Christian jacq juiz do egito - volume i - a pirâmide assassinada (252 pg)

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A PIRMIDE ASSASSINADA

13A PIRMIDE ASSASSINADA

Ele juiz numa provncia do Sul; ela mdica em Mnfis, a grande cidade do Norte. Paser jamais deveria ter encontrado a bela Nfret.Mas Paser chamado a Mnfis, cidade prxima da grande pirmide de Gize. Em conformidade com as profecias de um velho sbio, o crime espalhou-se, uma monstruosa conspirao est em curso para destronar Ramss, o Grande. Nada a poder deter. Nada, a no ser um gro de areia: o olhar atento de um juiz subalterno que se recusa a assinar um documento administrativo que no entende.Com a ajuda do seu amigo de infncia Suti, que foge da escola de escribas para viver rodeado de mulheres e trilhar o caminho dos heris, o juiz Paser parte em busca da verdade.No caminho encontra a bela Nfret, vtima do dio do mdico-chefe do reino. Um amor impossvel, uma tentativa de golpe de Estado, crimes, o triunfo da mentira: no ser este um fardo pesado de mais para os ombros de um juiz subalterno?

CHRISTIANJACQ - O JUIZ DO EGITO

A PIRMIDE ASSASSINADA

Romance

Traduo de ANA MARIA CHAVES e HELENA CANTO E MELO

BERTRAND EDITORAVENDA NOVA 1994Ttulo Original: LA PYRAMIDE ASSASSINE Christian Jacq, 1993Capa de Fernando FelgueirasTodos os direitos para a publicao desta obra em Portugal reservados por Bertrand Editora, Lda.Fotocomposio e montagem:Atelier de Imagem, Publicaes e Artes Grficas, Lda.Impresso e acabamento-I A G Artes Grficas, S.A.Depsito Legal 76 350/94Acabou de imprimir-se em Abril de 1994 ISBN: 972-25-0835-0

Aconteceu o que os antepassados vaticinaram. O crime propagou-se, a violncia invadiu os coraes, a infelicidade assola o pas, o sangue corre, o ladro enriquece, o sorriso apagou-se, os segredos foram divulgados, as rvores arrancadas, a pirmide violada, o mundo desceu to baixo que um pequeno nmero de loucos se apoderou do trono, e os juizes so perseguidos.

Mas lembrem-se do respeito Regra, da justa sucesso dos dias, dos dias felizes em que os homens construam pirmides e cultivavam pomares para os deuses, dessa bendita poca em que uma simples esteira bastava para as necessidades de todos e todos eram felizes.

Vaticnios do sbio Ipou-Our.

Vale dos Reis, Vale das Rainhas Vale dos Nobres, Deir el-Bahari Ramesseum, Medinet-Habu

PRLOGO

Uma noite sem lua envolvia a grande pirmide num manto de trevas. Uma raposa das areias introduziu-se furtivamente no cemitrio dos Nobres que, no alm, continuavam a venerar o fara.

O monumento onde apenas Ramss, o Grande, entrava uma vez por ano a fim de prestar homenagem a Quops, seu glorioso antepassado, era vigiado por guardas; corria o boato de que a mmia do pai da pirmide mais alta estava encerrada num sarcfago de ouro coberto de riquezas incalculveis. Mas quem ousaria aproximar-se de tesouro to bem guardado? Ningum, excepo do soberano, podia transpor a porta de pedra e encontrar o caminho certo no labirinto do gigantesco monumento. O corpo de elite encarregado de o proteger disparava o arco sem aviso; vrias flechas trespassariam o imprudente ou o curioso.

O reinado de Ramss era feliz; prspero e em paz, o Egipto resplandecia aos olhos do mundo. O fara era o mensageiro da luz, os cortesos serviam-no com respeito, o povo louvava o seu nome.

Os cinco conjurados saram juntos de uma cabana de operrios onde se haviam escondido durante o dia; repetiram o plano vezes sem conta para terem a certeza de no deixarem escapar nenhum pormenor. Se o concretizassem, tornar-se-iam mais cedo ou mais tarde donos do pas e imprimir-lhe-iam o seu cunho.

Vestidos com uma tnica de linho grosseiro, atravessaram o planalto de Gize, mas no sem lanarem olhares febris grande pirmide.

Atacar os guardas seria uma loucura; antes deles, j outros haviam tentado apoderar-se do tesouro sem o conseguirem.

Um ms antes, a grande esfinge fora libertada da camada de areia acumulada por vrias tempestades. O gigante, de olhos permanentemente erguidos para o cu, era alvo de menos cuidada proteco. O seu nome de esttua viva e o terror que inspirava eram suficientes para afastar os profanos. A esfinge, fara de corpo de leo esculpido na rocha calcria em tempos que no cabem na memria, fazia nascer o Sol e conhecia os segredos do Universo. A sua guarda de honra era formada por cinco veteranos. Dois deles, encostados parte de fora do muro, dormiam a sono solto. No veriam nem ouviriam nada.

O mais gil dos conjurados escalou o muro; resoluto e silencioso, estrangulou o soldado que dormia perto do flanco direito da fera de pedra, aniquilando de seguida o companheiro, que se encontrava perto do quarto dianteiro esquerdo do animal.

Os outros conjurados juntaram-se a ele. Eliminar o terceiro veterano no seria to fcil. O chefe dos guardas estava postado frente esteia de Tutmsis IV, erguida entre as patas dianteiras da esfinge, para lembrar aos homens que esse fara lhe devia o seu reinado. Armado com uma lana e um punhal, o soldado defender-se-ia.

Um dos conjurados despiu a tnica.

Nua, avanou para o guarda.

Surpreso, ele fitou a apario. No seria aquela mulher um dos demnios da noite que vagueavam pelas pirmides para roubar as almas? Ela aproximou-se sorrindo. Desnorteado, o veterano levantou-se agitando a lana; o brao tremia-lhe. Ela parou.

Nota: Tutmsis IV (1412-1402) adormeceu junto da esfinge depois de uma caada no deserto. Em sonhos, a esfinge falou com ele: se a libertasse da areia que a cobria, tornar-se-ia rei. Ambas as partes cumpriram o prometido. A esteia ainda l permanece, dando testemunho do acontecimento. (N. do A.)Para trs, fantasma, arreda-te daqui!

No te vou fazer mal. Deixa-me acariciar-te.

O olhar do chefe da guarda estava preso ao corpo nu, quela mancha branca na escurido. Hipnotizado, deu um passo em frente.

Quando a corda se enrolou volta do seu pescoo, o veterano largou a lana, caiu de joelhos, tentando em vo gritar, e desfaleceu.

O caminho est livre.

Vou preparar as candeias.

Os cinco conjurados, em frente esteia, consultaram pela ltima vez o plano e encorajaram-se mutuamente a continuar, apesar do medo que os atormentava. Deslocaram a esteia e contemplaram o vaso selado que assinalava a localizao da boca do inferno, da porta das entranhas da terra.

Afinal, no era lenda!

Vejamos se existe mesmo uma passagem.

Por baixo do vaso estava uma laje com uma argola. Eram precisos quatro para a levantar.

Um corredor estreito, muito baixo e quase a pique, mergulhava nas profundezas.

Depressa, as candeias!

Deitaram o leo de pedra, muito gorduroso e fcil de inflamar em taas de dolerite.

O fara interditara o seu uso e a sua venda pois o fumo negro que resultava da combusto fazia perigar a sade dos artesos encarregados da decorao de templos e sepulturas, e sujava os tectos e as paredes. Os sbios afirmavam que este petrleo (Embora conhecessem o petrleo, os Egpcios no aprovavam o seu uso), como lhe chamavam os brbaros, era uma substncia nociva e perigosa, uma exsudao maligna das pedras, carregada de miasmas. Mas os conjurados no se preocuparam com isso.

Dobrados em dois, batendo muitas vezes com a cabea no tecto de calcrio, encetaram uma marcha forada atravs da passagem estreita, em direco parte subterrnea da grande pirmide. Iam calados; memria vinha-lhes aquela fbula sinistra segundo a qual um esprito partia o pescoo a quem tentasse violar o tmulo de Quops. Quem sabe se aquele subterrneo no os desviaria do seu objectivo? Circulavam mapas falsos a fim de enganar eventuais ladres; seria aquele que possuam o correcto?

Chocaram com uma parede de pedra que atacaram com cinzis; por sorte, os blocos, pouco pesados, giraram sobre si mesmos. Os conjurados penetraram numa grande cmara de terra batida, com trs metros e cinquenta de altura por catorze de comprimento e oito de largura. No centro, havia um poo.

A cmara baixa... Estamos na grande pirmide!

Tinham conseguido.

O corredor, esquecido h tantas geraes, conduzia da esfinge ao gigantesco monumento de Quops cuja primeira sala se situava trinta metros abaixo da base. Aqui, nesta matriz, evocao do seio da terra-me, tinham sido praticados os primeiros ritos de ressurreio.

Nota: Uma das pedras mais duras que existem, e que os Egpcios sabiam trabalhar sem a partir. (N. do A)Nota: A existncia deste corredor, afirmada por fontes antigas, permanece uma mera hiptese, pois at data nenhuma escavao foi levada a cabo para o descobrir. (N. do A.)

Agora, tinham de descer por um poo que conduzia ao interior da massa rochosa e desembocava no corredor que comeava do outro lado das trs buchas de granito.

O mais gil trepou agarrando-se s salincias da rocha e apoiando-se com os ps; quando chegou l acima, atirou a corda que levava amarrada cintura. Um dos conjurados quase desmaiou com falta de ar; os companheiros levaram-no at grande galeria, onde se recomps.

A imponncia do local deixou-os fascinados. Que mestre de obras teria sido to louco a ponto de construir tal dispositivo constitudo por sete socalcos de pedra? Com quarenta e sete metros de comprimento e oito e meio de altura, a grande galeria, obra nicapelas suas dimenses e localizao mesmo no corao da pirmide, desafiava o tempo. Os mestres de obras de Ramss haviam afirmado que jamais arquitecto algum realizaria proeza semelhante.

Um dos conjurados, intimidado, pensou em desistir; o chefe da expedio obrigou-o a continuar empurrando-o violentamente para a frente. Desistir to perto do fim teria sido estpido; at agora, podiam felicitar-se pelo rigor do plano traado. Contudo, uma dvida permanecia: teriam as grades de pedra, colocadas entre a extremidade superior da grande galeria e o incio do corredor de acesso cmara do rei, sido baixadas? Se assim no fosse, no conseguiriam contornar o obstculo e teriam de regressar derrotados.

O caminho est livre.

Ameaadoras, as cavidades destinadas aos enormes blocos estavam vazias. Os cinco conjurados tiveram de se curvar para conseguirem entrar na cmara do rei, cujo tecto era formado por nove blocos de granito de quatrocentas toneladas cada um. Com seis metros de altura, a sala protegia o corao do imprio. O sarcfago do fara repousava num cho de prata que mantinha a pureza do local.

Hesitaram.

At agora, haviam-se comportado como exploradores em busca de um pas desconhecido. certo que tinham cometido trs crimes e teriam de responder por eles perante o tribunal do outro mundo, mas no tinham eles agido para o bem do pas e do povo ao prepararem o destronamento de um tirano? Se abrissem o sarcfago, se o despojassem dos seus tesouros, estariam a violar a eternidade, no a de um homem mumificado, mas a de um deus presente no seu corpo de luz. Cortariam o ltimo lao com uma civilizao milenria com o objectivo de fazer surgir um novo mundo que Ramss jamais aceitaria.

