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UNIDADE 9 – PLATÃO E A CONSTRUÇÃO DA CIDADE IDEAL. *João Vicente Hadich Ferreira 1 A cidade de São Paulo é uma das maiores metrópoles do mundo. Podemos imaginar aí várias realidades: os que têm muito dinheiro partem para os céus para livrar-se do caos do trânsito e dos problemas da violência; os que não tem estão sujeitos a estes problemas dependendo dos serviços públicos exclusivamente, quase sempre deficitários. Agrava-se a isto que geralmente há a questão da corrupção na política, que desvia os recursos a serem investidos na cidade. Diante disto, ocorre-nos perguntar: como seria uma boa cidade para se viver? Nela seria possível justiça para todos? Haveria diferenças sociais? Qual a forma de governo ideal para esta cidade? Seria a democracia a melhor forma de governo para esta cidade? Que outras formas de governo existem e quais as vantagens e desvantagens delas? A construção da “cidade ideal”. Pensar numa cidade ideal, onde a justiça acontecesse, onde as pessoas fossem felizes e não houvesse corrupção, pobreza, guerras ou violências de qualquer tipo é uma utopia 2 , mas não necessariamente um devaneio. Dentro da tradição do pensamento filosófico político, os gregos começaram estas reflexões, tendo em Platão e Aristóteles seus principais expoentes. Para o pensamento da época, a cidade – chamada de pólis – era o que hoje concebemos como Estado, ou seja, uma sociedade composta de membros que são denominados cidadãos e que possuíam direitos e deveres, que podiam exercer diversas funções dentro desta organização. Estas funções iam desde um mandato político (função de governo), proteção deste Estado (polícia ou exército) ou a vivência comum do cidadão que construía a sociedade com o seu trabalho e participação política. Dentro disto, retornam as perguntas que envolvem a construção do pensamento político: é possível um bom governo? É possível um governo ideal, justo e perfeito? Isto seria garantia de uma “boa cidade”? Finalmente, o que é justiça? O que é justo para mim, é o que você considera justo? Para responder a estas e outras perguntas que surgirão, vamos começar por uma revisão do pensamento político a partir dos gregos e dos seus ideais de vida em sociedade. O pensamento grego e sua influência. Um dos pontos que devem ser compreendidos ao falar do pensamento político grego é que, neste contexto, política e ética são afins. São áreas intrinsecamente ligadas onde, ao tratarmos de uma, inevitavelmente esbarraremos na outra em algum ponto. Nascidas com os gregos, as duas disciplinas constituirão parte fundamental do nosso pensamento ocidental. Neste sentido são importantes os pensamentos de Platão e Aristóteles, representação do pensamento grego clássico e referências para as teorias políticas que se constituiriam durante os séculos vindouros da Idade Média. Indo além, hoje ainda são fundamentais para a reflexão política. Críticos do regime democrático, Platão e Aristóteles foram responsáveis por teorias que refletiram sobre as formas de governo e basicamente o valor destas, ou seja, se eram boas ou más. Para estabelecer quais seriam as melhores formas de governo, tanto Platão quanto Aristóteles recorreram ao conceito de justiça e virtude considerada por ambos como coroamento da vida social e da “boa cidade”. Platão propôs um Estado perfeito, onde as pessoas cumpririam suas funções e manteriam a harmonia da sociedade. Dividida em classes, a cidade platônica seria feliz porque as pessoas estariam felizes com a sua realidade, e justa porque constituída de indivíduos justos. O projeto político platônico estava embasado, nesta perspectiva, numa proposta educacional. Para Aristóteles, por sua vez, a cidade seria o lugar da realização plena do homem. Definindo o homem como alguém que busca a felicidade, Aristóteles compreendia que isto só era possível na Cidade, pois nela é que haveria condição de uma plena realização das suas essências. Estas essências para Aristóteles seriam a racionalidade, que envolve a vida ética, e a política, que 1 Professor de Filosofia, formado pela Universidade Estadual de Londrina – U.E.L., com pós-graduação em Filosofia Moderna e Contemporânea: aspectos Éticos e Políticos pela mesma Universidade. 2 Do grego ou + topos: não lugar, lugar nenhum, algo que não existe. 1

Apostila 2 filosofia cpia

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UNIDADE 9 – PLATÃO E A CONSTRUÇÃO DA CIDADE IDEAL.

*João Vicente Hadich Ferreira1

A cidade de São Paulo é uma das maiores metrópoles do mundo. Podemos imaginar aí várias realidades: os que têm muito dinheiro partem para os céus para livrar-se do caos do trânsito e dos problemas da violência; os que não tem estão sujeitos a estes problemas dependendo dos serviços públicos exclusivamente, quase sempre deficitários. Agrava-se a isto que geralmente há a questão da corrupção na política, que desvia os recursos a serem investidos na cidade. Diante disto, ocorre-nos perguntar: como seria uma boa cidade para se viver? Nela seria possível justiça para todos? Haveria diferenças sociais? Qual a forma de governo ideal para esta cidade? Seria a democracia a melhor forma de governo para esta cidade? Que outras formas de governo existem e quais as vantagens e desvantagens delas?

A construção da “cidade ideal”.

Pensar numa cidade ideal, onde a justiça acontecesse, onde as pessoas fossem felizes e não houvesse corrupção, pobreza, guerras ou violências de qualquer tipo é uma utopia 2, mas não necessariamente um devaneio. Dentro da tradição do pensamento filosófico político, os gregos começaram estas reflexões, tendo em Platão e Aristóteles seus principais expoentes. Para o pensamento da época, a cidade – chamada de pólis – era o que hoje concebemos como Estado, ou seja, uma sociedade composta de membros que são denominados cidadãos e que possuíam direitos e deveres, que podiam exercer diversas funções dentro desta organização. Estas funções iam desde um mandato político (função de governo), proteção deste Estado (polícia ou exército) ou a vivência comum do cidadão que construía a sociedade com o seu trabalho e participação política. Dentro disto, retornam as perguntas que envolvem a construção do pensamento político: é possível um bom governo? É possível um governo ideal, justo e perfeito? Isto seria garantia de uma “boa cidade”? Finalmente, o que é justiça? O que é justo para mim, é o que você considera justo? Para responder a estas e outras perguntas que surgirão, vamos começar por uma revisão do pensamento político a partir dos gregos e dos seus ideais de vida em sociedade.

O pensamento grego e sua influência.

Um dos pontos que devem ser compreendidos ao falar do pensamento político grego é que, neste contexto, política e ética são afins. São áreas intrinsecamente ligadas onde, ao tratarmos de uma, inevitavelmente esbarraremos na outra em algum ponto. Nascidas com os gregos, as duas disciplinas constituirão parte fundamental do nosso pensamento ocidental. Neste sentido são importantes os pensamentos de Platão e Aristóteles, representação do pensamento grego clássico e referências para as teorias políticas que se constituiriam durante os séculos vindouros da Idade Média. Indo além, hoje ainda são fundamentais para a reflexão política.

Críticos do regime democrático, Platão e Aristóteles foram responsáveis por teorias que refletiram sobre as formas de governo e basicamente o valor destas, ou seja, se eram boas ou más. Para estabelecer quais seriam as melhores formas de governo, tanto Platão quanto Aristóteles recorreram ao conceito de justiça e virtude considerada por ambos como coroamento da vida social e da “boa cidade”.

Platão propôs um Estado perfeito, onde as pessoas cumpririam suas funções e manteriam a harmonia da sociedade. Dividida em classes, a cidade platônica seria feliz porque as pessoas estariam felizes com a sua realidade, e justa porque constituída de indivíduos justos. O projeto político platônico estava embasado, nesta perspectiva, numa proposta educacional.

Para Aristóteles, por sua vez, a cidade seria o lugar da realização plena do homem. Definindo o homem como alguém que busca a felicidade, Aristóteles compreendia que isto só era possível na Cidade, pois nela é que haveria condição de uma plena realização das suas essências. Estas essências para Aristóteles seriam a racionalidade, que envolve a vida ética, e a política, que

1 Professor de Filosofia, formado pela Universidade Estadual de Londrina – U.E.L., com pós-graduação em Filosofia Moderna e Contemporânea: aspectos Éticos e Políticos pela mesma Universidade.2 Do grego ou + topos: não lugar, lugar nenhum, algo que não existe.

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envolve a vivência social. Para que isto ocorresse eram necessários alguns pressupostos: a necessidade da justiça, que para Aristóteles estaria ligada à perspectiva da amizade, e a construção de um ethos, ou seja, uma formação ética que levaria o futuro cidadão a uma correta deliberação (escolha) sobre o que é o melhor.

Fundamentando-se no pensamento político grego de inter-relação entre ética e política e na solidificação da moral cristã e da busca das virtudes, o pensamento medieval caminharia posteriormente na mesma perspectiva. Neste pensar o governante, ou o rei, seria definido como alguém que deveria ser virtuoso, moral, repleto de condições para exercer um bom governo por suas qualidades e não necessariamente pelas circunstâncias em que se encontrava. Vejamos a teoria platônica.

Estado e Justiça em Platão.

O problema político em Platão foi fundamental na sua teoria filosófica. A democracia, ideal ateniense, constituiu-se numa decepção para Platão. Constatando a corrupção existente entre os governantes, não só de Atenas, mas também de outras cidades, Platão desconfiou da democracia como regime capaz de produzir a justiça. A frustração com a participação de seus parentes na política, que acabaram apoiando a tirania, e o desfecho do julgamento de Sócrates, seu mestre, que foi condenado injustamente pelo regime democrático, afastaram de Platão as esperanças desta realização. Além disso, a corrupção não era só política, mas também dos costumes e dos valores, que implicavam na falta das virtudes, inalcançáveis apenas pela igualdade de direitos e deveres. O caminho para a constituição do Estado perfeito não passaria, portanto, pela democracia.

Platão entenderia que, uma política correta e justa, só seria possível quando os governantes fossem amantes da sabedoria ou, em outras palavras, filósofos. Para Platão, ou os reis aprendiam a filosofar ou os filósofos tornavam-se reis. (PLATÃO, 2004, 473a, p. 170) Por isso Platão propôs o governo do sábio, uma sofocracia, que poderia apresentar-se como monarquia (governo de um só) ou aristocracia (governo de poucos, considerados os melhores). Platão propôs uma nova forma de política e um novo Estado, verdadeiro e oposto ao modo vigente na Grécia. A retórica é o instrumento mais poderoso do velho sistema. Já, na nova proposta, a filosofia deveria ser tal instrumento essencial. É pela filosofia que se poderia alcançar os verdadeiros valores, a justiça e o bem, essenciais para a construção do verdadeiro Estado. Uma política autêntica seria fundamentada, para Platão, na filosofia.

No seu célebre “mito da caverna” (livro VII da República), Platão apresenta o filósofo como aquele que sai da caverna, do mundo das “sombras da ignorância” e contempla a verdade, que é o conhecimento, a ciência, o entendimento. Ao retornar para a caverna, o filósofo vai para esclarecer os seus companheiros, apresentar nova perspectiva de vida e a contemplação da Verdade.

Platão busca uma integração entre a contemplação do Verdadeiro e do Bem e a sua aplicação real, tornando-os politicamente efetivos e, conseqüentemente, fazendo o mundo melhor. O pensamento platônico fundamentou-se na concepção grega de indivíduo e cidadão como indissociáveis, sendo o Estado, ou seja, a pólis, o horizonte absoluto de sua vida. Escreve Platão que “o homem justo, no que respeita à noção de justiça, nada diferirá da cidade justa, mas será semelhante a ela”. (PLATÃO, 2004, 435a, p. 130)

Em sua obra, ele definiu a verdadeira política como o cuidado da alma, defendendo a existência desta e concebendo o homem como alma e, o bem do mesmo, como sendo um bem espiritual. Desta forma, contrapôs-se à política vigente na época, que visava o corpo e o prazer deste, esquecendo-se da dimensão da alma. Platão, por sinal, apresentou uma perspectiva negativa em relação ao corpo, considerando-o como a prisão da alma. Havia, portanto, uma perspectiva moral.

Para pensar.

Responda por escrito as seguintes questões:

1. Pense na cidade em que você mora. É uma boa cidade? Por quê?

2. Ética e política são interligadas? É possível falar em ética sem falar em política?

3. Que idéia você faz de um bom governante?

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O Estado ideal.

Platão busca construir o Estado ideal, tendo como base o pensamento socrático de que o homem é a sua alma e, considerando o pensamento grego de absolutização do Estado, ele definirá este como a ampliação da alma. A alma dá o sentido autêntico do verdadeiro Estado e da verdadeira política. Ambos estão relacionados à alma, constituindo assim a verdadeira cidade, que está dentro do homem.

Para a construção do Estado ideal, Platão aborda o problema da justiça. A justiça será o princípio que fundará e sustentará o Estado em todas as suas circunstâncias, conforme observa Platão: “o princípio que de entrada estabelecemos que devia observar-se em todas as circunstâncias, quando fundamos a cidade, esse princípio é, segundo me parece, ou ele ou uma das suas formas, a justiça.” (PLATÃO, 2004, 433a, p. 128-129) Os sofistas3 a criticavam, considerando-a apenas exterior ao homem, convencional e legal. Ao abordar tal questão, Platão busca a sua essência, seu valor, ou seja, o que é justiça e sua validade interior.

Desenvolvendo este raciocínio, Platão dividirá o Estado ideal em três classes: os reis-filósofos, os guardiães e os comerciantes, camponeses e artesãos. Posteriormente, cada classe terá sua correlação com as faculdades da alma, que também serão três: racional, irascível e apetitiva.

Cada classe teria uma função própria e desenvolveria uma virtude na cidade: a sabedoria, a coragem ou fortaleza e a temperança. Estas, por sua vez, culminariam na justiça, maior de todas as virtudes para Platão. A virtude da sabedoria na cidade estaria refletida na classe dos governantes, os reis-filósofos. Conhecedores da ciência política seriam os responsáveis por um governo justo. O Estado seria sábio pela classe dos seus governantes. A segunda classe, por sua vez, seria representada pelos guardiões guerreiros, defensores da cidade, que desenvolveriam a virtude da coragem. Isto implicaria numa cidade forte, corajosa. O Estado, portanto, é forte devido à classe dos seus guerreiros. Estas duas primeiras classes não poderiam ter posse de bens e riquezas, porém receberiam compensações pelas suas atividades. Por fim, a terceira classe corresponderia aos camponeses, artesãos e comerciantes, que representariam a classe trabalhadora responsável pela movimentação da economia da cidade. Estes seriam os únicos que poderiam possuir riquezas, mas de forma equilibrada, pois se fossem poucas, desejariam ter mais, buscando novidades e incorrendo em injustiças e, se fossem muitas, poderiam cair na luxúria, no ócio e também em relações injustas entre os cidadãos. Estariam em plena harmonia com os superiores demonstrando que os mais fracos estariam de acordo com os mais fortes e, assim, constituiriam o Estado temperante. Define-se por fim a justiça.

