maneira distinta da nossa, sobre como foi a origem [dos godos], que nos faça

objeção. Nós [todavia] cremos mais nas leituras do que consentimos com as fábulas das

idosas”). Quais eram essas leituras?

Conforme Mommsen (1882: XXX-XLIV) as fontes de Jordanes foram nomes como

Pompeu Trogo, Virgílio, Lívio, Strabo, Pompônio Mela, Lucano, o já mencionado Josefo,

Dio, Tácito, Cláudio Ptolomeu, Dexipus, Fábio, Amiano Marcelino e seu continuador,

Rufino, Próspero, Priscus e o misterioso Ablablius. Todavia, nem todos esses autores são

citados diretamente por Jordanes e algumas fontes que Mommsen identifica como base de

alguns trechos jordanianos estão perdidas, como por exemplo a Historia de Pompeu Trogo. É

notável, todavia, que as fontes mapeadas por Mommsen são de autoria de autores que

escreveram majoritariamente histórias. Se Jordanes realmente se fiou nas obras enumeradas

por Mommsen, não há como confirmar irrefutavelmente, mas dentre autores citados

nominalmente por ele estão escritores de histórias, como Flávio Josefo e Dio.

Ora, podemos apontar então que tanto Isidoro de Sevilha quanto Jordanes não só

escreveram histórias como apresentaram elementos que caracterizavam seus escritos como tal.

Sumariamente, para ambos os autores, história era uma narrativa confiável de eventos

passados. Não se tratava de uma disciplina tal como conhecemos hoje, tampouco era utilizada

como sinônimo de passado. Mas há outra coisa em comum entre Isidoro de Sevilha e Jordanes

que justifica nossa opção por analisa-los aqui: os dois escreveram a história que tratava dos

eventos relacionados à origem dos godos.

3 De Origine Gothorum

6 O título do texto de Jordanes era: De origine actibusque Getarum. O termo “Getica” passou a ser utilizado

depois da edição de Mommsen. Manteremos o termo popularizado por Mommsen para facilitar as referências à

obra e evitar que ela se confunda com o De Origine de Isidoro de Sevilha.

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72

Duas obras que trataram da origem dos godos, isso é o que salta às vistas logo no

primeiro contato com os títulos dados por seus autores para os textos. A Getica de Jordanes

foi concluída em 551 na cidade de Constantinopla. Já o De Origine de Isidoro de Sevilha foi

escrito em dois momentos: o primeiro entre 619 e 620, a versão dessa época é conhecida

como breve; o segundo em 624, cuja versão é chamada de longa.

A trama narrada por Jordanes tem seu início numa ilha conhecida como Scandza,

matriz de muitas gentes e nações ([...]officina gentium aut certe velut vagina nationum [...]

Getica, 25). Ele continua e diz que os godos aportaram seus navios e deram à terra que

pisaram o nome de Gothiscandza, logo de lá saíram e partiram para as terras do Ulmerugi que

habitavam as margens do Oceano. Os godos e Ulmerugi batalharam e os últimos foram

derrotados e expulsos, depois foram vencidos os Vândalos. Passados cinco anos do reinado de

Berig assumiu o controle Filimer que teve que lidar com o grande incremento no número de

godos. Para contornar a situação Filimer decidiu que os exércitos dos godos junto às suas

famílias deveriam partir. Chegaram então às terras do escitas, conhecida na língua deles por

Oium. Logo os godos encontraram os Spali e mais uma vez guerrearam e saíram vitoriosos e

avançaram até o mar de Pontus. Essa história foi contada por antigos cânticos godos, mas

também por Ablablius, um confiável cronista da gens dos godos que registrou tudo pela

história. Também Josefo, um fiel relator de anais, falou dos godos. Não se sabe os motivos

que o fizeram omitir a origem dos godos, mas ele informou sobre Magog e diz que os godos

eram da nação escita e assim foram chamados por nome7.

7 “Ex hac igitur Scandza insula quasi officina gentium aut certe velut vagina nationum cum rege suo nomine

Berig Gothi quondam memorantur egressi: qui ut primum e navibus exientes terras attigerunt, ilico nomen loci

dederunt. nam odieque illic, ut fertur, Gothiscandza vocatur. unde mox promoventes ad sedes Vlmerugorum,

qui tunc Oceani ripas insidebant, castra metati sunt eosque commisso proelio propriis sedibus pepulerunt,

eorumque vicinos Vandalos iam tunc subiugantes suis aplicavere victoriis. ubi vero magna populi

numerositate crescente et iam pene quinto rege regnante post Berig Filimer, filio Gadarigis, consilio sedit, ut

exinde cum familiis Gothorum promoveret exercitus. qui aptissimas sedes locaquae dum quereret congrua,

pervenit ad Scythiae terras, quae lingua eorum Oium vocabantur: ubi delectatus magna ubertate regionum et

exercitus mediaetate transposita pons dicitur, unde amnem traiecerat, inreparabiliter corruisse, nec ulterius

iam cuidam licuit ire aut redire. nam is locus, ut fertur, tremulis paludibus voragine circumiecta concluditur,

quem utraque confusione natura reddidit inpervium. verumtamen hodieque illic et voces armentorum audiri et

indicia hominum depraehendi commeantium attestationem, quamvis a longe audientium, credere licet. haec

ergo pars Gothorum, quae apud Filemer dicitur in terras Oium emenso amne transposita, optatum potiti

solum, nec mora ilico ad gentem Spalorum adveniunt consertoque proelio victoriam adipiscunt, exindeque iam

velut victores ad extremam Scythiae partem, que Ponto mari vicina est, properant, quemadmodum et in priscis

eorum carminibus pene storicu ritu in commune recolitur: quod et Ablavius descriptor Gothorum gentis

egregius verissima adtestatur historia, in quam sententiam et nonnulli consensere maiorum: Ioseppus quoque

annalium relator verissimus dum ubique veritatis conservet regulam et origines causarum a principio revolvat.

haec vero quae diximus de gente Gothorum principia cur omiserit, ignoramus: sed tantu Magog eorum stirpe

comemorans, Scythas eos et natione et vocabulo asserit appellatos” (Getica, 25-27).

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73

A versão de Isidoro de Sevilha é bem diferente. Na verdade, as duas versões da De

origine atribuem origens distintas para os godos.

TABELA 1: Comparação entre as duas versões de De origine, de Isidoro de Sevilha, quanto à descrição da

origem dos godos

Versão Breve Versão Longa

É coisa certa que o reino dos godos é antiqüíssimo, já

que surgiu do reino dos escitas8.

O povo dos godos é antiqüíssimo. Alguns acreditam

que eles são descendentes de Magog, filho de Jafet,

por causa da semelhança de sua última sílaba e,

sobretudo, porque o deduzem do profeta Ezequiel; mas

os antigos eruditos acostumaram-se a chamá-los mais

“Getas” do que “Gog” e “Magog”9.

Por que essa diferença entre a narrativa de Jordanes e de Isidoro de Sevilha e, mais

importante, por que a diferença nas duas versões de Isidoro de Sevilha? Vejamos se levantar

alguns dados sobre as suas biografias nos diz algo.

A obra de Jordanes não desfruta de grandes simpatias entre muitos historiadores.

Escrita num latim pobre, é retratada como um mero sumário da história maior – e que não

chegou aos nossos dias – de Cassiodoro (WOLFRAM, 1987: 36; WOLFRAM, 1990;

KULIKOWSKI, 2007: 43-52). Jordanes muito provavelmente era de origem goda, mas

prestava serviços ao imperador Justiniano no contexto das guerras góticas. Para Goffart esse é

um dado importantíssimo para sustentar sua hipótese de Jordanes como um funcionário

altamente romanizado do Império que comemorou as conquistas de Justiniano e Belisário

(GOFFART, 2005; GOFFART, 1988). Goffart também refuta veementemente a hipótese de

Jordanes como um mero copiador da Historia de Cassiodoro, segundo ele, e seguindo

significativamente a linha argumentativa de Croke, Jordanes de fato começou o trabalho a

pedido de um amigo que pediu que ele sumarizasse o trabalho de Cassiodoro, contudo,

quando o amigo de Jordanes fez o pedido, Cassiodoro não tinha à disposição o escrito de

Cassiodoro, ele havia tido um breve contato com a obra durante três dias, poderia, portanto,

no máximo se fiar nas linhas argumentativas de Cassiodoro (CROKE, 1987; GOFFART;

2005).

Há vozes dissonantes sobre a hipótese defendida por Goffart de Jordanes ter sido um

funcionário à serviço do Império, como J. O´Donnell. Segundo ele Jordanes não nutria

sentimentos pró-Bizância, tampouco pró-godos e sim pró-cristãos. O´Donnell, no seu artigo

8 “Gothorum antiquissimum esse regnum certum est, quod ex regno Scytharum est exortum”.

9 “Gothorum antiquissimam esse gentem [certum est]: quorum originem quidam de Magog Iafeth filio

suspicantur a similitudine ultimae syllabae; et magis de Ezechiele propheta id coligentes. Retro autem eruditi

eos magis Getas quam Gog et Magog appellare consueuerunt”.

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74

provocativo interpreta tanto a Getica quanto a Romana (ou “De summa temporum vel origine

actibusque Romanorum”) numa perspectiva que dá peso ao seu caráter cristão

significativamente influenciado por Agostinho: tanto a Romana quanto a Getica tinham uma

conclusão pouco otimista para o desfecho dos acontecimentos, é que os eventos do mundo

eram desimportantes, ao fim e ao cabo, a mensagem nos textos era teológica, não política. E

essa última assertiva é especialmente ousada, pois para o pesquisar Jordanes estava à parte

dos grandes esquemas políticos de sua época (O´DONNELL, 1982). O argumento de

O´Donnell soa convincente até esbarrarmos na possibilidade de Jordanes ter servido como

notarius (CROKE, 1987).

Temos então um autor que alegou ser de origem goda, viveu em Constantinopla e

escreveu uma obra pró-Bizâncio em meados do século VI. O que isso nos diz sobre a Getica e

sobre a origem dos godos conforme relatada por Jordanes? Ora, nas palavras finais de sua

obra lemos:

E assim foi narrada a origem dos godos, dos nobres Amali e de todos os seus feitos

heróicos. Essa notável progenitura submetida frente à um nobre príncipe e rendida

por uma general heróico. Nenhuma era esquecerá a glória dos Godos, mas o

vitorioso e triunfante imperador Justiniano e consul Belisário devem ser conhecidos

tal como Vandalicus, Africanus e Geticus10

.

A narrativa dos feitos heroicos dos godos parece dar uma magnitude notável para as

vitórias de Justiniano e Belisário. A preocupação com o registro dos feitos dos godos desde

suas origens destaca a grandeza da gens Gothorum e a importância das vitórias que o Império

conquistou. Mas, mesmo que essa interpretação esteja correta, isso é tudo o que podemos tirar

da Gética? Voltaremos a esse ponto mais a frente, por ora cabem algumas palavras sobre

Isidoro de Sevilha.

Ao contrário do que O´Donnell propôs para Jordanes, não há possibilidades de

questionar a participação de Isidoro, Bispo de Sevilha, na trama política da Hispânia da

primeira metade do século VII. Isidoro de Sevilha participou do importante IV Concílio de

Toledo de 633 que confirmou a deposição de um rei, Suintila, e mantinha íntimas relações

com o rei Sisebuto. A De origine não era obra de um observador das disputas intensas em

torno dos reis godos da Hispânia, foi escrita por um ator no teatro dos eventos preocupado

10

“Haec hucusque Getarum origo ac Amalorum nobilitas et virorum fortium facta. haec laudanda progenies

laudabiliori principi cessit et fortiori duci manus dedit, cuius fama nullis saeculis nullisque silebitur

aetatibus, sed victor ac triumphator Iustinianus imperator et consul Belesarius Vandalici Africani Geticique

dicentur”. (Getica, 315).

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75

com os recorrentes golpes que destituíam os monarcas eleitos e causavam distúrbios no

regnum.

Isidoro era um hispano-romano que se identificava com a Hispania – como indica sua

Ode à Hispânia que antecede os relatos sobre os godos, vândalos e suevos – sob a autoridade

goda, mas afinal, o que isso diz sobre sua versão para a origem dos godos e porque a versão

breve é distinta da longa? O bispo de Sevilha entrou em contradição? Aparentemente não. Se

retomarmos as palavras do Hispalense notamos que a versão breve fala da origem do reino

dos godos enquanto a longa versa sobre a origem da gens Gothorum: “é coisa certa que o

reino dos godos é antiquíssimo”; “É coisa certa que o povo [gens] dos godos é antiquíssimo”.

Reydellet num interessantíssimo trabalho nos dá algumas pistas sobre essa sensível

mudança de foco ao identificar a existência de uma hierarquia das gentes nos escritos

isidorianos. De acordo com o estudioso Isidoro construiu um quadro genealógico das gentes

organizado segundo a descendência de Sem, Cham e Jafet. Nesse retrato, cada nação herda

seu nome de um dos descendentes desses “pais fundadores”. Todavia, com o passar do tempo,

o nome das gentes sofre modificações por motivos diversos de modo a ser por vezes difícil

traçar seguramente sua linha genealógica. Desde essa perspectiva Isidoro estabeleceu a

hierarquia entre os “povos”: quanto mais difícil era identificar seus ancestrais mediante o

estudo de seu nome, mais degenerada era a gens analisada. Nesse sentido os godos acabaram

por assumir um lugar privilegiado já que o Hispalense identificou facilmente sua origem em

Magog. (REYDELLET, 1985: 337-350). Poderíamos então inferir que a mudança da narrativa

na versão longa acrescentou a elevação dos godos na hierarquia das gentes. Assim,

corroboraríamos com as hipóteses que identificam Isidoro de Sevilha como o fundador da

história nacional da Espanha (MENÉNDEZ PIDAL, 1940; SÁNCHEZ ALONSO, 1947;

TEILLET, 1984).

Teríamos então duas explicações para as singularidades das historiae de Isidoro de

Sevilha e Jordanes. Explicações que transcendem os escritos e buscam numa conjuntura

política de seus tempos os instrumentos interpretativos. Jordanes um homem envolvido com o

Bizâncio, Isidoro às voltas com a Hispania goda. Mas talvez essas leituras tirem o foco de um

dado bastante interessante: Jordanes era de origem goda, Isidoro um hispano-romano, mesmo

assim o primeiro celebra as conquistas romanas enquanto o segundo as conquistas godas. Isso

traz à baila uma questão altamente debatida neste momento onde a Idade Média é

“reinventada”, trata-se do debate sobre as identidades.

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76

4 Identidades e escrita da história

Com a crítica à modernidade e os traumas em evidência no pós-guerra, o Estado e suas

origens, tema caro aos historiadores do XIX e primeiras décadas do século XX, passou por

uma forte revisão. A concepção essencialista das nações que as retratavam em seu caráter

teleológico motivou o ímpeto pela busca das origens dos Estados-Nação onde povos de

tempos pretéritos eram pesquisados à luz de seus supostos papéis de pais fundadores. Vistas

como entidades culturais intimamente ligadas a características biológicas, as etnias foram

entendidas pelos acadêmicos como unidades populacionais coesas, que como tal migraram

para o território imperial romano no ocidente e lá implementaram seus valores, costumes, leis

e o vigor ou decrepitude a elas imanente11

. Os povos eram muitas vezes retratados a-

historicamente, sua organicidade os livrava das transformações no tempo e permitia que eles

atravessassem as vicissitudes imunes e preservando suas características. Isso até a publicação

do trabalho de R. Wenskus: Stammesbildung und Verfassung. Das Werden der

frühmittelalterlichen Gentes no ano de 1961. A importância do texto de Wenskus reside em

sua perspectiva histórica sobre as etnias: estas não são uma entidade natural, mas fruto de uma

construção histórica, Wenskus trouxe a historicidade para os povos e marcou o início de um

dos debates mais polêmicos da historiografia atual sobre os povos, ou melhor, gentes, que

transformaram os rumos do Império Romano Ocidental.

R. Wenskus buscou superar a utilização de termos contemporâneos – como “povos”,

“nações”, “raças” – em favor de expressões presentes nas fontes, dentre as quais gentes, que

acabou por se consagrar entre os estudiosos partidários da tese do pesquisador. As gentes que

entraram em contato com Império Romano estavam longe de constituir uma unidade coesa,

eram grupos heterogêneos que só passaram a compartilhar de uma identidade relacionada com

a etnografia de origem greco-romana em contato com o Império Romano. Ou seja, o

nascimento das gentes conhecidas como “godos”, “francos”, “suevos” etc foi fruto de um

processo histórico devido às migrações desses grupamentos mistos para as províncias

romanas. O que Wenskus fez foi apontar para a historicidade das gentes, perspectiva esta que

ia de encontro às idéias essencialistas que relacionavam comunidades culturais com

11

A qualificação dos grupos germânicos como vigorosos ou decrépitos bárbaros foi um dos principais motes do

debate que opôs historiadores partidários de teses germanistas aos partidários de teses romanistas, a saber, os

que entendiam a chegada dos germanos como algo que trouxe benefícios para a Europa Ocidental e os que

defendiam que as “invasões bárbaras” foram eventos desoladores e maléficos para o ocidente europeu. Essa

polêmica já se delineava nos trabalhos de eruditos como E. Gibbon – pessimista em relação aos germanos – e

J.G. von Herder – otimista em relação aos germanos. (GIBBON, 1995; HERDER, 1803).

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77

características biológicas. Desde então o conceito antropológico da “etnogênese” passou a ser

amplamente utilizado para dar conta do surgimento histórico de identidades étnicas.

O trabalho de Wenskus foi importante para a compreensão do processo histórico no

qual estava envolvido o nascimento das gentes, mas foi graças à Herwig Wolfram que o termo

etnogênese, pouco usado por Wenskus, ganhou destaque entre os historiadores ocupados com

as (i)migrações da Antigüidade Tardia (GILLET, 2006).

A etnogênese ocupou papel central no estudo de Wolfram dedicado aos godos.

Segundo o pesquisador, a etnogênese dos godos foi um processo de integração intimamente

relacionado com a entrada de grupamentos guerreiros diversificados no Império Romano. Tal

integração se deu em dois níveis: a suplantação da heterogeneidade interna desses grupos e o

seu crescente relacionamento com as populações de origem romana, fenômenos estes que

ocorreram de maneira concomitante e suplementar. Esse processo foi antes de tudo político e

operado pelos altos estratos sociais godos interessados na estabilidade em detrimento da

insegurança política oferecida pela organização tribal bélica:

The process of settlement was necessary to transform the Gothic kingship into a

Gothic kingdom. Before that, everyone's position rested on the spoils of battle; a

form of capital that could only be invested safely if the tribe became sedentary once

again. As long as they were part of migrating Gothic groups, Gothic lords and

noblemen had to subsist on what they had conquered and they had to replenish it

constantly. Further, it was possible to lose everything in a single disastrous

encounter. Thus, the Gothic leading strata became interested in the stability

provided by an established kingship, located within a specific area (WOLFRAM,

1979).

Os processos de etnogênese na Antigüidade Tardia se deram em contextos de crises, e

não só daquelas que surgiam no Império Romano, mas também das terras de onde saíram os

bárbaros: os diversos grupos chamados de godos que eram pressionados pelos hunos; a

presença romana na Região do Baixo Reno a partir do século I e o caso dos francos; a

presença romana no Alto Reno e no Danúbio e o confuso caso dos Alamanni e Suebi, etc.

Mesmo assim, esses processos que ocorreram entre os séculos I e III não necessariamente

definiram as identidades étnicas que encontramos a partir do século V. Isso porque o

processo de etnogênese é em sua essência dinâmico, melhor, a própria fluidez das identidades

e sua – as vezes – constante transformação permite a etnogênese (COLLINS, 2005: 3-32;

MILLER, 1993; HUMMER, 1998; GOETZ, 2003; DERKS & ROYMANS, 2009).

O estudo de Wenskus e seus seguidores deu uma nova amplitude para as relações entre

os romanos e aqueles conhecidos pela alcunha genérica de “bárbaros”, seus contatos e

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78

mutações identitárias ganharam peso significativo para as explicações dos eventos que

tradicionalmente marcam o divisor de águas entre o mundo antigo e medieval. Não sem

alguns problemas, todavia. A própria fluidez das identidades étnicas impõe a enorme

dificuldade de identifica-las, de modo que as explicações dos estudiosos são tão diversas que

evidenciam o labirinto onde entramos, e as críticas não tardaram a ecoar.

A quase subordinação que os partidários da etnogênese criam entre as identidades

bárbaras e o Império Romano acabou por privilegiar o que C. Wickham chamou de

“paradigma romanistas” que superestima a continuidade do Império nos reinos fundados pelos

“bárbaros”. Mas Wickham é ainda mais duro em suas críticas ao defender que as diferentes

explicações das etnogêneses bárbaras devem mais ao desenvolvimento historiográfico do que

ao estudo das fontes. Para Wickham, que defende baseado em fontes arqueológicas que houve

sim uma crise e ruptura do Império Romano, se algo bárbaro se transformou quando entrou

em contato com a romanitas não se deveu a vontade dos bárbaros em se apropriar da

romanitas mas do que restava dela para ser apropriado (WHICKHAM, 2005).

Mas entre os mais destacados opositores da etnogênese e importância das identidades

étnicas como elementos explicativos para os eventos que tomaram lugar a partir do século IV

com a intensificação das migrações de grupos estrangeiros para o Império é, sem dúvidas, W.

Goffart. Segundo ele, a idéia das migrações de povos que experimentavam uma identidade

germânica não pode ser comprovada, já que as fontes arqueológicas não correspondem à

etnografia greco-romana e pelos resquícios arqueológicos não é possível identificar com

segurança a que grupo os indivíduos que deixaram essa cultura material entendiam pertencer.

Disse o historiador sobre as migrações que o ocorrido foi o contato de alguns homens e

mulheres, encontro este que se deu entre individualidades, não coletividades. Para Goffart, a

unidade dos povos germânicos é um fenômeno, no mais tardar, do século IX. (GOFFART,

2003). A crítica de Goffart, contudo, indiretamente corroboram com a tese da etnogênese

quando o autor afirma que as fontes arqueológicas não confirmam a existência de uma

identidade étnica. Ao fim e ao cabo os historiadores dedicados ao problema das identidades

apontam justamente para suas constantes transformações ao sabor das demandas, esperar que

nesse contexto se encontrem fontes arqueológicas que apontem irrefutavelmente para a

existência de identidades estabelecidas é realmente incoerente.

E se nos voltarmos para as fontes escritas? Mesmo na análise destas há vozes

opositoras à etnogênese, como M. Coumert e I. Wood. Para a primeira não se pode inferir que

ocorreu a etnogênese de todo um “povo” a partir de relatos de grupos minoritários e

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79

participantes das estruturas de poder. Isso seria superestimar as narrativas oriundas desses

grupos e ignorar a realidade das populações como um todo (COUMERT, 2005: 535), mas se

só contamos com fontes oriundas dos círculos de poder, como podemos avaliar a realidade do

restante das populações para afirmarmos que as identidades não eram uma questão

importante? A arqueologia tampouco traz luz ao problema... é preciso lidar com o fato de que

fora da alta hierarquia daquelas sociedades contamos com raríssimas fontes de informação. A

crítica de Wood é semelhante, ele chama a mesma atenção para a necessidade de adotarmos

uma postura crítica diante dos textos advindos dos grupos minoritários apontados por

Coumert. Segundo o historiador, os autores desses documentos eram homens oriundos de

aristocracias senatorias que em seus escritos expressaram a visão justamente dessas

aristocracias, preocupadas em preservar os elementos que mantinham sua influência em um

cenário de mudanças (WOOD, 1992: 9-18). Sim, precisamos adotar uma postura

parcimoniosa frente à nossas fontes, mas o problema continua: essas fontes tendenciosas são

as únicas que temos, é sobre elas que precisamos trabalhar.

Além de Wickham, Goffart, Coumert e Wood há ainda os interessantes apontamentos

de Gillet sobre os problemas da etnogênese. Gillett salienta que o conceito de etnogênese,

oriundo de estudos antropológicos, experimentou uma ascensão que careceu de debates entre

os medievalistas. O mérito da popularização entre os pesquisadores do conceito de etnogênese

pode ser atribuído ao trabalho de R. Wenskus, mas principalmente aos estudos de H.

Wolfram, crucial para a disseminação dos estudos de Wenskus e, sobretudo, para a utilização

do termo “etnogênese”, pouco usado pelo próprio Wenskus, que lançou mão em seu texto

mais do termo Gentilismus, um neologismo criado por ele para fugir das palavras Volkstum

que remetia ao nacionalismo alemão das primeiras décadas do século XX.

Mas para além da falta de debate em torna da importação de um conceito advindo da

arqueologia, Gillet salienta, não sem razão, que a idéia da construção de identidades no seio

das disputas e crises intensificadas a partir do século IV acabou por redundar na emergência

de interpretações que muito rapidamente concluem que toda e qualquer obra escrita a partir do

século IV devem ser explicadas à luz da etnogênese (GILLET, 2006).

E nessa leitura que privilegia o papel da construção de identidades as Historias,

mormente de autores como Jordanes e Isidoro de Sevilha que escreveram sobre as origens dos

godos, foram fontes privilegiadas para observar o suposto fenômeno. Lemos então trabalhos

que utilizam as fontes com vistas a provar o esquema, não para testá-lo

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80

(HOPPENBROUWERS, 2006; POHL, 2005) de modo a interpretaram Isidoro de Sevilha e

Jordanes como artífices de identidades étnicas.

Vamos propor uma leve mudança de foco nessas abordagens. Mais do que avaliarmos

o papel das obras de Jordanes e Isidoro de Sevilha na construção das identidades godas,

tentemos refletir sobre o que seus escritos têm a dizer sobre suas próprias identidades.

O primeiro ponto notável quando observarmos suas obras é que o fato do primeiro ter

tido origens godas não evidencia uma ligação do autor com os godos, não por acaso ele

escreveu em Constantinopla e comemorou as conquistas de Justiniano. Isidoro de Sevilha, por

sua vez um homem de origem romana, estava não só alinhado com as vicissitudes políticas da

Hispania goda como celebrou as vitórias dos reis godos contra os bizantinos, a vitória de

Suintila que pela primeira vez havia estendido o domínio godo para toda a Hispania,

derrotando inclusive tropas do Império do Oriente são louvadas pelo hispalense. As origens

godas de Jordanes e as romanas de Isidoro de Sevilha não tiverem peso na forma como eles

narraram os sucessos e dissabores godos e romanos. Embora Jordanes tenha se identificado na

própria Getica como de origem goda, são as vitórias de Justiniano e Belisário que encerram

triunfalmente o texto, vitórias que perpetuariam os feitos dos dois e os alçariam ao panteão

dos grandes vitoriosos de Roma. Isidoro de Sevilha não registrou dados de sua biografia na

De origine, mas o conjunto de sua obra não evidencia qualquer peso que ele poderia dar ao

fato de ser um hispano-romano.

A aparente desimportância de uma auto-identificação com godos ou romanos

presentes nas obras de Jordanes e Isidoro de Sevilha levantam duas possibilidades consoantes

com o debate que opõe partidários da tese fundada por Wenskus e os opositores ligados à

Goffart.

A primeira diz respeito a uma evidência para sustentar a hipótese da construção das

identidades e do caráter fluído delas. Ora, embora ligado descendente de godos, Jordanes

preteriu essa filiação étnica em favor de uma inserção no ambiente de Constantinopla. Não só

serviu como funcionário do Império que enfrentava os godos, como celebrou as vitórias

contra eles. Nesse sentido o argumento de Pohl que se preocupa por apontar que as

identidades étnicas se transformam diante das conjunturas parece pertinente (POHL, 2003).

Explicação semelhante poderíamos outorgar ao texto de Isidoro de Sevilha. Sua filiação

hispano-romana era um plano secundário diante da sua atuação nos círculos de poder godos.

Assim, se as identidades podiam ser estratégias de distinção, por vezes no ambiente das

contingências que os atores enfrentavam elas eram sublimadas. As identidades individuais se

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81

diluíam num quadro mais amplo. As origens godas de Jordanes perdem importância na

produção de uma obra pró-Império enquanto as origens de Isidoro de Sevilha perdem peso

frente à sua obra pró-godos. Se havia alguma identidade em questão no texto de Isidoro,

poderíamos inferir que era a dos godos: o registro de suas origens e enfrentamentos no âmbito

da Hispania e contra os assédios do oriente. As identidades são então inseridas num quadro

mais concreto, a identificação com um determinado grupo não se relacionava com as origens

dos indivíduos, mas com suas relações práticas.

A segunda possibilidade é radicalmente contrária à primeira e se aproxima dos

argumentos de Goffart e dos demais pesquisadores opositores à etnogênese e todas as suas

implicações interpretativas. A aparente contradição entre as origens e prováveis identidades

de Jordanes e Isidoro de Sevilha e os textos que eles escreveram não indicariam, nesse

sentido, uma fluidez identitária frente às contingências, mas sim uma real desimportância

dessas identidades no ambiente onde escreveram. Ser de origem goda, assim, não só não

inseria Jordanes numa filiação étnica como não tinha absolutamente importância para sua

interpretação sobre a origem dos godos e seus feitos, ser de origem romana tampouco tinha

significado relevante para Isidoro de Sevilha durante sua atuação política e episcopal.

Mas talvez a constatação mais difícil que podemos alcançar é que nenhuma das duas

possibilidades parece absurda. Mais do que indicar qualquer coisa, elas apontam para as

dificuldades de utilizar qualquer pressuposto no enfrentamento das fontes, tanto para

confirma-lo quanto para refutá-lo. A conclusão pode soar temerosa, mas as historae de

Jordanes e Isidoro de Sevilha podem servir de evidências para duas hipóteses contraditórias.

Isso não quer dizer que precisamos deslanchar para o relativismo conformista. As

dificuldades na interpretação de nossas fontes são mais um desafio a ser enfrentado do que a

justificativa para engessarmos nossos trabalhos. O mérito das novas abordagens reside

justamente na percepção de que lidamos com objetos de extrema complexidade e isso nos

previne de incorrermos em explicações simplórias.

Se o caminho da abordagem das obras a partir da identidade de seus autores não se

mostrou frutífero, há outras possibilidades a serem testadas, por exemplo, como muito bem

apontam Goffart e O´Donnell a Romana é comumente negligenciada em favor da Getica, o

estudo do conjunto dos textos de Jordanes tem um enorme potencial para a emergência de

novas problemáticas e possibilidades de compreensão, não obstante, a historia gothorum da

De Origine de Isidoro de Sevilha também é privilegiada em detrimento da historia sueborum

e historia wandalorum que integram o conjunto.

Page 85: Anais 2011

82

5 Apontamentos finais

Apresentaremos apontamentos finais, não conclusões nesse artigo. A nossa intenção,

mais do que esgotar o problema, foi apresentar em linhas gerais alguns elementos com os

quais os estudantes interessados pelas Historiae escritas no período dito medieval

possivelmente se depararão. O primeiro deles versa sobre o(s) próprio(s) sentidos que o termo

historia assumiu no medievo. Por vezes a análise da questão redundou em assertivas que

negaram ao período a capacidade de escrever história. A retomada da reflexão sobre conceitos

que por décadas orientaram a leitura dos historiadores sobre a época medieval impactou

positivamente no retorno às fontes historiográficas do medievo e nas tentativas de

compreender aquelas histórias a partir de uma nova consciência sobre os filtros que mediam

nossa relação com as fontes. O resultado foi excelente para a história da historiografia

medieval e estudos como o de Almeida exemplificam isso.

No segundo momento nos esforçamos por apresentar, muito sumariamente, dois

aspectos que consideramos importantes a serem considerados sobre as especificidades das

historiae do período ao qual nos dedicamos, a saber, historia era um gênero narrativo e sua

singularidade era o compromisso com o registro de informações confiáveis. Evidentemente

que os critérios de confiabilidade presentes em algumas historiae contrariam nossa atual

lógica, mas isso não é motivo para diminuirmos a importância da opção daqueles autores pela

escrita da história. Essa escolha alçava seus textos à um status distinto em relação a outros

gêneros: leges, epistolae, formulae, vitae etc. Devemos evitar o equívoco de acreditar que os

autores dos mil anos que chamamos de medievais eram ingênuos. Eles faziam suas escolhas e

tinham suas intenções e por mais difícil que seja mapeá-las não podemos ignorar as

evidências que eles nos deixaram: como a opção de descrever um determinado evento numa

narrativa qualificada como historia.

Por fim, tentamos exemplificar uma possibilidade de abordagem para duas obras que

narraram um mesmo evento: a origem dos godos. Nossa escolha foi baseada nos debates em

voga sobre o peso das identidades étnicas a partir do século IV. Optamos por privilegiar mais

o exercício de análise das obras apresentadas à luz do debate do que indicar explicações sobre

os textos, até porque ainda nos falta a segurança de tê-las encontrado. Propusemos um

exercício de leitura das fontes a partir dos autores e dos próprios textos em lugar de

subordinar nosso estudo à um contexto político, social e econômico exterior às fontes. Esse

Page 86: Anais 2011

83

exercício nos conduziu a uma constatação que, há de se confessar, também foi uma surpresa

para quem vos fala.

Finalmente, esperamos que nossa escolha por apresentar um quadro geral não tenha

sido um sacrifício hediondo para o mínimo de profundidade que se espera de um artigo. A

escrita de um trabalho introdutório gera diversos impasses onde optamos por discutir os

pontos que consideramos importantes, e essas eleições são sempre idiossincráticas.

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DIFERENTES VISÕES SOBRE A ECONOMIA NO PERÍODO CAROLÍNGIO

Victor Borges Sobreira1

1 Introdução

As primeiras pesquisas em história econômica apareceram no final do século XIX e a

consolidação como área de pesquisa delimitada institucionalmente ocorreu apenas no século

XX. Em 1903, é fundada a primeira revista especializada sobre o assunto, Vierteljahrschrift

für Sozial - und Wirtschaftsgeschichte. Alguns anos mais tarde, foram fundadas outras

revistas como a inglesa The Economic History Review em 1927 e a americana The Journal of

Economic and Business History em 1928. Mesmo com a existência de periódicos

especializados, Marc Bloch classifica de incompletos e incertos os trabalhos de história

econômica feitos até então, pois essa área ainda não contava com cadeiras específicas da

matéria nas universidades francesas (BLOCH, 1927: 99).

Se a escrita da história econômica encontrou alguns entraves como um todo, o estudo

sobre a economia do Período Medieval enfrentou mais dificuldades. Nos três primeiros

volumes do The Economic History Review, observa-se que dos 27 artigos publicados, apenas

3 abordam o período entre os século X e XV. Enquanto isso, os outros 24 artigos abordam os

séculos XV a XX e questões teóricas referentes à área. A diferença do número de artigos

sobre os diversos períodos se explica, em grande parte, pela natureza das fontes.

A história econômica tem como uma das ferramentas de trabalho a análise de números

em série, que permite observar continuações ou modificações. Contudo, os documentos

produzidos entre os séculos V ao XV dificilmente permitem essa abordagem, pois não trazem

números suficientes para formar uma série ao longo do tempo em um espaço determinado. Os

números encontrados nos documentos do período são escassos, localizados geograficamente

em alguns pontos isolados e de difícil interpretação (DUBY, 1968: 162). Essas limitações são

ainda mais profundas para os séculos V ao X. Dentro desse quadro, o Período Carolíngio

assume um lugar de destaque em relação ao momento anterior, já que um corpus documental

maior foi conservado até os dias de hoje. Conhecida pelos eruditos dos séculos XVI, XVII,

1 Doutorando em História Social na Universidade de São Paulo sob a orientação do prof. Dr. Marcelo Cândido

da Silva.

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87

XVIII e editada amplamente desde o século XIX2, as fontes carolíngias incitaram intensos

debates entre os historiadores. Os pesquisadores defenderam muitas vezes visões opostas, isto

é, para alguns poderia se observar no período um momento de crescimento econômico e

abundância; para outros, um tempo de penúria, fome e diminuição da população.

Dessa forma, essa comunicação tem como objetivo debater como os historiadores ao

abordar as mesmas fontes, conhecidas há muito tempo, chegaram a conclusões tão distintas.

Diante das limitações temporais da apresentação, não será abordado toda a Alta Idade Média,

o foco principal é o Período Carolíngio. Para tanto, primeiramente, será feito uma exposição

mais sistemática da visão sobre a economia do Período Carolíngio de alguns autores que até

hoje são referências no Brasil, como Marc Bloch e Georges Duby, mas também de outros que

são um marco para a área como um todo, como Karl Theodor von Inama-Sternegg e Alfons

Dopsch, entre outros. Em seguida, será discutido quatro documentos estudados por esses

historiadores: o Brevium Exempla, o Capitulário de Villis, o plano de Saint-Gall e o Políptico

de Saint-Germain-des-Prés. Eles foram escolhidos por terem sido utilizados como base para

as teses construídas pelos historiadores. Por fim, serão apresentadas e propostas algumas

possibilidades que permitam a superação dessas duas leituras tão opostas.

2 Decadência ou crescimento econômico?

O debate sobre o que aconteceu depois da subida ao trono dos carolíngios é marcado

por dicotomias. Alguns autores, como Henri Pirenne, viram esse momento como uma ruptura

com o período anterior (PIRENNE, 1992). Já outros, como Alfons Dopsch, defendem

exatamente o contrário, os séculos VIII, IX e X são apenas continuação dos anteriores, sem

profundas modificações (DOPSCH, 1921). Mesmo quando há concordância em relação à

ruptura, os pontos de vista também podem ser distintos. Enquanto Benjamin Guérard

(GUÉRARD, 1844) defende que os carolíngios colocaram um fim a decadência do período

anterior; Pirenne defende que o domínio carolíngio coincide com o controle do Mediterrâneo

2 No século XIX, os historiadores passam a editar sistematicamente, em forma de coleções, uma imensa

quantidade de documentos, que antes só era acessível por meio do manuscrito original ou por edições raras.

Dentre elas, a Monumenta Germaniae Historica, iniciada em 1819 e a Documents inédits relatifs à l'histoire de

France, iniciada em 1835. A primeira foi completamente digitalizada e disponibilizada no site www.dmgh.de e

a segunda possui alguns livros digitalizados disponibilizados em sites como <http://books.google.com> e

<http://archive.org/>.

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88

pelos árabes, causa da decadência do continente como um todo3. Tal dicotomia também está

presente nos estudos sobre a economia.

Os primeiros autores que estudaram a economia do Período Carolíngio, de forma

geral, construíram uma visão negativa do período anterior, isto é, o momento de formação e

consolidação do reino franco sob a dinastia merovíngia. Segundo eles, a economia

(produtividade da terra, circulação de mercadorias etc.) se desorganizou e regrediu ao longo

dos séculos V, VI, e VII. O fim dessa decadência ocorreu com a subida ao trono da dinastia

carolíngia no século VIII, que provocou uma verdadeira ruptura com o caótico período

anterior. Carlos Magno representa o auge desse momento.

Essa visão é claramente observável no trabalho de um dos pesquisadores que mais

influenciou o debate ao longo do século XX: Benjamin Guérard, editor do políptico de Saint-

Germain-des-Prés e autor de um prolegômeno feito para esse documento, intitulado

Polyptyque de l’abbé Irminon ou dénombrement des manses, des serfs et des revenus de

l’abbaye de Saint-Germain-des-Prés sous les règne de Charlemagne, no qual ele traça um

panorama do reino franco na Alta Idade Média.

As “invasões”, segundo ele, introduziram o caos nas regiões antes dominadas pelos

romanos. Os “invasores” foram chamados de grosseiros e selvagens, que sabiam apenas

mutilar e fazer guerras, destruidores do Estado, do público, enfim, da civilização

(GUÉRARD, 1844: 794). Nessa situação, a população e a produção teriam diminuído e as

estradas teriam sido abandonadas, assim afetando diretamente o comércio e o transporte da

produção. Após um longo período de incertezas e medos, a região teria, através de Carlos

Magno, encontrado novamente a glória que um dia teve. Esse rei e depois imperador, segundo

Guérard, fez tudo o que pode para restaurar as instituições romanas, melhorando a vida da

população como um todo. Com o reinado mais organizado, os camponeses puderam produzir

de forma mais eficiente e consequentemente sustentar o crescimento da população

(GUÉRARD, 1844: 158).

No final do século XIX, um dos fundadores da história econômica não abandona essa

visão, mas introduz outros elementos de análise. Karl Theodor von Inama-Sternegg concorda

com Guérard na oposição entre o Período Merovíngio e Carolíngio. Para o pesquisador

alemão, durante o Período Merovíngio o rei não foi capaz de imprimir uma coerência

administrativa, as terras eram esparsas e estavam na mão de diversas pessoas, que eram

3 Para uma discussão mais aprofundada sobre a importância do Período Carolíngio para os estudos da Alta Idade

Média, cf.: SULLIVAN, Richard E. The Carolingian Age: Reflections on Its Place in the History of the Middle

Ages. Speculum, p 267-306, 1989.

Page 92: Anais 2011

89

incapazes de dar coesão para uma ampla região como era o reino franco (INAMA-

STERNEGG, 1879: 278-280).

A partir de Pepino, o Breve, os reis carolíngios, para Inama-Sternegg, levaram a cabo

uma política econômica, que tinha como objetivo a melhoria da produção. Para tanto, através

de acordos e guerras, tomaram o controle de terras que antes estavam espalhadas, sob o

comando de diversos senhores. Essas terras foram cedidas e organizadas como um Grande

Domínio4. Isto quer dizer que foram divididas em duas: a primeira parte era reservada ao

senhor e por isso foi chamada de “reserva”, enquanto que a segunda, chamada de “tenências,”

era cedida aos terratenentes em troca do pagamento de taxas e dias de trabalho nas terras

senhoriais.

A concentração de terras na mão de poucos e a cessão delas aos terratenentes em troca

de pagamentos fixos aumentaram a produção, pois tudo aquilo que fosse produzido além do

exigido ficaria com os camponeses, sustentando um longo período de crescimento

populacional e de intensificação do comércio (INAMA-STERNEGG, 1879: 314-321). Dessa

forma, para o pesquisador alemão, os reis carolíngios foram decisivos para a organização da

terra em Grandes Domínios e o consequente crescimento econômico do império.

Os estudos de Inama-Sternegg foram utilizados por um longo período para a

confecção de manuais de história econômica, marcando de forma definitiva a visão sobre o

assunto (DOPSCH, 1921: 9). Pode-se citar, como exemplo, o manual Histoire de France

organizado por Ernest Lavisse e publicado em 1903. No volume dois, dedicado ao Período

Merovíngio e Carolíngio, os três autores, Charles Bayet, Christian Pfister e Arthur

Kleinclausz, seguem o esquema que acaba de ser apresentado: o Período Merovíngio teria

sido marcado pela decadência econômica, seguido por uma recuperação ocorrida

principalmente durante o reinado de Carlos Magno, baseada na exploração sistemática dos

Grandes Domínios (LAVISSE, 1903: 335-336).

Apesar da ampla difusão das teorias de Inama-Sternegg, esse ponto de vista não era

unânime. Para Fustel de Coulanges, por exemplo, o Período Carolíngio era apenas uma

continuação do Baixo Império Romano, tudo o que é possível observar nos Capitulários e

4 Os estudos sobre o Grande Domínio (Manorial System em inglês, Grand Domaine em francês e

Grundherrschaft em alemão) e o debate sobre como a sua formação influenciou a economia do período é

extenso e ultrapassaria os limites e os objetivos iniciais. Para mais informações sobre e a relação entre o

Grande Domínio e a economia, cf.: TOUBERT, Pierre. L’Europe dans sa première croissance. De

Charlemagne à l’an mil. Paris: Fayard, 2004. Para um debate sobre a construção do conceito de Grande

Domínio e as suas implicações historiográficas cf.: SOBREIRA, Victor. O modelo de Grande Domínio: Os

Polípticos de Saint-Germain-des-Prés e de Saint-Bertin. História e Historiografia. Dissertação de

mestrado defendida na Universidade de São Paulo em 2012.

Page 93: Anais 2011

90

Polípticos carolíngios já estava presente e consolidado nos séculos IV e V (FUSTEL DE

COULANGES, 1913: 183). Contudo, o trabalho desse pesquisador francês não teve grande

impacto naquele momento e ficou muito tempo esquecido ao longo do século XX (DOPSCH,

1937: 26; GUERREAU, 1986: 406). Por outro lado, o trabalho do pesquisador austríaco

Alfons Dopsch teve um forte impacto. Ele retoma os apontamentos de Fustel de Coulanges ao

afirmar que tudo o que é observável no Período Carolíngio não é novidade, mas apenas um

desenvolvimento do período anterior.

Segundo Dopsch, Inama-Sternegg exagera a importância dos reis carolíngios na

condução da economia e do papel dos Grandes Domínios. Primeiro, não há documentação que

permita avaliar o real impacto das medidas régias na economia, a existência de capitulários

sobre o assunto não comprova a sua aplicação e muito menos a sua efetividade. Segundo, a

identificação de alguns poucos Grandes Domínios não permite dizer que todo o Império era

organizado dessa maneira. Para o autor, ao construir a sua teoria, Inama-Sternegg ignora

inúmeras menções a pequenos alódios5, vitais para a economia do período (DOPSCH, 1921:

392; DOPSCH. 1937: 74). Tal ponto de vista também é defendido por Marc Bloch, que

afirma que entre o Baixo Império e o Período Carolíngio não houve profundas modificações

no mundo rural europeu. Tudo o que se observaria no século IX, já estaria presente no século

IV e V (BLOCH, 1952: 67; BLOCH, 1937: 225).

Apesar de algumas visões mais otimistas sobre a economia do Período Carolíngio,

como a de Inama-Sternegg, e outras nem tanto, como a de Alfons Dopsch, todos concordam

que esse foi um momento de ampliação do comércio, crescimento da produção e consequente

aumento da população. A maior discordância entre os autores mencionados, como pode-se

observar, não se concentra nas características da economia do Período Carolíngio em si, mas

sim se a subida dos carolíngios ao trono representou ou não um momento de ruptura com o

período anterior.

Por outro lado, alguns autores no século XX invertem a leitura. O Período Carolíngio

teria sido sim um momento de ruptura com o momento anterior. Um dos primeiros a defender

essa ideia foi Henri Pirenne. Segundo ele, a tomada de poder pelos carolíngios coincide com o

domínio do Mediterrâneo pelos árabes. Os ataques constantes dos árabes às cidades portuárias

da península itálica e os ataques normandos ao norte, teriam obrigado os francos a se

refugiarem no interior do continente. O comércio entre o oeste europeu e outras partes do

mundo teria cessado e os domínios rurais procurariam produzir tudo aquilo que era preciso. O

5 Terras de camponeses livres, que não estavam submetidos a nenhum senhor (nota do autor).

Page 94: Anais 2011

91

pequeno comércio que teria sobrevivido se resumiria a troca de víveres em feiras locais sem

importância (PIRENNE, 1992).

Outro autor compartilha a visão de Pirenne sobre a economia do Período Carolíngio,

mas por motivos distintos. Georges Duby não defende que o domínio do Mediterrâneo pelos

árabes tenha sido um fator de profundas mudanças no continente. Contudo, afirma que as

condições de vida naquele período eram as piores possíveis. Em suas palavras: “Toda a

economia deste tempo parece, de fato, dominada pela ameaça da penúria” (DUBY, 1987: 45).

Duby recupera a noção de Grande Domínio criada por Inama-Sternegg, mas

desenvolve uma outra leitura. Segundo o pesquisador francês, as técnicas rudimentares do

período, como o extenso uso da madeira e raro uso do metal na fabricação de instrumentos,

obrigaria que os senhores concentrassem uma grande quantidade de camponeses em uma

ampla área, que ainda precisaria ficar longos períodos em repouso para se recuperar (DUBY,

1965: 275). Tudo isso resultaria em baixíssimos níveis de produção. Como consequência,

havia uma grande massa de camponeses, sempre ameaçados pela fome, lutando

constantemente para sobreviver. Diferentemente do pesquisador alemão, o Grande Domínio,

na visão de Duby, não teria impulsionada a economia, seria apenas uma maneira de manter o

padrão de vida ocioso dos senhores. Essa forma de organização agrária, existente durante o

Período Carolíngio, não teria trazido nenhuma melhora na vida dos camponeses, ao contrário

(DUBY, 1971: 6).

As hipóteses de Duby tiveram grande divulgação por meio dos manuais de história

econômica medieval, muitos deles, dirigidos por ele próprio, como no livro História

econômica do Ocidente Medieval, em que o autor Guy Fourquin classifica a Alta Idade Média

como “tempos obscuros” (FOURQUIN, 1991: 11). Outro exemplo é o A economia na Europa

Medieval, no qual Renée Doehaerd afirma:

O sistema econômico da Alta Idade Média deve ser abordado na longa duração, em

uma sociedade na qual o poder se disputa, a administração se degrada, causando

insegurança e empobrecimento dos homens e dos meios (DOEHAERD, 1971: 348).

Em outra obra publicada no mesmo ano, Robert-Henri Bautier defende que:

O período dos reinos bárbaros, por outro lado, e, mesmo, sob alguns aspectos, o do

Império Carolíngio, caracterizam-se pelo abandono das cidades e indústrias, o

retrocesso de cada região, a quase independência dos domínios rurais, uma moeda

de prata adulterada, um comércio de permuta (BAUTIER, 1973: 9)6.

6 Todos os trechos de livros em língua estrangeira e de documentos citados em português são tradução nossa.

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92

É possível ainda citar outros exemplos de autores que foram marcados pela leitura que

Duby fez do período, como Jan Dhondt, que afirma, no livro Le haut Moyen Âge (VIIIe – IX

e

siècles), que o homem carolíngio é um esfomeado, que vive no meio da floresta (DHONDT,

1976: 99). Essa visão negativa continua a marcar a historiografia ao longo da década de 1980,

principalmente por meio dos trabalhos de Robert Fossier. Em sua comunicação na Semana de

Estudos de Espoleto, por exemplo, ele afirma que o Período Carolíngio é marcado por:

(...) uma técnica nula, um solo pobre, um habitat medíocre e fixo com muita

dificuldade, raros excedentes que são trocados entre alguns privilegiados, uma

estrutura de produção quase inepta e não menos ineficaz (FOSSIER, 1981: 273).

