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Bâ, Amadou Hampâté. “Amkoullel, o menino fula”. São Paulo. Pallas Athena Casa das Áfricas, 2003

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Livro Amkoullel, o Menino Fula. Scaneado a partir da xerox do livro. O livro compila recordações de infância e juventude do autor, com impressionante riqueza de detalhes e com a deliciosa fluência e simplicidade que caracteriza os narradores orais. Hampâté Bâ cresceu no Mali, e sua visão de mundo é marcada pelo Islamismo predominante na região. A obra revela uma África desconhecida, sendo ilustrada com cartões postais e belíssimas imagens daquele continente em início do século 20.

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  • 1. AMKOULLEL, O MENINO FULA( ... )Mi hli yooyooo, mi hli.'Por que no fiquei surdapara no ouvir uma notcia to terrvel,uma notcia que como uma faca afiadaarranca minhas sete vsceras?Mi hli yooyooo, mi hli!, sbado de infortnio,iluminado pot um sol de dor!6 sbado de repetio!l6Sua noite vai me cobrir com uma sombrato densa quanto a escurido das entranhas da terraonde repousa minha Fnta!( ... )Seu lamento, entremeado dos longos gritos de desespero Mihiyooyooo ... ,era de cortar o corao. O velho Tierno Kounta, petrificado pela notcia, acaboutendo uma sncope. Meu pai tentou reanim-lo, mas em vo."Naaba, quem bateu em meu mestre?" perguntei. "Ningum lhe bateu, eleest doente."Chamado com urgncia, o. ajudante do mdico, Baba Tabour, examinouTierno Kounta e declarou que no havia ocorrido urna parada cardaca. Com urnamassagem respiratria, cnseguiu reanim-lo. Mas no momento em que comeavaa voltar a si, Tierho Kounta foi tomado por uma violenta contrao. Um som desarticuladoescapou de seu peito. Suspirou com fora e lanou um jato vermelho desangue pela boca. Fiquei com um medo terrvel! Era a primeira vez que via algumvomitar sangue.O ancio foi transportado para a casa da primeira esposa, Gabdo Couro.Deitaram-no em seu tara, cama de madeira encimada por um colcho de palha, e ocobriram com uma manta branca. Ouvi minha me dizer a sua co-esposa DiarawAguibou: "Tierno Kounta no sobreviver filha; ele a amava demais. A notcia .partiu-lhe o corao".Toda a famlia rodeava o moribundo. Ningum tinha me afastado. Eu mecompadecia do estado de meu mestre, que achava bem triste, mas, bem no fundo,16. Sbado de repetio: a tradio diz que as coisas que acontecem num sbado em geralse repetem.144O EXLIOminha nafs, minha alma secreta, sussurrava docemente: "Daqui por diante voc.estar livre para brincar todo dia com Sirman e seus outros companheiros. A doena. de Tierno Kounta significa liberdade para voc ... "Trouxeram Danfo Sin. Ele espalhou pelo cho na cabeceira do doente umacamada de areia fina e nela imprimiu signos que estudou por muito tempo. Mordiscando o lbio inferior, balanou pensativo a cabea e olhou longamente meupai; ento se levantou e o levou para fora. Passado um tempo, Batoma veio dizerdiscretamente a minha me:" Na aba disse que Danfo Sin no d mais do que duassemanas de vida a Tierno Kounta, trs no mximo; mas preciso esconder esta mnotcia de suas mulheres".Minha me esforou-se por acalmar as esposas de Tierno Kounta com palavrasde conforto e esperana.Durante algum tempo as coisas prosseguiram normalmente na casa, sementusiasmo. As mulheres de Tierno Kounta, para melhor dar assistncia ao marido,pararam de chorar. Elas esqueceram um pouco Fanta, que podia, enfim, dormirtranqila em seu tmulo. No