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Quatro horas e quarenta e quatro minutos Oito horas e sete minutos Desci as escadas à pressa com o Memorial do Convento na mão, fiel companheiro dos últimos tempos, de um salto fui à cozinha agarrar qualquer coisa para comer, conforme abri a porta de casa, de tão acelerado que ia, pus um pé em cima de um envelope branco que escorregou debaixo de mim pouco faltando para me fazer cair. Tinha o meu nome escrito em letras vermelhas garrafais e certamente era só mais uma das brincadeiras que os meus amigos teimam em fazer para dar aso às suas infindáveis imaginações, Tens quatro horas e quarenta e quatro minutos para perceber quais os problemas que assombram Portugal e tomar uma atitude que mude esta realidade demente em que vivemos. É agora ou nunca. Caso contraries a missão para que estás predestinado e não cumpras com o teu dever, a tua vida mudará. Para sempre. Desta vez tinham-se mesmo esmerado, até acreditaria que era real, não conhecesse eu, como as palmas das minhas mãos, o belo grupo que me esperava na escola, em hilariante espetáculo de troça. Instintivamente, não sei se pensando que chegaria atrasado ou estando de facto a refletir sobre o que tinha acabado de ler, olhei para o relógio. Oito e sete. Ia mesmo chegar atrasado… Qual não foi o meu espanto quando me deparei com a cena mais caricata e teoricamente impossível ali à frente da minha casa! Esfreguei os olhos, mas continuava a ver exatamente o mesmo, quão inacreditável era aquilo?! Só tinha duas hipóteses que me permitissem tirar conclusões lógicas acerca do que estava a ver. Ou estava com alucinações, tal era o ritmo acelerado a que andava a ler a obra do nosso Nobel, ou estavam a decorrer gravações para algum filme precisamente na minha rua. À minha frente estavam a passarola, Blimunda, Baltasar e padre Bartolomeu, todos quatro como na obra se apresentam, e foi com grande frenesim que saltaram da passarola mal me viram sair à rua, apressando-se a dirigir-se para mim, Blimunda avançando destacada dos homens, Com que então, foste tu o escolhido, Pois bem, entra na passarola imediatamente, o tempo está a passar e com certeza não queres saber que consequências advêm dessa carta, pois não, Todos os músculos do meu corpo paralisaram por completo, não conseguia perceber de modo algum o que se estava a passar, mas começava a sentir o medo a apoderar-se de mim, Então rapaz, não vens, Olha que o tempo voa! Já dentro da passarola, para a qual me encaminharam com grande custo e envolto numa nuvem de temor, olhei em redor e apercebi-me de que era tal e qual como tinha imaginado: ferros velhos na maior fração da construção, um íman gigante na parte de baixo, uma vela por cima e as tão misteriosas esferas de âmbar. Bartolomeu já estava a tratar do elevar da ave de ferro quando Blimunda se veio sentar ao meu lado, Ouve rapaz, já estamos muito habituados a isto e as reações iniciais pouco diferem entre si… De 5 em 5 anos, a partir de 1730, ano da conclusão da construção do Convento de Mafra, descemos dos céus com a nossa passarola, que tão longe levou o sonho do Homem, e juntamo-nos ao escolhido do quinquénio para longe levar a audácia e a ambição do eleito, representante de um povo. O objetivo é simples: alertar para o mal que mina e grassa entre vós, mostrar o que de bom é feito e, acima de tudo, fazer mudar o que apodrece a nação, consciencializar as mentes do rumo a tomar para que se continue sempre a poder voar, Mas, Blimunda, porque é que fui eu o escolhido, O Homem põe e Deus dispõe, não é verdade. Bruscamente, começámos aos solavancos e a passarola iniciou o seu voo, erguendo-se lenta e atribuladamente do chão. Nove horas e sete minutos Como é imensa e linda Lisboa aqui de cima! Já foram tantas as vezes que avistei este paraíso mas mesmo assim não há como cansar a vista desta maravilha de que é feito um pouco do nosso Portugal! Bartolomeu cirandava de um lado para o outro, fervilhando de entusiasmo, enquanto Baltasar tomava o leme da passarola, já alta no céu, Então Benjamim, agora o poder de decisão está nas tuas mãos, por onde queres começar, Como sabe o meu nome, Baltasar, Benjamim significa filho da mão direita e, metaforicamente, pode entender-se o teu nome como filho da felicidade. Seguramente compreendes que se adequa à minha mais manifesta caraterística, não compreendes, Olhei para baixo para refletir sobre o que tinha acabado de ouvir e percebi que nos encontrávamos