A partir da breve exposição desses autores, percebe-se que para além da dicotomia

“continuação/ ruptura”, a leitura da economia do Período Carolíngio é marcada pela

dicotomia “crescimento/ decadência”. Alguns autores, como Marc Bloch, defendem que o

continente passou por pequenas modificações desde o Baixo Império que pouco influenciaram

a vida das pessoas naquele momento, que teriam vivenciado um crescimento lento, mas

constante. Já Inama-Sternegg chega a afirmar que durante o Período Carolíngio houve um

grande crescimento econômico, acompanhado do crescimento da população. Por outro lado,

autores como Henri Pirenne e Georges Duby afirmam que o continente europeu até o século

X enfrentou sérios problemas como a fome, causada não apenas por fenômenos naturais e

guerras, mas também pelo baixo desenvolvimento técnico do período, causando a retração da

economia.

Diante de pontos de vista tão distintos, surge a seguinte questão: será que diferentes

visões foram construídas a partir de diferentes documentos? A resposta para este caso é: não.

Desde Guérard, todos os documentos estudados por esses autores são os mesmos: Polípticos,

breviários, Capitulários, cartas de doação, hagiografias etc. Se as fontes são as mesmas, como

tal disparidade é possível?

3 A questão das fontes

A resposta aos apontamentos de Georges Duby foi imediata. Robert Delatouche critica

inicialmente os cálculos feitos pelo primeiro pesquisador utilizados como comprovação da

baixa produção das terras no Período Carolíngio. Segundo ele: “Baseado em índices

imaginários, a miséria da agricultura carolíngia não encontra ao seu favor nem mesmo

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93

argumentos teóricos” (DELATOUCHE, 1977: 86). A partir da análise do domínio régio de

Annapes, contido no Brevium Exempla, Duby chega as seguintes taxas de produção:

TABELA 1: A produtividade em Annapes

colhidos plantados relação c/p

espelta 110 60 1,8

trigo 100 60 1,6

centeio 98 98 1

cevada 1800 1100 1,6

Fonte: autor.

Isso quer dizer que, no caso do centeio, todos os grãos colhidos foram plantados, não

restando nenhum para a alimentação. Mesmo os outros grãos, como a espelta, o trigo e a

cevada, segundo esses números, não teriam produzido grãos suficientes para alimentar os

camponeses que os plantaram. Assim, se em terras régias a produtividade era tão baixa, em

outras terras a situação seria bem pior. Ao analisar de forma crua os números trazidos pelo

documento e generalizar essa situação para todo o período, o pesquisador não leva em conta

outros detalhes. No mesmo documento, a informação sobre a quantidade de grãos no domínio

é seguida da expressão reliqua repperimus, isto é, os recenseadores perceberam que grãos de

outras colheitas haviam sobrado:

No ano presente foram colhidos 110 corbes de espelta, 60 foram semeadas,

encontramos o restante guardado; 100 modii de trigo, 60 foram semeadas,

encontramos o restante guardado, encontramos 98 modii de centeio restantes,

todos semeados; 1800 modii de cevada, 1100 foram semeados, encontramos o

restante guardado; 430 modii de aveia, um modius de fava, 12 modii de ervilhas

(BORETIUS, 1883: 254, grifo nosso).

Ora, se há sobras de colheitas antigas, isto quer dizer que os camponeses se

alimentaram e ainda houve algum excedente. O problema é que não se sabe com exatidão

qual a quantidade de grãos que sobrou, impossibilitando qualquer tentativa de calcular a

produtividade do domínio naquele ano.

Além dessa quantidade de grãos mencionada e não contabilizada, pode-se analisar

outros documentos que trazem a informação sobre o quanto é plantado e o quanto é colhido.

Este é o caso das vinhas de cinco domínios de Saint-Germain-des-Prés, que fornece as

seguintes informações:

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94

Fonte: autor.

É possível observar que as vinhas de Villeneuve Saint-Georges tinham uma

produtividade quase dez vezes maior que as terras de Annapes, segundo os dados de Duby.

Contudo, é preciso fazer uma ressalva: apesar dessas taxas de produtividade não serem

alcançadas em todos os domínios, é possível afirmar que o quadro geral do período não era

tão catastrófico quanto Duby descreveu.

Além da produtividade das terras, outro ponto analisado por Duby foi o nível técnico

das ferramentas utilizadas no período, a partir de um outro trecho do Brevium Exempla:

[...] Utensílios: duas tigelas de bronze, duas taças, dois caldeirões de bronze e um de

ferro, uma panela, um gancho, suporte de ferro para lenha, um lampião, dois

machados, um enxó, duas brocas, uma machadinha, uma talhadeira, um raspador,

uma plaina, duas ceifadeiras, duas foices, duas espadas de ferro com ponta

(BORETIUS, 1883: 254).

A existência de um número tão pequeno de instrumentos de bronze e ferro dentro de

um domínio régio o leva a crer que o uso do metal era raro no período, o que explicaria a

baixa produtividade das terras, que seriam aradas com instrumentos de madeira. Entretanto, o

pesquisador não atenta para o fato que o documento não descreve ferramentas utilizadas no

plantio e na colheita, mas sim, na cozinha, eventualmente no jardim. As ferramentas agrícolas

não são descritas, pois pertencem aos camponeses e não ao rei.

Se o Brevium Exempla descreve alguns domínios reais, um outro manuscrito, que

ficou conhecido como Capitulário de Villis, descreve como esses domínios deveriam ser

geridos. No capítulo 48, por exemplo, Carlos Magno exige:

7 “Módio” é uma medida de volume utilizada durante o Período Carolíngio enquanto “arpento” é uma medida de

área.

TABELA 2: A produtividade de algumas vinícolas de Saint-Germain-des-Prés

Domínio Rendimento da reserva em módios/arpentos7

Palaiseau 6,30

Gagny 6,06

Épinay-sur-Orge 8,50

Thiais 9,62

Villeneuve Saint-Georges 10,98

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95

§48. Que as prensas em nossas villis sejam bem conservadas. Que os nossos

intendentes tomem medidas para que as nossas uvas não sejam amassadas com os

pés, mas que tudo seja feito de forma própria e conveniente (BORETIUS, 1883: 87).

Enquanto que no parágrafo 43 há uma preocupação com o abastecimento e o

fornecimento de matéria prima para os gineceus:

§43. Que se faça chegar a tempo oportuno aos nossos gineceus, de acordo com as

regras estabelecidas, a saber: linho, lã, pastel, cobre, garança, pentes de lã, cordões,

sabão, gordura, recipientes e todas outras coisas que são necessárias (BORETIUS,

1883: 87).

E o parágrafo 45 exige que os administradores de cada domínio tenham a sua

disposição uma ampla gama de artesãos:

§45. Que cada intendente disponha em seus domínios bons artesãos, a saber:

ferreiros, ourives, artesãos que trabalhem com prata, torneiro, carpinteiro, fabricante

de escudos (BORETIUS, 1883: 87).

Por fim, o parágrafo 62 afirma que o imperador deveria ser informado sobre todas as

minas de ferro e chumbo em atividade. Assim, a imagem de um período famélico, em que o

homem luta contra a natureza para sobreviver não condiz com um documento que se preocupa

com a forma com que as uvas serão amassadas, que os gineceus tenham continuamente

material para produzir tecidos, que os seus domínios não fiquem sem artesãos especializados,

como os scutarios (especialistas em escudos) e que por fim, conta com minas de ferro e

chumbo que abastecem essas oficinas. Novamente é feita a ressalva que a comunicação não

pretende apoiar a imagem construída por Inama-Sternegg ou afirmar que todos os domínios

do império contavam com tudo o que é citado no Capitulário de Villis, mas apenas apontar

que as teses construídas a partir de Duby possuem diversas inconsistências.

Pode-se argumentar que até então apenas documentos ligados ao rei foram

apresentados e que, por esse motivo, seria um caso excepcional, não condizendo com o

restante dos domínios carolíngios. Contudo, uma imagem não muito diferente surge ao

analisar o Plano de Saint Gall. Não é um documento régio e muito menos tem a intenção de

organizar os domínios do reino. Produzido entre os anos de 819 e 826, o manuscrito é um

plano de um mosteiro com todas as dependências que deveria ter, desde a igreja e o claustro,

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96

até os estábulos, oficinas e jardins. Acredita-se que o documento foi feito por dois abades para

uma reforma que o mosteiro sofreu poucos anos depois, mas não da forma como planejado8.

Figura 1 – Imagem: Recto do Codex Sangallensis 1092.

Fonte: <http://www.stgallplan.org/recto.html>.

Nesse manuscrito pode-se observar no centro da imagem o claustro ao lado da igreja

rodeado de inúmeras outras construções. Ao norte da igreja se localiza a enfermaria, o

cemitério, a granja e a horta, que especifica cada planta que deveria se plantada. A oeste se

localiza a escola e o alojamento dos noviços, do abade e dos visitantes. Ao sul se encontra os

8 Para informações mais detalhadas sobre o Plano de Saint-Gall, cf.: HECHT, Konrad. Der St. Galler

Klosterplan.Wiesbaden: VMA-Verlag, 2005.

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97

estábulos para diferentes animais, como cavalos, bois e carneiros. Por fim, a leste se localizam

as oficinas especializadas em ouro, couro, armaduras, sapatos. Os detalhes desenhados

chegam mesmo a descrever a disposição dos móveis dentro das diversas construções, como

ocorre na padaria:

Figura 2 – Imagem: Detalhe do Codex Sangallensis 1092.

Fonte: <http://www.stgallplan.org/recto.html>.

Dessa forma, independentemente se o plano foi realmente construído em sua

totalidade ou não, dificilmente pode-se compreender como uma população que lutou por

séculos contra a natureza com apenas instrumentos de madeira possa conceber um mosteiro

com tantos detalhes e com uma complexa estrutura que necessitaria de diversos artesãos

especializados, desde o criador de aves até o ourives.

Há ainda outro documento que possui informações importantes relativas à produção e

ao nível técnico do período: os Polípticos, que são documentos que descrevem domínios.

Alguns com muitos detalhes como o nome de cada terratenente e dos seus filhos, assim como

se estes possuíam alguma deficiência; a quantidade e qualidade da terra; assim como todas as

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98

taxas devidas ao senhor. Outros com menos, podendo ter como foco as taxas devidas ao

senhor. Apesar de esses documentos retratarem um momento daquele domínio, através do

estudo paleográfico é possível perceber que eles eram constantemente manejados e

corrigidos9.

Além das descrições, há também menções a modificações feitas pelo abade do

mosteiro, como é o caso do Políptico de Saint-Germain-des-Prés. Nesse documento, é

possível encontrar menções a interferências que o abade Irminon fez nos domínios como a

plantação de novas vinhas, a construção de muros e moinhos, além da existência de ferreiros

que deveriam pagar taxas ao mosteiro10

, o que novamente contraria qualquer visão

catastrófica do período.

Além desses casos, Duby, a partir das informações do políptico de Saint-Germain-des-

Prés, reafirma a precariedade técnica do período, pois dos 22 domínios descritos, apenas 8

possuíam moinhos (DUBY, 1987: 33). Entretanto, ao olhar apenas o número bruto de

domínios que possuíam moinhos, o pesquisador não se dá conta da distribuição geográfica

deles. Mais de 90% das tenências possuem um moinho a no máximo 10 km de distância, o

mesmo acontecia em outras terras descritas por outros Polípticos, como mostra a tabela

abaixo:

Fonte: CHAMPION, 1996.

9 Para compreender melhor como os manuscritos dos Polípticos foram estudados, cf.: DEVROEY, Jean-Pierre.

Saint-Germain-des-Prés et le polyptyque d’Irminon. Problèmes de critique autour du polyptyque de l’abbaye

de Saint-Germain-des-Prés. In: ATSMA, Hartmut. (ed.). La Neustrie. Les pays au nord de la Loire de 650 à

850. Ostfildern: Jan Thorbecke Verlag, 1989, p. 441-465. 10

O Políptico de Saint-Germain-des-Prés é divido em breves e cada breve é dividido em parágrafos. Em seguida,

alguns casos das situações citadas. Plantação de novas vinhas: breve VII, §3; breve IX §1; breve XIV, §1;

breve XIX, §1. Construção de novos muros e moinhos: breve XXII, §1. Menção a ferreiros: breve XIII, § 103

e 104.

TABELA 3: Quantidade de tenências a menos de 10 km de um

moinho

Polípticos reserva tenência

Saint-Pierre de Lobbes 91 % 83%

Saint-Germain-des-Prés 91 % 96%

Montier-en-Der 90 % 82%

Saint-Remi-de-Reims 84 % 66%

Saint Bertin 74 % 56%

Wissembourg 50% 42%

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99

Assim, pode-se observar que apesar de existir moinhos em menos da metade dos

domínios de Saint-Germain-des-Prés, os mesmo são suficientes para atender mais do que 80%

das tenências. Isso indica que o pequeno número de moinhos não significa que aquela

população enfrentava uma dificuldade técnica, mas sim que eles conseguiam se organizar de

tal forma, que esses moinhos ficavam distribuídos geograficamente de modo a satisfazer as

necessidades da maior parte das terras.

Ao falar sobre a produção agrícola do Período Carolíngio, está claro que não há

documentos suficientes que permitam fazer cálculos e estimativas seguras. Se os cálculos de

Duby para Annapes não são verossímeis, já que nenhuma população se sustenta plantando

todos os grãos que ela colheu; as estimativas para as vinhas de Saint-Germain-des-Prés são

altas para generalizar para todo o território do Império. Por outro lado, as fontes sobre as

ferramentas e as técnicas agrícolas também são raras e descrições minuciosas não são

possíveis. Contudo, a menção no Capitulário de Villis, no plano de Saint Gall e nos Polípticos

de diversas oficinas, artesãos e moinhos mostra que aquela não era uma sociedade que lutava

contra a natureza com as próprias mãos. Concluindo, as fontes analisadas não trazem

informações suficientes para confirmar a época dourada descrita por Inama-Sternegg, porém

são suficientes para desfazer a imagem obscura construída por Duby e outros pesquisadores

que o seguiram.

4 Uma outra leitura possível

Diante da impossibilidade de se analisar numericamente a economia do Período

Carolíngio, ao longo da segunda metade do século XX, os pesquisadores que se debruçaram

sobre o assunto passaram a fazer cada vez mais uma análise qualitativa em detrimento da

quantitativa11

. Além disso, os conceitos utilizados nos trabalhos também mudaram. Para se

estudar a economia na Alta Idade Média, o mundo romano e a Europa após o ano mil foram

por muito tempo dois pontos de comparação. Ao afirmar que a economia entrara em declínio,

o mundo romano servia de modelo. Ao dizer que a economia do Período Carolíngio foi um

primeiro momento de crescimento, se olhava para o que havia acontecido no momento

posterior. Essas duas referências foram aos poucos perdendo o seu peso e passou-se a estudar

11

O primeiro a chamar a atenção para esse fato e sugerir uma mudança de foco nas pesquisas foi Renée

Doeahaerd, cf.: DOEHAERD, Renée. Ce qu’on vendait et comment on le vendait dans le bassin parisien.

Annales. Économies, Sociétés, Civilisations, nº 3, p. 266-280, 1947.

Page 103: Anais 2011

100

a economia do período em si, sem se voltar para o Baixo Império nem para a Baixa Idade

Média.

Ao mudar o foco e a visão sobre o assunto, antigos temas passaram a ser tratados

diferentemente, como a produção e circulação de moedas12

, e novos temas de pesquisa

surgiram, como a análise das “redes de troca”. Jean-Pierre Devroey utiliza esse termo ao invés

de “comércio”, pois ele afirma que o segundo conceito é muito restritivo para o estudo do

período, já o primeiro permite abarcar relações que vão além da venda e da compra de

mercadorias. Ao estudar os Polípticos de Saint-Germain-des-Prés e de Prüm, o pesquisador

belga constrói os seguintes mapas:

Figura 3 – Imagem: mapa 1: Rede de transporte da produção em Prüm.

Fonte: DEVROEY, 1979: 550.

12

Ao longo do seu reinado, Carlos Magno introduziu diversas modificações monetárias, como a introdução da

moeda de prata, fato que foi utilizado por muitos historiadores como prova da decadência do período. O

debate sobre esse assunto é extenso e extrapolaria o espaço cedido, assim como os objetivos iniciais. Para

mais informações, cf.: TOUBERT, Pierre. op. cit. 2004, p. 203-217; BRUAND, Olivier. Voyageurs et

marchandises aus temps carolingiens. Bruxelas: De Boeck, 2002, p.155-184.

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101

Figura 4 – Imagem: mapa 2: Rede de transporte da produção em Saint-Germain-des-Prés.

Fonte: DEVROEY, 2007: 51.

Ambos mapas mostram os mosteiros como centros de uma ampla rede de trocas e a

existência de centros menores que concentram a produção antes de enviar para a abadia. O

mapa que retrata as redes de troca de Saint-Germain-des-Prés revela também que a produção

não era apenas transportada entre os domínios do mosteiro, mas eram enviadas para outras

regiões do Império e quem sabe até mesmo para fora, através do porto de Quentovic. Esse

porto estava ligado a uma rede frisã de trocas, como se observa no mapa abaixo:

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102

Figura 5 – Imagem: mapa 3: rede de comércio frisão entre os séculos VII e X.

Fonte: CONTAMINE, 2004: 77

Os exemplos acima expostos mostram também que uma outra separação não se faz

operante para o estudo da economia do Período Carolíngio: a distinção entre religião e

economia. Devroey defende que os mosteiros foram “motores dos circuitos de troca e suporte

indispensável ao desenvolvimento de uma classe mais numerosa de não-produtores”

(DEVROEY, 1979: 585). Além disso, para reafirmar a inoperância da divisão entre economia

e religião para o estudo do período, o autor cita o caso de Münstereifel: sede de um priorado,

de um mercado e local de peregrinação (DEVROEY, 1979: 554).

Essa breve exposição mostra como o reconhecimento da impossibilidade de

quantificar dados sobre o período e o abandono de antigas dicotomias como “decadência/

crescimento” ou “ruptura/ continuidade” abrem novas perspectivas de pesquisa, que não

defendem o otimismo exagerado de Inama-Sternegg nem o pessimismo de Duby.

6 Apontamentos finais

Essa comunicação teve como objetivo expor as principais visões construídas sobre a

economia da Alta Idade Média, mais especificamente sobre o Período Carolíngio, e como os

pesquisadores interpretaram as informações contidas nas fontes para a construção de suas

teses. Ao longo desses mais de cem anos de pesquisa, o corpus documental conhecido se

manteve praticamente o mesmo, nenhuma nova grande descoberta foi feita. O que foi se

modificando com o tempo, foi a visão que os historiadores tinham do período como um todo.

Enquanto a visão positiva de Inama-Sternegg do período e de Carlos Magno o levou a

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103

construir uma imagem idílica, a crença de Duby de que o Período Carolíngio foi um momento

de catástrofes faz com que ele descreva a economia daquele momento de forma negativa.

Quando os historiadores abandonaram essas preconcepções do período e se atentaram ao

conjunto de fontes que possuíam, as duas imagens se desfizeram e novas oportunidades de

pesquisa se abriram.

REFERÊNCIAS

1 Fontes primárias

BORETIUS, Alfred (ed.). Capitularia regum Francorum, v. 1. Hannover: Bibliopoli, 1883.

HÄGERMANN, Dieter; ANDREAS, Hedwig (eds.). Das Polyptychon von Saint-Germain-

des-Prés. Colônia: Böhlau Verlag 1993.

O PLANO de Saint Gall. Disponível em: <http://www.stgallplan.org/>. Acesso em: 9 set

2012.

2 Fontes secundárias

BAUTIER, Robert-Henri. A economia na Europa Medieval. Lisboa: Verbo, 1973 (1971).

BLOCH, Marc. Quelques études récentes sur l’histoire économique et sociale de l’ancienne

France. Revue Historique, p. 93-103, 1927.

______. Les caractères originaux de l'histoire rurale française. Paris: Armand Colin, 1952

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OS ORDÁLIOS COMO PROCEDIMENTOS PROBATÓRIOS NO MUNDO FRANCO

Marcelo Moreira Ferrasin1

Os ordálios ou “juízos de Deus” (judicium Dei) consistiram em testes físicos

praticados por uma ou ambas as partes (ou mesmo seus representantes) em uma disputa

judicial, cujos resultados foram concebidos como se decididos por uma divindade, sendo

considerada inocente a parte que resistia à prova e culpada a parte que sucumbia a ela.

Esses procedimentos probatórios pertenceram à esfera de resolução de conflitos de

diferentes sociedades, no tempo e espaço. Muitos historiadores inventariaram os usos e

práticas dos ordálios por meio de fontes oriundas de povos, como aqueles de Israel antigo, da

Grécia, da Índia, da China, do Tibete, da África etc. Alguns estudiosos, como por exemplo,

Henry Charles Lea, no terceiro quarto do século XIX, chegaram a afirmar que quase todos os

povos, em algum estágio de seu desenvolvimento, recorreram aos “julgamentos divinos”

(LEA, 1866: 175). Assim, o recurso aos ordálios para administrar a justiça constituiria um

marco para periodizar a história das provas em juízo.

Esse tipo de abordagem visava conceder aos ordálios um estatuto de provas de “direito

primitivo”, “irracionais”, pois foram tomadas de maneira generalizante e comparadas,

principalmente, com os sistemas jurídicos modernos.

John Gilissen sublinhou que no período dos séculos XII e XIII houve uma verdadeira

“revolução jurídica”, cujas principais transformações podem ser compreendidas pela mudança

de um sistema de direito feudal, arcaico, “irracional”, para um sistema desenvolvido,

evoluído, racional, equitativo (GILISSEN, 1979: 205). Para o autor esta “revolução” abrangia

o processo de declínio dos ordálios.

Esta perspectiva aplicada aos ordálios medievais, como bem mostrou Dominique

Barthélemy, contribuiu muito para a imagem depreciativa que se fez da Idade Média

(BARTHÉLEMY, 2001: 1020). Muitos historiadores do direito e medievalistas, até hoje, se

referem aos “juízos de Deus” como absurdos sem sentido, expressão do “direito bárbaro”.

Entretanto, podemos dizer que as pesquisas especializadas sobre os ordálios, pelo

menos desde os anos 70, caminham para análises que objetivam compreender o fundamento

dos ordálios por meio de seus princípios, já que engendrados por sociedades cujos valores

1 Mestrando no Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade de São Paulo, sob a orientação

do Prof. Dr. Marcelo Cândido da Silva. Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected].

Page 110: Anais 2011

107

foram frontalmente diferentes dos nossos. As obras de Rebecca Colman (COLMAN, 1974),

Peter Brown (BROWN, 1975), Dominique Barthélemy (BARTHÉLEMY, 1988), Olivier

Guillot (GUILLOT, 1997), para citar apenas alguns dos importantes autores sobre o assunto,

revelam o papel dos ordálios na administração da justiça dos reinos romano-germânicos da

Alta Idade Média, destacando que os “juízos de Deus” tiveram sua própria racionalidade.

Ao historiador dedicado ao estudo do direito, ou melhor, dos direitos das sociedades

da Alta Idade Média, parece apropriado conhecer algumas das fontes que dispõem sobre esses

meios de se provar em juízo, destacando o lugar e as implicações que os ordálios tiveram no

ordenamento jurídico medieval.

Assim podemos conhecer a diversidade e o princípio que norteia o recurso aos

ordálios, em função dos arranjos realizados pelos grupos sociais em seu próprio meio e

sociedade. Nota-se que a compreensão dos testes físicos em âmbito judicial, passa pelo

conhecimento das prescrições de “juízos de Deus”, como também pela relação desses

procedimentos com outras espécies de prova, como a prova testemunhal e os juramentos

purgatórios.

Essa perspectiva visa fornecer meios para compreender o que conduziu os homens a

manter os ordálios como uma solução satisfatória para seus litígios. Procuraremos demonstrar

o locus dos ordálios no ordenamento jurídico do mundo franco, a partir de alguns exemplos

encontrados nas fontes normativas e nas considerações historiográficas, e o princípio da

aplicação dos ordálios entendido como um último recurso, uma maneira excepcional de se

resolver as disputas.

Diversos textos normativos, que caracterizaram a ordem jurídica do mundo franco2,

previram o recurso aos ordálios, a fim de resolver casos de difícil solução. Por esse meio

probatório, a culpabilidade em um litígio era atribuída à parte que sucumbia ao teste físico –

por uma queimadura na mão, no ordálio da água fervente e no ordálio do ferro em brasa; pelo

fato de não afundar, após ser lançada em uma piscina, como se tivesse sido rejeitada pela

água, no ordálio da água fria; a derrota no duelo judiciário, entre outras formas. Esses

resultados foram considerados como “juízos de Deus” (judicium Dei), pois se acreditava que

Deus revelava a verdade de um caso por meio de sinais incontestes expostos naquele que não

2 Mais a frente, citaremos alguns dispositivos da “lei dos francos sálios” e da “lei dos burgúndios”.

Consideramos esta última como pertencente ao mundo franco, pois o reino burgúndio foi conquistado e

dividido pelos governantes francos em 534, dando condições para que a lei burgúndia se propagasse por todo o

território franco. São conhecidas referências ao uso da lei burgúndia mesmo tardiamente, no século IX.

Page 111: Anais 2011

108

resistia à prova. Esse caráter é bem mostrado pelas ordines judiciorum3, fórmulas utilizadas

pelos eclesiásticos para oficiar nas cerimônias que envolviam o emprego do ordálio; pelas leis

bárbaras, contendo as prescrições do recurso aos testes; pelas capitulares, que dentre diversas

disposições, e por vezes revisões das leis “nacionais”, disciplinaram o uso dos “juízos de

Deus” aos casos em que existiam lacunas na lei.

Essas provas físicas podem ser classificadas como irrefutáveis, já que seus resultados

foram insuscetíveis de discussão, ao contrário das provas por escrito, por testemunhas e

juramentos, que podiam ser refutadas. Os ordálios determinavam o culpado, naquele que

sucumbia ao teste, e o vencedor naquele que resistia à prova. Essa determinação mostrava-se

definitiva, sendo um último recurso para averiguar se a parte possuía o bom direito na disputa.

A lei sálica (Pactus Legis Salicae, c. 510) dispôs sobre o ordálio da água fervente ao

homem livre, na falta de cojuradores ou se suas testemunhas prestavam depoimentos falsos4.

Na lei dos ripuários (reinado de Dagoberto, c. 633-639), o ordálio da água fervente foi

reservado aos estrangeiros nos casos em que não era possível encontrar cojuradores5. Nesta

lei, contrariamente à situação dos homens livres, para os escravos, a faculdade de se livrar de

uma acusação mediante cojuradores foi bem limitada. O único modo permitido foi aquele

garantido pelo juramento de seus senhores. Ressalta-se que se o escravo fosse considerado

culpado, o seu senhor arcaria com as consequências do delito6, que eram: livrar o escravo para

a vingança da vítima ou pagar uma composição. Em geral, a falta ou insucesso dos juramentos

purgatórios conduziria os acusados ao recurso aos ordálios. Além de ser o último recurso para

3 MGH. Formulae merovingici et karolini aevi. Ed. Zeumer. Legum, V, Hannover, 1886, p. 604-638.

4 Se um romano rouba um franco sálio, ele pode se purgar pelo juramento de vinte e cinco juradores, metade dos

quais ele escolherá. Se ele não puder encontrar juradores, ele deverá ser submetido ao ordálio da água fervente

ou pagar uma composição (sessenta e dois soldos e meio mais o objeto, ou na falta do objeto, o seu valor em

um pagamento pelo tempo de seu uso). MGH. Pactus Legis Salicae, título XIV, Legum I, Tomus IV, pars I,

Hannover, 1962; Se um romano comete um incêndio culposo em bens de outro romano e a prova não é certa,

ele pode se livrar da acusação mediante vinte juradores. Na falta destes, ele deverá se submeter ao ordálio da

água fervente. Se for julgado culpado, deverá pagar a quantia de trinta soldos. MGH. Pactus Legis Salicae,

título XVI, Legum I, Tomus IV, pars I, Hannover, 1962; Se um homem livre é acusado de roubo e teve sua

mão queimada pelo ordálio, que ele faça uma composição pelo roubo do qual ele foi acusado. MGH. Pactus

Legis Salicae, LXXXI, Legum I, Tomus IV, pars I, Hannover, 1962; Se um homem tem testemunhas que

prestaram depoimentos falsos, ele deve pagar uma multa (fine) de quinze soldos. Os acusados de prestarem

falsos testemunhos devem ir ao ordálio do caldeirão (da água fervente). Se após o teste, a mão permanecer sem

ferimento, a multa paga pela parte de quinze soldos deve ser mantida. Se a mão ficar queimada, a testemunha

deve pagar quinze soldos. MGH. Pactus Legis Salicae, XXXXII, Legum I, Tomus IV, pars I, Hannover, 1962. 5 “Se não for possível encontrar cojuradores na província Ribuária, que se permita livrar-se pelo fogo ou pelas

sortes”. “De homine ingenuo repraesentando”, §5: “Quod si in provincia Ribuaria iuratores invenire non

potuerit, ad igneo seu ad sortem se excusare studeat”. MGH. Lex Ripuaria, título XXXV, Legum I, tomus III,

pars II, Hannover, 1954, p. 87. 6 “[...] se o escravo colocar a mão no fogo e sofrer lesão, seu senhor, segundo o que dispõe a lei, será culpado

pelo roubo do escravo”. “ […] si servus in igneum manum miserit et lesam tulerit, dominus eius, sicut lex

contenet, furtum servis culpabilis iudicetur”. MGH. Lex Ripuaria. Título XXXII. Legum I, tomus III, parte II,

Hannover, 1954.

Page 112: Anais 2011

109

se provar a culpabilidade, a lei franca nos traz o emprego dos ordálios para casos

considerados muito graves, como o roubo, o incêndio, os perjúrios.

Diferentemente das testemunhas sob juramento e do ato escrito (probatio certa)7, os

ordálios e os juramentos purgatórios não estabeleciam a verdade de um fato, e sim a vitória no

processo como um todo. Muitos casos considerados graves e indecifráveis, ou seja, de difícil

solução, obtiveram nos ordálios uma maneira definitiva de serem resolvidos.

Os duelos judiciários também tinham lugar quando os outros meios de prova

falhavam. Os testemunhos e juramentos contraditórios deslumbravam a possibilidade de

resolução da querela pelo combate. O código burgúndio (c. 500)8, em duas situações, permitiu

ao acusador refutar os juramentos purgatórios a serem prestados pelo acusado e seus

cojuradores, conduzindo as partes a um duelo. Na primeira situação, no título VIII (“do

cometimento de crimes imputados aos homens livres”) a lei valia em matéria criminal, tanto

para romanos quanto para burgúndios livres9. No título XLV (“daqueles que negam as

acusações contra eles e oferecem juramentos”), os combates poderiam ser realizados aos

casos civis previstos apenas entre os burgúndios10

. Neste dispositivo, observamos uma espécie

de prefácio contendo críticas aos falsos testemunhos. Com o intuito de combater tais práticas,

a lei facultou ao acusador a possibilidade do duelo entre o acusador e uma das testemunhas do

acusado. Este procedimento seria aplicado, “Deus sendo o juiz”11

. O título LIII da lei expõe

algumas conseqüências possíveis dos duelos. Se uma das testemunhas do acusado, aquela que

7 Na lei dos francos sálios (“Pactus Legis Salicae”), as provas por escrito e por testemunhas são concebidas

como “probatio certa”. Por exemplo, no caso de acusação por venda de um liberto, e este não volta a sua terra

natal, não havendo “prova certa”, que aqui seria a prova testemunhal, é aberta a possibilidade de o acusado

oferecer cojuradores. “Si quis hominem ingenuum vendiderit, et postea in patria reversus non fuerit et probatio

certa non fuerit, sicut pro occiso iuratores donet [...]” no Título XXXIX, § 4 do Pactus Legis Salicae, em

ECKHARDT, K. A. (Ed.) MGH. Leges nationum germanicarum. Tomo IV, Parte I, Hanover, 1962. Ver

também, na falta de “prova certa”, o recurso aos juramentos purgatórios no Título XLII. 8 MGH. Leges Burgundionum, ed. L. R de Salis. Leges I, tomus II, pars I, Hanover, 1892.

9 “[...] if he who must take oath wishes to take it […] declare they not to wish to receive the oath, then he who

was about to take oath is not permitted to do so after this statement, but they (the judges) are hereby directed

by us to commit the matter to the judgement of God”. DREW, K. F. The burgundian Code. Tradução e

introdução de K. F. Drew. University of Pennsylvanis Press, 1976, p. 29-30. Lat: “Quod si ei sacramentum de

manu is, cui iurandum es, tollere voluerit, (...) contestentur se nolle sacramenta percipere; et non permittatur

is, qui iuraturur erat, post hanc vocem sacramenta praestare: sed ad nos illico dirigantur, Dei iudicio

comittendi”. DE SALIS, L. R. (ed.) MGH. Leges nationum germanicarum. Tomo II, Parte I, Hanover, 1892, p.

537. 10

MGH. Leges Burgundionum, ed. L. R de Salis. Leges I, tomus II, pars I, Hanover, 1892, p. 75. 11

“If the party to whom oath has been offered does not wish to receive the oath, but shall say that the

truthfulness of his adversary can be demonstrated only by resort to arms, and the second party shall not yield,

let the right of combat not be refused; with the further provision that one of the same witness who came to

give oath shall fight, God being the judge”. DREW, K. F. The burgundian Code, p. 52. Lat: “si pars eius, cui

oblatum fuerit iusiurandum, noluerit sacramenta suscipere, sed adversarium suum veritatis fiducia armis

dixerit posse convenci, et pars diversa non cesserit, pugnant licentia non negetur. Ita ut unus ex iisdem

testibus, qui ad danda convenerant sacramenta, Deo iudicante confligati”. DE SALIS, L. R. (ed.) MGH.

Leges nationum germanicarum. Tomo II, Parte I, Hanover, 1892, p. 551.

Page 113: Anais 2011

110

participou do combate, morresse, provava-se o cometimento do crime de perjúrio (falso

juramento). Assim, todas as outras testemunhas da parte eram consideradas praticantes do

falso juramento, devendo, cada uma, pagar uma multa de trezentos soldos, como

compensação, ao vencedor. Se o acusador perecesse (ele obrigatoriamente deveria participar

do combate), seria provado que ele tinha cometido uma falsa acusação, tendo como pena para

esse delito o pagamento de uma multa de trezentos soldos ao acusado, por meio de seus bens

deixados. Além disso, o dispositivo cuida do caso em que alguém instiga outro a realizar uma

falsa acusação. Sendo que tanto o conselheiro, quanto o caluniador, deveriam ser punidos na

forma das composições elencadas na lei12

.

Os duelos judiciários adentraram na legislação carolíngia através de diversas

capitulares promulgadas por Carlos Magno13

(no final do século VIII e início do IX; em

matéria de roubo, contestação de bens etc). Sob Luís, o Piedoso, houve uma expansão

legislativa do recurso aos duelos, abrangendo todo o império14

. Esta atitude,

no espírito do imperador, visa por fim aos escândalos que constitui, no processo,

testemunhos jurados contraditórios, prestados para apoiar as alegações contraditórias

das partes, onde a contradição dos juramentos implica, de um lado ou de outro, um

perjúrio (GUILLOT, 1999: p. 140).

Outra forma de “juízo de Deus” foi o duelo da cruz. Seu surgimento remonta ao

Concílio de Verberie de 756 e sua prescrição na capitular de Verberie, editada por Pepino, o

Breve, em 75715

. A prova tinha como função purgar as acusações, de laicos e eclesiásticos,

por um duelo, em que acusado e acusador permaneciam com os braços esticados em forma de

cruz, sendo que o primeiro que deixasse seus braços caírem era o culpado.

12

“Also if anyone has given counsel to a false accuser with regard to undertaking combat, and if he has been

defeated, let him pay a fine like that which has been stated above”. DREW, K. F. The burgundian Code, p.

76. Lat: “Etiam qui calumpniatori consilium dederit ad dimicandum, si victus fuerit, similiter, ut superius

statutumest, multa feriatur”. DE SALIS, L. R. (ed.) MGH. Leges nationum germanicarum. Tomo II, Parte I,

Hanover, 1892, p. 567. 13

A capitular “karoli de latronibus” (804-813) previu o duelo para o caso de roubo. MGH. Cap. Reg. Fr., I, n.

82, c. 3; a capitular “legi ribuariae additum” (803) incorporou o duelo para o crime de roubo e para a

contestação de bens doados. MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 41; a capitular “pippini italiae Regis” (800-810) dispôs

o duelo para a suspeita de perjúrio MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 100; o estatuto aos saxões, elaborados por Carlos

Magno (810-11) continha a opção do combate em uma acusação ao dono de animal que causou danos. MGH.

Cap. Reg. Fr., I, n. 70, c. 5. 14

Capitular “capitula legi addita” (816). MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 134, c. 1; capitular “item capitula legi

addita” (816). MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 135, c. 1. 15

“Decretum Vermeriense”. MGH. Cap. Reg. Fr. I, n. 16, c. 17.

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111

A legislação carolíngia previu o ordálio da cruz em diversos outros casos, como

demonstram disposições de capitulares posteriores16

. Essa forma de duelo entre os francos

durou até 818-9, data em que uma capitular de Luís, o Piedoso, a interditou, sob a justificativa

desse procedimento profanar a paixão de Cristo17

. Esse tipo de ordálio carolíngio atuou da

mesma maneira dos supracitados, na falta ou insucesso de outras provas, para decidir causas

consideradas graves, como roubo, adultério, disputas de propriedade etc.

Assim como os ordálios, os juramentos purgatórios foram interpretados como “juízos

de Deus”, pois os juradores procediam à prova, jurando sobre relíquias de santos ou sobre a

Bíblia. Observa-se que a esfera sagrada estava indissoluvelmente ligada a esse procedimento

probatório, ainda mais que um falso juramento se constituía em perjúrio, crime que era

considerado uma afronta aos olhos de Deus.

Os juramentos purgatórios foram procedimentos usados na maioria dos processos.

Cada homem livre era envolto em um grupo responsável, que poderia realizar juramentos

purgatórios a ele. Já o homem não livre dependia de seu senhor, sendo que a falta ou recusa

deste para jurar, resultaria numa decisão adversa ou a submissão ao ordálio para aquele. Desse

modo, notamos que os juramentos purgatórios estabeleciam um vínculo muito forte com os

ordálios18

.

Ao contrário do que conceberam alguns autores, como por exemplo, Ferdinand Lot

(LOT, 1927: 349) e François Ganshof (GANSHOF, 1965: 419), que afirmaram que os

ordálios foram de uso disseminado e sobrepuseram-se a prova testemunhal e a prova por

escrito, os ordálios foram praticados de maneira excepcional, em última instância. Eles foram

os últimos e dramáticos recursos. Vejamos alguns exemplos.

A lei sálica permitiu aos francos livres redimirem suas mãos do ordálio da água

fervente, por via da composição. Tal redenção foi permitida em casos envolvendo

16

A capitular de Herstall (779). MGH. Cap. Reg. Fr., I, 20, c.10 e c.11; a capitular “legi ribuariae additum”

(803); capitular divisio regnorum (806). MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 45, c.14; a capitular “pippini italiae Regis”

(800-810). MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 100, c. 4; o estatuto aos saxões, elaborados por Carlos Magno (810-11).

MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 70, c. 5. 17

Proibição da prova da cruz (“iudicium crucis”) na capitular “capitulare ecclesiasticum” (818-9). MGH. Cap.

Reg Fr., I, nº138, c. 2 18

Historiadores como Régine Le Jan, Dominique Barthélemy e Olivier Guillot não consideram o duelo

judiciário um ordálio. Esses autores não usam o termo ordálios para englobar os duelos. Guillot e Le Jan

concebem os ordálios e os duelos como “juízos de Deus” porque visualizam a crença, compartilhada à época,

de que seus resultados eram oriundos de um veredito divino. Já Barthélemy recusa ver no duelo um juízo de

Deus, sob a justificativa de que a partir dos anos 800, entre os burgúndios e os lombardos, os duelos perderam

o caráter sacramental que possuíam. O autor sublinha que a partir da referida data não se encontra nenhum

tipo de “ordo” religioso envolto na aplicação dos combates. Outrossim, apesar dos clérigos por vezes

participarem dos combates, por meio de representantes (“os campeões”), a Igreja nunca admitiu os duelos.

Tolerou-os entre os laicos, sempre fora de seu controle oficial e de sua aprovação (BARTHÉLEMY, 1988: 7-

8).

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112

composições em montantes até o wergeld (“preço de um homem”)19

. Como vimos, a lei

ripuária permitiu ao escravo a absolvição mediante o juramento purgatório de seu senhor.

Jean Favier, apesar de sua repulsa aos “juízos de Deus” praticados na Alta Idade Média,

ressaltou a grande prudência do acusador ao acusar alguém, já que se este saísse ileso da

prova física, aquele seria responsável a cumprir a pena que caberia ao acusado se acusação

tive sido validada por Deus (FAVIER, 2004: 335). Rebecca Colman mostrou que as

indicações na lei sálica para ordálio em relação às menções às provas testemunhais são na

razão de um para seis (COLMAN, 1974: 577).

Parece-nos que a afirmação de Marie-Noëlle Grippari, ao dizer que era “mais simples,

mais rápido e mais de acordo aos espíritos atraídos pelo irracional, recorrer a Deus”

(GRIPPARI, 1987: 284), carece de uma cuidadosa análise dos documentos. Como

observamos em alguns casos acima, os ordálios foram preceituados para casos graves ou/e

para pessoas que não eram confiáveis (em geral, por não ter cojuradores: estrangeiros e

escravos), ou na falta das testemunhas ou juramentos purgatórios. A aplicação dos ordálios

aos crimes mais graves e os métodos para evitá-los revelam, como sublinhou Katherine Fisher

Drew, uma forma não inteiramente irracional já que havia sido feito um prejulgamento pelo

tribunal (DREW, 1991: 35).

Olivier Guillot vai além, ao ressaltar que há um traço comum aos ordálios unilaterais e

ao duelo judiciário. No espírito das partes, pela fé que os anima, quando uma delas se sabe

culpada, ela acredita que sua culpa será revelada por Deus. Assim, uma solução no momento

da prova foi a parte se abster e renunciar a submissão à prova, confessando publicamente sua

culpabilidade. “Há, por conseguinte, sob essa forma de prova eminentemente irracional na

aparência, por fim, uma forte racionalidade” (GUILLOT, 1999: 84).

Como bem sublinhou Robert Bartlett, os ordálios eram procedimentos que lidavam

somente com “situações em que o conhecimento era impossível, porém a incerteza

intolerável” (BARTLETT, 1986: 33) (diferentemente do princípio do direito romano: “na

dúvida, absolve-se o réu”). O apelo a Deus era uma maneira de resolver os litígios quando as

outras provas não permitiam. Portanto, os textos normativos e as observações da

historiografia recente nos evidenciam muito mais a lógica do caráter excepcional, do que de

um uso generalizado dos ordálios.

19

MGH. Pactus Legis Salicae, título LIII, 1-7, Legum I, Tomus IV, pars I, Hannover, 1962. O valor a ser pago

para evitar se submeter ao ordálio era maior quanto mais grave fosse o crime. Além da composição, o acusado

deveria pagar uma multa para evitar o ordálio da água fervente. MGH. Pactus Legis Salicae, título LIII, 1,

Legum I, Tomus IV, pars I, Hannover, 1962.

Page 116: Anais 2011

113

REFERÊNCIAS

1 Leis

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______. Lex Ripuaria, ed. Franz Beyerle e Rudolf Buchner. Legum I, tomus III, pars II,

Hannover, 1954.

______. Pactus Legis Salicae, ed. K. A. Eckhardt. Legum I, tomus IV, pars I, Hannover,

1962.

2 Capitulares

MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 16 (“Decretum Vermeriense”).

______. Cap. Reg. Fr., I, n. 20 (capitular de Herstall, 779).

______. Cap. Reg. Fr., I, n. 41 (capitular “legi ribuariae additum”, 803).

______. Cap. Reg. Fr., I, n. 45 (capitular “divisio regnorum”, 806).

______. Cap. Reg. Fr., I, n. 70 (“estatuto aos saxões”, 810-11).

______. Cap. Reg. Fr., I, n. 82 (capitular “karoli de latronibus”, 804-813).

______. Cap. Reg. Fr., I, n. 100 (capitular “pippini italiae Regis”, 800-810).

______. Cap. Reg. Fr., I, n. 134 (capitular “capitula legi addita”, 816).

______. Cap. Reg. Fr., I, n. 135 (capitular “item capitula legi addita”, 816).

______. Cap. Reg Fr., I, n.138 (capitular “capitulare ecclesiasticum”, 818-9).

3 Autores

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Page 118: Anais 2011

115

A MORTE E OS MORTOS NAS VITAE FRATRUM DE GERARDO DE FRACHET

(SÉCULO XIII)

Aléssio Alonso Alves1

1 Os estudos historiográficos sobre a morte e os mortos

Os estudos historiográficos a respeito da morte tiveram no historiador francês Philippe

Ariès seu impulso inicial na década de 1970 (ARIÈS, 1975). O que esse historiador propôs em

seus trabalhos sobre esse tema foi uma periodização das “atitudes dos homens diante da

morte”, de modo que teríamos durante o período medieval dois tipos: a morte domesticada, a

partir do século V, e a morte de si, a partir do século XII (ARIÈS, 1975: 8-12). A primeira,

que segundo afirma Michel Lauwers, seria a morte da Alta Idade Média. Ela seria esperada e

reconhecida, tomada a semelhança de um sono profundo e vivida serenamente em público

(LAUWERS, 2006: 243)2. Sendo assim, não haveria surpresas na hora do trespasse: saber-se-

ia o que deveria ser feito quando a morte chegasse. Esse momento, segundo costume, seria

vivido em família, junto aos amigos e com a presença de religiosos – disso decorreria seu

caráter público, o traço mais importante desse tipo de morte. O moribundo expressaria seu

arrependimentos, perdoaria as injúrias, confessaria sua fé, proclamaria como deseja ser

enterrado e encomendaria sua alma. É a boa morte, aquela que se submete ao destino (ARIÈS,

1975: 9).

Por sua vez, a morte de si corresponderia a uma “consciência de morte individual

exacerbada”, onde o que se tem seria uma visão dramática do falecimento: a separação

instantânea de alma e corpo figurada no momento do julgamento particular e imediato

(LAUWERS, 2006: 243). A morte não seria mais apenas uma etapa como outras no ciclo da

vida, mas o momento clímax que dá a própria vida um significado definitivo e que, como em

uma aposta, poder-se-ia perder ou ganhar: no caso, o que estaria em jogo seria a salvação da

alma. Nesse momento dramático, Ariès afirma que o homem encontrou na morte o amor de si

1 Mestrando do programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail:

[email protected]. 2 Quanto à questão de ser vivida em público, esta morte, na verdade, se dava mais no ambiente familiar, como o

próprio Lauwers afirma. A morte domesticada seguia um modelo tradicional antigo, nos qual os vivos

deveriam cuidar de seus parentes defuntos, acompanhando o trespasse e, posteriormente, acalmando as almas

que não encontrassem repouso – o que poderia ocorrer quando, segundo uma crença bastante difundida, a

“passagem” não ocorresse perfeitamente ou a conduta dos parentes não satisfizesse o falecido. Cf. LAUWERS,

2006: 247.

Page 119: Anais 2011

116

e com ele uma vontade dividida: “de um lado, mulher, crianças, cavalos, casas, tesouros,

todos combinados, e de outro lado, o Paraíso, e entre as duas, agora se torna suprema: a

morte” (ARIÈS, 1975: 10-11).

Quanto ao senso de individualidade que a morte de si carrega - uma preocupação com

a particularidade de cada indivíduo – Ariès o identifica nas modificações de representações do

Juízo Final e do trespasse do moribundo no quarto. Quanto à primeira, as cenas que antes se

concentravam na ressurreição dos mortos (os eleitos), de maneira que não havia nenhuma

espécie de julgamento e/ou condenação, a partir do século XII passam a representar tanto os

eleitos quanto os malditos – e no centro, de modo que os primeiros ficassem a sua direita e os

segundos a esquerda, o Cristo Juíz. Nos tímpanos estudados por Ariès há também a presença

do arcanjo São Miguel que realiza a avaliação das almas. No século seguinte, a avaliação das

almas torna-se ainda mais importante: “cada homem é julgado segundo o ‘balanço de sua

vida’, as boas e más ações são escrupulosamente separadas nos dois pratos da balança. Foram,

por sinal, escritas em um livro”, o Liber vitae (ARIÈS, 2003: 47-49).

Por sua vez, quanto à cena do trespasse no quarto, Ariès afirma que houve uma

“supressão do tempo escatológico entre a morte e o final dos tempos”, pois o juízo passaria

acontecer não mais no futuro, mas no momento da morte. Essa nova iconografia seria

encontrada a partir do século XV nas ars moriendi (ARIÈS, 2003: 50), tratados que forneciam

modelos de boa morte, do bem morrer (LAUWERS, 2000: 113).

Algumas considerações quanto a esta afirmação de Ariès devem ser feitas, pois este

autor não deixa claro se essa mudança do momento do julgamento, que ele data do XV, se

restringira somente às representações visuais – como as gravuras que ilustravam as ars

moriendi – ou se dizia respeito a toda produção voltada para a questão do juízo individual. De

qualquer maneira, estamos convencidos que essa transposição temporal do julgamento se deu

antes do século apontado por Ariès. Os estudos de Jacques Le Goff sobre o Purgatório (aqui

grafado com a letra inicial maiúscula, pois se refere a uma região geográfica do Além cristão

ocidental da Idade Média a partir, pelo menos, do século XII) apontam que este terceiro lugar

“assegurou o triunfo do julgamento individual no momento da morte” (LE GOFF, 2006: 31).

Segundo este historiador, a lógica do Purgatório carrega e engendra a ideia de indivíduo, de

responsabilidade individual e livre-arbítrio, onde cada um é julgado por seus pecados pelos

quais é responsável (LE GOFF, 1989: 5). Julgamento esse que ocorre imediatamente após a

morte, quando há uma disputa entre as entidades representantes do bem e do mal, e o destino

Page 120: Anais 2011

117

da alma imortal é decidido (LE GOFF, 1989: 210-211, 293) – exatamente como Ariès

identifica nas ars moriendi do século XV, mas que Le Goff aponta já a partir do XII.

Por fim, a respeito da morte de si, é importante notar e ter sempre em mente que Ariès

não toma essa atitude como supressão da anterior (ARIÈS, 1975: 10). A morte domesticada

não foi interrompida ou apagada, mas somente alterada de modo parcial:

não se trata de uma nova atitude que irá substituir o que analisamos anteriormente [a

morte domada], mas de modificações sutis que, pouco a pouco, darão um sentido

dramático e pessoal à familiaridade tradicional do homem com a morte (ARIÈS,

2003: 46).

