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1 CONTRAPONTOS PARA A VIOLÊNCIA: PROCESSOS DE VALORIZAÇÃO NA ESCOLA PÚBLICA Aluna: É.... porque, comparado ao que era, né? A gente vinha pra escola com medo... Aluno: Acho que se essa entrevista fosse feita aqui há alguns anos atrás... Todos: (risos) Aluno: Bom, eu acho que foi do marco zero ao 10 em um segundo. Antes, se falava mal, a escola só era referência pra coisas más. Reportagem, mesmo, só vinha pra filmar os banheiros sujos e as coisas que aconteciam. Agora, é motivo de orgulho, não só para os alunos como para a comunidade. Aluna: Era pichação, eram os bandidinhos que jogavam pedra, queimavam a sala de ciência, nossa... foi uma época horrível, mesmo. Aluno: Eu já vi, assim, outros jovens, em outros bairros, falarem “Ah, meu amigo trouxe um revólver pra escola”. Falei: “Nossa, na minha escola não, pessoal. Na minha escola, a gente leva livro e caderno...”. (Trecho de um grupo focal de alunos - série: 3º ano do Ensino médio; turno: noite; faixa etária: um de 16 anos, três de 17 anos, três de 18 anos e 2 de 19 anos; presentes: cinco homens e 4 mulheres; dia: 25/09/2002). Apresentação A partir da pesquisa Violências nas Escolas1, que aborda situações de violência enfrentadas no cotidiano das escolas situadas nas periferias das grandes cidades brasileiras, constatou-se que, fazendo contraponto a uma situação social e escolar bastante precária e marcada por trágicas histórias, foram relatadas práticas atípicas e inovadoras, geradoras de novas perspectivas para as juventudes, os professores e a escola. Assim, contrariando análises relacionadas unicamente aos determinantes sociais e econômicos, vem-se observando experiências bem-sucedidas no universo escolar, que valorizam alunos, professores, familiares e comunidade, dando ao equipamento físico e social representado pela escola maior significado, junto ao seu entorno. São práticas que, em diferentes lugares do Brasil, procuram realizar uma educação crítica, voltada para expansão da autonomia e da responsabilidade social dos alunos. Essa escola, que institui práticas que chamamos inovadoras, leva à reflexão sobre o desafio de ultrapassar os modelos tradicionais de análise, que buscam explicações naquilo que, 1 A pesquisa Violências nas Escolas foi realizada em 14 grandes cidades brasileiras, estudando um total de 340 escolas (239 públicas). Responderam ao questionário 33.655 alunos e 3.099 professores. No estudo qualitativo foram ouvidos 1070 alunos Os resultados desse trabalho encontram-se no livro Violências nas escolas, Miriam Abramovay & Rua: UNESCO, 2002.

Contrapontos para a violência

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CONTRAPONTOS PARA A VIOLÊNCIA: PROCESSOS DE VALORIZAÇÃO NA ESCOLA PÚBLICA

Aluna: É.... porque, comparado ao que era, né? A gente vinha pra escola com medo... Aluno: Acho que se essa entrevista fosse feita aqui há alguns anos atrás...

Todos: (risos) Aluno: Bom, eu acho que foi do marco zero ao 10 em um segundo. Antes, se falava mal, a escola só era

referência pra coisas más. Reportagem, mesmo, só vinha pra filmar os banheiros sujos e as coisas que aconteciam. Agora, é motivo de orgulho, não só para os alunos como para a comunidade.

Aluna: Era pichação, eram os bandidinhos que jogavam pedra, queimavam a sala de ciência, nossa... foi uma época horrível, mesmo.

Aluno: Eu já vi, assim, outros jovens, em outros bairros, falarem “Ah, meu amigo trouxe um revólver pra escola”. Falei: “Nossa, na minha escola não, pessoal. Na minha escola, a gente leva livro e caderno...”.