Para Platão, portanto, cada classe estaria dentro daquilo que sua natureza permite, daquilo que é chamada por lei a fazer: “e deste modo concordará que a posse do que pertence a cada um e a execução do que lhe compete constituem a justiça.” (PLATÃO, 2004, 433a, p. 129) O princípio de justiça evocaria para Platão uma harmonia das funções sociais:

Ora, nós estabelecemos, segundo suponho, e repetimo-lo muitas vezes, se bem te lembras, que cada um deve ocupar-se de uma função na cidade, aquela para a qual a sua natureza é a mais adequada. /.../ Além disso, que executar a tarefa própria, e não se meter nas dos outros, era justiça. /.../ Logo, meu amigo, esse princípio pode muito bem ser, de certo modo, a justiça: o desempenhar cada um sua tarefa. (PLATÃO, 2004, 433a, p. 128)

O Estado de certa forma é uma ampliação das faculdades da alma e, estas, por sua vez, apresentam uma correlação com o Estado justo. Mas, o que é uma alma justa?

Para Platão, a alma estaria dividida em três faculdades: racional, irascível e apetitiva. Estas faculdades desenvolveriam determinadas virtudes, correspondentes a cada uma de suas funções. A faculdade racional desenvolveria a virtude da sabedoria e, por isso, teria o governo da alma, auxiliada pela irascível, que desenvolveria a virtude da coragem e teria como função a proteção da alma. Por sua vez, a apetitiva deveria desenvolver a temperança para que, num processo de harmonia a alma desenvolvesse a principal virtude, a justiça. Podemos entender que o conceito de justiça platônico “situa-se por cima de todas as normas humanas e remonta até sua origem na própria alma. É na mais íntima natureza desta que deve ter o seu fundamento aquilo que o filósofo denomina justo” (JAEGER, , p. 705) A alma justa para Platão, portanto, seria aquela em que a razão governa, tendo como auxiliar a faculdade irascível e submetendo os apetites ao seu controle.

O esquema a seguir representa esta correlação alma-Estado em Platão:

3 Derivado do grego sophia – sabedoria – a palavra sofistas remete a idéia de sábios. Eram uma espécie de professores itinerantes da época, considerados sábios e que tiveram grande influência na construção do ideal democrático. Ensinavam a retórica e foram um dos principais alvos das críticas de Sócrates e Platão.

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Note-se que, no ápice do triângulo, estão a razão e os reis-filósofos, correspondendo à virtude da sabedoria. À esquerda, respectivamente, a faculdade irascível e os guardiães, correspondendo à virtude da coragem e, por fim, à direita, os apetites e a classe trabalhadora, que correspondem à virtude da temperança.

Mas, todos os homens agiriam assim? Seria possível todos seguirem o governo da razão? Para responder a isto precisamos entender o projeto educacional platônico.

Retomando conceitos.

Em grupo, leia o fragmento abaixo e discuta as questões propostas:

"Na verdade, a justiça era qualquer coisa neste gênero, ao que parece, exceto que não diz respeito à atividade externa do homem mas à interna, aquilo que é verdadeiramente ele e o que lhe pertence, sem consentir que qualquer das partes da alma se dedique a tarefas alheias nem que interfiram umas nas outras, mas depois de ter posto a sua casa em ordem no verdadeiro sentido, de ter autodomínio, de se organizar, de se tornar amigo de si mesmo, de ter reunido harmoniosamente três elementos diferentes, exatamente como se fossem três termos numa proporção musical, o mais baixo, o mais alto e o intermédio, e outros quaisquer que acaso existam de permeio, e de os ligar a todos, tornando-os, de muitos que eram, numa perfeita unidade, temperante e harmoniosa, só então se ocupe (se é que se ocupa) ou da aquisição de riquezas, ou dos cuidados com o corpo, ou de política ou de contratos particulares, entendendo em todos estes casos e chamando justa e bela à ação que mantenha e aperfeiçoe estes hábitos, e apelidando de sabedoria a ciência que preside a esta ação; ao passo que denominará de injusta a ação que os dissolve a cada passo, e ignorância a opinião que a ela preside. /.../ Portanto, inversamente, produzir a justiça consiste em dispor, de acordo com a natureza, os elementos da alma, para dominarem ou serem dominados uns pelos outros; a injustiça, em governar ou ser governado um por outro, contra a natureza.” (PLATÃO, 2004, 443a e 444a, p. 140-141)

1. Qual a compreensão de justiça pelo texto de Platão?

2. Este conceito de justiça é o que impera hoje na nossa sociedade? Por quê?

3. Você conhece alguma outra concepção de justiça? Explique.

O projeto educacional platônico.

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FACULDADES DA ALMA

IRASCÍVEL

RACIONAL

APETITIVA

CLASSES DO ESTADO

GUARDAS

REIS-FILÓSOFO

TRABALHA-DORES

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Como pudemos observar, para constituir seu Estado ideal, Platão apresentou três virtudes – sabedoria, coragem e temperança - que culminariam numa quarta, a justiça. Portanto, condicionando o Estado ideal a um Estado virtuoso, ampliação das virtudes da alma, define-se este Estado como o que vive de acordo com a sua natureza verdadeira. Platão vislumbra uma teoria política intimamente associada à alma na sua faculdade mais nobre, a razão. Com certeza, nem todos poderiam atingir esse entendimento, mas só os filósofos. Porém, caberia a estes, detentores de tal conhecimento, dirigir a cidade conforme a justiça. Desta forma haveria o Estado ideal, justo e feliz, cuidando do bem maior, relacionado ao Bem da alma e não preso aos desejos do corpo, ou seja, em busca de atender as necessidades materiais simplesmente. O filósofo portanto, é o homem político por natureza e, dentro da concepção de justiça platônica, as diferenças entre as classes não implicariam em infelicidade pois, cada classe vivendo de acordo com sua natureza, cumpriria seu papel para o bem maior que é o Estado. As pessoas são diferentes e por isso teriam funções e lugares diferentes na sociedade platônica. De que forma isto se dá?

A partir da educação, que estaria a cargo do Estado e não da família, Platão desenvolve todo o projeto de constituição das classes e identificação das naturezas de cada um. Desde cedo enviados à escola, os futuros cidadãos seriam educados da mesma maneira, até determinada idade, quando seriam submetidos a algumas provas. Nestas provas se identificaria a sua natureza, a sua função. Classificando as almas numa comparação com o ouro, a prata e o bronze, Platão estabelece a natureza destas almas de acordo com a condição de superação das provas estabelecidas. Educadas por vários anos, estas almas seriam submetidas à provas durante o tempo de estudo, o que denotaria sua natureza. As “almas de bronze”, por exemplo, apresentariam uma sensibilidade grosseira, voltada para os apetites e, desta forma, constituiriam a terceira classe da cidade, a dos comerciantes, camponeses e artesãos. Não superariam a primeira prova, em torno dos vinte anos. As “almas de prata”, que desenvolveriam a virtude da coragem, seriam identificadas por mais uma prova, em torno dos trinta anos e, assim identificadas, constituiriam a classe dos guardiães guerreiros. Por fim, as “almas de ouro”, que permaneceram até o término do processo educativo (em torno dos cinqüenta anos, mais ou menos), estariam aptas ao governo da cidade, pois amantes da sabedoria desenvolveriam a ciência política. Este processo educativo tem uma finalidade na teoria platônica: a verdadeira questão a ser resolvida é a da paidéia, ou seja, a formação do homem grego. Aqui Platão vislumbra a solução de todos os problemas insolúveis. (JAEGER, ..., p. 751). É uma reflexão sobre a própria sociedade do seu tempo. Por isto a crítica à democracia.

Quando Platão está criticando a democracia, o faz na percepção de que a igualdade de direitos apregoada pelo pensamento democrático, onde todos podem chegar a posições de mando está equivocada. Há uma diversidade de interesses, o que implica que a elaboração das leis dependeria dos interesses de quem está no poder geralmente. Nesta perspectiva, “o direito torna-se /.../ uma simples função do poder, que não corresponde de per si a nenhum princípio moral.” (JAEGER,..., p. 706) Mesmo que os governos apregoem o princípio do interesse coletivo prevalecendo sobre o particular, ou interesse próprio, “o certo é que todos os que exercem o poder interpretam a seu modo este princípio.” (JAEGER, ..., p. 706) Esta perspectiva é condenada por Platão e corresponde exatamente à definição de justiça dada por Trasímaco no Livro I da República: “... há um só modelo de justiça em todos os Estados, o que convém aos poderes constituídos. Ora, estes é que detêm a força. De onde resulta, para quem pensar corretamente, que a justiça é a mesma em toda parte: a conveniência do mais forte.” (PLATÃO, 2004, 338a, p. 25). Como esclarece JAEGER (...... ) “se a justiça for considerada equivalente à vantagem do mais forte, então toda a luta dos homens por um ideal superior de direito se converterá numa ilusão, e a ordem do Estado que o pretenda realizar num mero biombo, por trás do qual se continuará a desenrolar a implacável guerra de interesses.” (JAEGER, , p. 706).

No entendimento platônico não há justiça nesta visão e o que deve haver não é uma igualdade de direitos políticos, mas de educação, de condições sociais justas, o que não significa necessariamente que todos estariam aptos ao governo. No entendimento platônico, somente os que estudassem e

PAIDÉIA

Cultura: no significado referente à formação da

pessoa humana individual, essa palavra corresponde

ainda hoje ao que os gregos chamavam paidéia e que os latinos, na época de Cícero e

Varrão, indicavam com a palavra humanitas: educação do homem como tal, ou seja,

educação devida às “boas artes” peculiares do homem, que o distinguem de todos os outros animais. /.../ As boas

artes eram a poesia, a eloqüência, a filosofia, etc., às

quais se atribuía valor essencial para aquilo que o

homem é e deve ser, portanto para a capacidade de formar

o homem verdadeiro, o homem na sua forma genuína

e perfeita.

ABBAGNANO, 2000, p. 225.

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passassem pelas provas devidas é que estariam aptos para o governo da cidade, ou seja, os melhores. Fica evidente em Platão “que os governantes do Estado só podem sair da camada dos representantes das supremas virtudes guerreiras e pacíficas.” (JAEGER....., p. 749). Isto contudo não implica em privilégios materiais para uma classe dominante, mas ao contrário uma vivência de valores, de ideais coerentes com a boa educação e a constituição da boa Cidade. Não implica também numa construção do Estado como algo autoritário e indiferente ao cidadão, mas como um organismo vivo, que depende da vida e da função de cada parte que lhe compõe. Vejamos o esclarecimento de JAEGER:

A missão do verdadeiro Estado não é tornar o mais feliz possível a classe dominante da população, uma vez que tal Estado deve velar pela felicidade de todos, e isto depende de que cada indivíduo cumpra o melhor possível a sua função específica e somente ela. Segundo Platão, com efeito, é no seu contributo como membro do todo social, à semelhança dum organismo vivo, que a vida de cada indivíduo tem o seu conteúdo, o seu direito e os seus limites. O bem supremo que se deve buscar é a unidade do todo. Mas isto não quer dizer, nem por sombras, que, uma vez restringidos assim os direitos do indivíduo, passe o todo a ocupar o seu lugar e o Estado deva, por seu turno, tornar-se o mais rico e poderoso possível. Os fins a que este Estado aspira não são o poder, a prosperidade econômica ou a acumulação ilimitada de riqueza; a sua ambição de riqueza e poder termina ali onde estes bens materiais deixam de servir a exigência da unidade social interna. (JAEGER, ......., p. 753).

Buscando o Estado ideal, Platão entende que há uma ordem social que se faz necessária e isto é exigência da própria natureza do homem como ser social e moral. Por isso, na idéia de perfeição está comportada a idéia de ordem estabelecida e não de progresso ou evolução. As coisas já estão dadas. Compete-nos vivê-las adequadamente, o que implicaria na justiça. Para tanto é necessária uma educação adequada.

Retomando conceitos.

Responda por escrito as seguintes questões:

1. Você concorda com Platão na sua avaliação sobre a democracia? Por quê?

2. E na questão da educação, você acredita que “melhoraríamos” a sociedade assim? Explique.

Protágoras e a questão da democracia: um olhar histórico.

De todos os personagens que aparecem nos diálogos platônicos, um em especial apresentou uma defesa da democracia: Protágoras de Abdera. Provavelmente admirado por Platão, Protágoras era um sofista e teorizou sobre a democracia numa discussão com Sócrates, argumentado do “por que” da opinião de qualquer membro da cidade apresentar seu valor político, independente de sua “qualificação” para tal. Pelo que nos apresenta NAQUET (2002), Protágoras talvez seja o único pensador grego que defendeu a democracia. Escreve NAQUET (2002):

“Para dizer a verdade, se excetuarmos Demócrito, que pensa não apenas a democracia, mas toda a história da aventura humana como libertação progressiva da miséria dos primeiros tempos, e Protágoras, sobre o qual retornarei, se excluirmos essas poucas exceções que só nos são conhecidas de maneira fragmentária, procuraríamos em vão um filósofo que tenha refletido sobre a democracia. (NAQUET, 2002, p. 180-181).