Tinham vontade de fugir embora experimentassem uma sensao de bem-estar. O ar chegava-lhes por dois canais escavados nas paredes norte e sul da pirmide. Uma estranha energia emanava do lajedo insuflando-lhes uma fora desconhecida.

Ento era assim que o fara se regenerava, absorvendo a fora nascida da pedra e da forma do edifcio!

O tempo esgota-se.

Vamos embora.

Nem pensar.

Aproximaram-se primeiro dois, depois o terceiro, depois os dois ltimos. Juntos, levantaram a tampa do sarcfago e pousaram-na no cho.

Uma mmia luminosa... uma mmia coberta de ouro, de prata e de lpis-lazli, to nobre que os larpios no conseguiram manter os olhos sobre ela. Com um grito enraivecido, o chefe dos conjurados arrancou a mscara de ouro.

Os cmplices apoderaram-se do colar e do escaravelho do mesmo metal, que estavam pousados sobre o corao, dos amuletos de lpis-lazli e do enx de ferro celeste, da talhadeira de marceneiro que servia para abrir a boca e os olhos no outro mundo. Estas maravilhas quase lhes pareceram irrisrias ao olharem para o cvado em ouro que simbolizava a lei eterna pela qual o fara era o nico responsvel, e sobretudo para o pequeno estojo em forma de cauda de andorinha.

L dentro, encontrava-se o testamento dos deuses.

Nesse texto, o fara recebia o Egipto como herana e devia mant-lo feliz e prspero. Assim que fizesse cinquenta anos seria obrigado a mostr-lo corte e ao povo, como prova da sua legitimidade. Impossibilitado de apresentar o documento, mais cedo ou mais tarde seria obrigado a abdicar.

Em breve, desgraas e calamidades se abateriam sobre o pas. Ao violar o santurio da pirmide, os conjurados perturbavam a principal central de energia e inquietavam a emisso do ka, poder imaterial que animava todas as formas de vida.

Os ladres apossaram-se de uma arca com lingotes de ferro celeste, um metal to raro e to precioso quanto o ouro. Serviria para concluir a trama.

Aos poucos, a injustia expandir-se-ia pelas provncias e as vozes elevar-se-iam contra o fara, numa torrente avassaladora.

Agora s tinham de sair da grande pirmide, esconder o saque e tecer a teia.

Antes de se separarem, fizeram um juramento: quem se lhes atravessasse no caminho seria eliminado. Era este o preo da conquista do poder.

CAPTULO 1

Depois de uma longa carreira dedicada arte de curar, Branir gozava de uma reforma tranquila na sua casa em Mnfis.

Robusto e de ombros largos, o velho mdico ostentava uma elegante cabeleira prateada que coroava um rosto severo de onde transpareciam a bondade e a dedicao. A sua distino impunha-se tanto aos poderosos como aos humildes, e no havia memria de algum lhe ter faltado ao respeito.

Filho de um fabricante de perucas, Branir havia deixado a casa paterna para se tornar escultor, pintor e desenhador; um dos mestres de obras do fara chamara-o para trabalhar no templo de Carnaque. Durante um banquete da confraria, um talhador de pedra sentiu-se mal e Branir magnetizou-o por instinto, arrancando-o a uma morte certa. O servio de sade do templo no desprezou este dom to precioso e Branir formara-se em contacto com mestres reputados, antes de abrir o seu prprio gabinete. Insensvel aos pedidos da corte, indiferente s honrarias, vivia apenas para curar.

Contudo, se deixara a grande cidade do Norte para se dirigir a uma pequena aldeia da regio de Tebas, no fora por razes profissionais. Tinha uma outra misso a cumprir. Uma misso to delicada que parecia destinada ao insucesso; mas no desistiria enquanto no tivesse tentado tudo.

Comovido, reencontrou a sua aldeia escondida num palmeiral. Branir mandou parar a liteira perto de um tufo de tamargueirascujos ramos tocavam o solo. A atmosfera e o sol eram suaves; observou os camponeses enquanto ouvia a melodia sada de uma flauta.

Um velho e dois jovens trabalhavam a terra com enxadas nas altas culturas que acabavam de irrigar; Branir pensava na estao em que o lodo, trazido pela enchente, acolhia as sementes que as manadas de porcos e carneiros enterravam. A natureza oferecia ao Egipto riquezas inestimveis que o trabalho dos homens preservava; dia aps dia, uma eternidade feliz vivia nos campos do pas amado pelos deuses.

Branir continuou o seu caminho. entrada da aldeia cruzou-se com uma parelha de bois; um era preto, o outro branco com malhas castanhas. Sob o jugo de madeira colocado junto base dos cornos, avanavam tranquilamente.

Em frente de uma das casas de terra, um homem acocorado ordenhava uma vaca que tinha as patas de trs amarradas. O seu ajudante, um rapazote, deitava o leite num jarro.

Comovido, Branir recordou-se da manada de vacas que tivera; chamavam-se elas bom conselho, pomba, gua do sol ou feliz inundao. Feliz daquele que a possua: a vaca encarnava a beleza e a brandura. Aos olhos de um Egpcio no existia animal mais sedutor; tal como ele, as vacas, com as suas grandes orelhas, recebiam a msica das estrelas sob a proteco da deusa Hathor. Que dia maravilhoso, cantava frequentemente o vaqueiro, o cu -me favorvel e o meu trabalho doce como o mel.

Por vezes, o vigilante dos campos chamava-o ateno pedindo-lhe que se apressasse e deixasse o gado avanar em vez de se distrair com ninharias. E, como era habitual, as vacas seguiam o seu caminho sem apressar a marcha. O velho mdico quase tinha esquecido aquelas cenas simples, aquela existncia sem surpresas e aquela serenidade do quotidiano onde o homem era apenas um olhar entre outros; os gestos repetiam-se, sculo aps sculo, a cheia e a baixa ritmavam as geraes.

Nota: Este cntico e os nomes das vacas esto inscritos nos baixos-relevos dos tmulos do Antigo Imprio. (N. do A.)

De repente, uma voz forte quebrou a tranquilidade da aldeia.

O promotor de justia chamava a populao para o tribunal, enquanto o responsvel pelas contendas, encarregado de manter a segurana e de fazer respeitar a ordem, agarrava uma mulher que clamava a sua inocncia. O tribunal estava instalado sombra de um sicmoro; era presidido por Paser, um jovem de vinte e um anos em quem os ancios depositavam a maior confiana. De uma maneira geral, os ilustres designavam pessoas mais maduras, dotadas de slida experincia, responsveis nas decises sobre os seus bens, se os tivessem, e sobre as suas pessoas, se nada possussem; do mesmo modo, os candidatos a esta funo, ainda que de pequeno juiz de provncia, no eram muitos. Os magistrados apanhados em falta eram punidos mais severamente do que um assassino; a prtica justa da justia assim o exigia.

Paser no tivera escolha; graas sua fora de carcter e ao seu gosto pela integridade, fora eleito unanimemente pelo conselho dos ancios. Apesar de ainda muito jovem, o juiz dava provas de competncia ao estudar os processos com o maior cuidado.

Bastante alto, de acentuada magreza, cabelos castanhos, rosto largo e alto, olhos verdes acastanhados e olhar vivo, Pazer impressionava pelo seu ar irredutivelmente srio: nem a clera, nem o choro, nem a seduo o perturbavam. Ouvia, investigava, procurava, e s formava o seu juzo aps longas e pacientes investigaes. s vezes, as pessoas da aldeia espantavam-se com tamanho rigor, mas felicitavam-no pelo seu amor verdade e pela sua capacidade de apaziguar os conflitos. Muitos temiam-no, sabendo que exclua qualquer concertao e se mostrava pouco inclinado para a indulgncia; mas nenhuma das suas decises fora alguma vez posta em causa.

De ambos os lados de Paser encontravam-se sentados oito jurados: o alvazir e respectiva esposa, dois agricultores, dois artesos, uma viva de idade avanada e o encarregado da irrigao. Todos tinham mais de cinquenta anos.

O juiz deu por aberta a sesso invocando Mat, a deusa que encarnava a Regra qual a justia dos homens se devia sujeitar; depois leu o auto de acusao contra a jovem mulher que o responsvel pelas contendas mantinha agarrada frente ao tribunal. Uma das suas amigas acusava-a de ter roubado a enxada do marido. Paser ordenou queixosa para confirmar em voz alta as suas razes de queixa, e acusada para apresentar a sua defesa.

A primeira exprimiu-se com cuidado, a segunda negou tudo com veemncia. De acordo com a lei desde sempre em vigor, nenhum advogado se podia interpor directamente entre o juiz e os protagonistas de um processo.

Paser ordenou que a acusada se acalmasse. A queixosa pediu a palavra para se mostrar surpreendida com a negligncia da justia; pois no tinha ela feito h um ms um relatrio dos acontecimentos ao escriba que assistia Paser, sem ter sido convocada pelo tribunal? Vira-se por isso obrigada a apresentar uma segunda petio. Entretanto, a ladra tivera tempo de fazer desaparecer a prova.

H alguma testemunha do delito?

Eu mesma respondeu a queixosa.

Onde foi escondida a enxada?

Em casa da acusada.

Esta ltima negou de novo com tal entusiasmo que impressionou os jurados. A sua boa-f parecia evidente.

Investiguemos o local exigiu Paser.

Um juiz tinha tambm de ser investigador, e ir verificar com os seus prprios olhos as declaraes e os indcios, nos locais incriminados.

No tm o direito de entrar em minha casa! rugiu a acusada.

Isso uma confisso?

No! Estou inocente!

Mentir perante o tribunal uma falta muito grave.

Nota: Mat simbolizada por uma mulher sentada, com uma pena de avestruz na cabea Ela encarna a harmonia celeste. (N do A)

Foi ela quem mentiu.

Nesse caso ser severamente punida. Confirma as acusaes? perguntou Paser, olhando a queixosa directamente nos olhos.

Ela confirmou.

O tribunal ps-se a caminho, conduzido pelo responsvel das contendas.

Foi o prprio juiz quem procedeu busca. Encontrou a enxada na cave, enrolada em farrapos e escondida por detrs de uns potes de azeite.

A culpada desfaleceu. De acordo com a lei, os jurados condenaram-na a dar vtima o dobro do furto, ou seja, duas enxadas novas. Alm disso, o perjrio era passvel de trabalhos forados perptuos, e at de pena capital em caso de crime. A mulher foi forada a trabalhar vrios anos nas terras do templo local, sem qualquer benefcio pessoal.

Antes de os jurados dispersarem, ansiosos por voltarem s suas ocupaes, Paser pronunciou uma sentena inesperada: cinco vergastadas para o escriba que o assistia, culpado de ter deixado o processo atrasar-se. Segundo os sbios, como os homens tinham as orelhas nas costas, ouviam a voz da vara e mostravam-se menos negligentes no futuro.

Seria possvel o juiz conceder-me uma audincia? Paser voltou-se intrigado. Aquela voz... Seria possvel?

Branir!

Branir e Paser abraaram-se.

Branir, tu na aldeia!

Voltei s origens.

Vamos para debaixo do sicmoro.

Os dois homens ocuparam dois assentos baixos dispostos sob o grande sicmoro onde os ilustres saboreavam a sombra. Num dos ramos maiores estava pendurado um odre cheio de gua fresca.

Lembras-te, Paser? Foi aqui que te revelei o teu nome secreto, depois da morte dos teus pais. Paser, o vidente, aquele que discerne o longnquo... Quando o conselho dos ancios te deu esse nome, no se enganou. Que mais se pode pedir a um juiz?

Fui circuncidado, a aldeia ofereceu-me a minha primeira tanga da funo, deitei fora os brinquedos, comi pato assado e bebi vinho tinto. Aquilo que foi uma festa!