(Trecho de um grupo focal de alunos - série: 3º ano do Ensino médio; turno: noite; faixa etária: um de 16 anos, três de 17 anos, três de 18 anos e 2 de 19 anos; presentes: cinco homens e 4 mulheres; dia: 25/09/2002). Apresentação

A partir da pesquisa Violências nas Escolas1, que aborda situações de violência enfrentadas

no cotidiano das escolas situadas nas periferias das grandes cidades brasileiras, constatou-se

que, fazendo contraponto a uma situação social e escolar bastante precária e marcada por

trágicas histórias, foram relatadas práticas atípicas e inovadoras, geradoras de novas

perspectivas para as juventudes, os professores e a escola.

Assim, contrariando análises relacionadas unicamente aos determinantes sociais e

econômicos, vem-se observando experiências bem-sucedidas no universo escolar, que

valorizam alunos, professores, familiares e comunidade, dando ao equipamento físico e

social representado pela escola maior significado, junto ao seu entorno. São práticas que,

em diferentes lugares do Brasil, procuram realizar uma educação crítica, voltada para

expansão da autonomia e da responsabilidade social dos alunos.

Essa escola, que institui práticas que chamamos inovadoras, leva à reflexão sobre o desafio

de ultrapassar os modelos tradicionais de análise, que buscam explicações naquilo que,

1 A pesquisa Violências nas Escolas foi realizada em 14 grandes cidades brasileiras, estudando um total de 340 escolas (239 públicas). Responderam ao questionário 33.655 alunos e 3.099 professores. No estudo qualitativo foram ouvidos 1070 alunos Os resultados desse trabalho encontram-se no livro Violências nas escolas, Miriam Abramovay & Rua: UNESCO, 2002.

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muitas vezes, repete-se quase que mecanicamente, como se a realidade não nos

surpreendesse a cada momento. Assim, pergunta-se: partindo dos recursos que essas

escolas dispõem, o que faz com que algumas delas criem estratégias para encontrar meios

educacionais capazes de assegurar aos alunos uma escola protegida, valorizada e com

condições para um bom desenvolvimento escolar? Que estratégias são essas que, mesmo

diversas e singulares, podem freqüentemente, proporcionar uma reflexão macrossocial?

Que práticas e formas de relações sociais podem nos conduzir à inovação?

Identificar o que acontece no âmbito do imprevisto é o desafio que se tenta enfrentar na

pesquisa, ora em andamento, intitulada “Escolas Inovadoras: experiências bem sucedidas

em escolas públicas”, realizada pela Unesco e da qual alguns resultados são aqui

apresentados, fruto de uma primeira analise dos 14 estudos aprofundados realizados em

escolas selecionadas2

O que se pretende, de forma ainda preliminar, é tentar compreender quais são os elementos

que dão a uma experiência um caráter “inovador”. Como experiência inovadora,

compreende-se aquelas iniciativas realizadas no âmbito da unidade escolar que visam à

construção de redes de reciprocidade coletiva. Observou-se no material de pesquisa

(entrevistas, grupos focais, relatórios de pesquisadores de campo) que as iniciativas de

maior êxito são aquelas que conseguiram ampliar os mecanismos de integração interna,

estabelecer canais de interlocução, fortalecer, valorizar e dar visibilidade às iniciativas e aos

interesses dos alunos, construir canais coletivos de participação da comunidade escolar e

investir em melhorias de infra-estrutura.

Observou-se que estas questões têm efeitos importantes do ponto de vista da percepção

sobre a unidade escolar. A valorização e a integração interna geram, por sua vez, um maior

sentimento de pertencimento, o que melhora a visão da escola como um espaço de

2 As 14 escolas foram selecionadas a partir de consulta às secretarias estaduais de educação, também participando desse processo, eventualmente, sindicatos e organizações não-governamentais com notória atuação junto às escolas. Para nortear essa escolha, alguns critérios foram adotados, quais sejam: localização em bairros/comunidades com índices elevados de violência; localização no município da capital ou da sua região metropolitana; enfrentamento de situações de violência (interna e externa), por meio de iniciativas bem sucedidas: projetos, experiências, atividades regulares etc.

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convivência. De uma forma, preliminar pode-se sugerir que estas diversas iniciativas têm

em comum uma preocupação com a organização e a gestão da vida escolar3.