Protágoras, na sua justificação transpõe os limites da democracia ateniense, incluindo neste direito não apenas os cidadãos, mas todo e qualquer homem da cidade e, inclusive, as mulheres. Para fundamentar a democracia, Protágoras recorre a um mito, que aparece no diálogo que tem o seu nome. Para ele, todos nós seríamos dotados de uma “arte política”, o que nos permitiria discutir o tema em questão. Para Protágoras não há uma distinção funcional das profissões, fortunas ou castas que implique na participação política ou na exclusão desta. O que Protágoras tenta responder é a questão dos artesãos e a relação destes com a política. Justifica o sofista que “se a cidade tem necessidade de construir, procura um arquiteto e assim por diante.” (NAQUET, 2002, p. 181). O mesmo não acontece quando “se trata de deliberar sobre a administração da cidade (epeidán dé perí tôn tês póleos dioikéseon déei bouléusasthai)”. (NAQUET, 2002, p. 181). O que acontece, explica

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Protágoras, é que “vemos aparecer indiferentemente, para tomar a palavra, arquitetos, ferreiros, curtidores, negociantes e marinheiros, ricos e pobres, nobres e gente comum, e ninguém lhes lança na cara sua incompetência.” (NAQUET, 2002, p. 181). Por que isto ocorre? Para explicar tal fato é que ele, bem no estilo platônico, apresenta um mito sobre a dádiva de Zeus aos homens para que vivessem a política. Vejamos o mito, nas palavras de NAQUET (2002):

Todos os homens receberam de Zeus, via Hermes, uma tékhne [arte] que os animais não possuem, que os próprios homens não possuíam antes da invenção da cidade e que tornou esta invenção possível. Todos os homens receberam uma parcela de tékhne politiké, que lhes permite debater com os demais sobre qualquer questão política. Digo e repito: todos os homens. Protágoras não coloca, nesse texto, nem a questão das mulheres nem a dos escravos, mas responde explicitamente à dos artesãos. Só os ‘selvagens’, representados em cena pelo poeta cômico Ferécrates, em 421, não conhecem a política, e não são homens, mas sim ‘misantropos’, inimigos do gênero humano.” (NAQUET, 2002, p. 181-182).

O argumento de Protágoras é derrubado por Sócrates. Isto porém, como esclarece NAQUET (2002) “não diminui em nada sua importância filosófica fundamental: a democracia é possível porque a política é possível, e a política é, por definição, assunto de todos.” (NAQUET, 2002, p. 182). No pensamento platônico contudo, a impossibilidade da democracia como um bom governo é questionada, como já foi tratado, e justificada pela condição da preparação do governante e de sua dedicação ao governo. Ela deve ser exclusiva, implica no conhecimento da ciência política e não no “querer ser político” apenas. Antes de continuarmos, vamos refletir um pouco sobre a questão de Protágoras.

Retomando conceitos.

1. Por que a proposta de Protágoras é diferente da de Platão? Explique.

2. De acordo com o que já estudamos, por que não há outras teorizações sobre a democracia, além da apresentada por Protágoras?

Platão e a política: o viés sociológico.

Retomando a questão de Protágoras, para Platão, os artesãos que comporiam a terceira classe da cidade, não são cidadãos. Isto se dá em função da questão do trabalho que, “na Grécia antiga foi freqüentemente abordado sob dois pontos de vista, aliás, solidários: a depreciação do trabalho e as limitações do pensamento técnico.” (VERNANT & NAQUET, 1989, p. 9). A justificativa platônica está no sentido de que não se pode exercer dois ofícios ao mesmo tempo e, ser cidadão é um ofício que exclui qualquer outro. Isto se aplica tanto ao artesão quanto ao cidadão. Como nos esclarecem VERNANT & NAQUET (1989),

Também a lei de Platão é dupla, referindo-se ao mesmo tempo aos artesãos e aos cidadãos. Os cidadãos não podem ser de forma alguma artesãos. Os que infringissem a lei atrairiam o ultraje público (oneidos) ou a indignidade cívica (atimia), ou seja, as sanções morais mais pesadas de que a cidade dispunha. Quanto aos artesãos, não podem exercer dois ofícios ao mesmo tempo, nem direta, nem indiretamente, sob pena de multa ou de expulsão. Em outras palavras, um ferreiro não pode ser ao mesmo tempo carpinteiro, mas também não pode ser empresário de carpintaria, fazer com que os carpinteiros trabalhem em seu benefício.” (VERNANT & NAQUET, 1989, p. 150).

A tese política platônica evoca a questão da dedicação à vida política. Neste sentido, podemos entender, como afirma MAX WEBER (1967), que “ou se vive ‘para’ a política ou se vive ‘da’ política.” (p. 64). Platão condena o “viver da política” como perspectiva econômica. No seu entendimento, o filósofo-rei viverá “para” a política. Apoiando-se na condição da virtude do governante, perspectiva presente para o pensamento grego clássico, Platão acredita que isto fundamenta o poder e permite realizar a justiça.

A leitura de WEBER, logicamente contemporânea e compreendida a partir de toda uma experiência histórica decorrida desde o tempo de Platão, entende que:

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...quem vive “para” a política a transforma, no sentido mais profundo do têrmo, em “fim de sua vida”, seja porque encontra forma de gozo na simples posse do poder, seja porque o exercício dessa atividade lhe permite achar equilíbrio interno e exprimir valor pessoal, colocando-se a serviço de uma “causa” que dá significação a sua vida. (WEBER, 1967, p. 64-65).

Logicamente WEBER analisa a questão a partir já da existência do capitalismo e da questão econômica. Como esclarece, “nossa distinção assenta-se, portanto, num aspecto extremamente importante da condição do homem político, ou seja, o aspecto econômico.” (WEBER, 1967, p. 65). Para o sociólogo, é importante a independência econômica do homem político, ou seja, “lhe é indispensável possuir fortuna pessoal ou ter, no âmbito da vida privada, situação suscetível de lhe assegurar ganhos suficientes.” (WEBER, 1967, p. 65). Guardadas as devidas proporções e estabelecendo um paralelo com a perspectiva weberiana, Platão entende que o governante da Cidade não deve ter preocupações econômicas, nem tão pouco posses para não prejudicar o exercício do poder e permitir sua corrupção.

O pensamento weberiano vai aprofundar-se nesta discussão dos dois tipos de políticos, estabelecendo reflexões para a política contemporânea na sua obra intitulada Ciência e Política: duas vocações. O que nos interessa contudo, entendido o contexto platônico é compreender que em Platão a implicação política envolve também uma “vocação” política do filósofo, de sua natureza devida que tem uma importante função social, no exercício de um governo justo.

Para pensar.

1. É possível algum político viver “para” a política e não “da” política no sentido apresentado? Explique por que sim ou não.

Algumas reflexões finais.

Mesmo que se possa considerar isto utópico para o pensamento contemporâneo, não se pode desconsiderar sua importância para entendermos como se construiu nosso pensamento político ocidental. NORBERTO BOBBIO (1986) esclarece que

“numa longa tradição que vai do Político de Platão ao Príncipe de Maquiavel, da Ciropédia de Xenofonte ao Princeps christianus de Erasmo (1515), os escritores políticos trataram o problema do Estado principalmente do ponto de vista dos governantes: seus temas essenciais são a arte de bem governar, as virtudes ou habilidades e capacidades que se exigem do bom governante, as várias formas de governo, a distinção entre bom e mau governo,... (BOBBIO, 1986, p. 63)

Esta temática envolve a questão da legitimação do poder. Recorrendo a Platão e Rousseau, BOBBIO (1986) explica que os dois iniciam duas de suas obras, a República e o Contrato Social, “com um debate sobre a relação entre justiça e força, no qual respectivamente Sócrates e Rousseau rejeitam a tese do ‘direito do mais forte.’” (BOBBIO, 1986, p. 88). Para Platão, relembrando sua tese, não é o mais forte que tem direito ao poder e que fará o bom governo. O bom governo está onde “a lei é senhora dos governantes e os governantes seus escravos” (PLATÃO, Leis, 715d, in: BOBBIO, 1986, p. 96). Platão coloca nesta perspectiva a salvação ou ruína das cidades. A autoridade do governante sobre as leis implicará na satisfação de seus próprios prazeres – como faz o tirano (livro IX da República) – e, por sua vez, a lei conduzindo o governante implicará na boa administração da cidade.

O que pode parecer apenas então uma condição de se ter boas leis para se ter a boa cidade, não é o suficiente. Por isso, para Platão, tal condição só seria possível com o governo de homens virtuosos, sábios, que promulgariam certamente boas leis porquanto não estariam pautados nas

Max Weber (18-- -19--).

Importante sociólogo alemão que estudou a

questão política e a sua relação com o poder .

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realizações de seus desejos e prazeres, mas na busca e constituição da justiça. Assim entendido, somente os homens que tenham um verdadeiro domínio da razão sobre as outras faculdades da alma alcançam a justiça. Portanto, governando pelo bem comum, os filósofos-reis seriam os únicos que alcançariam a episteme política, ou seja, a verdadeira ciência política, fundamentalmente necessária para o bem governar.

UNIDADE 10 – ARISTÓTELES E AS BOAS FORMAS DE GOVERNO.

"Toda cidade [pólis], portanto, existe naturalmente, da mesma forma que as primeiras comunidades; aquela é o estágio final destas, pois a natureza de uma coisa é seu estágio final. (...) Estas considerações deixam claro que a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social, e um homem que por natureza, e não mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade." (ARISTÓTELES. Política. 3. ed. Trad. de Mário da Gama Kuri. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1997. p. 15.)

Para pensar.

A imagem e o texto acima nos remete a um dos conceitos de Aristóteles sobre o homem como um ser político. Tendo a imagem e o texto do próprio Aristóteles, responda por escrito as seguintes questões:

1. O que Aristóteles quer dizer com a afirmação de que o homem é um “animal político”?

2. O político é alguém separado da sociedade, diferente dos outros ou todos nós somos políticos? Explique.

Aristóteles e a perspectiva da felicidade.

Aristóteles, ex-discípulo de Platão, produzirá uma teoria política que, em certo sentido será uma crítica à teoria platônica. Porém, na perspectiva das formas de regime de governo, fará coro com o pensamento platônico ao apresentar uma visão negativa da democracia. Logicamente é preciso entendermos os pressupostos do pensamento aristotélico e platônico para não partirmos para conclusões precipitadas e preconceituosas. Como vimos no pensamento platônico, há um fundamento para a crítica estabelecida e a perspectiva de uma revisão do pensamento democrático. Com Aristóteles não será diferente.

Nascido na Macedônia, filho de médico, Aristóteles estudará na Academia platônica por vinte anos. Após a morte do mestre, fundará sua própria escola, o Liceu e, com a colaboração de seus discípulos, promoverá o estudo e a classificação de mais de cento e cinqüenta constituições de cidades-estado do período.

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Para Aristóteles o homem é um animal político (zoon politikon) e um animal racional (zoon logon ekon), ou seja, alguém que vive em sociedades e que é dotado de fala, da capacidade de pensar. A condição do ser para Aristóteles, envolve a natureza, isto é, por natureza o homem quer a vida social e é racional. Isto implica numa perspectiva de essencialidade, ou seja, de que o homem possui estas essências, a política e a racional. E quando falamos em essência de algo, falamos em sentido para este algo, que implica em realização de algum propósito. O olhar aristotélico é teleológico (do grego telos = fins), ou seja, ligado à idéia de finalidades para as coisas. Não é diferente para o homem. Qual a finalidade do homem para Aristóteles? Numa palavra, a felicidade. Mas, como ser feliz? Onde está a felicidade? Não pode estar num bem concreto, em algo passageiro. Para Aristóteles, está na realização das essencialidades do homem, na vida ética, que evoca a racionalidade, e na vida política, que envolve a vida na cidade. É a eudaimonia4, ou a idéia de uma realização plena, da felicidade como algo permanente e não momentâneo.

Ética e política são inseparáveis para Aristóteles. O homem é um ser dotado de palavra e não apenas de fala. Os animais são dotados da fala (phoné) e com ela exprimem dor e prazer, mas o homem é dotado da palavra (logos), o que lhe dá capacidade de deliberação, escolha e julgamento. Escreve Aristóteles:

De modo muito claro entende-se a razão de ser o homem um animal sociável em grau mais alto do que as abelhas e os outros animais todos que vivem reunidos. A natureza, afirmamos, nenhuma coisa realiza em vão. Somente o homem, entre todos os animais, possui o dom da palavra; a voz indica dor e prazer, e por essa razão é que ela foi outorgada aos outros animais. Eles chegam a sentir sensações de dor e prazer, e fazerem-se entender entre si. A palavra, contudo, tem a finalidade de fazer entender o que é útil ou prejudicial, e, conseqüentemente, o que é justo e o injusto. O que, especificamente, diferencia o homem é que ele sabe distinguir o bem do mal, o justo do que não o é, e assim todos os sentimentos dessa ordem cuja comunicação forma exatamente a família do Estado. (ARISTÓTELES, 2004, par. 10, p. 14).

Esta condição do homem, de buscar entre o certo e o errado, o justo e o injusto é o que denota sua eticidade e a sabedoria prática (phronésis). A phronésis para Aristóteles implica na capacidade do indivíduo de encontrar uma norma justa ou uma regra verdadeira para determinadas situações. Isto estará de acordo com o que é bom ou mau. Aristóteles, como Platão, também propõe uma tri-partição da alma. Para ele temos na alma duas faculdades: a irracional, que nos faz semelhantes aos animais e a racional, que nos distingue destes. A faculdade irracional, por sua vez, está sub-dividida em outras duas, a nutritiva/vegetativa, que cuida do sustento do corpo e da alma e a desejante, que representa o motor da nossa ação. Diferentemente de Platão, Aristóteles não entende que se deva subjugar os desejos, mas que estes é que nos levam à necessidade de escolha. O desejo estaria num meio caminho entre a racionalidade e a irracionalidade, ou seja, ao desejarmos podemos decidir por uma atitude que demonstre nossa humanidade ou conduza-nos a uma demonstração de bestialidade. Por isto, para bem escolhermos, devemos ter uma formação ética (do grego êthos5), uma educação do caráter, que desenvolverá a phronésis. Para Aristóteles é necessário atingir uma mediania, ou encontrar uma justa-medida. Isto implica na virtude e permite ao homem a felicidade.

Retomando conceitos.

Responda por escrito as seguintes questões:

1. Explique o conceito de teleologia em Aristóteles.

2. O que significa eudaimonia em Aristóteles?

4 Eudaimonia: é a felicidade como perfeição ética, como resultado da vida virtuosa. Relaciona-se com eupraxia: a práxis ou ação boa, bela e justa; a ação virtuosa.5 Êthos: caráter, maneira de ser de uma pessoa, índole, temperamento, disposições naturais de uma pessoa segundo seu corpo e sua alma, os costumes de alguém (animal, homem, uma cidade) conforme à sua natureza. É tratado pela ética, que estuda as ações e paixões humanas segundo o caráter ou a índole natural dos seres humanos.

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A Cidade e o cidadão.