O adolescente depressa se fez homem.

Depressa de mais?

Cada qual tem seu ritmo. Tu combinas juventude e maturidade no mesmo corao.

Foste tu, Branir, que me educaste.

Sabes bem que no; cresceste sozinho.

Ensinaste-me a ler e a escrever, deixaste-me descobrir a lei e dedicar-me a ela. Se no fosses tu ter-me-ia tornado campons e teria trabalhado a terra com amor.

Tu tens outra ndole; a grandeza e a felicidade de um pas dependem da qualidade dos juizes.

Ser justo... uma luta constante. Quem pode gabar-se de vencer sempre?

Tens a fora de vontade, que o essencial.

A aldeia uma enseada de paz; este triste acontecimento foi uma excepo.

No foste nomeado responsvel pelo celeiro de trigo?

O alvazir quer dar-me o posto de intendente das searas do fara para evitar os conflitos na poca das colheitas. A tarefa no me agrada muito; espero que ele no consiga.

Tenho a certeza, de que no.

Porqu?

Porque o teu destino outro.

No compreendo.

Confiaram-me uma misso, Paser.

O palcio?

O tribunal de Mnfis.

Cometi algum erro?

Pelo contrrio. De h dois anos a esta parte, os inspectores dos juizes da aldeia tm vindo a fazer relatrios lisonjeadores sobre o teu comportamento. Acabas de ser nomeado para a provncia de Gize, como substituto de um magistrado que faleceu.

Gize to longe!

Alguns dias de barco. Ficas a morar em Mnfis.

Gize, lugar de todos o mais ilustre, Gize onde se erguia a grande pirmide de Quops, o misterioso centro de energia do qual dependia a harmonia do pas, imenso monumento onde apenas o fara podia entrar.

Sou feliz na minha aldeia; aqui nasci, aqui cresci, aqui trabalho. Deix-la seria um grande desafio.

Apoiei a tua nomeao pois julgo que o Egipto precisa de ti. Tu no s homem de dar ouvidos ao egosmo.

Isso j est decidido?

Podes recusar.

Tenho de pensar.

O corpo humano maior que um celeiro de trigo; est cheio de respostas incalculveis. Escolhe a melhor; e que a pior l fique encarcerada.

Paser encaminhou-se para a berma do campo; era a sua vida que estava em jogo. No tinha a menor vontade de abandonar os seus hbitos, os prazeres tranquilos da aldeia e do campo da regio de Tebas para se perder numa grande cidade. Mas como poderia recusar algo a Branir, o homem que venerava acima de todos? Jurou corresponder quele pedido, fossem quais fossem as circunstncias.

Um grande bis branco, de cabea, cauda e pontas das asas salpicadas de preto, deslocava-se majestosamente na margem do rio. A ave magnfica parou, mergulhou o bico no lodo e olhou para o juiz.

Foste escolhido pelo animal de Tot disse Ppi, o pastor, estendido nos juncos, com a sua voz spera. No tens escolha.

Com os seus setenta anos, Ppi era um resmungo e no gostava de conviver com as outras pessoas. Estar s com os animais era para ele o cmulo da felicidade. Recusava-se a receber ordens fosse de quem fosse, manejava o cajado com destreza e sabia bem esconder-se nas florestas de papiros quando os agentes do fisco, qual praga de pardais, se faziam aldeia. Paser no quisera convoc-lo ao tribunal. O velho no admitia que se maltratasse uma vaca ou um co, e encarregar-se-ia de corrigir o torturante; por isso o juiz via-o como um auxiliar da polcia.

Olha bem para o bis insistiu Ppi o comprimento do seu passo de um cvado, smbolo de justia. Que o teu caminho seja correcto e justo como o do pssaro de Tot. Vais partir, no assim?

Como sabes?

O bis voa muito alto. Escolheu-te.

O velho levantou-se. Tinha a pele curtida pelo vento e pelo sol, e trazia vestida apenas uma tanga de juncos.

Branir o nico homem honesto que conheo; ele no quer enganar-te ou prejudicar-te. Quando fores viver para a cidade, desconfia dos funcionrios, dos bajuladores e dos aduladores: trazem a morte nas palavras.

No me apetece abandonar a aldeia.

E a mim? Achas que me apetece procurar a cabra que fugiu?

Ppi desapareceu entre os juncos.

A ave branca e preta levantou voo. As suas grandes asas bateram de uma forma que s ela conhecia e dirigiu-se para o norte.

Branir leu a resposta nos olhos de Paser.

Tens de estar em Mnfis no princpio do prximo ms; ficars em minha casa antes de iniciares as tuas funes.

J te vais embora?

J no exero, mas ainda tenho uns doentes que precisam de mim. Bem gostaria de poder ficar.

A liteira desapareceu na poeira da estrada. O alvazir falou com Paser.

Temos um assunto delicado a tratar; trs famlias reclamam a posse da mesma palmeira.

Estou ao corrente; esse litgio j dura h trs geraes. Confia-o ao meu sucessor; se ele no o conseguir resolver, verei o que posso fazer quando regressar.

Vais partir?

A administrao chama-me a Mnfis.

E a palmeira?

Deixem-na crescer.

CAPTULO 2

Paser verificou a resistncia do seu saco de viagem de couro desbotado, munido de dois paus que se enterravam na areia para o manter direito. Quando estivesse cheio, coloc-lo-ia s costas, preso por uma correia que passaria volta do peito.

O que meteria l dentro alm de uma tira de tecido rectangular para fazer uma tanga nova, uma capa e a indispensvel esteira de trama entrelaada? Feita de tiras de papiro cuidadosamente ligadas entre si, a esteira serviria de cama, de mesa, de tapete, de tapearia, de cortina diante de uma porta ou uma janela, e de embalagem para objectos valiosos; a sua ltima aplicao seria a de mortalha para envolver o seu cadver. Paser tinha comprado um modelo muito resistente, era a sua melhor pea de mobilirio. Quanto ao odre, feito com duas peles de cabra curtidas e cosidas, serviria para conservar a gua fresca durante horas.

Assim que o saco se abriu, um rafeiro de cor negra precipitou-se a farej-lo. Com trs anos de idade, o Bravo era resultado do cruzamento de um galgo com um co selvagem; patas altas, focinho curto, orelhas cadas que se erguiam ao menor rudo, cauda enrolada, era muito afeioado ao dono. Amante de longas caminhadas, caava pouco e preferia pratos cozinhados.

Vamos, Bravo.

O co contemplou o saco, ansioso.

Fazer uma viagem a p e de barco, em direco a Mnfis.

O co sentou-se nas patas traseiras, espera de ms notcias.

O Ppi arranjou-te uma coleira; esticou bem o couro e curtiu-o com sebo. Vais ver como confortvel.

Bravo no parecia l muito convencido. Contudo, aceitou a coleira cor-de-rosa, verde e branca, munida de pregos. Se outro co ou alguma fera tentasse apanh-lo pelo pescoo, estaria bem protegido; alm disso, Paser havia gravado a inscrio hieroglfica: Bravo, companheiro de Paser.

O juiz ofereceu-lhe uma refeio de legumes que o co saboreou avidamente, sem deixar de fitar o dono pelo canto do olho. Sabia que no era o melhor momento para brincadeiras.

Os habitantes da aldeia, com o presidente frente, vieram despedir-se do juiz; alguns choravam. Desejaram-lhe felicidades e entregaram-lhe dois amuletos, um representando um barco e o outro, umas pernas vigorosas; eles protegeriam o viajante que, todas as manhs, deveria pensar em Deus para que os talisms no perdessem a eficcia. Agora, Paser tinha apenas de pegar nas suas sandlias de couro, no para as calar, mas para as levar na mo; tal como os seus compatriotas, caminharia descalo e utilizaria estes objectos valiosos apenas para entrar numa habitao, depois de sacudir a poeira do caminho. Verificou a resistncia da correia que passava entre o primeiro e o segundo dedo do p, e o bom estado das solas; e, satisfeito, abandonou a aldeia sem olhar para trs.

Quando j ia no caminho estreito que serpenteava entre os outeiros do Nilo, sentiu na mo direita um focinho molhado.

Vento do Norte! Fugiste... Tenho de te levar de volta para o teu campo.

O burro era surdo daquela orelha, e interrompeu o dilogo estendendo a pata direita que Paser agarrou. O juiz arrancara-o sanha de um campons que o espancava com uma vara por ter rebentado a corda que o amarrava. Vento do Norte manifestava

Nota: A descrio desta cena reproduz um baixo-relevo. Animal preferido do deus Seth, senhor das tempestades e da pujana csmica, o burro foi um auxiliar privilegiado do homem no Antigo Egipto. (N. do A.)um certo gosto pela independncia e uma enorme capacidade para transportar pesadas cargas.

Decidido a carregar at aos quarenta anos os sacos de cinquenta quilos amarrados de um e outro lado do seu lombo, Vento do Norte estava consciente de valer tanto quanto uma boa vaca ou um bom fretro. Paser oferecera-lhe um campo onde s ele tinha o direito de pastar; agradecido, o burro estrumava-o at inundao. Dotado de um excelente sentido de orientao, Vento do Norte orientava-se perfeitamente no labirinto de azinhagas do campo, e andava muitas vezes sozinho de um lado para o outro a entregar mercadorias. Comedido, sereno, s conseguia dormir ao p do dono.

Vento do Norte tinha este nome pois, desde o nascimento, levantava as orelhas sempre que soprava a suave brisa setentrional, to apreciada durante a estao quente.

Vou para longe repetiu Paser. No ias gostar de Mnfis.

O co roava-se na pata direita dianteira do burro. Vento do Norte, compreendendo o sinal de Bravo, virou-se de lado, desejoso de receber o saco de viagem. Paser acariciou suavemente a orelha esquerda do quadrpede.

Quem o mais teimoso?

Paser desistiu de lutar; at outro burro o teria feito. Vento do Norte, agora responsvel pela bagagem, tomou orgulhosamente a cabea do cortejo e, sem se enganar, seguiu pelo caminho mais curto para o cais.

No reinado do grande Ramss, os viajantes percorriam sem receio veredas e caminhos; caminhavam de esprito aberto, sentavam-se a cavaquear sombra das palmeiras, matavam a sede com gua dos poos, passavam noites tranquilas nas orlas das culturas ou nas margens do Nilo, levantavam-se e deitavam-se com o Sol.

Cruzavam-se com mensageiros do fara e funcionrios do correio; em caso de necessidade, dirigiam-se aos polcias em patrulha. Longe ia o tempo em que se ouviam gritos de horror, ou em que os salteadores roubavam ricos ou pobres que ousassem percorrer os caminhos; Ramss fazia respeitar a ordem pblica, sem a qual a felicidade no seria possvel.

Sem vacilar, Vento do Norte abeirou-se da encosta ngreme que descia at ao rio, como se soubesse que o dono desejava apanhar o barco que partia para Mnfis. O trio embarcou; Paser pagou o preo da viagem com um pedao de fazenda. Enquanto os animais dormiam, ele contemplava o Egipto, que os poetas comparavam a um imenso barco cujas altas amuradas eram formadas por cadeias de montanhas. Colinas e paredes rochosas, elevando-se a trezentos metros de altura, pareciam proteger as culturas. Planaltos entrecortados por pequenos vales mais ou menos cavados interpunham-se por vezes entre a terra negra, frtil, produtiva, e o deserto vermelho, onde vagueavam foras perigosas.