Conto rafaela 4_h44min

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Quatro horas e quarenta e quatro minutos

Oito horas e sete minutos

Desci as escadas à pressa com o Memorial do Convento na mão, fiel companheiro dos últimos tempos, de um

salto fui à cozinha agarrar qualquer coisa para comer, conforme abri a porta de casa, de tão acelerado que ia, pus

um pé em cima de um envelope branco que escorregou debaixo de mim pouco faltando para me fazer cair. Tinha

o meu nome escrito em letras vermelhas garrafais e certamente era só mais uma das brincadeiras que os meus

amigos teimam em fazer para dar aso às suas infindáveis imaginações, Tens quatro horas e quarenta e quatro

minutos para perceber quais os problemas que assombram Portugal e tomar uma atitude que mude esta

realidade demente em que vivemos. É agora ou nunca. Caso contraries a missão para que estás predestinado e

não cumpras com o teu dever, a tua vida mudará. Para sempre. Desta vez tinham-se mesmo esmerado, até

acreditaria que era real, não conhecesse eu, como as palmas das minhas mãos, o belo grupo que me esperava na

escola, em hilariante espetáculo de troça. Instintivamente, não sei se pensando que chegaria atrasado ou estando

de facto a refletir sobre o que tinha acabado de ler, olhei para o relógio. Oito e sete. Ia mesmo chegar atrasado…

Qual não foi o meu espanto quando me deparei com a cena mais caricata e teoricamente impossível ali à

frente da minha casa! Esfreguei os olhos, mas continuava a ver exatamente o mesmo, quão inacreditável era

aquilo?! Só tinha duas hipóteses que me permitissem tirar conclusões lógicas acerca do que estava a ver. Ou

estava com alucinações, tal era o ritmo acelerado a que andava a ler a obra do nosso Nobel, ou estavam a

decorrer gravações para algum filme precisamente na minha rua. À minha frente estavam a passarola, Blimunda,

Baltasar e padre Bartolomeu, todos quatro como na obra se apresentam, e foi com grande frenesim que saltaram

da passarola mal me viram sair à rua, apressando-se a dirigir-se para mim, Blimunda avançando destacada dos

homens, Com que então, foste tu o escolhido, Pois bem, entra na passarola imediatamente, o tempo está a

passar e com certeza não queres saber que consequências advêm dessa carta, pois não, Todos os músculos do

meu corpo paralisaram por completo, não conseguia perceber de modo algum o que se estava a passar, mas

começava a sentir o medo a apoderar-se de mim, Então rapaz, não vens, Olha que o tempo voa!

Já dentro da passarola, para a qual me encaminharam com grande custo e envolto numa nuvem de temor,

olhei em redor e apercebi-me de que era tal e qual como tinha imaginado: ferros velhos na maior fração da

construção, um íman gigante na parte de baixo, uma vela por cima e as tão misteriosas esferas de âmbar.

Bartolomeu já estava a tratar do elevar da ave de ferro quando Blimunda se veio sentar ao meu lado, Ouve rapaz,

já estamos muito habituados a isto e as reações iniciais pouco diferem entre si… De 5 em 5 anos, a partir de 1730,

ano da conclusão da construção do Convento de Mafra, descemos dos céus com a nossa passarola, que tão longe

levou o sonho do Homem, e juntamo-nos ao escolhido do quinquénio para longe levar a audácia e a ambição do

eleito, representante de um povo. O objetivo é simples: alertar para o mal que mina e grassa entre vós, mostrar o

que de bom é feito e, acima de tudo, fazer mudar o que apodrece a nação, consciencializar as mentes do rumo a

tomar para que se continue sempre a poder voar, Mas, Blimunda, porque é que fui eu o escolhido, O Homem põe

e Deus dispõe, não é verdade. Bruscamente, começámos aos solavancos e a passarola iniciou o seu voo,

erguendo-se lenta e atribuladamente do chão.