As obras e constatações de Ariès não foram recebidas sem qualquer questionamento.

No ano de 1974, Robert Darnton, em uma resenha no The New York Review of Books

(DARNTON, 1974) sobre um estudo a respeito da morte no século XVIII em Provença

publicado por Michel Vovelle, criticou rapidamente o trabalho de Ariès em História da Morte

no Ocidente quanto à utilização de uma escala de tempo que cobre séculos. O historiador

norte-americano caracterizou o livro de Vovelle como sendo “um trabalho de puro ouro”,

justamente por se centrar apenas no século XVIII, e que “pertence ao extremo oposto em

escritos históricos em relação ao ensaio de Ariès” (DARNTON, 1974: 30, tradução nossa)3.

Mais recentemente, Michel Lauwers apontou o que em sua opinião seriam os pontos fracos da

historiografia de Ariès e a inspirada por suas obras, porém, não incluindo a crítica feita por

Darnton. Os problemas seriam os seguintes:

ausência de reflexão sobre as configurações sociais nos quais a morte encontra-se

inserida, a imprecisão da noção e da ideia de um despertar da individualidade, a

procura a priori da virada ou do corte cronológico, ou ainda a perspectiva

evolucionista, o postulado da existência de um imaginário uniforme e vivido por

todos, a confusão frequente entre as ideias [...] e as práticas sociais [...], e, enfim, a

parcialidade dos testemunhos documentários (LAUWERS, 2006: 243-244).

Quanto às críticas sobre a “perspectiva evolucionista”, apesar de esta estar explicita no

título de um dos artigos de Ariès a respeito da morte (ARIÈS, 1975), acreditamos que essa, ao

longo do texto não se faz fortemente presente (pelo menos não ao que diz respeito à Idade

Média). Se tomarmos o sentido do termo evolução como um desenvolvimento, um

movimento progressivo que determinam a passagem de uma posição a outra, veremos que

essa perspectiva não se encontra tão fortemente na obra de Ariès. O próprio afirma que morte

domesticada está presente, pelo menos, desde o século V até o XX, enquanto a morte de si

3 “a work a pure gold [...] [which] belongs to the opposite extreme in historical writing from Ariès’s essay”.

Page 121: Anais 2011

118

emerge a partir do século XII. Sendo assim, onde estaria a passagem de uma posição a outra,

quando Ariès mesmo chega a afirmar uma certa acronia da morte domestica? Ele afirma que

“essa atitude imemorial era muito geral para caracterizar completamente uma sociedade.

Elementos de diferenciação estão ocorrendo dentro destas grandes áreas geográficas e

temporais” (ARIÈS, 1975: 9)4. Esta afirmação, segundo nosso entendimento, vai contra essa

questão evolucionista. Por outro lado, mesmo quando Ariès aponta essa certa acronia de uma

atitude diante da morte, o mesmo abre seu artigo afirmando que “quem diz mudança diz

história”, e que essa atitude do homem nem sempre foi a mesma. Quanto essa questão da

evolução e da acronia, Vovelle mostra uma posição importante. Ele apóia Ariès quanto à

mudança pois afirma que a morte é histórica e que “sempre se inscreve num movimento que é

o da história”. O que Vovelle percebe no trabalho de Ariés – o que nos parece que não é assim

interpretado por Lauwers – é a coexistência de diferentes atitudes.

No mesmo momento, de acordo com o meio e os lugares, coexistem atitudes

tradicionais ou atitudes renovadas. Nós todos temos em nossas atitudes com relação

à morte todo um conjunto de estratificações que remetem a diferentes modelos.

Somos herdeiros de todo um conjunto de estratificações desse gênero. Compreende-

se por que Ariès, com cuja leitura concordo sob esse aspecto, nos apresenta os

sistemas da morte não como sucessivos, mas como um telhado numa estrutura em

que diferentes leituras coexistem (VOVELLE, 1996: 16-17. Grifo nosso).

Não é a morte acrônica, mas a morte em longa duração “nas longas curvas das grandes

evoluções seculares e multisseculares”. O que se teria, portanto, seria apenas uma ‘inércia

aparente’, pois “as mudanças do homem diante da morte ou são elas mesmas muito devagares

ou se encontram dentro de longos períodos de imobilidade” (ARIÈS, 1975: 7) e sendo assim,

“é preciso apreender a morte na história em longos períodos” (VOVELLE, 1996: 15). Como

anteriormente colocado, Ariès foi criticado por Robert Darnton a respeito de realizar seu

estudo em uma longa duração. Em resposta, no prefácio da edição de 1975 de sua obra

História da Morte no Ocidente, Ariès afirma que “em se tendo uma cronologia muito curta,

mesmo se esta já parece longa nos olhos do método histórico clássico, arrisca-se a atribuir

caracteres originais da época a fenômenos que são, na realidade, muito mais antigos” (ARIÈS,

2003: 20). O próprio Vovelle, cujo trabalho fora utilizado por Darnton como referência para a

crítica à Ariès, diz “sim às longas margens de evolução lenta! Sim, à história de longos

períodos! Essa história não é imóvel” (VOVELLE, 2006: 26).

4 Além de ir contra a questão evolucionista, a nosso ver, também invalida a crítica de Lauwers que afirma que

Ariès alega a existência de um imaginário uniforme e vivido por todos.

Page 122: Anais 2011

119

Retomando as críticas de Lauwers, em relação à parcialidade dos testemunhos

documentários, poderíamos nos colocar a pergunta se realmente existe algum documento que

não seja parcial. A nosso ver, todos os documentos, cada um em sua particularidade, são

parciais quanto a alguma questão. Quanto a suas fontes, Ariès faz uma ressalva quanto aos

documentos de origem clerical afirmando que

o historiador da morte não deve lê-los com as mesmas lentes que o historiador das

religiões. Não deve considerá-los conforme se apresentaram no pensamento de seus

autores, lições de espiritualidade ou de moralidade. Deve decifrá-los para

reencontrar, sob a linguagem eclesiástica, o fundo banal de representação comum

que era evidente e que tornava a lição inteligível ao público. Portanto, um fundo

comum aos clérigos letrados e aos outros e que, assim, se exprime ingenuamente

(ARIÈS, 2003: 22).

Ora, concordamos que o historiador deve sempre tomar suas fontes de maneira crítica,

mas não seria as lições de espiritualidade ou de moralidade parte da composição dos

documentos relativos à morte, ou até mesmo um de seus principais motivos? Se

considerarmos que grande parte dos relatos medievais a respeito da morte se encontra nas

Vidas de santos e nos exempla, que tinham como um de seus objetivos provocarem uma

mudança de conduta por parte dos que escutavam essas histórias, pois eram lidas em alta voz

em certas ocasiões, nos parece seguro acreditar que essas lições e morais eram justamente o

que movia a produção desses documentos. Não seria, portanto, essas razões o fundo banal de

representação comum que Ariès procurava? Mais especificamente, não seria a morte uma

preocupação comum tanto a clérigos e a leigos?

Por fim, Vovelle tende a concordar com Lauwers quanto à “ausência de reflexão sobre

as configurações sociais nos quais a morte encontra-se inserida”. Para esse historiador, o

trabalho de Ariès não responde à seguinte pergunta: “de que modo muda a imagem da

morte?”. Ele afirma que “a morte é reflexo da visão de mundo [...] a morte aparece como

reflexo de uma sociedade”. Posto isso, se faz necessário uma “visão social da morte” que

busque entender como os seus sistemas de representação coletiva se alteram (VOVELLE,

2006: 24-25).

Para Michel Lauwers, é necessário que se estude a morte não somente em relação com

ela mesma, os sentimentos e atitudes que suscitou, pois ela seria somente um momento no

interior de um sistema de relações complexas entre este mundo e o Além, entre vivos e

defuntos: mais do que isso, entre vivos e vivos. Deve-se observar a morte em relação a todas

as instâncias da vida em sociedade, pois ela “inscreve-se sempre no interior de redes de

Page 123: Anais 2011

120

relações e de trocas hierárquicas, de estruturas de autoridade e poder, de sistemas simbólicos

cujas coerências e convém reencontrar”. Esse tipo de estudo recai principalmente sobre o

culto voltado aos mortos, um conceito que – em conformidade com o uso corrente do termo

culto dos mortos feitos por antropologistas – descreve como os vivos lidam com os falecidos,

as funções e usos de práticas funerárias sociais e comemorativas. Lauwers acredita que o que

se tem ao voltar o olhar para os mortos é uma melhor compreensão da própria sociedade

medieval (LAUWERS, 1993). Para tanto, é preciso que se concentre às atenções nos cuidados

que os mortos recebiam, o lugar e o papel que lhes eram reconhecidos pelos vivos, pois “os

mortos existem somente através e em benefício dos vivos” (LAUWERS, 2006: 244- 245)5.

Nesse sistema de intercâmbio entre vivos e mortos, o que estava em jogo não seria

apenas a mitigação das penas purgatórias (feitas por meio das preces dos primeiros em função

dos segundos), mas algo que também desempenha um papel fundamental nessa interação: a

preservação da memória ancestral feita pelo culto dos mortos na qual as missas desempenham

papel essencial. Foi por meio da memória dos mortos que os grupos sociais, sejam eles de

leigos ou religiosos, construíram e mantiveram a sua autoafirmação, a legitimação de um

poder que havia sido recebido dos ancestrais, a coesão que os diferia do resto da sociedade.

Ela indica o autoconhecimento do grupo, sua continuidade no tempo, constrói uma linhagem:

seja por meio do parentesco seja de sangue (no caso das famílias aristocráticas) ou espiritual

(no caso de religiosos) (OEXLE, 1996: 40; LAUWERS, 1993). Nesse aspecto de

autofirmação e autoconhecimento de uma coletividade, o objetivo das Vitae Fratrum e o do

culto as mortos se convergem (como será visto a seguir) de modo que o estudo dessa

hagiografia pode contribuir para uma melhor compreensão das relações estabelecidas entre

vivos e mortos no século XIII.

2 As Vitae Fratrum de Gerardo de Frachet

2.1 Recolher para não perecer

“No ano de 1252, sábado de aleluia, o frade Pedro, prior dos frades Pregadores em

Cumis, cidade da Itália, feito inquisidor pelo senhor papa contra a maldades dos heréticos, foi

martirizado pelos ímpios pela fé na piedade e obediência à Igreja Romana no território oeste

5 Quanto a isso, Jacques Le Goff afirma que “não que eu acredite (e nisso eu estou com Paul Veyne) que a morte

era um objeto de interesse em si mesmo. As preocupações se mostravam mais quanto ao morto, por que era por

meio da morte e do morto que os vivos aumentavam seu poder aqui embaixo” (LE GOFF, 1989: 233).

Page 124: Anais 2011

121

de Milão...” (GERARDI DI FRACHETO, 1896: 236, tradução nossa)6. Foi assim que

Gerardo de Frachet, em sua obra Vitae Fratrum, documento hagiográfico sobre a Ordem dos

Pregadores, cerca de oito anos após o referido episódio, iniciou seu relato sobre a morte do

frade que ficou conhecido como são Pedro Mártir. Morto no dia seis de abril do supracitado

ano, frade Pedro, natural de Verona, havia sido enviado como inquisidor às terras milanesas

pelo papa Inocêncio IV no dia 13 de junho do ano anterior (GERARDI DI FRACHETO,

1896: 236 n. a) e, menos de um ano após sua morte, dia nove de março de 1253, foi

canonizado (CANETTI, 1996: 165-166).

O rápido reconhecimento oficial da santidade do referido frade, segundo Canetti e

Vauchez, marcou um importante momento na história da política de culto dos Frades

Pregadores. Após isso, como o apoio do papado, a Ordem teria incorrido no início de um

processo de promoção do culto do novo santo – no qual o papado, segundo Vauchez, teria

sido responsável por requisitar intensamente junto ao episcopado a efetivação das festas dos

santos são Domingos de Gusmão e são Pedro de Verona (VAUCHEZ apud CANETTI, 1996:

167 n. 8) –, mas também, sobretudo, em um movimento de enraizamento da veneração do

Santo Fundador da Ordem.

No que diz respeito a essa prerrogativa de fortalecimento do culto ao fundador, pode-

se supor que ela se deu muito em decorrência de certa atitude tomada quando da morte do

santo em 1221, quando alguns dos Pregadores teriam evitado o seu culto em nome da

simplicidade, como demonstrado no Libelus de principiis ordinis praedicatorum de Jordão da

Saxônia, membro da primeira geração dos Pregadores. O frade deixa isso claro em sua crônica

sobre a Ordem quando afirma que havia

alguns que seguiam o caminho da simplicidade sem prudência e insistiam que

enquanto a memória de são Domingos, o servente mais elevado e fundador da

Ordem dos Pregadores, estivesse preservada, imortal, com Deus, importava pouco se

ela chegasse ao conhecimento dos homens (BLESSED JORDAN: 46-47, tradução

nossa)7.

6 “Anno domini MCCLII, sabato in albis, frater Petrus, prior fratrum predicatorum Cumis, civitate Ytalie, a

domino papa datus inquisitor contra hereticam pravitatem martirizatus est ab impiis pro pietate fidei et

obediencia ecclesie Romane occius in territorio Mediolanensi [...]”. 7 Disponível em: <http://curia.op.org/en/index.php/eng/library/document-library/cat_view/50-various-

documentsarticles/85-historical-documents> Acesso em: 15 jun. 2011: “[…] some who followed the way of

simplicity without prudence and insisted that as long as the memory of St. Dominic, the servant of the Most

High and founder of the Order of Preachers, was preserved immortal with God, it mattered little if it reached

the knowledge of men”.

Page 125: Anais 2011

122

De modo contrário a essa atitude, muitos leigos procuravam o túmulo de Domingos

em busca de curas miraculosas, depositando sobre sua sepultura, quando da cura, ex-votos

feitos de cera. Perante essa atitude e mais uma vez em nome de uma simplicidade, devido ao

“medo de que pudessem buscar ganho sob o pretexto de piedade”, muitos quebraram essas

imagens e procuraram evitar o culto a Domingos. O resultado foi que nenhuma veneração foi

prestada a sua santidade até que, transcorridos doze anos da sua morte, o cenário foi mudado

quando da necessidade de translado do corpo do fundador devido a uma reforma no local

onde Domingos estava enterrado. Os Pregadores solicitaram ao papa Gregório IX autorização

para tal procedimento, o qual os repreendeu devido à negligência deles para com seu pai

espiritual (BLESSED JORDAN: 46-47). A partir disso, o próprio papa promoveu o processo

de canonização de Domingos, ocorrido em três de julho de 1234 (BULA DE

CANONIZACIÓN)8, tendo em vista a utilização de sua santidade, bem como a de Francisco

de Assis e Antônio de Pádua, ambos canonizados por ele, em seus intentos reformistas.

Cerca de vinte anos após o reconhecimento oficial da santidade de seu fundador e

trinta e sete após sua fundação, conforme é apontado por Tugwell, a Ordem dos Pregadores já

havia crescido em grande número de membros, se espalhando por todas as direções da

Europa, porém, segundo afirma este autor, sem um rigoroso controle, pois, institucionalmente,

suas estruturas ainda eram precárias, o que gerou um resultado caótico. O autor afirma que

“havia tanta diversidade entre os irmãos que as pessoas nem sempre percebiam que todos

esses homens, de fato, pertenciam à mesma ordem” (TUGWELL, 1982: 31, tradução nossa)9.

Devido a uma política de recrutamento nada discriminatória, os conventos se encontravam

abarrotados de “pessoas inúteis” (TUGWELL, 1982: 31).

O Capítulo Geral que se deu nesse contexto e após a canonização do frade Pedro de

Verona10

, realizado na cidade de Budapeste no ano de 1254 a convite do Rei Bela IV da

Hungria, buscou consolidar as estruturas da Ordem para lhe conferir maior solidez. Iniciou-se

pela eleição de um novo mestre – o escolhido foi Humberto de Romans, que tomou várias

8 Disponível em: <http://curia.op.org/es/index.php/biblioteca/documentos/cat_view/41-documentos-oficiales>

Acesso em: 15 jun. 2011. 9 “There was such diversity among the brethren that people did not always realize that all these man in fact

belonged to the same Order”. 10

Um capítulo provincial já havia sido realizado poucos meses depois da morte de frade Pedro. Ocorrido em

Montepellier, foi solicitando, quando deste, que os frades que possuíssem conhecimento de histórias

edificantes a respeito da ‘morte miraculosa’ dos irmãos deveriam comunicá-las ao prior do convento de

Montpellier, que na época era Gerardo de Frachet, e que esse as repassasse ao mestre da Ordem. Isso,

portanto, pode ter influenciado Humberto de Romans, anos depois quando exercia o cargo de Mestre da

Ordem, na escolha de Gerardo como redator das Vitae Fratrum, pois esse já teria iniciado um processo de

coleta de material sobre os membros da Ordem. Cf. CANETTI, 1996: 168, n.8.

Page 126: Anais 2011

123

medidas nesse sentido, a saber: a revisão e padronização da liturgia dominicana; a realização,

pelo próprio, de um comentário sobre a Regra de Santo Agostinho, de uma carta lidando com

problemas relativos às Constituições e uma sobre a observância regular; a reunião de todas as

monjas dominicanas sob uma mesma constituição baseada na que ele mesmo havia traçado

para as monjas de Montargis quando, entre os anos de 1244 e 1245, foi prior provincial da

França; a nova edição da constituição dos frades; e ações visando à melhoria dos estudos nos

conventos, que incluiriam um estatuto de governo da vida acadêmica da Ordem (TUGWELL,

1982: 32). Além desses procedimentos por parte do novo mestre, no referido Capítulo Geral,

em consonância com o projeto de promoção do culto do novo santo mártir e também de são

Domingos, como já supracitado, ordenou-se que os nomes dos dois fossem escritos no

calendário e na ladainha, que a imagem deles fosse pintada em igrejas e que se realizasse a

festa em seus nomes (ACTA CAPITULORUM GENERALIUM, 1989: 70-71).

A Ordem Dominicana estava realizando um esforço de promoção do santo fundador

da Ordem. No Capítulo Geral do ano seguinte, realizado em Milão, ainda sob o mesmo intuito

de solidificação da Ordem, foi confirmada uma disposição relativa à forma de profissão

religiosa dos frades segundo a Constituição da Ordem que estendia a são Domingos a

promisso obedientiae a Deus, à Virgem Maria e ao Mestre da Ordem em ofício (CANETTI,

1996: 168 n. 8). É nesse Capítulo que também encontramos especificamente uma mudança

importante na política de culto dominicana, bem como as raízes das Vitae Fratrum de Gerardo

de Frachet. Nessa ocasião, em consonância com o último Capítulo, foi ordenado que os

milagres de são Domingos e de são Pedro Mártir que se tivessem conhecimento e que, porém,

ainda não haviam sido colocados em registro, deveriam ser reportados aos priores dos

conventos de Bolonha e Milão para que se fosse redigidos “ad perpetuam memoriam”.

Porém, além dessa resolução, as orientações estenderam o trabalho de recolhimento de relatos

de visões ou episódios memoráveis e edificantes de membros da Ordem, ou relativos a esta

desde seus primeiros dias, para que fossem registrados em benefício da posteridade (ACTA

CAPITULORUM GENERALIUM, 1989: 76-77). Esse intuito foi atestado no próprio prólogo

das Vitae Fratrum, quando Gerardo inicia sua obra afirmando que

Com os gloriosos exemplos dos Santos Padres, tanto do Novo quanto do Antigo

Testamento, que abundam no mundo em geral, a multidão dos fiéis foi satisfeita

quase como se fosse pão, que a bondade divina dividiu em pequenas unidades e

pelos seus ministros e fieis ordenou que fosse distribuído. Para o seu mandato, resta

recolher os fragmentos, que certamente na nossa Ordem dos Pregadores são dignos

Page 127: Anais 2011

124

de memória, para que não se percam pelo esquecimento ou negligência (GERARDO

DI FRACHETO, 1896: 1)11

.

Percebe-se, então, o início de uma mudança de resoluções entre os Capítulos. O de

Budapeste centrou suas atenções precisamente na promoção das figuras de são Domingos e

são Pedro Mártir, enquanto o de Milão prescreveu o recolhimento de informações não

somente sobre esses dois expoentes dos dominicanos, mas de toda a Ordem. O escopo,

anteriormente fechado, agora fora aberto. Segundo Vauchez, a mudança referente à

abrangência das petições se deu devido a um fator parcialmente externo à Ordem dos

Pregadores. Segundo esse autor, nesse tempo a figura de São Domingos “parece ter um

destacamento menos proeminente do que o de São Francisco, a atenção de seus filhos

espirituais se concentra menos na sua pessoa e cedo se volta para todas as manifestações de

santidade que poderia existir na ordem” (VAUCHEZ apud CANETTI, 1996: 169 n. 10,

tradução nossa)12

. Em oposição a esta alegação, Canetti afirma que os próprios franciscanos,

nessa mesma época, também se voltavam para coleta de materiais e da celebração não só de

seu santo fundador, mas de toda a Ordem. Tal movimento se devia a uma necessidade de

comprovar, para a própria Ordem bem como para toda a cristandade, que os exemplos de

santidade continuavam a florescer, um sinal de que a Ordem era aprovada pelo próprio Deus

(CANETTI, 1996: 169 n. 10). Em outras palavras, o que se pretendia nessa busca por

exemplos edificantes era a construção de uma autoconsciência comum à Ordem como um

todo enquanto fundação sagrada.

No Capítulo Geral do ano seguinte, 1256, ocorrido em Paris, os mesmos

requerimentos do anterior foram novamente declarados (ACTA CAPITULORUM

GENERALIUM, 1989: 83). Portanto, pode-se concluir que a ideia e o projeto das Vitae

Fratrum se conceberam especificamente a partir do Mestre Humberto de Romans, que

incumbiu Gerardo de Frachet, entre os anos de 1255 e 1256, da produção de uma obra

hagiográfica referente à Ordo Praedicatorum como um todo - posteriormente aprovada em

1260 quando do final da sua primeira redação (CANETTI, 1996: 169, n. 8).

11

“Cum gloriosis Sanctorum Patrum exemplis, tam novi quam veteris testamenti, quibus copiose mundus

abundat, turba fidelium quasi quibusdam panibus satiata iam fuerit, quos divina bonitas, penes unitatem

parvitatis reperiens, fregit ac per ministros suos ipsis fidelibus discumbentibus iussit distribui; restat ut eius

mandato fragmenta ea, videlicet quae in nostro Ordine Praedicatorum habentur digna memoria colligatur, ne

oblivione pereant vel neglectu". 12

“[...] semble avoir eu un relief moins accusé que celle de S. François, l'attention de ses fils spirituels se

concentra moins sur sa personne et se tourna de bonne heure vers toutes les manifestations de sainteté qui

pouvaient exister au sein de l'ordre”.

Page 128: Anais 2011

125

O sucesso desta hagiografia, pelo menos dentro da própria Ordem, pode ser atestado

pela verificação do número de cópias existentes da obra – se considerarmos que os

manuscritos eram produtos que demandavam um trabalho demorado e de custos elevados -

que, pelo menos até 1975, somavam mais de 40 exemplares (CANETTI, 1996: 172, n. 16)13

.

2.2 Os conflitos de Paris (1254-1256)

Sobre o Capítulo Geral de Paris, é importante também esclarecer aqui as condições nas

quais se deu, relacionando-as especificamente com a atuação de Humberto de Romans quando

daqueles anos.

Desde 1254, clérigos ressentidos contra a incursão dos frades mendicantes ao território

universitário e pastoral, tanto da Ordem Dominicana quanto da dos Franciscanos, iniciaram

ondas de ataques aos frades. Neste episódio, ocorrido no final do mês de novembro,

Humberto de Romanas – que já havia se envolvido em situações similares 1235, quando foi

enviado para resolver uma querela entre dominicanos e canonistas de Bensançon sobre

responsabilidade pastoral – desempenhou importante papel de liderança na defesa dos

Mendicantes. A empreitada de Humberto e dos frades não gerou frutos imediatamente, pois o

papa Inocêncio IV acabou por revogar todos os privilégios que antes eram garantidos aos

mendicantes. Não obstante, essa resolução não perdurou por muito tempo, pois o mesmo papa

veio a falecer logo em seguida e o seu sucessor, Alexandre IV, tomando partido dos frades,

em seu primeiro ato público restaurou a posição anterior dos Mendicantes (TUGWELL, 1982:

33).

No ano seguinte, os líderes das duas grandes Ordens mendicantes, dominicanos e

franciscanos, buscaram se aproximar, fortalecendo, assim, a resistência aos ataques dos

clérigos seculares (CANETTI, 1996: 180, n. 32)14

. Como resultado dessa união, duas

encíclicas foram expedidas. A primeira, datada de 4 de fevereiro de 1255, trata do advento e

missão das duas Ordens em tom escatológico-providencial, conclamando os frades a evitarem

os conflitos e manterem as forças pelo “exemplo de caridade e paz mútua [que] nos deixaram

13

É importante salientar aqui que, segundo a carta de apresentação das Vitae Fratrum de autoria de Humberto de

Romans, o mentor da obra, embora a hagiografia tenha sido aprovada, “não queiramos que se divulgue fora

da Ordem. Para isto deve pedir-se uma autorização especial”. [“Nolumus tamem quod extra Ordinem

tradatur sine nostra licencia speciali”]. Cf. GERARDI DI FRACHETO, 1896: 5. Tradução nossa. 14

Várias são as histórias nas Vitae Fratrum que se referem à amizade semi-lendária entre são Domingos de

Gusmão e são Francisco de Assis, fundador da Ordem dos Frades Menores (Cf. GERADI DI FRACHETO, p.

138, 232, 274, 277). Canetti atribui à inserção destas na obra justamente a essa política de mútua ajuda entre as

duas ordens frente aos ataques seculares.

Page 129: Anais 2011

126

os nossos pais Francisco e Domingos e os outros nossos primeiros irmãos” (LITTERAE

ENCYCLICAE, 1900: 27, tradução nossa)15

. A segunda, de abril de 1256, também retrata os

conflitos como uma batalha escatológica (CANETTI, 1996: 174, n. 22). Dois anos depois,

outra onda de ataque se levantou contra os frades. Quando deste episódio, um clérigo

chamado Guilherme do Santo Amor publicou um trabalho em tom apocalíptico – condenado

posteriormente - aos líderes da Ecclesia, sugerindo que os frades eram, na verdade, um

prenúncio do Anticristo.

Foi nesse contexto de conflito entre mestres seculares e os frades mendicantes que o

projeto de Humberto de coleta de materiais “edificantes” e elaboração de um trabalho

sistemático destinado a ser disseminando no interior da Ordem foi concebido e colocado em

prática. Portanto, não haveria como essa obra humbertina não estar precisamente relacionada

a esses eventos, de modo que várias histórias referentes a esse período podem ser encontradas

nas páginas das Vitae Fratrum. Muito além disso, na suas características composicionais e

ideológicas – que formam uma narrativa exemplar articulada conforme o desígnio de

construção de uma consciência auto-apologética da Ordem, considerada em sua totalidade,

como sendo objeto de um trabalho hagiográfico – é que se evidencia o projeto de Humberto,

concebido em tempos de grandes tormentas, de ataques por parte do clero secular, justamente

para fazer frente a essas dificuldades enfrentadas pela Ordem. Essa obra, segundo Canetti,

“representa, como é sabido, o fruto e o êxito feito daquela fervorosa atividade de coleta

centralizada de memórias históricas e hagiográficas promovida pela liderança da Ordem [...]

um caso singular de ‘hagiografia publicística’” (CANETTI, 1996: 171-172)16

.

3 A morte e os mortos nas Vitae Fratrum

Voltemos então o olhar para o espaço que a morte e os mortos ocupam nas Vitae

Fratrum. Primeiramente, é de grande importância destacar que das cinco partes nas quais se

divide a hagiografia, a última – a segunda maior em extensão - se ocupa inteiramente da

morte. Segundo o historiador francês Alain Boureau, dentro de um “modelo geral de

hagiografia” do qual a obra partilha – formado pelas partes da eleição, santificação por meio

15

“exempl[o] mutuae charitatis et pacis [quod] reliquerunt nobis patres nostri Beatus Franciscus et Beatus

Dominicus, caeterique fratres nostri primitivi". 16

“...rappresenta, com'è noto, il frutto e l'esito compiuto di quella febbrile attività di raccolta centralizzata delle

memorie storiche ed agiografiche promossa dai vertici dell'Ordine [...] un caso di singolare 'pubblicistica

agiografica'”.

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127

dos trabalhos e glorificação após a morte –, a quinta parte das Vitae Fratrum corresponderia

à terceira desse modelo (BOUREAU, 1987: 92). Não obstante, os relatos que nos interessam

não se restringem somente a essa última seção.

A análise que agora se segue, que tratará especificamente destes episódios relativos à

morte e os mortos que se encontra nas Vitae Fratrum, se dará em dois momentos.

Primeiramente, iremos analisar alguns relatos que tratam do momento da morte. Em um

segundo movimento, analisaremos os testemunhos no qual se tem a presença de um fantasma

e a relação estabelecida entre eles e os vivos. Buscaremos nestas duas partes estabelecer uma

argumentação que demonstre como a morte e os mortos foram mobilizados por Gerardo de

Frachet em função de um intento edificador e auto-apologético da Ordem dos Pregadores.

3.1 Os relatos de morte

Os relatos sobre a feliz morte dos frades abundam nas páginas das Vitae Fratrum.

Estes parecem cumprir o propósito auto-apologético de afirmação da Ordem como sagrada –

objetivo e função principal desta hagiografia - ao apresentar os frades moribundos como

eleitos. O relato que compõe o capítulo III, parágrafo 6f, da parte V trata do falecimento do

irmão Fernando no convento de Santarém. O autor atesta o seguinte:

Não se deve estranhar de que [o frade Fernando] gozasse, pois via que um homem

que tinha abandonado tantas riquezas e deleites, em pouco tempo conseguiria a

graça de que à hora da morte fosse para ele o começo da vida eterna. Porque prova

evidente da recompensa eterna é a serenidade da alma à hora da morte (GERARDI

DE FRACHETO, 1896: 262, tradução nossa)17

.

Notemos que Gerardo aponta a serenidade como um sintoma e não a causa da boa

morte. Além disso, a razão desse tipo de trespasse também nós é revelado: o autor afirma que

a feliz morte se dera “pois via que [frade Fernando era] um homem que tinha abandonado

tantas riquezas e deleites”. A pobreza evangélica era uma das principais características da

vida dos frades mendicantes e a chave para a salvação da alma. Em linhas gerais, a feliz morte

era garantida por uma vivência reta, conforme os preceitos morais estabelecidos pelo

cristianismo.

17

“Nec mirum, si gaudebam, cum viderem hominem a tantis diviciis et deliciis absolutum in brevi tempore hanc

graciam acquisisse, ut in hora mortis eterne vite inicium haberet. Nam eterne retribucionis indicium est in

obitu securitas mentis”.

Page 131: Anais 2011

128

Todavia, em outros relatos, apenas uma vida moralmente reta não é suficiente para

garantir a salvação. Uma grande importância foi dada aos rituais do momento da morte como

preceitos de uma feliz morte. A extrema-unção e última confissão gozam de primária

importância, atuando com uma espécie de garantia de salvação. O capítulo II, parágrafo 5, da

última parte das Vitae Fratrum narra a respeito de um frade que, estando doente no convento

de Tours, “caiu subitamente em frenesi sem ter recebido ainda os sacramentos da Igreja”. O

prior do convento, então, “congregou a comunidade e rogou aos frades que orassem pelo

doente e em procissão de velas entrou com eles levando a sagrada Eucaristia aonde estava o

doente”. Diante disso, o moribundo volta a si, confessa seus pecados ao prior e recebe a

Sagrada Comunhão e a Santa Unção. “Cumpridas todas estes coisas reverentemente em

presença da comunidade, sentiu-se já próximo da morte e começou a cantar com doce voz o

responsório: ‘Libera me, Domine, de morte aeterna’ etc e os versos seguintes. Pouco depois

descansou em paz”(GERARDO DI FRACHETO, 1896: 251)18

. A confissão, de maneira

geral, tivera seu papel bem definido deste 1215, quando o IV Concílio Ecumênico do Latrão

estipulou a obrigatoriedade dessa prática ao menos uma vez por ano (LE GOFF, 2006: 31).

Este concílio foi de essencial importância quanto ao estabelecimento de bases jurídicas para a

existência das ordens mendicantes (BONI, 2002: 11)19

e elas foram os principais agentes de

implementação das decisões do concílio. Além disso, a última confissão, em especial,

desempenha um papel central no momento da morte, pois é esta a última oportunidade de se

redimir dos pecados. Em uma passagem ocorrida no convento de Orléans, o frade Guilherme

já havia recebido a santa unção e, admoestado a si confessar por um irmão que havia acabado

de chegar ao recinto, o frade responde: “'se tivesse deferido para esta hora, teria sido tarde

demais'. Pouco depois, com grande consolação e esperança, descansou no senhor”

(GERARDI DI FRACHETO, 1896: 252, tradução nossa)20

.

18

“[...] infermus subito raptus in frenesim est, nondum perceptis ecclesiasticis sacramentis”; “[...] convocato

conventu, eis pro infirmo oracionem indixit et cum luminaribus et sacra communione cum eis ad infirmum

intravit”; “Quibus astante conventu reverenter completis cum iam se morti propinquare sentiret, dulci voce

cantare cepit responsorium: 'Libera me domine, domine, de morte eterna' et cetera, et versus sequentes; et

post modicum tempus in pace quievit”. 19

“Em geral, o IV Concílio Lateranense é visto como o Concílio que proibiu o surgimento de 'novas religiões'.

Mas ninguém se preocupa em entrar na alma desta decisão e, por isso, não se percebe o seu verdadeiro 'valor

eclesial'. Para compreender o 'valor eclesial' da disposição proibitiva do Lateranense IV, é necessário entrar no

contexto legislativo deste Concílio […] Impunha-se a necessidade de dar uma base jurídica aos movimentos

renovadores da fé católica, já que sua vida itinerante e apostólica não podia ser reduzida aos esquemas das

instituições de religiões monástica e canonical”. 20

“Frater Guilielmus quandam officialis curie Senonensis dum in conventu Aurelianensi esset inunctus [...]”.

[Frade Guilherme, que foi oficial da cúria de Sens, já ungido no convento de Orleans...].“'Si distulissem ad

hanc horam, nimis tardassem'. Et paulo post in mira spe et consolacione in domino quievit”.

Page 132: Anais 2011

129

No que se refere à Santa Unção, outro relato reafirma a importância desta no momento

do trespasse. O episódio reportado à Gerardo pelo frade Matheus narra da morte do irmão

Reginaldo em Orléans. Este, estando próximo ao falecimento, é abordado pelo frade Matheus

que lhe oferece a unção, ao que o moribundo afirma:

Eu não temo esse transe, mas espero-o e desejo-o com gozo, já que a Mãe de

misericórdia me ungiu em Roma e n’Ela tenho posta a minha confiança e a Ela vou

agora com grande ansiedade. No entanto, para que não pereça que desprezo esta

Unção da Igreja, agrada-me e peço-a. E, depois de ter sido ungido diante dos frades,

rodeados por eles, que oravam por ele, adormeceu no senhor (GERARDI DI

FRACHETO, 1896: 248, tradução nossa)21

.

A partir desse trecho, mais uma vez é perceptível a importância dada aos rituais como

elementos chaves na salvação da alma. A unção, assim como a confissão, atua como uma

espécie de garantia à salvação. Os registros destes episódios nestes termos, em uma obra de

circulação interna a Ordem e que tinha por função fortalecer as bases da mesma, atesta

silenciosamente um suposto correto cumprimento por parte da Ordem dos Pregadores dos

preceitos ritualísticos estabelecidos pela Igreja, ou seja, sua juridicidade.

Retomando o pensamento já apresentado de Ariès, teríamos neste relato um exemplo e

indício da morte de si, na qual ocorre o julgamento particular no momento da morte. A partir

vestígios como este, Ariès concluiu que a partir do século XII teria tido início o florescimento

de uma consciência de individualidade, pois o julgamento no momento da morte é particular.

Este episódio, que não é isolado nas páginas desta hagiografia, demonstra a importância dos

rituais no momento da morte. A Última Confissão, para que garantisse seu papel na salvação

da alma, deveria ser realizada segundo um procedimento bem estabelecido: o moribundo

deveria expor suas faltas à viva voz (MORÁS, 2001: 240-243). Notemos, então, a estimação

ritualística que o relato nos apresenta. O moribundo, por não “ter recebido ainda os

sacramentos da Igreja”, corria sério risco de danação eterna. Os rituais aqui, uma premissa

externa e não individual, são a chave da salvação da alma. O decisivo no momento da morte

não seria tanto o arrependimento ou a conversão interior, mas sim o ritualismo exterior

(MORÁS, 2001: 242). Deste ponto de vista, o senso de individualidade que a morte carrega

consigo a partir do século XII, apontado por Ariès, pode ser parcialmente colocado em

cheque. Neste caso, a salvação dependeria de uma premissa exterior e não individual, de

21

“'Ego luctam istam non timeo, sed cum gaudio expeto et expecto; mater quidem misericordie me Rome

inunxit, in ipsa confido et ad ipsam cum multo desidero vado; tamen ne hanc quoque ecclesiasticam

unccionem contempnere videar, placet, et eam peto'. Postquam igitur iniunctus est coram positis fratribus et

orantibus in domino obdormivit”.

Page 133: Anais 2011

130

‘procedimentos técnicos’ desenvolvidos ao longo do tempo por autoridades da Igreja e que

deveriam ser comum a todos os cristãos. Além disso, a morte nos é apresentada nesta

passagem como um evento comunitário e não particular. No episódio ocorrido em Tours, toda

a comunidade foi congregada para interceder pelo moribundo, garantindo a sua salvação.

Quando da morte do frade Reginaldo, esta já estava presente, orando pela salvação do

moribundo. Em outra passagem – sobre a feliz morte do frade Pedro no convento de Le Puy,

na Provença – apesar de Gerardo não estabelecer nenhuma relação causal direta,

identificamos a presença da comunidade religiosa à rezar junto ao leito de morte do irmão

pela salvação de sua alma. O frade teve uma visão da Virgem Maria, saudou-a e, assim,

“adormeceu no senhor” (GERARDI DI FRACHETO, 1896: 55, tradução nossa)22

. Neste caso,

a presença da Virgem Maria seria o indício de sua feliz morte, a salvação da alma do frade

Pedro, que talvez tenha muito a dever à presença de seus irmãos à rezar ao seu lado.

Por fim, destacamos relato da feliz morte do frade Conrado, ocorrida no convento de

Constança, na Germania, que representa com propriedade todos os elementos necessários a

uma morte feliz. O irmão afirma que seu trepasse se dá da seguinte maneira:

E, congregados os frades diante dele [Conrado], estando já próximo a sua morte

disse: 'Sabei, irmão meus, que morro com fé, com amor e com esperança e no meio

da maior alegria'. E explicou-o desta meneira: 'Com fé, porque na fé de Jesus Cristo

e nos sacramentos da Igreja morro; com amor, porque desde que entrei na Ordem

tenho plena certeza de que permaneci no amor de Deus e singularmente procurei

fazer sempre o que julgava ser do Seu maior agrado; com esperança porque estou

certo de que vou para o Senhor e com alegria, porque saio do desterro em direção à

pátria e da morte passo ao gozo sempiterno' (GERARDI DI FRACHETO, 1896:

255, tradução nossa)23

.

Desde trecho, pode-se extrair todos os elementos necessários à uma feliz morte: a fé

em Cristo; o correto observância dos sacramentos estabelecidos pela Igreja; a retidão moral,

permanecendo sempre voltado aos desígnios de Deus e não aos humanos. Além disso,

22

“In conventu Podiensi Provincie frater Petrus morti appropinquans, presentibus fratibus et orantibus, cepit

caput reverenter inclinare et palmas iunge et beatissimam virginem devotissime salutare. Cui cum astantes

dicerent: 'Cur hoc facitis frater?'. Ait: 'Nonne dominiam nostram videtis, que me sua gracia visitavit?'. Sicque

in domino obdormivit”. [“No convento de Le Puy, na Provença, o frade Pedro, que, estando às portas da

morte, na presença dos frades que rezam por ele, começou a inclinar reverentemente a cabeça e a juntar as

palmas das mãos saudando devotissimamente a santíssima Virgem. Os presentes disseram: 'Porque faz isso,

irmão?'. O outro: 'Não veem a nossa senhora, que em sua graça me veio visitar?'. Assim adormeceu no

senhor]. 23

“Hic congregatis fratibus ante ipsum, cum iam cito mori deberet, dixit: 'Scitote, frates mei, quod ego morior

fidelier, amicabiliter, fiducialiter et letanter'. Quod exposuit sic: 'Fideliter, quia in fide Ihesu Christi et

sacramentorum ecclesie; amicabiliter, quia, ex quo intravi ordinem, spero, quod in dileccione Dei

perseveravi, et precipue sempre facere studii, quod ad dominum vado; letander, quia de exilio ad patriam, de

morte ad gaudium transeo sempiternum”.

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131

Gerardo coloca na boca do frade Conrado a afirmação de que ele, desde que se juntou a

Ordem dos Pregadores, permanecera no amor de Deus, fazendo, pois, da própria Ordem um

meio para a salvação.

3.2 Os relatos sobre mortos

As relações estabelecidas entre os vivos e os mortos nas páginas das Vitae Fratrum se

dão basicamente de duas maneiras: na primeiro são os vivos que intercedem pelos mortos; na

segunda, são mortos que intercedem em favor dos vivos. A análise que se segue irá se dividir,

respectivamente, de acordo com estes dois momentos.

O primeiro tipo de relação corresponde à uma em que o vivo atua na Terra para

comutar as penas sofridas pelo morto no Purgatório, portanto, uma ação de reparação.

Destacamos a história relatada na quarta parte da obra, capítulo V, parágrafo 5. Ela versa

sobre certo cavaleiro espanhol que havia se alistado para servir a cruzada na Terra Santa,

porém, adiou o compromisso e morreu antes que o cumprisse. Após sua morte, o militar

aparece ao filho e pede que este “carregue sua cruz”. O filho, então, segue viagem rumo à

Terra Santa. Quando de passagem por Bolonha, é persuadido por alguns amigos seus, que

haviam se tornado frades, a entrar para a Ordem dos Pregadores. O filho do cavalheiro

consente ao pedido dos amigos e junta se aos frades. Logo após este ocorrido, outro frade,

desta vez na cidade de Florença, escuta da boca de um possesso que certo cavaleiro espanhol

havia sido libertado de seus sofrimentos graças ao seu filho que havia entrado para a Ordem

dos Pregadores. Este último frade, quando de passagem por Bolonha, relata o caso a outros,

dentre os quais estava o filho do militar (GERARDI DI FRACHETO, 1896: 162)24

.

Nota-se que o filho não cumpre o pedido do pai, pois é persuadido a se juntar à Ordem

ao invés de se dedicar à cruzada. Para tanto, o argumento utilizado pelos frades, segundo

Gerardo, foi o seguinte:

24

“Miles quidam Ispanus cruce transmarina signatus, cum votum retardaret implere, in bello quadam occisus

est. Qui filio suo apparens crucem gravissimam baiulans, rogavit, ut sui misereretur. Filus autem eius

industrius et litteratus, intelligens patrem voto crucis gravari, pro ipso crucem assumpsit. Cum igitur venisset

Bononiam, ut de Brundisio navigaret, invenit quosdam scolares sibi notos, qui ordinem predicatorum

intraverant”. [“Um cavaleiro espanhol que se tinha alistado para ir numa cruzada ao aoutro lado do mar,

enquanto adiava o cumprimento da sua promessa, morreu numa batalha. E apareceu a seu filho carregado com

uma pesada cruz, pedindo-lhe que tivesse compaixão dele. O seu filho, que era diligente e letrado,

compreendendo que seu pai se tinha comprometido em ir numa cruzada, tomou para ele aquele compromisso.

E, tendo chegado a Bolonha para prosseguir viagem e ir embarcar depois em Brindes, encontrou-se com uns

estudantes, seus conhecidos, que tinham entrado na Ordem dos Pregadores”]. Tradução nossa.

Page 135: Anais 2011

132

eles exortaram-no [o filho do militar] a que seguisse o seu exemplo, prometendo-lhe

que esta decisão seria de maior proveito para o seu pai; isto era verdadeiramente

levar a cruz e seguir a Cristo e que orações dos frades e o sacrifício do altar são

recursos mais eficazes para levar as almas à luz e ao descanso eternos (GERARDI

DI FRACHETO, 1896: 162, tradução nossa)25

.

O caminho para a libertação de um morto, portanto, seria muito mais fácil por meio do

ingresso na Ordem dos Frades Pregadores que com a dedicação a práticas militares de guerra.

Reconhecemos aqui o esforço de promoção da Ordem frente a outras iniciativas e instituições

de caráter sagrado; a propaganda de celebração da sacralidade e legitimidade providencial da

missão da Ordem.

O segundo tipo de relação estabelecido entre vivos e mortos ocorre a partir de uma

ação do morto em benefício do vivo. Neste tipo de intervenção, geralmente, o morto admoesta

o vivo a uma melhor conduta moral em vida – evitando, possivelmente, que o vivo possa vir a

padecer dos mesmos sofrimento que ele então sofre –, esclarece o vivo quanto às condições

do Além e, algumas vezes, sobre de sua morte vindoura. Diferentemente do primeiro tipo de

relação já elencado e explanado, este se caracteriza por ser uma ação de prevenção à danação

eterna ou penas purgatórias.

Na quarta parte das Vitae Fratrum, capítulo XIII, parágrafo 1, Gerardo relata uma

história contada pelo prior do convento de Bolonha, frade Santiago, que fala de um amigo seu

que entrou para a Ordem após outro amigo morto lhe aparecer e contar que sofria penas no

Purgatório. Além disso, o morto afirmou que o amigo de Santiago também sofreria estas

penas caso não 'fugisse do mundo'. O amigo vivo questiona o fantasma sobre a possibilidade

dele ser libertado de seus tormentos no Além ao que o morto responde é possível, porém,

afirma que “as almas perdem muito agora pelas guerras que há entre o papa e o imperador e

são privadas de muitos sufrágios por causa do entredito, pois, diariamente voariam ao céu

muitas almas se dissessem as missas de costumes”. O amigo, então, questiona o morto sobre a

sua própria condição, “interrogou-o ainda: 'Em que situação me encontro?”. À isto, o morto

respondeu: “Tu encontras-te em mau estado [...] foge depressa do mundo [...] à Ordem dos

Frades Pregadores”. Após o ocorrido, conforme narrou Gerardo, o homem “veio todo

compungido visitar ao dito frade [Santiago] e contou-lhe todas estas coisas e, renunciando a

todos os seus bens, entrou na Ordem fazendo-se frade” (GERARDI DI FRACHETO, 1896:

25

“At illi, ut ordinem intraret ortantur, promittentes anime patris eius plus proficere; crucem vere sic tollere, et

Christum et oraciones fratum et altaris sacrificium animas efficacissime ad lucem et requiem trahere

sempiteram”.

Page 136: Anais 2011

133

180, tradução nossa)26

. Encontramos aqui, mais uma vez, o intuito auto-apologético das Vitae

Fratrum. Para se salvar das penas purgatórias, a Ordem Dominicana é colocada como um

domínio sagrado que garante a bem-aventurança, um refúgio quanto às perdições do mundo

terreno.

4 Conclusão

Os relatos sobre a feliz morte de alguns dos frades Pregadores foram mobilizados por

Gerardo de Frachet com fins específicos de autofirmação da Ordem dos Frades Pregadores.

Ao tratar desse tipo específico de trespasse nas páginas das Vitae Fratrum, o hagiógrafo

afirmou que vários frades apossuem um final feliz, ou seja, alcançam a salvação no final da

vida terrena e adentram à vida eterna. Ele atesta, também, o correto cumprimento dos rituais

do momento da morte por parte dos frades pregadores – principalmente a extrema-unção e a

última confissão - que, então, constituíam elementos primordiais para a salvação da alma.

Mais do que isso, ao relatar esses episódios que fazem referência aos sacramentos, Gerardo

também acaba por afirmar a juridicidade da Ordem como um todo, pois essas prerrogativas

referentes aos rituais da morte haviam sido oficialmente estabelecidas. Quanto às passagens a

respeito das relações entre entre vivos e mortos, estas foram mobilizadas com objetivo de

afirmar a Ordem dos Frades Pregadores como um nicho salvador. Além disso, a ela também

foi fundamental para a libertação dos mortos de suas penas no Purgatório. Ao investir essa

importância à ação de incorporação à Ordem, Gerardo coloca-a no mesmo patamar dos

sufrágios oficialmente reconhecidos.

De maneira geral, por meio dos relatos de morte e mortos analisados nesse trabalho,

Gerardo pode, nas suas Vitae Fratrum, caracterizar sua Ordem como nicho salvador, tanto

para os mortos quanto para os vivos, e como cumpridora das estipulações legais concernentes

aos rituais do momento da morte.

26

“[...] magnum detrimentum paciuntur anime modo propter guerras inter papam et imperatorem, quia eis

multa per interdictum suffragia substrahuntur, et cotidie multe anime evolarent, si misse solite dicerentur”.

[...] Dixit ergo ei iterum: 'Qui est de statu meo? '. Respondit: 'Tu in malo statu et officio es'. At ille: 'Quid ergo

faciam?'. Respondit: 'Fuge cito de mundo'. Et ait: 'Quo figiam?'. Respondit: 'Ad ordinem fratrum

predicatorum'. Et statim disparuit. Ipse ergo compunctus venit ad dictum fratem et ei omnia enarravit et

disponens de rebus suis ordinem intravit et frater factus est”.

Page 137: Anais 2011

134

REFERÊNCIAS

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Page 139: Anais 2011

136

APONTAMENTOS PARA O ESTUDO HAGIOGRÁFICO: UMA PROPOSTA DE

ABORDAGEM SOBRE O FENÔMENO DO CULTO À SANTIDADE NO OCIDENTE

MEDIEVAL

Felipe Augusto Ribeiro1

1 Introdução

Este trabalho pretende ser uma introdução ao estudo da santidade e do seu culto no

cristianismo medieval. A proposta que viemos trazer, com esse intento, parte de uma sugestão

feita pelo sociólogo Pierre Delooz:

[…] há quase dois milênios, um grupo social, a Igreja católica, reconhece a alguns

personagens a qualidade de santos. É provável que estudando esses personagens

aprenderemos qualquer coisa sobre o grupo que os escolheu. Em particular é

provável que apareçam certos aspectos da evolução estrutural deste grupo social. De

fato, sendo os santos testemunhas do grupo e considerados por ele como modelos

ideais, revelarão sem dúvida o seu devir, isto é, as suas estruturações sucessivas

(1976: 227).