Diferentemente de Platão, Aristóteles não definirá uma única forma de governo para a cidade, mas estabelecerá várias que podem ser boas, aceitas como adequadas ao bem viver na cidade. Mas o que é a cidade para ele?

Aristóteles busca compreender a questão da cidade também a partir do cidadão, como Platão. Contudo, não apresentará a “cidade ideal”, baseada na melhor forma de governo, mas a cidade como o lugar da vivência dos cidadãos.Entende Aristóteles que “faz parte de cada comunidade um Agathon, um bem, uma tarefa ou função, por causa da qual ela existe.” (HÖFFE, 1987, p. 213). É isto que torna a pólis natural para o homem. O homem busca esse bem, que lhe proporcionará a eudaimonia, que só é possível pela vida política. O homem não deseja apenas viver, mas o bem viver. Como esclarece HÖFFE,

Como qualquer ser vivo, admite ele, também o homem quer viver (zen); na forma mais rebuscada da modernidade, seu fim-geral se denomina: autoconservação. É claro que ninguém quer levar uma vida em fadiga e necessidades; todos querem viver agradavelmente, levar até uma existência bem-sucedida e feliz (eu zen). (HÖFFE, 1987, p. 214)

Este bem é natural para o homem. E a idéia de “natural” aqui representada pode ser entendida em dois sentidos: na construção da comunidade familiar e da comunidade política. No primeiro entendimento, “no sentido do objetivo mínimo, é, segundo Aristóteles, o fato de o homem como tal conviver com seus semelhantes.” (HÖFFE, 1987, p. 214) É a forma da comunidade familiar e doméstica. No segundo ponto, que é o sentido de objeto ótimo, implica “o fato de o convívio assumir o nível de uma comunidade como a pólis.” (HÖFFE, 1987, p. 214) Com isto pode-se entender que “o homem é um ser social por natureza porque ele quer viver, mas um ser político porque quer viver bem.” (HÖFFE, 1987, p. 214). Para que isto aconteça, é fundamental uma formação do cidadão. Esta formação, que implica na educação do caráter, é a formação da virtude. Virtude para Aristóteles é uma disposição de caráter, ou seja, eu escolho, desejo ser virtuoso. Não nascemos virtuosos. E o exercício da virtude para Aristóteles implica no conceito de justiça.

O homem virtuoso é o que alcança a mediania, ou o justo-meio, ou meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por carência. Considerando que a virtude eu escolho e que ela não é natural, o que também é comum aos vícios, Aristóteles estabelece três espécies de disposições de caráter. Duas delas são vícios, “que envolvem excesso e carência respectivamente, e a terceira uma virtude, isto é, o meio-termo”. (ARISTÓTELES, 1987, livro II, cap. 8, 1108b10) É o próprio Aristóteles quem nos esclarece sobre esta mediania, na Ética a Nicômaco:

Por meio-termo no objeto entendo aquilo que é eqüidistante de ambos os extremos, e que é um só e o mesmo para todos os homens; e por meio-termo relativamente a nos, o que não é demasiado nem demasiadamente pouco – e este não é um só e o mesmo para todos. Por exemplo, se dez é demais e dois é pouco, seis é o meio-termo, considerado em função do objeto, porque excede e é excedido por uma quantidade igual; esse número é intermediário de acordo com uma proporção aritmética. Mas o meio-termo relativamente a nós não deve ser considerado assim: se dez libras é demais para uma determinada pessoa comer e duas libras é demasiadamente pouco, não se segue daí que o treinador prescreverá seis libras; porque isso também é, talvez, demasiado para a pessoa que deve comê-lo, ou demasiadamente pouco... (ARISTÓTELES, 1987, livro II, cap, 6, 1106a30)

Com esta perspectiva da mediania, pode-se concluir que a virtude não é igual em todos os cidadãos. Isto fundamenta o conceito de justiça aristotélico que, diferentemente de Platão não pauta-se na natureza, mas na distribuição adequada daquilo que é justo para cada um. A mediania da justiça em Aristóteles evoca não a igualdade, mas a medida ideal para cada um, o que não significa necessariamente a divisão em partes iguais. Por isto também podemos entender a resistência de Aristóteles à democracia. Esta pressupõe a igualdade entre os diferentes, o quê para Aristóteles é ilógico. Por isso uma boa forma de governo não seria a democracia. O que é preciso é a existência de cidadãos virtuosos para que se tenha uma “boa Cidade”. Para que isto aconteça é necessária a educação. O cidadão em Aristóteles não é o nascido na cidade necessariamente, mas aquele capaz de se adaptar à constituição da mesma, capaz de mandar e obedecer e que busca o interesse coletivo.

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Retomando conceitos.

1. O que é virtude para Aristóteles? Explique.

2. Que paralelos ou contra-posições podemos estabelecer entre Platão e Aristóteles na questão da Cidade e da Justiça? Comente.

Justiça e philia6.

De forma contrária à Platão, Aristóteles não atribui o papel da educação apenas ao Estado. A família também é responsável pela formação do futuro cidadão. Como dispomos daquela faculdade desejante, que desde cedo deve ser educada para a construção de bons valores, ou seja, para uma vida ética, não compete apenas ao Estado tal função. Contudo, é papel do Estado “preparar os cidadãos para o exercício da virtude. /.../ O fim da política não é pois a conquista ou o enriquecimento geral, mas sim a virtude colectiva.” (PRÉLOT, 1973, p. 136).

A cidade para Aristóteles não é apenas uma reunião de homens, ou uma simples delimitação territorial. Para ele “o que forma a cidade não é o fato de os homens residirem num mesmo lugar, não causarem prejuízos uns aos outros e manterem intercâmbio comercial.” (ARISTÓTELES, 2004, par. 13, p. 93-94) A cidade envolve outros pressupostos. Como ele afirma na Política, “a única associação que constitui uma cidade é a que promove a participação das famílias e de seus descendentes da ventura de uma existência independente, inteiramente ao abrigo da miséria.” (ARISTÓTELES, 2004, par. 13, p. 94) O conceito de cidade para Aristóteles envolve laços mais profundos, de amizade (philia), que implica na reunião dos que desejam as mesmas coisas, que querem o bem comum. É preciso habitar um mesmo local e casar-se, constituindo as comunidades que gerarão a cidade. Assim explica Aristóteles:

Essas instituições todas são obra de uma benevolência mútua. É a amizade que leva os homens à vida social. A finalidade do Estado é a felicidade na vida. Todas essas instituições visam à felicidade. A cidade é uma reunião de famílias e pequenos burgos que se associam para desfrutarem juntos uma existência inteiramente feliz e independente. Contudo, bem viver, de acordo com nosso modo de pensar, é viver venturoso e com virtude. É necessário, portanto, admitir em princípio que as ações honestas e virtuosas, e não apenas a vida comum, são a finalidade da sociedade política. (ARISTÓTELES, 2004, par. 14, p. 94)

Para amigos só desejamos o bem. Desejamos o melhor, o justo. Por isso justiça em Aristóteles está relacionada à philia e compreende a mediania, contrapondo-se ao conceito platônico. O que se apresenta não é apenas uma simples relação de amizade, mas de justiça nas relações sociais. A formação do indivíduo é fundamental pois, somente assim, estes serão preparados para a vida em comunidade. Há uma inter-relação entre justiça e amizade, fundando a unidade que deve existir na cidade.

O governo da cidade.Aristóteles inicia o capítulo VI do Terceiro Livro da Política com a seguinte indagação: “Qual

será, porém, o soberano do Estado? Questão difícil é esta de resolver.” (ARISTÓTELES, 2004, par. 1, p. 94) O pano de fundo da questão é resolver o problema do governo da cidade. Existe uma boa forma? Ou são várias? Qual é a mais justa? O melhor é termos um governante ou uma assembléia? Para responder a esta questão, e tendo avaliado diversas constituições de diversas cidades, Aristóteles utilizará dois critérios: um é o numérico, que trata do número de governantes que estariam no poder e, o outro, é o axiológico (do grego axios, valores e logia, teoria). No segundo critério ele determina quais são as boas formas de governo e quais seriam as corrompidas.

Para Aristóteles, o bom governo é aquele que preza pela justiça e visa o interesse geral. Ele deve desenvolver a phronésis. Aqui não importa necessariamente o regime, mas a virtude do governante que reflete-se na forma de governo.

6 Philia: idéia de amizade, de amor fraterno. Representa o amor entre amigos.

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Dentro dos critérios aristotélicos, quando houver um só governante, a melhor forma de governo seria a monarquia e, uma péssima forma seria a tirania, degeneração da primeira. O monarca governaria pelo bem da cidade, enquanto o tirano privilegiaria apenas seus interesses. Quando temos mais de uma pessoa no governo, um grupo assim entendido, a melhor forma seria a aristocracia, que traz a idéia dos melhores, mais virtuosos da cidade e, uma péssima forma, a oligarquia, que implicaria no governo dos ricos. Estes pensariam nos seus próprios interesses, desconsiderando os pobres. Por fim, quando constitui-se de uma assembléia maior, geral, o que temos é a república ou politéia como a melhor forma de governo e, no modo contrário a democracia, que traz a idéia de governo do povo mas que implicaria na busca dos interesses dos mais pobres, desfavorecendo os ricos. Para Aristóteles a polítéia representa a idéia de constituição e isto é o que está implícito nas boas formas de governo. Aqui teríamos a classe média, o que proporcionaria o equilíbrio da tensão entre ricos e pobres. Portanto, não há um regime ideal, mas bons regimes conforme a constituição das cidades.

Reelaborando conceitos.

1. Para uma melhor compreensão das teorias política de Aristóteles, retome os pontos estudados e, em dupla, elabore um quadro demonstrativo dos principais tópicos do pensamento político deste filósofo.

2. Realizada a primeira atividade, cada um produza um texto explicativo sobre a sua teoria.

Platão e Aristóteles e o organicismo social: uma reflexão histórico-sociológica.

Historicamente, Platão e Aristóteles produziram uma concepção orgânica do Estado, numa perspectiva de uma boa Cidade, justa, ordenada e com as suas partes em harmonia ou determinadas por natureza. Assim Platão indicava as classes da cidade com suas funções próprias e Aristóteles a natureza do homem como política, mas defendendo a escravidão, pois para ele, alguns nascem escravos. Aristóteles fornece a formulação indestrutível do organicismo ao apresentar “a idéia do Estado como ser natural e anímico, anterior ao indivíduo, em que o todo tem precedência sobre as partes.” (BONAVIDES, 1999, p. 68)

Esta é uma visão que permanece até o surgimento do jusnaturalismo7 na Idade Moderna, que irá contrapor-se a esta perspectiva. A estratificação social da Idade Média, bem como a escravidão dos negros no período da colonização das Américas, encontra seus pressupostos nesta visão. Este organicismo social dava a idéia de um determinismo para a vida daqueles que compunham a sociedade estabelecida. Dividida em classes – vassalos, nobres e clero –, a sociedade medieval atendia basicamente a uma estrutura que mantinha-se imóvel, funcional e aparentemente justa, onde não existia o questionamento sobre a própria situação social.

Logicamente há uma descontextualização do pensamento de ambos, ao desconsiderar-se períodos históricos diferentes. Uma era a realidade social e histórica de Platão e Aristóteles e outra a do período posterior.

O que se deve compreender é que, com o advento da política moderna, já a partir de Maquiavel, temos uma mudança de concepção, que desembocará depois nas teses jusnaturalistas e do contrato social.

7 Jusnaturalismo: tese do direito natural, ou seja, de que todos os homens nascem já possuidores de alguns direitos naturais, como a liberdade e a vida, por exemplo.

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UNIDADE 11 – A QUESTÃO POLÍTICA EM MAQUIAVEL.

Maquiavélico ou maquiaveliano?

Em plena aula sobre Maquiavel, um aluno levanta-se e diz: "professora, vou me retirar da sala, pois, recuso-me a assistir esta aula sobre um sujeito que parece o demônio. Já ouvi diversas vezes que quando alguém faz mal a outra pessoa é chamado de maquiavélica e que a gente pode fazer tudo aquilo que quiser, o que vale é a intenção. Eu não concordo com nada disso". Diante desta atitude do aluno a professora diz: “É importante que você fique, pois me parece que precisamos estudar melhor este pensador para daí podermos tirar algumas conclusões. Maquiavel é conhecido por sua afirmação ‘os fins justificam os meios’. O que Maquiavel queria dizer com essa afirmação? Será que para atingir determinado fim devemos lançar mão de todos os meios possíveis? Na política, por exemplo, quais meios devem ser utilizados para um político chegar o poder? Quais meios são considerados válidos? São várias questões que podem ser levantadas”.

Este caso demonstra a popularidade de Maquiavel e a péssima impressão que se faz dele muitas vezes. Por isso, vamos estudar um pouco mais o pensamento maquiaveliano para compreendermos melhor a sua importância. Afinal de contas, pode ser que ele não seja tão “maquiavélico” assim.

Maquiavel e o poder.

Nascido em Florença, Itália, Maquiavel (1469-1527) foi um dos grandes responsáveis pela noção moderna de poder. Em Maquiavel também encontramos uma renovação do sentido e da relação entre ética e política. Desta forma muito folclore se construiu em torno de seu nome e de sua pessoa, principalmente pela interpretação precipitada que se fez muitas vezes de seu pensamento. Conforme o texto de RUSSEL, “é costume sentir-se a gente chocada por ele, e não há dúvida de que, às vezes, êle é realmente chocante. Mas muitos outros homens também o seriam, se fôssem igualmente livres de hipocrisia” (RUSSEL, 1967, p. 20). Maquiavel foi compreendido como alguém imoral e desprovido de quaisquer valores. Por isso a perspectiva do termo “maquiavélico” é sempre pejorativa. Mas, seria Maquiavel digno desta fama? O que ele pretendia? Vamos por partes.