Nove horas e sete minutos

Como é imensa e linda Lisboa aqui de cima! Já foram tantas as vezes que avistei este paraíso mas mesmo

assim não há como cansar a vista desta maravilha de que é feito um pouco do nosso Portugal! Bartolomeu

cirandava de um lado para o outro, fervilhando de entusiasmo, enquanto Baltasar tomava o leme da passarola, já

alta no céu, Então Benjamim, agora o poder de decisão está nas tuas mãos, por onde queres começar, Como sabe

o meu nome, Baltasar, Benjamim significa filho da mão direita e, metaforicamente, pode entender-se o teu nome

como filho da felicidade. Seguramente compreendes que se adequa à minha mais manifesta caraterística, não

compreendes, Olhei para baixo para refletir sobre o que tinha acabado de ouvir e percebi que nos encontrávamos

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a sobrevoar a avenida da liberdade. Como tudo era diferente visto daquela perspetiva, no meio da tremenda

confusão ainda tive uma fração de instantes para pensar quão pequeno era o homem comparado com o mundo

em que vivemos. Sentia-me confuso com aquilo que se estava a passar mas, ao mesmo tempo, uma energia

vibrante começava a apoderar-se de mim, a encorajar-me para o que quer que fosse que se aproximasse nas

próximas horas, Sim, compreendo Baltasar. Pode então explicar-me qual é a minha missão e como posso ser bem

sucedido e eficaz nesta aventura, E o que significavam as frases finais e intimidativas da carta que recebi,

Observei Blimunda e o padre Bartolomeu, agora no controlo da passarola para que Baltasar se pudesse vir sentar

ao meu lado e percebi que a ligação entre eles, a junção entre os sonhos e os ideais que tinham, ultrapassava

quaisquer linhas escritas no romance, era algo muito mais forte e bem real, escondido pelas entrelinhas. Já

Baltasar era homem guiado pelo direto e palpável, conciso e de pés assentes no chão, sendo ele parte do juízo

presente na loucura dos dois sonhadores que completavam este trio encantado, É uma situação complexa e vais

ter de ir descobrindo aos poucos, ao longo do contrarrelógio com que te deparas, todos os pormenores

minuciosos desta alucinante batalha. Mas penso que posso elucidar-te um pouco, para te desbravar um pouco do

caminho que precisas de descobrir para dar início, ou melhor, continuidade, ao desafio. Foste o escolhido do ano

de 2015 e, como sabes, a sociedade está cheia de vícios, de corrupção, de desigualdade, de exploração, de

hipocrisia e de desrespeito, desde as entranhas até à sua mais externa e visível parte. Tens como encargo

desvendar esses defeitos e perceber de que forma podes agir para mudar, micro ou macroscopicamente, o meio

social, ambiental e político que te rodeia. Com os olhos de Blimunda a auxiliarem-te, conseguirás ver por dentro

aquilo de que é feito o mundo e as gentes. Com os sonhos do padre Bartolomeu, poderás ir mais longe e voar até

ao intangível, o que te ajudará a contornar as agruras que ultrapassam o físico. Com a minha mão direita, terás a

possibilidade de mover montanhas, com a força do querer do Homem, neste caso com a tua força! Relativamente

às últimas sentenças da carta… Esse desfecho não nos compete a nós, mas sim à Inquisição. Como calculas, a

relação entre o padre Bartolomeu e os supremos juízes não é efetivamente a melhor possível. Mas para

contornamos esse problema, nós estamos exclusivamente encarregues de te guiar durante a tua missão, desde o

princípio da mesma até ao seu fim, porém a partir daí teremos de te deixar para que a entidade do auto de fé

possa prosseguir com as consequências do incumprimento daquilo para que estás designado. Agora sim, senti

que estava realmente a ser abalado por uma avalanche de informações. Era demasiado para digerir em tão pouco

tempo. E tão escasso que era o tempo!

Nove horas e cinquenta minutos

Pairávamos agora sobre a estação de comboios do Rossio e, para mim, conseguir conjeturar a ideia de

estacionar a passarola ali era tão ou mais complicada que meter o próprio Rossio na Rua Betesga, literalmente.