Hoje, décadas após essa sugestão, entendemos que os estudos medievalistas sobre esse

fenômeno – mas também os estudos sobre as épocas moderna e contemporânea – estão bem

avançados nesse sentido. Uma grande prova desse percurso foi a elaboração e exploração,

sobretudo nos últimos 20 ou 30 anos, do conceito de religião cívica, por André Vauchez,

Antonio Rigon e tantos outros2. Entre outras coisas, esse conceito procura evidenciar como

santos locais são proclamados e cultuados em virtude de milagres feitos em prol de uma

comunidade urbana e de uma pertença cívica a esse grupo.

O reconhecimento e o culto de um santo é um evento cercado por movimentos sociais

e políticos que certamente refletem a trajetória histórica dos grupos envolvidos. Assim, o

1 Graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-graduando no curso de

Especialização em Culturas Políticas, História e Historiografia da mesma universidade. E-mail para contato:

[email protected]. 2 Cito, para conhecimento, uma obra de cada um desses autores, as quais trabalham com o conceito de religião

cívica: RIGON, Antonio. Dévotion et patriotisme communal dans la genèse et la diffusion d’um culte: le

bienheureux Antoine de Padoue surnommé le “Pellegrino” (1297). In: Faire croire: Modalités de la diffusion

et de la réception des messages religieux du XIIe au XVe siècle. Actes de table ronde de Rome (22-23 jun

1979). Rome: École Française de Rome, 1981. p. 259-278. Publications de l'École française de Rome, 51.

VAUCHEZ, André. La commune de Sienne, les Ordres Mendiants et le culte des saints. Histoire et

enseignements d’une crise (novembre 1328, avril 1329). Mélanges de l’Ecole française de Rome. Moyen-

Age, Temps Modernes. [S.l., s.n.], t. 89, n. 2, 1977. p. 757-767. Ambos estão disponíveis em:

http://www.persee.fr/web/guest/home.

Page 140: Anais 2011

137

nosso objetivo é delinear uma abordagem inicial para o estudo do fenômeno da santidade no

cristianismo ocidental do medievo, explicitando alguns conceitos que, embora cunhados para

a “Baixa Idade Média” ou mesmo para a modernidade e a contemporaneidade, parecem-nos

úteis para a análise de outros períodos também. Mas antes de tudo situemos o nosso fenômeno

– a santidade – historicamente e o definamos.

2 Definições de santidade e do seu culto

Conforme Francesco Scorza Barcellona (2006: 26), a santidade é uma qualidade

divina, pertencente a Deus, que a concede aos homens merecedores através da gratia (para

usar termo empregado por Peter Brown). Desde o século II essa dádiva foi atribuída aos

mártires, que resistiam à perseguição romana em nome de sua fé; via-se neles, por causa de

sua perseverança, uma manifestação divina, da santidade. O culto a esses primeiros santos

afirma-se entre os séculos IV e VI (BARCELLONA, 2006: 19).

Reveladora é, nesse sentido, a etimologia do termo sanctus (cujo radical é o mesmo da

palavra “sangue”), que denota as “pessoas que têm o privilégio da inviolabilidade” física, do

próprio corpo (BARCELLONA, 2006: 26): nos tempos romanos esse era o título de

embaixadores, tribunos, censores, reis e sacerdotes (ou seja, pessoas de linhagens superiores),

sujeitos de qualidades morais acima dos demais. Barcellona (2006: 25) também nota que

sanctus (santo), diferentemente de sacer (sagrado), é a qualidade divina manifesta, não

implícita: o santo (objeto ou pessoa) é, pois, aquele que manifesta a sacralidade, a qualidade

moral extraordinária, e é, portanto, inviolável. Os cristãos, herdando essa semântica da

palavra, empregaram sanctus para qualificar aqueles que morreram manifestando tal

qualidade. Tendo em vista, então, essas observações, comecemos tentando enxergar a

emergência do fenômeno do culto à santidade na Antiguidade Tardia.

Segundo Vauchez (1988) há permanências patentes entre o culto da santidade no

cristianismo medieval e o antigo culto pagão dos heróis: em ambos os cultuados são seres

desencarnados como espíritos, capazes de conectar céu e terra, divindade e mortais. Peter

Brown pontua justamente a importância das tumbas e dos restos mortais dos santos, pontos de

encontro entre os dois mundos (BROWN, 1982: 2-3): o culto dos santos começou nos

cemitérios, fora das cidades romanas (BROWN, 1982: 4, 8).

Na Antiguidade e no Medievo a relação que une “vivos” e “mortos” é a mesma: a

clientela, a “amizade”: o protegido deve lealdade ao protetor e este deve “favores” àquele. O

Page 141: Anais 2011

138

“patrono” medieval viria, assim, “para restituir a confiança e oferecer perspectivas de

salvação a nível de vida cotidiana” em um tempo ameaçado de desintegração (VAUCHEZ,

1988: 355)3. Mas a partir do século III (BARCELLONA, 2006: 19-20) os santos são também

espíritos responsáveis por favorecer os indivíduos, “intercessores” (BROWN, 1982: 6) ou

“amigos invisíveis” (BROWN, 1982: XIV), e nisso eles diferem dos antigos heróis, conforme

opinião de Brown. O cristianismo teria antropomorfizado as crenças antigas, submetendo a

natureza ao homem ao tornar os espíritos protetores pessoas que realmente viveram no mundo

dos homens e que se juntavam, após a morte, a Deus (VAUCHEZ, 1988). Esse não era o caso

dos heróis da Antiguidade, eles próprios dotados de uma natureza sobre-humana.

O próprio Vauchez ressalta que, a despeito das analogias4, o culto à santidade no

cristianismo não foi mera continuidade do culto pagãos dos heróis e semideuses ou

“concessão das elites cristãs às massas pagãs para facilitar a sua conversão” (VAUCHEZ,

1988: 355)5. O culto dos santos “radicou-se naquilo que o cristianismo tinha de mais autêntico

e de mais original em relação às outras religiões com as quais estava então em concorrência”

(VAUCHEZ, 1988: 355): a renovação constante do sacrifício, da imagem e da representação

de Cristo, que contêm a afirmação da morte – um dom divino – como via de acesso à

divindade (ao passo que o paganismo entendia a morte como fronteira intransponível entre

homens e deuses). Similarmente, para Barcellona,

o fenômeno, na reflexão teológica e na prática cultual, não pode ser reconduzido às

imediatas origens cristãs: a santidade, da qual já se fala nos mais antigos

testemunhos literários da nova fé, que confluíam no Novo Testamento, é uma

condição que remete a todos os crentes – não somente a alguns deles – e não

comporta formas de culto (2006: 19).

Os corpos dos defuntos cultuados são objetos do poder divino e como tal podem

manifestar milagres, curar doenças e defender o povo: eles possuem uma verdadeira potentia.

Este é, pois, um culto de relíquias, dos restos mortais daqueles que alcançaram a eternidade e

o ideal de perfeição, tornando-se modelos extraordinários. As relíquias permitiam a partilha

da graça pelos fiéis (BROWN, 1982: 89), mesmo porque é também ela uma concessão de

Deus (BROWN, 1982: p. 91). Esses objetos materializavam os espíritos invisíveis, cuja

3 A noção do Medievo como um “tempo desintegrado” está superada, sabemos, mas aqui vale a citação de

Vauchez para assinalar o período situado entre o declínio do Imperío Romano e a ascensão dos reinos

bárbaros. 4 Que, para Brown (1982: 6), pouco ajudam a explicar o fenômeno do culto à santidade no cristianismo

primitivo. 5 Lembremos que houve cristãos que condenavam esse culto aos mortos, enxergando nele uma prática não-cristã

(BROWN, 1982: 7).

Page 142: Anais 2011

139

praesentia era fundamental para o devoto, sempre em necessidade de estar junto de seu

protetor (BROWN, 1982: 88)6. A santidade se manifesta nessa presença, e por isso os mortos

foram progressivamente trazidos de volta para o interior das cidades, durante o medievo,

depois de um longo tempo fora delas.

Sendo sobrenaturais e capazes de acessar o céu, os santos eram, para os devotos, os

responsáveis também por restabelecer a confluência entre céu e terra e garantir a bondade e a

paz. Assim,

o homem de Deus [o santo] é, indissociavelmente, ao mesmo tempo um taumaturgo

e um profeta. Assim os santos, mortos ou vivos, constituíam para os fiéis o sacro

enquanto acessível, independente de qualquer mediação clerical, porque bastava,

para beneficiar-se da sua virtude, ir encontrá-los quando ainda estavam neste mundo

ou ir à sua tumba depois da sua morte (VAUCHEZ, 1988: 380).

Santo é, por conseguinte, o indivíduo cuja vida emula a de Cristo e, portanto, investe-

se dessa qualidade sobre-humana e deste papel cosmológico. A dimensão imitativa é decisiva

na significação da santidade.

2.1 Evolução da santidade

Todavia, Barcellona nos mostra como a santidade evoluiu ao longo do Medievo. Com

o fim da perseguição romana aos cristãos, no século III, gradativamente perdem sentido o

martírio e a “confissão”, os tipos de santidade mais amplamente vistos nos primeiros séculos;

os fiéis começam a procurar uma santidade não martirial (BARCELLONA, 2006: 44).

Ascendem primeiramente, durante os séculos IV e V, a figura do monge (BARCELLONA,

2006: 45-49), asceta rigoroso que busca nos ermos o isolamento necessário ao encontro com

Deus e ainda combate as paixões demoníacas exiladas nos desertos, ambas as experiências

anteriormente possibilitadas pelo martírio. Paralelamente ganha destaque também a figura do

bispo, fundador de igrejas, defensor e guia das cidades (BARCELLONA, 2006: 50-51). Esses

novos sujeitos trazem novos perfis de santidade e, consequentemente, de culto.

Tal percurso conecta-se com mutações significativas nas sociedades cristãs. A título

de exemplo, Barcellona indica como a vida monástica abriu espaço peculiar às mulheres

(ainda que o martírio também tenha assistido a importantes participações femininas), através

6 E por isso elas eram conduzidas em itinerância, para levar a praesentia – e, com ela, a concórdia (unanimitas) –

a todo lugar. Os peregrinos iam aonde as relíquias estavam, transformando a peregrinação numa “terapia da

distância” (BROWN, 1982: 88-89).

Page 143: Anais 2011

140

da instituição de monastérios exclusivamente para elas (BARCELLONA, 2006: 48). Os

monges representavam um tipo de santidade viva e que demonstrava poderes milagrosos e

sobrenaturais, para quem a morte não era condição de existência (BARCELLONA, 2006: 49).

A emergência dos bispos, por sua vez, parece exprimir a organização das comunidades

urbanas, durante a qual os bispos não apenas desenvolvem ações pastorais e caritativas como

adquirem funções administrativas e jurídicas, “presidindo ao assentamento das estruturas e

das tradições eclesiásticas, para entregá-las aos séculos seguintes” (BARCELLONA, 2006:

50)7.

Também Sofia Boesch Gajano (2006: 116-117) aponta como, entre os séculos VIII e

X, o mundo carolíngio expandiu-se em coincidência com o próprio cristianismo, período

durante o qual os bispos tornam-se verdadeiros senhores de terras, constituindo o bispado uma

pequena célula da divisão territorial do Império. Essa autora (2006: 121-123), inclusive,

demonstra como a reforma monástica iniciada pelo mosteiro de Cluny, a partir do século X,

significou outra mudança nas tipologias de santidade: para além daquela santidade

institucionalizada dos tempos carolíngios, passam a ser compreendidas também personalidade

leigas, principalmente reis e rainhas (2006: 124-127). Já os séculos XI e XII, em busca do

“mito da Igreja primitiva e da pobreza dos apóstolos” (GAJANO, 2006: 128-129), assiste à

emergência dos fundadores de ordens eclesiásticas, profundamente amparados nos ideais da

probreza evangélica, do apostolado itinerante e da fraternitas, e de santos cuja exemplaridade

girava em torno da moralidade, da cultura e da defesa da Igreja (GAJANO, 2006: 131)8. Esses

últimos perfis de santidade aparecem em contraposição àquela carolíngia, muito próxima do

poder temporal, em relação ao qual formula-se, no seio da Igreja, o ideal de libertas ecclesiae,

de emancipação do poder e da instituição espiritual.

Essa inovação, no entanto, não representa um mutacionismo radical, pois os tipos

antigos de santidade, dos bispos e dos monges, por exemplo, não perdem o seu lugar9. Gajano

prefere falar de uma “acumulação” e de uma “complementaridade” na história da santidade

medieval, em que “nada se destrói, mas tudo se estratifica em resposta às mutações da história

e da sensibilidade religiosa” (2006: 147). Assim,

7 Interessante notar que no Oriente os santos foram principalmente eremitas e monges, pois lá os bispos não

ganharam o poder que no Ocidente tiveram (BARCELLONA, 2006: 50). 8 Nesse momento, a atuação do papa – i.e., a primazia do bispado romano – nessa reforma da Igreja é tão

considerada que produz até mesmo um modelo específico de santidade para o pontífice, a qual Gajano nomeia

de “santidade de função” (2006: 133-135). 9 O martírio, por exemplo, recupera importância durante as Cruzadas ao Oriente (GAJANO, 2006: 135-136).

Page 144: Anais 2011

141

a história da santidade contribui de modo relevante à reconstrução do complexo

panorama do Ocidente, considerado no seu conjunto e nas suas diversas articulações,

que mesmo no período considerado tendem a adquirir identidades específicas do

ponto de vista político-territorial. Riqueza e variedade arriscavam criar desordem:

uma desordem não compatível com os endereços da Igreja saída da reforma. Com o

século XII certamente não diminuem as experimentações, mas aumenta o controle

institucional (2006: 147).

Tais observações são importantes não apenas para rompermos a tradicional oposição

historiográfica entre o mutacionismo e o anti-mutacionismo do ano 1000, mas também para

viabilizarmos uma percepção da santidade em estreita conexão com as oscilações da história.

Ademais, as transformações vistas na santidade medieval denunciam o fenômeno como não

estável, regular ou eterno; ao contrário, evidencia-se a sua plasticidade, que nos remete à

manipulação do fenômeno, conforme veremos a seguir.

3 O santo enquanto modelo

As santidades guardam em si um rol de qualidades que definem para elas uma

natureza comum e que as torna instrumentos de ação no campo religioso. Para Vauchez o

culto aos santos foi sempre um exemplo da fé que um povo tem em si próprio e nos seus

valores, um exemplo da sua vontade de superar-se. Disso entendemos que se um santo é

cultuado é porque se reconhece nele um conjunto de valores legados pelos seus predecessores

como concessão da perfeição humana. A sua figura é como uma espécie de abstração dos

valores apreciados pelo cristianismo e pelo grupo que o escolheu; ele funciona como um

“repositório”, um “guardião” e, em certas épocas, efetivamente como um “espelho” desses

valores.

Os valores que os santos guardam são as virtudes cristãs. Mas a apreensão do que

sejam essas virtudes está ligada a uma maneira de ver o mundo e se relacionar com ele. Não

nos cabe aqui, porém, esmiuçar quais sejam e como elas funcionam; basta-nos frisar a

observação de Vauchez (1988), para quem há duas maneiras de realizar essas virtudes: uma

passiva, de renúncia material e contemplação espiritual, e outra ativa, de empenho na luta

pelas causas do povo cristão. Ambas nos remetem diretamente a questões sociais, porque

definem o lugar de um grupo de indivíduos na sociedade e, no caso da última, porque se

envolve em problemas de ordem política e econômica: os bispos, por exemplo,

frequentemente foram santificados por suas obras e pela defesa de suas dioceses. Em

consequência, a atribuição dessas virtudes responde também a condições externas à própria

Page 145: Anais 2011

142

natureza do santo, as quais determinam a sua produção (i.e, o reconhecimento) e consumo

(i.e., o culto).

A santidade constitui-se, portanto, num modelo para a cristandade, porque sintetiza e

exalta os seus valores e porque apresenta caminhos ascéticos para que o homem atinja o ideal

proposto de perfeição. Mas o santo também é, antes de tudo, um modelo para a Igreja Católica

Romana. Para ela, o santo funciona como um modelo pedagógico; segundo Simon Ditchfield

as diversas formas de expressão da santidade e do culto, como a arte, as relíquias e as

procissões servem à Igreja para “estimular o coração e a alma” dos fiéis e consequentemente a

sua fidelidade e crença (DITCHFIELD, 2006: 271). Também Hippolyte Delehaye (1976) nos

mostra como a ciência hagiográfica produzia a literatura hagiográfica enquanto veículo que,

de um lado, continha a vida santa a ser cultuada e, do outro, transmitia ensinamentos

religiosos.

A princípio, caberia a todo homem cristão buscar essa santidade, imitando os mártires

e homens santos que o precederam. Peter Brown, no entanto, nos fornece outra leitura

interessante. Partindo da análise da obra de Santo Agostinho, ele sugere que a imitação da

santidade não era a única ou principal maneira que os cristãos tinham de exercer a

cristianidade: em certa medida, essa santidade também era inimitável em sua ascese

(especialmente os mártires, em seu sofrimento físico)10

e cabia ao devoto comum, apenas,

participar dela (BROWN, 2000: 1-2), por meio das festas que a representassem (ou sejam, a

trouxessem ao nível do público. BROWN, 2000: 16). Como o santo – naquele tempo, mártir –

imitava Cristo, a festa dedicada ao mártir era uma festa dedicada a Cristo e celebrava o seu

martírio e triunfo, permitindo que os cristãos dele participassem (BROWN, 2000: 9). Nisso

residia o poder de modelo desses mártires (BROWN, 2000: 10). Ademais, na passagem do

martírio para o patronato como o principal tipo de santidade, a festa torna-se a principal

maneira de requerer e celebrar a proteção do santo.

S. Agostinho, representante de uma elite social que desde a antiguidade evitava em

misturar-se às festas populares e criava seus próprios ritos – como a martirização privada de

seus mortos (BROWN, 2000: 13), se esforçou em pôr fim a essas festas, mas Brown sugere

que elas permaneceram, enquanto forma de culto à santidade, nos séculos posteriores

10

Um modelo de santidade imitável mais acessível emergirá nos séculos XIII e XIV, quando a ascese ideal

deixa de ser física para ser moral, expressa em “modelos de comportamento Cristão apropriado a uma

sociedade mais complexa e urbanizada” (BROWN, 2000: 21).

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143

(BROWN, 2000: 1)11

. Cremos que as análises de Vauchez e Rigon sobre as religiões cívicas

corroboram essa tese, afinal elas geralmente consistiam em cultos a santos negligenciados

pela Igreja e acreditados graças a seus milagres e à sua ligação com a comunidade local. De

fato, a teoria de Brown é que o dilema entre santidade imitável e santidade inimitável

(submetidas a “outras formas imaginativas de apropriação de seu poder”. BROWN, 2000: 23),

presente nos primórdios do cristianismo, perdurou durante toda a “Idade Média” (BROWN,

2000: 1, 23). Barcellona parece compartilhar da mesma opinião:

De fato, os mártires e os santos não mártires vieram a representar no imaginário

cristão a plena realização do ideal de santidade que originariamente se acreditava

próprio de todos os cristãos: talvez por isso mesmo é indicado a eles desenvolver

aquelas novas funções, à medida que os fiéis lhes sentissem mais próximos, pela sua

condição humana, em relação à figura do Salvador [...]. Em definitivo, para

compreender o fenômeno da afirmação e da fortuna do culto dos santos no mundo

tardoantigo, deve-se ter a devida consideração do desenvolvimento das formas de

piedade e de devoção, dos mais remotos pressupostos teológicos e das sucessivas

elaborações que os acompanharam e alimentaram (2006: 79-80).

Na formulação de uma santidade exemplar percebem-se, como dizíamos, as tentativas

de controle da ecclesia – ou seja, de controle social da cristandade – por parte da Igreja,

enquanto instituição e centro de poder (BROWN, 2000: 5-6). No estabelecimento de modelos

imitáveis entendemos a proposição de padrões comportamentais que visam não apenas à

edificação moral da ecclesia, mas também à sua conformação, em respeito à ortodoxia

católica, dos ponto de vista religioso e político. É preciso, então, compreender como essas

mensagens são transmitidas entre a Igreja e a sociedade.

4 Uma geografia do catolicismo: confrontos sociais e políticas institucionais

Já no Baixo Medievo, para perceber a dinâmica estabelecida entre a Igreja – com o seu

poder universalizante, que tenta regular a fé – e a sociedade – com seus poderes

particularizantes, interessados em administrar por si próprios sua devoção – consideramos

importante o olhar de Roberto Rusconi, que enxerga um confronto entre ambas, no qual os

movimentos produzidos por eventos como as revoluções e as reformas forçam “a redefinição

das formas e das modalidades da presença dos cristãos [perante a Igreja] e dos católicos em

particular” (RUSCONI, 2006: 331), motivando a eleição de vários santos novos.

11

A ortodoxia de s. Agostinho teve ecos muito menos amplos do que imaginamos, permitindo que grande parte

do Ocidente mantivesse festas santorais profundamente marcadas por características não-cristãs (BROWN,

2000: 14).

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144

Nesse período, a Igreja tenta controlar o reconhecimento ou a atribuição da santidade a

este ou àquele indivíduo. O racionamento dessa autorização torna a santidade, por assim

dizer, um “bem” escasso, que passa a ser objeto de trocas e disputas entre a sociedade e a

Igreja, nas quais esta tenta reagir às demandas e ações daquela e, ao mesmo tempo, mantê-la

sob o seu controle. Nesse sentido, os santos aparecem como vias de comunicação ou como

pontos de contato entre ambas as partes, e como tal eles respondem a questões de momento e

sofrem modificações em sua concepção, as quais dialogam com o contexto em que estão

inseridas. Essa perspectiva nos parece rica para apreendermos os vários perfis de santidade e

as mudanças que sofrem ao longo da história.

Ainda nesse caminho, outro conceito que nos parece bastante útil para avaliar esse tipo

de relação é o de geografia do catolicismo, apresentado por Ditchfield, que concebe uma

dinâmica entre centro e periferia ou elite e povo, aplicável a nível local, regional e nacional

(DITCHFIELD, 1996: 264-267). Ele nos permite perceber uma topografia dos grupos

produtores e consumidores da santidade e suas interações em torno dela:

se a devoção pelo santo desenvolvia, de um lado, um importante papel nas

reivindicações de identidade a nível municipal e regional, seja no caso de encontros

frontais entre facções internas, seja em relação a ameaças externas, do outro podia

também constituir uma importante “arma dos fracos” no arsenal daqueles aos quais

eram negadas formas convencionais de expressão do poder e da autoridade

(DITCHFIELD, 1996: 281).

A ideia de Rusconi nos leva ao que Ditchfield nomeia política de canonização, por

meio da qual a Igreja responde à sociedade e se adapta às mudanças do mundo, enfrentando

seus opositores (DITCHFIELD, 2006). Para ser reconhecido santo um personagem passa por

um longo e rigoroso procedimento de investigação que sem dúvida define de qualquer

maneira a sua figura, molda-a. Com efeito, os santos são, de um modo qualquer, modelos

construídos (mas não apenas isso), no sentido em que a instituição de um santo,

compreendendo a reconstituição da sua vida e a comprovação de suas virtudes, configura para

ele um certo perfil, sobre o qual não se pode esquecer a intencionalidade do reconhecimento.

Em suma, tanto a produção quanto o consumo da santidade podem ser “resultado de

uma acesa concorrência entre interpretações em competição, suportadas por tantas forças

sociais, eclesiásticas e laicas” (DITCHFIELD, 1996: 278). Novamente, lembramos que

Rusconi cunha este termo para o período pós-Concílio de Trento (1545-1563), quando o

moderno processo de canonização é oficializado, mas a perspectiva que ele fornece parece ser

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145

operacionalizável em momentos prévios, pois mesmo antes do Concílio o processo tinha seus

rigores e as próprias instruções que ele ratificou já eram praticadas na Itália.

Até o século XVI, quando essa política e a santidade que ela constrói sofrerão

transformações decisivas em decorrência das reformas no processo de canonização

determinadas pelo Concílio de Trento, a Idade Média assistirá, ao longo de seus séculos, a

uma lenta evolução do fenômeno da santidade rumo à uma institucionalização bastante

rigorosa, o que vemos como um indicativo da importância que ele assume em seu mundo. De

fato, podemos até mesmo ver o processo de canonização, com todos os seus rigores, como

uma outra face do processo inquisitorial: um tribunal investigativo que pretende estabelecer a

verdade por meio do testemunho, das evidências e da autoridade eclesiástica. Essa caminhada

reflete, sem dúvida, a trajetória histórica da Igreja e da própria cristandade.

5 Um caso exemplar

As ideias que até aqui apresentamos podem ser apercebidas, cremos, no caso de um

santo em específico – e de seu culto –, a saber, São Francisco de Assis (1182-1226), fundador

da Ordem dos Frades Menores. Não queremos aqui fazer um estudo muito aprofundado sobre

essa temática, mas vale a pena testar rapidamente nossos conceitos nele.

Como nos sugere Peter Brown, há muitas permanências nos significados e cultos das

santidades ao longo de todo o medievo (para não dizer além desse período). A história relativa

a s. Francisco parece comprová-las. S. Francisco viveu uma vida religiosa em busca da

emulação de Cristo e, consequentemente, a sua figura de santidade carregou consigo essa

inspiração, destinada aos seus seguidores e devotos, conforme o próprio título de uma de suas

inúmeras vidas nos indica: Speculum perfectionis. Para os frades mais fiéis à regra

franciscana, imitar o “santo pai” era indispensável, mas parece ter havido outras formas de

apropriação de seu poder (para usarmos as palavras de Brown). De fato, em uma certa

hagiografia franciscana (composta entre 1279 e 1319), lemos, no prólogo, quando o autor

(anônimo) apresenta o poverello:

Este é Francisco, em alma e corpo confinado na cruz, ardente de amor seráfico por

Deus, sedento, com Cristo, pela salvação de muitos. Ele mesmo, amante poverello

[pauperculus] da pobreza, guia da evangélica perfeição, professor e pregador da

verdade, luz e caminho da paz, para preparar os corações dos fiéis. Ele, imitador da

evangélica perfeição, seguidor do exemplo de Cristo, amável a Deus e imitável por

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146

nós, admirável por todos aqueles que vivem em humanidade (ACTUS..., 1999:

131)12

.

Nessa obra o autor conclama seus leitores a imitarem s. Francisco em sua ascese e

rigor espiritual. S. Francisco parece ser um representante exemplar da santidade medieval (ou

ao menos daquela que se consagrou na “Baixa Idade Média”), tanto pela vida que levou

quanto pela herança que deixou. O movimento que iniciou trouxe uma verdadeira novidade

para o cristianismo da época, pois procurou congregar, ao mesmo tempo, virtudes passivas e

ativas – na acepção de Vauchez –, tentando conciliar a vida contemplativa com a vida

predicativa13

. Cremos que a fonte aqui citada demonstra essa continuidade.

Ainda sobre este caso, Attilio Cadderi nos lembra que o “patrimônio” religioso

deixado por s. Francisco foi objeto de disputa, não apenas entre a Ordem dos Frades Menores

e o Vaticano, mas também entre facções internas à Ordem: desde a morte do fundador

diversas vidas foram redigidas sobre ele, cada uma conduzindo a um rumo o significado desse

patrimônio e, consequentemente, da “exemplaridade” do próprio grupo (CADDERI, 1999:

34). Gregório IX, por meio da Mira circa nos (1228), bula que canonizou s. Francisco, já

interpõe ele mesmo um direcionamento para a Ordem e seus seguidores: sugeria-se a

prioridade à predicação (ACCROCA, 2002: 17). Logo após o próprio papa encomenda a Vita

prima (1229) a Tomás de Celano, a ela seguindo-se algumas outras hagiografias sobre o

santo, compostas por vários autores. A partir do ministério-geral de Crescenzio de Iesi, que

conduz o Capítulo-Geral da Ordem em 1244, cresce a necessidade de produção de nova

documentação acerca do fundador, diante da crise institucional que viva a Ordem. Esse

processo culminou com o ministério de São Boaventura de Bagnoregio (1257-1273), quando

a Legenda maior (1263), de autoria do próprio ministro, é decretada fonte exclusiva e oficial

da vida do fundador, pelo Capítulo-Geral de 126614

.

Esse percurso mostra como a produção da santidade responde a conjunturas político-

sociais. O Vaticano tenta, ainda durante a vida de s. Francisco – quando Gregório IX ainda era

o cardeal Ugolino de Agnani, fez ao fundador dos minoritas a recomendação de que

seguissem a regra agostiniana, beneditina ou bernardina e evitassem elaborar outra

12

“Hic est franciscus carne et anima cruci confixus Serafico amore ardens in deum et sitiens cum christo

multitudinem salvandorum. Ipse pauperculus paupertatis amator evagnelice perfectionis dux et professor et

preco veritatis, lumen et via pacis, ad corda fidelium preparanda. Hic evagnelice perfectionis inmitator

exemplum sectatoribus christi, amabilis deo inmitabilis nobis, admirabilis, omnibus vitam degentibus in

humanis”. 13

Cf. MERLO, Grado Giovanni. Tra eremo e città. Studi su Francesco d’Assisi e sul francescanesimo

medievale. Assis: Porziuncola, 1991. 14

Para conferir essa trajetória, ver: CADDERI, 1999: 32-38.

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147

(ACCROCA, 2002: 15) – controlar os rumos da Ordem, e prossegue nesse esforço ao longo

do processo de elaboração das vidas do santo: vemos aí o poder universalizante do papado em

confronto com o poder particularizante de uma ordem eclesiástica. Na geografia integrada

pelos frades minoritas e pelo papado, uma verdadeira política de canonização – que, neste

caso, estende-se muito além da própria bula papal, desenrolando-se ao longo da composição

da vidas – se observa, com a qual o Vaticano tenta exercer o seu controle e, ao mesmo tempo,

a Ordem tenta apaziguar suas divergências internas e estabelecer o papel que cumprirá no

mundo social.

Até o século XIV, com o movimento dos “espirituais”, de Angelo Clareno (1247-

1337), Ubertino de Casale (1259-1329) e outros, os minoritas estarão discutindo sobre a

herança deixada por s. Francisco, e esses embates terão recíproca conexão com o quadro

sócio-político dos séculos XIII-XIV: em face da expansão do mundo urbano e da emergência,

no seio das comunas italianas, de novas classes sociais abastadas, de confrarias e famílias

poderosas o suficiente para financiar as atividades minoritas, os frades se dividirão entre

aqueles que se manterão mais próximos da Regra instituída pelo fundador e aqueles que se

dedicarão ao apostolado urbano, a serviço das comunidades citadinas – ou, mais

especificamente, de segmentos específicos dela15

. Para os “espirituais”, a vida citadina

comportava o grave risco de afastar o frade da regra franciscana, pois colocava-o à mercê do

centro de dinheiro e poder que eram as comunas italianas. A Ordem, na trilha da santidade do

fundador, não poderia, pois, seguir este caminho.

6 Conclusão

A definição de santidade que mobilizamos mostra como ela é concebida em função

daqueles que a ela se devotam. Observando-a, portanto, cremos ser possível atender à

sugestão de Pierre Delooz, que expusemos em nossa introdução. O papel que os santos

ocupam no mundo dos homens – mais precisamente, em cada grupo social – diz muito sobre

os grupos que os cultuam: a necessidade de protetores e de “amigos invisíveis”, por exemplo,

denuncia o momento de insegurança por que passa a cristandade, no fim do Império Romano.

Os vários tipos de santidade que aparecem ao longo do Medievo são, sem dúvida,

reflexos das transformações sucessivas pelas quais ele passa. Eles nos indiciam as questões

15

A esse respeito, ver MERLO, op. cit., e CAMPAGNOLA, Stanislao da. Francesco e francescanesimo nella

società dei secoli XIII-XIV. Assis: Porziuncola, 1999.

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sociais e históricas pelas quais os diversos grupos cristãos se embateram. Enquanto objeto de

poder, o santo inseria-se em querelas e políticas as mais distintas possíveis, sendo ele tanto

produto quanto produtor dessas situações.

Para finalmente encerrar, citamos novamente Delooz: “a santidade parece ser uma

importante estrada de acesso ao conhecimento das sociedades religiosas, ao conhecimento da

sociabilidade e da energética que forma a coesão e o dinamismo dos grupos sociais” (1976: p.

257). Esperamos, portanto, ter explicitado aqui algumas ferramentas que dêem suporte ao

percorrer desse caminho.

REFERÊNCIAS

ACCROCCA, Felice. Dall’alternanza all’alternativa eremo e città nel primo secolo

dell’Ordine francescano: una rivitazione attraverso gli scritti di Francesco e le fonti

agiografiche. Via Spiritus: Revista de História da Espiritualidade e do Sentimento Religioso.

Ano 9. Porto: Universidade do Porto; Faculdade de Letras do Porto; Instituto de Cultura

Portuguesa; Centro Inter-Universitário de História da Espiritualidade, 2002. p. 7-60.

Disponível : http://ler.letras.up.pt/site/default.aspx?qry=id04id1146id2165&sum=sim. Acesso

em: 15 mai 2012.

ACTUS Beati Francisci in Valle Reatina. Testo critico, introduzione, traduzione italiana a

fronte e note a cura di Attilio Cadderi. Assis: Porziuncola, 1999. Tradução do latim nossa.

BARCELLONA, Francesco Scorza. Le origini. In: ______ & all. Storia della santità nel

cristianesimo occidentale. Roma: Viella, 2006. Tradução do italiano nossa.

BROWN, Peter. Enjoying the saints in late antiquity. In: Early Medieval Europe. 9 (1).

Oxford: Blackwell, 2000. p. 1-24.

______. The cult of the saints: its rise and function in latin christianity. Chicago: University

of Chicago, 1982. Tradução do inglês nossa.

CADDERI, Atillio. Introduzione. In: ACTUS Beati Francisci in Valle Reatina. Assis:

Porziuncola, 1999. Tradução do italiano nossa.

DELEHAYE, H. Problemi di metodo agiografico: le coordinate agiografiche e le narrazioni.

In: GAJANO, Sofia Boesch (org.). Agiografia altomedioevale. Bologna: Società Editrice di

Mulino, 1976. Tradução do italiano nossa.

DELOOZ, Pierre. Per uno studio sociologico della santità. In: GAJANO, S.B (org).

Agiografia Altomedioevale. Bologna: Società Editrice di Mulino, 1976. Tradução do italiano

nossa.

DITCHFIELD, S. Il mondo della Riforma e della Controriforma. In: BARCELLONA,

Francesco Scorza & all. Storia della santità nel cristianesimo occidentale. Roma: Viella,

2006. Tradução do italiano nossa.

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GAJANO, Sofia Boesch. La strutturazione della cristianità occidentale. In: BARCELLONA,

Francesco Scorza & all. Storia della santità nel cristianesimo occidentale. Roma: Viella,

2006. Tradução do italiano nossa.

RUSCONI, Roberto. Una Chiesa a confronto con la società. In: BARCELLONA, Francesco

Scorza & all. Storia della santità nel cristianesimo occidentale. Roma: Viella, 2006.

Tradução do italiano nossa.

VAUCHEZ, A. Il santo. In: LE GOFF, Jacques (org). L’uomo medievale. Roma-Bari:

Laterza, 1988. Tradução do italiano nossa.

Page 153: Anais 2011

150

SIR GAWAIN AND THE GREEN KNIGHT E A GENTRY INGLESA NO SÉCULO XV

Vinicius Marino Carvalho1

O poema anônimo Sir Gawain and the Green Knight (SGGK, em citações futuras) é

um título bastante conhecido nos países anglófonos. Tido como “a jóia da literatura inglesa na

Idade Média”, por Gaston Paris, no século XIX (1888: 73), o legado de SGGK pode ser

medido pela sua frequente menção em manuais sobre a língua inglesa, pela sua presença na

grade curricular de escolas de nível secundário e pela vasta bibliografia disponível a seu

respeito—e continuamente realimentada com novos trabalhos—em áreas como crítica

literária, linguística e filologia. Entender historicamente este poema, entretanto, é uma tarefa

difícil, ainda não completamente solucionada nos dias de hoje, quase duzentos anos depois de

ter sido editado pela primeira vez2. SGGK é uma obra de autoria anônima, sobre a qual se

desconhece o contexto de produção e sua transmissão ao longo do tempo. Evidências acerca

de sua datação, autoria e propósito são escassas, e os estudos que se propuseram a desvendá-

los resultaram, de maneira geral, em hipóteses circunstanciais, impossíveis de serem

corroboradas. Neste trabalho almejo apresentar as dificuldades que se impõem à abordagem

histórica desta documentação e propor uma reflexão acerca de como podem ser desafiadas.

Em razão da natureza do trabalho, optei por sacrificar profundidade e enfatizar o processo

pelo qual ele passou, de sua formulação ao estágio atual.

SGGK sobrevive em um único manuscrito, o Cotton Nero A.x. A mais antiga menção

a este documento provém do colecionador de livros Henry Savile of Banke, nos anos 1610, e

sabe-se que integrou a coleção do antiquarista Robert Cotton, em 1621, posteriormente

integrada ao Museu Britânico (Edwards, 1997: 198). Não existem evidências a respeito de

seu paradeiro antes disso.Trata-se de um códice composto, contendo, além de SGGK, três

outros poemas: Pearl, Patience e Cleanness, nenhum, ao contrário de SGGK, devotado ao

tema da cavalaria. Esta diferença de gêneros já foi levantada como um argumento de que o

Cotton Nero A.x. tratar-se-ia de uma compilação de quatro textos de autores diferentes

(ANDREW, 1997: 26). De uma maneira geral, convencionou-se enquadrá-los como obra de

um mesmo autor anônimo, chamado Poeta de Gawain ou, em alguns casos, Poeta de Pearl.

1 Graduando em História na Universidade de São Paulo (USP). Bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq.

Email: [email protected]. 2 Por Frederic Madden (1829).

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151

O dialeto no qual SGGK está escrito foi rastreado à região da West Midland, próximo

ao norte do País de Gales, muito embora, como apontou H.N. Duggan, não é negligenciável a

possibilidade do poema ter sido transcrito a um outro dialeto por um de seus copistas. (1997:

221-222) De qualquer maneira, o verso aliterativo no qual SGGK e os demais poemas de seu

manuscrito foram escritos está também presente em outras obras produzidas na região – uma

tendência literária que Thorlac Turville-Petre batizou de “Renascimento Aliterativo” (1977).

Ademais, o enredo de SGGK tem como cenário locações reconhecidas da West Midland,

como a ilha de Anglesay e a floresta do Wirral:

Até ele se aproximar do Norte de Gales.

Todas as ilhas de Anglesay ele tinha em seu lado esquerdo,

E prosseguiu para além do vau pelo promontório,

Próximo a Holyhead, até alcançar novamente a margem

Na floresta do Wirral3.

Estas evidências levaram a um consenso na aceitação da West Midland como local de

produção do poema – ou, no mais incerto dos casos, como região onde quem quer que o tenha

patrocinado possuísse interesses. O enquadramento de SGGK dentro de sua tradição estilística

(a poesia aliterativa), e análises feitas sobre seu léxico e sobre as 12 ilustrações que

acompanham o manuscrito sugerem o último quarto do século XIV – reinado de Ricardo II –

como seu período de produção (TOLKIEN; GORDON, 1967: xxv-xxvi). Tais conclusões

levaram a maior parte dos estudiosos que tentaram desvendar a autoria do poema a tomar este

recorte espaço-temporal como ponto de partida—visão cristalizada nos anos 1990 pela

publicação do guia de referência A Companion to the Gawain-Poet. No entanto, autores como

W.G. Cooke (1989) e Francis Ingledew (2006) questionaram essas balizas, fazendo um caso

forte para uma autoria provável do poema algumas décadas antes, entre 1330 e 1360.

Ingledew é particularmente vocal em sua oposição ao Companion, afirmando que seu

endossamento da hipótese ricardiana engessa de certa forma a historiografia , dissuadindo a

iniciativa de explorar relações do poema com a época Eduardiana – 1330 a 1377 – muito

menos trabalhada no âmbito da literatura em médio inglês (2006: 7).

Autores como Edward Wilson sustentam a tese de que o poema foi encomendado pela

gentry, a pequena aristocracia, da West Midland (1979); Cooke, Boulton (1999) e Carruthers

(2001) associam-no a grandes magnatas com interesses na região Michael Bennett acredita

3 “Til þat he neȝed ful neghe into þe Norþe Walez./Alle þe iles of Anglesay on lyft half he haldez,/And farez

ouer þe fordez by þe forlondez,/Ouer at þe Holy Hede, til he hade eft bonk/In þe wyldrenesse of Wyrale.”

(TOLKIEN; GORDON, 1967: 20).

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que o poeta tivesse vínculos com a corte de Ricardo II (1979). A partir desse aparente beco

sem saída, estudei a possibilidade de uma análise que ultrapassasse o contexto de produção de

SGGK, tomando como objeto a circulação do poema num período posterior ao que é

normalmente datado. Esta idéia surgiu de algumas observações.

A historiografia sobre cultura cavaleiresca tem feito um caso forte, nas últimas

décadas, a favor da difusão dos valores e práticas corteses para além da aristocracia. O culto a

ideais em sua origem associados à nobreza assim como hábitos como a produção de romances

de cavalaria, foram enxergados em círculos variados, englobando até mesmo mercadores e

soldados.(STROUD, 1976: 324-325). Tome-se por exemplo as obras editadas por William

Caxton, no século XV. Seus prólogos e epílogos mostram que o editor estava ciente desta

pluralidade, e buscava tornar os livros que vendia atrativos para um público subaristocrático.

Em relação ao Play of Chess, um manual a respeito do jogo de xadrez, diz ele ser “cheio de

sabedoria edificante e necessário a todos os estados e posições”4. Sobre o Feats of Arms, de

Cristina de Pisano, Caxton discorre da seguinte forma:

E desejou e me pediu para traduzir este livro e transcrevê-lo ao nosso inglês e língua

natural, e imprimí-lo para o fim de que todos os gentylman nascidos para as armas e

todos os tipos de homens de guerra; capitães, soldados, abastecedores e todos os

outros, possam ter conhecimento de como eles devem se comportar nos atos de

guerra [...]. E, certamente, na minha opinião este é um livro tão necessário e

essencial quanto um livro pode ser para todos os estados, altos e baixos (BLAKE,

1973: 81-82)5.

O prólogo ao De Senectute, de Cícero, segue por linha similares:

E este livro não é essencial nem tampouco conveniente para os homens rudes e

simples que não entendem de ciência ou inteligência e que portanto não tenham

ouvido sobre o nobre governo e a nobre prudência dos romanos, mas para os nobres,

sábios e grandes senhores, gentlemen e mercadores que tiverem visto e diariamente

se ocupam em assuntos tocantes ao bem público (BLAKE, 1973: 121)6.

4 “Wherfore bycause thys sayd book is ful of holsom wysedom and requisite unto every astate and degree, I have

purposed to enprynte it (…)” (BLAKE, 1973: 88). 5 “[…] and desired and wylled me to trasnlate this said boke and reduce it into our English and natural tonge,

and to put it in enprynte to th’ende that every gentylman born to armes and all manere men of were, captayns,

souldiours, vytayllers and all other, shold have knowledge how they ought to behave theym in the fayttes of

warre and of bataylle […] and certain in myn oppinyon it is as necessary a boke and as requisite as ony may

be for every estate hye and lowe”. 6 “And this book is not requysyte ne eke convenient for every rude and simple man whiche understandeth not of

science ne connyng and for suche as have not herde of the noble polycye and prudence of the Romaynes, but

for noble, wyse and grete lords, gentilmen and marchauntes that have seen and dayly ben occupied in maters

towchyng the publyqye weal […]”.

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Com encadernações mais modestas, muitas vezes contendo miscelâneas de diversos

textos, tomos como esses editados por Caxon circulavam sobretudo dentro do difuso grupo

inserido entre a alta nobreza e os não aristocratas, a gentry. De fato, o caráter humilde do

Cotton Nero A.x, com suas pequenas proporções e ilustrações grosseiras, chamou a atenção

de mais de um autor ,e isto já foi sugerido como sinal de que foi feito para uma audiência no

seio da gentry, ou quiçá pela própria gentry (Youngs, 2005: 127; Edwards, 1997: 218).

Na sua tentativa de desvendar a autoria de SGGK, alguns historiadores se depararam

com a existência de versões posteriores do poema. The Green Knight, presente em um

manuscrito do século XVII, mas cuja produção foi estimada em duzentos anos antes, é uma

destas versões. Edward Wilson chama a atenção para uma referência direta, no texto, ao

castelo de Hooton, posse dos Stanley de Hooton, família da gentry da West Midland que

ascendeu à proeminência ao longo do século XV (1979: 314). O interesse dos Stanley pela

literatura é corroborado por um outro manuscrito datado em 1450, o qual se acredita ter

pertencido à família (1979: 308). Isto é tido por Wilson como sugestão de que os Stanley

teriam conhecido SGGK – quando não terem estado diretamente envolvidos em sua produção.

Uma outra versão posterior foi escrita pelo gentleman Humphrey Newton – 1466 a 1536 –

(YOUNGS, 2005: 124; EDWARDS, 1997: 198) tornando plausível a hipótese de que outros

gentlemen da região também o conhecessem. Uma terceira menção está presente em um

inventário do gentleman Sir John Paston II, de Norfolk, redigido possivelmente ao final do

século XV:

O Inventário de livros em inglês de Joh[n Paston] [...] 2. Do mesmo modo, um livro

de Troilo que William Bra... [ilegível] teve por quase dez anos e emprestou a Da...

Wingfield [?], e aqui eu o vi; adeus 3. Do mesmo modo, um livro negro com a

Lenda de Lad... [ilegível] saunce Mercye, o Parlamento dos Pá[ssaros]... [ilegível]

Glasse, Palatyse e Scitacus, O Med... [ilegível] O Cavaleiro Verde, adeus – 4. Do

mesmo modo, um livro impresso do Jogo de [xadrez] […] (DAVIS, 1971, grifo

nosso)7.

É preciso resistir à tentação de determinar estes “Cavaleiros Verdes” ao SGGK que

nos resta em mãos. Nada garante que a audiência desses poemas tenha entrado em contato

com a mesma versão presente no Cotton Nero A.x., o que não muda o fato de que ao menos o

7 “The Inventory off Englysshe bokis off Joh... […] 1. A boke had off myn ostesse at þe George ... [ilegível] off þe

Dethe off Arthur begynyng at Cassab... [ilegível] Warwyk, Kyng Richard Cure delyon, a croni... [ilegível] to

Edwarde þe iij, pric-- 2. Item, a boke off Troylus whyche William Bra... [ilegível] hathe hadde neer x yer and

lent it to Da... [ilegível] Wyngfelde, et jbi ego vidi; valet3.Item, a blak boke wyth The Legende off Lad...

[ilegível] saunce Mercye, þe Parlement off Byr... [ilegível] Glasse, Palatyse and Scitacus, The Med...

[ilegível] the Greene Knyght, valet- 4. Item, a boke jn preente off þe Pleye of þe... [ilegível]”.

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154

enredo circulou temporal e espacialmente ao longo de cem anos. Creio que é plausível,

portanto, supor que o poema, seja nesta versão, seja em outras presentes em cópias perdidas,

circulou entre a gentry num período posterior ao comumente atribuído à sua escrita. É

evidente que não nos livraríamos da circunstancialidade, mas acredito que ao saírmos da

questão de como e por quê SGGK foi escrito para a análise da viabilidade da apropriação do

poema pela gentry no século XV é possível elucidar uma série de dificuldades metodológicas.

Em primeiro lugar, poderíamos driblar a incerteza acerca de sua autoria e patrocínio.

Como já foi exposto nos exemplos de William Caxton, mesmo um texto originalmente escrito

para uma audiência aristocrática ou real podia muito bem ser disponibilizado para a gentry—

como muitos deles de fato o foram8. A condição modesta do Cotton Nero A.x. parece indicar

um volume feito para um público subaristocrático, diferente dos tomos mais luxuosos, caros

demais para todos senão os magnatas. Romances de cavalaria eram populares fora dos

círculos imediatamente nobres. Independente de seu contexto original de produção, é

plausível que a audiência de SGGK tenha se expandido ao longo das décadas.

Pode-se driblar também o problema da autoria comum dos quatro textos do Cotton

Nero A.x. Como também já foi mostrado, os livros feitos para a gentry muitas vezes

continham miscelâneas de textos de gêneros diferentes—montadas propositalmente para

reduzir os custos do volume final (RADULESCU, 2005: 109). Determinar se os quatro textos

foram escritos pelo mesmo autor torna-se, portanto irrelevante. O que passa importar é a

existência de um códice composto—pelo editor, com base em interesses comuns de seus

compradores, ou pela própria família que o encomendara—e o que ele pode revelar sobre os

hábitos de leitura da gentry.

Penso, portanto, que seguir esta proposta, a que pese suas limitações, pode oferecer

insights sobre o caráter polivalente das novelas de cavalaria no período, capazes de, extraídos

do cenário aristocrático strictu sensu, serem utilizados na estruturação de uma ideologia

cavaleiresca socialmente muito mais difusa.

Antes de prosseguir, todavia, acho relevante fazer uma breve problematização sobre o

que se entende por gentry. A atribuição de “pequena aristocracia” ou “meio-termo” entre

aristocracia e o restante da sociedade fazem pouca justiça à sua complexidade. Alguns

autores, como Peter Coss, encaram a gentry como parte da nobreza, segregada dos grandes

magnatas por uma crescente estratificação da aristocracia a partir dos anos 1340 (1995: 15-

16). Outros, sem necessariamente negar esta explicação, acreditam que a gentry se trata de

8 Exemplos incluem o De Re Militari, de Vegécio, e a prosa Brut (RADULESCU, 2005: 110-111).

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uma ressignificação de grupos subaristocráticos, cujo papel social se alterou sobretudo após a

Peste Negra. Phillipa Maddern (2005: 23-26) e Maurice Keen (2005a: 39) são dessa opinião.