Maquiavel choca por fazer uma análise do homem considerando-o a partir de uma de suas facetas, a do egoísmo. Se para Aristóteles e para o pensamento greco-cristão no geral o homem

RENASCIMENTO:

O termo Renascença deixa muito a desejar do ponto de vista da exatidão histórica. É

comumente interpretado como significando que no século XIV houve um súbito reviver do interesse pela cultura clássica da Grécia

e de Roma. Mas isso está longe de ser verdade. De modo algum foi raro, na época feudal, o interesse pelos clássicos. /.../ Na verdade, a chamada Renascença foi, em grande parte, simplesmente a culminação de uma série de renascimentos cujo início pode ser localizado no século XI. Todos

esses movimentos se caracterizaram pela reverência aos autores antigos. Mesmo nas

escolas das catedrais e dos mosteiros, Cícero, Vergílio, Sêneca e mais tarde

Aristóteles foram alvo, freqüentemente, de uma veneração igual a que se consagrava a

qualquer dos santos. A Renascença foi muito mais do que o

simples reviver da cultura pagã. Abrangeu, em primeiro lugar, um notável acervo de novas realizações no campo da arte, da

literatura, da ciência, da filosofia, da política, da educação e da religião. Embora

baseadas muitas delas nos fundamentos clássicos, não tardaram a expandir-se para

além dos limites da influência grega e romana. /.../ a Renascença incorporou certo número de ideais e atitudes dominantes que

passam comumente por ter marcado a norma do mundo moderno. /.../ No seu

sentido mais amplo, o humanismo pode ser definido como a glorificação do humano e

do natural, em oposição ao divino e ao extraterreno. Assim concebido, foi ele o

coração e a alma da Renascença, uma vez que incluía praticamente todos os outros

itens já mencionados. O humanismo também tem o sentido mais restrito de

entusiasmo pelas obras clássicas, devido ao seu interesse humano. É este o sentido em que foi freqüentemente empregado pelos

homens da Renascença.

BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. Porto Alegre: Editora

Globo, 1977.14

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buscava a vida em sociedade, o bem viver como algo natural, para Maquiavel “os homens tendem /.../ à divisão e à desunião.” (PINZANI, 2004, p. 19)

Maquiavel era um homem do seu tempo, do Renascimento. Homem de idéias políticas, ele procurou entender a natureza e os limites do poder político. Maquiavel contemplou uma realidade: a realidade da sua Itália, dividida, fragmentada em diversos principados e ducados. Numa constante briga pelo poder e, inevitavelmente alternâncias constantes dos governantes, a Florença de Maquiavel refletia o que ocorria também com as demais cidades italianas importantes do período. Para ele não se apresentava logicamente o ideal cristão, mas sim algo que lhe seria entendido como próprio do homem, a luta pelo poder. Por isto os homens mentiam, matavam e julgavam-se acima da moral.

Contudo, Maquiavel considera a necessidade de governantes bons e virtuosos. Para ele a diferença está em que a bondade e a virtude não pertencem à natureza humana do governante, mas sim resultam da sua compreensão e atuação sobre o real. Sem preocupar-se em desenvolver teorias, como fizeram outros pensadores, Maquiavel avalia a realidade e “interpreta os seus escritos como compêndios de conselhos práticos e de instruções para a ação.” (PINZANI, 2004, p. 16) Por isso, “influenciar a realidade, e não desenvolver teorias é o seu propósito.” (PINZANI, 2004, p. 16).

Ao contrário dos manuais que indicavam como devia agir um soberano, obras comuns na idade Média e no Renascimento, o verdadeiro propósito de sua obra O Príncipe é a exortação para se tomar a Itália e libertá-la das mãos dos bárbaros, como pode ser constatado no capítulo final da mesma:

Depois de considerarmos tudo o que vimos aqui, de ter refletido sobre se o momento histórico não seria propício para termos um novo monarca na Itália, se não seria agora a oportunidade para que um homem prudente e capaz introduzisse no país uma nova forma de governo, que honrasse e beneficiasse o povo, parece-me que são muitas as circunstâncias que concorrem para a subida ao trono de um novo soberano; de fato, não sei de nenhuma outra época mais oportuna para tanto. /.../ E embora já tenhamos tido algum vislumbre de esperança, fazendo pensar que Deus teria enviado alguém para redimi-la, a sorte o derrubou no ponto culminante da sua carreira; agora, quase sem vida, a Itália espera por quem lhe possa curar as feridas e ponha fim à pilhagem na Lombardia, à rapacidade e à extorsão no reino de Nápoles e na Toscana, curando-as das chagas abertas há tanto tempo. Pede a Deus que lhe envie alguém capaz de libertá-la dessa insolência, dessa bárbara crueldade. Está disposta a seguir uma bandeira, desde que alguém a empunhe. (MAQUIAVEL, 2005, p. 150-151)

Detectando a tensão entre o desejo de dominar e de não ser dominado que move o homem, Maquiavel constrói em sua obra uma reflexão sobre o poder. O poder é entendido portanto, “como correlação de forças, fundada no antagonismo que se estabelece em função dos desejos de comando e opressão, por um lado, e liberdade, por outro, pelos quais se formam as relações sociais.” (SCHLESENER, 1989, p. 2) Estas relações implicam tanto na questão política como na econômica. De acordo com LEFORT (1979),

“O objeto de Maquiavel não é a técnica do poder mais do que a do comércio. Podemos certamente dizer que sua questão recai essencialmente sobre a política, mas com a condição de entender este termo em sua mais ampla acepção, isto é, clássica. É a questão da forma das relações sociais que ele coloca através da divisão grandes-povo. A reflexão sobre o poder está no centro de sua obra, mas pela razão de que, a seus olhos, a sorte da divisão social se decide em função do modo de divisão do poder e da sociedade civil e que assim se determinam as condições gerais dos diversos tipos de sociedade.” (LEFORT, 1979, p. 144).

Ao refletir sobre as relações entre grandes e o povo, Maquiavel mostra ao governante a necessidade de buscar o equilíbrio entre estas forças antagônicas (os que desejam o poder para defender suas riquezas e os que desejam o poder para evitarem a opressão) para governar com sucesso.

Para pensar:

1. Há diferenças entre as concepções de poder nos dias de hoje e de antigamente? O que tem a ver poder e política?

2. Que meios os políticos atuais usam para chegar ao poder? Eles são válidos? Por quê?

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Ética e Política.

Ao apresentar seus argumentos, Maquiavel busca demonstrar como seria possível o estabelecimento deste Estado Italiano, a partir de um governante forte e de um governo efetivo. Secretário da Segunda Chancelaria de Florença, cargo que recebeu em 1498, Maquiavel foi empossado num governo republicano que foi deposto em 1512 pela monarquia dos Médicis. Considerado traidor em 1513, foi afastado de suas funções públicas e exilado em San Casciano, região próxima de Florença. Neste período escreveu O Príncipe, provavelmente sua obra mais popular e, provavelmente, a mais complexa. Quando escreveu O Príncipe, Maquiavel interrompeu temporariamente outra obra, intitulada os Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio, sua obra republicana. O que parece claro dos escritos de Maquiavel é que ele busca uma solução política para a sua Itália. Por isso, endereça O Príncipe ao magnífico Lorenzo, filho de Piero de Médicis, governante de Florença. Maquiavel sugere ao monarca que ele pode ser o príncipe que unificaria a Itália. Na obra, Maquiavel fornece praticamente as diretrizes seguras para que isto se realize. É dentro disto que discute e estabelece uma nova relação entre ética e política. Como nos esclarece WEFFORT, “a política tem uma ética e uma lógica próprias. Maquiavel descortina um horizonte para se pensar e fazer política que não se enquadra no tradicional moralismo piedoso.” (WEFFORT, 1989, p. 21).

Ao fazer a análise da realidade, Maquiavel distingue a moral individual da moral política. A atitude do indivíduo não é necessariamente a atitude do chefe de Estado. Se para um indivíduo a ação moral é de decisão particular, para o monarca, por exemplo, é necessário pesar em que isto implicará para o Estado. Não há uma exclusão entre ética e política, mas a primeira deve ser entendida a partir da segunda. Uma das implicações disto é a de que “os valores morais só possuem sentido a partir da vida social, apresentando-se como momentos de uma luta que está na raiz do poder e lhe dá sentido” (SCHLESENER, 1989, p. 10). Com isto Maquiavel está afirmando que temos virtudes que podem arruinar um Estado e vícios que podem salvá-lo o que, na análise moral tradicional seria condenável, mas na “ética política” poderia ser plenamente aceitável. Logicamente tais questões dependeriam das circunstâncias e das forças em luta (SCHLESENER, 1989, p. 10). Por isso, o que pode parecer inadmissível, para Maquiavel faz parte da política:

“De onde se deve observar que, ao tomar um Estado, o conquistador deve praticar todas as necessárias crueldades ao mesmo tempo, evitando ter de repetí-las a cada dia; assim tranqüilizará o povo, sem fazer inovações, seduzindo-o depois com benefícios. Quem agir diferentemente, por timidez ou maus conselhos, estará obrigado a estar sempre de arma em punho, e nunca poderá confiar em seus súditos que, devido às contínuas injúrias, não terão confiança no governante.” (MAQUIAVEL, 2005, p. 69)

Podemos perceber em Maquiavel a proposta de uma nova ética, com um novo conceito de virtude, voltada mais para a política e não para o ideal moral do pensamento medieval. É uma moral prática, que olha para o bem do Estado e se apresenta inversa à perspectiva tradicional. Por isso, voltando à questão da virtude que pode ser “prejudicial” e do vício que pode ser “bom”, podemos compreender que uma generosidade excessiva, por exemplo, poderia levar o Príncipe à ruína financeira e os súditos a sentirem-se oprimidos, o que suscitaria o ódio. Por outro lado, a sobriedade, que seria identificável com a avareza, tornando a figura do Príncipe antipática, possibilitaria gestos de grandeza e prodigalidade que, com certeza, seriam reconhecidos pelos súditos sem que estes se sentissem oprimidos e tão pouco descontentes.

Por isso, para Maquiavel, há uma distinção entre os espaços da moral e da política. Isto não siginifica que se pode “fazer o que se quer”, de qualquer modo, sem sentido algum. A máxima segundo a qual “os fins justificam os meios” tem uma implicação muito mais coerente e profunda. Ser acusado de crueldade não deve ser o temor do Príncipe, desde que tal atitude seja necessária para unificar o povo e manter a paz.

Retomando conceitos:

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1. Reunido em grupo, discuta o que é a virtude. Que conceito você tem do que seja a virtude? Seus colegas concordam com você? Alguém apresentou um conceito diferente? Há alguma relação com a moral? Explique.

2. Alguém do grupo será responsável por apresentar a conclusão para a sala para que se possa estabelecer os pontos comuns e os divergentes entre os grupos.

Virtù e fortuna.

Maquiavel tem uma visão do homem de como ele é e não de como deveria ser necessariamente. Para ele, certamente, devemos olhar para o real e não para o ideal moral. Por isso Maquiavel trata da questão da virtù e da fortuna.

A virtù refere-se à capacidade de decidir diante de determinada situação, cuja necessidade deve-se à fortuna. O agir pressupõe a compreensão da natureza humana, assim entendida por Maquiavel: os homens buscam quem lhes proporcione vantagens, melhorias. Atribuem este papel e responsabilidade ao governante. Esclarece num trecho da obra que “os homens mudam de governantes com grande facilidade, esperando sempre uma melhoria”. (MAQUIAVEL, 2005, p. 32) O que importa, para os homens na sua maioria, são os benefícios e acreditar que é o príncipe quem pode proporcioná-los. Contudo, o governante deve estar atento. A estabilidade política é sempre precária e “qualquer mudança pode desencadear um processo de transformação difícil de conter.” (SCHLESENER, 1989, p. 3) Por isso, escreverá mais adiante, “note-se que é preciso tratar bem os homens ou então aniquilá-los. Eles se vingarão de pequenas injúrias, mas não poderão vingar-se de agressões graves; por isso, só podemos injuriar alguém se não temermos sua vingança”. (MAQUIAVEL, 2005, p. 35-36).

Dentro do propósito de um governo efetivo, seguro, Maquiavel avalia a ação prática do governante e não a ação moral. Com isto não quer dizer que o governante não deva ser moral, mas que o que está em jogo é a condição de governar. Contrariando a concepção cristã de homem que visa prioritariamente como ele deve ser, dentro da finalidade de ser bom, Maquiavel não contempla a virtude nesta perspectiva, mas sim numa perspectiva objetiva, prática. Para ele, esta virtù é que faz os grandes homens. Isto é o que demonstra a virtude concretamente. Atingir os objetivos propostos implica em utilizar os meios necessários para fazê-lo. Encontrar os meios necessários para chegar aos fins é virtù em Maquiavel, pois os fins são construídos pelos meios.

O homem virtuoso em Maquiavel é aquele capaz de conquistar a fortuna e mantê-la. E aqui é importante entendermos o conceito de fortuna em Maquiavel.

O conceito de fortuna para o filósofo em questão, também é retomado dos antigos. Ele recorre à imagem da deusa fortuna, possível aliada dos homens e cuja simpatia era importante atrair. Representava uma figura feminina que despejava riquezas de sua cornucópia àqueles que sabiam conquistá-la. Para tanto, era necessário ser um homem de virtù, ou seja, virtuoso. Virtuoso é aquele que é capaz de analisar a situação e compreendê-la para agir. Maquiavel está contrapondo-se à visão apresentada pelo pensamento medieval. Como nos esclarece WEFFORT (1989), durante o período medievo, a figura da “boa deusa, disposta a ser seduzida, foi substituída por um ‘poder cego’, inabalável, fechado a qualquer influência, que distribui seus bens de forma indiscriminada.” (WEFFORT, 1989, p. 21). Contrariando o pensamento dos antigos, “a fortuna não tem mais como símbolo a cornucópia, mas a roda do tempo, que gira indefinidamente sem que se possa descobrir o seu movimento.” (WEFFORT, 1989, p. 21). Apresentando uma perspectiva mais próxima à da Roda de Heródoto, que girava indiscriminadamente, esta visão considerava os bens valorizados no período clássico como um nada, compreendendo que a felicidade não se realizava no mundo terreno e que o destino é uma força da providência divina tendo o homem como sua vítima impotente. (WEFFORT, 1989, p. 21). Em Maquiavel,

... ao se indagar sobre a possibilidade de se fazer uma aliança com a Fortuna, esta não é mais uma força impiedosa, mas uma deusa boa, tal como era simbolizada pelos antigos. Ela é mulher, deseja ser seduzida e está sempre pronta a entregar-se aos homens bravos, corajosos, aqueles que demonstram ter virtù. (WEFFORT, 1989, p. 22).