Com essa perspectiva, optou-se por desenvolver a análise segundo os temas que emergiram

das observações de campo, das entrevistas, dos grupos focais e dos relatórios de

pesquisadores de campo4, visto que não existiria ,a priori, uma única forma de entender o

que seria uma inovação e/ou uma experiência bem sucedida, ou seja, a interpretação de uma

experiência bem sucedida é profundamente subjetiva e repleta, partindo de um engenhoso

processo de construções sociais. Assim, o caminho para encontrar o significado da

inovação e do bem sucedido para esses grupos sociais se deu com base na leitura do

material que veio do campo, permitindo detectar práticas e estratégias desenvolvidas pelas

escolas.

O trabalho organiza-se segundo os seguintes temas :ressignificando o espaço escolar;

gestões inovadoras; práticas coletivas como caminho de inovação; construindo o cotidiano;

apontando para novas atitudes e comportamentos; considerações finais.

Vale destacar que os resultados obtidos até aqui na pesquisa não são conclusivos, já que os

mecanismos e estratégias encontrados nas escolas podem comportar-se diferentemente,

dependendo de uma série de atributos e condições apresentadas em cada realidade.Sua

3 Para uma maior compreensão do sistema educacional brasileiro, deve-se sublinhar a responsabilidade direta do poder público no que se refere à educação. Isto porque a grande maioria da população matriculada nas escolas do país, 79% do total de 53,4 milhões, pertence às redes públicas federal, estaduais e municipais. Dentre os que freqüentam escolas dessas redes, uma enorme parcela - ou seja, 89% - é atendida no ensino fundamental; logo a seguir, aparece o ensino médio, abrangendo 81,2% das matrículas. Vale ainda destacar que são justamente nesses dois segmentos educacionais onde está concentrada a grande maioria dos estudantes jovens existentes no país. Quanto à situação da juventude no Brasil, dos cerca de 170 milhões de habitantes do país, uma expressiva parcela - 34 milhões, ou 20% do total - é constituída por jovens de 15 a 24 anos. No que diz respeito à sua escolaridade, embora se observe que no período entre 19943 e 2000 a taxa de analfabetismo entre a juventude tenha decaído – de 15,5% para 11,7%, respectivamente -, este número ainda é bastante preocupante, principalmente ao se considerar que de seu conjunto apenas 46,8% freqüentam a escola, o que sinaliza a existência de um grande contingente de jovens fora da escola. Fonte IBGE, Censo Demográfico, 2002, MEC/INEP2002 4 Cada um dos 14 estados pesquisados, os mesmos da pesquisa Violências nas escolas (Abramovay et alii, 2002), contou com o apoio local de pesquisadores que produziram um relatório composto dos seguintes tópicos: caracterização do local; a unidade escolar; as experiências; histórico das experiências; efeitos e representações das experiências.

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abordagem mostra-se oportuna com relação ao enfrentamento da violência nas escolas,

longe de medidas de repressão, mas estratégias que podem ser geradoras de novos códigos,

de novas posturas, de novos valores diante da vida. Como também, práticas que podem ser

exemplares para a construção de uma agenda de políticas públicas para as escolas públicas

brasileiras, nas grandes cidades e voltadas para as diversas juventudes.

Ressignificando o espaço escolar

Uma das características que chamam a atenção na grande maioria das experiências

analisadas é a importância atribuída pelos diferentes integrantes da comunidade escolar

(alunos, pais, professores e quadros administrativos) ao espaço físico da escola. O local de

estudo, como afirmou uma diretora, deve ser “limpo e arejado”, um espaço onde

professores e alunos sintam-se dispostos a trabalhar e a estudar.

Observa-se, entretanto, que muitas escolas públicas brasileiras encontram-se em estado

eventualmente precário, com paredes descascadas, pichadas, riscadas e sujas além de

sofrerem ameaças de invasão de gangues e bandos do entorno. Esta realidade contribui

para a construção de uma imagem negativa, de uma direção ineficiente e professores pouco

comprometidos e alunos indisciplinados.

Tal situação já amplamente conhecida, não impede ,porém, a realização de iniciativas que

visam à melhoria do ambiente escolar e à diminuição da violência existente na escola.