Independente do caso, os estudos caracterizam a gentry como um aglomerado plural e de

fronteiras fluidas, impossível de ser mapeado com base apenas em privilégios legais e posses

materiais. O próprio termo gentry é uma construção posterior, e na documentação noções

como gentility e seu adjetivo, gentle são usados de forma aparentemente arbitrária. Em

SGGK, por exemplo, gentyle é utilizado para se referir a Gawain, e aos cavaleiros da Távola

Redonda, mas também a Jesus Cristo, São Julião e à alegria do dia de São João9.

Para Philippa Maddern, em decorrência do caráter incerto da gentry, o modo de vida

de seus membros seria pautado pela performance, uma vez que viviam num mundo no qual

seu status social era continuamente testado e negociado por pares e vizinhos dentro de suas

comunidades (2005: 28). Para ela, de fato, ser gentle dependia em último caso de um

reconhecimento interno mútuo, ou seja, ser tido como membro do grupo pelos demais

integrantes. Ter-se-ia presenciado, para a autora, a difusão de uma vasta literatura dedicada à

definição dos valores associados à gentility, de forma a facilitar a tarefa (teoricamente inata)

de identificar homens gentle dentre os indignos ao círculo. Romances de cavalaria, como

SGGK, poderiam cumprir esta exata função. Seus heróis ofereciam modelos ideais de conduta

passíveis de serem mimetizados. As novas leituras levariam a cabo uma ressignificação das

obras, adaptando-as à sua realidade e interesses.

Não é de se espantar que textos populares entre a gentry tenham abordado as relações

da linhagem com a virtude individual10

. Esta discussão está presente logo no início de SGGK,

e de certa forma pauta toda a narrativa. Gawain não é aqui o guerreiro renomado que sua

presença assídua nos textos arturianos sugere, mas um cavaleiro inexperiente a enfrentar sua

primeira aventura.

Sua entrada na história é particularmente ilustrativa. No início da narrativa, a Távola

Redonda está reunida no dia de Ano Novo, quando recebe a visita inesperada de um cavaleiro

9 “'We! Lorde,' quoþ þe gentyle knyȝt” (TOLKIEN e GORDON, 1967: 18); “Þenne hatz he hendly of his helme,

and heȝly he þonkez/Jesus and sayn Gilyan, þat gentyle ar boþe” (1967: 22); “Þe ioye of sayn Jonez day

watz gentyle to here” (TOLKIEN e GORDON, 1967: 29). 10

A discussão está presente em The Tale of Sir Gareth, parte do Le Morte D’Arthur, de Sir Thomas Malory,

bastante difundido entre a gentry (RADULESCU, 2005: 106) Está também presente em três tratados de

cavalaria de grande popularidade no período, o anônimo Ordene de Chevalerie, o Libre de l’orde de

cavalleria, de Ramon Lull e o Livre de chevalerie de Geoffroi de Charny. (INGLEDEW, 2006: 165-176). A

própria existência de um gênero discursivo que se propunha a ensinar a conduta adequada deixa entrever que,

para seus autores, a linhagem não era vista como suficiente para um virtuoso. Por fim, dois autores analisados

por Keen, Bartolus de Sassoferato e Olivier de la Marche, parecem ter eles mesmos tecido comentários a este

respeito. (KEEN, 2005b: 148-150).

Page 159: Anais 2011

156

de pele, roupas e adereços verdes. Ciente da fama da Távola, a mais virtuosa e valorosa

companhia do mundo11

, o cavaleiro propõe um desafio, segundo o qual um dos homens de

Arthur deve golpeá-lo com um machado. Um ano depois, o mesmo homem deverá

reencontrá-lo para que o golpe seja revidado. Ao deparar-se com o silêncio da Távola

Redonda, o Cavaleiro Verde zomba da companhia, perguntando onde está o orgulho, a

ferocidade e a ira que tanto se atribuíam a ela12

. O próprio Arthur, então, aceita o desafio, mas

é interrompido por Gawain, o qual se oferece para fazê-lo em seu lugar. Gawain alega que é o

mais fraco da Távola, de corpo e mente, e que não possuía nenhuma virtude além do sangue

de Arthur em suas veias13

.

Gawain possui linhagem, mas não virtude individual. Como parte de uma companhia

distinguida pela proeza marcial—como a percepção do cavaleiro verde parece indicar—o ser

virtuoso aponta, em última análise, para o pertencimento dentro de uma sociedade no qual

esta virtude é cultivada. Curiosamente, o desafio do cavaleiro verde não se endereça ao

indivíduo, mas à Távola Redonda como um todo, e isto é demonstrado em sua desilusão

frente à ausência de iniciativa dos cavaleiros e no final do poema em todas as letras, quando

ele revela o objetivo final de seu desafio; isto é, testar a companhia de cavaleiros a mando de

Morgana14

. A concepção da virtude enquanto algo de aprendizado restrito que separa uma

elite distinta do resto não é exclusiva da gentry – antes disso, ela talvez seja

fundamentalmente aristocrática, impregnada na própria etimologia do termo. Parece-me

plausível, no entanto, que um poema que se inicia com esta afirmação e que se desenrola no

sentido de uma demonstração da virtude aos olhos de um cavaleiro inexperiente ansioso de

conhecê-la teria grande apelo a um público cuja identidade estava em processo de construção

(KEEN, 2005b: 28).

Estas reflexões preliminares cumprem a função de introduzir algumas das bases de

debate. É preciso, em primeiro lugar, analisar a recorrência desses qualificativos de virtude no

decorrer da narrativa, e averiguar a forma como são discursivamente trabalhados. É preciso,

também, analisar se este uso é condizente ou discrepante com o feito por outros documentos,

dentro e fora do âmbito da gentry. Para isso, acredito que os já citados textos de William

11

“Þe wiȝtest and þe worþyest of þe worldes kynde” (TOLKIEN;GORDON, 1967: 8). 12

“Where is now your sourquydrye and your conquestes,/Your gryndellayk and your greme, and your grete

wordes?” (TOLKIEN; GORDON, 1967: 9). 13

“I am þe wakkest, I wot, and of wit feeblest,[…] No bounté bot your blod I in my bodé knowe”

(TOLKIEN;GORDON, 1967: 10-11). 14

“'Ho wayned me vpon þis wyse to your wynne halle/For to assay þe surquidré, ȝif hit soth were/ Þat rennes of

þe grete renoun of þe Rounde Table;” (TOLKIEN; GORDON, 1967: 67-68).

Page 160: Anais 2011

157

Caxton serão de grande valia, uma vez que carregam a intencionalidade de tornar certas obras

atrativas a uma vasta gama de grupos sociais.

Quando comecei esta investigação, propus-me, em minhas próprias palavras, estudar

uma ideologia não só amplamente cavaleiresca, mas “pontualmente gentle”. Hoje, percebo

que meus pressupostos sofriam de um sério problema. Não é exatamente possível falar de

uma ideologia da gentry. Como bem apontou Raluca Radulescu não existia uma “propriedade

intelectual exclusiva” da gentry (RADULESCU, 2003: 39). Não só muitos desses valores

eram também cultuados entre os grandes magnatas, mas a difusão deles, em livros como os de

Caxton, não obedecia aos limites de um grupo específico. Um estudo sobre o sentido social

dessa forma de literatura deve levar em conta essa maleabilidade.

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Page 162: Anais 2011

159

LEI E DIREITO NA ITÁLIA NO SÉCULO XIV

Letícia Dias Schirm1

Existe um número variado de fontes que podem ser utilizadas pelos historiadores para o

estudo e a compreensão da História Medieval. A presente comunicação tem por objetivo demonstrar

uma dessas possibilidades: a utilização das compilações jurídicas, especialmente aquelas elaboradas

no século XIV, momento no qual são produzidas grandes compêndios e comentários a cerca do

Corpus Iuris Civilis. Para tanto, optou-se por dividir essa apresentação em três momentos: um

primeiro sobre as leis e o direito, seguido da apresentação de um jurista do tardo-medievo, Bartolus

da Sassoferrato (1314-1357), e por fim a discussão sobre dominium desenvolvida por esse autor.

1 Lei e direito

Tradicionalmente, a pesquisa acerca da história chamada jurídica foi entregue às mãos de

eruditos, em grande medida, juristas que colecionavam e catalogavam fontes, sem, entretanto,

aplicarem uma metodologia adequada do ponto de vista historiográfico (GROSSI, 2004: 11). Havia

dificuldades, muitas vezes de ordem prática, por parte dos historiadores que os afastava das

pesquisas sobre a normatividade jurídica. 2 Paolo Grossi (2004), propõe que o estudo da história do

direito seja entregue às mãos de historiadores, que se especializem nessa disciplina, melhor

qualificados para valorizar sua historicidade, compreender as sociedades, nas quais vigoravam, e

desvelar as complexidades, simplificações e relativizações absolutas presentes nos trabalhos

produzidos anteriormente. Nesse sentido, pode-se dizer que se percebe uma espécie de reinserção do

direito no fazer da história.

Essas inovações modificaram a forma de compreender e estudar o direito. Se anteriormente

havia uma tendência em considerá-lo como um mero instrumento do poder3, a disciplina

transformou-se em ordenadora da coletividade, denotando a história jurídica uma nova função, mais

crítica, na formação não apenas do jurista atual, como também do historiador que se dedica ao

estudo de qualquer período histórico.

1 Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais – [email protected]. 2 Segundo Chiffoleau (2002: 334): “[...] os historiadores de nossos países legalistas por muito tempo subestimaram a parte

do julgamento, da disputa e do debate, do acordo e da casuística, da jurisprudência, enfim do que se poderia chamar de

‘justiciabilidade’ no funcionamento social.” 3 O termo poder deve ser compreendido no sentido de autoridade civil. Entretanto, autoridade não está relacionada ao

conceito contemporâneo desse termo e sim a uma jurisdição ou um domínio civil.

Page 163: Anais 2011

160

Indubitavelmente, o direito nunca flutua na história, ao contrário, tende sempre a encarnar-

se nela e a compenetrar-se em si mesmo; porém, existe aqui uma grande pluralidade de

forças que, circulando livremente na sociedade, orientam-no, forças espirituais, culturais,

econômicas, todas as forças que livremente circulam no social. O social e o jurídico tendem

a se fundir, e é impensável uma dimensão jurídica vista como mundo de formas puras ou

de simples comandos separados por uma substância social (GROSSI, 2004: 32).

Partindo desse pressuposto, que o direito e a sociedade no qual é produzido possuem uma

relação intrínseca, pode-se concluir, como afirma Pierre Bourdieu, que se o direito “[...] faz o mundo

social [...]”, ele também é evidentemente “[...] feito por ele [...]” (BOURDIEU apud

CHIFFOLEAU, 2002: 333). Nesse sentido, o estudo da produção jurídica da sociedade seria uma

tentativa de compreender a sociedade que produz as leis.

Para os interessados em pesquisar o direito, especialmente o medieval, são necessários

alguns cuidados básicos. Jacques Chiffoleau (2002) destaca três deles: impedir a coisificação dessa

instituição, evitar o risco de tudo julgar segundo as concepções contemporâneas e ocidentais dessa

disciplina, além de procurar não enquadrar a história das leis em uma ampla história progressista do

espírito humano. Para tentar evitar tais problemas, recorreu-se aos ensinamentos de Paolo Grossi,

condensados no trabalho Justiça como lei, lei como justiça? Observações de um historiador do

direito (2004), no qual há uma preocupação em estabelecer os conceitos de direito e justiça para os

medievais. Ao longo do texto, o autor aponta algumas características do universo medievo,

atendendo assim a um dos cuidados propostos por Jacques Chifoleau. Paolo Grossi (2004) acredita

que o direito deve ser considerado como a estrutura fundamentadora da sociedade, sendo a

dimensão jurídica digna de respeito, principalmente durante a Idade Média. Estaria localizado entre

os fins supremos da sociedade civil, teorizando, assim, o poder político não como consumado, mas

sim dotado de um projeto que procura compreender as totalidades.

Em outros termos, o poder político não pretende controlar a integralidade do fenômeno

social, ou melhor, distingue-se por uma indiferença substancial em relação àquelas zonas –

amplas, ou mesmo amplíssimas – do social que não interferem diretamente no governo da

coisa pública (GROSSI, 2004: 28-29).

E, nesse momento, o direito aparece não como uma vontade, mas como uma realidade

histórica e logicamente antecedente, misturada e incorporada ao social. Paolo Grossi (2004) acredita

que o direito é anterior a consolidação do poder político na cidade, repousando em estratos

profundos e duradouros da sociedade:

Page 164: Anais 2011

161

O direito é um fenômeno primordial e radical da sociedade; para subsistir, não espera os

coágulos históricos ligados ao desenvolvimento humano e representados pelas diferentes

formas de regulamentação pública. Ao contrário, para ele é terreno necessário e suficiente

as flexíveis organizações comunitárias em que o social se ordena e que ainda não se

fundamentam na pólis, mas sim no sangue, na fé religiosa, na profissão, na solidariedade

cooperativa, na colaboração econômica (GROSSI, 2004: 30-31).

Assim, o direito não poderia ser considerado como porta-voz do poder e não carregaria em

si sua marca. Existiria, obviamente, uma parte do jurídico ligada àqueles que detêm o poder, mas o

direito por excelência, aquele que regulamenta a vida cotidiana, surgiria direta e imediatamente do

social, especialmente dos costumes. Portanto, se o direito era concebido como interpretação,

consentindo na atividade da comunidade de juristas que lia os sinais e construía um direito

medieval, formava-se direta e imediatamente pela razão da comunidade política na qual era

produzido, conservando em suas proposições traços dessas sociedades.

Convém ressaltar que, ao contrário do que é comumente aceito, não se pode afirmar que as

práticas jurídicas romanas haviam desaparecido totalmente. De fato, graças à atuação do Papado e a

consolidação do Direito Canônico evitou-se que o conteúdo e a forma dessas ordenações fossem

esquecidas4. A partir dos séculos XI e XII, para Grossi (1996: 162-163), ocorreu uma espécie de

“redescobrimento” do Direito Romano “autêntico”, com textos filologicamente apurados.

Depositário de um conhecimento técnico complexo, mas ainda útil, seu vocabulário específico

passou a ser usado para legitimar e normatizar as práticas sociais vigentes5. “Em fins do século XI, o

código civil romano passou a servir como a base em que se enquadravam a teoria e a prática da lei

por todo o Santo Império Romano” (SKINNER, 1996: 29). A legislação seria assim reconduzida ao

centro dos sistemas normativos, o “[...] direito em geral, e o direito canônico em particular,

confrontado como direito romano oportunamente reencontrado, interpretado, tratado

escolasticamente, é o principal instrumento desta transformação.” (CHIFFOLEAU, 2002, v. 1: 343)

O Direito Romano de Justiniano apresentava-se como auctoritas: era um depósito normativo, de

linguagem, técnicas e esquemas ordenadores específicos e precisos, e de conhecimento fortalecido

pelo tempo e pela aceitação coletiva por diversas gerações6.

O Corpus Iuris Civilis, dividido em Instituições, Códigos, Digesto e Novelas, assumia uma

importância normativa ímpar para a sociedade. Assim, desenvolveram-se escolas de direito na

4 No século XIII, momento em que os costumes não são mais evidentes na sociedade, a lei, escrita e sistematizada,

reaparece especialmente por meio do Direito Canônico, impulsionado pelos interesses do Sumo Pontífice em legitimar

seu poder. 5 Na verdade, o Direito de Justiniano refletia a sociedade para a qual foi escrito: uma ordem social e econômica diferente

da existente no tardo-medievo. Mas a autoridade de um texto, como garante Grossi (1996: 168), não pode ser

considerada rígida, pelo contrário, possui uma elasticidade, podendo e devendo ser feita uma transposição de acordo

com o clima coevo ao chamado “leitor-usuário”. 6 Recomenda-se a leitura dos trabalhos de Grossi (1996); Chiffoleau (2002, v. 1) e Bittar (2005) para outras informações.

Page 165: Anais 2011

162

península itálica, especialmente no Norte e no vale do Ródano, nas quais seu conteúdo seria

comentado e interpretado pelos juristas7, que propunham súmulas, manuais de procedimentos e

outros instrumentos para a defesa dos velhos rituais8. “O que eles aprendem no redescoberto direito

romano e na racionalização escolástica [...] é uma extraordinária tecnologia de construções

institucionais, soluções causísticas, possibilidades processuais sobre as quais eles não tinham até ai

nenhuma idéia.” (CHIFFOLEAU, 2002, v. 1: 343) As Glosas, elaboradas pelos chamados

Glosadores, nos séculos XI e XII, seguiam com fidelidade o que estava determinado na lei estudada,

aplicando literalmente os resultados às questões que lhes eram importantes. Já nos séculos XIII e

XIV, houve uma modificação na forma de produção dos comentários, a lei não possuía mais a

centralidades para a interpretação, mas o fato a ser julgado assumia essa primazia, demonstrando

uma modificação do pensamento nesse período.

Sendo assim, pode-se dizer que a utilização das fontes do direito para o estudo da História

Medieval, sejam elas leis, comentários ou tratados, abrem um leque de possibilidades de análises

para o historiador. Isso porque existe um número variado de juristas que escrevem sobre temas

diversos. Como exemplo disso, elegeu-se um deles, Bartolus da Sassoferrato (1314-1357), cuja

produção influenciou o direito durante muitos anos.

2 Bartolus da Sassoferrato: o homem e seu legado

Sabe-se que Bartolus da Sassoferrato nasceu em uma comuna homônima localizada na

província de Ancona, no centro da península itálica. Não foi possível encontrar, até o momento,

nenhuma referência confiável a cerca do dia, mês e ano de seu nascimento, mas a data teria sido

estabelecida no período que vai de 10 de novembro de 1313 a 10 de novembro de 13149.

Tradicionalmente, seus biógrafos atribuíram-lhe diversos sobrenomes, apesar de seus trabalhos

geralmente serem assinados simplesmente como Bartolus ou Bartolus da Sassoferrato10

.

7 Em grande medida, a escolástica contribuiu para o florescimento do direito e das ideias políticas no tardo-medievo, pois

foi por meio de sua racionalização que se tornou possível dotar o direito de uma linguagem, técnicas e esquemas

ordenadores específicos e precisos. 8 Grossi (1996: 162-163) lembra a importância desse direito como um momento de validação do discurso da incipiente

ciência jurídica, uma vez que era a projeção jurídica para uma unidade imperial presente até os séculos XI e XII, repleto

de sacralidade e venerabilidade. 9 Para melhor compreender as incertezas sobre a data de nascimento do jurisconsulto, recomendam-se os trabalhos de

SHEEDY, 1967: 11; RATTIGAN, 1904: 233. Para Savigny (1839: 223), o ano mais provável seria 1314, uma vez que

de acordo com seus cálculos apenas um mês e meio estariam no ano de 1313 e dez meses e meio em 1314. 10

Não possuir um sobrenome não era incomum entre os homens do trecento, de acordo com van de Kamp (1936: 04).

Entretanto, o tema foi discutido de maneira contundente por estudiosos como van de Kamp, von Savigny e Woolf.

Sobre o tema, consultar o trabalho de SHEEDY (1967:11), que apresenta de forma resumida toda a disputa.

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163

Não se tem notícias sobre sua infância e adolescência. Durante os primeiros anos de estudo,

foi colocado sob a tutela do gramático franciscano frade Petrus de Assisio, sob a orientação de quem

permaneceu até atingir a maturidade para dedicar-se ao estudo das leis. (SHEEDY, 1967) Aos

quatorze anos ingressou na Universidade de Perugia com o objetivo de aprender o direito. Dentre

seus mestres, destaca-se Cinus da Pistoia11

, jurista que influenciou seu treinamento legal. Mais

tarde, mudou-se para a Universidade de Bologna, onde estudou com Buttrigarius, Rainerius,

Oldradus e Belvisio. (RATTIGAN, 1904) Em 10 de novembro de 1334, doutorou-se, após

investidura formal, com os símbolos de sua nova condição12

.

Durante algum tempo, exerceu a função de assessor jurídico em Todi e Pisa13

e lecionou

direito civil em várias universidades da Toscana e da Lombardia14

(SKINNER, 1996: 31). Em

1343, mudou-se para Perugia, onde se estabeleceu como professor de direito na Universidade.

Cinco anos mais tarde, em gratidão aos serviços prestados, a comuna conferiu a Bartolus da

Sassoferrato o direito de cidadania. Em 1355, participou de uma missão enviada a corte do

Imperador Carlos IV, que estava de passagem por Pisa15

(RATTIGAN, 1904: 234).

Morreu em Perugia, por volta de julho de 135716

, com cerca de quarenta e quatro anos.

Deixou uma herança composta não apenas pelas disposições constantes em seu testamento, dentre

as quais se destaca a destinação de seu restos mortais em uma esquife na Igreja de São Francisco17

,

mas também suas compilações sobre as leis.

Esses trabalhos foram redigidos por Bartolus da Sassoferrato utilizando-se do latim. Nesse

sentido, seguiu os preceitos adotadas pelos demais “homens de saber”18

do século XIV. A utilização

11

O poeta e jurista Cinus de Pistoia (1270-1336) possuía experiência e treinamento prático como assessor em um número

de cortes de direito. Pode-se afirmar que foi responsável pela aproximação do Direito estudado com a prática das

cortes, mesclando o Corpus Iuris Civilis, comentado por Accursius aos estatutos locais e ao direito canônico e

consuetudinário. Havia estudado em Bologna, com o canonista e civilista Dinus da Mugello (falecido em 1297).

(SHEEDY, 1967: 12-13). 12

As insígnias de sua função eram: cátedra, livro aberto, anel de ouro e touca ou gorro (LE GOFF, 1995: p. 68). 13

Segundo Diplovataccius, o jurista foi banido por quatro anos de uma dessas localidades depois de ter decretado,

injustamente, uma sentença de morte. (RATTIGAN, 1904: 233-234) 14

Segundo Rossi (2001: 367), essas universidades eram reconhecidas por seus estudos voltados para o Direito e a

Medicina, tanto no que diz respeito ao prestígio e remuneração do corpo docente, quanto pelo número de alunos. 15

Sua erudição e seus trabalhos impressionaram o monarca que lhe concedeu o título de conselheiro e diversas honrarias

pessoais, além de confirmar a doação feita a sua universidade. A universidade de Perugia era considerada um studium

generali. (SHEEDY, 1967: 22) As universidades possuíam um estatuto jurídico específico, fornecido por uma

autoridade, como o Imperador ou o Papa. (ROSSI, 2001: 16). 16

A data de sua morte também é controversa. As atribuições vão de 1355 a 1359: para Caccialupus foi em 1355,

Diplovataccius acredita ter sido em 1359. (SHEEDY, 1967: 27). Von Savigny (183: 225) concluiu que a data mais

provável seria entre 10 e 12 de julho de 1357. Essa indicação é a mais aceita entre os estudiosos do jurisconsulto. 17

Anos mais tarde, construiu-se um monumento em sua homenagem, contendo a inscrição Ossa Bartoli. 18

Verger (1999: p. 13) considera que os séculos XIV e XV seriam o momento de afirmação e emergência de um grupo

social formado por homens de cultura. Para defini-los, o autor utiliza a expressão “homens de saber”, que seriam

indivíduos de poder e dos livros, que possuiriam certo nível e tipo de conhecimento, além de reivindicarem

competências práticas fundamentadas em saberes adquiridos. Eminentemente citadinos, seriam detentores de certa

Page 167: Anais 2011

164

desse idioma era vantajosa em parte porque era a língua do ensino, objetivo para o qual escreveu

grande número de trabalhos enquanto se dedicava à sua função como magister em Perugia; em

parte porque era empregado em todas as disciplinas eruditas, essencialmente livrescas. Esses

trabalhos chegaram até os dias atuais por meio de cópias e publicações que foram realizadas

posteriormente.

Dentre as diversas cópias disponíveis, obteve-se acesso para a realização desta pesquisa de

uma publicação datada de 1570. É composta por dez volumes assim divididos: os comentários sobre

o Digesto totalizam seis volumes, aqueles sobre o Codex outros dois, as demais partes do Corpus

Iuris Civilis mais outro tomo. O décimo volume contém um conjunto de opiniões, questões, orações

e tratados escritos por Bartolus da Sassoferrato.19

Essa edição de 1570 foi publicada em Veneza

pela Junta (Iunta). O texto foi impresso em duas colunas, em formato de folio, com encadernação

inteira em pergaminho, com a página de rosto em vermelho e preto, sendo que as Consilias...

possuem também desenhos gráficos em seu interior, compondo um dos tratados. O texto possui

muitas abreviações e as letras são em estilo gótico, como atesta van de Kamp (1936: 119).

A produção bartoliana pode ser classificada em cinco categorias20

: comentários sobre as

várias divisões do Corpus Iuris Civilis; questões debatidas durante a disputatio; opiniões (consilias)

sobre casos submetidos a Bartolus da Sassoferrato com objetivo de auxiliar no julgamento de temas

polêmicos; orações proferidas durante o exame de doutoramento de outros juristas, e tratados sobre

problemas de direito público e privado, de direito criminal e processual.

Observa-se que, os comentários constituem a maior parte dos seus trabalhos, uma vez que as

aulas e repetições pronunciadas durante sua carreira como professor deram origem a eles. Versavam

aptidão para a leitura e escrita, saberiam utilizar os manuscritos e elaborar argumentações. Seriam homens que se

relacionariam com o poder ou estariam inseridos nele, participando, tanto quanto possível, na vida política das

comunas. Moldados pelos estudos, aprofundando-se em disciplinas ligadas à ordem legítima dos saberes (teologia,

direito e medicina) e em consonância com o ordenamento político-social dominante. Sua profissionalização denotaria

um peso social específico que os tornaria um grupo privilegiado de possíveis agentes modificadores das estruturas da

sociedade ocidental. Para Verger (1999: p. 113), os “homens de saber” teriam substituído aquele vir litteratus que

existiu até o século X, em grande medida padres e monges que se abrigavam nas escolas, bibliotecas e scriptoria dos

mosteiros e cujos saberes se limitavam a cantar, ler e escrever o latim razoavelmente, mas não possuíam um grau de

conhecimento e de técnicas intelectuais mais aprofundados e que passaram a ser necessários para o serviço do príncipe

como também para o serviço a Deus. Segundo Verger (1999) a utilização do termo gens du savoir melhor define a

categoria comumente denominada intelectuais, apesar de não ser uma expressão coeva. As palavras utilizadas no tardo-

medievo com maior frequência para designá-los eram as seguintes: vir litteratus, clericus, magister, philosophus e gens

du livre. 19

Os tomos encontrados durante a pesquisa pertencem à Biblioteca de Obras Raras e Especiais da Universidade de São

Paulo (USP), os quais já foram digitalizados e disponibilizados na rede mundial de computadores. O sítio da Biblioteca

de Obras Raras da Universidade de São Paulo é <http://www.obrasraras.usp.br/>. 20

Essa categorização foi elaborada por Sheedy (1967: 29) e teria como objetivo tornar a compreensão da produção

bartoliana mais fácil e didática.

Page 168: Anais 2011

165

sobre diversas partes do Corpus Iuris Civilis, conforme a classificação adotada no século XIV21

.

Após sua morte, Nicolau d’Allessandro, seu genro, concluiu um repetitio deixado incompleto e

organizou os comentários, intitulando-os conforme o trecho do Corpus Iuris Civilis glosado.

Sobre as questões que escreveu, tem-se notícia de vinte e uma. A mais famosa quaestionis

foi enunciada, a pedido de Francisco Tigrini da Pisa, a fim de solucionar um conflito entre as

comunas da península itálica Lucca e Florença (SHEEDY, 1967: 19).

Segundo Sheedy (1967: 47), o jurista escreveu cerca de trezentos e cinquenta consilias. “Do

número total, vinte e três referem-se sem dúvida a outras consilias, dezesseis são de outros juristas

sobre causas ou pontos da lei, discutidos por Bartolus. Restam trezentos e sessenta e seis consilias

de Bartolus, incluindo vinte e um que foram escritos por ele junto a um ou mais juristas.”22

(tradução nossa) Os assuntos tratados são variados, ocorrendo com frequência temas relacionados à

sucessão de propriedade, método, crimes e dotes. No que diz respeito a sua forma iniciam-se sempre

por um resumo dos fatos e o anuncio do ponto que seria tratado. Seguia-se, então, uma invocação

curta ou longa23

, os argumentos do demandante, aqueles do defensor, ambos sustentados por

referências. Depois proferia-se sua decisão, sustentando-a com uma profusão de citações. As

consilias eram encerradas com a frase “E assim parece-me, Bartolus da Sassoferrato”24

ou apenas

“Bartolus de Saxoferrato”25

(BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570a: 4).

Tem-se notícia de duas orações: uma produzida para o exame de doutoramento de seu irmão

Bonaccursius26

e a outra elaborada para o doutorado de certo Joan da Sassoferrato27

, do qual não se

possui outra informação a não ser que era conterrâneo de Bartolus da Sassoferrato (SHEEDY,

1967: 48-49). Sheddy (1967: 49) afirma que existiria outra oração, escrita para certo João de

21

Comentou não apenas o Digesti Veteris, o Infortiatum e o Noui Digesti, que continham todo o Digestum, mas

também o Codex e o Volumen (também conhecido como Tres libri), o Institutionum e o Authenticum. 22

“Of the total number, 23 refer without discussion to other consilias, 16 are by jurists upon cases or points of law

discussed by Bartolus. There remain 366 consillia of Bartolus, including 21 subscribed jointly by him and on or more

other jurits.” 23

Poderia ser um simples: “Em nome de Deus. Amém” “In nomine Domini amen” (BARTOLUS DA

SASSOFERRATO, 1570a: 10) ou algo mais elaborado como “[...] Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.”

“In nomine Domini nostri Iesu Christi amen” (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570a: 05). 24

Alguns exemplos encontrados na publicação de 1570 são: Ego Bart., Ego Bar. de Saxoferrato, Ego Bart. sic consulo,

Ego Bart. in consulo, Ego Bart. ita consulo (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570a: 08-18). 25

Bart. de Saxoferrato. Bartolus, Bartol., Barto., Bart. (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570a: 04-08). 26

O tema seria “Bom é meu nome, Accursius. Porque está escrito que se lembra e resiste contra a escuridão do

direito civil” (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570a: 187, tradução nossa). “Bonum est nomen meum,

Accursius. Dicitur enim sic quod succurrit, et ocurrit contra tenebras iuris civilis.” Analisou em três tópicos

principais: o bem essencial (bonum), a perfeição do nome (Accursius) e a operação eficiente (sic currerit, et

occurrerit contra tenebras iuris civilis). 27

Utiliza-se apenas de citações dos escritos de São João contidos nas Sagradas Escrituras, ou seja, seu

Evangelho, Epístolas e Apocalipse.

Page 169: Anais 2011

166

Camerino na Biblioteca do Colégio Espanhol de Bologna, a qual está incluída em algumas

publicações da obra do jurista.

Os principais28

tratados escritos por Bartolus da Sassoferrato foram os seguintes: De

Tyrannia (Sobre a Tirania), De Guelphis et Gebellinis (Sobre Guelfos e Gibelinos), De Regimine

Civitatis (Sobre o Governo das Cidades)29

; Represaliarum (Sobre as Represálias), De Insigniis et

Armis (Sobre Insígnias e Armas)30

, Ad reprimendum (Sobre as reprimendas) e Qui sint rebelles

(Quem são os rebeldes)31

; Tyberiadis (Tiberiades)32

e De Minoricis (Sobre os Minoritários)33

,

Questio uentilatae coram Domino Nostro Iesu Christo inter virgenem Mariam, ex una parte, et

diabolum, ex alia parte (Questão apresentada perante Nosso Senhor Jesus Cristo entre a Virgem

Maria, por uma parte, e o Diabo, por outra parte)34

.

É nos comentários sobre as leis que Bartolus da Sassoferrato se debruça sobre as principais

questões do direito para o século XIV e explicita seu conceito para o vocábulo dominium que foi

28

Optou-se por não tratar de todos os tratados de Bartolus da Sassoferrato por existir uma controvérsia quanto à

autenticidade de alguns deles, conforme é possível averiguar em van de Kamp (1936: 52-126). 29

Os três primeiros referem-se ao direito público (SHEEDY, 1967: 40). 30

Esse trabalho foi escrito depois do encontro de Bartolus da Sassoferrato com Carlos IV. Isso fica evidente no próprio

título atribuído à obra: um tratado de heráldica com enfoque especial nas armas e brasões. O jurista procura se

concentrar nas questões jurídicas referentes à doação de armas, tentando compreender como as dignidades se seguiam

ou não a essas doações (VAN DE KAMP, 1936: 67). 31

Esses dois tratados de direito criminal foram elaborados a partir da glosa das constituições do Imperador Henrique VII

(SHEEDY, 1967: 40). Qui sint rebelles trata sobre a traição contra o Imperador e os reis. Considera rebeldes aqueles

que fazem algo contra a salvação do Imperador, o Império ou alguma ordem do Imperador e seus auxiliares. Apresenta

também os casos penais para cada uma das ofensas. Ad reprimendum descreve o processo penal, que poderia ser

realizado tanto pelo acusador quanto pelo inquisidor, não existindo uma condição ou forma particular para se

apresentar a queixa, nem para sua realização. 32

Esse tratado discute a questão do direito que incide sobre os rios especialmente no que se refere à deposição dos

sedimentos nas margens, bem como a formação de ilhas de fluxo e camas de seca. É formado por três livros alluvione,

insula e alveo, Segundo Sheedy (1967) e van de Kamp (1936), a inspiração para esse trabalho teria advindo durante um

período de férias que passou próximo às margens do rio Tibre. Esse tratado possui uma introdução na qual o próprio

autor explica as motivações que o levaram a escrever o texto. A obra é ilustrada por trinta e nove figuras geométricas,

divididas vinte duas no primeiro livros e dezessete no segundo. 33

Tanto Tyberiadis quanto De Minoricis referem-se ao direito privado (SHEEDY, 1967: 41). Esse último trata da

subsistência dos membros da Ordem dos Frades Menores, fundada por São Francisco de Assis. A questão principal

gira em torno da possibilidade da Ordem ser ou não considerada herdeira ou legatária das propriedades deixadas no

mundo por seus irmãos, uma vez que para serem admitidos deveriam deixar todos os seus bens materiais para trás e

passarem a viver apenas com o mais básico. O objetivo principal do jurista era evitar a ganância dos herdeiros privados

de seus bens, demonstrando assim que o jurista se interessava por questões coevas. O trabalho é dividido em quatro

partes, sendo a primeira referente à sucessão dos Menores, a segunda aos que lhes foi legado, a próxima trata dos

testamentos feitos em favor da Ordem e a última das heranças de seus membros. Van de Kamp (1936: 52-56) apresenta

uma visão geral desse tratado. 34

Refere-se ao direito processual. Sheedy (1967: 41) inclui ainda mais um tratado que denomina On Evidence, o qual não

consta na edição de 1570 utilizada no presente trabalho. A Quaestionis... lida com um processo que se realiza perante o

juízo presidido por Jesus Cristo, no qual o demônio apresenta uma acusação contra a humanidade. A Virgem Maria é

elevada à categoria de advogada para defendê-la e ganhar o processo. Segundo van de Kamp (1936: p. 72): “Ambas as

partes baseiam suas alegações sobre o direito estabelecido e todo o procedimento é realizado respeitando as formas

tradicionais.” (tradução nossa).

“Beide partijen gronden hare beweringen op geldend recht en de geheele procedure wordt gevoerd met inachtneming

der gebruikelijke vormen.”

Existe uma controvérsia quanto à autoria desse tratado. Sobre o tema ver van de Kamp (1936: 73-74).

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167

objeto de investigação no mestrado. Nesse sentido, é sobre algumas dessas glosas que a atenção

desse trabalho irá se deter, a fim de que se possa demonstrar as possibilidades de utilizar as obras

jurídicas do tardo-medievo para o estudo da história.

3 Dominium na obra de Bartolus da Sassoferrato

Em princípio, o fato de o jurista ter se debruçado sobre a expressão dominium parece

contrariar o pensamento de alguns medievalistas do século XX. Existem estudiosos, como, por

exemplo, Barthélemy (2002, v. 1: 465), que postulam uma não teorização do domínio pelos autores

dos séculos XII a XIV. Para o francês, “a própria palavra dominium, e as de sua família, não tem

nenhuma conotação particular nas fontes medievais, e é normal que o historiador elabore o conceito,

apresentando-o em seguida para discussão”.

Entretanto, a análise das formulações de Bartolus da Sassoferrato demonstra uma

preocupação em estabelecer um significado específico para o termo apropriado do latim e a partir

dele elaborar toda uma justificação para o poder do imperador sobre a região da península itálica.

No século XIV, essa discussão estava inserida em outra maior: uma tentativa de compreender o

significado da expressão dominium mundi. Nesse sentido, para se estudar o domínio teorizado por

Bartolus da Sassoferrato, então, seria necessário procurar estabelecer o significado da palavra, a

partir da sua inserção nessa conceituação mais abrangente, que diz respeito ao poder do imperador.

Contudo, acredita-se ser necessário, ainda, apresentar duas questões: a primeira relacionada

ao embasamento utilizado para a atribuição da expressão dominium mundi e a segunda referente aos

trechos do trabalho bartoliano nos quais dominium é tratado. No primeiro caso, as justificativas

teóricas apresentadas pelo jurista para a utilização da expressão domínio do mundo se

fundamentariam principalmente em dois textos: a Bíblia e o Corpus Iuris Civilis. Sabe-se que

ambos eram considerados portadores de autoridade, especialmente o primeiro, reconhecido como a

palavra divina e, como tal, ser depositária de todo o poder que emanaria de seu emissor35

.

No que diz respeito ao Corpus, esse tema aparecia pulverizado em toda a sua extensão,

concentrando-se especialmente no Segundo Livro, na discussão do título Rei vindicatione

(BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c). Já no texto bíblico, o evangelho de São Lucas

parece ser o foco principal para reconhecimento desse poder universal. O trecho que se refere

diretamente a esse assunto seria o capítulo 2, versículo 1, no qual o evangelista informa sobre a

35

Em algumas passagens dos escritos de Bartolus da Sassoferrato a Bíblia parece até mesmo ser considerada como fonte

de comprovação jurídica.

Page 171: Anais 2011

168

publicação de um decreto que determinava a realização de um censo que afetaria todo o Império

Romano. Hermann Conring (1624 apud FASOLT, 2004), já no século XVII, confirma a utilização

desses dois documentos, acrescentando excertos de outros dois autores, Petronius e Dionisius de

Halicarnasus, também validadores do pressuposto domínio mundial do Imperador.

O próprio Bartolus, uma grande luz para os jurisconsultos, para não citar mais ninguém,

estava tão certo de sua verdade que não hesitava em taxar os pontos de vista divergentes

como heresia. Usualmente sua opinião é apoiada pelo Evangelho de Lucas no qual “surgiu

um decreto de César Augusto que o mundo inteiro deveria ser tributado”, onde a extensão

do Império Romano era definida como todo o mundo, ou pelo Corpus Iuris de Justiniano,

no qual o domínio sobre o mundo é frequentemente atribuído ao imperador, ou finalmente

pelos escritores antigos como Petronius, que dizia que “as conquistas romanas agora

guardam todo o mundo”, e Dionisius de Halicarnassus, livro I, capitulo 3, segundo quem “a

cidade dos romanos governa todos os cantos da terra – ou pelo menos aqueles que são

acessíveis e habitados por humanos (FASOLT, 2004: 258, tradução nossa)36

.

No que diz respeito à segunda questão, tentou-se, portanto, localizar na obra de Bartolus da

Sassoferrato em quais escritos esse autor tratava diretamente sobre o tema do dominium. Ao mapear

seus trabalhos, percebeu-se que esse é um dos primeiros assuntos tratados em seus comentários

sobre o Digesto37

. Aparece, a princípio, na Primeira Constituição imperial38

, conhecida como

Omnem, no qual faz um resumo das normas vigentes, como afirma Fasolt (2004: 187, tradução

nossa): “Omnem começa expondo sobre ‘todo o corpo de leis do nosso estado’”39

.

Para

compreender o conceito de dominium não foram analisados apenas os excertos nos quais o autor

trabalhou esse tema diretamente, mas, também, outras passagens que conceituavam dois termos que

lhe são complementares – iurisdictio e imperium. Optou-se por tratar desses três termos, uma vez

que, sem compreender o significado do império e da jurisdição, não seria possível perceber a

abrangência da definição de domínio elaborada pelo jurista.

Os argumentos com os quais se inicia o Primeiro Livro do Digesto são complementados

pelos existentes no Segundo Livro, principalmente aqueles referentes a iurisdictio e imperium. O

jurista elabora um preâmbulo que intitula Diffinitiones & declarationes iurisdictionum40

, no qual

36

“Bartolus himself, the great luminary of jurisconsults, not to mention anybody else, was so certain of this truth that he

did not hesitate to brand conflicting views as heresy. Usually this opinion is buttressed by quoting from the Gospel of

Luke that ‘there went out a decree from Caesar Augustus, that all the world should be taxed’, where the extent of the

Roman empire is defined as the whole world, or from Justinian’s Corpus Iuris, were dominion over the world is often

attributed to the emperor, or finally from ancient writers lie Petronius, who said that ‘the Roman conqueror now held

the whole world’, and Dionysius of Halicarnassus, book I, chapter 3, according to whom ‘the city of the Romans rules

all quarters of the earth – or those at least which are accessible and inhabited by human beings.” 37

Os juristas do século XIV denominavam os dois primeiros livros do Digesto como Digesti Veteris. 38

A denominação atribuída por Bartolus da Sassoferrato para o Primeiro Livro do Digesto é Prima Constitutio ou

Primeira Constituição. (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c). 39

“Omnem began by speaking about ‘the whole body of the law of our state’.” 40

“Definições e declarações sobre jurisdição”.

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169

apresenta sua definição para iurisdictio e suas subdivisões. Passa-se ao primeiro título, nomeado de

Iurisdictio41

, seguido das leis Ius dicentis, Cui iurisdictio e Imperium42

. São nessas leis que se

concentram as formulações que permitiriam vislumbrar o significado de dominium.

A definição de termos como iurisdictio, imperium e dominium pode ser considerada um dos

problemas de difícil solução no texto romano, sem se considerar também as dificuldades impostas

pelo entendimento que os juristas medievais atribuíram a eles. Para solucionar esse problema,

existem autores que acreditam que os três termos se equivaleriam e designariam um mesmo poder

(potestas). Maiolo (2007: 143) apresenta essa proposta: “uma hipótese amplamente aceita é que, em

fontes medievais, o termo iurisdictio apareceu como sinônimo de dominium, bem como imperium, e

que em ambos os casos, denota potestas.” 43

(tradução nossa) Para Woolf (1913: 127), os juristas do

século XIV utilizavam os conceitos legais mais preocupados com as necessidades de seu tempo,

muitas vezes sem atentar para a possibilidade de explicá-los por meio de uma referência à lei

romana ou não. Fato é que os três conceitos permaneceram interligados durante muito tempo, sendo

necessário, portanto, estabelecer suas especificidades.

Pode-se considerar iurisdictio como um dos elementos que compõem a cultura legal

europeia, uma vez que aparece conexo a necessidade de se administrar a justiça44

, “[...] ‘um dos

principais laços’ que mantém ‘a sociedade coesa’”45

(POLLOCK; MAITLAND, 1968 apud

MAIOLO, 2007: 141, tradução nossa). Esse termo aparece no Direito Romano geralmente definido

como um poder que permite estabelecer os princípios sobre os quais as disputas legais seriam

solucionadas (MAIOLO, 2007). A jurisdição exerceria, assim, a função de uma espécie de síntese

de poderes, fornecendo à sociedade do século XIV uma ferramenta legal em certo sentido bem

versátil. Por um lado poderia servir de justificativa para uma “[...] teoria da independência do poder

político investido com o atributo da soberania [...]”46

(SABINE, 1973 apud MAIOLO, 2007: 143,

41

A palavra pode ser traduzida como “Jurisdição”. No Digesto, o primeiro título do Livro II era conhecido como De

Iurisdictione (Sobre as Jurisdições). 42

As leis tratam do “Poder da lei, Que jurisdição e Império”. 43

“A widely accepted hypothesis is that in medieval sources, the term iurisdictio appeared as synonymous with

dominium, as well as imperium, and that in both cases it denoted potestas.” 44

Mesmo embasado nas construções do direito romano, o conceito de justiça adquiriu conotações específicas no século

XIV. A justiça seria uma virtude, ao mesmo tempo, em que seria uma vontade permanente de conceder a cada um

aquilo que é seu, de acordo com uma razão geométrica. Convém ressaltar que esse princípio da justiça medieval, possui

certa especificidade: existe a necessidade de se explicar o que é próprio de cada um. Cada indivíduo nesse período

possuía uma medida, sendo, portanto, materialmente diferente. Logo, ser justo, ou agir com equidade, seria uma

atividade prática de recta ratio: saber discernir o que pertence a cada pessoa, sem se deixar influenciar pelas paixões.

Somente um comportamento que sabe atribuir a cada um aquilo que lhe pertence, que possui um hábito justo, pode

exercer a justiça. 45

“[...] ‘one of the main ties” keeping ‘society together’.” 46

“[...] the theory of an independent political power invested with the imperial attribute of sovereignty [..]”.

Page 173: Anais 2011

170

tradução nossa), ou, por outro, ser utilizada como ferramenta para justificar o princípio do poder

espiritual.

Bartolus da Sassoferrato procura estabelecer seu próprio conceito e o apresentou em dois

momentos específicos de seus comentários sobre o Digesto Antigo. Primeiro, no Diffinitiones &

declarationes iurisdictionum, muito próximo daquele defendido pelos demais glosadores: um poder

público estabelecido a partir do direito, ou poder das leis, e da equidade47

(BARTOLUS DA

SASSOFERRATO, 1570c: 45v). Já o segundo, na lei Imperium, estabelece uma aproximação entre

imperium48

e jurisdição, passando para uma definição que o identifica como uma espécie de um

poder determinado pela lei pública e cuja etimologia estaria ligada a ius, lei, e ditio, poder:

Jurisdição [iurisdictio] é dividida em império [imperium] e jurisdição [iurisdictio], e o

império é subdividido em império puro [imperium merum] e império misto [imperium

mixtum] [...] Para clarear esse problema primeiro eu proponho essa questão: o que é

jurisdição, de maneira geral? Respondo que é um poder estabelecido pela lei pública

[potestas de iure publico introducta], como as notas da glosa do Digesto 2.1.1, onde

expliquei o problema em detalhes.Segundo, pergunto porque a jurisdição é chamada de

iurisdictio. A glosa responde que é assim denominado porque é composto por ditio, que

significa “poder”, e ius [que significa “lei”, então é isso que iusdictio significa] “poder da

lei” [iuris potestas], como era. Esse ditio é o mesmo que “poder” [potestas] é provado no

prefácio das Institutas, seção I, e no Código 6.7.2 (BARTOLUS DA SASSOFERRTO,

1570c: 48, tradução nossa)49

.

Para o jurista, imperium50

seria uma divisão da jurisdição51

, sendo que o primeiro ainda

poderia ser dividido novamente em merum imperium

52 e mixtum imperium

53. Jurisdição teria então

47

“est aút iurisdictio in genere sumpta, ptás de publico introducta, cú necessitate iuris dicedi, aequitatis statuédae [...]” 48

Para os romanos, imperium era definido como o “direito de dar ordens”, em um sentido mais amplo, referia-se ao “[...]

‘poder oficial dos altos magistrados (magistratus maiores) sobre a República, e do imperador sobre o império’.”.

(BERGER, 1953c: 494, tradução nossa)

“[...] ‘the official power of the higher magistrates (magistratus maiores) under the Republic and of the emperor under

the empire’.” 49

“Iurisdictio diuidit it imperiú, & iurisdictione. Et imperú diuidit in merú & mistu imriú.[…] Núc venio ad materia,&, p

eius declaratione qro,q d fit iurisdictio in genere sumpta? Rñdeo iurisdictio est potestas de iure publico

introducta,&c.ut no.gl.in l.j.s.eo.& ibi plene dixi. Secundo qro, unde dicat iurisdictio? Dicit gl.hic qd dr a ditione, qd

est ptãs, & iuris, quasi iuris potestas. Quod auté ditio sit idé qd potestas, probat in prooemio Insti.ibi, nostrae ditioni,

&c.& C.de libe.& eo.liber.I.ij”. 50

Para Fasolt (2004: 181) “Na antiguidade [...] império significou simplesmente ‘o direito de dar ordens’ (ius imperandi).

Por isso foi possível chamar a força vinculativa de uma lei ‘império da lei’ (imperium legis), o poder de cabeça de

família é ‘império doméstico’ (imperium domesticum), e o supremo poder do povo romano o ‘império do povo

romano’ (imperium populi Romani). Em um sentido mais técnico, império referia-se a ‘o poder oficial dos altos

magistrados (magistratus maiores) sobre a República, e do imperador sobre o império’.” (tradução nossa).

“In antiquity [...] empire had simply meant ‘the right to give orders” (ius imperandi). It was therefore possible to call

the binding force of law ‘empire of law’ (imperium legis), the power of the head of the family is ‘domestic empire’

(imperium domesticum), and the supreme power of the Roman people the ‘empire of the Roman people’ (imperium

populi Romani). In a more technical sense, empire referred to ‘the official power of the higher magistrates (magistratus

maiores) under the Republic, and of the emperor under the empire.” 51

Deve-se levar em consideração aqui que as leis que definiam a jurisdição foram criadas durante a República Romana e,

por isso, seriam fundamentalmente diferentes daquelas que definem imperium. É interessante destacar, como fez Fasolt

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171

dois significados diferentes: um que se refere ao gênero, um poder estabelecido pela lei pública, e

outro refere à espécie, ou seja, uma das subdivisões da própria jurisdição:

Terceiro, pergunto se o império puro e o misto estão incluídos no gênero “jurisdição”

Alguns dizem que ,de acordo com a lei presentemente sobre consideração [Digesto 2.1.3],

não estão incluídos, porque a jurisdição e o império são aí tratados como duas espécies

separadas. Mas a glosa tem outra forma, e é justo fazê-lo, como está provado acima, no

título 2, livro 1, no qual a glosa denomina puro império “jurisdição”, na Novela 15.1.1, e

aqui [no Digesto 2.1.3], no qual diz que jurisdição é também chamada de “poder”

[potestas]. Assim como eu apontei, “poder” e “jurisdição” são uma e a mesma coisa, e

jurisdição é chamada “jurisdição” [iurisdictio] porque é o “poder das leis” [potestas iuris].