Fortuna, portanto, não está relacionado à sorte ou predestinação, mas sim ao exercício da virtù no mais alto grau. É aproveitar a ocasião dada pelas circunstâncias para amoldar as coisas

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como melhor aprouver ao virtuoso. (MAQUIAVEL, 2005, p. 49) Esclarece-nos o próprio Maquiavel no seu texto:

...Creio que a sorte seja árbitro da metade dos nossos atos, mas que nos permite o controle sobre a outra metade, aproximadamente. Comparo a sorte a um rio impetuoso que, quando enfurecido, inunda a planície, derruba casas e edifícios, remove terra de um lugar para depositá-la em outro. Todos fogem diante da sua fúria, tudo cede sem que se possa detê-la. Contudo, apesar de ter esta natureza, quando as águas correm quietamente é possível construir defesas contra elas, diques e barragens, de modo que, quando voltem a crescer, sejam desviadas por um canal, para que seu ímpeto seja menos selvagem e devastador. O mesmo se dá com a sorte, que mostra todo o seu poder quando não foi posto nenhum empenho para lhe resistir, dirigindo então sua fúria contra os pontos onde sabe que não há dique ou barragem para detê-la. /.../ O que disse até aqui pode ser bastante no que abrange a resistência à sorte, de modo geral. /.../ O príncipe que baseia seu poder inteiramente na sorte se arruína quando esta muda. Acredito também que é prudente quem age de acordo com as circunstâncias, e da mesma forma é infeliz quem age opondo-se ao que o seu tempo exige. (MAQUIAVEL, 2005, p. 145-147)

O sucesso ou fracasso do Príncipe, para Maquiavel, não dependem da sorte, mas do modo como ele age nas circunstâncias. Tendo métodos adequados e caminhos seguros e prevenindo-se para as possíveis intempéries, o homem dotado de virtù pode conquistar a deusa. Para SCHLESENER (1989),

“...o que se tem, no fundo, é um elogio à racionalidade e liberdade do homem: dominar a fortuna, agindo com autonomia significa apreender as relações concretas e reconhecer o novo nas situações e no movimento da vida. O sucesso resulta da capacidade do homem de entender o seu tempo; mas a inteligência, sozinha, é limitada; vencer a sorte não depende unicamente do intelecto (compreender), mas também do desejo (querer): é preciso ser corajoso e ousado, mais do que prudente; é indispensável ter audácia, bravura, impetuosidade... /... / ... ou seja, o poder do homem está em saber exercitar sua inteligência relacionada com sua intrepidez; não só a razão, mas também a imaginação, o desejo, perpassam a política e abrem espaço à criação do novo.” (SCHLESENER, 1989, p. 15)

É este “novo” que Maquiavel traz com tanta intensidade e que envolve este confronto com a sorte. É o humano que se manifesta e se sobrepõe ao determinismo. É uma nova redefinição do poder e da força que o fundamenta. Isto implica em que “não se trata mais apenas da força bruta, da violência, mas da sabedoria no uso da força, da utilização virtuosa da força”. (WEFFORT, 1989, p. 22). Para governar não basta ser o mais forte. Este é capaz de conquistar o poder, mas não de mantê-lo. É preciso, além de ser o mais forte, possuir a virtù para manter o domínio e o respeito dos governados, mesmo que estes não o amem. (WEFFORT, 1989, p. 22). O sucesso do Príncipe está atrelado à posse da virtù. Este sucesso implica numa medida política: a manutenção da conquista. Mostrando-se capaz de resistir aos inimigos e aos golpes da sorte, “o homem de virtù deve atrair os favores da cornucópia, conseguindo, assim, a fama, a honra e a glória para si e a segurança para seus governados.” (WEFFORT, 1989, p. 23). O que importa para o povo, apoiado num senso comum, é a estabilidade política, que só pode ser dada pelo príncipe virtuoso, independente dos meios que ele utilize. Escreve Maquiavel que,

“Na conduta dos homens, especialmente dos príncipes, contra a qual não há recurso, os fins justificam os meios. Portanto, se um príncipe pretende conquistar e manter o poder, os meios que empregue serão sempre tidos como honrosos, e elogiados por todos, pois o vulgo atenta sempre para as aparências e os resultados.” (MAQUIAVEL, 2005, p. 109)

Virtù e fortuna em Maquiavel, portanto, estão intimamente ligadas. E ser honrado, para Maquiavel, não implica numa questão de valores morais, mas de justiça política, onde o que importa são os resultados obtidos.

Retomando conceitos:

1. Explique a relação entre virtù e fortuna em Maquiavel, definindo o que vem a ser uma e outra.

2. Comente a seguinte afirmação de Maquiavel: “Conclui-se, portanto, que como a sorte varia e os homens permanecem fiéis a seus caminhos, só conseguem ter êxito na medida em que seus procedimentos sejam condizentes com as circunstâncias; quando se opõem a elas, o resultado é

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infeliz.” (MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad.: Pietro Nasseti. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2005, p. 149)

A questão da liberdade.

Para Maquiavel, o conflito que existe entre os homens é o que fundamenta a ação política. Tendo em vista a liberdade, exige-se a administração dos conflitos, de tal modo que não se permita o crescimento do poder de um determinado grupo em detrimento de outro, o que levaria a perda da liberdade. A liberdade para Maquiavel é um bem “porque só ela permite ao homem ser o que ele deve ser.” (SPITZ, 2003, p. 126) Para Maquiavel os homens não desejam a liberdade do mesmo modo e também a liberdade é objeto de uma paixão. Alguns querem liberdade para estar seguros e outros para dominar. Por isso, “tudo o que é capaz de unir os homens e de subtraí-los ao temor que eles se inspiram mutuamente é, portanto, um bem; a política é sua prática, pois se trata de uma arte cujo objetivo é garantir ‘para sempre a tranqüilidade do Estado e a felicidade das pessoas.’” (SPITZ, 2003, p 126) Desse modo o poder para Maquiavel é conquistado pela ação política.

Escreve Maquiavel que “nada faz com que um príncipe seja mais estimado do que os grandes empreendimentos e os altos exemplos que dá.” (MAQUIAVEL, 2005, p. 130). Estes empreendimentos referem-se às grandes conquistas militares e aos exemplos do seu poderio. Orienta ainda que “é muito útil também para o príncipe dar algum exemplo notável de sua grandeza no campo da administração interna”. (MAQUIAVEL, 2005, p. 131) Isto se aplica tanto para louvar ou repreender o cidadão, demonstrando sua magnanimidade:

“Quando acontece que algum cidadão faz algo extraordinário na vida política – algo de bom ou mau -, é preciso achar um meio de recompensa ou punição que seja amplamente comentado. Acima de tudo, um príncipe deve procurar, em todas as suas ações, conquistar fama de grandeza e excelência.” (MAQUIAVEL, 2005, p. 131-132)

Maquiavel alerta que “nenhum Estado deve crer que pode sempre seguir uma política segura”, mas “ao contrário, deve pensar que todos os caminhos são duvidosos.” (MAQUIAVEL, 2005, p. 134). Para bem administrar o Estado é preciso entender a natureza das coisas, o fato de que não se consegue evitar uma dificuldade sem cair em outra. A prudência do príncipe consiste em saber reconhecer estas questões e escolher entre o que é menos mau para a sociedade.

Por fim, Maquiavel propõe o apreço pelas virtudes e praticamente uma participação popular de tempos em tempos, construindo assim a idéia de solidariedade e generosidade por parte do príncipe. Vejamos o texto:

“Os príncipes devem demonstrar também apreço pelas virtudes, dar oportunidade aos mais capazes e honrar os excelentes em cada arte. Devem, além disso, incentivar os cidadãos a praticar pacificamente sua atividade – no comércio, na agricultura ou em qualquer outro ramo profissional. Assim, que uns não deixem de aumentar seu patrimônio pelo temor de que lhes seja retirado o que possuem, e outros não deixem de iniciar um comércio, com medo dos tributos; devem os príncipes, ao contrário, instituir prêmios para quem é ativo e procurar de um modo ou de outro melhorar sua cidade ou Estado. Além disso, precisam manter o povo entretido com festas e espetáculos, nas épocas convenientes; e como toda cidade se divide em corporações ou em classes, devem dar atenção a todos esses grupos, reunir-se com seus membros de tempos em tempos, dando-lhes um exemplo da sua solidariedade e munificência – guardando sempre, contudo, sua dignidade majestosa, que não deve faltar em nenhum momento.” (MAQUIAVEL, 2005, p. 134-135).

Em Maquiavel, que não trata necessariamente da constituição do Estado, “não pode haver, para os homens, valor senão político: é se unindo em torno de um sistema de leis e de instituições que protege cada um igualmente contra todos os outros que a liberdade se torna possível e que os homens podem viver em conformidade com a nobreza da sua natureza, que lhes ordena darem eles próprios forma ao seu destino.” (SPITZ, 2003, p 128) Isto implica em legitimidade também.

Para o pensador italiano, Antonio Gramsci, “em todo o livro, Maquiavel mostra como deve ser o Príncipe para levar um povo à fundação do novo Estado, e o desenvolvimento é conduzido com rigor lógico, com relevo científico” (GRAMSCI, 1991, p. 4). Maquiavel trata com seriedade a política e sente-se parte do povo que ele supõe constituirá este novo Estado. Como esclarece Gramsci, “Maquiavel faz-se povo, confunde-se com o povo, mas não com um povo ‘genericamente’ entendido, mas com o povo que Maquiavel convenceu com o seu desenvolvimento anterior, do qual ele se torna e se sente consciência e expressão, com o qual ele se sente identificado” (GRAMSCI, 199, p. 4). Neste sentido, toda lógica em Maquiavel parece atender a uma reflexão do povo, de “um raciocínio

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interior que se manifesta na consciência popular e acaba num grito apaixonado, imediato.” (GRAMSCI, 1991, p. 4). No pensamento gramsciniano há uma verdadeira perspectiva de “manifesto político” na obra de Maquiavel. Não é algo que vem de fora, de teóricos, de tratados políticos, mas do próprio pensamento popular interpretado por Maquiavel. Ainda com Gramsci podemos entender que “a doutrina de Maquiavel não era, no seu tempo, uma coisa puramente ‘livresca’, um monopólio de pensadores isolados, um livro secreto que circula entre iniciados” (GRAMSCI, 1991, p. 10). Escrevendo coisas aplicáveis, Maquiavel pretende ensinar, educar, mas não a quem já sabe, ou que estaria numa “elite dominante” necessariamente. Para Gramsci não parece este o intento de Maquiavel. O que ele propõe vai além, tem propósito maior. Vejamos as palavras do próprio Antonio Gramsci:

Pode-se, portanto, supor que Maquiavel tem em vista “quem não sabe”, que ele pretende educar politicamente “quem não sabe”. Educação política não-negativa, dos que odeiam tiranos, como poderia entender Foscolo, mas positiva, de quem deve reconhecer como necessários determinados meios, mesmo se próprios dos tiranos, porque deseja determinados fins. Quem nasceu na tradição dos homens de governo, absorvendo todo o complexo da educação no ambiente familiar, no qual predominam os interesses dinásticos ou patrimoniais, adquire quase que automaticamente as características do político realista. Quem, portanto, “não sabe”? a classe revolucionária da época, o “povo” e a “nação” italiana, a democracia urbana que se exprime através dos Savanarola e dos Píer Soderini e não dos Castruccio e dos Valentino. Pode-se deduzir que Maquiavel pretende persuadir estas forças da necessidade de ter um “chefe” que saiba aquilo que quer e como obtê-lo, e de aceitá-lo com entusiasmo, mesmo se suas ações possam estar ou parecer em contradição com a ideologia difundida na época: a religião. (GRAMSCI, 1991, p. 11)

Em Maquiavel, há uma construção da política de forma autônoma, fundada na realidade, mas também na necessidade de mudar esta realidade para conseguir o intento maior: a unificação da Itália e a fundação do Estado italiano.

Maquiavel e a história como método.

A história é aconchego para Maquiavel. Nos seus momentos de infortúnio, quando de seu exílio em San Casciano, ele aprende com os clássicos e esquece seus sofrimentos, como relata em carta a um amigo:

Chegando a noite, volto à minha casa e entro no meu gabinete de trabalho. Tiro as minhas roupas cobertas de sujeira e pó e visto as minhas vestes dignas das cortes reais e pontifícias. Assim, convenientemente trajado, visito as cortes principescas dos gregos e romanos antigos. Sou afetuosamente recebido por eles e me nutro do único alimento a mim apropriado e para o qual nasci. Não me acanho ao falar-lhes e pergunto das razões de suas ações; e eles com toda sua humanidade, me respondem. Então, durante 4 horas não sinto sofrimentos, esqueço todos os desgostos, não me lembro da pobreza e nem a morte me atemoriza /.../. (Carta a F. Vettori, de 10/12/1513. In: WEFFORT, 1989, p. 16)

É na história que Maquiavel orienta o governante a buscar as lições, aprendendo com as ações e os propósitos dos grandes homens. Maquiavel está exatamente no centro de um “turbilhão” de novas idéias que estão surgindo, numa fase de transição entre o antigo e o novo, num reavaliar dos projetos políticos e ao mesmo tempo numa tentativa de manutenção. Estão surgindo os Estados e a monarquia está perdendo sua legitimação pela tradição de sangue ou linhagem para fundar-se nas capacidades pessoais do governante. De sua prática, portanto, e do convívio com os clássicos é que nasceram os textos de Maquiavel (WEFFORT, 1989, p. 16).

Maquiavel propõe ao príncipe a observância do passado, que apresenta os modelos de heróis, a realidade humana e os meios para que o príncipe chegue ao poder e o mantenha. Eis sua orientação:

“A fim de exercitar o espírito, o príncipe deve estudar a história e as ações dos grandes homens; ver como se conduziram na guerra, examinar as razões de suas vitórias e derrotas, para imitar as primeiras e evitar as últimas. Acima de tudo, deve agir como alguns grandes homens do passado ao seguir um modelo que tenha sido muito elogiado e glorificado, ter sempre em mente seus gestos e ações. Assim se diz que fez Alexandre, o Grande, com relação a Aquiles, César a Alexandre e Cipião a Ciro. Quem ler a biografia de Ciro, escrita por Xenofonte, verá que a glória de Cipião deve-se ao fato de ter imitado Ciro, repetindo suas qualidades de homem casto, afável, humanitário e liberal.” (MAQUIAVEL, 2005, p. 95).