O estudo, vem constatando a existência de uma grande preocupação com o investimento

em ações que levem à diminuição da imagem negativa da escola pública e à valorização do

espaço escolar. Como afirmou a coordenadora de uma das escolas selecionadas para este

estudo ,

“a escola vem se empenhando em melhorar os espaços para o esporte, para as atividades artísticas, espaço para bibliotecas para dar oportunidade aos alunos

5

conhecerem os outros espaços da cidade, na capacitação dos professores...” (Entrevista, coordenador)

A valorização do espaço escolar – vista aqui a partir de medidas de investimento,

preservação e manutenção da infra-estrutura – aparece como uma das estratégias de

conscientização e elevação da auto-estima de todos os envolvidos . Como salientou outra

diretora, “não adianta nada trabalhar a importância da conservação da Amazônia se eu

não conservo o lugar que eu vivo, o meu espaço. No fundo, queremos trabalhar ética e

cidadania” (Entrevista, diretora, ). Esta fala remete a uma compreensão de cidadania como

um conjunto de ações e práticas concretas, indissociáveis do cotidiano. E, neste caso, a

reflexão de Forneiro sobre o espaço e o ambiente é bem elucidativa:

“(...) ambiente como um todo indissociável de objetos, odores, formas, cores, sons e pessoas que habitam e se relacionam dentro de uma estrutura física determinada que contém tudo e que, ao mesmo tempo, é contida por todos esses elementos que pulsam dentro dele como se tivesse vida. Por isso, dizemos que o ambiente fala, transmite-nos sensações, evoca recordações, passa-nos segurança ou inquietação, mas nunca nos deixa indiferentes.” (FORNEIRO, 1989, p.233)

A existência de um espaço físico limpo, ordenado e bem ocupado representa uma aspiração

de todos os integrantes da comunidade escolar. Nos estudos realizados, foi possível

observar diferentes estratégias que permitam dar um novo significado às instalações da

escola, através da realização de práticas que valorizam a integração das pessoas com o seu

ambiente.

A partir do levantamento de dados sobre o perfil das escolas pesquisadas, percebe-se que

as mesmas detêm infra-estrutura compatível com a média das escolas públicas brasileiras,

como mostra a tabela abaixo:

Tabela - Percentual de escolas, por infra-estrutura disponível, segundo resposta dos diretores – 2002*

Espaços e Equipamentos Escolares (%)

Salas de aula 100

Sala de professores 100

6

Biblioteca 92,9

Computadores para o uso dos alunos 64,3

Quadra de esportes 85,7

Refeitório 50

Cozinha 92,9

Secretaria 100

Sala da direção 100

Sala de recursos** 7,1

Pátio externo 92,9

Pátio interno 85,7

Banheiros (alunos) 100

Telefones 100

Fax 57,1

Acesso à Internet (alunos) 50

Televisão 100

Videocassete 100

Aparelhagem de som 100

Xerox 64,3

Circuito interno de TV 7,1 Fonte: Pesquisa Escolas Inovadoras, UNESCO, 2002. *Esses percentuais correspondem às 14 escolas das unidades da federação, onde foi realizado o estudo de caso. ** Sala para alunos portadores de necessidades especiais.

O fato de em 64,3% das escolas haver computadores para o uso dos alunos,bem como o de

em 50% delas os alunos terem acesso à internet pode estar indicando uma situação

diferenciada das demais escolas do país. Tal constatação contrapõe-se a resultados de

pesquisa5 que relatam as queixas dos alunos a respeito da inexistência de computadores e

de acesso à internet nas escolas. Neste sentido, constata-se que estas escolas, embora

medianas em termos de recursos materiais, disponibilizam seus equipamentos para toda a

comunidade escolar.

Pode ser observado , ainda , que apenas uma escola (7,1%) utiliza circuito interno de TV.

Quando indagada sobre a importância do uso deste equipamento,sua diretora afirma que se

5 Violências na escolas (Abramovay & Rua, UNESCO, 2002), e Escolas de Paz (Abramovay et alii, UNESCO, 2001).

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trata de uma imposição da secretaria de educação: “A escola recebeu recentemente da

Secretaria de Educação 4 câmeras de circuito de TV, que estão instaladas nos corredores e

no pátio” (Questionário Perfil das Escolas Inovadoras).