Com base no presente texto, o mesmo é verdade para o puro império e para o misto, porque

de acordo com esse texto jurisdição é um ingrediente do império do mesmo jeito que o

gênero é um ingrediente de suas espécies, para isso veja Digesto 32.1.47 e os comentários

lá (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c: 48, tradução nossa)54

.

O modelo de classificação da jurisdição que foi adotado na obra bartoliana seria uma

influência daquele criado por Pierre de Belleperche ( -1308) para tratar o tema. Essa categorização

baseava-se no pressuposto de que o iurisdictio deveria ser compreendido como um gênero (in

genere) que se divide em imperium e iurisdictio stricte sumpta. Dessa maneira, Belleperche resolvia

uma controvérsia relacionada tanto a merum imperium quanto a mixtum imperium: passariam,

então, a ser entendidos como distinções do império, e não da jurisdição, como afirmaram Odofredus

( -1265), Azo e outros juristas55

.

Para tentar tornar mais claro como um vocábulo pode ser entendido ao mesmo tempo como

um gênero e uma espécie, Bartolus da Sassoferrato apresenta, no início do Segundo Livro do

Digesti Veteris, um diagrama que denomina Arbor iurisdictionum (árvore da jurisdição). Nesse

esquema, a jurisdição (gênero) se subdivide em duas espécies: iurisdictio (espécie) e imperium. Para

evitar confusões, o comentador, distinguia a jurisdição como um gênero (iurisdictio in genere

(2004: 182), que: “de acordo com o principio dos antigos romanos jurisdição era, portanto, totalmente diferente do

império” (tradução nossa).

“Accordin to ancient Roman principles, jurisdiction was thus utterly different from empire.” 52

Segundo Fasolt (2004), merum imperium poderia ser exercido tanto pelo imperador quanto pelas civitas, e dizia

respeito ao fato de um juiz lidava somente com questões públicas. (FASOLT, 2004: 180). 53

Diz-se de um juiz que lida com problemas de direito privado. (FASOLT, 2004: 180). 54

Tertio quaero utrú imperiú meru & mixtú aprehendant sub hoc genere, q est iuriidictio. Quidam dicunt qd nõ per hanc

l. Ponunt.n.hic, ut species separate, iurisdictio ab imperio. g. Tenent cõtrariú, & bene, ut probat.s.tit.ij.I.j. ubi merú

imperiú appellat iurisdictioné, & incorpore & defen.ciui.§.iusiurandú.in si.& hic dú dicit, q etiã potestas appellat. Nã

potestas & iurisdictio idem sunt, ut dixi, & est ptãs iuris, ergo est iurisdictio. Idem de mero misto imperio, q húc tex. q

dicit. cui et iurisdictio inest ficut genus inest speciei suae, ut.l.si qd earú.&.interéptú.de leg.iij.& ibi [...] Videamus ergo

quid sit imperiú simpliciter sumptu? Rñ. Impeiú est iurisdictio quae officio iudicis nobili expedit, hoc qd dico iurisdictio

opponit in destinitione tanq genus. Sequitur, quae officio nobili expeditut hoc ponitur ad driam iurisdictionis que

expedit iudicis officio mercenatio, q hoc sit véu probaturin auth.de desen.ciui.§.Iusiurandú.in si. 55

Sobre esta discussão ver Maiolo (2007: 154).

Page 175: Anais 2011

172

sumpta), a qual incluía imperium, daquela como espécie, ou “simples jurisdição” (iurisdictio

simplex)56

.

Portanto, para Bartolus da Sassoferrato (1570c), são três os tipos de poderes estabelecidos

pela lei pública: império puro57

, império misto e a simples jurisdição. Cada um, por sua vez,

subdividia-se em outras seis subespécies58

. Bartolus da Sassoferrato (1570c: 45v e 48-49)

descreveu-as, demonstrando que possuíam características distintas, bem como uma lista de

atividades legais e governamentais específica59

.

Por fim, a compreensão de imperium nos termos apresentados pelo comentarista permite

também perceber que a função do imperador seria semelhante a do legislador, juiz universal, mas

não um governante soberano. Compreender imperium como iurisdictio permite que a afirmação da

legitimidade do governo territorial, proposta pelo jurista, não se esvazie.

Retornando a iurisdictio, o jurista enfatizava que algumas decisões seriam próprias de uma

autoridade particular, enquanto outras, de uma autoridade pública. Percebe-se que procura

apresentar um sentido mais processual, especialmente quando se observa o tratado, De iurisdictione

(BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570a: 146-147v), no qual reafirma que cabe ao juiz decidir

os conflitos entre os cidadãos particulares. O jurista concordava com a definição de Ulpiano,

presente no Digesto 2,1,1, segundo a qual o direito era um ofício muito vasto: ius discentis officium

lastissimum est (JUSTINIANI, Digestae, [529]). De fato, considerava as prerrogativas de um juiz

(iudex) como muito extensas, conforme é possível observar no trecho em que comenta a Ius

56

Essa última diz respeito a um ofício ocupado por um juiz assalariado, ou mercenário, que recebia a utilidade

privada “[...] quae officio iudicis mercenario expeditur, priuatã utilitatem respiciens. [...]” [Já o império seria

exercido por um juiz nobre:] “iurisdictio quae officio iudicis nobili exercet [...]”. (BARTOLUS DA

SASSOFERRATO, 1570c: 45v) A diferença entre um juiz nobre e aquele contratado estaria alicerçada sobre a

forma como se praticava a jurisdição por cada um deles. No primeiro caso, poderia ser exercida em sua

própria iniciativa, já no segundo só poderia fazê-lo quando solicitado por uma das partes de uma ação judicial.

Outra diferença seria o fato de na simples jurisdição ser conferida apenas a utilidade privada (utilitas privata),

enquanto no império seria tratada de uma utilidade mais ampla e pública (utilitas publica). (FASOLT, 2004:

180) Em outras palavras, o juiz mercenário trataria das questões ligadas ao litígio civil, enquanto o juiz nobre

se encarregaria da legislação e da lei criminal. Em alguns casos, entretanto, o juiz nobre também poderia tratar

de res privada. “Isso explicou para Bartolus porque o império de um juiz nobre precisava ser subdividido em

duas subespécies: puro império (imperium merum) e império misto (imperium mixtum).” (FASOLT, 2004:

180, tradução nossa) 57

“Graças à contribuição de Bartolus, disse Gilmore, ‘a confusão deu lugar à certeza e uma teoria definitiva sobre

imperium merum foi estabelecida e se tornou dogma’, embora ‘a maior certeza foi primeiramente refletida em uma

atitude para os textos em vez de uma compreensão dos textos’.” (MAIOLO, 2007: 155-156 tradução nossa)

“Thanks to Bartolus’ contribution, Gilmore said, ‘confusion gave place to certainty and a definite theory on the merum

imperium was established that became dogma’ although '’he greater certainty was at first reflected in an attitude

towards the texts rather than in an understanding of the texts’” 58

Bartolus da Sassoferrato (1570c: 48-48v) subdivide iurisdictio simples em outras seis subespécies: Maxima, Maior,

Magna, Parua, Minor, Minima (Máxima, Maior, Magna, Pequena, Menor, Mínima). Já

merum imperium seria em

Maximú, Maiur, Maximum, Parum, Minus e Minimú (Grande, Maior, Máximo, Pouco, Menos e Mínimo). Por fim,

mixtum imperium em Maximú, Maiur, Magnum, Paruum, Minus e Minimum (Grande, Maior, Magno, Pouco, Menos e

Mínimo). 59

Optou-se por não tratar das subdivisões, uma vez que se concentra na questão da definição de dominium.

Page 176: Anais 2011

173

dicentis, quando argumenta que o ofício do juiz, além de amplo, não possui superior: officiú iudicis

est genus generalissimú [...] [que] [...] nullú genus het.s.se60

(BARTOLUS DA SASSOFERRATO,

1570c: 46). Apresenta, então, uma identificação desse gênero, iurisdictio, como poder público

estabelecido pelas leis e pela equidade, concordando com o que foi exposto por Azo e Accursius,

mas acrescentando que somente uma pessoa pública, por meio de seus ofícios, poderia exercer esse

poder legitimamente: est aút iurisdictio in genere sumpta, ptás de publico introducta, cú necessitate

iuris dicedi, aequitatis statuédae [...] tanquam a persona publica61

(BARTOLUS DA

SASSOFERRATO, 1570c: 45v-46, tradução nossa).

Em seu comentário a Omnem, Bartolus da Sassoferrato (1570c) evidencia que a divisão do

mundo em províncias seria legitimada pela lei das nações e que cada povo tem o direito e o poder

para estabelecer as suas leis particulares. Nesse sentido, existiria uma conexão entre o poder do

imperador em fazer as leis e a noção de jurisdição, principalmente ao admitir que a abrangência

dessas normas dependia somente de quem as estivesse fazendo. Compreende-se a posição de

Maiolo (2007: p. 264) ao expor que o jurista acreditava em níveis diferentes de jurisdição:

Afirma que fazer as leis é uma expressão da jurisdição em sentido amplo (‘facere statuta

est iurisdiction in genere sumpta’), que o ‘senhor universal’ faz ‘leis gerais’ (‘qui est

dominus totius facit legem universales’) e que o ‘senhor particular’ faz ‘leis particulares’

(‘qui sunt domini in parte faciunt statuta imparte’) (BARTOLUS DA SASSOFERRATO ,

1570c, tradução nossa)62

.

Estabelece-se, assim, iurisdictio como um gênero que expressa uma prerrogativa somente

atribuída à persona publica. Apesar de utilizar a mesma terminologia que seus predecessores, a

definição de Bartolus da Sassoferrato apresenta uma ruptura conceitual no que se refere à relação

entre império e jurisdição (FASOLT, 2004: 183). O jurista consagra, em seu comentário das leis, a

jurisdição como um poder público e o império como um dos tipos de iurisdictio.

Seu tratamento da jurisdição e do império fornecem uma ilustração perfeita do que as

pessoas querem dizer quando falam do método escolástico e do impacto da lógica

aristotélica no pensamento medieval. Esse método e essa lógica permitem a Bartolus

ultrapassar, quase sem pensar duas vezes, a diferença que os antigos juristas romanos não

60

Desmembrando-se as abreviações o trecho teria a seguinte forma officius iudicis est genus generalissimus [...] [que] [...]

nullus genus habet supra se.

61 Sem as abreviações presentes no texto de Bartolus da Sassoferrato, a passagem acima seria “est autem iurisdictio in

genere sumpta, potestas de publico introducta, cum necessitate iuris dicedi, aequitatis statuendae [...] tanquam a

persona publica”. 62

“He affirmed that to make the laws is expression of jurisdiction in the broad sense (“facere statuta est iurisdiction in

genere sumpta”), that the ‘universal lord’ makes ‘general laws’ (“qui est dominus totius facit legem universales”), and

that the ‘particular lords’ make ‘particular laws’ (“qui sunt domini in parte faciunt statuta imparte”).”

Page 177: Anais 2011

174

foram capaz de resolver em séculos de tentativa (FASOLT, 2004: p. 183, tradução

nossa)63

.

A teoria da jurisdição determina a existência de uma pluralidade de esferas de competência,

incluindo a legislativa, partindo do mínimo, que diz respeito a dominus locais, ao máximo, que se

refere ao Imperador (MAIOLO, 2007: p. 266). Nesse sentido, o conceito de iurisdictio torna-se, no

século XIV, “[...] mais fundamental que império”64

(FASOLT, 2004: p. 183, tradução nossa). Foi

com base nesse princípio de iurisdictio, que Bartolus da Sassoferrato pretendeu fixar a identidade

do dominium e compreender a superioridade do imperador como portador de todas as jurisdições

terrenas e, consequentemente, como dominus mundi. Apesar de tratar de questões que poderiam ser

aplicadas também ao Papa, o comentarista se limita a discutir apenas as questões ligadas ao Império,

deixando as da Santa Sé para uma análise futura.

Maiolo (2007: 156) possui uma posição muito específica ao tratar de dominium na obra

bartoliana.Segundo ele o conselheiro acreditava na existência de uma equiparação entre jurisdição e

domínio (equiparatio de iurisdictione ad dominium), amparado pelo conceito patrimonial de

autoridade política. Outro aspecto seria a afirmação do dominium mundi proposta pelo jurista, que

via o imperador como “senhor universal”. Entretanto, “será que Bartolus pretende afirmar que o

Imperador era senhor universal por proteção (quoad protectionem) ou por propriedade

(proprietatem quoad)?”65

(MAIOLO, 2007: 263, tradução nossa).

O jurista se posiciona contra a Glosa66

, segundo a qual o imperador era senhor do mundo

em um senso de proteção (quoad protectionem). Estabelece, então, a condição do Imperador teria

um sentido patrimonialista, dado pela identificação de “mundus” com “universitas”: [...] dominus

totius múdi vere [...] quia mundus est vniversitas67

(BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c:

172) Apesar de considerar aqueles que negavam dominium mundi como hereges, não parece ter

concebido o domínio do mundo apenas no sentido patrimonial, parcial e indiretamente.

A razão da ligação entre jurisdição e dominium seria fundamentalmente o fato de que ambos

não se refeririam meramente à propriedade, mas também ao senhorio. Assim, “[...] dominium e

jurisdição são relacionados um ao outro, uma vez que ambos representam poderes legais inerentes a

63

“His treatment of jurisdiction and empire furnishes a perfect illustration of what people mean when they speak of

scholastic method and the impact of Aristotelian logic on medieval thought. That method and that logic enabled

Bartolus to gloss over, almost without thinking twice, a difference that ancient Roman jurists had not been able to

resolve in centuries of trying.” 64

“[…] more fundamental than empire.” 65

“Did Bartolus mean that the Emperor was universal lord quoad protectionem or quoad proprietatem?” 66

Não apenas a Glosa de Accursius, mas também os acréscimos propostos por Bulgaros. 67

“[…] senhor de todo mundo realmente […] porque o mundo é universitas. (tradução nossa)

Page 178: Anais 2011

175

uma pessoa ou a função exercida por elas”68

(FASOLT, 2004: 186, tradução nossa). Apesar dessa

aproximação, existiria uma diferença entre eles, encontrada principalmente na sua aplicação:

“Dominium se aplica a coisas que o senhor possui como sua propriedade privada [...]. Jurisdição,

entretanto, aplica-se ao território sobre o qual o senhor exerce seu senhorio”69

(FASOLT, 2004: p.

186, tradução nossa). Nesse sentido, o domínio seria uma questão não apenas de possuir coisas (res),

mas também de governar terras, localizando-se ao lado da posse de algum bem.

No comentário de Bartolus da Sassoferrato (1570c: 47), observa-se a apresentação de sua

definição de dominium enquanto compara o conceito com iurisdictio. O objeto da passagem é

constatar que o Imperador pode ser chamado de senhor porque tem o direito sobre o território a ele

subordinado. Entretanto, observa-se que o jurista atribui aos juízes que presidem as cidades o

mesmo direito de serem chamados senhores da região sob influência da comuna.

Dominium é algo que é inerente à pessoa do proprietário, mas se aplica a coisas que ele

possui. No mesmo sentido, a jurisdição é inerente à função pública e à pessoa do

funcionário público, mas se aplica a um território. Jurisdição é, assim, não uma qualidade

do território, mas sim da pessoa. E a prova desse paralelo ente jurisdição e dominium é

essa: o imperador tinha jurisdição universal, como foi dito acima, no Digesto 1.4.1 e por

isso é que abaixo, no Digesto 14.2.9, ele é chamado senhor do mundo. Assim como

qualquer juiz pode ser chamado de príncipe da cidade ou do território sobre o qual preside,

como é apontado abaixo no Digesto 27.1.15, o imperador pode também ser chamado de

dominus de todo esse território, como disse repetidas vezes, especialmente em meu

comentário na primeira lei do Digesto (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c: 47,

tradução nossa)70

.

Todo senhor, independentemente de ser o Imperador ou outro local, combinava dominium

com jurisdição em sua própria pessoa. A diferença entre eles residia na abrangência: o imperador

agia em relação ao mundo todo, enquanto os demais somente para os territórios que governavam.

Nesse sentido, o jurista estabelece que iurisdictio sobre determinada região segue o mesmo

princípio do dominium: quando é doada a uma pessoa, concede-se toda a jurisdição inerente à terra.

Isso tem consequências que são tão bonitas quanto verdadeiras. É que, se o príncipe ou

alguém concede um território como um todo, parece conceder-lhe completa jurisdição

sobre ele também, porque assim como quando alguém concede a você certa coisa, é dito

68

“[…] dominium and jurisdiction were related to each other in that both of them represented legal powers inhering in

the person or office exercising them.” 69

“Dominium applied to things the lord owned as his private property […] Jurisdiction, however, applied to the territory

over which the lord exercised his lordship.” 70

“Sicut ergo dominium cohaeret personae dñi:tñ est in re, ita iurisdictio cohaerent officio, & p sonae eius qui hét

officium: tñ est in territorio, & sic non est qualitas territorj, sed magis personae. Et ista aequiparatio de iurisdictione

ad dñium probatur sic. Princeps habet omné iurisdictioné, ut.s.de const.prin.l.j.& ex hoc dicit dñs mundi, ut,j,ad

l.Rho,de iactu.l.deprecatio. Sicut q libet iudex dr princeps ciuitatis, vel territorij cui praeest:ut.j.de excu.

Tut.l.spadoné.§.Si ciuitatislrectae põtdici dñs to tius illius territorij vtr osiderati, ficut de principe pluries dixi,&ma

xime in prima ostitutione huius livri”.

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176

que lhe deu dominium sobre essa coisa, conforme o Digesto 18.1.25, então aquele que deu

a você um território como um todo concedeu a jurisdição sobre ele também. Porque a

relação entre jurisdição e território é a mesma que entre dominium e alguma coisa particular

(BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c: 47, tradução nossa).

Uma vez que se esclareceu a proximidade entre os dois conceitos, resta ainda compreender

em que medida não são um mesmo poder. É necessário apontar no comentário da lei romana o

trecho no qual se apresenta a afirmação de que o imperador tinha dominium sobre todas as coisas,

mas que esse domínio não coincidiria com o de outras pessoas, pois é indivisível.

A glosa da palavra “lei” [na constituição Omnem] possui a seguinte questão: desde que se

diz que o imperador tem o dominium da jurisdição universal, isso significa que ele tem o

dominium sobre todas as coisas individuais também? Essa pergunta foi formulada por

Martinus e Bulgarus há muito tempo71

. À primeira vista pode parecer que, como o

imperador é dominus de todas as coisas no universo, ele deve ser também dominus de todas

as coisas individuais, como está sugerido no texto do Digesto 14.2.9 e Código 7.37.3 [...]

Por outro lado, entretanto, de acordo como o Digesto 13.6.5, dominium indivisível não

pode pertencer a duas pessoas ao mesmo tempo. Agora vejo que de acordo com as

Institutas 2.1.11, dominium sobre coisas individuais pertencem ao individuo. Assim não

pode pertencer ao imperador. Além disso, o direito de mover um processo judicial sobre

uma coisa pertence a pessoa que tem o dominium sobre essa coisa, como é apontado abaixo

no Digesto 6.1.23. Mas vejo que de acordo com o Digesto 6.1.1, indivíduos têm o direito

de mover tais ações. Assim devem ter dominium – e se tem o dominium, o imperador não

pode tê-lo (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c: 4, tradução nossa)72

.

Nessa passagem não fica evidente que o imperador tem o domínio do mundo. Mas, parece

possível que detenha o que se poderia chamar de “dominium de jurisdição universal”, como aparece

no Digesto 14.2.9 e no Código 7.37.3. (FASOLT, 2004: 188). Entretanto, convém lembrar que

definir o domínio como uma jurisdição universal seria diferente de afirmar que incide sobre coisas

individuais. Portanto, o comentarista compreendia que o imperador não governava o mundo de fato.

“Ele estava perfeitamente consciente de que o poder do imperador era muito limitado. […] Mas

Bartolus estava interessado na lei. Ele contava com os fatos não porque determinavam o que era a

71

Martinus e Bulgarus, doutores do direito romano no século XII, discordavam sobre a seguinte questão: se o imperador

tinha dominium sobre coisas particulares ou não. 72

“Querit gl. Sup verbo sanctioné, nunqd fm quod Imperator dicitur habere dominium vniuersalis iurisdictionis,

ita&particulariu reru? Quae q. fuit antiquitus agitata inter Mar.&Bul. Et primo vt quod fm quod ille est dominus

vniuersalium, ita & sic particulariu reru, vt est text.in l.deprecatio.ad l.Rho.de iac.& l.bñ a Zenone.in prin.C.de

quadr.prescrip... In coriú facit, q a dniú insolidum penes duos esse no pot, ut l.si utt certo.§.si duobus vehiculu.j. como.

Sed ego vídeo q dnia rerú sút singuloru, ut isti.de rei diui.§singulo Ru. Ergo no principis. Preterea, rei vendicatio dat

dño, ut j. de rei védi.l.in re actio.sed ego vídeo, q singularres hois pssunt res vedicare, ut l.i.de rei vê.&sic sut dni. Si

ipsi sut dñi ergo no princeps. Quid dicedu? Gl. Hic determinat q opi. Bul. q Imerator no sit dñs particulariu rerú”.

Page 180: Anais 2011

177

lei e o que não era, mas porque sem eles a lei não poderia ser corretamente aplicada”73

(FASOLT,

2004: 176, tradução nossa).

Assim, o imperador não tem o direito de ter dominium particular sobre todas as coisas do

mundo. Outro dado importante: domínio só existe quando há alguém que promove a proteção

daquilo que é objeto de dominium. Como entre as atribuições de um Imperador encontra-se a função

de preservar o bem comum pela proteção de seus súditos, ele poderia então ser chamado dominus

sobre todas as coisas por meio de transnominação74

. Para Bartolus da Sassoferrato (1570c: 4), o

imperador é chamado dominus mundi porque protegia e exercia a jurisdição em todo o mundo:

É necessário dizer que o imperador é chamado dominus mundi pela virtude de sua proteção

e jurisdição [que ele dá às pessoas que tem dominium sobre coisas particulares no mundo],

porque ele é obrigado a defender e proteger o mundo todo. A palavra “nosso” [na frase

“nosso estado” em Omne], em outras palavras, poderia se referir a dominium [no sentido

estrito], e nesse caso não seria aplicada ao imperador. Mas, às vezes, é usada no contexto

de proteção, e então se aplica ao imperador, como no presente caso. Outra prova para o

mesmo ponto é essa: vejo que as pessoas às vezes são chamadas dominus porque elas

exercem algum tipo de proteção ou administração, como no Digesto 47.2.49 e no Digesto

41.4.7 (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c: 4, tradução nossa)75

.

Portanto, o imperador não teria dominium sobre as coisas no mundo, mas como protetor do

indivíduo privado que as tem, ascendia a condição de dominus mundi. Mas, essa proposta possuiria

duas fraquezas: primeiro, reintroduziria o tema da indivisibilidade do domínio e, segundo, o

significado de proteger seria diferente de exercer jurisdição. O jurista sabia o que a glosa

determinava, entretanto considerava as razões da glosa inadequadas. Tornou isso claro quando, no

comentário do Digesto 6.1.1, retomou a discussão relativa à sua justificativa para a condição do

Imperador, embasando-a no fato de o mundo ser um todo e como mais ninguém o reivindicou nesse

sentido pleno, seria permitido ao Imperador possuir dominium sobre mundi:

Agora considerando o método de pronúncia e execução do julgamento em um caso

envolvendo [a vindicação de um direito legal de dominium para] u certo todo [como, por

exemplo, um rebanho de ovelhas]. Em um caso como esse, o juiz pode pronunciar que o

rebanho pertence a mim, mas o rebanho, entretanto, somente será devolvido depois que

quaisquer cabeças pertencentes a outrem tenham sido levadas. É por isso que estou

acostumado a dizer em meu comentário da constituição [Omnem] que o imperador é

73

“He was perfectly well aware that in fact the power of the emperor was severely limited. […] But Bartolus was

interested in law. He reckoned with the facts not because they determined what was law and what was not, but because

without them the law could not be properly applied.” 74

Transnominação ou metonímia consistiria no emprego de uma palavra por outra, com a qual se liga por uma relação

lógica ou de proximidade. 75

“Rñdet q rone protectionis & iurisdictionis Imperator dr dñs mudi. Q a tent totu múdú defendere,&, ptegere, &fic

apposition verbi nostrae, port referri ad dniú. & tuc no refert ad Principé. Interdu. Rone ptectionis,,& tunc refert, vt

hic. Ité, pbat, q a ego video, q drone ptectionis vel administrationis, dicitur q s esse d´ns, vt l.intedú.§.q tutelá.j.de

fruitis.& l.q fundú.§.si tutor.j.p emptore”.

Page 181: Anais 2011

178

verdadeiramente dominus de todo o mundo, mesmo que a glosa diga que ele é dominus

somente na medida em que protege tudo, desde que diferentes pessoas não podem ter

completo dominium sobre a mesma coisa. Não é um contra-argumento válido que outras

pessoas são domini sobre coisas individuais, porque o mundo é um tipo de todo. Assim

alguém pode dizer que tem o seu todo [como um dominus] mesmo que as coisas

individuais não pertençam a ele. Se alguém mais tivesse tomado o mundo, o imperador não

poderia justificar seu pedido [em uma corte de direito] (BARTOLUS DA

SASSOFERRATO, 1570c: 172, tradução nossa)76

.

Nesse sentido, o mundo seria mais que a soma de todas as coisas individuais nele contidas,

tratando-se de um todo individual e pleno. Assim, havia um tipo de dominium que se aplicava ao

mundo, no mesmo sentido que se aplica a todas as coisas individuais. Seria indistinto daquele sobre

coisas particulares: igualmente indivisível e sujeito ao processo legal pelo qual demandantes

poderiam estabelecê-lo sobre alguma coisa particular. Fasolt (2004: 191) destaca então que o que se

entendia como sendo universal não poderia ser considerado como sinônimo da palavra total. “Era

um direito para o todo, mas não para as partes”77

(tradução nossa).

Percebe-se que os argumentos utilizados pelo comentarista apresentam a natureza como

dependente do relacionamento de suas parte. “No universo de Bartolus, relações seriam ingredientes

constituintes, as coisas seriam os seus precipitados”78

(FASOLT, 2004: 195, tradução nossa). A

existência de dominium individual e dominium universal não pressupõe a existência de um conflito

entre eles. Ambos são aplicados a uma mesma res, entretanto, em relações diferentes. No primeiro

caso, uma parte de um todo estaria sob a influência de dominium, enquanto no segundo seria a

totalidade de um bem79

. As coisas seriam unidades individuais que podem se submeter a dois tipos

de poderes diferentes: dominium direto, pertencer cada uma a uma pessoa, e a jurisdição que rege o

território no qual estão inseridas.

Nesse sentido, surge uma pergunta: se o Imperador é dominus mundi quem lhe concede esse

senhorio universal? Deus. Bartolus da Sassoferrato (1570c: 3) afirma que “note bem que mesmo o

Imperador invoca o nome de Deus e, assim, seria cristão, como eu disse acima no contexto da

primeira constituição. Seguindo isso, não sendo ele cristão, não poderia ter sido imperador e não

76

“Ex hoc nota modum pronunciandi & exequendi, quando petitur vniuersitas rerum, quod licet iudex pronunciet gregem

esse meum, tamen restitutio fiet mihi detractis capitibus alienis. Pro hoc ego sum consuetus dicere in prima

constitutione huius libri.vt cum Imperator sit dominus totius mundi. Et gl. Dicunt eum dominum quo ad protectionem:

quia cum alij fint domini singulariter, plures non poterunt esse domini in solidum. Ego qd Imperatore est dominus

totius múdi vere. Nec obstat, quod ahjsunt domini particulariter, quia mundo est vniuersitas qaedam: vnde potest quis

habere dictam vniuersitatem, licet singulae res non sint suae. Vndefi alius tenert mundum, ipse Imperator posset

vendicare. 77

“It was a right to the whole, but not to the parts”. 78

“In Bartolus’ universe, relationships were the constituent ingredients; things were their precipitates”. 79

O exemplo apresentado por Bartolus da Sassoferrato (1570) é o de um rebanho de ovelhas, no qual um indivíduo é

dono de uma ovelha que pode estar no rebanho que pertence à outra pessoa. Essa pessoa terá dominium sobre o

rebanho, mas não sobre a ovelha. O mesmo se aplicaria àquele que possui a ovelha, entretanto não o rebanho.

Page 182: Anais 2011

179

teria a jurisdição temporal”80

(tradução nossa). Em outra passagem, acrescenta que Deus é a causa

de tudo: “o império e a ecclesia provêem de Deus como sua causa eficiente”81

(BARTOLUS DA

SASSOFERRATO, 1570c: 3v, tradução nossa). Portanto, se Deus foi o responsável por criar o

mundo como uma unidade, somente Ele poderia atribuir o direito sobre sua criação.

Por tudo isso, Bartolus da Sassoferrato, em certa medida, propõe que o conceito de

dominium seja compreendido não apenas como relacionado às partes, mas também ao todo.

Justifica assim o direito que o Imperador possui de ser chamado dominus mundi, ao considerar que

sozinho detinha o domínio sobre o mundo como um todo. Possuiria um relacionamento tão próximo

da jurisdição que Bartolus da Sassoferrato sintetizou-o em uma única frase como se fossem

consubstanciais: domínio de jurisdição universal (dominium universalis iuridictionis). Essa ideia

bartoliana de dominium mundi, tão próxima da jurisdição, influenciou diversas gerações que se

seguiram.

REFERÊNCIAS

1 Documento arquivístico

JUSTINIANI. Digestae. [529]b Disponível em:

<http://www.thelatinlibrary.com/justinian.html>. Acesso em: 3 dez. 2007.

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Transactions of the American Philosophical Society. Philadelphia, v. 43, part 2, 1953b. p.

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______. Imperium. In: ______. Encyclopedic dictionary of Roman Law.: Transactions of the

American Philosophical Society. Philadelphia, v. 43, part 2, 1953c. p. 493-494.

______. Iurisdictio. In: ______. Encyclopedic dictionary of Roman Law.: Transactions of

the American Philosophical Society. Philadelphia, v. 43, part 2, 1953d. p. 523-524.

BARTHÉLEMY, Dominique. Senhorio. In: LE GOFF, Jacques; SCHIMIDT, Jean-Claude.

Dicionário temático do ocidente medieval. São Paulo: EDUSC, 2002. V. 1, p. 465-476.

CHIFFOLEAU, Jacques. Direitos. In: LE GOFF, Jacques; SCHIMIDT, Jean-Claude.

Dicionário temático do ocidente medieval. São Paulo: EDUSC, 2002. V. 1, p. 333-351.

80

Nota quod etiam Imperator invocavit nomen domini, et sic fuit Christianus ut dixi supra in prin constitutione. Et ex hoc

sequitur, quod si non fuisset Christianus non potuisset esse Imperator, nec haberet temporalem iurisdictionem. 81

Imperium et ecclesia processerunt a Deo, tanquam a causa efficiente. Deo autore, 1:3v col b, nº14.

Page 183: Anais 2011

180

3 Fontes Primárias

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1570a.

______. In primam codicis partem. Venetiis: Ivntas, 1570b.

______. In primam digest veteris partem. Venetiis: Ivntas, 1570c.

______. In primam infortiati partem. Venetiis: Ivntas, 1570d.

______. In primam ss. noui partem. Venetiis: Ivntas, 1570e.

______. In secundam codicis partem. Venetiis: Ivntas, 1570f.

______. In secundam digest veteris partem. Venetiis: Ivntas, 1570g.

______. In secundam infortiati partem. Venetiis: Ivntas, 1570h.

______. In secundam ss. noui partem. Venetiis: Ivntas, 1570i.

4 Fontes secundárias

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Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 4.

ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 196-216.

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GROSSI, Paolo. El orden jurídico medieval. Madrid: Marcial Pons, 1996.

______. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.

LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.

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MAIOLO, Francesco. Medieval Sovereignty: Marsilius of Padua and Bartolus of

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182

AS RELAÇÕES ENTRE MAGIA E SEGREDO NO PALCO DA POLÍTICA ENTRE

OS SÉCULOS XV E XVI

Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior1

1 Introdução

O pensamento mágico enquanto manifestação histórica permanece como objeto pouco

explorado pelos historiadores, e ainda mais as suas ramificações pelas demais áreas da vida

humana, dentre as quais podemos elencar a política. Entretanto um olhar mais apurado mostra

que as reflexões sobre tal influência nos períodos conhecidos como Baixa Idade Média e

Renascimento podem revelar uma maior complexidade para as motivações e ações humanas

naquele período. O que se pretende nesta oportunidade é introduzir o tema do pensamento

mágico na Europa dos séculos XV e XVI, tendo em mente as implicações políticas desta

forma de conceber o mundo numa conjuntura de mudança e conflito.

2 O pensamento mágico e a idéia de segredo entre os séculos XV e XVI

Em vinte e seis de março de 1499, Johannes Trithemius (1462-1516), então abade de

Sponheim, escrevia ao seu companheiro da Fraternidade de Joachim2, o carmelita Arnold

Bostius (1445-1499), sobre uma obra que estava produzindo. Tratava-se de um livro chamado

Steganographia, que possuiria quatro volumes, composto por cem páginas cada um. O

primeiro volume trataria de mais de uma centena de formas de escrita secreta para a

transmissão de mensagens, sem que fosse preciso se valer de transposição de letras, e, mais

importante, sem o risco de ser pego, uma vez que a mensagem seria indecifrável aos não

iniciados nestas técnicas. O segundo volume se dedicava à transmissão de segredos a longa

distância, sem a utilização de palavras, escrituras ou mesmo sinais. O terceiro volume conteria

a forma de tornar fluente em latim um completo ignorante nesta língua, no intervalo de duas

horas apenas. O quarto e último volume desta obra estaria voltado para as formas de

1 Mestre e Doutorando em História e Culturas Políticas/UFMG, Codiretor do Centro de Estudios sobre el

Esoterismo Occidental de la UNASUR e Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais

(FAPEMIG). E-mail: [email protected]. 2 Fundada em 1497, e contando entre os seus com Sebastian Brant (1457-1521), além de Bostius e Trithemius,

essa associação religiosa tinha como intento defender a concepção imaculada da Virgem por Sant'Ana.

(COULIANO, 1987: 168)

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183

transmissão de um "pensamento secreto" diretamente para a mente do destinatário (BRANN,

1999: 86). A missiva de Trithemius chegou ao monastério de Ghent somente após a morte de

Bostius, o que implicou que o prior de Ghent interceptasse a carta e tomasse conhecimento do

seu conteúdo, iniciando assim uma longa série de acusações de demonomagia e conluio

demoníaco à Trithemius e sua obra, que terminaria inconclusa e distante do arremate glorioso

que o abade de Sponheim havia prometido ao companheiro de fraternidade (CULIANO,

1987: 168).

Por volta de 1558, o então jovem dramaturgo italiano Giambattista della Porta (1535-

1615) compôs uma de suas obras mais impactantes: o Magiae Naturalis. Nessa obra Della

Porta realizava uma primeira aproximação com temas que seriam marcantes em sua produção

futura, como a ótica, a fisiognomia e a química, tudo isso embalado pela concepção de mundo

oferecida pela chamada magia natural, uma espécie de desdobramento da filosofia natural,

muito popular na sua época. Marcadamente o Magiae Naturalis possui um capítulo

especialmente dedicado à comunicação secreta, onde Della Porta buscou aplicar as práticas da

magia natural em prol da manutenção do segredo.

É interessante que tanto Trithemius quanto Della Porta tenham se dedicado à produção

de mais de uma obra sobre a comunicação secreta. Trithemius terminou a Polygraphia (1508),

onde continuou a se dedicar ao tema da linguagem cifrada e Della Porta produziu o De

Furtivis Literarum Notis, vulgo De Zipheris (1563), também uma obra dedicada às cifras. Mas

a produção da época voltada ao mundo do segredo e das cifras não se resume aos dois

exemplos acima elencados, havendo ainda o Traité des Chiffres (1586), de autoria do

diplomata francês Blasé de Vigenère (1526-1596) e uma obra de criptografia encomendada

pela Cúria Roma ao ícone do Renascimento italiano, Leon Battista Alberti (1404-1472), que

ficou pronta em 1472 (BURKE, 1997: 31).

Para além da preocupação com a manutenção do segredo em determinados assuntos,

varias destas obras possuíam uma relação comum: seus autores mantiveram relação com o

pensamento mágico que florescia a época. O que a Steganographia propôs foi uma forma de

comunicação à distância utilizando espíritos aos quais Trithemius identificou como anjos, e

mesmo com todas as acusações de demonomagia o abade de Sponheim insistiu na mesma

direção na composição da Polygraphia, que ele afirmou estar livre de influências mágicas,

quando seu sistema de cifras foi baseado na concepção pitagórica da regra esotérica, segunda

à qual os números encerrariam mistérios acessíveis somente aos iniciados (BRANN, 1999:

130). Também em sua obra dedicada as letras secretas, as zipherae, Della Porta apontou o uso

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184

da comunicação cifrada pelas deidades como Hermes Trismegistos para tratar dos assuntos de

seu interesse. Vigenère em sua obra constrói seu sistema de cifras alicerçado nas permutas de

letras e números, oriundo da cabala cristã, mesma origem de boa parte da criptografia de

Alberti.

Assim, nos parece clara a relação entre a produção das cifras e o pensamento mágico

nos séculos XV e XVI, sendo o hermetismo e a cabala as tradições mágicas mais influentes.

Buscando compreender os mecanismos de contato entre a comunicação secreta e a magia,

cremos que a construção de uma concepção acerca do segredo seja a grande ponte de

comunicação entre ambas. Sendo assim, consideramos muito rico e necessário apresentar

tanto o hermetismo quanto a cabala, mantendo como elemento norteador a idéia de segredo.

Começamos pelo hermetismo, cuja mensagem se baseia na epifania recebida por Hermes

Trismegistos, personagem mítica que foi seu arauto. Uma das manifestações do deus pai, o

Noûs Pai, se apresentou a Hermes e se autonomeou como Poimandres ou Pimandro, e oferece

a sabedoria de como teriam se dado os mistérios da criação. A revelação informa que o Noûs

Pai criou o Noûs Demiurgo e este por sua vez criou os Sete Planetas da rede zodiacal, e estes

aos seres inferiores. Nessa ciranda cosmogônica, o Noûs Pai se reservou o direito de atuar

diretamente na tarefa criativa uma vez mais, quando criou ao homem à sua imagem e

semelhança. Este maravilhado pela glória da criação teria clamado ao seu Criador que lhe

permitisse possuir também potência demiúrgica, no que foi atendido. Assim, o Noûs Pai

ordena que o Noûs Demiurgo e os Sete Planetas doem parte de sua capacidade demiúrgica ao

homem, a fim de tornar ele também um demiurgo. Elevada a condição do homem, ele se

apaixona pela Natureza, por reconhecer nela a mesma fagulha de divindade demiúrgica que

também nele habitaria, e parte ao seu encontro. Porém, entre ele e a Natureza estavam

colocadas as esferas dos Planetas e suas influências, que quando foram atravessadas pelo

homem que seguia em direção à Natureza se agregaram a ele, dando existência física ao

homem por meio da criação da armadura das esferas, ou seja, seu corpo físico, surgido pela

associação das influências planetárias na essência espiritual do homem. O aparecimento da

armadura das esferas tornou o homem refém das influências planetárias, que antes só atuavam

sobre os seres inferiores, que foram criados pelas entidades planetárias. Eis o ponto no qual o

homem teria se tornado refém da Fortuna, ou seja, da atuação das influências dos planetas

governadores na qualidade de prisioneiro da rede zodiacal (TRISMEGISTOS, 2001).

Neste ponto podemos inserir os daimones. Estes seriam seres espirituais,

intermediários entre os homens e as deidades, responsáveis por atuar a influência dos planetas

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185

governadores sobre o mundo dos homens. São os daimones que levam o castigo ao mau e a

recompensa ao justo. Conforme a concepção hermética de que é por meio deles que as

deidades planetárias exercem suas vontades sobre o mundo engendrado, é correto afirmar que

os daimones seriam de fato os agentes da Fortuna. Entretanto, conforme o discurso de

Trismegistus, os daimones são antes de tudo amigos do homem bom, velando pelos assuntos

dos homens, e eles ocupariam papel principal na ação do homem feito duplo. A magia natural

reintroduziria a figura do daimon por meio de sua fusão ao anjo cristão, surgindo disso uma

personagem angélica susceptível as práticas mágicas.

O Poimandres lembra ao Trismegistos que o homem ainda retém sua fagulha de

divindade, e que graças a isso a armadura das esferas não deve ser percebida como grilhões,

mas como uma benção, pois a soma dessa fagulha divina e da armadura das esferas permite ao

homem atuar tanto no mundo terreno quanto no mundo celeste. Assim, o homem seria um

duplo, superior mesmo aos deuses, bastando para isso redescobrir seu quinhão de divindade e

colocá-lo para atuar em conjunto com a armadura das esferas (TRISMEGISTO, 2001),

adquirindo assim os meios para comandar a rede de antipatias e simpatias que regeriam o

universo a partir das influências planetárias. Esse homem divinizado seria capaz de mobilizar

os daimones para a satisfação dos seus desejos, colocando a rede simpática regente do

universo sob o domínio de sua vontade, dominando assim da rede zodiacal.

O grande desafio e objetivo maior da vida humana seria então obter os meios

necessários para esse redescobrimento da fagulha divina que em si repousava. A mensagem

hermética avisa que o único meio para realizar tal proeza seria reconhecer a divindade do

Noûs Pai, porém resta aí um problema, pois aquele que engendra não precisa ser visto,

necessidade exclusiva apenas aos engendrados, logo os sentidos físicos seriam inúteis para

percebê-lo, ao menos de forma direta. A única maneira de se contemplar ao Criador seria por

meio de sua criação, ou seja, descobri-lo em sua obra maior: a Natureza. O hermetismo

afirmava que o Criador deixou mensagens divinas ocultadas na Natureza, que uma vez

decifradas seriam capazes de colocar o homem diretamente em contato com sua divindade

interior e, dessa forma, com o próprio Noûs Pai (TRISMEGISTOS, 2001). Dentro da

concepção hermética, a natureza foi uma construção em camadas, entre as quais a deidade

teria ocultado sua mensagem divina. Assim, o segredo destas ações divinas só estaria

disponível aos homens que haviam sido devidamente iniciados nos mistérios herméticos, o

que coloca a relação com o segredo como um dos elementos mais centrais do hermetismo.

Tratemos agora da cabala.

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186

De acordo com Yates (1995: 100-101), a cabala originalmente seria uma doutrina

secreta transmitida por Moisés a um seleto grupo de iniciados, que por sua vez teriam

retransmitido tais ensinamentos aos seus discípulos mais merecedores, num processo

contínuo. A cabala teria como objetivos a contemplação mística buscando atingir a percepção

da divindade, bem como, em sua faceta mais prática, a invocação dos dez sefirots, que são os

nomes ou forças de Deus, bem como do próprio Deus para que operem maravilhas na vida

humana, e tal esforço teria como ferramenta central o idioma hebraico. A língua hebraica

seria ela mesma sagrada e tão fundamental às práticas cabalistas pela crença segundo a qual

quando da Gênese, Deus se valeu da palavra falada para criar o mundo, e teria utilizado o

hebraico em seus esforços demiúrgicos. Portanto, o hebraico conteria as forças criativas

oriundas da divindade de sua aplicação, mais do que isso, os nomes de Deus estariam contidos

nele.

Tão fundamentais quanto o hebraico seriam os sefirots, cuja doutrina foi estabelecida

no Sefer Yetzirah, o Livro da Criação, possuindo inúmeras referências também no Zohar, o

Livro do Esplendor, obra produzida na Espanha do século XII. Conforme afirmado

anteriormente, os sefirots são os dez nomes de Deus, que representam as forças divinas

atuantes na gênese, cujo conjunto formaria o verdadeiro nome de Deus. O poder dos sefirots

estava intimamente ligado às dez esferas do cosmos, a dos sete planetas, a das estrelas fixas e

das esferas mais altas, lembrando muito a relação do hermetismo entre os daimones e os sete

planetas governadores. Dessa forma, os sefirots, que foram tidos como anjos pelos cabalistas

cristãos, possuíam fundamental importância para a organização cabalística do cosmos,

havendo os bons e os maus, abrindo assim a possibilidade para uma "cabala negra", que

funcionaria da mesma maneira do que a cabala "branca", porém utilizando os nomes ou forças

de Deus para subjugar e comandar demônios (YATES, 1995: 113-114), sendo possível a

analogia com a relação entre a magia natural e a demonomagia. Entretanto, por mais

poderosos que fossem os sefirots, tanto na cabala tradicional quanto na cristã, o hebraico

permanece como instrumento central, pois a relação com os sefirots era necessariamente

mediada por ele.

Durante o Renascimento a cabala foi apropriada pelo movimento humanista, assim

como também o havia sido o hermetismo, adaptando-se aos dogmas cristãos. Essa forma de

cabala, chamada de cabala cristã, também possuía um vínculo estreito e fundamental com a

idéia de segredo. Essa manifestação cabalística trazia a ideia de que nas palavras que formam

a oração é que residiria o poder real, transformando-as em uma espécie de "encanto lícito"

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187

capaz de evocar anjos atuantes nos assuntos humanos e de criar uma forma efetiva de

aproximação entre Deus e os homens, tudo isso devidamente inserido no dogma cristão. Um

dos grandes nomes da cabala cristã foi o alemão Johannes Reuchlin, que foi o grande

continuador da obra de Pico della Mirandola e também um dos grandes responsáveis pela

adequação das concepções cabalísticas aos dogmas cristãos, como por exemplo, a introdução

da ideia que a evocação dos nomes de Deus opera efeitos maravilhosos não porque dotaria o

homem de poderes extraordinários, mas porque permitiria que ele se tornasse instrumento da

ação do próprio Deus (ZICA, 1976).

Em sua vigésima quinta conclusão de sua famosa obra Conclusiones philosophicae,

cabalisticae et theologicae (1486), novecentas teses que defendiam concepções acerca da

cabala, magia natural e teologia, o famoso humanista florentino, e fervoroso defensor da

cabala cristã, Pico della Mirandola defendeu que enquanto a magia natural se valia dos

caracteres relativos aos governadores ou anjos planetários para atuar, a cabala utilizava os

números derivados do alfabeto hebraico por processos complexos (YATES, 1995: 114-115).

Diversos métodos cabalísticos tinham no hebraico sua ferramenta primordial, como o

Notarikon, um sistema de abreviações, o Temurah, que lidava com transposições e

anagramas, e a gematria, que designava valores numéricos para cada letra hebraica e por meio

de técnicas matemáticas complexas, calculava as palavras em números e depois os recalculava

em forma de palavras, possibilitando assim calcular toda a organização do mundo ou o

tamanho das hostes celestiais. A cabala cristã possuía ainda uma técnica de meditação

baseada num complexo sistema de permutação e combinações das letras do alfabeto hebraico.

Um bom exemplo da importância do hebraico para a cabala, ao menos a cristã, foi a ideia de

que a divindade do Cristo e da doutrina da Trindade se validaria pela Cabala, uma vez que o

divino Pentagrammaton, IHSUH significaria Deus, o Filho de Deus e sua Sabedoria por meio

da divindade da Terceira Pessoa (YATES, 1995: 109-111).

Uma informação relevante é que na gênese cabalista está também presente a ideia da

criação primordial como uma ação em camadas, que possuíam entre si uma mensagem divina

a ser descoberta e salvaguardada pelo iniciado, da mesma maneira que no hermetismo. Assim,

como o crente da fé hermética percebe nas camadas da criação os indícios do Criador, o

cabalista percebe nas camadas do hebraico a presença criadora de Deus (YATES, 1995: 109).

Dessa maneira, tanto o hermetismo quanto a cabala teriam como um de seus elementos

centrais o segredo, tanto como ferramenta de proteção da verdade libertadora, quanto como

instrumento para atuação sobre o mundo criado. Sendo assim, o que cabalistas e hermetistas

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188

buscavam era a construção de uma gramática funcional para instrumentalizar a mensagem

oculta pelo Criador. Seus esforços convergiam necessariamente para decifrar a mensagem

divina e secreta presente no Livro da Natureza, e poder então construir uma ponte segura e

direta de acesso ao Criador de todas as coisas.

Essa ideia de uma mensagem oculta de Deus em sua criação, fomentou nos magi um

desejo profundo pelo segredo. Freqüentemente se dedicaram à criação de línguas mágicas

artificiais, bem como a eleição e a adoção de línguas tidas como mágicas, caso do egípcio

hermetista e do hebraico cabalista, que eram percebidas como línguas funcionais e não

meramente discursivas, como o latim e o grego. Conforme Kieckhefer (1989: 140) e Rossi

(2001: 45), tais práticas possuíam uma motivação que ia para além do desejo de decifrar a

virtude oculta da criação e abrir os portões de acesso ao Criador, pois com a adoção e criação

de línguas mágicas secretas os magi estariam criando meios de salvaguardar um tipo de

conhecimento que possuía poder, ainda que em latência. A busca por línguas mágicas

secretas, artificiais ou não, deu ideia da importância da concepção do segredo para a mecânica

da chamada magia naturalis.

A magia natural que foi muito popular no período, foi de fato um híbrido do hermetismo,

cabala e filosofia natural, que atendeu aos desejos humanistas de obter ferramentas para

sobrepujar a Fortuna e para reformar o cristianismo, ao qual se entendia como refém de uma

instituição corroída por suas preocupações temporais. Nesse sentido, os humanistas puderam

mobilizar o hermetismo e a cabala como elementos purificadores da fé cristã graças ao

conceito de prisca theologia. Conforme Walker (2000), houve entre alguns homens do

Renascimento a ideia de que as manifestações de um cristianismo anterior a vinda de Cristo

não se restringiram aquelas narradas no Velho Testamento, elas também teriam ocorrido entre

os gentios. A vinda do Messias teria sido antecipada por uma série de manifestações por meio

de profetas gentios, a fim de preparar o solo para que a semente da fé cristã pudesse germinar.

Dessa forma, Zoroastro, Hermes Trismegistos e Platão não só eram inseridos na fé cristã,

como também assumiam papel essencial em sua origem, surgindo como fonte para a

renovação espiritual procurada pelos chamados “magos cristãos”, que buscaram nessas

manifestações mágicas o frescor que o cristianismo havia perdido.