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O objetivo é mostrar como as coisas são e o que se deve fazer com elas para se conseguir o que quer, lições estas que são encontradas nos antigos. Enquanto a religião exige um "telos", um fim a ser atingido, uma recompensa, na concepção maquiaveliana o que existe é uma condição cíclica, onde as experiências do passado se repetem e os homens trilham quase sempre o mesmo caminho. É da natureza humana. Como numa seqüência interminável, “a ordem sucede à desordem e esta, por sua vez, clama por uma nova ordem. Como, no entanto, é impossível extinguir as paixões e os instintos humanos, o ciclo se repete.” (WEFFORT, 1989, p. 20). O tempo vai e volta e, no presente repetem-se as lições do passado. Quem for bom observador verá que as coisas já ocorreram de outra forma, mas com o mesmo sentido.

O método maquiaveliano apóia-se na história e tem seus fundamentos em Políbio, historiador romano. Podemos constatar isto no fragmento do próprio Políbio, apresentado por PINSKY:

É próprio da história conhecer primeiramente a veracidade dos acontecimentos que efetivamente ocorreram e, em segundo lugar, descobrir a causa pela qual as palavras ou atos resultam, finalmente em fracasso ou sucesso. Com efeito, um simples relato pode ser correto sem ter nenhuma utilidade; acrescente-se-lhe em compensação, a exposição da causa, e a prática da história torna-se fecunda. Buscando as analogias para aplicá-las a nossos problemas atuais, encontramos meios e indicações para prever o futuro: o passado nos protege, bem como nos fornece um modelo, permitindo-nos realizar nossas empresas sempre mais confiantes. (POLÍBIO, in: PINSKY, 1988, p. 145)

A semelhança com a perspectiva maquiaveliana é inevitável. Políbio já ensinava “que não há escola mais autêntica, nem exercício melhor para as questões políticas que as lições da história. Nada nos ensina poder suportar dignamente as vicissitudes do acaso mais seguramente que a recordação das desgraças de outrem!” (POLÍBIO, in: PINSKY, 1988, p. 145) E por isso Maquiavel está dando orientações ao Príncipe a partir do olhar histórico, da história dos romanos e da surpreendente capacidade destes de dominar e manter o poder, como já atestava Políbio:

Nesse sentido, seria perfeitamente inconveniente repetir o que já foi expresso, e bem, por muitos outros; no meu caso sobretudo, onde as novidades dos fatos que nos propomos relatar será mais do que suficiente para atrair e provocar todo mundo a ler minha obra, tanto jovens como velhos. Haverá homens tão medíocres e preguiçosos que não se sintam satisfeitos ao saber por que meios e por que tipo de regime o mundo quase que inteiro foi dominado, em menos de cinqüenta anos, por uma única potência, os romanos? Isto nunca tinha ocorrido. Por outro lado, poderia existir homens tão loucamente curiosos a respeito de outra disciplina a ponto de não sacrificar tudo em prol desse gênero de informação histórica? (POLÍBIO, in: PINSKY, 1988, p. 145)

Não observar a história seria uma falta do governante. É uma questão de prudência. Ao observar os antigos, ele aprenderá com os erros do passado e evitará cometê-los no presente. Por outro lado, deverá apropriar-se do que foi efetivo politicamente para que os grandes homens ou povos se mantivessem no poder por tanto tempo, como no caso do Império Romano. Para Maquiavel,

“são esses os métodos que deve seguir um príncipe prudente, nunca permanecendo ocioso em tempos de paz, mas ao contrário, capitalizando experiência, de modo que qualquer mudança da sorte o encontre sempre preparado para resistir aos golpes da adversidade, impondo-se a ela.” (MAQUIAVEL, 2005, p. 95).

Maquiavel apresenta-se tão atual quanto no momento em que escreve O Príncipe. Dentro desta atualidade do pensamento maquiaveliano, e agora podemos afirmar não maquiavélico, não validamos uma política despreocupada com valores, mas propõe-se uma política que seja efetiva, que resolva os problemas e construa valores práticos. Não é validada a esperteza sem sentido algum e nem tampouco a bondade sem coerência e domínio de poder do governante. Não basta um governante honesto, com uma excelente proposta política, mas que escolhe mal seus ministros e assessores. Neste sentido, tratar dos problemas políticos atuais à luz da leitura do pensamento de Maquiavel parece-nos uma indispensável contribuição para entendermos a política de forma mais real, ou seja, como ela é, como se faz, como se costura em conchavos e alianças. Menos iludidos, mais realistas, podemos perceber melhor a importância da política e dos nossos políticos. Com certeza também poderemos agir de forma mais esclarecida quanto aos nossos direitos e deveres, principalmente no trato com o poder que delegamos aos nossos representantes.

Reelaborando conceitos:

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1. Que relação podemos estabelecer entre a história recente dos regimes totalitários e a filosofia de Maquiavel?

2. Discutir em pequenos grupos a afirmação “todo homem busca por natureza o poder”.

UNIDADE 12 – O CONTRATUALISMO, A CONSTITUIÇÃO DO ESTADO MODERNO E A POLÍTICA CONTEMPORÂNEA.

“Mas a razão mais freqüente para que todos os homens desejem ferir uns aos outros, provém do fato de que muitos tenham um apetite pela mesma coisa ao mesmo tempo, e que freqüentemente eles não podem desfrutar em comum e nem dividir. Segue-se a isto, que o mais forte há de tê-la, e o mais forte necessariamente se decide pela espada.” (HOBBES, 2004, VI, p. 34)

O sonho da liberdade e da igualdade.

Promulgada após a Revolução Francesa (1789), a Declaração dos Direitos Universais do Homem e do Cidadão representa desde então aquilo que de longo tempo tem sido o grande ideal ou projeto dos homens no campo da política. Evocada nos discursos políticos, ou apresentada como plataforma de muitos partidos políticos, tornou-se praticamente “lugar comum” para falar em direitos, igualdade e liberdade nas diversas esferas da vida e setores da sociedade. Isto se aplicou, por exemplo, ao campo da ciência, da ética e da economia. Pautando-se portanto, na idéia de liberdade e igualdade, o pensamento político tem produzido teorias as mais diversas possíveis para tentar explicar e demonstrar como isto seria possível na vida dos homens enquanto sociedade. Os dois conceitos, que já tem suas representações no pensamento democrático grego, serão retomados com maior vigor no período moderno, após a Renascença, onde torna-se fundamental a questão da legitimação do Estado. Encontrando suas pré-condições em Maquiavel, a idéia de um Estado nacional, livre, legítimo e que proporcione a justiça enquanto relação de poder entre governante e governados, é construção da Modernidade.

Período de transformações e questionamentos, a Modernidade abrange muito mais do que o momento político. É todo um contexto que implica em revoluções na ciência, na economia, na vida social e religiosa, nas relações entre o trabalho e os meios de produção e, conseqüentemente, nas discussões sobre o poder e a questão da legitimação ou não deste. Palco do pensamento iluminista, da reforma protestante, da ascensão da burguesia e da expansão do capitalismo, a Modernidade contempla também o aprofundamento da questão da soberania política e o surgimento das teorias do jusnaturalismo. É todo este panorama, que desemboca na retomada dos ideais democráticos propostos pelos gregos muitos séculos antes, que proporciona uma nova reflexão sobre o surgimento do Estado a partir de um contrato, e não mais pela natureza – como defendia Aristóteles – ou pela determinação divina, como prenunciava o período medieval.

A liberdade, a igualdade e a questão do direito, são pontos fundamentais nestas discussões sobre a vida em sociedade e seus fundamentos.

Liberdade política.

O que é a liberdade? Cantada, desejada, esperada por tantos e tolhida por outros tantos, em nome da liberdade os homens choraram, sorriram, mataram e foram mortos. Pela liberdade de expressão, pela liberdade de comércio e de religião, o homem, contraditoriamente, feriu e fere seu semelhante. Em nome da liberdade teorias foram pensadas revoluções foram realizadas.

A liberdade foi representada como guia do povo na Revolução Francesa e associou-se à idéia de liberalismo econômico, ético e político no período do Iluminismo. Paradoxalmente, a liberdade de alguns produziu a escravidão de outros e, o livre comércio capitalista gerou a exclusão de grande parcela da população e o surgimento de novos problemas sociais. ROUSSEAU (2005, p. 23) afirma que o homem nasceu livre, mas que por toda parte encontra-se a ferros. O homem, que se julga senhor de todos é de todos o maior escravo.

Vejamos o texto de Montesquieu:

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É verdade que, nas democracias, o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade política não consiste nisso. Num Estado, isto é, numa sociedade em que há leis, a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar. Deve-se ter sempre em mente o que é independência e o que é liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder. (MONTESQUIEU, 1973, p. 155-156)

O Contratualismo.

O conceito moderno de Estado surge praticamente com Maquiavel (1469-1527). Posteriormente, Jean Bodin (1530-1596) apresenta a idéia de soberania. Para ele a soberania é o que mantém a unidade de todos os membros e partes que formam o corpo da República. Só com a soberania podemos ter uma garantia de coesão e independência do Estado o que, leva ao entendimento de que esta deve ser absoluta e perpétua. Desta forma, o soberano está “absolvido do poder das leis” e, por isso, ele deve ser vitalício. Tudo depende da sua vontade (independentemente do consentimento dos outros), seja boa ou não, cabendo a ele o direito de criar ou anular as leis. Com Thomas Hobbes (15....) veremos ser levada às últimas conseqüências a idéia de soberania. Para ele o poder absoluto do Estado é justificável por ser entendido como a única possibilidade de controle do egoísmo humano.

Conjuntamente à idéia de soberania foi desenvolvendo-se a idéia do jusnaturalismo, uma teoria do direito natural configurada em torno dos séculos XVII e XVIII. Podendo ser compreendida como uma ética racional, distinta da teologia e, capaz por si mesma de garantir (mais que a teologia) a universalidade dos princípios da conduta humana, a teoria jusnaturalista influenciará diversos pensadores políticos na modernidade. Dentre eles podemos destacar tanto Hobbes, defensor do poder absoluto do Estado, quanto John Locke, um dos primeiros defensores das idéias liberais que transformaram o pensamento político ocidental. Reunindo pensadores tão paradoxais em suas teorias, o jusnaturalismo empreendeu, de acordo com Norberto Bobbio, “ a construção...

Tão antiga quanto os gregos e os medievos, a idéia do direito natural compreenderia um conjunto de valores universais pertinentes à natureza humana.

Direitos dos adolescentes, dos negros, dos homossexuais, dos excluídos e das minorias étnicas, por exemplo. Mas como funciona isto?

Thomas Hobbes.

John Locke (1632-1704).

Obras: Dois Tratados sobre o Governo Civil.

O Primeiro Tratado ocupa-se da crítica á teoria de Robert Filmer, relativa à origem divina do poder. No Segundo Tratado, Locke discute suas teorias políticas e a .....

Formado em medicina, John Locke descende de burgueses comerciantes e, portanto, atento aos interesses de sua classe. Acusado de conspirar contra a coroa refugia-se na Holanda por determinado período, voltando à Inglaterra posteriormente. Considerado um dos mentores da Revolução Gloriosa de 1688, que decreta o fim do poder da monarquia na Inglaterra, Locke é um dos pensadores que darão corpo às teorias liberais que se espalharão pela Europa durante a modernidade. Respeitado como intelectual político, suas teorias fundamentarão algumas das revoluções liberais ocorridas na Europa e nas Américas durante o século XVIII. John Locke é um empirista no campo da ciência e um contratualista no campo da política. Como Hobbes portanto, defenderá a idéia de legitimação do Estado a partir de um Contrato Social. Contudo, diferentemente

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de seu conterrâneo, Locke apresentará uma outra visão do homem no Estado de Natureza e, conseqüentemente outro motivo pelo qual se dará o Contrato.

Jean-Jacques Rousseau (

Nascido em Genebra, na Suíça, Rousseau tornar-se-á um grande escritor, recebendo um respeitado prêmio da Academia de Dijon, em Paris, em 1742. Apesar de inserido dentro do contexto iluminista, que apostava na razão como capaz de resolver todos os problemas da humanidade, Rousseau pode ser compreendido talvez mais como um romântico do que como um iluminista. Sua crítica à razão será ferrenha ao considerá-la como um “prejuízo” para o homem após a sua aquisição. ???????????????????????

Participou do círculo de amizades de Diderot, onde conheceu Voltaire - com quem desenvolveria disputas intelectuais sobre a questão da razão -, D’Alembert e D’Holbach, os chamados enciclopedistas. Chegou a escrever um verbete para a Enciclopédia, também chamada de Dicionário Racional das Ciências, das Artes e dos Ofícios, a grande obra de divulgação dos ideais iluministas. Dentre estes ideais constavam a tolerância religiosa, a confiança na razão livre, a oposição à autoridade excessiva, o naturalismo e o entusiasmo pelas técnicas e pelo progresso. Por isso talvez sua identificação com o iluminismo. Rousseau acompanhou a Revolução Industrial e as notícias do Novo Mundo sobre os povos indígenas, o que o certamente influenciará seu pensamento sobre a idéia do homem como o “bom selvagem”. Dentre as principais obras políticas de Rousseau podemos destacar primeiro o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e, na seqüência, Do Contrato Social. Na área da educação ele escreve o Emílio que, segundo nos conta a lenda, teria levado Kant a perder sua rotina quando retirou-se para a leitura do mesmo.

Rousseau, como seus antecessores no pensamento político, Hobbes e Locke, será também um contratualista. A partir da idéia do Estado de Natureza, dos direitos naturais e da necessidade de um Estado de Direito, produzirá sua própria visão do Contrato Social, criticando seus predecessores. Será inovador ao distinguir os conceitos de soberano e governo e ao discutir a vontade geral contrapondo-a à vontade de todos. Admitirá com John Locke, do liberalismo, que o Estado surge para proteger a propriedade e que, por isso, saímos do estado de natureza. Mas, como era o Estado de Natureza? Na tese rousseauniana, o homem vivia como o “bom selvagem”, sem regras, sem leis, sem normas, em harmonia com a natureza e colhendo dela o que fosse necessário. Amoral, feliz e pleno, o homem viveu assim até adquirir a razão. Ao desenvolver a racionalidade, o homem cria a propriedade privada, que gera o trabalho de uns para com os outros e, conseqüentemente, escravidão e miséria. É a origem da desigualdade entre os homens. O homem encontra-se, a partir de então, corrompido pelo poder e esmagado pela violência. Como escreve o filósofo, os homens encontram-se sob grilhões, submetidos a um falso contrato. Ver citação.... Rousseau afirma, neste sentido, que haveriam dois contratos. O primeiro seria um falso contrato, celebrado apenas por uma parte, por um grupo, que submete os demais aos seus interesses. Portanto, para termos a legitimação do Estado de Direito, necessitamos de um verdadeiro contrato. Este Contrato só existe com o povo reunido sob uma só vontade. Para ele, o Contrato Social verdadeiro é legitimado apenas pelo consentimento unânime, ou seja, de todos.