Paser queria voltar para trs, para a sua aldeia, e no mais de l sair. Esta viagem rumo ao desconhecido perturbava-o e tirava-lhe toda a confiana que tinha nas suas capacidades; o pequeno juiz de aldeia perdia uma tranquilidade que nenhuma promoo lhe poderia oferecer. Apenas Branir o conseguira convencer; mas no estaria Branir a conduzi-lo a um futuro que ele no seria capaz de dominar?

Paser estava atordoado.

Mnfis, a maior cidade do Egipto, a balana das Duas Terras, capital administrativa, havia sido criada por Menes, o unificador (Menes foi o primeiro fara que uniu as duas terras, o Alto e o Baixo Egipto).

Enquanto Tebas, a meridional, era devota da tradio e do culto a mon, Mnfis, a setentrional, situada entre o Alto e o Baixo Egipto, abria-se sia e s civilizaes mediterrnicas.

Notas: No Antigo Egipto viajava-se muito, sobretudo pela auto-estrada natural, o Nilo, mas tambm pelos caminhos que atravessavam os campos e pelas pistas do deserto Competia ao fara garantir a segurana dos viajantes.

O juiz, o burro e o co desembarcaram no porto de Perounefer, cujo nome significava boa viagem. Centenas de barcos comerciais de todos os tamanhos vinham atracar s docas efervescentes de actividade; as mercadorias eram encaminhadas para os imensos armazns, vigiados e geridos com o maior dos cuidados. Pelo preo de um trabalho digno dos construtores do Antigo Imprio, fora construdo um canal paralelo ao Nilo ladeando o planalto onde tinham sido edificadas as pirmides. Assim, as embarcaes navegavam sem perigo e a circulao de mercadorias e materiais estava assegurada em todas as estaes; Paser reparou que as paredes do canal haviam sido revestidas com um trabalho de maonaria de solidez exemplar.

O trio dirigiu-se para o bairro norte onde morava Branir, atravessou o centro da cidade, admirou o clebre templo de Ptah, deus dos artesos, e atravessou a zona militar. A, fabricavam-se armas e construam-se barcos de guerra. A, treinavam-se os corpos de elite da Armada egpcia, aquartelados em grandes casernas, entre os arsenais de carroas, de espadas, de lanas e de escudos.

Tanto a norte como a sul, alinhavam-se celeiros ricos em cevada, trigo mido e sementes diversas, contguos aos edifcios do Tesouro, que guardavam ora dinheiro, ora cobre, fazendas, unguentos, leo, mel ou outros produtos.

Mnfis, to imensa, entontecia o jovem campons. Como orientar-se no emaranhado de ruas e ruelas, na profuso de bairros com nomes como Vida das Duas-Terras, O Jardim, O Sicmoro, O Muro do Crocodilo, A Fortaleza, Os Dois Outeiros ou O Colgio de Medicina?

Enquanto Bravo se mostrava pouco tranquilo e no se afastava do dono, o burro seguia confiante o seu caminho. Guiava os companheiros de viagem no bairro dos artesos, onde se trabalhava a pedra, a madeira, o ferro e o ouro em pequenas oficinas abertas para a rua. Paser nunca tinha visto tantas peas de cermica, vasos, baixelas e utenslios domsticos. Cruzava-se com inmeros estrangeiros, hititas, gregos, cananeus e asiticos, vindos de pequenos reinos; folgados, bisbilhoteiros, gostavam de se enfeitar com colares de ltus, proclamavam que Mnfis era um clice de frutos e celebravam os seus cultos nos templos do deus Baal e da deusa Astarte, cuja presena era tolerada pelo fara.

Paser dirigiu-se a uma tecedeira e perguntou-lhe se ia na direco correcta; verificou ento que o burro no se tinha enganado. O juiz observou que os sumptuosos palacetes dos nobres, com os seus jardins e os seus lagos, se misturavam com as pequenas casas dos mais humildes. Grandes prticos, guardados por porteiros, abriam-se sobre alamedas floridas ao fundo das quais se escondiam edifcios de dois ou trs andares.

Finalmente, a casa de Branr! Era to bonita, to sedutora com os seus muros brancos, a verga da porta decorada com uma grinalda de dormideiras vermelhas, as janelas ornamentadas com acianos de clice verde e com flores-amarelas-da-prsea, que o jovem juiz admirava com prazer. Uma porta dava para uma ruela onde havia duas palmeiras que davam sombra aoteia da pequena habitao. Via-se que a aldeia estava bem distante, mas o velho mdico conseguira manter o perfume do campo no corao da cidade.

Branir estava na soleira.

Fizeste boa viagem?

O burro e o co esto com sede.

Eu trato deles; tens aqui uma bacia para lavares os ps e po salpicado com sal para te dar as boas vindas.

Paser desceu at primeira sala por um lano de escadas; recolheu-se em frente a um nicho com as estatuetas dos antepassados. Depois viu a sala de recepo, escorada por duas colunas coloridas; encostados s paredes, estavam armrios e arcas de arrumaes. No cho, havia esteiras. Uma sala de trabalho, uma sala de gua, uma cozinha, dois quartos e uma cave completavam aquele interior delicado.

Branir convidou o seu hspede a subir as escadas que levavam aoteia onde lhe ia servir bebidas frescas, bolos e tmaras recheadas com mel.

Nota: rvore de grande porte cujos frutos eram conhecidos pela sua doura, estes ltimos pareciam-se com um corao e as folhas com uma lngua (N do A)

Sinto-me perdido confessou Paser.

O contrrio seria de estranhar. Um bom jantar e uma boa noite de sono, e estars pronto para a cerimnia de investidura.

J a partir de amanh?

Os processos acumulam-se.

Gostaria de me adaptar a Mnfis.

O trabalho urge. Aceita este presente, visto que ainda no ests em funes.

Branir ofereceu a Paser o manual de comportamento dos escribas. Permitia-lhes adoptar a atitude correcta em qualquer circunstncia, graas ao respeito pela hierarquia. Primeiro, os deuses, as deusas, os espritos transfigurados no alm, o fara e o Reino; depois, a me do rei, o vizir, o conselho dos sbios, os altos magistrados, os chefes militares e os escribas da casa dos livros. Seguiam-se uns tantos cargos, de director do Tesouro a encarregado dos canais, passando pelos representantes do fara no estrangeiro.

Um homem de corao violento no passa de um causador de problemas e de um linguareiro; se queres ser forte, s o arteso das tuas palavras, aperfeioa-as, pois a linguagem a arma mais forte para quem a sabe utilizar.

Tenho saudades da aldeia.

E ters para o resto da vida.

Porque me mandaram para aqui?

a tua prpria conduta que determina o teu destino.

Paser dormiu pouco e mal, com o co aos ps e o burro deitado junto sua cabea. Os acontecimentos sucediam-se vertiginosamente e no lhe davam tempo de readquirir o equilbrio; apanhado num turbilho, j no dispunha dos pontos de referncia habituais e devia, contra sua vontade, abandonar-se a uma aventura de matizes desconhecidos.

Acordou de madrugada, tomou banho, limpou-se com natro (composto natural de carbonato de soda e bicarbonato de soda) e tomou o pequeno almoo na companhia de Branir, que o levou a um dos melhores barbeiros da cidade. Sentado num banquinho de trs pernas em frente ao cliente, instalado da mesma forma, o barbeiro humedeceu o cabelo de Paser e cobriu-o com uma pasta gordurosa. Tirou de um estojo de couro uma navalha de barba com uma lmina de cobre e um cabo de madeira, que manejava com destreza e perfeio.

Com uma tanga nova e uma camisa difana larga e perfumada, Paser parecia pronto a defrontar o desafio.

Tenho a impresso de estar mascarado confiou ele a Branir.

A aparncia nada vale, mas no a descures; aprende a manobrar o leme para no deixares que a torrente dos dias te afaste da justia, pois o equilbrio de um pas depende da sua prtica. S digno de ti prprio, meu filho.

CAPTULO 3

Paser seguiu Branir, que o conduziu pelo bairro de Ptah, a sul da antiga cidadela de paredes brancas. Tranquilo quanto sorte do burro e do co, o jovem no sentia o mesmo em relao a si prprio.

Perto do palcio haviam sido construdos vrios edifcios administrativos cujos acessos eram guardados por soldados. O velho mdico dirigiu-se a um graduado; depois de ouvir o seu pedido, o homem desapareceu por um momento e voltou acompanhado de um alto magistrado, o delegado do vizir.

Que bom rever-te, Branir; ento este o teu protegido?

Paser est muito emocionado.

uma reaco compreensvel para a sua idade. Suponho, contudo, que estar pronto para desempenhar as suas novas funes?

Paser, chocado com a ironia daquela personagem, interveio num tom seco.

Duvidas?

O delegado ergueu as sobrancelhas.

Vou lev-lo comigo, Branir; devemos proceder investidura.

O olhar caloroso que o velho mdico deu ao seu discpulo deu-lhe a coragem que ainda lhe faltava; quaisquer que fossem as dificuldades, ele no o deixaria ficar mal.

Levaram Paser para uma pequena cmara rectangular com as paredes brancas e nuas; o delegado convidou-o a sentar-se numa esteira, diante do tribunal composto por si prprio, o administrador da provncia de Mnfis, o representante da repartio do trabalho e um dos servidores do deus Ptah que ocupava um alto cargo na hierarquia sagrada. Todos eles usavam enormes perucas e vestiam amplas tangas. Os seus rostos no exprimiam qualquer sentimento.

Vais ser submetido avaliao da diferena] declarou o delegado do vizir, chefe da justia.

Aqui sers um homem diferente dos outros, chamado a julgar os teus semelhantes. Tal como os teus colegas da provncia de Gize, proceders aos inquritos, presidirs aos tribunais locais que estejam sob tua jurisdio e enviars aos teus superiores os casos que ultrapassem a tua competncia. Comprometes-te a fazer isso?

Sim, comprometo-me.

Tens conscincia de que no podes voltar atrs com a palavra?

Sim, estou consciente disso.

Que este tribunal proceda de acordo com os mandamentos da Regra ao julgar o futuro juiz.

O administrador da provncia falou com uma voz grave e bem colocada.

Que jurados vais convocar para formar o teu tribunal?

Escribas, artesos, polcias, homens experientes, mulheres respeitveis, vivas.

De que maneira intervirs nas suas deliberaes?

De maneira nenhuma. Cada qual poder exprimir-se sem ser influenciado e respeitarei cada opinio para poder formar o meu juzo.

Em todas as circunstncias?

excepo de uma s; se um dos jurados for corrupto. Interromperei o processo em curso para o acusar sem qualquer demora.

Nota: A expresso utilizada no Livro dos Mortos para distinguir o justo do injusto. (N. do A.)

Como deves agir em caso de crime? perguntou o representante da repartio do trabalho.

Fazer um inqurito preliminar, abrir um processo e transmiti-lo ao vizir.

O servidor do deus Ptah colocou o brao direito sobre o peito com o punho fechado a tocar no ombro.

Nenhum acto ser esquecido no julgamento do alm; o teu corao ser colocado num dos pratos da balana e confrontado com a Regra. De que forma ser transmitida a lei que queres fazer respeitar?

Existem quarenta e duas provncias e quarenta e duas leis diferentes; mas o seu juzo no foi escrito e no o deve ser. A verdade s pode ser transmitida oralmente, da boca do mestre aos ouvidos do discpulo.

O servidor de Ptah sorriu; mas o delegado do vizir ainda no estava satisfeito.

Como defines a Regra?

O po e a cerveja.

O que significa essa resposta?

Justia para todos, grandes e pequenos.

Porque que a justia simbolizada por uma pena de avestruz?