A magia natural adotada nos séculos XV e XVI foi em muitos sentidos uma forma de

extrapolar. Tal afirmação pode ser feita porque ela foi uma extrapolação da filosofia natural,

pois não bastava compreender os mecanismos e liames da obra natural, era necessário nela

atuar, e nesse mesmo tom, a magia natural também foi uma extrapolação da virtù virtutis,

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aquela qualidade perseguida pelos humanistas como única forma de lidar com a Fortuna, e

passível de obtenção por meio do programa dos Studia humanitatis. Nesse sentido, a magia

natural tornava-se a ferramenta por meio da qual o homem poderia "construir sua própria

face", como almejava Pico della Mirandola. A magia natural permitiria que o homem não

apenas lidasse com a Fortuna, mas que dela se tornasse senhor ao controlar os melindres

ocultos do mundo criado. Quando falamos em liames ocultos do mundo natural

necessariamente nos referimos à questão das virtudes ocultas.

Tanto o hermetismo quanto a cabala, e mesmo correntes mágicas de menor influência

no período como os hinos órficos, tinham em comum a ideia de que toda a criação estava

interconectada pela influência divina, intermediada pelos astros, compondo mesmo uma rede.

Essa rede era dinâmica e funcionava por meio de relações de simpatia ou antipatia, isso

porque os astros, os seres e os elementos funcionavam como meios refratários da energia

divina original, alterando suas possibilidades de atuação em função de quem ou o que a

recebia e dispersava. Com isso as qualidades dos seres e das coisas se repeliam ou se atraiam

em função de quais qualidades a influência astral atribuía a eles. O que a magia natural

buscou fazer foi instrumentalizar todo esse emaranhado de simpatias e antipatias, de forma a

possibilitar ao magus obter o efeito desejado por meio da correta manipulação dessas

relações. Como disse Marsilio Ficino, um dos grandes nomes da magia natural e do

humanismo, o universo seria como um instrumento musical, uma lira da braccio, restando

apenas saber como dele obter a melodia desejada.

A ideia de virtudes ocultas que esta na base do funcionamento da magia natural reflete

a importância do segredo para o pensamento mágico nos séculos XV e XVI. Todo esse

esforço a cerca do domínio de tais qualidades ocultas nos apresenta uma preocupação

sistemática para a construção de meios por meio dos quais se pudessem decifrar os segredos

contidos no mundo natural. Logo, a concepção de segredo então vigente tinha como principais

artífices os indivíduos que dedicaram suas vidas para decifrar os vestígios ocultos da

divindade no mundo dos homens.

3 Secretarium e Magus: os agentes do segredo

Realizado todo esse esforço reflexivo acerca do pensamento mágico nos séculos XV e

XVI, podemos apresentar um ponto interessante: a estreita relação entre os magi e os

príncipes. Retomando as personagens inicialmente aventadas, o abade Trithemius possuía

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190

vínculos estreitos com o imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Maximiliano I, o

qual consultava a renomada biblioteca construída pelo abade em Sponheim, além de ter no

religioso uma fonte de conselhos, lembrando que a Steganographia foi dedicada ao príncipe

Philipp, eleitor-margrave do Palatinado e duque da Bavária, e a Polygraphia ao próprio

Imperador Maximiliano I. Da mesma maneira lembremos-nos de Blasé de Vigenère e sua

atuação como funcionário da corte, bem como que Della Porta dedicou a sua Magiae

Naturalis ao rei espanhol Felipe II, sucessor do imperador do Sacro Império Romano-

Germânico Carlos V, cujos domínios abarcaram a sua cidade natal, Nápoles. Esse vínculo

estreito entre os príncipes da cristandade e formas religiosas pouco ortodoxas, ainda que se

percebessem como parte de uma renovação do cristianismo, é intrigante e suscita dúvidas

cujas respostas podem residir na ascensão da figura do secretarium.

Em sua reflexão sobre a passagem do regimen medieval, onde o poder seria concedido

por Deus ao rei para que este garantisse a salvação do rebanho da cristandade, para as formas

modernas de governo, onde o poder tornou-se fim em si mesmo e não mais instrumento,

Michel Senellart (2006: 267-278) apresentou a figura dos Arcanae Imperii, que são formas de

compreender a relação entre o poder e ação política tendo como fio condutor a publicidade

dos atos e intenções do príncipe. Tais Arcanae possuíam três fases, nomeadamente o Mistério,

o Segredo e o Estratagema. O Mistério se refere ao momento dos reis-deuses, onde sua ação

não precisava ser apresentada aos súditos por ser transcendental a comunidade mortal. O

Mistério não pode ser descoberto ou ensinado, apenas revelado pelo soberano divino a um

grupo de eleitos. No último estágio dos Arcanae, o Estratagema, o poder já se tornou um fim

em si mesmo, visando as ações principescas apenas proteger a sua posse. Por causa disso, se

torna justificável a utilização de armadilhas e maquinações para buscar a posse ou a

manutenção do poder. O Segredo corresponderia ao ponto intermediário na sucessão dos

Arcanae. Neste momento não foi proibido que se conhecesse as ações principescas, mas elas

ainda que visíveis deveriam permanecer na penumbra. O Segredo poderia ser publicizado,

mas só deveria ser compreendido por poucos. E, para tanto, se fez necessário o surgimento da

figura do secretarium. Este funcionário do príncipe dominaria um conhecimento fundamental

para que o Segredo fosse possível: a arte da comunicação cifrada. Assim, o Segredo pode ser

compreendido pelo estudo, e não simplesmente pela revelação divina. Ele se torna um esforço

baseado na virtù, como buscavam os humanistas. Os secretários começaram inventariando e

cifrando as riquezas financeiras e bélicas dos reis em obras chamadas "Livros de Segredo",

que acabaram por se metamorfosear em espelhos de príncipes, voltados para ensinar ao

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soberano as maneiras e quais conteúdos deveriam permanecer ocultos ainda que sob a vista de

todos.

Quando Senellart aponta quem seriam as grandes fontes de onde bebiam os secretários

para lidar com suas cifras, os citados são o abade Trithemius, o dramaturgo della Porta e

Jacques Gohory (1520-1576). Porém, tais homens mantiveram relações estreitas com o

mundo da magia, como foi o caso de Trithemius e sua comunicação secreta à longa distância

por meio de espíritos, e suas relações com magos famosos do período, como seu auto-

proclamado discípulo Cornelius Agrippa Von Netteshein (1486-1535); Della Porta e sua

Academia dei Segreti onde só aceitava homens que tivessem contribuído para o conhecimento

do mundo natural por meios diversos, incluindo aí a magia natural que o próprio Della Porta

abraçou e o próprio Gohory e seu centro ocultista na Paris do século XVI, o Lycium

Philosophal de Saint Marceau de Paris. Senellart viu nessa relação um rompimento com a

magia em direção a técnica, porém a magia não exclui a técnica, freqüentemente vendo nela

uma parceira, e o que as fontes apontam é um entrelaçamento das duas e não um afastamento.

Em sua Steganographia, o abade Trithemius buscou fornecer os meios para que o

príncipe pudesse se comunicar secretamente e em segurança com quem julgasse preciso e

acerca das matérias que julgasse necessárias. A comunicação esteganográfica se daria por

meio de um sistema de invocação e contra-invocação. O mago emissor deveria confeccionar

uma carta de conteúdo irrelevante, em cujo cabeçalho haveria uma exortação à Santíssima

Trindade, bem como o símbolo do espírito aéreo escolhido para carregar a mensagem. Pronta

a carta, seria a hora de realizar o encantamento em conformidade com as direções geográficas,

utensílios materiais e encanto corretos para o espírito-aéreo escolhido, revelando a este a real

mensagem a ser transportada. No momento no qual o mago-destinatário recebesse a missiva,

ele deveria descobrir qual espírito-aéreo estaria encarregado de lhe transmitir a mensagem e

realizar a contra-invocação correta, a fim de que recebesse a verdadeira mensagem do

espírito-aéreo (TRITHEMIUS, 1982: 21-22). O abade de Sponheim apresenta um grande

leque de espíritos-aéreos ou anjos, como ele os identifica, um para cada tipo de segredo. O

que chama a atenção é que a grande totalidade dos usos da comunicação esteganográfica

estava voltada para as matérias políticas. Quase todos os anjos estão destinados a carregar

secretamente mensagens de caráter político, como Baruchas, responsável por portar as mais

ocultas e secretas comissões dos príncipes, nobres e mestres para seus servos (TRITHEMIUS,

1621: 47-49) e Asyriel, responsável por transmitir em segredo e segurança os planos secretos

dos príncipes (TRITHEMIUS, 1621: 23-26).

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192

O abade possuía grande interesse em obter a exclusividade da atenção dos príncipes,

algo que se pode perceber em sua exortação à perseguição as feiticeiras. Trithemius

justificava tal atitude pelo desejo de proteger os príncipes dos erros e das idolatrias instigadas

pelas feiticeiras, pois elas “barulhentamente capturam a atenção de reis e príncipes,

corrompem a fé ortodoxa, destroem a pureza de nossa religião, e reintroduzem a idolatria3”

(BRANN, 1998: p. 60, tradução nossa). O que Trithemius almejava é que a única influência

mágica sobre os príncipes viesse dos magi, os quais ele compreendia como sendo iluminados

pela luz divina. Logo, podemos afirmar que o abade de Sponheim buscou de fato garantir um

monopólio do segredo, elemento importante para as ações do soberano, retomando a

argumentação de Kieckhefer acerca do poder que os conhecimentos sobre o segredo possuíam

naquela sociedade.

Em correspondência com um admirador e auto-proclamado discípulo, o então jovem

Cornelius Agrippa, ao exortar a qualidade da obra que este havia lhe enviado para apreciação,

tratando-se da emblemática obra De Philosophia Occulta, Trithemius advertiu-o: "Dê feno

aos bois e açúcar aos papagaios, os segredos ordinários aos amigos ordinários, e os segredos

importantes aos amigos importantes". Essa frase expressa a opinião do abade de que nem todo

o conhecimento deve estar acessível a todos os homens, uma vez que

Pois, como os homens honestos, estudiosos de virtude, usam todas as descobertas

para a vantagem e o bem público, então os homens maus desonestos procuram por

eles mesmos, não apenas de instituições más, mas mesmo a partir daquelas mais

reverenciadas e boas, oportunidades pelas quais eles se tornam piores4

(TRITHEMIUS, 1982: 18, tradução nossa).

Por essa razão que Trithemius buscou uma forma de se comunicar os assuntos

relativos ao bom governo de forma secreta e segura. Ele elegeu os espíritos aéreos/anjos por

considerar que as cartas e nem os homens eram confiáveis, segundo ele: “Por essa razão eu

decidi que isto poderia ser confiado não a um homem ou a uma carta, mas apenas para os

3 “[...]noisily catch the attention of kings and princes, corrupt the orthodox faith, destroy the purity of our

religion, and reintroduce idolatry” 4 “For, as honest men, studious of virtue, use all discoveries to public good and advantage, so wicked and

dishonest men seek for themselves, not only from evil institutions, but even from those most revered and good,

opportunities by which they become more evil”.

“Quoniam quidem sicut bonmi & virtutum studiosi homines omnib. adinuentis vtuntur ad bonum & communem

vtilitatem: ita mali & reprobi non modo ex malis, verum & ex bonis atqae sanctissimis institutis occasiones

sibi venantur, quib. deteriores fiant”. (TRITHEMIUS, 1621: 3)

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193

espíritos que eu sei que são leais e confiáveis”5

(TRITHEMIUS, 1982: 87, tradução nossa).

Isso porque “a confiança nos homens muda com a fortuna. Então, por essa razão, que tudo

possa ser seguro, eu chamo um espírito para ser partícipe do segredo”6

(TRITHEMIUS, 1982:

72-73, tradução e grifo nossos).

Num mundo regido pela incerteza, onde a ordem vigente poderia se transformar a

qualquer momento de acordo com os caprichos da Fortuna, onde o Imperador e o Papa

mantinham constante atrito por soberania, a Steganographia se apresentava como uma das

únicas formas de se garantir os interesses do bom governo, pois ela seria a única capaz de

resistir aos golpes do Destino, como podemos ver nesse trecho:

O conselheiro chefe de um rei ou príncipe, no comando de um país ou de uma

província descobriu a partir da mais secreta informação que inimigos tem um

plano para invadir a província em um futuro próximo. Ele deseja advertir o

Príncipe, mas não o pode fazer por meio de mensageiros, uma vez que eles

podem ser torturados no caminho, para trair o segredo. Nem pode ele alertá-lo

por carta, já que ela pode ser aberta. Por essa razão, ele chama um espírito,

confia o segredo a ele, e inventa qualquer outra carta7 (TRITHEMIUS, 1982: 82-

83, tradução e grifos nossos).

Da mesma maneira podemos perceber a relação de Giambattista della Porta com a

comunicação cifrada, pois ela a considera parte do amplo leque de assuntos pertencentes à

magia natural. Em sua “Magiae Naturalis” ele dedicou um capítulo completo às zipherae,

onde demonstrou que acreditava que a linguagem possuía camadas distintas, uma visível e a

outra invisível, abrindo assim a possibilidade de se colocar imagens em seu interior, como ele

mesmo afirmou: “Estabelecemos uma regra dupla para marcar as letras clandestinas e secretas, que o

5 “Hence I decided it should be entrusted not to man or letter but only to spirits which I know are loyal and

trustworthy”.

“Vnde non homini, non literis, sed solis spiritibus committo perferendum, quos noui & securos & fideles”

(TRITHEMIUS, 1621: 80). 6 “[...]that trust in men changes with fortune. So, therefore, that everything may be safe, I call a spirit to be

party to the secret”.

“Homini perferendum minus confido; quippe qui nouerim fidem in hominibus cum fortuna mutari. Vt ergo sint

omnia tuta, Spiritum secreti amicum aduoco” (TRITHEMIUS, 1621: 67). 7 “The chief adviser of a King or Prince, in charge of a country or province has learned from most secret

information that enemies have a plan to invade the province in near future. He wishes to warn the Prince, but

cannot do so by messengers, since they are to be tortured by the enemies on the way to betray the secret. Nor

can he warn him by letter, since that would be open to all. Therefore, he calls a spirit, entrusts the secret to

him, and invents some other letter”.

“Prefectus regis aut principis, in terra seu prouincia constitutus, intellexit delatione secretissima hostes in

breui propositu~ habere prouinciam irrumpendi: vult auisare principem, sed nuntiis non potest, quia

torquendi sunt ab aduersariis in via vt tradant arcanum: nec literis, quoniam omnes aperiuntur per eos.

Vocat ergo spiritum, committit arcanum, literas fingit alienas” (TRITHEMIUS, 1621: 76).

Page 197: Anais 2011

194

vulgo chama Zipherae, à saber uma visível e uma outra oculta”. (DELLA PORTA, 1903: 116)8.

Della Porta se dedicou a apresentar os mais diversos meios pelos quais a magia natural

poderia contribuir para o sucesso da comunicação secreta, buscando aproveitar toda e

qualquer alternativa disponível. Assim, mesmo um ovo pode transportar a mensagem secreta:

Esmagues o alume com vinagre e grave sobre a casca do ovo tudo que tu quiseres;

deixe secar isso à um sol ardente e mergulhe em seguida o ovo em uma salmoura ou

em vinagre bem forte; tu o deixes de molho durante três ou quatro dias depois o

secara e cozinhara. Quando o ovo estiver cozido, despoje-o de sua casca e tu

encontraras tuas letras escritas sobre o branco [clara] do ovo o qual estará duro. Eis

aqui outro meio de chegar ao mesmo resultado: tu untarás seu ovo de cera, e com um

instrumento pontiagudo tu gravaras tuas letras, e os deixes de molho no vinagre

durante um dia. Depois que tu terás tirado tua cera, tu despojes o ovo de sua casca e

tu encontraras todas tuas letras impressas sobre o branco endurecido (DELLA

PORTA, 1903: 120-121)9.

Della Porta buscou colocar as virtudes ocultas das coisas do mundo criado a serviço da

comunicação secreta, fazendo com que o segredo do mundo natural se coloque a disposição

do segredo do mundo da ação humana, como em sua fórmula para a composição de uma tinta

visível somente na escuridão da noite ou sob a ação do calor:

Podemos fazer letras que lançarão clarões e poderão ser lidas a noite. Se alguém por

um escrito secreto quer anunciar a um seu amigo qualquer caso que ele tivesse

descoberto, e o qual se possa somente ler ao mais forte da noite, que ele escreva sem

hesitar sobre papel isso que lhe parecera bom por meio do licor secreto, e a carta

aparecera de dia, se você a aquecer (DELLA PORTA, 1903: 116)10

.

4 Considerações Finais

Verger (1999: 177) afirmou que durante os séculos XV e XVI foi muito comum o

modelo do príncipe "sábio" que se esforçava por ter ao seu redor um grande número de

8 "On établit une double règle pour marquer les lettres clandestines et secrètes, que le vulgaire appelle

Zipherae, à savoir une visible et une autre cachée". (DELLA PORTA, 1903: 116). 9 "Broyez de l'alun avec du vinaigre et gravez sur la coquille de l'oeuf tout ce que vous voulez; faites sécher cela

à un soleil ardent et plongez ensuite l'oeuf dans de la saumure ou du vinaigre très fort; vous l'y laisserez

tremper pendant trois ou quatre jours puis le sécherez et le cuirez. Lorsque l'oeuf sera cuit, dépouillez-le de sa

coquille et vous trouverez vos lettres écrites sur le blanc de l'oeuf qui sera dur. Voici un autre moyen d'arriver

au même résultat: vous enduirez votre oeuf de cire, et avec un instrument pointu vous graverez vos lettres, et

les laisserez tremper dans le vinaigre pendant un jour. Après que vous aurez ôté votre cire, vous dépouillerez

l'oeuf de sa coquille et vous trouverez toutes vos lettres empreintes sur le blanc durci". (DELLA PORTA,

1903: 120-121). 10

"On peut faire des lettres qui jetteront des lueurs et pourront se lire la nuit. Si quelqu'un par un écrit secret

veut annoncer à un sien ami quelque cas qu'il aurait découvert, et qui se puisse seulement lire au plus fort de

la nuit, qu'il écrive sans hésiter sur papier ce que bon lui semblera au moyen de la liqueur secrète, et la lettre

apparaîtra au jour, si vous la chauffez". (DELLA PORTA, 1903: 116).

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195

homens eruditos, aos quais encarregava de produzir obras de tipos variados, mais

freqüentemente ideológicas e propagandísticas, hábito marcante principalmente entre os

duques da Baviera, os Eleitores Palatinos e os margraves de Bade. O que buscamos ressaltar é

que entre os literatos e filósofos, também os magi compuseram estes círculos intelectuais ao

redor dos príncipes. Exemplo disso foi a relação entre Trithemius e Maximiliano I, onde o

abade foi consultor do imperador nos mais diversos assuntos, desde o combate às feiticeiras,

passando pela composição de genealogias, até os assuntos que diretamente lidavam com

magia, permitindo a Trithemius adquirir grande trânsito não apenas na corte imperial, mas

também junto aos príncipes-eleitores.

Ao longo dessa exposição mostramos como o pensamento mágico exerceu influência

direta na concepção de segredo que se fez vigente entre os séculos XV e XVI. O segredo de

Estado manteve uma relação estreita e de intimidade com o segredo mágico, na medida em

que as personagens responsáveis por eles se relacionavam de forma bem próxima, por vezes

chegando a se confundir num mesmo homem. A mesma comunicação cifrada a qual era

atribuída potência mágica e a capacidade de decifrar o mistério divino oculto no cosmo, era

também utilizada para salvaguardar os interesses reais, e freqüentemente deu o tom das ações

principescas. Dessa forma, magos e secretários perseguiram, ainda que por caminhos por

vezes distintos, o mesmo objetivo: salvaguardar um saber prenhe de poder, mesmo que em

latência, por meio do monopólio do segredo.

REFERÊNCIAS

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Occult Studies in Early Modern Europe. State University of New York Press, 1998.

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Peter & PORTER, Roy (Orgs.). História social da linguagem. São Paulo: UNESP, 1997.

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Cambridge University Press, 1989.

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http://www.pucsp.br/jornadahcensino/downloads/Fumikazu%20Saito.%20A_ideia_de_experi

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SENELLART, Michel. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo.

São Paulo: Editora 34, 2006.

TRISMEGISTO, Hermes. Corpus hermeticum: discurso de iniciação; A tábua de esmeralda.

São Paulo: Ed. Hemus, 2001.

TRITHEMIUS, Johannes. Steganographie: Ars per occultam Scripturam animi sui

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TRITHEMIUS, Johannes. The steganographia of Johannes Trithemius. Translated by

Fiona Tait, Christopher Upton and J.W.H. Walden. Edited, with intro, by Adam McLean.

Edinburgh: Magnum Opus Hermetic Sourcebook, 1982.

VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Bauru, SP: EDUSC, 1999.

WALKER, D.P. Spiritual & demonic Magic: from Ficino to Campanella. Pennsylvania: The

Pennsylvania State University Press, 2000.

YATES, Frances Amelia. Giordano Bruno e a tradição hermética. São Paulo: Cultrix,

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Century. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, Vol. 39. (1976), pp. 104-138.

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197

O SENHORIO NOS SÉCULOS XI E XII: PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS

Bruno Tadeu Salles1

1 Introdução

Nas décadas de 1970, 1980 e 1990, as discussões historiográficas europeias e norte-

americanas acerca do feudalismo se mostraram muito acirradas, sendo a cronologia e o lugar

da violência nas sociedades ditas feudais fatores centrais: quando surgiu o feudalismo? Como

este se caracterizava? Dominique Barthélemy (2005: 3) asseverou que os medievalistas do

século XIX haviam pensado a “primeira idade feudal” francesa – do final do século IX ao

início do século XII – com certa ingenuidade. Entretanto, estes medievalistas propuseram uma

cronologia à qual, à cerca de cinquenta anos, era enganoso renunciar. De acordo com uma

abordagem oitocentista, tudo começaria por uma “revolução” na qual os príncipes e senhores

de castelo, sobre as ruínas de um Império Carolíngio alquebrado pelos normandos, tomariam

o poder. Esta primeira idade feudal seria completada por outra, marcada pelo “despertar” do

povo, da Igreja, do rei e pela ascensão da burguesia que alterara o regime dito feudal a partir

do ano 1100 (BARTHÉLEMY, 2005: 4). Uma imagem, de certo, caricatural e esquemática,

mas que corresponderia, na opinião de Barthélemy, a apreciação verossímil da cronologia das

relações de poder no interior das sociedades medievais francesas dos séculos XI e XII.

Por outro lado, trabalhos inspirados na tese de Georges Duby, publicada em 1953,

sobre a região do Mâconnaise reavaliaram aquela cronologia tradicional2. Duvidou-se de um

corte muito acentuado entre um passado carolíngio e a chamada primeira idade feudal. Logo,

os condes seriam considerados como herdeiros de uma legalidade e de uma ordem pública

carolíngia. Esta só seria abalada no século XI, quando os milites e os senhores de castelo

tomariam o poder daqueles. Se, no primeiro paradigma, os condes e príncipes eram os vilões,

neste segundo recorte cronológico, os milites e os senhores de castelo eram apresentados

como usurpadores de um poder legítimo herdado pelos oficiais dos últimos imperadores.

1 Professor de História Antiga e Medieval da Universidade Estadual de Goiás, Unidade Universitária de Pires do

Rio. Doutorando do curso de História da Universidade Federal de Minas Gerais. 2 Podemos citar como um dos mais emblemáticos trabalhos desta vertente a obra: POLY, Jean-Pierre. La

Provence et la Société Féodale (879-1166): contribuition à l’étude des structures dites féodales dans le Midi.

Paris: Bordas, 1976.

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198

Evidentemente, esta última interpretação, cognominada de “mutacionista”, uma vez

que previa uma longa e lenta mutação nas estruturas sociais e de poder medievais entre os

séculos X e XII, apresentou e ainda apresenta nuances nos escritos de seus defensores.

Entretanto, salienta-se, de maneira geral, a já mencionada revisão da cronologia e uma ênfase

na violência militar. Chegou-se a alusão de certo “terrorismo de classe” e ao destaque do

papel estruturante da violência nas sociedades ocidentais dos séculos XI e XII. Historiadores

como o norte-americano Thomas Nicholson Bisson (2009) estendeu esta violência/turbulência

até meados do século XII. Este autor se apoiou nas concepções mutacionistas para questionar

o “dito renascimento do século XII”3, insistindo na turbulência e na crise do poder senhorial

permanecendo no Ocidente. Diante da violência e da usurpação dos poderes ditos públicos, a

situação dos laboratores e dos pequenos proprietários de terra teria se desestruturado. Os

laboratores teriam ficado a mercê daqueles que podiam exercer a coerção4.

Nas discussões historiográficas francesas e anglo-saxônicas acerca do feudalismo, as

especificidades das relações e vínculos de poder senhoriais, bem como a composição do

dominium/senhorio, ocupou um lugar central. Isto à medida que as interdependências

senhoriais, a nível horizontal e vertical, se constituiriam no fator central das relações sociais

no complexo sistema dito feudal. Como definir, portanto, o senhorio? Como analisar suas

particularidades? Neste ponto, mostra-se fundamental mobilizar as reflexões historiográficas

sobre o poder senhorial dos séculos X, XI e XII como coordenada fundamental da presente

revisão historiográfica.

2 Jean Pierre Poly e Eric Bournazel: “o governo feudal”

A curta introdução que Jean Pierre Poly e Eric Bournazel dedicaram a uma obra muito

conhecida pela afirmação dos princípios mutacionistas propunha uma abordagem acerca “do

sistema feudal” ou uma introdução ao estudo do “governo feudal”. O seu ponto de partida era

3 Bisson remete suas críticas especificamente a seguinte obra: HASKINS, Charles Homer. The Renaissance of

the Twelfth Century. Massachusets: Harvard University Press, 1955. 4 É possível perceber o tom dramático de determinados historiadores mutacionistas quanto à situação dos

pequenos proprietários de terra e dos trabalhadores dependentes dos senhores na seguinte obra: BISSON,

Thomas Nicholson. Tormented Voices: power, crisis and humanity in rural Catalonia. Harvard: Harvard

University Press, 1998. A ênfase em uma crise senhorial nos séculos XI e XII é uma das características mais

marcantes dos escritos desse autor norte-americano. Por outro lado, historiadores como Jean-Pierre Poly

apresentam versões menos dramáticas ou drásticas – mas não deixam de acentuar a violência militar – quanto à

chamada mutação do ano mil. Da mesma forma, historiadores mutacionistas como o próprio Bisson e como

Guy Bois (1989) não conseguiram um renome ou um respeito acadêmico considerável, tal como Pierre

Bonassie e o já citado Jean-Pierre Poly, talvez pelo tom peremptório de sua defesa do mutacionismo e pelo

caráter generalista e generalizante de suas premissas.

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a definição de “sistema político” de Jean-François-Sirinelli5. A definição de Sirinelli (apud.

POLY & BOURNAZEL, 1998: 3) se refira ao conjunto das instituições e das relações –

jurídica ou outras, que permitiriam a devolução e o exercício do que se chama “o poder” ou “a

autoridade”, mas recolocados dentro das sociedades, dos valores e das culturas que os

subentendem.

As observações de Sirinelli em 1997 serviram como introdução à crítica das

abordagens de F. -L. Ganshof e de Marc Bloch acerca da feudalidade. Poly e Bournazel

deixaram implícita uma crítica à perspectiva jurídica de Ganshof da feudalidade. Podemos

considerar, concordando com Poly e Bournazel, que Ganshof apresentou uma abordagem

marcada por um “juridismo”. Propomos que o trabalho do autor acima citado basicamente

tinha como objetivo descrever os laços entre suseranos e vassalos, de modo a evidenciar as

formas jurídicas desses laços. Por outro lado, segundo Marc Bloch (apud. POLY &

BOURNAZEL, 1998: 4), todas as sociedades que conheceram instituições semelhantes ao

“feudo” ou à “homenagem” poderiam ser caracterizadas como feudais.

A crítica fundamental de Poly e Bournazel a Ganshof e a Bloch se refere ao corte

significativo entre o “Direito” e a sociedade que lhe daria suporte. Poder-se-ia pensar o

feudalismo como uma abstração aplicável a qualquer sociedade que apresente um

campesinato e um estamento ou classe de senhores exercendo o poder. Em outras palavras,

“junto a um e outro autor [Ganshof e Bloch], se tem, às vezes, a impressão que o acaso se

sobrepõe a necessidade, que um direito feudal poderia existir em sociedades bem diferentes

por sua estrutura (...)” (POLY & BOURNAZEL, 1998: 4). Os autores retomavam a distinção

polemica de Marx em A Ideologia Alemã acerca da superestrutura – literatura, arte e todas as

criações do espírito – e do que se convencionou chamar de infraestrutura ou os aspectos

materiais da vida. Para os autores, a definição de sistema político de Sirinelli, que conjugava a

dimensão política e a dimensão social, não encontrava ressonância em determinados

historiadores, sobretudo quando o assunto era o feudalismo, uma vez que predominava a cisão

entre aspectos “superestruturais” e “infraestruturais”, utilizando uma distinção construída

sobre o materialismo histórico6.

5 Os autores se remetiam a apresentação de Sirinelli ao primeiro tomo da seguinte coleção: TULARD, Jean

(dir.). Les Empires Occidentaux de Rome à Berlin. Paris: Puf, 1997. 6 Essa cisão, da qual apenas podemos oferecer uma visão caricatural evocando distinções inspiradas no

materialismo histórico, teria proporcionado a aplicação do epíteto feudal a várias sociedades e “instituições”

sociais, distintas e muito especificas, tal como aludimos no início do presente texto. Podemos incluir o

exemplo do seguinte artigo: MAQUET, Jacques J. Une Hypothèse pour l’étude des féodalités africaines. In:

Cahiers d’études africaines. V. 2, no. 6 , 1961: 292-314.

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Os autores afirmaram que se existe um sistema feudal, é por que há um jogo de

instituições feudais por relação ao resto da sociedade. A partir dessa orientação, Poly e

Bournazel defenderam sua obra La Mutation Féodale de 1980, acentuando o esforço de

análise sobre as mudanças profundas e, às vezes, brutais no reino de França por volta do ano

mil. O objetivo central era salientar uma revisão das duas idades feudais sustentadas por

March Bloch, às quais caracterizamos no início. Para os autores, o século X não seria “feudal”

dada a sobrevivência do poder dos condes. Por outro lado, os séculos XI e XII seriam aqueles

“feudais” por excelência, a despeito da ascensão do que poderíamos qualificar de burguesia

ou do progressivo fortalecimento dos poderes régios. Sob a perspectiva da ênfase da mudança,

Poly e Bournazel criticaram as vertentes historiográficas que identificavam a feudalidade ou a

“crise feudal” como uma construção ou projeção historiográfica. Estas vertentes erigiriam

uma permanência de elementos sociais no século XI que remontaria a Antiguidade Tardia

(POLY & BOURNAZEL, 1998: 6-7).

A questão principal para Poly e Bournazel era, no decorrer dos textos de Les

Feodalites, retomar as reflexões que eles consideram “engessadas” desde a época de Georges

Duby. Citando Bisson, os autores propõem que “se trata ‘de definir e de explicar as

sociedades em forte expansão na Europa após o ano mil: o que havia nelas de antigo ou de

novo, de mudança, e quais fatores ou ‘motores’ de mudança podemos discernir” (apud POLY

& BOURNAZEL, 1998: 11)7. O núcleo da proposta consistia em analisar, discutir e

problematizar as instituições políticas e jurídicas no período que vai do século XI até o século

XII, examinando, da mesma forma, a sua ancoragem social. Tal investigação, sob o signo da

especificidade alicerçada em uma mutação, que, sob certos aspectos, pareceria mais uma

“revolução”, traria como premissa fundamental uma ruptura social e política lenta, porém

tensa e turbulenta.

3 Pierre Bonassie e a Catalunha

Ao lado de Jean Pierre Poly, Pierre Bonassie tem sido um dos defensores mais

renomados do mutacionismo8. Será apresentado o texto de Bonassie publicado por Barbara

Rosenwein em uma coletânea intitulada La Edad Media a Debate. Neste texto, Bonassie teve

7 Trata-se de uma referencia ao artigo de Bisson publicado na revista Past and Present: The “Feudal Revolution”

In: Past and Present: a journal of historical studies. nº. 142. Oxford: Oxford Universsity Press, 1994: 7-42. 8 A historiadora Hélène Débax (2003), orientanda de Bonassie, também se filia a uma abordagem mutacionista.

Esta se evidencia na sua abordagem da crise senhorial que ocupou o Languedoc no século XII e opôs a

aristocracia local, especialmente a parentela dos viscondes de Carcassone, contra os condes de Toulouse.

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como preocupação primordial examinar as origens dos direitos senhoriais na Catalunha. Após

a citação do documento de um bispo, o qual diz respeito aos seus direitos senhoriais, Bonassie

observou que, nos séculos X e XI, a situação dos camponeses se tornara mais difícil,

considerando sua sujeição às exações senhoriais. Este descalabro da situação camponesa seria

uma das consequências da desagregação do poder condal.

Bonassie (2003: 192-193) enfatizou um processo de concentração de terras nas mãos

de poucos e uma desintegração do poder judicial. No decorrer do século XI seriam cada vez

menos frequentes as cortes dos condes. A esse quadro, ter-se-ia somado uma diminuição dos

acordos de compra e venda além da estabilização da conquista de novas terras, o que tornaria

insuficiente a compensação das perdas aludidas anteriormente a partir do acima referido

processo de concentração. Finalmente, esse processo coroaria uma mudança na situação

militar, marcando a preponderância dos cavaleiros – milites – e a arregimentação dos

camponeses mais ricos ou, segundo o autor, mais “duros” (BONASSIE, 2003: 196).

Quais as origens e a natureza dos poderes dos senhores de castelo? Para responder a

esta questão, Bonassie enfatizou o enfraquecimento dos condes e o fortalecimento dos

senhores. Os senhores de castelo receberiam a delegação ou usurpariam os poderes ditos

públicos (BONASSIE, 2003: 197). A “devolução em cascata” dos poderes ditos públicos e a

desagregação da noção de mandamentum – o poder de comando de origem “pública” das

autoridades tradicionais e consideradas legítimas: reis, duques, condes, etc – ocuparam um

lugar de destaque. Da mesma forma, fora enfatizada a “usurpação” do direito de julgar – o

districtum. Os senhores de castelo passariam a dirimir os pleitos e, ao invés de serem

escolhidos ou investidos em seu poder, manteriam sob o seu controle e passariam as

prerrogativas concedidas pelos condes a seus herdeiros. O mandamentum e o districtum se

revestiriam de um caráter patrimonial ou alienável. Essa desagregação dos poderes públicos

tradicionais e sua usurpação pelos senhores de castelo levou Bonassie (2003: 200) a se referir

aos “prazeres da repressão”, de modo a sublinhar a falta de controle dos condes e dos bispos

sobre os cavaleiros e os senhores de castelo.

Bonassie aduz seu leitor a pensar em uma patrimonialização do poder no século XI.

Para chegar a tal conclusão, Bonassie se remeteu a uma distinção entre os encargos de origem

pública e aqueles de caráter privado. Um destes encargos de origem pública seria o albergue,

ou o direito do conde e, posteriormente, dos senhores de serem mantidos e nutridos por seus

dependentes durante um período determinado. Além do albergue, o autor destacou o serviço

militar dos camponeses, substituído por serviços de transporte, além das vigílias e a obrigação

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de manutenção dos edifícios militares. Para Bonassie, este direito teria um caráter excepcional

no período dos condes e uma maior frequência no período dos senhores. Além desses

encargos, a justiça se tornaria algo inerente à esfera senhorial, escapando ao poder do conde.

Por outro lado, Bonassie caracterizou os direitos privados a partir da alusão a certos

direitos senhoriais, como as corveias ou a prestação de serviços ao senhor pelos próprios

camponeses com seus animais, além da entrega de mensagens do castelão. Outros direitos ou

exações incidiriam sobre os moinhos, as colheitas e os fornos. As observações de Bonassie o

levaram a concluir que os ganhos senhoriais seriam superiores àqueles do século X.

Considerações como a opressão dos agentes do poder ou o regime de terror regulado das

cavalgadas são afirmadas e confirmadas.

Bonassie (2003: 207) ponderou que a barreira entre a arrecadação pública e as exações

simples era extremamente frágil. A distinção, realizada por Bonassie em seu texto, entre o

público e o privado, diante dessa ponderação, suscitam algumas dúvidas pertinentes. Se a

barreira entre os dois gêneros de arrecadação era frágil, é possível estabelecer uma distinção

muito nítida entre um período condal, herdeiro da lei e da ordem carolíngia, e um período

senhorial, mais privado e, portanto, mais violento? A distinção que historiadores como

Bonassie estabeleceram entre o público e o privado, válida para o período contemporâneo, se

mostra aplicável ou adequada para as realidades específicas dos séculos XI e XII? O

mutacionismo não estaria sobrevalorizando uma ordem dita carolíngia em prejuízo de

articulações de poder específicas?

4 Jérôme Baschet e o senhorio

A posição de Jêrome Baschet (2006) quanto ao dominium, apresentada em um manual

de História Medieval, é relevante à medida que permite uma primeira nuance das proposições

dos autores expostos anteriormente. O autor, no capítulo intitulado A Constituição do

Senhorio e a Relação de Dominium, iniciou sua argumentação discutindo uma mudança na

organização do espaço por volta do ano 1100. Se remetendo ao conceito de “encelulamento”

de Robert Fossier (1982), Baschet (2006: 129) observou a formação de núcleos populacionais

mais coesos e “coerentes” – uma organização da rede de habitações rurais – no Ocidente, algo

que seria desconhecido por volta do ano 9009. Para apreciar essa reorganização, o autor se

9 Esse modelo historiográfico que identificaria uma reorganização do espaço em torno das aldeias e das

paróquias seria tributário do conceito de “incastelamento” de Pierre Toubert. As análises de Toubert sobre o

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203

mostrou cético em adotar o sentido de “revolução” lenta, proposto por Fossier, mas afirmou

tal fenômeno como uma mutação considerável10

.

Baschet salientou uma lenta reordenação do habitat e das relações de poder, uma

dinâmica plurissecular do encelulamento e da organização da dita “ordem ou regime

senhorial”. O problema, para o autor, estaria em indagar se a progressividade dos fenômenos e

suas discrepâncias, assim como a ausência de uma cronologia uniforme na escala do

Ocidente, impõe que se prevaleça essa dinâmica plurissecular? Por outro lado, “seria possível

identificar, por volta de 980-1060, uma aceleração do processo (castelanização,

senhorialização, edificação de igrejas, sem falar das transformações da ordem eclesial...) em

um numero significativo de regiões?” (BASCHET, 2006: 132) Seja qual for a definição ou as

coordenadas adotadas para apreciar o que se pode definir como um sistema com uma nova

coerência de desenvolvimento de amplitude inédita, Baschet apontou com clareza a distancia

entre uma abordagem “mutacionista” e outra que qualificaríamos de “anti-mutacionista”.

A apreciação da Paz de Deus é um ponto considerado como elementar na distinção

entre as duas vertentes. Podemos considerar, de forma breve, esse movimento como

“proclamação lançada pelos bispos e pelas assembleias conciliares a partir dos anos 975-90

que condena os ‘maus costumes’ dos senhores laicos, exortando-lhes a respeitarem os clérigos

e os pobres, chamando à restauração da ordem publica e da paz” (BASCHET, 2006: 133).

Segundo as ponderações mutacionistas, a Paz de Deus seria a evidencia do caráter turbulento

da aristocracia laica, especificamente dos cavaleiros, que, segundo a interpretação de Georges

Duby (1982: 55), “se tornava perigosa quando seus amos lhes soltavam as rédeas”11

.

Por outro lado, historiadores como Dominique Barthélemy, destacaram que esse

movimento não era anti-senhorial, uma vez que pode ser interpretado como um esforço para a

manutenção de uma ordem senhorial dominada pelo clero. A Paz de Deus se converteria em

uma forma dos eclesiásticos defenderem seus próprios senhorios da pressão aristocrática.

Menos do que um esforço de manutenção da ordem pública diante do enfraquecimento das

Latium medieval identificaria a formação de uma rede de castelos ou fortificações em torno das quais se

reorganizaria o espaço italiano por volta do século XI. TOUBERT, Pierre. Les Structures du Latium

Médiéval. 02 vols. Rome: BEFAR 221, 1973. 10

Fossier lamentou que “habituada a medir os movimentos sociais a luz do século XIX, isto é, testando o

vocabulário do socialismo ou procurando ‘jornadas’ e doutrinas, a historiografia tradicional tem dificuldade a

admitir que uma revolução dure muitos decênio e que ao s palavras possam ter ai outro pelo que aquele de

hoje”. FOSSIER, Robert. L’Enfance de l’Europe: aspects economiques et sociaux. v. 1, Paris: Univ. de

France, 1989: 289. 11

Georges Duby se referia as Gesta Episcoporum Cameracensium do bispo Geraldo de Cambrai, escritas nas

três primeiras décadas do século XI. Este texto, uma história do episcopado de Cambrai, traria a figura do

castelão Walter de Lens como o principal antagonista dos bispos daquela cidade.

Page 207: Anais 2011

204

autoridades tradicionais e do fortalecimento e insubordinação de seus oficiais – cavaleiros e

senhores de castelo – a Paz de Deus seria um elemento da disputa de poder a nível local entre

clérigos e laicos.

Domínio sobre a terra e controle sobre os homens exercido pela aristocracia laica e

também eclesiástica. Baschet (2006: 133) enfatizou as relações verticais em suas ponderações

sobre o dominium. Este, entendido como dominação de um senhor sobre os vilãos, se

manifestaria por um emaranhado de obrigações às quais se identifica uma origem dupla.

Trata-se da distinção realizada anteriormente por Bonassie12

e a qual os mutacionistas

atribuem uma importância fundamental. Nas palavras de Baschet, na esteira de Georges

Duby, determinados historiadores identificariam as origens do poder senhorial de maneira

distinta: de um lado, teria como base a posse eminente do solo, ou seja, os direitos fundiários

exigidos pelo senhor sobre seus dependentes, de outro, a disseminação do poder político e das

prerrogativas da autoridade dita pública. Entretanto, Baschet (2006: 134) considerou que a

natureza do senhorio era justamente a fusão destes dois elementos o que tornaria irrelevante o

cuidado de diferenciá-los, afinal, podemos acrescentar, cavaleiros e senhores de castelo os

diferenciavam? O que dizer da proposição de Sirinelli apresentada por Poly e Bournazel?

Em suma, o que Baschet propôs acerca do dominium ou do poder senhorial? Tratar-se-

ia, na esteira de explicações como as de Toubert e Fossier de uma reorganização do espaço e

do poder que teria alcançado seu apogeu no final do século XI. Em primeiro lugar, o autor se

mostrou um tanto quanto cético quanto a perspectiva mutacionista sobre dois aspectos: a

violência e a turbulência da aristocracia evidenciadas no movimento da Paz de Deus e a

distinção entre os poderes de ordem privada ou fundiária e aqueles de origem publica. Da

mesma forma, Baschet deixou entender que a noção de que os camponeses seriam mais

explorados do que no período carolíngio deve ser no mínimo nuançada. Tal distinção estaria

na base de apreciações negativas quanto aos cavaleiros e senhores de castelo dos séculos XI e

XII uma vez que previa a usurpação dos poderes de origem publica. Para Baschet (2006: 142),

retomando um apontamento de Alain Guerreau (1980: 221), a essência do dominium estaria

na não dissociação entre dominação sobre os homens e dominação sobre as terras. Posssuir

significava exercer poder.

Apesar de seu ceticismo, tal como expusemos anteriormente, Jérôme Baschet (2006:

132) não revelou uma crítica contundente ao mutacionismo. Aparentemente sua intenção era

apresentar alguns pontos de discórdia, mas não tomar partido de maneira evidente. O autor

12

Ver páginas 199 e 200.

Page 208: Anais 2011

205

afirmou a plausibilidade da perspectiva de Fossier quanto a uma lenta transformação no

espaço e nas relações de poder que teria sido completada, no Ocidente, entre os séculos XI e

XII. Entretanto, a posição de Baschet quanto a longa duração proposta por Fossier se mostrou

criticável na perspectiva de Dominique Barthélemy. Tal critica se baseava na ideia de que a

chamada revolução do ano 1100, baseada na cronologia tradicional, de anti-feudal, se tornaria

a mais “feudalisadora”. Barthelemy desconfiou de uma “revolução feudal” aos moldes da

devolução turbulenta dos poderes de comando aos moldes de Poly, Bonassie, Bournazel e

Bisson. Da mesma forma, aquele historiador revelou dúvidas quanto ao coroamento do

regime senhorial no século XII, uma vez que reafirmava o princípio das duas idades feudais.

5 Dominique Barthélemy: a crítica contundente ao mutacionismo

Barthélemy, historiador que serviu como base da introdução do presente texto, é um

dos críticos mais acirrados e de opinião consistente quanto ao dito mutacionismo. Em seu

verbete Senhorio do Dicionário Temático do Ocidente Medieval, o autor observou que o

senhorio, apesar de ser um tipo de poder não estatal, próximo, rude, privatizado, não teria

nenhuma conotação particular: “é a ralação fundiária estabelecida a diversos títulos, entre o

possessor de uma terra e seus ‘tenanceiro’, uma partilha de direitos de propriedade e um

encadeamento de elementos reais e pessoais que desafiam os princípios do direito moderno”

(BARTHÉLEMY, 2002: 465).

Do mesmo modo, as origens do senhorio se mostrariam imprecisas: século III com o

colonato romano? Século VII com a decadência dos merovíngios? Ou no século IX com a

queda dos carolíngios? Mesmo com essas dificuldades, Barthélemy identificou os anos entre

850 e 1150 como os mais senhoriais da história francesa. Se Poly e Bournazel (1998: 6-7)

criticaram historiadoras como Élisabeth Brown13

e Susan Reynolds (1994) que censuravam a

historiografia mutacionista por fazer história com as “lentes feudais”. Elas apontavam a dita

mutação do ano mil e todo o panorama inerente a ela como uma construção historiográfica

francesa. Barthélemy (2002: 467) seguiu um caminho próximo ao das duas historiadoras,

salientando o ano mil seria uma espécie de “marco zero” da França.

13

A autora observou que o Feudalismo, assim como outros “ismos”, poderia ter tomado a forma de um modelo

ou Tipo Ideal que desconsideraria qualquer documento que não encaixasse ou se adequasse a suas premissas.

BROWN, Elizabeth A. R. The Tyranny of a Construct: Feudalism and Historians of Medieval Europe. In:

The American Historical Review, v. 79, no. 4, 1974: 1063-1088.

Page 209: Anais 2011

206

O ano mil se converteria em um período de violência social, caos e selvageria, que

estaria entre a ordem carolíngia e o “Estado Monárquico” Capetíngio. A proposta de

Barthélemy (2002: 467), desde sua tese de doutorado14

, era uma revisão da sociedade dita

feudal como algo complexo e uma reavaliação de tal sociedade como menos conturbada, à

medida que apresentava “uma série de herdeiros aptos ao compromisso”. Mesmo que

Barthélemy não reafirme a conceituação de “Ordem Senhorial”15

, ele se colocou contra um

quadro de poder completamente caótico tal como os mutacionistas perceberam nos séculos XI

e XII.

O período de violência social, caos e selvageria ou a ascensão dos maus costumes

sobre os quais somente um poder superior poderia submeter seria algo inerente ao paradigma

das fontes. Uma documentação exclusivamente eclesiástica traria uma imagem negativa e

perniciosa dos senhores de castelo e dos milites, pois estes cocorreriam com o senhorio

eclesiástico. Os mutacionistas teriam superestimado as evidencias ou o discurso eclesiástico

relativo à violência e à depredação de propriedades, bens e pessoas eclesiásticas por parte do

laicato. Deste modo, percebemos os diferentes posicionamentos historiográficos quanto a

“Paz de Deus”: reação contra uma violência endêmica ou estratégia diante de uma

concorrência senhorial? Eram os eclesiásticos, na posição de senhores de homens e terras,

mais doces ou brandos que seus vizinhos laicos?

Barthélemy (2002: 468) destacou que as contestações que os senhores laicos dos

séculos XI e XII realizavam contra os clérigos, violentas ou não, em grande medida se

relacionavam com as doações que seus antepassados haviam realizado aos estabelecimentos

eclesiásticos. Ao doador generoso, sucederia uma geração, possivelmente empobrecida, que

reivindicaria a sessão de seus direitos sobre determinados bens, contestando o senhorio

eclesiástico. Da mesma forma, a participação costumeira dos laicos nos usufrutos de bens

eclesiásticos, elemento costumeiro de uma parceria entre clérigos e laicos16

, em ocasiões

14

Em sua tese de doutorado sobre a sociedade senhorial da região do Vêndome, Barthélemy discutiu a noção de

violência sem controle. O autor observou que a situação dos camponeses não sofreria uma degradação

acentuada, tal como apontaram os mutacionistas, tendo em vista que o poder dos senhores de castelo não seria

tão forte ou opressor se comparado com os seus antecedentes condais. BARTHÉLEMY, Dominique. La

Société dans le Comté de Vendôme: de l'an mil au XIV siècle. Paris: Fayard, 1993. 15

O autor se refere a dita ordem na seguinte obra: BARTHÉLEMY, Dominique. L’Ordre Seigneurial : XIe –

XIIe siécle. Paris : Éditions du Seuil, 1990. 16

Os cartulários languedoquianos e provençais, laicos, eclesiásticos e das ordens militares, dos séculos XII e

XIII, fornecem diversos documentos que se referem ao usufruto e a possessão de dizimas, primícias e das

honras de determinadas igrejas por parte de poderosos laicos. Estas evidências devem ser entendidas, tal como

propõe Barthlélemy, como elemento de uma parceria entre clérigos e laicos em torno do senhorio.

Evidentemente, essa parceria degringolava em determinados momentos, mas sem colocar em risco ou alterar

substancialmente as diversas expressões do senhorio.

Page 210: Anais 2011

207

especificas, quando das discórdias ou desentendimentos, daria lugar às reclamações e

lamúrias por parte de bispos, abades e eclesiásticos.