Para estabelecer o contrato, nós nos associamos, ou seja, nos tornamos sócios. O associado aliena-se totalmente, abdicando sem reservas de todos os seus direitos em favor da comunidade. Por isso, como todos abdicam de seus direitos, ninguém perde. Tornamo-nos iguais, sem privilégios. Desta forma, produzimos no lugar da pessoa particular “um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos são os votos da assembléia e que, por esse mesmo ato ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade”.8 Apesar de abrirmos mão da liberdade num primeiro entendimento, ao integrarmos de forma ativa o todo social, estaremos sendo livres pois, ao obedecermos a lei, obedecemos a nós mesmos, o que significa liberdade. Este entendimento está no fato de que, quem elabora as leis é este corpo coletivo e, por isso, podemos inferir que “a obediência à lei que se estatui

8 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social....

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a si mesma é liberdade”. Em Rousseau este corpo coletivo é soberano, é o próprio Estado que, na concepção do filósofo é o próprio povo.

A QUESTÃO DO DIREITO DE RESISTÊNCIA EM KANT.

Sobre o problema do “direito de resistência” está implícita a questão “pode o povo resistir a uma ação do soberano, justa ou injusta?” Kant trata desta questão na sua obra Teoria e Práxis, escrita na década de 90. a segunda parte desta obra é endereçada à Thomas Hobbes, onde escreve sobre o direito público.

Para Hobbes existem dois pactos: o de união civil e o de submissão civil. Kant opõe-se a esta teoria do duplo pacto. Hobbes considera que o soberano não comete injustiça contra o povo, devido ao pacto de submissão que foi estabelecido. Contrariamente, Kant afirma que o soberano comete injustiça contra o povo ao promulgar uma lei que vá contra a vontade moral. Nesta ótica, do duplo pacto, Thomas Hobbes compreende que a obrigação do soberano é manter a paz e a justiça. Porém, quando ele não consegue cumprir isto que lhe é delegado pelo pacto da submissão civil, o contrato é rompido e o povo tem o “direito de resistir”. Hobbes considera apenas o direito público, ou seja, a partir do acordo de submissão civil, o povo perde ou, melhor dizendo, abdica dos “direitos naturais” dando ao monarca plenos poderes para manter a paz e a justiça. Desta forma, ele está “isento” de uma ação injusta contra o povo. O que não é permitido ao monarca é “quebrar” o contrato estabelecido.

Em resposta a Hobbes é que Kant vai tratar deste “direito de resistência”. Considerando o modelo de contrato social hobbesiano mercantilista, cujo propósito é atender aos interesses da burguesia que visa vender suas mercadorias, Kant critica-o, pois para ele, a finalidade deste contrato social não é trocar mercadorias, mas sim fornecer as bases para a sociedade. É este contrato que constitui a sociedade.

Para trabalhar a questão do contrato social, Kant apresenta um pensar diferente de seus antecessores, Rousseau, Locke e Hobbes. Enquanto para estes parece referir-se a um fato histórico ocorrido, Kant apresenta-o através da diferenciação entre idéia e conceito. Para ele, o contrato não ocorre em um determinado momento histórico mas é sim, uma idéia da razão. Esclarecendo tal questão, veja-se: o conceito reúne algumas sensações e elimina outras. Do conceito recebo várias sensações, juntando algumas e eliminando outras para estabelecer o objeto. É o caso da mesa, por exemplo, que pelo que já vi, toquei, senti, estabeleço um conceito e tenho o objeto. A idéia, entretanto, não precisa de sensações. É impossível juntar sensações para estabelecer as idéias. É o caso de Deus, exemplificando, que não pode ser conceituado pois, como considera Kant, não há sensações D’Ele. Neste sentido é que ele estabelece a “idéia” do Contrato Social. É uma idéia regulativa a partir da qual, povo e monarca, comprometem-se a agir pelo bem comum. Para Kant o legislador não pode dar determinadas leis ao povo que , o próprio povo reunido não faria. É o caso, por exemplo, de que fazer leis autorizando guerras não leva em conta o contrato social, pois o povo não autorizaria. Portanto, diferentemente de Hobbes e Locke, Kant considera que o soberano pode cometer injustiça. Entretanto, ao passo que para Hobbes é lícito o direito de resistência quando o monarca “rompe” o pacto de submissão civil e, para Locke, quando são infringidos os direitos naturais, para Kant, mesmo que haja injustiça por parte do soberano não é permitido ao povo, não lhe é facultado ou legitimado, o direito de

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resistência. Para o pensamento kantiano, o suposto direito de resistência seria negar o próprio direito, ou seja, seria estabelecer legitimamente uma cláusula ou ponto, contraditório e capaz de anular o próprio direito. Conforme nos esclarece o Guia de Estudos de Política9, Kant afirmava claramente no escrito muitas vezes citado Sobre o Dito Comum:

Qualquer resistência contra o supremo poder legislativo, qualquer rebelião destinada a traduzir em ato a insatisfação dos súditos, qualquer tumulto que dá início à rebelião, é o delito maior e mais execrável que pode ser realizado em um Estado, e o que destrói seus fundamentos.

Mesmo que tal fato se desse no caso de um poder que atue injustamente. Entretanto, deve-se entender que, apesar de não ter o direito de resistência, pode o povo agir contra a injustiça do monarca (não que isso seja estabelecido por direito). O povo é autorizado a usar a força quando o monarca é injusto sem, contudo, jamais poder possuir o direito jurídico para tal. Concluímos com a citação do Guia de Estudos de Política, citando Norberto Bobbio10:

Ele de fato acreditava que o cidadão devia obedecer ao Estado de maneira absoluta; mas que ao mesmo tempo tinha o direito de expressar publicamente o próprio pensamento sobre as leis, ou seja, fazer uso público da própria razão. Seria possível dizer-se que, segundo Kant, a qualidade de cidadão nunca deveria ter sido desligada da qualidade, essencial para cada indivíduo, de ser racional. E se ao cidadão enquanto tal cabia o dever de obedecer as leis também injustas para não subverter o Estado, ao ser racional cabia o direito de usar livremente a própria razão para criticar aquelas leis às quais também tinha obedecido, e fazendo isso, reformar o Estado. /.../ Deve existir, em qualquer comunidade, uma obediência, através do mecanismo da constituição, às leis coercitivas e, ao mesmo tempo, deve existir um espírito de liberdade, segundo o qual cada um, no que diz respeito aos deveres gerais da humanidade, exige ser racionalmente convencido de que essa coação é legítima, para que não chegue a estar em contradição consigo mesmo.

OS CONTRATUALISTAS

- A RELAÇÃO ENTRE DIREITO NATURAL E POSITIVO EM HOBBES E LOCKE E SUA IMPORTÂNCIA PARA O LIBERALISMO.

- O DIREITO DE RESISTÊNCIA DOS SÚDITOS EM HOBBES E LOCKE.

Tanto Locke quanto Hobbes reconhecem o Direito Natural no homem e o Estado de Natureza. Entretanto, diferentemente de Hobbes, John Locke considera que, no estado de natureza os homens viviam em sociedade fraternalmente, em boa relação. Portadores dos direitos naturais, os homens resolvem "assinar o contrato" para positivar, manter estes direitos. É uma convenção, não por conflito, mas para a manutenção e proteção dos direitos naturais. O Estado, neste sentido, é um amparo aos direitos naturais e deve preservá-los. Se, contrariando o contrato, atentar contra esses direitos, mesmo que seja o monarca, o súdito tem legítimo direito à

9 POLÍTICA, Guias de Estudo 6, 7 e 8. Instituto de Humanidades, p. 24.10 Idem, ibid.

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revolução. Locke é um monarquista constitucionalista, que defende o direito à propriedade e considera o Estado como protetor deste direito, mas não usurpador. Ele contraria a tese de Robert Filmer de que o monarca é instituído divinamente.

Para Hobbes, no estado de natureza o homem vivia em conflito. Sua visão de homem é resumida na expressão "o homem lobo do homem" - homo homini lupus. Partilha da visão de homem como egoísta racional de Maquiavel e compreende que o Estado surge com um mal menor para evitar um mal maior. Os homens estabelecem o contrato abdicando de seus direitos para estabelecer o soberano, o Leviatã. É um pacto de submissão civil, onde renunciamos a alguns direitos em favor de um terceiro que fica excluído da sociedade, o soberano. Na visão de Hobbes, o soberano cuida da esfera privada. O soberano não deve agir com democracia pois, só assim manterá a ordem. Ele - o soberano - deve manter as condições para que o cidadão possa cuidar da esfera privada. Entende Hobbes (e aqui está sua contribuição para o pensamento moderno) um estado de direito que, associado ao liberalismo econômico dá as bases para a sociedade contratualista. O Estado em Hobbes é anti-liberal politicamente para que se garanta o liberalismo econômico.

Quanto à questão do direito de resistência para estes pensadores, no caso de Locke, a revolta do súdito é permitida quando o Estado não garante os seus direitos naturais pois, desta forma, há um rompimento do contrato. Já em Hobbes, a revolta é justificada quando o Estado se torna ineficiente, não cumprindo seu papel de controlar o egoísmo do homem e privá-lo do seu conflito natural, impedindo a prosperidade econômica e comprometendo a vida do cidadão. São duas visões pautadas em bases diferentes mas que, em seu contexto, influenciarão o pensamento liberal que considerará a influência do Estado como a mínima possível. Neste sentido, Hobbes e Locke compactuam com certeza de uma mesma visão: garantir o direito de revolta quando está em jogo o comprometimento do liberalismo econômico.

O FETICHISMO DAS MERCADORIAS EM KARL MARX.

Marx trata sobre o fetiche das mercadorias no livro I do Capital. Este assunto está intimamente ligado à Teoria do valor-trabalho, da qual Marx vem a ser o último pensador a adotá-la. A teoria citada, abandonada por volta de 1870, apresenta o valor de uso e o valor de troca que uma mercadoria traz. O valor de uso está relacionado à utilidade que a mercadoria tem para as pessoas. É um valor natural da própria coisa. Não se refere a uma produção social. Pertence à natureza da coisa. Por exemplo: o peixe, o vinho... Já o valor de troca, está relacionado com o trabalho. É uma produção social. Tanto Adam Smith, David Ricardo e Marx, acreditavam que o valor de troca é determinado pela equivalência de tempo gasto na produção de ambos os bens que serão trocados. Ou seja, o tempo gasto, exigido na produção de uma garrafa de vinho seria equivalente ao tempo exigido para se pescar dois quilos de peixe. Entretanto, é comum acordo que ambos os valores, de uso e de troca, não apresentam entre si nenhuma relação, nem mesmo inversa. Esse “tempo” entretanto, não é individual, mas coletivo e abstrato. O que ocorre é que, a tecnologia vem reduzindo o tempo de trabalho e aumentando a produção o que, conseqüentemente, baixa o preço e aumenta o consumo.

Em sua análise no Capital, Marx parte da célula que é a mercadoria e demonstra o desabrochar do capitalismo a partir desta. Extremamente racionalista, herança hegeliana, o Marx do Capital sofre uma transformação em sua conceituação. A palavra ideologia lhe permite desvincular-se da “alienação” do hegelianismo.

Deixando de falar do ser alienado, coisificado, ele passa a tratar de uma alteração da consciência, de uma ideologização. É o que pode ser considerado “adulteração da consciência”. É isto que Marx considera que ocorre com a ideologia capitalista, que nos faz ver as coisas de forma enganosa, como aparência, ilusão, ou seja, como elas não são. Marx considera que isto ocorre na consciência do trabalhador, isto é, por um processo de ideologização que ela sofre. Pelo capitalismo – sua ideologia – pensamos que o valor de troca é inerente ao produto. Na realidade, o valor de troca é determinado pelo trabalho. Este valor é uma relação social entre os homens e, este valor não é inerente ao produto. A ideologia capitalista nos faz pensar o contrário.

O que Marx considera como o fetichismo das mercadorias é atribuir a esta um valor que não lhe é próprio. É o caso do “valor de troca”, que não é propriedade da coisa. O que acontece de fato, na análise marxista, é o caso de uma propriedade social ser vista como propriedade da mercadoria quando, na realidade, ela é injetada na mercadoria. A ideologia esconde o fato de que essa propriedade social foi injetada nas coisas e não lhe é inerente. Para ele, a relação entre os homens é que colocou “sentido nas coisas”. Portanto, na conclusão marxiana, a desideologização é o esclarecimento da consciência do trabalhador.

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• “O Fim da Violência”. (“The End Of Violence”, CIBY PICTURES / ROAD MOVIES / KINTOP PICTURES, E.U.A., 1997, 122 min.) Direção: Wim Wenders. Com: Bill Pullman, Andie MacDowell e Gabriel Byrne. Mike Max (Bill Pullman) é um rico e famoso produtor de filmes de ação de Hollywood. Casado com a entediada e ambiciosa Paige (Andie MacDowell), Mike está prestes a ser deixado pela esposa quando recebe um arquivo do FBI em seu e-mail e, pouco tempo depois, é seqüestrado. No dia seguinte, porém, os corpos dos dois raptores surgem decaptados. Enquanto a polícia se encarrega de descobrir se Mike é vítima ou assassino neste caso, do outro lado da cidade, Ray Bering (Gabriel Byrne) – cientista responsável pelo Sistema Secreto de Vigilância Governamental do Observatório Griffith Park – tenta recuperar as imagens semi-destruídas da fita onde gravou parte do crime... E descobre que ele também está sendo vigiado!

• “O Grande Ditador”. (E.U.A., 1940, United Artists). Direção: Charles Chaplin. Com: Charles Chaplin e Paulette Goddard. Charles Chaplin, através do humor e da emoção, reflete sobre o poder totalitário do Estado conduzido por Henkyl, uma paródia de Hitler. Crítica clara à figura do ditador alemão, pode representar uma contramão do processo introduzido pelos nazistas na produção de filmes ideológicos para fomentar e disseminar o regime e a idéia do Reich.

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