Porque ela a passagem entre o nosso mundo e o mundo dos deuses; as penas so as rectrizes, o leme do pssaro assim como do ser. A Regra, sopro de vida, deve estar presente na vida do homem e expurgar os males do corao e do corpo. Se a justia desaparecesse, o trigo no mais brotaria, os rebeldes tomariam o poder, no mais se celebrariam festas.

O administrador da provncia levantou-se e pousou um bloco de calcrio em frente de Paser.

Pe as mos nessa pedra branca. O jovem obedeceu. No tremia.

Que ela seja testemunha do teu juramento; a pedra nunca se esquecer das palavras que proferiste e ser tua acusadora caso traias a Regra.

O administrador e o representante da repartio do trabalho colocaram-se um de cada lado do juiz.

Levanta-te ordenou o delegado do vizir.

Eis o teu selo disse ele dando-lhe uma pequena placa rectangular soldada a um anel que Paser colocou no dedo mdio. Na face plana da placa estava inscrito em ouro Juiz Paser.

Os documentos que tiverem o teu selo tero valor oficial e sero da tua responsabilidade; no o uses irreflectidamente.

O escritrio do juiz situava-se no subrbio sul de Mnfis, entre o Nilo e o canal do oeste, e a sul do templo de Hathor. O jovem do campo, que esperava um edifcio imponente, ficou cruelmente decepcionado. A administrao concedera-lhe apenas uma casa baixa de dois andares. Sentada entrada, estava uma sentinela a dormir. Paser tocou-lhe no ombro e o homem sobressaltou-se.

Queria entrar.

A repartio est fechada.

Sou o juiz.

Duvido... o juiz morreu.

Sou Paser, o seu sucessor.

Ah, s tu... O escrivo larrot deu-me o teu nome. Podes identificar-te?

Paser mostrou-lhe o selo.

A minha misso era guardar este local at tu chegares; misso comprida.

Quando poderei ver o meu escrivo?

No fao ideia. Tinha um problema para resolver...

Que problema?

A lenha para o aquecimento. De Inverno faz muito frio; no ano passado, o Tesouro recusou-se a entregar aqui a lenha, pois o pedido no fora feito em trs exemplares. larrot foi ao servio de arquivos para regularizar a situao. Desejo-lhe boa sorte, juiz Paser; em Mnfis, no corre o risco de se aborrecer. A sentinela foi-se embora.

Paser abriu devagar a porta do seu novo domnio. A repartio era bastante grande, atulhada de armrios e cofres onde se encontravam arrumados rolos de papiro amarrados ou lacrados. No cho, uma camada de poeira suspeita. Perante perigo to inesperado, Paser no hesitou. Apesar da dignidade das suas funes, pegou numa vassoura feita com cordis presos por fibras duras entranadas; o cabo permitia um manuseamento suave e regular.

Terminada a limpeza, o juiz fez um inventrio do contedo dos arquivos: papelada do cadastro, do fisco, vrios relatrios, queixas, relaes de contas e transferncias de salrios em cereais, cestos ou tecidos, cartas, listas de pessoal... A sua competncia estendia-se aos mais variados domnios.

No maior dos armrios, estava o material indispensvel ao escriba: paletas com recortes na parte superior para se deitar tinta vermelha e preta, blocos de tinta slida, gods, bolsas de pigmentos em p, bolsas com pincis, raspadeiras, borrachas, trituradores de pedra, cordis de linho, uma carapaa de tartaruga para fazer as misturas, um babuno de argila evocando o deus Tot, mestre dos hierglifos, lascas de calcrio para os rascunhos, tabuinhas de argila, de calcrio e de madeira.

O conjunto era de boa qualidade.

Num pequeno cofre de accia, encontrava-se um dos objectos mais preciosos: um relgio de gua. O pequeno vaso tronco-cnico era graduado no interior, segundo duas escalas diferentes, com doze entalhes; a gua corria por um buraco, ao fundo do relgio, medindo assim as horas.

Sem dvida que o escrivo devia julgar necessrio tomar nota do tempo passado no local de trabalho.

Havia uma coisa a fazer. Paser pegou num pincel de junco delicadamente talhado, mergulhou a extremidade num god cheio de gua e deixou cair uma gota na paleta de que se ia servir. Murmurou a prece que todos os escrives recitavam antes de comear a escrever: gua de tinteiro para o teu Ka, Imhotep; assim era venerado o criador da primeira pirmide, arquitecto, mdico, astrlogo e modelo daqueles que faziam hierglifos.

O juiz subiu ao primeiro andar.

A tipografia no era ocupada h muito tempo; o predecessor de Paser, que preferia morar numa casa no limite da cidade, tinha-se esquecido de tratar daquelas trs divises, que eram ocupadas por pulgas, moscas, ratos e aranhas.

O jovem no desistiu; apetecia-lhe vencer aquela batalha. No campo, tinha muitas vezes de desinfectar as casas e caar os hspedes indesejveis.

Depois de ter procurado os ingredientes necessrios nas tendas do bairro, Paser meteu mos obra. Borrifou as paredes e o cho com gua onde dissolvera natro, depois salpicou-as com um composto de carvo pulverizado e de planta bebet, cujo perfume forte enxotava insectos e vermes. Por fim, misturou incenso, mirra, cinamono e mel e fez uma defumao que purificaria o local dando-lhe um cheiro agradvel. Para comprar estes produtos caros, teve de ficar a dever e gastou a maior parte do seu prximo salrio.

Exausto, desenrolou a esteira e deitou-se de costas. Algo o incomodava e o impedia de dormir: o anel. No o tinha tirado. O pastor Ppi no se havia enganado: j no tinha escolha.

Nota: Inula Graveleous, uma das variedades da nula (N do A)

Nota: Arbusto aromtico do qual algumas espcies do a canela. (N do A)

CAPTULO 4

O Sol j ia alto quando o escrivo larrot chegou ao escritrio no seu passo pesado. Sombrio, bochechudo, rubicundo e com o rosto congestionado, caminhava ao ritmo de uma bengala com o seu nome gravado, o que o tornava uma personagem importante e respeitada. Quarento, larrot era pai extremoso de uma menina, alvo de todas as suas preocupaes. Todos os dias discutia com a mulher por causa da educao da criana, a quem no queria contrariar sob qualquer pretexto. A casa retumbava com estas discusses, cada vez mais violentas.

Para sua grande surpresa, um operrio misturava gesso com calcrio triturado para o tornar mais branco e verificava a qualidade do produto deitando-o em seguida num cone de calcrio, para tapar um buraco na sala do juiz.

No encomendei qualquer trabalho disse larrot, furibundo.

Mas eu, sim; mais ainda, executo-os sem demora.

Com que direito?

Sou o juiz Paser.

Mas... Ainda s to novo!

s o meu escrivo?

Exactamente.

O dia j vai longo.

Sim, sim... que tive uns problemas familiares a resolver...

H assuntos urgentes? perguntou Paser continuando o seu servio.

H a queixa de um construtor. Tinha tijolos, mas faltavam-lhe os burros para os transportar. Acusa o alugador de lhe sabotar o telheiro.

Assunto resolvido.

Como assim?

Estive com o transportador esta manh. Vai indemnizar o construtor e transportar os tijolos a partir de amanh; um processo a menos.

Tambm s trolha?

Amador pouco dotado. O nosso oramento bastante baixo; na maioria dos casos teremos de nos desembaraar. Que mais h?

Esperam-te para o recenseamento de um rebanho.

O escriba especializado no dar conta do recado?

O perito no assunto, o dentista Qadash, julga que um dos seus empregados o rouba. Requereu um inqurito: o teu predecessor atrasou-o o mais que pde. Para dizer a verdade, compreendia-o bem. Se desejares, encontrarei argumentos para o diferir outra vez.

No ser necessrio. A propsito, sabes utilizar uma vassoura?

Como o escrivo ficasse mudo, o juiz estendeu-lhe o precioso objecto.

Vento do Norte no estava descontente por saborear de novo o ar do campo; carregando o material do juiz, o burro avanava depressa, enquanto Bravo vagabundeava pelos arredores todo contente procura de ninhos. Como era seu hbito, Vento do Norte esticou a orelha quando o juiz lhe disse que se dirigiam para a propriedade do dentista Qadash, que ficava para sul, a duas horas de caminho do planalto de Gize; o burro tomara a direco correcta.

Paser foi bem recebido pelo intendente da propriedade, feliz por receber por fim um juiz com vontade de resolver um mistrio que envenenava a vida dos boiadeiros. Os criados lavaram-lhe os ps e ofereceram-lhe uma tanga nova enquanto lavavam a dele; dois moos encarregaram-se de dar de comer ao co e ao burro. Avisaram Qadash da chegada do magistrado e levaram-lhe de pronto um estrado encimado por um prtico vermelho e negro assente em colunetas lotiformes; nele se instalariam, ao abrigo do sol, Qadash, Paser e o escriba dos rebanhos.

Quando o dono da propriedade apareceu, com uma longa bengala na mo direita, seguido pelos carregadores das sandlias, do guarda-sol e da poltrona, umas raparigas tocaram tamborim e flauta e jovens camponesas ofereceram-lhe flores de ltus.

Qadash tinha cerca de sessenta anos e uma cabeleira branca e farta; forte, de nariz proeminente salpicado de veiazinhas violetas, cabea baixa, mas do rosto salientes, limpava muitas vezes o suor dos olhos lacrimosos. Paser espantou-se com a cor vermelha das suas mos; sem dvida, o dentista sofria de m circulao sangunea.

Qadash observou-o com alguma desconfiana.

s tu o novo juiz?

Para te servir. agradvel constatar que os camponeses so felizes quando o dono da propriedade tem corao nobre e firme a comandar.

Irs longe, meu jovem, se respeitares os superiores.

A voz do dentista, a princpio incmoda, tornara-se agradvel. A tanga em forma de avental, o corpete de pele de felino, o grande colar com sete voltas de prolas azuis, brancas e vermelhas, e as pulseiras davam-lhe um ar distinto.

Sentemo-nos props.

Sentou-se na poltrona de madeira pintada; Paser num assento em forma de cubo, sua frente; frente do escriba dos rebanhos estava uma pequena mesa baixa para o material de escrita.

Segundo as declaraes prestadas relembrou o juiz possuis cento e vinte e uma cabeas de gado, setenta carneiros, seiscentas cabras e outros tantos porcos.

Exactamente. No ltimo recenseamento, feito h dois meses, faltava um boi! Ora, os meus animais so de grande valor; o mais magro poderia ser trocado por uma tnica de linho e dez sacos de cevada. Quero que apanhes o ladro.

No procedeste a um inqurito por conta prpria?

No a mim que me compete faz-lo.

O juiz voltou-se para o escriba dos rebanhos, que estava sentado numa esteira.

Que escreveste tu nos registos?

O nmero de animais que me apresentaram.

Quem interrogaste?

Ningum. O meu trabalho consiste em anotar e no em fazer interrogatrios.

Paser no diria mais nada; irritado, tirou do cesto uma tabuinha de sicmoro coberta por uma fina camada de gesso, um pincel de junco talhado com um comprimento de vinte e cinco centmetros e um god com gua onde preparou tinta preta. Quando estava pronto, Qadash fez sinal ao chefe dos vaqueiros para comear o desfile.

Com uma pequena palmada no cachao do boi que seguia frente, iniciou-se a procisso. O animal bamboleava-se lentamente, seguido pelos seus congneres pesados e plcidos.

Esplndidos, no achas?

D os meus parabns aos criadores recomendou Paser.

O ladro deve ser asitico ou nbio disse Qadash. H muitos estrangeiros em Mnfis.

O teu nome no de origem lbia?

O dentista disfarou mal o seu aborrecimento.