se diz que as lgrimas e os gritos impedem ao defuntodormir em paz e estorvam sua asceno, lembrando-lhe os apegos e emoes dos. _ quais tem de se liberar? Por isso que se aconselha, entre os muulmanos, a norezar com lgrimas para algum que faleceu, mas com um corao cheio de paz,amor e confiana.Os cuidados e remdios dispensados por Danfo Sin no surtiram efeito.Meu pai foi casa. do comandante de Courcelles para inform-lo do estado de sadede seu companheiro. "Um curandeiro branco deve passar amarih por Buguni",disse o comandante. "Pedirei que v visitar e tratar seu doente." No dia seguinte, nofinal da manh, o branco se apresentou em nossa casa. Para receb-lo, levantamose ajeitamos Tierno Kour.ta, que sentamos na cama com as costas ap~iadas em almofadas,sustentado pela mulher.O "curandeiro branco" era o segundo toubab que eu podia observar deperto. Seus gestos, que em nada se pareciam aos de nossos curandeiros tradicionais,me encheram de espanto. Primeiro examinou as mos, os olhos, a lngua, as orelhase os ps do doente. Em seguida, colocou-lhe uma toalha nas costas. Pousou a moesquerda bem aberta sobre a toalha e com o indicador direito dobrado batia de levesobre a mo, ao mesmo tempo em que a deslocava em todos os sentidos sobre ascostas do'doente. Pediu a Tierno Koui que respirasse fundo muitas vezes e mandou-o tossir. Escutou atento. A seguir deitou-o de costas, apalpou-lhe o ventre e o fezdobrar e desdobrar as pernas vrias vezes.145

2. A M 1 i 11 I H i i I 11 I, Ae foi I I I I I I I >(>' | IMM rlirfluilit ilo "subtenente" AbdelkaderMiidciiilirt ' | lithftiti Ill ,i lUimnniIIng, c devia permanecer no segundo regi-I I X M I I M IIM mlllh nln ! Iitilit |iiiir |)Oit(!i'iiV acontecer ao primeiro-sargento! Assim, orw min .|ii. havia I I I M I I I I I I linilnlmen te e maltratado vontade era agora subtenente,! nlnilrt |nii i Inii MON qiuidros franceses, enquanto ele, Fadiala Keita, continuava ailr.li Ilmlr rnrla.4 c pacotes s mulheres! E continuava primeiro-sargento de artilha-li i , quer dizer, duplamente inferior a Abdelkader, em graduao e no corpo aque pertencia.Muito contrariado, deixou o local antes do fim da reunio e foi direto para ocorreio buscar a correspondncia. Eu caminhava atrs dele. Ele estava to transtornado,que o encarregado de receber a correspondncia me perguntou, discretamente,se o primeiro-sargento-"no tinha ficado louco de repente". De l, foi para apraa da cidade onde costumvamos distribuir o correio instalados numa mesa.Com um gesto brusco, o primeiro-sargento me jogou os pacotes de cartas: "Chame!..." Comecei a chamar em voz alta os nomes escritos nos envelopes: "AminataTraor... Kadia Bor... Naa Diana... Koumba So..." Cada vez mais irritado, elebateu na mesa vociferando: "Voc me enche o sa... com essa voz fininha que mefura os tmpanos..." Abaixei o tom de voz, esf orando-me em torn-la o mais gravepossvel: "DenmKon... AlssataDiallo... KoumbaCoulibaly...""E agora est me gozando, falando neste tom cavernoso! Saia daqui! V parao inferno! No quero mais v-lo aqui at a semana que vem!" Para grande surpresadas mulheres, pegou todas as cartas, inclusive as que j tinham sido entregues asuas destinatrias. "Suspendo a distribuio da correspondncia at a semana quevem", exclamou. "Eu sou o primeiro-sargento e fao o que bem entendo!"As mulheres entreolharam-se surpresas! Ora! Que m notcia poderia terrecebido o primeiro-sargento para estar to raivoso contra todo mundo? Devia seralgo bem' desagradvel, para