Se não há uma grande diferença no estado físico das escolas pesquisadas em relação à

maioria das escolas públicas do país,com relação às práticas, atitudes e comportamentos

dos integrantes da escola e do seu entorno em relação ao espaço escolar, é que se estabelece

o novo, como pode ser observado no relato abaixo:

“A escola X era pichada, suja e constantemente depredada por alunos e membros da comunidade. Funcionava em quatro turnos, praticamente ininterruptos, o que dificultava a manutenção da limpeza e a organização. Os seus índices de evasão e repetência eram altos e a unidade não desenvolvia nenhum tipo de trabalho pedagógico para reverter essa situação bastante precária. Várias famílias recusavam-se a matricular seus filhos, sendo que muitos jovens relataram que tinham vergonha de estudar em um lugar tão horrível, que “odiavam” aquela escola (...) Em 1996, houve mudança na direção da escola, iniciando uma série de transformações internas e externas: chamou os pais, abriu o diálogo e pediu apoio para alterar o perfil da escola. Foram iniciados mutirões para melhorar a infra-estrutura e os pais colaboravam com a limpeza e a segurança dos alunos. Os pais, em sistema de rodízio, freqüentavam diariamente a escola e colaboravam com tudo que era necessário. A diretora também iniciou a aproximação com as entidades do bairro, principalmente a associação dos moradores.” (Relatório de pesquisa)

Uma das principais características destas escolas é a preocupação demonstrada pelos

diferentes integrantes da comunidade escolar com a preservação e manutenção do espaço

escolar.

Registraram-se ,na quase totalidade das escolas pesquisadas, queixas de alunos e

professores sobre certas praticas de desrespeito com o patrimônio público exercidas pelos

próprios colegas. Muitos atos de “vandalismo” são atribuídos a alunos da escola. No

entanto e talvez seja este um diferencial das escolas chamadas de inovadoras - , observa-

se que existe vigilância e controle interno com relação a estes alunos, por parte dos

professores ou dos próprios alunos.

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Acompanhando as iniciativas de vigilância à depredação, as escolas investem segundo suas

possibilidades, na recuperação do espaço físico como estratégia para a diminuição das

tensões internas. Observou-se que elas procuram melhorar e ampliar suas instalações,

adquirindo novos equipamentos (vídeos, computadores, carteiras etc.) e realizando

reformas.

Assim, os investimentos em infra-estrutura (construção de quadras de esportes, pavilhões,

reforma de salas, instalação de ventiladores, manutenção dos equipamentos etc.) são

medidas que têm se revelado de extrema importância pois conseguem interessar e motivar

tanto a comunidade escolar como a comunidade do entorno.

Como a maioria das escolas tem dificuldades em obter recursos para investimentos em

infra-estrutura, é comum a realização de pequenas reformas com a participação dos

moradores e comerciantes locais. Estas iniciativas têm-se revelado um bom mecanismo de

aproximação com os moradores do entorno. Como observou uma professora ,“é trazer a

comunidade para dentro da escola, mostrar que a escola também é um espaço deles” (GF,

professores, RJ). Este tipo de atividade tem-se mostrado muito útil, não apenas para

aproximar os pais, mas , sobretudo , para que eles possam também ajudar a a encontrar

soluções para os problemas de invasão, depredação, pichações. “Os pais começam a cobrar

dos seus filhos e isso ajuda no trabalho da escola” (Grupo focal , professores).

“Apesar de a nossa comunidade ser muito problemática, a relação comunidade - escola é boa. Fizemos, outro dia , um mutirão de lixo, acompanhado de caminhada, carreata.Trouxemos carro de som, divulgando o trabalho. Pintamos e consertamos o muro. Eu sei que ninguém mais coloca saco de lixo no muro da escola, a escola está limpa, porque tinha dia que você chegava aqui e nem conseguia dar aula, era uma podridão.” (Entrevista, diretora)

Um outro aspecto que vem chamando a atenção é a ressignificação atribuída aos espaços da

escola. Observou-se que havia, em alguns casos, uma preocupação da direção da escola

com a forma como o espaço escolar era utilizado. Algumas diretoras chamaram a atenção

para a existência de espaços sub-aproveitados no interior da escola, seja porque eram

abandonados, sujos e pouco freqüentados, seja porque eram utilizados para consumo de

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drogas. Procurou-se nestes espaços estabelecer uma nova dinâmica de uso, definir novos

significados. O relato abaixo é significativo do que vem ocorrendo em algumas escolas e

de como são redefinidos espaços que tinham imagens negativas.