H muito que vivo no Egipto e perteno alta sociedade; no a riqueza da minha propriedade prova disso mesmo? Fica sabendo que cuidei dos mais ilustres cortesos, e, como tal, pe-te no teu lugar.

Carregadores de frutas, rstias de alho, cestos cheios de alface e vasos de perfume, acompanhavam os animais. No se tratava sem dvida de uma simples verificao do recenseamento;

Qadash queria seduzir o novo juiz e mostrar-lhe a vastido da sua fortuna.

Bravo deslizara sorrateiramente para debaixo do lugar do dono e olhava as cabeas de gado que se sucediam.

De que provncia s tu? perguntou o dentista.

Quem faz as perguntas sou eu.

Uma parelha de bois passou em frente ao estrado; o mais velho sentou-se e recusou-se a seguir. Pra de te fingires de morto disse o vaqueiro; o acusado olhou-o receoso mas no se mexeu.

D-lhe ordenou Qadash.

Um momento exigiu Paser descendo do estrado.

O juiz acariciou o ventre do boi sossegando-o e, com a ajuda do vaqueiro, tentou faz-lo levantar-se. Mais tranquilo, o boi levantou-se. Paser voltou ao seu lugar.

s muito terno ironizou Qadash.

Odeio a violncia.

Mas por vezes no achas que necessria? O Egipto teve de lutar contra os invasores, muitos homens morreram pela nossa liberdade. Sero de condenar?

Paser concentrou-se no desfile dos animais; o escriba dos rebanhos contava-os. No fim do recenseamento, de acordo com a declarao do proprietrio, faltava um boi.

Inadmissvel trovejou Qadash, cuja face ficava prpura. Sou roubado na minha prpria casa e ningum quer denunciar o culpado.

Os animais devem ter sido marcados.

Sem dvida!

Traz-me os homens que procederam marcao.

Eram quinze; o juiz interrogou-os um aps o outro, isolando-os de forma a que no pudessem comunicar entre si.

J sei quem o ladro anunciou Paser a Qadash.

Como se chama?

Kani.

Peo a convocao imediata de um tribunal.

Paser aceitou. Escolheu como jurados um vaqueiro, uma pastora, o escriba dos rebanhos e um dos guardas da propriedade.

Kani, que no tentara fugir, apresentou-se de sua livre vontade no estrado, suportando o olhar furioso de Qadash, ali ao lado. O acusado era um homem pesado e robusto, de pele morena e enrugada.

Consideras-te culpado?

No.

Qadash bateu com a bengala no cho.

Este bandido um insolente! Que seja castigado no campo!

Cala-te ordenou o juiz Se perturbares a audincia, interrompo o processo.

Enervado o dentista afastou-se

Marcaste um boi com o nome de Qadash? perguntou Paser.

Sim respondeu Kani.

Esse animal desapareceu.

Fugiu-me. Encontr-lo-s num campo vizinho.

Porqu essa negligncia?

No sou vaqueiro, mas sim jardineiro. O meu verdadeiro trabalho consiste em irrigar as pequenas parcelas de terra; durante o dia transporto uma vara aos ombros e despejo nas culturas o contedo dos pesados cntaros. noite, no tenho descanso; preciso regar as plantas mais frgeis, abrir os regos, reforar os aterros. Se quiseres provas, olha para a minha nuca; tem a marca de dois abcessos. a doena do jardineiro e no do vaqueiro.

Porque mudaste de ocupao?

Porque o intendente de Qadash se apoderou de mim quando eu entregava legumes. Fui forado a ocupar-me dos bois e a abandonar o meu jardim.

Paser chamou as testemunhas; a veracidade do relato de Kani foi comprovada. O tribunal absolveu-o; como indenizao, o juiz ordenou que o boi fugido se tornasse propriedade de Kani e que Qadash lhe oferecesse uma quantidade razovel de alimentos em troca dos dias de trabalho perdido.

O jardineiro curvou-se frente ao juiz; Paser leu nos seus olhos um profundo agradecimento.

O rapto de camponeses um crime grave disse ele ao proprietrio.

O sangue subiu cara do dentista.

No sou responsvel! No estava ao corrente; que o meu intendente seja castigado como merece.

Conheces a natureza da pena; cinquenta bastonadas e perda do estatuto social, voltando a ser campons.

Lei lei.

Acusado em tribunal, o intendente no negou nada; foi condenado e a sentena imediatamente executada.

Quando o juiz Paser saiu da propriedade, Qadash no foi despedir-se dele.

CAPTULO 5

Bravo dormia aos ps do dono, sonhando com um festim, enquanto Vento do Norte, refastelado com forragem fresca, fazia planto porta do gabinete onde Paser estava desde a madrugada a consultar os processos em curso. As dificuldades no diminuam, muito pelo contrrio, e ele estava decidido a pr a papelada em dia, sem deixar nada pendente.

O escrivo larrot chegou a meio da manh, com um semblante cadavrico.

Ests um pouco abatido disse Paser.

Discuti com a minha mulher. Est insuportvel; casei-me para ela me preparar pratos suculentos, e agora recusa-se a cozinhar! Est impossvel de aturar.

Pensas divorciar-te?

No, por causa da minha filha; quero que ela seja bailarina mas a minha mulher tem outros projectos com os quais no concordo. E nem um nem outro estamos dispostos a ceder.

Temo que a situao seja complicada.

Eu tambm. E a investigao sobre Qadash, correu bem?

Estou quase a terminar o meu relatrio: boi encontrado, jardineiro absolvido e intendente condenado. Estou convencido de que o dentista tambm estava envolvido, mas no tenho como prov-lo.

No te metas com ele; tem muitos conhecimentos.

Clientela abastada, no?

J tratou da boca dos habitantes mais ilustres; as ms lnguas dizem que perdeu o jeito e quem quiser manter os dentes sos mais vale no ir l.

Bravo rosnou; o dono acalmou-o com uma festa. Quando ele se comportava assim, manifestava uma hostilidade comedida. primeira vista, no gostava l muito do escrivo.

Paser carimbou os papiros onde tinha registado as concluses sobre o caso do roubo do boi. larrot admirou a escrita fina e regular; o juiz traava os hierglifos sem a mnima hesitao, desenhando o pensamento com grande segurana.

Mas, apesar disso, no o incriminaste?

claro que sim.

Olha que perigoso.

De que tens receio, larrot?

Bem, eu... eu no sei.

S mais preciso, larrot.

A justia to complexa...

Eu no acho: de um lado est a verdade, do outro est a mentira. Se se ceder a esta ltima, por pouco que seja, a justia perde o seu domnio.

Pensas assim porque ainda s jovem; medida que fores adquirindo experincia, as tuas opinies sero mais realistas.

Espero que no. Na aldeia de onde vim muita gente me confrontou com o mesmo argumento. Mas no me parece que tenha qualquer valor.

Queres ignorar o peso da hierarquia?

Ser que Qadash est acima da lei? larrot suspira.

Pareces ser um homem inteligente e corajoso, juiz Paser; por isso, no faas de conta que no ests a compreender.

Se a hierarquia injusta, o pas avana para a sua extino.

A hierarquia aniquilar-te- como fez aos outros; limita-te a resolver os problemas que te dizem respeito e deixa os assuntos delicados ao cuidado dos teus superiores. O teu antecessor eraum homem sensato que soube evitar as ratoeiras. Deram-te uma bela promoo; no a desperdices.

Se fui destacado para aqui, foi devido aos meus mtodos; por que razo deveria eu mud-los?

Agarra esta oportunidade sem perturbar a ordem estabelecida.

No conheo outra ordem seno a da lei. Enfurecido, o escrivo bate no peito.

Ests a correr em direco ao precipcio! No digas que no te preveni.

Amanh, vais levar o meu relatrio administrao da provncia.

Como achares melhor.

H um pormenor que me intriga; no estou a pr em causa o teu zelo, mas s tu todo o meu pessoal?

larrot pareceu embaraado.

De certa forma, sim.

Que significa esse subentendido?

Bom, h tambm o Kem...

Qual a sua funo?

Polcia. ele que prende quem o juiz decretar.

Parece-me de extrema importncia.

O teu antecessor no mandou prender ningum; se suspeitasse que havia um criminoso solta, recorria a uma jurisdio melhor armada. Como Kem se aborrece de estar no escritrio, patrulha a cidade.

Ser que vou ter o privilgio de o conhecer?

Ele vem c de vez em quando. No te impressiones ao primeiro contacto: o seu carcter detestvel. Tenho medo dele, por isso no contes comigo para lhe fazer qualquer advertncia desagradvel.

No ser nada fcil restabelecer a ordem no meu prprio escritrio, pensou Paser, constatando que dentro em breve ficaria sem papiro.

Onde que costumas comprar o papiro?

No Bel-Tran, o melhor fabricante de Mnfis. L os produtos so caros, mas de excelente qualidade. Aconselho-te a ires l.

Diz-me uma coisa, larrot; esse ru conselho perfeitamente desinteressado?

Como te atreves!

Desculpa. Foi sem inteno.

Paser examinou as queixas mais recentes; nenhuma delas apresentava qualquer urgncia ou gravidade. Depois deu uma vista de olhos s listas de pessoal que devia controlar e s nomeaes que tinha de aprovar; um trabalho administrativo banal que requeria somente o seu carimbo.

larrot estava sentado sobre a perna esquerda e mantinha a direita estendida; tinha uma paleta sobre o brao, e um clamo atrs da orelha esquerda, e enquanto observava Paser ia limpando os pincis.

Ests a trabalhar h muito tempo?

Desde o nascer da aurora.

muito cedo.

um hbito de aldeo.

um hbito... quotidiano?

O meu mestre ensinou-me que bastava um dia de negligncia e era uma catstrofe. O corao s pode aprender se as orelhas estiverem bem abertas e a razo obediente; e para se conseguir isso, no h nada melhor do que bons hbitos, no achas? Seno o macaco que dormita em ns pe-se a danar e a capela fica privada do seu Deus.

O tom do escrivo agravou-se.

No uma existncia muito agradvel.

Ns somos servidores da justia.

A propsito, o meu horrio de traba...

Oito horas por dia, seis dias por semana, dois dias de descanso, entre dois e trs meses de feriados graas s diversas festas... Estamos de acordo?

Nota: Pena de escrever. (N do A)

Nota 2: Ritmo habitual de trabalho dos egpcios. (N. do A.)

O escrivo aquiesceu, compreendendo, sem que o juiz precisasse de insistir, que tinha de fazer um esforo para chegar a horas.

Um pequeno dossier intrigou Paser. O guardio-mor encarregado de vigiar a esfinge de Gize tinha sido transferido para as docas. Brutal retrocesso na carreira: o homem havia cometido uma falta grave. Contudo esta ltima no estava registada, como era habitual. No entanto, o juiz principal da provncia tinha-lhe posto a sua chancela; s faltava a de Paser, visto que o soldado pertencia sua jurisdio. Uma simples formalidade que deveria ser cumprida sem grande reflexo.

Ningum cobia o posto de guardio-mor da esfinge?

Candidatos no faltam admite o escrivo, mas o titular actual desencoraja-os.

Porqu?

um soldado experiente, com uma folha de servio exemplar e, alm disso, um homem honrado. Toma conta da esfinge com um desvelo invejvel, ainda que aquele velho leo de pedra seja suficientemente impressionante para se defender a si prprio.

Quem sonharia sequer atac-lo?

Parece-me um posto honorfico.

Exactamente. O guardio-mor recrutou outros veteranos para que estes tivessem direito a uma pequena penso; e entre os cinco asseguram a vigilncia durante a noite.

Estavas a par desta transferncia?

Transferncia... Deves estar a brincar?