Ainda não tinha compreendido na plenitude, nem perto disso, como funcionava toda esta questão da visibilidade

da passarola e dos seus três donos para com o mundo atual, Então, Benjamim, a primeira paragem está

estipulada, tens-nos aos três como auxílio para a demanda a que estás sujeito, qual pensas serem os problemas

mais patentes na sociedade que te é contemporânea, Bem, padre Bartolomeu, antes de mais, pode explicar-me

uma coisa no que concerne à vossa presença aqui, No que me for possível ajudar e elucidar, estou ao teu dispor,

Quem circula na rua e quem por nós passa, consegue ver-vos tal e qual como vos vejo, E o que acontece com a

passarola, Não seria de esperar que se mobilizassem multidões para contemplar este pedaço de história e de

imaginação vivo, Depois das primeiras interrogações sobre o que se está a suceder essa é sempre a pergunta

seguinte, os eleitos começam a tornar-se previsíveis! Mas é simples: conforme atingimos o limite de visibilidade

dos teus iguais, nomeadamente a linha de visão dos pilotos e dos passageiros dos aviões, adquirimos a aparência

de pássaros, tanto nós como a nossa ave de ferro. Após aterrarmos, eu, Baltasar e Blimunda, assumimos a

aparência de meros humanos do século XXI, todos indistinguíveis uns dos outros aos olhos dos transeuntes que

cruzam as ruas na sua azáfama diária, com todas as vossas roupas estranhas, bem como com os vossos trejeitos e

a passarola é vista como um carro. Simples, ou não.

Blimunda fixou o olhar dentro da estação, Queres entrar Benjamim, Que vês tu Blimunda, Vejo frenesim,

corrupios de sobrevivência, tristeza e miséria, vejo barrigas e mentes vazias, não vejo vontades, Então que pensas

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acerca disto rapaz. A interrogação de Bartolomeu invadia-me a alma, inundando-me com respostas à pergunta e

com mais perguntas para as respostas. Era hora de ponta e a agitação constante na estação refletia uma realidade

sobre a qual nunca me havia debruçado. Os seres triviais limitavam-se a reproduzir maquinalmente a rotina que

dia após dia repetiam, em busca da subsistência, do sustento para aquilo a que chamavam vida, que na verdade

de vida nada tinha. As barrigas ocas dos unicamente senhores da rua roncavam e as suas bocas soltavam para os

que passavam palavras de súplica, de exasperação e de medo e estes ignoravam, seguindo caminho na sua

própria bolha de sabão, no seu próprio mundo de automaticidade, imune a distrações que desviassem a atenção

e o dispêndio de energias de algo que não fosse isso mesmo. Como é que era possível que ninguém tentasse sair

da corrente, rasgar e partir em direção oposta, em busca da essência do ser e da razão pela qual fomos semeados

nesta terra infértil?

Dez horas e trinta e três minutos

Chegados ao Cais das Colunas, deparámo-nos com a realidade oposta à da primeira paragem de reflexão:

turistas passeavam-se prazerosamente pela beira do Tejo, com uma atitude de total fruição e de descontração

para com a vida. Baltasar saltou da ave de metal e foi sentar-se junto ao rio, Vem Benjamim, senta-te aqui a meu

lado. Dali tudo parecia límpido e todos os pensamentos hostis que me haviam assaltado anteriormente

relativamente à vida se desvaneceram, dando lugar a paz e a positividade, Sabes, quando cheguei a Lisboa, vindo

de Évora e da guerra, toda esta região era imunda, recheada de cheiros nauseabundos e de gentes

indubitavelmente ignorantes, pobres de espírito, de querer e de discernimento. Agora, de cada vez que volto para

a serenidade que é a proximidade do rio lisboeta, sinto que esta cidade chama por mim. Tal como o íman atrai as

vontades que nas esferas estão, Lisboa atrai o mundo e o povo do mundo, basta olhares à tua volta para veres

como não minto. Passei o olhar pelas redondezas do lugar onde estava sentado e percebi quão luminosa era a

nossa cidade, cheia de vida e de amor para dar, com os seus recônditos pormenores deslumbrantes e o céu

imenso e azul que a cobria, fazendo chover esperança e desencadeando o florescer do ímpeto de ir mais além.

Nesta aventura em que embarcaste, vais chegar muito mais longe do que pensas, crescerás moralmente, estamos

aqui não só para te alertar para o flagelo da sociedade mas também para te mostrar que ao teu redor tens um

mar de proveitos a tirar do bom que aqui há.