“Intuitivamente, a escola (...) desenvolveu estratégias para a superação da violência - na expressividade, na arte e nas manifestações culturais. Segundo depoimentos, o palco era um antigo fosso que abrigou uma pessoa armada que ameaçou a escola, em um dia de aula. O palco ,em si, é a ressignificação de uma experiência violenta.” (Relatório de pesquisa)

“O porão abriga a fanfarra por ser um lugar que abafa o som, não atrapalhando outras atividades escolares. Neste sentido, o som, a expressão da arte dos alunos é também motivo de castigo e rejeição tanto da comunidade interna da escola quanto de seu entorno. Na penumbra e no cheiro de urina, o grupo ensaia cotidianamente junto ao corpo coreográfico, levando a sério o compromisso de romper com o traço do militarismo presente na fanfarra, apresentando peças da música popular brasileira e outros gêneros , incluindo aquelas de raízes na cultura negra como a Soul Music e o Funk. Escola.” (Relatório de pesquisa)

O trecho acima é significativo e demonstra a capacidade de a escola ocupar e atribuir

novos valores ao uso de certos espaços simbolicamente importantes. A preocupação em

associar qualidade, criatividade e cidadania às condições ambientais vem se revelando

como uma estratégia bem sucedida.

Observou-se que certas mudanças realizadas na dinâmica dos ambientes sociais, seja pela

reforma física ou pela ocupação de espaços vazios geram mudanças de atitudes e

comportamentos, facilitando o estabelecimento de mecanismos de interação mais

propositivos.

Percebe-se que as iniciativas que visam organizar e preservar o espaço físico trazem, em

seu bojo, a concepção de uma proposta pedagógica calcada na construção de uma escola

que atenda aos interesses dos alunos e professores, que são fontes decisivos na construção

do processo de aprendizado. Tais procedimentos singularizam o jovem, o professor e a

escola, permitindo que este espaço seja especial para todos.

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A idéia de transformar os espaços internos tem como preocupação a melhoria da qualidade

de ensino, por meio da maior motivação dos alunos e dos professores, e a criação e/ou

ampliação de certos espaços de sociabilidade, permitindo maior integração dos alunos.

“Os alunos freqüentam esta experiência em turno contrário. Reúnem-se em uma sala de aula, sob coordenação de um professor, e conversam sobre temas previamente estabelecidos pelos próprios alunos, a partir do seu interesse. Temas como sexo, drogas, violência, relacionamento familiar, emprego, futuro profissional e cidadania estão entre os mais procurados. Nas entrevistas, os alunos declararam gostar muito dessa experiência e muitos a apontaram como algo que possibilitou uma melhora significativa no relacionamento familiar. Os encontros oferecem uma espécie de treinamento para o ato de falar e ouvir, de explorar subjetividades, perspectivas individuais e pontos de vista. Assim, os alunos aprendem a “conviver” com e “tolerar” diferenças e a se colocar na perspectiva do outro. O diálogo passa a ser mais valorizado.” (Relatório de pesquisa)

Ao associar ensino com lazer e cultura, a escola amplia sua capacidade de motivar os

diferentes atores sociais (pais, alunos, professores e funcionários) e oferecer formas

criativas de diminuição da evasão escolar e da violência interna.