Ora v, aqui est o documento oficial.

inacreditvel. O que que ele fez?

Seguiste exactamente o mesmo raciocnio que eu; mas os factos foram omitidos.

No te preocupes; deve ser com certeza uma deciso militar cuja lgica nos transcende.

Vento do Norte soltou um zurro caracterstico: o burro chamava a ateno para o perigo iminente. Paser levantou-se e saiu. Estava frente a frente com um babuno que o dono deixara solta.

O olhar agressivo, a cabea robusta, o busto coberto por uma capa de plo, a sua reputao de macaco feroz no lhe era atribuda em vo. Era raro um animal selvagem no sucumbir aos golpes e s ferradelas de um babuno, j se tinham visto at lees fugirem aproximao de um bando enfurecido destes animais. O dono, um nbio de msculos salientes, impressionava tanto quanto o animal.

Espero que o tenhas bem preso.

Este babuno-polcia est s tuas ordens, juiz, tal como eu.

Tu s o Kem?

O nbio acenou afirmativamente com a cabea.

s conhecido em todo o bairro. Parece que andas a trabalhar de mais para um juiz.

O teu tom no me agrada.

Tens de te habituar.

De modo nenhum. Ou mostras o respeito devido a um superior, ou podes pedir j a tua demisso.

Os dois homens desafiaram-se longamente; assim como o co do juiz e o macaco do polcia.

O teu antecessor dava-me total liberdade de movimentos.

Agora a situao muda de figura.

No ests a proceder bem; quando passeio pelas ruas com o meu babuno, desencorajo os ladres.

Vamos tomar as devidas providncias. A tua folha de servio?

Mais vale prevenir-te j: o meu passado sombrio. Eu pertencia corporao de arqueiros encarregada de guardar uma das fortalezas do Grande Sul. E, tal como muitos dos jovens da minha tribo, apaixonei-me pelo Egipto. Fui feliz durante muitos anos; at que um dia, sem querer, descobri um trfico de ouro, entre oficiais. A hierarquia no me deu ouvidos; por essa altura, numa rixa matei um dos ladres, que era meu superior directo. Ento fui levado a tribunal onde me condenaram a cortar o nariz.

Nota: Pode ver-se no Museu do Cairo, num baixo-relevo do tmulo de Tepemankh, um enorme babuno-polcia a prender um ladro. (N. do A.)

O que tenho hoje de madeira pintada. Perdi o medo s pancadas. Entretanto, os juizes reconheceram a minha lealdade; e foi por isso que me deram um posto na polcia. Se desejares verificar, o meu processo est arquivado na secretaria do exrcito.

Ento vamos.

Kem no esperava por esta reaco. Enquanto o burro e o escrivo guardavam o escritrio, o juiz e o polcia, acompanhados pelo co e pelo babuno, que continuavam a observar-se mutuamente, caminharam em direco ao centro administrativo do exrcito.

H quanto tempo vives em Mnfis?

H um ano respondeu Kem; sinto saudades do Sul.

Conheces o responsvel pela segurana da esfinge de Gize?

Cruzei-me com ele duas ou trs vezes.

Inspira-te confiana?

um veterano clebre; a sua reputao chegou at fortaleza onde eu estava. No a qualquer um que se confia um posto to honorfico.

um posto perigoso?

De modo algum! Quem atacaria a esfinge? Trata-se de uma guarda de honra, cujos membros deviam sobretudo vigiar o aumento do nvel da areia, para que esta no soterre o monumento.

Os transeuntes afastavam-se do quarteto; todos conheciam a rapidez com que um babuno atacava; capaz de cravar as presas na perna de um ladro ou de lhe partir o pescoo antes que o dono tivesse tempo de intervir. Quando Kem e o seu macaco patrulhavam a cidade, as ms intenes desapareciam.

Sabes onde vive esse veterano?

Sei, numa casa cedida pelo exrcito, perto do quartel principal.

Mudei de ideias; regressemos ao escritrio.

J no queres verificar o meu processo?

Queria consultar o teu processo; mas no me ia dizer nada de novo. Estarei tua espera amanh de manh, bem cedo. Como se chama o teu babuno?

Matador.

CAPTULO 6

Ao cair da noite, o juiz fechou o escritrio e saiu para passear o co nas margens do Nilo. Deveria debruar-se sobre este dossier minsculo quando podia encerr-lo, bastando para isso colocar-lhe a sua chancela? Meter-se em trabalhos por causa de um processo administrativo no tinha qualquer sentido. Pura rotina; mas s-lo-ia na verdade? Um campons em contacto com a natureza e com os animais apurava a intuio; Paser experimentava uma sensao estranha, quase inquietante, que o levaria a conduzir uma breve investigao para poder aprovar, livre de remorsos, esta transferncia.

Bravo era brincalho, mas no gostava da gua. Saltitava a boa distncia do rio onde passavam barcos de carga, veleiros elegantes e pequenas embarcaes. Uns passeavam, outros transportavam, outros viajavam. O Nilo no s alimentava o Egipto como tambm lhe oferecia uma via de circulao natural e rpida, com os ventos e as correntes a completarem-se miraculosamente. Grandes embarcaes com tripulaes experimentadas deixavam Mnfis em direco ao mar; algumas empreendiam longas expedies a terras longnquas. Paser no as invejava; o seu destino parecia-lhe cruel, pois estas viagens afastavam-nas de um pas do qual ele amava cada centmetro de terra, cada colina, cada pista do deserto, cada aldeia. Todo o Egpcio tinha medo de morrer no estrangeiro; a lei mandava que repatriassem o corpo de forma a que pudesse viver a sua eternidade junto dos seus antepassados, sob a proteco dos deuses.

Bravo emite um som semelhante a um guincho; um pequeno saguim, gil como uma nortada, acabara de lhe borrifar a parte traseira com gua.

O co, aflito e humilhado, arreganhou os dentes sacudindo-se; o brincalho desnorteado saltou para os braos da dona, uma jovem de vinte e poucos anos.

Ele no mau afirmou Paser, mas detesta que o molhem.

A minha macaca merece bem o nome que tem: Diabrete. No pra de fazer travessuras, principalmente aos ces. Passo a vida a ralhar-lhe, mas no adianta.

A sua voz era to doce que acalmou Bravo, que farejou a perna da proprietria da macaca e lhe deu uma lambidela.

Bravo!

No faz mal; penso que me adoptou e isso deixa-me muito contente.

Ser que a Diabrete aceita ser minha amiga?

Aproxime-se e ver.

Paser estava petrificado: no se atrevia a avanar. Na aldeia, andavam algumas raparigas atrs dele, mas ele nunca lhes prestava muita ateno, obcecado que estava com os seus estudos e com a aprendizagem do seu ofcio; no tinha tempo para se distrair com paixonetas e namoricos. A aplicao da lei tinha-se aperfeioado com a idade mas, perante esta jovem, sentia-se completamente desarmado.

Era belssima.

Bela como a aurora da Primavera, como um ltus a desabrochar, como uma vaga cintilante no meio do Nilo. Um pouco mais baixa do que ele, de cabelos aloirados, rosto fino e terno e uns olhos azul-cu de onde se desprendia um olhar sincero. No pescoo fino trazia um colar de lpis-lazli; nos pulsos e nos tornozelos, pulseiras de coralina. O vestido de linho deixava adivinhar os seios firmes e bem desenhados, as ancas modeladas at perfeio e as pernas longas e esguias. Os ps e as mos encantavam os olhos com a sua delicadeza e elegncia.

Ests com medo? perguntou ela, intrigada.

No... claro que no.

Aproximar-se dela seria poder contempl-la mais de perto, respirar o seu perfume, quase tocar-lhe... Mas faltava-lhe a coragem.

Apercebendo-se de que ele no tomaria a iniciativa, ela deu trs passos na sua direco e apresentou-lhe a pequena saguim.

Com a mo ainda a tremer, Paser fez uma festa no focinho da macaca. Com um dedo gil, a Diabrete arranha-lhe o nariz.

assim que ela identifica um amigo.

Bravo no protestou; a trgua entre o co e a macaca estava feita.

Comprei-a numa feira onde se vendem produtos da Nbia; parecia to triste e desamparada que no consegui resistir-lhe.

No punho esquerdo a rapariga trazia um objecto estranho.

Ests intrigado com a minha clpsidra porttil? indispensvel para exercer a minha profisso. Chamo-me Nfret e sou mdica.

Nfret, a bela, a perfeita, a realizada... Que outro nome poderia ter? A sua tez dourada parecia irreal; cada palavra que pronunciava assemelhava-se a uma sedutora melodia campestre ao pr do Sol.

Posso perguntar-te como te chamas?

Era imperdovel. No se tinha apresentado, que falta de educao a dele.

Paser... sou um dos juizes da provncia.

Nasceste c?

No, na regio de Tebas. Acabei de chegar a Mnfis.

Tambm nasci l em baixo! Sorriu, alegremente.

Nota: Foi no Egipto que apareceu o primeiro relgio, um relgio de gua, porttil, destinado aos cientistas (astrnomos, mdicos, etc.), para quem o clculo do tempo era necessrio. (N. do A.)

O teu co j acabou o passeio?

No, no! Ele nunca se cansa.

Ento queres passear um pouco? Preciso de apanhar ar; esta semana foi extenuante.

J ests a exercer a tua profisso?

Ainda no; estou a acabar o 5.o ano de aprendizagem. Primeiro estudei Farmcia e a preparao dos remdios, depois fui veterinria no templo de Dendara. Ensinaram-me a verificar a pureza do sangue dos animais para os sacrifcios e tratar todo o tipo de animais, do gato ao touro. Os erros cometidos foram duramente punidos: com vergastadas, exactamente como para os rapazes!

Paser sofria s de pensar no suplcio infligido quele corpo maravilhoso.

A severidade dos nossos velhos mestres a melhor educao afirmou ela. Se tivermos as orelhas bem abertas, j no esquecemos o que aprendemos. Em seguida fui admitida na escola de Medicina de Sais, onde recebi o ttulo de servidora dos que sofrem, aps ter estudado e praticado vrias especialidades da medicina: dos olhos, do ventre, do nus, da cabea, dos rgos ntimos, dos lquidos segregados pelos gnglios do pescoo e da cirurgia.

Que mais vo exigir ainda de ti?

Podia ser especialista, mas o escalo mais baixo; e s me contentarei com ele se no for capaz de ser mdica de clnica geral. O especialista s trata um aspecto da doena, uma manifestao limitada da verdade.

Uma dor num dado rgo no significa que se conhea a origem do mal. Um especialista s pode fazer um diagnstico parcial. Ser mdico de clnica geral o verdadeiro ideal de todo o mdico; mas a prova que se tem de prestar to difcil que a maior parte desiste logo partida.

Em que posso ajudar-te?

Em nada. Tenho de enfrentar sozinha os meus mestres.

Ento, boa sorte!

Saltaram por cima de um canteiro de lios onde Bravo brincava, e sentaram-se sombra de um vimeiro-amarelo de folha avermelhada.

J falei muito, lamentou-se ela; no meu costume. assim que arrancas as confisses?

Faz parte do meu trabalho. Roubos, dvidas, contratos de venda, desavenas familiares, adultrios, agresses e maus tratos, impostos injustos, calnias, e mil e um delitos mais, eis a rotina que me espera. Tenho de conduzir os inquritos, verificar os testemunhos, reconstruir os factos e julgar.

Deve ser cansativo!

A tua profisso no o menos. Gostas de tratar as pessoas, eu gosto que a justia seja feita; se no dssemos o nosso melhor, seria uma traio.

Detesto aproveitar-me das circunstncias, mas...

Diz, peo-te.