Aproximei-me da margem e debrucei-me sobre o que Baltasar acabava de me transmitir. Portugal, um mar de

terra encantado recheado de benesses para dar, com a sua beleza natural indefinível de tão pura e única que é,

com as suas ruas entrecruzadas que a algum sítio sempre levam, merece mais, merece um povo que acorde do

submundo em que vive, que rebente a bolha de isolamento na qual está acomodadamente instalado e faça

melhor. Virado para o rio, encontrava-me de costas para a Europa e de frente para um interminável oceano de

oportunidades, sentia-me como se as trevas e o abater das nações estivessem agora atrás de mim e nada pudesse

ofuscar a luz que a tira de terra lusa emanava para o mundo. Era imperativo sonhar e acreditar que dentro em

breve reconquistaríamos a glória de outrora e mesmo no cerne de tanta falta de princípios e de vontades,

pressentia que se havia sempre de erguer quem impulsionasse a catarse da nação, o renascer da fénix do meio

das cinzas.

Onze horas e dezasseis minutos

Recém chegados ao sítio onde se sentam os que, supostamente, regem a via por que segue o país, sentia cada

vez mais o peso do tempo a esmagar-me os ombros, era impreterível terminar esta missão e os minutos

esfumavam-se à minha frente, sem que tivesse outra opção a não ser esmiuçar os meandros da sociedade na

busca da solução para os aparentemente incontornáveis problemas que nos sufocavam. Pois bem Benjamim,

como sabes, vejo tudo por dentro. E este meu dom inclui a visão do que não quero, do mal que corre por dentro

das pessoas. E sabes? O mal aparece a vermelho dentro de cada um dos homens e garanto-te eu que não é

sangue. É um vermelho diferente, fervilhante e ácido, E que vê Blimunda por dentro do palacete de São Bento,

Vejo mares e marés intermináveis de escarlate conspurcado e vejo senhores donos que de senhores não têm

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nada de tão corrompida que está a sua alma. Deambulando pela praça, Baltasar e Bartolomeu debatiam

afincadamente a política que governava o país, praguejando em direção ao alvo edifício que graças aos habitantes

que o ocupavam, tinha um interior que mais parecia o Mercado da Ribeira. Por um lado estava invadido por

regedores intrujões que quando lhes convinha eram irmãos do povo e, depois de obtida a licença de vencimento

com mais uns quantos zeros primos da única mão de Baltasar, subiam três degraus de um ímpeto e já não

voltavam a olhar mais para baixo, não fosse cair a dignidade que ostentavam, de tão frágil que era. Por outro

lado, também lá dentro andavam os hipócritas que se banham em águas de bons servos só para poderem grudar-

se aos senhores do poderio. E como a cavalo dado não se olha o dente, lá foram então repescados pela elite e

estão agora a desempenhar os seus múnus desprezáveis, felizes e contentes com a sua triste vida.

Sentado no exterior do palácio está um sem abrigo, com a mão estendida na esperança que lhe atirem os cinco

reis dos dias de hoje. Passou uma das altezas, saída do seu exaustivo trabalho e nem os olhos baixou para encarar

o triste homem. Como é que o país haveria de sair do poço se, enquanto o povo se exasperava para atingir a

claridade, havia uma opressiva minoria que teimava em continuar a tirar a água do fundão, deitando por terra as

oportunidades de reerguer os arrasados? Com a desigualdade omnipresente que a cada dia mais se entranhava

na sociedade, era imperativo atuar no sentido de por um ponto final a este descalabro. O país degradava-se a

olhos vistos graças aos decadentes ideais corrompidos que mobilizavam os regentes da Nação e estes, detentores

do poder de deter as revoltas, impediam o brotar de novas ideias, paravam a construção de novas vias de

governação, mais límpidas e corretas, que ousavam aparecer.

Sentia-me perdido e assustado no meio desta falange de crise. A motivação que me assaltara junto ao rio,

esvaíra-se, deixando dentro de mim um vazio, levando com ela a esperança, agora substituída por medo do que o

futuro nos traria. Como é que era possível que nunca me tivesse detido a pensar sobre o veneno que nos corrói,

destrói e decompõe até que só sobrem meros corpos movidos pelo arrastar da corrente? Como é que se havia de

por um término a esta desalentadora situação? As perguntas surgiam em catadupa, as respostas pareciam cada

vez menos evidentes e o peso que o tempo punha sobre os meus ombros insistia em esmagar-me, roubando-me

o ar e o alento.