“Os jovens estudantes entrevistados durante a pesquisa foram unânimes em dizer que não há opção de lazer no bairro, com exceção do colégio que, ao oferecer atividades curriculares e de finais de semana, torna-se ponto de encontro dos jovens que estão em busca de lazer. Alguns disseram que estar na escola participando das diversas atividades propostas ocupa seu tempo, impede que eles e outros jovens estejam na rua à mercê de acontecimentos que podem trazer prejuízos às suas vidas. Na realização da dinâmica de construção dos mapas das redes de relação pessoal e dos espaços escolares significativos se evidenciou a importância que os jovens conferem à escola como espaço de socialização. Uma aluna apontou o pátio de entrada como lugar muito significativo da escola, pois é o local que encontra todos os amigos reunidos. Outro aluno, ao desenhar sua rede de relações, representou a escola no centro do mapa e dela partiam todas as suas ações sociais, até mesmo sua residência foi posta em segundo plano.” (Relatório de pesquisa)

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Gestões Inovadoras

É possível perceber que, em um cotidiano onde a marca da violência se faz presente em

todo o território nacional, atingindo grande parcela dos jovens, vem se produzindo uma tão

rica quanto diversa mostra de mudanças nas formas convencionais de gestão, capazes de

contribuir para a reversão desse quadro.

Um passo importante para a mudança da gestão se dá no momento em que a própria

direção, ainda que mantendo um caráter por vezes centralizador, possibilita a abertura do

espaço escolar para os demais atores. Ali, a inovação passa pela legitimação do espaço

escolar pelos alunos e pelos professores, por meio de estratégias de valorização daqueles

que, sem dúvida, são suas figuras mais importantes.

A respeito do tratamento dado aos jovens, observou-se que “o diferencial está (...) na sua

forma de gestão e (...) na centralidade que ocupa a formação dos alunos”, situação bem

expressa na metáfora “esta escola é uma grande família”, “uma escola que procura fazer

diferença na vida dos alunos”. (Relatório de pesquisa)

Segundo foi observado, há uma espécie de “aposta nos laços de afeto e de proximidade no

estabelecimento das relações no ambiente escolar”. Corroborando o acerto dessa aposta, o

fato de a direção “se interessar pessoalmente por cada um dos seus alunos” é patente em

alguns depoimentos, como o que se segue, em que um jovem fala, bem humorado, da

atenção a ele dedicada:

“Ah, quando eu começo a faltar muito, demais, e sentem a minha falta, mandam bilhete, escrevem pra minha casa, pra ele, meu pai... Apesar d’ele ser menos presente, ele vem na escola, ele conversa com as professoras... Eu não agüento mais! [risos].” (Grupo focal, alunos)

Entre os docentes, igualmente, há um clima de satisfação, traduzido em “acolhimento,

suporte e condições para os professores enfrentarem a sala de aula”. Assim, “o ambiente da

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escola é reconhecido como bom para trabalhar, marcado pelo bom entrosamento (...), pelo

coleguismo e pela abertura e incentivo a idéias novas” (Relatório de pesquisa).

“A diretora se organiza de um jeito que, se falta um professor, ela adianta ou bota matéria, alguma coisa para aquela turma não ficar ociosa. Por exemplo: já me ligaram, um dia em que precisaram que eu viesse mais cedo, para não deixar os alunos ociosos. A gente tem uma certa tranqüilidade pra trabalhar, porque quando tu tem problemas, tu pode chamar a direção, pra pedir um apoio.” (Grupo focal, professores)

“Aqui, o pessoal ajuda. Há troca de idéias entre o pessoal da própria área. Eu não sou o único professor de matemática... Então, nós, os colegas de matemática, a gente senta, discute estratégias de como trabalhar, por onde sair, qual é o conteúdo e, às vezes, outras dificuldades gerais da escola. Muito raramente é imposto: ‘É assim que tem que ser!’... Não, a gente sempre diz: ‘O que vocês acham? Como é que faz?’ Isso, para uma escola do tamanho da nossa, não é fácil de fazer - a direção e a estrutura da escola, xerox, a parte do pedagógico... estão sempre apoiando a gente..” (Grupo focal, professores)

A repercussão do trabalho dos professores transparece na fala dos alunos: “A nossa escola é

uma escola, assim, bem melhor que algumas particulares. Ela é uma escola boa!

Professores que dão aula... Geralmente, lecionam em escolas de boa qualidade. (Grupo

focal, alunos).