Um dos meus fornecedores de ervas medicinais desapareceu. um homem rude, mas honesto e competente; eu e alguns colegas apresentmos queixa recentemente. Talvez pudesses acelerar as buscas?

Encarregar-me-ei do caso pessoalmente; como se chama ele?

Kani.

Kani!

Conhece-lo?

Ele tinha sido incriminado pelo intendente da jurisdio de Qadash. Mas j foi declarado inocente.

Graas a ti.

Fui eu que investiguei e julguei o caso. Ela beijou-lhe ambas as faces.

Paser, que no era sonhador por natureza, viu-se transportado para um dos parasos reservados aos justos.

Qadash... o dentista famoso?

Esse mesmo.

Diz-se que foi um bom dentista, mas que j se devia ter reformado h muito tempo.

A saguim bocejou e foi aconchegar-se no ombro de Nfret.

Bem, tenho de ir embora; tive muito prazer em conversar contigo. Certamente no nos voltaremos a encontrar; agradeo-te do fundo do corao teres salvo Kani.

Ela no andava, danava; o seu passo era leve, o seu andar esplendoroso.

Paser permaneceu imvel debaixo do vimeiro-amarelo, para gravar na memria o mnimo dos seus gestos, o mais nfimo dos seus olhares, a cor da sua voz.

Bravo pousou a pata direita nos joelhos do dono.

J percebeste que... estou perdidamente apaixonado.

CAPTULO 7

Kem e o seu babuno foram ao encontro marcado.

Ests disposto a levar-me a casa do guardio-mor da esfinge? perguntou Paser.

Estou s tuas ordens.

Esse tom no me agrada mais do que o outro; a ironia no menos mordaz que a agressividade.

A observao do juiz feriu o amor-prprio do nbio.

No tenciono curvar-me diante de si.

Basta que sejas um bom polcia e ns nos entenderemos. O babuno e o dono fitaram Paser; nos dois pares de olhos,

um furor contido.

Vamos.

Neste incio de tarde, as ruelas animavam-se; as donas de casa tagarelavam, os carregadores de gua distribuam o precioso lquido, os artesos gravavam as peas com os buris. Graas ao babuno, a multido afastou-se.

O guardio-mor vivia numa casa semelhante de Branir, mas menos elegante. Na soleira de uma porta, brincava uma menina com uma boneca de madeira; quando viu o enorme macaco, desatou a gritar assustada, entrando em casa a chorar. No mesmo instante, a me veio c fora indignada.

Porque assustaste a criana? Prende j esse monstro!

s a mulher do guardio-mor da esfinge?

Com que direito me esto a interrogar!

Eu sou o juiz Paser.

O ar srio do jovem magistrado e o comportamento do babuno convenceram a mulher a acalmar-se.

J aqui no mora. O meu marido tambm um veterano. Por isso o exrcito concedeu-nos este alojamento.

Sabes para onde ele foi?

A mulher parecia contrariada; quando me cruzei com ela no dia da mudana, falou-me numa casa, num bairro suburbano, l para o Sul.

No te disse nada de mais concreto? Porque havia eu de estar a mentir?

O babuno deu um estico trela; a mulher recuou, encostando-se ao muro.

Mais nada?

No, juro-te que no!

Encarregado de levar a filha escola de dana, o escrivo larrot tinha sido autorizado a sair a meio da tarde, no sem antes se ter comprometido a entregar na sede da administrao da provncia os relatrios dos casos resolvidos pelo juiz. Em poucos dias, Paser tinha resolvido mais casos do que o seu antecessor em seis meses.

Quando o Sol se ps, Paser acendeu vrias candeias; tinha de se desembaraar o mais rpido possvel de uma dezena de conflitos com o fisco, os quais tinha decidido todos a favor dos contribuintes. Todos, excepto um, que dizia respeito a um transportador chamado Denes. O juiz principal da provncia tinha acrescentado, mo, umas palavras ao processo: Arquivar sem processo.

Acompanhado pelo burro e pelo co, Paser foi fazer uma visita ao seu mestre, pois ainda no tinha tido tempo de l voltar depois de se ter mudado. No caminho interrogava-se sobre o destino curioso do guardio-mor que, alm de ter deixado um cargo de prestgio, perdera tambm a casa.

O que estaria por detrs desta cascata de contratempos? O juiz tinha pedido a Kem que encontrasse o rasto do veterano. Enquanto no o tivesse interrogado, Paser no aprovaria a transferncia.

Com a pata esquerda, Bravo esfregou vrias vezes o olho direito; ao examin-lo Paser viu uma ligeira irritao. O velho mdico saberia como cur-lo.

A casa estava iluminada; Branir gostava de ler noite, quando os barulhos da cidade j tinham desaparecido.

Paser bateu porta principal, desceu ao vestbulo, seguido do co, e parou estupefacto. Branir no estava sozinho. Conversava com uma mulher, a quem o juiz reconheceu a voz de imediato. Ela, aqui!

O co meteu-se entre as pernas do dono e mendigou umas festas.

Entra, Paser!

O juiz, inquieto, acedeu ao convite. S tinha olhos para Nfret, sentada escriba em frente ao velho mdico, segurando um fio de linho entre o polegar e o indicador, no fim do qual oscilava uma pequena pedra de granito, talhada em forma de losango.

Nfret, a minha melhor aluna; o juiz Paser. Depois das apresentaes feitas, aceitas um pouco de cerveja fresca?

A tua melhor aluna...

Ns j nos conhecemos, disse ela alegremente.

Paser agradeceu sua boa estrela; rev-la enchia-o de felicidade.

Dentro em breve, Nfret vai enfrentar a ltima prova antes de poder exercer a sua arte lembrou Branir. por isso que estamos a repetir os exerccios de radiestesia que lhe sero indispensveis para fazer um diagnstico. Estou convencido de que vai ser uma excelente mdica, pois sabe ouvir. E quem sabe ouvir sabe agir. Saber ouvir o melhor tesouro que se pode possuir. E s o nosso corao pode oferecer-nos essa qualidade.

Nota: Um pndulo. Conhecem-se tambm as varas dos rabdomantes e sabe-se que certos faras, como Seti I, foram grandes radiestesistas capazes de encontrar gua no deserto. (N. do A.)

O segredo do mdico est em conhecer o corao, no assim? perguntou Nfret.

esse o segredo que te ser revelado se fores digna de o receber.

Gostaria de ir descansar.

o que deves fazer.

Bravo coou o olho; Nfret apercebeu-se da sua aflio.

Penso que est a sofrer diz Paser. O co deixou-se examinar.

No nada de grave concluiu ela; basta pr-lhe um colrio e isso passa.

Branir foi logo buscar o remdio; as infeces oftalmolgicas so frequentes e no faltam remdios para as curar. O produto fez efeito rapidamente; o olho de Bravo desinchou enquanto a jovem o acariciava. Pela primeira vez, Paser teve cimes do seu co. Procurou uma forma de a fazer demorar-se, mas teve de se contentar em cumpriment-la quando saiu.

Branir serviu uma cerveja excelente, feita na vspera.

Pareces cansado; no te deve faltar trabalho.

Tenho tido problemas com um tipo chamado Qadash.

O dentista das mos vermelhas... um homem atormentado e mais vingativo do que realmente parece.

Penso que culpado no rapto de um campons.

Tens provas consistentes?

No, s meras conjecturas.

Tens de ser mais rigoroso nas tuas diligncias, pois os teus superiores no perdoam faltas de exactido.

Ds frequentemente aulas a Nfret?

Transmito-lhe a minha experincia, pois tenho confiana nela.

Ela nasceu em Tebas.

filha nica de um fabricante de ferrolhos e de uma tecedeira; conheci-a quando tratava deles. Fez-me mil e uma perguntas, e eu encorajei a sua vocao inata.

Uma mulher mdica... no vai ter muitos obstculos para ultrapassar?

Inimigos tambm; mas a sua coragem no menor que a sua doura. O mdico-chefe da corte est espera que ela reprove, e ela sabe-o.

Um adversrio de respeito!

Ela est consciente disso; uma das suas maiores qualidades a tenacidade.

casada?

No.

Tem noivo?

Que eu saiba, nada de oficial.

Paser passou a noite em claro. No conseguiu deixar de pensar nela; de ouvir a sua voz; de sentir o seu perfume; de engendrar mil e uma estratgias para a rever, sem encontrar uma soluo satisfatria. Vezes sem conta a angstia se apoderou dele. Ser que ele lhe era indiferente? Nfret no tinha demonstrado a mnima atraco, s um vago interesse pela sua profisso. At a justia ficava com um gosto amargo; como podia continuar a viver sem ela, como podia aceitar a sua ausncia? Paser nunca tinha acreditado que o amor fosse uma torrente to arrebatadora, capaz de arrastar diques e de se apoderar do ser na sua totalidade.

Bravo apercebeu-se do desassossego do dono; os seus olhos transmitiram-lhe uma ternura que, embora Paser a tenha sentido, no era suficiente para apaziguar o seu tumulto interior. Paser sentiu-se com remorsos por fazer o co ficar triste; se pudesse escolher, preferiria contentar-se com esta amizade desprovida de nuances, mas no conseguia resistir ao olhar de Nfret, ao seu rosto lmpido, ao turbilho de sentimentos que ela lhe provocava.

O que devia fazer? Esconder este sentimento seria o mesmo que condenar-se ao sofrimento. Declarar-lhe a sua paixo era arriscar-se a uma recusa que o levaria ao desespero. Tinha de a conquistar, de a seduzir; mas que subterfgios possua ele, um simples juiz de bairro sem fortuna?

O nascer do Sol no apaziguou os seus tormentos, mas incitou-o a embrenhar-se no seu papel de magistrado. Deu de comer ao Bravo e ao Vento do Norte, e confiou-lhes o escritrio, convencido de que o escrivo chegaria atrasado. Munido de um cesto em papiro, que continha tabuinhas, um estojo com pincis e tinta j preparada, dirigiu-se para as docas.

No cais estavam vrios barcos que eram descarregados por marinheiros sob as ordens de um cabo. Aps ter sido colocada uma prancha a servir de ponte, os homens, com compridas varas atravessadas sobre o ombro, s quais amarravam com cordas sacos, cabazes e seiras, desciam o plano inclinado. Os mais robustos carregavam pesados pacotes s costas.

Paser dirige-se ao cabo.

Onde posso encontrar Denes?

O patro? Por a!

As docas no so dele?

As docas, no, mas um grande nmero de barcos, sim! Denes o transportador mais importante de Mnfis e um dos homens mais ricos da cidade.

Onde poderei encontr-lo?

Ele s c vem quando chega um dos grandes navios de carga... Procura-o na doca central. Acabou de atracar uma das suas embarcaes.

Com uns cinquenta metros, o enorme navio podia transportar mais de seiscentas e cinquenta toneladas. De fundo chato, o barco era composto por inmeras tbuas cortadas na perfeio e unidas como tijolos; as do revestimento do casco eram muito grossas e ligadas por correias de couro. Uma vela de grandes dimenses tinha sido iada num mastro trpode, desmontvel e firmemente amarrado. O capito mandava tirar o manto de juncos preso proa e descer a ncora redonda.

Quando Paser quis subir a bordo, um marinheiro barrou-lhe a passagem.

No pertences tripulao.

Sou o juiz Paser.

O marinheiro desviou-se e o juiz atravessou o passadio at cabine do capito, um homem mal-humorado de cinquenta e tal anos.

Gostaria de falar com Denes.

O patro, aqui a esta hora? Nem penses!

Trago uma queixa dentro dos requisitos legais.

A que propsito?

Denes cobra uma taxa nas descargas dos navios que no lhe