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Vovô Tancredo, o encanto possível
Trechos do texto produzido por Andrea Neves, neta de Tancredo, quando ela tinha 25 anos.
Revista Vogue - 1984
A primeira lembrança é de uma tarde no apartamento de Copacabana.
Ele, com infinita paciência, cantava Se Essa Rua Fosse Minha.
Excitada pelo fascínio que a biblioteca me despertava e pela impressão
que as ilustrações de A Divina Comédia me causara, relutava em conseguir dormir.
Depois, como em todas as manhãs, vieram as histórias (verdade que sempre as mesmas...) e
eu seria capaz de jurar que ele se divertia tanto quanto eu
com as nuances de voz e expressão que criava para os personagens.
Paulo Mendes Campos dizia que os grandes milagres, ao contrário do que pode parecer, não acontecem depressa, mas devagar, muito devagar.
De certa forma é também o que acontece com as “grandes lições” que a vida nos oferece. Através dos olhos, da voz e do coração de primeira neta (quero) revelar (neste texto) um pouco do afeto e da ternura que o dia-a-dia insiste em tentar nos fazer esquecer.
Avanço no tempo e lá estávamos nós, passeando pelas ruas de São João del Rei.Em cada esquina, uma história; a cada passo, um amigo, um dedo de prosa, um abismo de recordações. Lembro-me, numa dessas ocasiões, do desassossego que me tomou conta, quando, entreouvindo uma dessas conversas, descobri, encantada, que ele também fora menino, nadara no Olho d’Água e brincara nas torres da Matriz...
Agora, as conversas eram verdadeiras aulas de história e a facilidade com que discorria sobre os mais diversos assuntos me ingressou num mundo novo.
É, até hoje, fascinante vê-lo, na descontração do universo familiar, falar com a mesma intimidade sobre os grandes clássicos da literatura universal, sobre
alguns aspectos de determinada teoria política ou mesmo comentar a técnica de uma jogadora de basquete.
A ecleticidade da sua formação faz com que navegue com segurança e naturalidade sobre as mais diversas áreas do conhecimento humano.
É também nessas ocasiões que melhor se revela a agudez do seu espírito: bem-humorado, domina com maestria o uso da ironia sem jamais chegar ao sarcasmo, ao mesmo tempo em que é capaz de levar
um “oponente” ao exaspero sem sequer alterar o tom da voz. São presentes dele alguns dos meus melhores livros e só não foram mais importantes na
minha formação do que as dedicatórias que os acompanham.
Chegou a minha adolescência e com ela a descoberta de uma nova dimensão de sua figura.
No espaço de vida real, o avô e o político se confundem revelando o homem na sua dimensão maior.
E é esse quem vem nos legando a mais valiosa de todas as heranças:
o seu exemplo vivo de coragem, lealdade e serenidade.Coragem que revela ao sustentar as suas posições
contra as platéias mais adversas; lealdade quando reserva, mesmo aos adversários,
toda a sua atenção e respeito e a serenidade que caracteriza os que sabem discernir
entre a limitação e o infinito dos fantasmas que povoam as almas humanas.
A rigidez do seu caráter, a profunda solidariedade que o liga aos amigos e a fé que ainda consegue ter nos destinos do país
são aspectos da sua personalidade que transparecem para todos que partilham do seu convívio.
Se é verdade que a minha infância o quis mais por perto e que a minha adolescência lhe cobrou alguns arroubos, também é verdadeiro o profundo encantamento que sua alma sempre exerceu sobre o meu coração. O tempo tem a sua medida e foi justamente ela que foi, aos poucos, me revelando novas dimensões da sua figura humana.
Fecho os olhos e vejo, no aniversário de sua irmã, cantando Elvira Escuta. No instante seguinte, é Natal e sua voz grave ecoa pela sala através dos versos de Noite Feliz. Vou à janela, respiro fundo e penso que apesar de serem poucos os meus anos e muitas as coisas já desacreditadas, algum encanto, que ainda não me foi revelado, deve existir num mundo capaz de produzir homens como este.
A sua bênção, meu avô.