Onze horas e cinquenta e nove minutos

Perante a minha atitude desesperada e desapontada, Baltasar, Bartolomeu e Blimunda, todos três,

aproximaram-se de mim, Não podes baixar os braços rapaz, a reviravolta que vai mudar tudo aquilo que te

angustia está nas tuas mãos e apenas de ti depende, agora cabe-te encontrar o foco de luz que ilumine o poço e

nos traga de volta à claridade, Eu sei padre Bartolomeu, mas sinto-me sem forças para enfrentar este perturbante

e arrasado mundo, Para te animar e antes de tomares as decisões que tens a tomar, antes da deliberação final

relativa às resoluções que ponderas serem as melhores, e visto que ainda há um infinitésimo de tempo, quero

levar-te a um sítio. O motor da passarola começou a ronronar para dentro de instantes se encontrar a roncar,

erguendo-nos do solo.

Navegando Tejo abaixo, estávamos agora mesmo a par da Torre de Belém e ao longe vi em terra um edifício

que se assemelhava a um navio, Estás a ver aquele barco Benjamim, Sim estou, padre Bartolomeu, Lá está algo

que te pode dar esperança. Dentro daquela construção estão as gentes que podem, tal como tu, inverter o rumo

de navegação a que Portugal está condenado. Naquele centro de investigação está a evolução científica, a

ambição e a inovação. Tal como aquelas, existem muitas outras mentes de mudança semeadas pela nossa

magnificente terra, escondidas na penumbra, à espera de um momento para poderem aparecer ao mundo. Ali

dentro geram-se vendavais, mas não penses que são vendavais negativos. Ali, os ventos do futuro, instigados por

cabeças cheias de desejos e quereres, sopram, impulsionando-nos para a mudança e para o progresso. Como

sabes sou um sonhador e que mais empurraria o mundo para diante que não os sonhos? E de que mais poderia

ser feito o mundo que não de sonhos que levam o Homem até uma esfera superior e o tiram da sua órbitra de

conforto, fazendo-o crescer e singrar na sua existência?

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Doze horas e quarenta e dois minutos

De volta à rua inicial, a passarola aterrou exatamente onde tudo isto tinha começado. Faltavam nove minutos

para o desfecho daquela atribulada aventura e tudo na minha cabeça rodopiava a uma velocidade alucinante.

Comecei a rever mentalmente os episódios da vida desta cidade a que tinha assistido hoje e conseguia por na

balança quer aspetos positivos, quer aspetos negativos, e estava a começar a entender o porquê de me ter

sentido tão assustado perante as falhas que assomavam à minha frente. A escuridão, quando intrinsecamente

instituída, torna-se difícil de quebrar, adquirindo um aspeto temível e intimidativo. Por sua vez, a luz de hoje em

dia parece tão trémula que a expectativa positiva que em nós cria, facilmente é roubada se estivermos

desprotegidos e descrentes dos nossos próprios sonhos e ideais. Estás prestes a atingir o tempo limite e as

decisões têm de ser tomadas, já sabes qual a tua posição relativamente à manhã de hoje, Sim, já decidi.

Doze horas e quarenta e seis minutos

Afastei-me lentamente da ave de ferro mais incrível que já havia visto e vagueei pela rua, sozinho com os

meus pensamentos. Os problemas não são, de modo algum, incontornáveis, quando existe vontade. Afinal, o que

Blimunda via dentro dos homens com a aparência de uma nuvem fechada era bem real e pronunciava-se

fortemente nos momentos em que pelos heróis se procura. Sentia-a, a vontade, a espalhar-se pelo meu corpo

todo, a impelir-me para a frente e para cima, era como se dentro de mim não coubesse de tão colossal que era.

Eu podia ser a mudança.

Doze horas e cinquenta minutos

Olhei para o relógio e faltavam menos de dez segundos. Era a hora!

***

Acordo sobressaltado, com o coração a galopar dentro de mim, com o sangue a ferver nas veias, com a cabeça

a latejar, perto de rebentar, e sento-me na cama em busca de um fôlego e de acalmia. É de madrugada e tudo

dorme menos eu. Olho em redor para a escuridão do meu adormecido quarto e paro o olhar no relógio: quatro

horas e quarenta e quatro minutos.