fazer mudar o humor de um homem normalmenteto paciente e jovial com elas!Uma semana antes da chegada a Kati do subtenente Abdelkader Mademba,o primeiro-sargento foi se abrir com meu pai, que considerava um amigo e bomconselheiro. Temia que o subtenente Abdelkader lhe fizesse sofrer represlias devidoao tratamento que lhe infligira, porque, se fosse o caso, Fadiala Keita no poderiaficar sem reagir e haveria um drama.Meu pai levou-o casa do sargento-brigada Mara Diallo, responsvel pelo.campo, a quem exps o problema. Quando acabou de falar, Fadiala interveio: "Meusargento-brigada, dou minha palavra de malinqu descendente deSundiata Keitaao homem fula que voc , que se porventura Abdelkader Mademba tentar me. 3 0 2K A T I , A C I D A D E M I L I T ARfazer pagar a punio que lhe infligi, eu o matarei e depois me suicidarei. Juro pelasalmas de meus ancestrais, a comear pelo imperador Soundiata".O sargento-brigada Mara Diallo assegurou a Fadiala que iria refletir sobre aquesto e o mandou de volta para casa. Em seguida, conversou Um longo tempocom meu pai. Afinal, este o aconselhou a intervir junto a seus superiores em favordo primeiro-sargento, expondo-lhes os perigos de um confronto entre os dois homens.O sargento-brigada passou a questo para o capito de Lavale, que julgoumelhor informar o prprio coronel Molard. A fim de evitar qualquer incidente,Molard decidiu que, durante a estada do subtenente Abdelkader Mademba, o primeiro-sargento Fadiala Keita seria enviado em misso de recrutamento e treinamentoa Uagadugu (atual Burkina Fasso).Assim que o primeiro-sargento recebeu a notcia, recuperou o bom humor epediu perdo a todos e todas que havia injustamente maltratado durante sua crise:"Fiquei meio louco", dizia para se desculpar. Ele partiu para Uagadugu via Bamako,no mesmo trem do qual acabara de descer vindo de Dakar o subtenente AbdelkaderMademba. Este ficou uma semana em Kati, depois foi para S.egu organizar seusnegcios e em seguida dirigiu-se a Sansanding onde deveria passar o resto dalicena com a famlia. O primeiro-sargento Fadiala Keita voltou a Kati para treinarseu contingente de recrutas.Como o trmino do perodo de treinamento coincidia com o retorno deAbdelkader, desta vez o primeiro-sargento foi enviado a Dori (atual Burkina Fasso),em nova misso de recrutamento. Assim, Abdelkader retornou a Kati durante suaausncia. Trs dias depois, partia para juntar-se a seu regimento e ir para a frente,onde a guerra fervia. A Frana estava em apuros. Abdelkader, valento inveterado,era voluntrio em todas as misses mais arriscadas.Uma vez mais, q primeiro-sargento Fadiala Keita trouxe seu contingente denovos recrutas a Kati e retomou tranquilamente sua dupla funo de instrutor e devagomestre, com este vosso servidor como auxiliar. Todo mundo estava aliviado. Opequeno jogo de vaivm tinha funcionado s mil maravilhas e nada parecia poderreunir os dois homens por um bom tempo. Prosseguimos com nossa rotinazinha.No podamos prever a virada dos acontecimentos na frica com a chegada,em fevereiro de 1918, de Blaise Diagne, nico deputado negro do Parlamento francs(nascido em Gor, ele era cidado francs com plenos direitos), encarregado pelogoverno francs de promover, na frica do oeste, um grande recrutamento detropas negras, de que a Frana precisava desesperadamente. O governo francs tinha pedido ao ento governador geral da A.O.F., JoostVan Vollenhoven, que procedesse a um intenso recrutamento de no mnimo setenta3 0 3