A presença constante dos chamados “maus costumes” nos textos eclesiásticos não

deve obliterar que o costume é parte de um sistema social, submetido ao acaso das relações de

força (BARTHÉLEMY, 2002: p. 469). Afinal, o senhor turbulento de hoje, poderia se

transformar no generoso doador de amanhã e vice-versa. Além disso, é mister ressaltar que os

milites e os senhores de castelo não eram funcionário de um Estado Antigo, mas senhores do

século XI que possuíam uma “honra”claramente patrimonializada. Falamos de um poder que

poderia ser regulador e “predador”, sob certos limites. Evidenciar esses limites implica em,

concordando com Barthélemy, duvidar da afirmativa mutacionista de uma sociedade baseada

ou estruturada na violência.

Podemos, com um ceticismo legítimo, questionar se o poder dos senhores de castelo e

dos cavaleiros assentasse somente na força e na violência, seria muito desgastante para os

próprios senhores (BARTHÉLEMY, 2002: 470). Devemos destacar, também, que esses

mesmos senhores não eram estabelecidos do exterior, mas pertenciam à sociedade local ou a

seus arredores. De qualquer modo, estavam intimamente ligados à elite local, seja ela laica ou

eclesiástica. É indispensável nos remeter aos graus de sociabilidade no interior da elite de um

lugar, a despeito dos conflitos internos. Por outro, apesar das diferenças das formas de

organização social, diferenças cuja apreciação é imperfeita, sobretudo devido aos limites de

nossas definições contemporâneas17

, não podemos negar às sociedades senhoriais todo o

sentido de ordem ou de lei.

6 Conclusão: Florien Mazel, a revisão do paradigma de George Duby e as diversas expressões do

senhorio

Recentemente, além de Dominique Barthélemy, um historiador que tem discutido as

sociedades senhoriais e as proposições mutacionistas é Florien Mazel18

. Remeteremos-nos

especificamente a um artigo datado do ano de 2008 o qual pretende analisar a relação entre

poder aristocrático e a Igreja nos séculos X e XI a partir de um “retorno” a dita “Revolução

17

Alain Guerreau em seus artigos tem enfatizado como as definições que encontram raízes no Iluminismo e na

Revolução Francesa dificultam a compreensão de fenômenos como o dominium ou a ecclesia, tal como eram

vivenciados pelos homens e mulheres dos séculos XI, XII e XIII. Ver: GUERREAU, Alain. Feudalismo. In:

LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, v. 01. São

Paulo: EDUSC, 2002: 437-455. 18

Destacamos o seguinte livro: MAZEL, Florien. Feodalités: 888-1180. Paris: Belin, 2010.

Page 211: Anais 2011

208

Feudal” de Georges Duby. O objetivo fundamental de Mazel era reavaliar a perspectiva

mutacionista a partir das proposições de Georges Duby, ou seja, das proposições do

historiador que seria uma das bases fundamentais das teses mutacionistas, tal como

expusemos anteriormente.

Segundo Georges Duby, nas palavras de Mazel (2008: 3), a dita “revolução feudal”

seria “uma mutação global da sociedade produzida entre os anos 970/980 e 1020/1030,

consequência da decomposição final das estruturas do Estado carolíngio”. Diante dessa

decomposição, o senhorio castelão e o senhorio monástico criariam “enclaves de autoridade”,

a despeito dos poderes ditos tradicionais: condes e bispos. Esta revolução teria dois aspectos,

político e fundiário. O aspecto político consistiria na dissolução da soberania dos dependentes

dos poderes reais e condais. Já o aspecto fundiário, seria a difusão, no seio da aristocracia, dos

laços feudo-vassalicos e dos laços de dependência no seio do senhorio. Esses aspectos, no

que concerne a aristocracia, seriam o expoente de uma nova dominação aristocrática,

ilegítima, que se apropriaria das prerrogativas do poder publico, cindindo a sociedade laica

em dois grupos, os guerreiros e os camponeses. Haveria também o alargamento da

aristocracia pela promoção e elevação do grupo cavaleiresco, o que se considera como uma

militarização social. Tal militarização conduziria a uma cultura cavaleiresca, que estenderia à

alta aristocracia seus valores. A “ideologia” das três ordens seria o expoente máximo desse

“imaginário feudal”.

Uma vez apresentados os pressupostos de Duby, Mazel (2008: 3) salientou que este

último havia sugerido, ele mesmo, uma revisão de seu paradigma, atentando para uma

reconsideração das relações entre a Ecclesia e sociedade nos séculos X e XI19

. No espírito

dessa observação, Mazel tem observado que Duby subestimou o peso das ideologias

eclesiásticas e monásticas na documentação que analisou. Para tal reavaliação da dita

“revolução feudal”, Mazel tem considerado como fundamental, um estudo focalizado sobre as

relações entre a aristocracia e a Igreja. Tal estudo viria no sentido de apreciar “a imbricação

dos poderes laicos e eclesiásticos, bem como as suas consequências, além do caráter

complexo e progressivo da transformação do poder aristocrático” (MAZEL, 2008: 4).

A imbricação dos poderes laico e eclesiásticos ocorreria, sobretudo, na detenção e no

controle das honores eclesiásticas pelos laicos. Esse controle podia se manifestar tanto no

poder exercido sobre os bens eclesiásticos, em decorrência de relações e vínculos específicos

19

Mazel se referia especificamente ao final da seguinte obra: DUBY, Georges. L’Histoire Continue. Paris: O.

Jacob, 1992.

Page 212: Anais 2011

209

entre o laicato e as instituições eclesiásticas20

, quanto na escolha dos prelados. Segundo

Mazel, esta influencia laica sobre os bens e os cargos eclesiásticos apresentava uma

continuidade com o passado carolíngio. Entrementes, esta dominação se inseria no quadro

descentralizado dos principados e também dos domínios dos senhores de castelo.

Mazel distingue sua crítica daquela de Barthélemy no sentido em que se apresenta

como menos incisivo e sob uma influência menos marcante de uma historiografia anglo-saxã

e alemã. Por outro lado, Mazel atentou para a contribuição que a antropologia poderia trazer,

à medida que conduziria a uma reavaliação do papel da violência aristocrática no interior da

sociedade. Além disso, ele destacou a regulação da intensidade da violência no interior de

normas e valores sociais bem específicos. Este não era um dos pressupostos da crítica

historiográfica de Barthelemy quanto à intensidade da violência aristocrática como fator

fundamental e estruturante da dita sociedade feudal aos moldes mutacionistas? O autor

apontou o papel importante das reformas eclesiásticas a partir do século XI como um fator de

reestruturação das relações entre clérigos e laicos. Questionar a intensidade da violência

proposta pelos mutacionistas não significaria seguir um caminho oposto, “mas reconhecer que

a mudança que se produziu de maneira complexa e progressiva e a recomposição das

relações entre esfera laica e eclesiástica aí tem um papel ainda frequentemente

subestimado pela historiografia francesa” (MAZEL, 2008: 8, grifo nosso).

Sob as observações de Mazel, podemos definir o senhorio como o prosseguimento,

sob formas mais coercitivas, da participação tradicional da aristocracia a escala do poder

local. Tratar-se-ia de um poder antigo, arraigado, fruto da continuidade biológica do grupo

dominante. O que o autor apresentou como algo novo, para este período, era a apreciação

sobre sua legitimidade por parte dos clérigos, sobretudo a partir das reformas eclesiásticas

entre os séculos X e XII21

. De fato, é verossímil propor que de uma e outra parte do ano mil,

até um século XI bem avançado, a dominação aristocrática é às vezes social e eclesial. O que

releva de uma participação precoce do laicato no exercício do poder a escala local. Sob esse

ponto de vista, a cronologia tradicional, defendida por Barthélemy, se sustenta.

20

Podemos citar os acordos de precaria. Basicamente, segundo estes acordos, era concedido, durante a vida de

um laico, o usufruto de determinados bens e direitos eclesiásticos em troca de um censo. Para mais

informações, sobre os acordos de precaria: WEINBERGER, Stephen. Precarial Grants: approaches of the

clergy and lay aristocracy to landholding and time. In: Journal of Medieval History, no. 11, 1985: 163-169.

21 Evidentemente, é necessário reavaliar a definição de reforma ou reformas eclesiásticas. Historiadores como

Thierry Pécout têm atentado para a relação entre as especificidades dos equilíbrios de poder regionais e locais

e os esforços dos clérigos para restringir a participação dos laicos nas questões e nos bens considerados

eclesiásticos: PÉCOUT, Thierry. Le Moment Grégorien en Provence, bilan historiographique. Rives

Méditerranéenes, n. 28, 2007 : 9-20.

Page 213: Anais 2011

210

As dificuldades relativas à proposição de uma definição de senhorio, problematizadas

no interior dos debates sobre a “mutação/revolução feudal”, deve conduzir a abordagem da

especificidade das relações de poder no interior das expressões do senhorio. A perspectiva de

Mazel, chamando atenção para a reavaliação das relações entre clérigos e laicos e sua

imbricação a nível local e regional nos parece um bom caminho. Trata-se de repensar os

paradigmas ou propostas tradicionais, seja o mutacionismo ou o renascimento do século XII,

testando sua verossimilhança nos equilíbrios de poder aristocráticos. Tal exercício deve ter em

vista as especificidades das sociedades analisadas e o cuidado quanto à sobrevalorização de

um passado carolíngio contraposto às supostas anarquia e violência feudais. A reavaliação das

relações entre clérigos e laicos é, portanto, o ponto chave que deve ser o ponto de partida para

“renunciar a tese de uma ruptura brutal e de grande amplitude em torno do ano mil”, sem,

contudo, substituir uma “ilusória continuidade do fim do século IX ao século XII” (MAZEL,

2008: 10).

REFERÊNCIAS

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Page 214: Anais 2011

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GUERREAU, Alain. Feudalismo. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude.

Dicionário Temático do Ocidente Medieval, v. 01. São Paulo: EDUSC, 2002: 437-455.

______. Feudalismo: um horizonte teórico. Lisboa: Edição 70, 1980.

MAZEL, Florian. Pouvoir Aristocratique et Église aux XIe – Xie siècles : retour sur la

« révolution féodale »dans l’oeuvre de Georges Duby. Bulletin du Centre d’études

médiévales d’Auxerre | BUCEMA [en ligne], hors série no. 1| 2008 :

<http://cem.revues.org/index4173.html;DOI :10.4000/cem.4173>.

POLY, Jean-Pierre (dir.) & BOURNAZEL, Éric (dir.). Les Féodalités. Paris: PUF, 1998.

REYNOLDS, Suzan. Fiefs and Vassals: the medieval evidence reinterpreted. Oxford:

Oxford University Press, 1994.

Page 215: Anais 2011

212

O CONCEITO DE ECCLESIA E SUA FUNCIONALIDADE POLÍTICA

André Luis Pereira Miatello1

1 Introdução

O objetivo deste texto é apresentar algumas linhas de raciocínio que estiveram na base

da definição de sociedade durante a Idade Média. Talvez fosse o caso de dizer, logo de início,

que o termo sociedade, aqui, está sendo tomado em seu sentido antigo, mais ou menos como

sinônimo de comunidade política. A questão não é simples; os medievalistas ainda não

chegaram a um consenso sobre a natureza da política na Idade Média e nem mesmo sobre os

fundamentos das relações sociais; a falta de consenso, a meu ver, é fruto de um importante

processo de revisão das técnicas de investigação histórica que começou há algumas décadas:

esse processo tem sido responsável pelo destronamento de muitos nomes importantes que

eram considerados as autoridades da historiografia medieval. É por isso que gostaria de

começar minha reflexão discutindo questões historiográficas.

2 Liberalismo e nacionalismo na história medieval

Sabemos que a história, como disciplina acadêmica, surgiu no séc. XIX; aliás, a

medievalística, como uma subárea da história, também surgiu no séc. XIX. Sabemos que a

organização das disciplinas e das ciências, de modo geral, seguiu um plano filosófico ditado

pelas ideias iluministas do séc. XVIII. A história, nesse caso, quando aderiu aos pressupostos

iluministas, começou a analisar o conceito de sociedade na Idade Média projetando sobre o

período as marcas próprias do séc. XIX e do iluminismo; entre as quais, destaca-se a moderna

noção de Estado que tende a separar o âmbito civil (ou secular) do âmbito religioso (ou

espiritual). A esfera civil seria visível nos Estados e a esfera religiosa, nas Igrejas. Por mais

que as Igrejas fossem também elas instituições organizadas politicamente e por mais que a

religião tenha sido o fundamento primeiro de Estado, mesmo na modernidade, uma coisa era

ser cidadão, outra coisa era ser fiel. A cidadania apresentava-se como a condição básica e

primária da existência social, e a fé, como opção ou livre escolha de indivíduos que seguiam a

1 Professor de História Medieval do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais.

Page 216: Anais 2011

213

voz de suas consciências: esta delimitação aparece, por exemplo, na obra de Thomas Hobbes

conhecida como Do cidadão.

Separar a “comunidade política” da “comunidade religiosa” foi um mecanismo

bastante eficiente encontrado pela burguesia liberal para justificar sua recente ascensão ao

poder. O esquema foi mais ou menos assim: sabendo que a monarquia, até o séc. XVIII,

amparava-se na ideia do direito divino dos reis e a aristocracia na ideia de hierarquia social

como expressão da vontade divina, era preciso deslegitimar totalmente esse modelo, retirando

dele suas bases de sustentação: a Igreja, já que se crê que ela é a representante dessa vontade

divina. Daí que o esforço de instaurar uma nova conjuntura política exigiu que também se

propusesse uma nova visão de sociedade, separando e opondo dimensões que nunca haviam

sido interpretadas como opostas.

Mas a historiografia não foi um mecanismo de legitimação apenas para a ascensão da

burguesia. Foi também para a ascensão dos Estados nacionais. Karl Ferdinand Werner (1992)

e, depois, Patrick Geary (2005) recentemente mostraram que os historiadores europeus, junto

aos políticos, inventaram o nacionalismo e, com ele, inventaram também as nações europeias.

Não só o nacionalismo, mas igualmente a ideia de Estado nacional tomaram conta das mentes

dos historiadores e, a partir daí, contaminaram seus trabalhos.

Para o campo de estudos medievais, o resultado foi trágico. Para justificar a existência

dos Estados nacionais, foi preciso provar que eles sempre existiram. Aqui entra o historiador

como investigador do passado e como ideólogo do poder. Werner resume esse processo:

tendo na cabeça a ideia de Estado nacional e acreditando que um Estado se instaura por meio

de uma autoridade soberana, bastava olhar para o passado e procurar as marcas do poder

soberano: onde ele estivesse, ali estaria a nação; os historiadores até recentemente

acreditavam que o império romano de fato desapareceu do Ocidente em 476 e que os reis

germânicos foram, a partir daí, os únicos soberanos; por isso, os reis é que se tornaram os

fundamentos das nações: a existência de um rei franco significava que existia uma nação

franca (e de uma França); a existência de um rei visigodo, a existência de uma nação

visigótica (e de uma Espanha), etc.

O corte instituído pelos iluministas entre esfera civil e religiosa é aplicado aqui, pois

os reis germânicos, além de não serem propriamente reis nacionais (no sentido moderno), não

governavam sozinhos: o poder público e, por conseguinte, a política da Alta Idade Média não

podem ser resumidos à pessoa dos reis. Estes governavam a partir de uma rede muito densa

formada pela aristocracia laica e pela aristocracia eclesiástica. Mas, quando se acredita que

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apenas o rei detinha a soberania e, portanto, o poder público, acredita-se que os aristocratas e

os clérigos detinham apenas poderes privados. O resultado da equação já pode ser imaginado

por nós: na suposta ausência do rei, como foi o caso da época do chamado “feudalismo

clássico”, não havia poder público porque o poder privado da aristocracia e dos clérigos se

impôs ao poder público do rei.

E sabemos bem que quando aplicamos o modelo de Estado nacional, ele exige a

adequação da realidade histórica aos seus termos. Por isso, muitos acreditam que não existiu

Estado, na Idade Média, como os historiadores conhecidos como mutacionistas: estes, a partir

de Georges Duby (1953), analisam a história política do segundo milênio ocidental pelo viés

da decomposição das estruturas monárquicas, que teria começado por volta do século IX; com

o suposto desaparecimento dos reis, seguiu-se a dissolução da autoridade pública e a

afirmação de formas privadas de exercício do poder e da justiça. O resultado disso não

poderia ser outro: sem um poder central regulador, o campesinato inerme se vê explorado pela

aristocracia guerreira que se apropria do excedente para fortificar o “senhorio” que, para os

mutacionistas, é uma fragmentação do espaço público, ou melhor, é uma célula de poder onde

o oficial público exerce certas funções para fins privados.

As considerações lançadas pelos historiadores mutacionistas levaram ao extremo a

projeção do conceito de Estado nacional sobre a Idade Média e, quanto a isso, basta olharmos

o que escreveu Pierre Bonnassie:

antes de seu estabelecimento [isto é, do senhorio banal] reinava a ordem: a

autoridade dos condes, o respeito pela lei gótica, o prestígio dos tribunais públicos e

a disciplina que se impunham a si mesmas as comunidades rurais eram os pilares

sobre os quais descansava a ordem pública (BONNASSIE, 2003: 217).

Nesse caso, a mudança de paradigma político (a emergência do senhorio banal), por

negar os fundamentos do Estado moderno, só poderia redundar em desordem e em

desaparecimento da dimensão pública ou política.

Apesar de parecer contraditório, os historiadores da Igreja também contribuíram para a

afirmação das ideias burguesas e iluministas. Os motivos foram outros, mas foram igualmente

responsáveis pela fissura. A partir do séc. XIX, os historiadores da Igreja, muitos deles

clérigos, procuraram justificar o lugar que o papado ocupava no âmbito internacional dos

Estados laicos; e já que os Estados negavam a participação da Igreja na esfera pública do

poder, os papas precisavam encontrar uma fonte de soberania que não pudesse ser

reivindicada pelos estadistas: este é o caso do “poder espiritual”. Historiadores como

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Augustin Fliche (1924) e Gerd Tellenbach (1959) explicavam a história da Igreja de maneira

muito diferente, mas ambos concordaram com o princípio iluminista, laicista e nacionalista da

historiografia contemporânea: colocaram em prática o princípio que o papa Leão XIII (1810-

1903) defendia, isto é, a irredutibilidade da Igreja a qualquer comunidade política: a Igreja,

sendo soberana em matéria espiritual, é governada por um papa isento de obedecer a qualquer

autoridade política. Estes historiadores explicaram a história do cristianismo medieval

seguindo o esquema de Estado versus Igreja ou Igreja versus Estado.

Essa dicotomia gera ainda outros problemas, apontados por Alain Guerreau (2006) em

suas obras mais recentes: por exemplo, o estudo do direito civil, na Idade Média, esteve

profundamente ligado à realidade do direito canônico; a lei positiva, em profunda relação com

a lei revelada; a economia, ligada ao direito positivo e ao direito revelado, ligada também ao

sentido místico de poder e de política. Acreditar que, na Idade Média, as categorias do direito,

da economia, da política e da religião eram entidades independentes é fazer tábula rasa do

passado (GUERREAU, 1990: 459).

3 Ecclesia ou o Estado místico

Frente a isso, qual postura teórica apresenta-se mais conveniente para evitar os riscos

do anacronismo? Em uma das páginas mais bonitas de A filosofia na Idade Média, Etienne

Gilson escreve assim: “num pensador da Idade Média, o Estado está para a Igreja assim como

a filosofia está para a teologia e como a natureza está para a graça” (GILSON, 1995: 308).

Mais recentemente, Alain Guerreau, em L’avenir d’un passé incertain, obra ainda inédita no

Brasil, escreve algo parecido:

a Igreja católica medieval englobava todos os aspectos da sociedade, exercia um

controle estreito de todas as normas da vida social e, com relação a isso, ela gozava

de uma posição de quase monopólio, isso porque, a ‘ecclesia’ era a verdadeira

espinha dorsal da Europa medieval (GUERREAU, 2001: 29).

Estes dois autores, a meu ver, não estão tentando explicar como que, na Idade Média,

Estado e Igreja se relacionavam. Tiradas do contexto, as citações podem nos levar a pensar

isso, mas não é o caso. Cada um ao seu modo, Gilson e Guerreau estão tentando dizer que,

durante o chamado período medieval, é inadequado concebermos separadamente essas duas

instituições que se tornaram autônomas apenas no mundo moderno.

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Não é meu interesse definir o que é Estado e o que é Igreja na Idade Média e não vou

entrar no mérito de uma questão que julgo um pouco fora de propósito. Cito Gilson e

Guerreau por acreditar que eles, ao mesmo tempo em que falam do óbvio, propõem um ponto

de partida interpretativo bastante interessante: não há um Estado por oposição a uma Igreja,

mas uma sociedade que se entende e se pretende cristã (a societas christiana): dela participam

reis e bispos, homens e mulheres, clérigos e leigos, letrados e analfabetos, pobres e ricos,

vivos e mortos, santos e pecadores. Uma sociedade que afirma uma moral embasada no

direito positivo e na revelação divina; que afirma uma ciência constituída pela luz natural da

razão e pela iluminação sobrenatural da graça; que defende um destino calcado na realização

de virtudes éticas transfiguradas por virtudes teologais; enfim, uma sociedade em que os

indivíduos não se entendem como unidades autônomas e autossuficientes e não conhecem

apenas uma dimensão imanente de vida.

Lancemos, rapidamente, um olhar sobre algumas referências importantes que

estiveram na base da definição medieval de sociedade.

Gostaria de começar evocando uma frase lapidar que o bispo Agostinho de Hipona

escreveu em sua obra chamada Sobre o trabalho dos monges (XXV, 33): “uma só é, pois, a

república dos cristãos. Por isso, qualquer que seja o lugar onde alguém dá o que é necessário

aos cristãos, ali também ele mesmo receberá o necessário para si dentre os bens de Cristo”. É

provável que o sentido do termo “república” empregado, em latim, por Agostinho, queira

significar uma realidade um pouco diferente da república romana no século V. Mas, no

momento, isso não é relevante. Interessa ressaltar que Agostinho, para se referir à sociedade

que se formou pela fé em Cristo, usa uma terminologia política de grande significado para o

público ao qual escrevia. Porém, se essa frase tivesse sido dita três séculos antes,

possivelmente os cristãos daquele tempo não teriam conseguido entender como um bispo

cristão podia designar res publica aquilo que eles chamavam ecclesia.

Isso porque os primeiros cristãos, apesar de viverem dentro do império romano, não

admitiam confundir a sociedade espiritual que formavam com a sociedade político-religiosa

do império. A razão é simples: no mundo romano, não havia diferença entre o âmbito

religioso e o âmbito político: a religião romana, por mais que tenha tido seus sacerdotes e seus

templos, não constituía uma coisa diferente em relação à república. Mesmo as celebrações

festivas em honra dos deuses eram sempre festas cívicas, promovidas e sustentadas pela

cidade na pessoa de seus magistrados, ao abrigo das leis. A cidade, enquanto valor absoluto,

não podia admitir, para os romanos, nenhuma outra instância superior no que se referia à vida

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social ou à moral. Tanto é que a religião romana não conhecia nenhuma lei diferente ou

superior à lei da república e os deuses romanos não eram deuses legisladores. O homem

mostrava que era homem quando empregava sua liberdade na construção da cidade, na

aceitação consensual de suas leis e na manutenção de suas instituições. A cidade era uma

instância que englobava o homem todo e dava significado a cada gesto da vida humana,

inclusive a dimensão religiosa. Daí que os romanos não tiveram a menor intenção de separar

em dois blocos distintos os assuntos políticos (ou temporais) e os assuntos religiosos (ou

espirituais).

De maneira absolutamente contrária apresentavam-se os evangelhos, cujos autores

tiveram todo o cuidado de anotar que, segundo Cristo, um era o direito de César e outro o

direito de Deus. Por direito de César, os primeiros cristãos se referiam à república; por direito

de Deus, à Igreja. Mas tomemos aqui muito cuidado: o conceito antigo de república não

coincide com nosso conceito moderno e muito menos o conceito antigo de Igreja coincide

com o conceito moderno. Por isso, o versículo “dai a César o que é de César e a Deus o que é

de Deus” (Mt 22, 21) não pode ser tomado como o fundamento evangélico para uma

separação das esferas secular e religiosa. Ao distinguir os direitos de César e os direitos de

Deus, os cristãos primitivos queriam evitar incorrer no erro dos romanos, isto é, supor que a

república representava um valor absoluto; se assim fosse, as leis da república teriam que ser

superiores às leis de Cristo e, consequentemente, teriam de admitir que o tempo era maior do

que a eternidade. Deus é que era absoluto e a sua lei, muito mais imperiosa. A sociedade e as

leis sociais, apesar de boas, eram apenas valores relativos.

O problema teórico era muito espinhoso. O cristianismo, como religião e como

filosofia, nunca tinha precisado formular nenhum conceito de sociedade e muito menos de

política; aliás, os autores cristãos primitivos pareciam ignorar ou até menosprezar o interesse

pela dimensão política da vida social. Obcecados pelo reino dos céus, pareciam virar as costas

para o reino da terra. Para esses pensadores, como o autor da carta aos Hebreus ou, duzentos

anos depois, o autor da carta a Diogneto, os cristãos viviam na cidade terrena ansiando pela

cidade do céu: aparentavam serem cidadãos, mas eram peregrinos: de César, eles não

esperavam mais do que a liberdade de viverem segundo a própria consciência.

Porém, a conversão do imperador romano Constantino I ao cristianismo mudou esse

estado de antipatia (VEYNE, 2010). Os pensadores cristãos passaram a ter, desde o século IV,

a difícil tarefa de explicar como a experiência da renúncia do mundo poderia agora combinar

com o governo do mundo e com governantes cristãos.

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218

Eusébio de Cesareia foi um dos responsáveis pela elaboração de um acordo entre a res

publica de César e a ecclesia de Cristo, foi ele também uma espécie de promotor da ideologia

régia de Constantino depois de sua conversão: coube a ele escrever, pela primeira vez, um

tratado cristão sobre a natureza do rei, os atributos de seu poder e sua função social: Eusébio

não tinha dúvidas de que Deus, sendo um, colocou no mundo um só soberano para governar o

reino e este soberano, enviado por Deus, era misticamente a continuação de Cristo, filho de

Deus, enviado ao mundo para instaurar o reino de Deus. Instaurou-se uma relação profunda

entre Deus e o imperador, entre o imperador e Cristo; e, mais do que isso, criou-se uma

relação profunda entre o reino dos homens e o reino de Deus. Eusébio praticamente identifica

a ambos numa só realidade que podemos chamar mística porque é uma sociedade natural

ordenada sobrenaturalmente (CRANZ, 1952).

Essa consequência verdadeiramente grave para o destino da historia ocidental nasceu

de uma tese bastante delicada: os cristãos da Antiguidade, de maneira geral, acreditavam que

Deus governava o mundo por meio dos reis, mesmo quando os reis eram pagãos. No entanto,

esses reinos pagãos só podiam ser pálidos reflexos do reino de Deus; tais reinos conheciam

apenas a lei natural e a lei constitucional; ignoravam a lei revelada que Deus manifestou a

Moisés, no Monte Sinai. Desse ponto de vista, o reino de Israel poderia ter sido um reflexo

mais perfeito do reino de Deus, pois os judeus conheceram a lei revelada.

Mas o reino dos judeus não se tornou a imagem perfeita do reino de Deus porque eles

não aceitaram a Cristo, a Sabedoria do Pai, a Lei encarnada e definitiva. Já que os judeus não

aceitaram ser, na terra, a imagem do reino de Deus, o Pai transferiu essa graça para os

discípulos de Cristo, cuja instituição foi chamada desde a primeira metade do século primeiro,

de ekklesia. Nós traduzimos este termo grego por ‘igreja’, mas entre o sentido grego original,

o sentido cristão posterior, e o nosso sentido contemporâneo de ‘igreja’ há uma diferença

histórica que nos leva a confundir tudo.

O que o apóstolo Paulo chamava de ekklesia, no século I, era uma sociedade de

homens e mulheres, de todas as culturas e povos, irmanados na fé de Cristo e identificados

pelo batismo: uma sociedade distinta dos impérios e das culturas dos reinos: para Paulo, os

cristãos formavam o novo Povo eleito, mas era um povo peregrino, disperso no meio dos

povos, sem território, sem fronteiras, sem idioma próprio e sem reis. Para Eusébio de

Cesareia, no século IV, ekklesia, sem perder nada do que Paulo havia ensinado, ganhou uma

dimensão incomensurável.

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Na mente do imperador Constantino e, depois de Teodósio, ekklesia não era mais uma

sociedade a parte, no meio de reinos, mas o reino cristão no meio do mundo. O reino cristão,

bem-entendido, era o reino de César, agora convertido a Cristo como Constantino.

Esta interpretação constantiniana encontrou forte resistência em Agostinho de Hipona;

para este bispo do séc. V, “reino de César”, apesar de cristão, continuava um reino de

homens; e o “reino de Deus”, visível na ecclesia, continuava um reino espiritual. Na obra De

catechizandis rudibus (XXI, 37), Agostinho admite que a ecclesia, a princípio perseguida e

escravizada pelos reis da terra, alcançou uma paz e uma tranquilidade imensas quando os reis

pagãos se converteram ao cristianismo; a paz dos reis cristãos permitiu que a ecclesia se

desenvolvesse como uma grande plantação. Mas, mesmo assim, o imperium continuava

irredutível à ecclesia. Como escreve Edward Cranz: “nem a vinda de Cristo e o florescimento

da Cristandade destruiu a continuidade da cidade terrena e seu reinado; o império romano é

ainda Babilônia” (1950: p. 219). No cerne desta irredutibilidade está a diferença de natureza

entre imperium e ecclesia: a natureza da ecclesia é transcendente, a natureza do imperium,

imanente.

As duas visões opostas de Eusébio de Cesareia e Agostinho de Hipona foram

reconciliadas na posteridade medieval. De fato, na parte oriental do império, conhecido por

nós como império bizantino, preferiu-se manter a analogia de Eusébio, enquanto na parte

ocidental, a autoridade de Agostinho foi mais considerada. Mesmo assim, já no séc. VI

encontramos aproximações entre os dois modos de interpretar a sociedade cristã. Redutível ou

irredutível ao conceito de ecclesia, não podemos deixar de ver que o imperium ou os regna

enfrentaram graves consequências: o império romano e, depois, os reinos germânicos,

ganharam uma legitimação espiritual que fez deles um instrumento da providência para a

salvação do mundo: salvação que era uma projeção da vida social no além. E a Igreja, antes

fechada e apática ao mundo, foi projetada para dentro dele. O que antes parecia tão-somente

político tornou-se religioso, o que parecia tão-somente religioso tornou-se político.

Na mente dos cristãos do século V, a ekklesia substituiu o helenismo e o judaísmo,

tomados como paradigmas de todas as instituições políticas. Ao conceber a Cristo como a Lei

encarnada e definitiva, como a lógica (Lógos) de toda a vida social, a ekklesia constantiniana

apresentava-se como o único meio de sociabilização e de civilização; doravante, cristianizar

tornou-se sinônimo de civilizar e fundar igreja, sinônimo de implantar o reino. Esse seria o

meio de salvar o mundo do naufrágio ao instaurar nas sociedades, temporalmente ordenadas,

os princípios da eternidade e os valores do mundo celestial: a ekklesia, como arca da Lei

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definitiva, era o ponto máximo da civilização por ser a imagem da cidade de Deus na terra e

por ser o critério de ordenamento de toda a criação.

A fusão do conceito de império com o conceito de igreja tornou confusas as funções

de governo dentro deste império-igreja. Em tese, o império romano era governado pelos

césares e seus magistrados, e a igreja cristã, pelos bispos e seus presbíteros. No império-

igreja, ou na societas christiana, expressão usada por alguns doutores da fé, o imperador e,

depois, os reis, assumiam função de comando também nos assuntos religiosos, como árbitros

entre bispos litigantes, promotores e diretores de concílios ecumênicos, fundadores de igrejas,

condutores do Povo de Deus; Mayke de Jong (2003) estuda a arquitetura do Palácio de Carlos

Magno, que era chamado de sacrum palatium (nome usado na época constantiniana) e entrou

para a história como de Aix-la-Chapelle, isto é, um palatium régio conhecido como uma

ecclesia; os bispos tornaram-se magistrados cívicos, árbitros de tribunais, conselheiros dos

reis e legisladores do reino. Os reis ficaram parecidos com os bispos e os bispos com os reis.

Não pensemos que tenham sido sempre harmônicas as relações entre reis e bispos ou,

depois, a partir do século XI, entre imperadores e papas. Tal como um pêndulo de um relógio,

o peso do governo da sociedade cristã ora pendeu para o lado do rei, ora para o lado do bispo.

Os conflitos, as disputas, os interditos, as excomunhões e deposições foram muitas e de

ambos os lados. Apesar de essa versão constantiniana ou eusebiana de ecclesia ter se tornado

predominante entre os pensadores medievais, sobretudo após Santo Agostinho, a autoridade

evangélica impunha sérios limites à total identificação entre reino de César e reino de Deus.

Outros tantos pensadores, como Agostinho, irão reagir contra as intromissões dos reis nos

assuntos espirituais, vão tentar estipular até onde os chefes seculares podem avançar no

campo religioso; mesmo assim, não podemos deixar de notar que o movimento de

independência dos clérigos, e não da igreja, em relação ao rei (que marcou o século XI)

aconteceu dentro dos marcos teóricos da ecclesia como sociedade englobante.

4 Os dois lados de um único corpo

Provisoriamente podemos dizer que o que era civitas, para os romanos, é a ecclesia,

para os cristãos; provisoriamente. Por que?

Os pensadores medievais aprenderam dos filósofos greco-romanos que a vida humana

tem como finalidade a beatitude, isto é, a vida feliz; esta vida, segundo os antigos, não era

outra coisa senão o exercício das virtudes na cidade, isto é, no mundo presente. Por sua vez,

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os pensadores medievais aprenderam com a revelação cristã que a vida humana tem uma

segunda finalidade que completa o sentido de sua dupla natureza; esta finalidade também é

beatitude que outra coisa não é senão a fruição de Deus no mundo futuro. Esse princípio é de

suma importância para entendermos a diferença que existe entre o conceito de civitas

(sociedade antiga) e o de ecclesia (sociedade medieval); vale a pena repetir: para os antigos, a

felicidade podia ser resumida no exercício das virtudes no mundo presente; para os medievais,

a felicidade é também a fruição de Deus no mundo futuro.

Exemplo mais claro desse tipo de raciocínio é Tomás de Aquino, em sua obra De

regno, composta para o rei de Chipre, Hugo II de Lusignan (1252-1267). Ao tentar explicar a

diferença entre o bem comum, valor supremo da sociedade política, e o bem sobrenatural,

valor supremo da sociedade eclesiástica, Tomás reserva ao príncipe o mesmo lugar de um

magistrado greco-romano, isto é, o de responsável pela defesa e salvaguarda do bem comum.

Mas o príncipe tomasiano não governa um reino que tem como fundamento apenas o bem

comum; ao contrário, sua república, a seu modo, reúne ambas as dimensões, natural e

sobrenatural e, por isso, apesar de não ser especialista em matéria religiosa, o príncipe é

instrumento de salvação.

Tomás, então, propõe uma cooperação entre o regnum e o sacerdotium, uma

cooperação que, obviamente não é igualitária, pois o poder principesco é propedêutico em

relação à autoridade sacerdotal; esta é superior tanto em sua finalidade (a salvação) quanto em

na origem (a instituição divina). O príncipe então precisava muito mais do sacerdote do que o

sacerdote do príncipe. Este devia aprender com sacerdotes (principalmente com papa) a

governar; seu poder não era autônomo, mas estava a serviço de uma ideia salvacionista de

sociedade.

O mais interessante é que Tomás justifica a sua posição antagônica a de Aristóteles a

partir do próprio Aristóteles; este dizia que governar é facultar ao governado o acesso a seu

fim último. E, para Tomás, qual o fim último do homem? A visão beatífica de Deus que se

consegue mediante uma vida ordenada pela graça e pela prática de virtudes. Em termos de

mediação, a ecclesia era mais apta a levar os homens a seu fim último do que o regnum,

porque a ecclesia era instituição divina enquanto o regnum, instituição humana.

Tomás considera a função sacerdotal e a instituição eclesiástica superiores à função

principesca e à instituição estatal, mas ele sabe muito bem que ambas precisam coexistir: a

competência do sacerdócio é diferente da competência do principado, mas ambas as

competências estão a serviço do próprio Deus. O príncipe governa a cidade terrena; o

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sacerdote prepara a cidade celeste. São âmbitos diferentes, mas não autônomos. Por que?

Porque a cidade terrena é uma fase provisória; cabe ao sacerdócio iluminar as instituições

terrenas e principalmente, instruir o governante com a lei de Cristo que é perene.

Mas, tomemos cuidado, Tomás não confunde a função principesca com a sacerdotal; o

sacerdote não é professor do príncipe naquilo que se refere ao aspecto propriamente político,

mas ao aspecto religioso (moral, ético, teológico). Nesse caso, a intervenção sacerdotal no

Estado se justifica na medida em que o Estado é formado de pessoas com vocação

sobrenatural (cada homem é chamado a fruir de Deus) e na medida em que o Estado precisa

facultar parte desse chamado. O Estado, portanto, é uma estrutura que serve à vocação da

Igreja (comunidade dos que fruem de Deus). É aqui que entra em cena a submissão do Estado

à Igreja no pensamento político de Tomás de Aquino. Mas convém observar que esta

submissão não é relativa a qualquer aspecto, mas apenas àquilo que se refere ao fim

sobrenatural dos homens. É uma submissão indireta porque a Igreja não pode intrometer-se no

Estado naquilo que se refere ao bem comum, mas, ao bem sobrenatural.

A república cristã, por mais perfeita que fosse, não podia garantir a fruição de Deus na

vida futura, mas podia preparar o caminho; o fim último do homem ultrapassava o fim

secundário da república e, por isso, os direitos de Deus continuaram superiores aos direitos

dos governantes. Os príncipes são submissos aos sacerdotes somente naquilo que se refere à

lei de Cristo que prevê a salvação mediante os sacramentos. Dentre todos os sacerdotes, o

papa é o mais importante porque ocupa na terra o lugar de Cristo, fundamento da salvação.

Daí que os príncipes precisavam submeter-se ao papa como deviam se submeter a Cristo (mas

apenas naquilo que dizia respeito à salvação).

Obviamente, as opiniões de Tomás de Aquino não representavam a crença geral dos

pensadores do período e, como foram propostas, chocavam-se com as proposições dos

partidários do império, como por exemplo, Dante Alighieri, em seu De Monarchia, cuja data

de composição é um pouco incerta, variando, segundo as suposições, entre 1300-1313. Não

que Dante fosse um opositor da filosofia tomasiana, muito ao contrário, sempre apresentou-se

um estudioso do pensamento do doutor angélico. O fato é que Dante, ao levar a cabo as

considerações de Tomás, não compreendia a república como meramente propedêutica à

condição sobrenatural do ser humano; diferentemente de Tomás, Dante privilegiou a

investigação daquela felicidade passível de ser experimentada na vida presente, mediante o

exercício da vida política, cujo fim seria um estado de felicidade [felicitas temporalis] que

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223

Dante chamou de paraíso terrestre (ALIGHIERI, 1988: 231). Este estado, apesar de distinto

do paraíso celeste, não era menos fundamental para a definição do próprio homem.

Sem negar o procedimento tomasiano, Dante concede à vida política uma positividade

ainda maior. É aqui que a figura do imperador universal assoma como um instrumento

verdadeiramente redentor: o fato de o imperador ter alcançado a suma glória desse mundo o

coloca numa condição de completa indiferença em relação à cobiça, pois nada há que ele

venha a querer. Daí que poderá ser o árbitro mais eficiente e o ministro da justiça mais

efetivo. A consequência é a paz que decorre da justiça e que tem no imperador o seu eixo.

Ora, Dante considera que a existência de um único imperador para todo o gênero

humano era a possibilidade de levar os homens a encontrarem, neste mundo, a beatitude

devida à realização de seu ser, isso porque o imperador universal facultaria a unidade de todos

os homens e, consequentemente, a unidade de todos os intelectos elevando o alcance racional

do gênero humano ao seu grau máximo: na opinião de Dante, só o gênero humano é que

consegue atingir o conhecimento total possível ao intelecto humano; os intelectos particulares,

por mais evoluídos que fossem, conseguiriam apenas exercer uma parte da capacidade total

que a humanidade tem de conhecer.

Em Dante, a vida presente, entendida em termos políticos, recobre um sentido de

realização do homem que parece ter sido pouco investigado por outros autores medievais; no

entanto, não podemos supor que ele estivesse separando o fim último da vida natural do fim

último da vida sobrenatural. O fato de o homem, para Dante, ser composto de corpo e espírito

forneceu o principal argumento para a comunhão dos dois fins últimos: Dante não se esquece

do princípio de que o mundo que ele conhecia era regido por Deus por mediações históricas

igualmente governadas pela providência. Assim, apesar de sabermos que Dante Alighieri, ou

Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham, advogavam limites para o poder dos clérigos, não

podemos concluir que algum deles chegou a conceber algo parecido com uma sociedade

secular ou um Estado laico.

5 Conclusão

Eis o principal motivo de vermos como um problema epistemológico o estudo da

sociedade e da politicidade da história medieval mediante a implícita ou explícita aceitação

dos valores do Estado liberal como reificações desprovidas de historicidade. Por acreditarmos

que a laicidade tenha sido o fruto de um processo histórico doloroso que culminou em

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modelos políticos democráticos e participativos, corremos o risco de interpretarmos a

racionalização das práticas políticas, a partir do séc. XV, como oposição ao misticismo das

formas políticas anteriores, aí incluídas as do período medieval. Ora, em que pese o erro de

conceber o Estado místico como irracional e contrário à liberdade, não podemos ignorar o fato

de que a laicidade supõe algo completamente ignorado na Idade Média: a distinção entre

domínio público e domínio privado da vida social; do mesmo modo, a laicidade supõe que as

convicções religiosas pertencem exclusivamente ao domínio privado, pois são frutos da

liberdade individual de escolha, suposição esta bastante absurda segundo as bases do

pensamento medieval.

Desse ponto de vista, o domínio público, por ser indivisível e por ser o lugar exclusivo

de exercício da cidadania, não poderia privilegiar nenhuma manifestação privada de

liberdades individuais e, o que dá na mesma, não poderia interferir nas formas com que os

grupos e associações particulares organizam a sua vida e suas instituições. Se admitimos a

validade do caráter laico das formas de Estado e nos esquecemos de que, em outros lugares e

épocas, os conceitos de cidadania, liberdade e direito possuíam outros significados, podemos

ser tomados pela miopia analítica que gerou o preconceito em relação às sociedades

medievais, no passado, e que ainda gera preconceito, por exemplo, em relação às sociedades

islâmicas.

Cabe ao historiador, como consciência crítica do tempo, e ao professor de história,

como formador de pensamento crítico, oferecer ao público a chance de construir o

conhecimento a partir de estruturas menos anacrônicas e, no limite, menos preconceituosas de

análise da história.

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Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

Page 229: Anais 2011

226

ÍNDICE REMISSIVO

Alta Idade Média 6, 8, 9, 13, 16, 17, 18, 31, 32, 33, 35, 36, 40, 41, 43, 45, 46, 49, 51, 52, 87, 88, 91,

99, 102, 107, 112, 115, 213.

Antiguidade Tardia 14, 137, 200.

Arqueologia funerária 6, 47.

Austrásia 5, 33, 34, 37, 38, 39.

Baixa Idade Média (Baixo Medievo) 9, 13, 100, 137, 143, 146, 182.

Bizâncio 5, 32, 34, 74, 75.

Cavalaria 150, 152, 154, 155.

Cristandade 124, 142, 143, 145, 147, 190, 219.

Cristianismo 9, 48, 128, 136, 137, 138, 140, 141, 143, 146, 188, 190, 215, 217, 219.

Direito Canônico 161, 163, 215.

Direito Romano 17, 31, 112, 161, 162, 169, 176.

Dominicanos (Ordem dos Frades Pregadores, Frades Pregadores) 9, 14, 120, 121, 122, 123, 124,

125, 127, 129, 131, 132, 133.

Dominium/Senhorio 11, 12, 17, 18, 159, 166, 167, 168, 169, 172, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 197,

198, 202, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 209, 210, 214.

Embaixadas 34, 35, 36.

Estado 6, 12, 31, 32, 42, 45, 55, 56, 57, 68, 69, 76, 88, 195, 206, 207, 208, 212, 213, 214, 215, 216,

222, 223, 224,

Etnogênese 6, 42, 44, 45, 46, 49, 51, 52, 77, 78, 79, 81.

Feudalismo 11, 12, 57, 69, 197, 198, 199, 205, 214,

Franciscanos (Ordem dos Frandes Menores, Frades Menores) 124, 125, 145, 146, 166.

Francos (Reino Franco) 5, 6, 8, 20, 21, 31, 32, 33, 34, 37, 38, 39, 45, 47, 48, 49, 50, 51, 58, 65, 76,

77, 88, 89, 90, 106, 107, 108, 109, 111, 213.

Gália 5, 6, 14, 16, 18, 33, 42, 46, 47, 49, 51.

Gentry 10, 14, 150, 151, 153, 154, 155, 156, 157.

Godos (Reino Godo) 7, 8, 67, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 80, 81, 82.

Historiografia 5, 7, 8, 10, 11, 13, 14, 16, 31, 33, 55, 56, 57, 67, 68, 69, 76, 82, 92, 112, 117, 151,

152, 203 205, 209, 212, 213, 215.

Igreja 6, 13, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 57, 58, 61, 62, 64, 121, 129, 130, 131, 132, 137,

141, 142, 143, 144, 145, 146, 198, 208, 209, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 223.

Page 230: Anais 2011

227

Império Carolíngio 91, 197.

Império Romano 31, 33, 34, 49, 76, 77, 78, 89, 147, 168, 190, 213, 216, 219, 220.

Lei 10, 14, 61, 81, 109, 110, 111, 112, 113, 160, 161, 162, 164, 166, 167, 169, 170, 171, 172, 173,

174, 176, 177, 178, 203, 208, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 223.

Magia (Mago) 11, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 193, 194, 195, 196.

Morte 10, 15, 21, 23, 24, 25, 26, 27, 64, 116, 117, 118, 119, 120, 122, 123, 127, 128, 129,

130, 131, 132, 133, 134, 139, 140, 141, 147.

Mortos 9, 14, 115, 116, 120, 126, 127, 131, 132, 133, 137, 138, 139, 142, 216.

Ordálios 8, 14, 106, 107, 108, 109, 111, 112.

Papado 34, 58, 69, 121, 147, 161, 214.

Paz de Deus 7, 55, 56, 57, 59, 61, 203, 204, 206.

Política 5, 6, 7, 11, 12, 13, 14, 16, 31, 32, 34, 42, 44, 51, 55, 56, 57, 65, 67, 74, 75, 77, 80 81, 89,

121, 122, 123, 125, 136, 141, 143, 144, 145, 147, 148, 161, 162, 164, 174, 182, 190, 191, 199, 200,

212, 213, 214, 215, 216, 217, 219, 221, 222, 223, 224.

Renascimento 31, 151, 182, 183, 186, 188, 198, 210.

Santidade 9, 14, 121, 122, 124, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 147,

148.

Segredo 11, 14, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194, 195.

Testamento 24, 27, 28, 123, 138, 163, 166, 188.

Page 231: Anais 2011

228

ÍNDICE ONOMÁSTICO

Ablablius 72, 73.

Agostinho de Hipona 74, 123, 142, 143, 216, 219, 220, 227.

Alexandre IV 125.

Angelo Clareno 147.

Antônio de Pádua 122.

Arnold Bostius 182, 183.

Bartolus da Sassoferrato 11, 159, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 170, 171, 172, 173, 174,

175, 177, 178, 179.

Bertrand de Mans 5, 20, 25, 26, 27, 29.

Blasé de Vigenère 183, 190.

Boaventura de Bagnoregio 16.

Bonaccursius 165.

Carlos Magno 36, 88, 89, 94, 100, 103, 110, 111, 114, 220.

Carlos IV 163, 166.

Carlos V 190.

Cassiodoro 32, 71, 73.

Castalius 71.

Cesário de Arles 5, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28.

Rei Childeberto I 19

Rei Childeberto II 37, 38.

Cícero 152.

Cinus da Pistoia 163.

Rei Clotário II 25, 26, 27.

Rei Cnut 63, 64, 65.

Constantino I 217, 218, 29.

Cornelius Agrippa Von Netteshein 191, 192.

Dante Alighieri 222, 223.

Domingos de Gusmão 121, 122, 123, 124, 125, 126.

Eusébio de Cesareia 218, 219.

Francisco de Assis 9, 122, 124, 125, 126, 145, 146, 147, 163.

Francisco Tigrini da Pisa 165.

Page 232: Anais 2011

229

Isidoro de Sevilha 8, 50, 67, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 80, 81, 82.

Gerardo de Frachet 9, 115, 120 121, 122, 123, 124, 127, 129, 130, 131, 132, 133.

Giambattista della Porta 11, 183, 193.

Gregório IX 122, 146.

Guilherme de Ockham 223.

Guilherme do Santo Amor 126.

Hugo II de Lusignan 221.

Humberto de Romans 122, 124, 125.

Humphrey Newton 153.

Jacques Gohory 191.

Joan da Sassoferrato 165.

Johannes Reuchlin 187.

Johannes Trithemius 11, 182, 183, 189, 191, 192, 195.

Sir John Paston II 10, 153.

Jordanes 7, 8, 67, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 80, 81, 82.

Jordão da Saxônia 122.

Justiniano 32, 73, 74, 80, 161, 168.

Leão XIII 215.

Leon Battista Alberti 183, 184.

Luís I, o Piedoso 110, 111.

Marsílio de Pádua 223.

Marsilio Ficino 189.

Imperador Maurício 34, 37, 38.

Maximiliano I 190, 195.

Nicolau d’Allessandro 165.

Paulo (são) 218.

São Pedro Mártir (são Pedro de Verona) 121, 122, 123, 124.

Pepino, o Breve 89, 110.

Petrus de Assisio 163.

Pico della Mirandola 187, 189.

Pierre de Belleperche 171.

Platão 188.

Poeta de Gawain (Poeta de Pearl) 150.

Page 233: Anais 2011

230

Raul Glaber 7, 14, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65.

Rei Ricardo II 151, 152.

Teodósio 219.

Thomas Hobbes 213.

Tomás Celano 146.

Tomás de Aquino 180, 221, 222.

Ubertino de Casale 147.