Em outra escola estudada, apesar de haver “diversos espaços de discussão e abertura para a

participação de todos”, é possível perceber que a diretora tem, ainda, uma postura

centralizadora em tudo que é realizado, situação corrente na cultura da escola e do sistema

educacional do país como um todo:

“Sua presença [da diretora] é vista como fundamental no planejamento e execução das mudanças que transformaram a escola no que ela é hoje, embora, para concretizá-las, ela conte com um grupo de funcionários, professores, pais e alunos que partilham das suas idéias.” (Relatório de pesquisa)

O perfil centralizador ameniza-se, pois, na concepção de que “todos devem contribuir para

o bom andamento da unidade, inclusive os funcionários que desenvolvem funções mais

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simples, (...) vistos [igualmente] como educadores” (Relatório de pesquisa). Tal concepção

remete, no cotidiano, a uma gradativa assunção de autonomia por parte dos diversos atores:

“Todos sabem exatamente a sua função. Mesmo quando não há nenhum membro da direção presente, tudo ocorre normalmente. Muitas vezes, esta ausência não chega a ser percebida. A escola possui uma certa rotina, que é conhecida por todos, e isso facilita a sua organização.” (Relatório de pesquisa)

De acordo com o estudo, a direção dessa escola tem lançado mão do “diálogo” como

principal instrumento de transformação das relações entre os integrantes do seu dia-a-dia, aí

compreendida também a comunidade: “A escola está sempre aberta aos pais, que costumam

comparecer em peso às reuniões bimestrais e às atividades realizadas (...), embora ainda

seja uma participação limitada (...); não atuam diretamente na gestão da unidade escolar”

(Relatório de pesquisa).

Conforme afirmam Sousa e Corrêa (2002, p.62), “sendo o projeto pedagógico a identidade

da escola, sua construção demanda um processo constante de partilha entre os vários

segmentos que contribuem para o trabalho da instituição escolar”. Certamente, tal

perspectiva implica rever o papel e as funções do diretor, de forma que este atue no

cotidiano na condição de líder pedagógico, apoiando a definição de prioridades, avaliando

programas e ações, organizando e participando de atividades de formação dos funcionários

e valorizando os resultados alcançados pelos alunos. Vale, aqui, lembrar as palavras de uma

das diretoras de outra das escolas pesquisadas, que afirma: “Mais do que projeto

administrativo, é preciso ter projeto pedagógico.” (Entrevista, diretor).

A gestão torna-se mais participativa na medida em que a direção despe-se do caráter

centralizador que historicamente lhe foi atribuído e consegue estabelecer relações de

igualdade no âmbito do espaço escolar. Nessa ótica, o uso do diálogo assume importante

papel, tornando-se, possivelmente, instrumento político essencial a uma reestruturação das

práticas cotidianas. Os depoimentos de alunos dessa mesma escola a cuja diretora fez-se

referência é uma prova disso:

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“Eu acho que o mais importante é isso: a direção não tem aquela idéia de ‘intocável’. A direção trabalha muito com os alunos e não porque nós entramos esse ano... [Com os alunos dos] outros anos a gente vê isso. A direção é muito presente na vida dos alunos. Então, eu acho que isso se torna mais fácil pro colégio, mais legal pra gente estudar.” (Grupo focal, alunos)

“Se a gente chegar e conversar com a direção do colégio, a direção tá pronta a ajudar...” (Grupo focal, alunos)

Esse caminho parece ser particularmente intenso e perceptível. Ali, a descentralização dos

processos decisórios, apoiada sobretudo no diálogo aberto, vem contribuindo para a

redução da carga burocrática na gestão político-administrativa e favorecendo a autonomia

dos diversos sujeitos no cotidiano:

“A descentralização do poder de decisão se evidencia pelo regime de revezamento de horários de trabalho e de tarefas, estabelecido entre as diretoras, e pela distribuição de responsabilidades entre alguns professores, alunos, funcionários e colaboradores da escola.” (Relatório de pesquisa)

Vale ressaltar que essa é uma das duas escolas estudadas onde a função de direção não está

nas mãos de apenas uma pessoa. Ali, quatro mulheres compartilham o cargo.

Como bem pontua Paro (2001), a gestão participativa e descentralizada, resultante do

compromisso de todos – experiência vivenciada pela escola em pauta - pressupõe uma

prática de discussão coletiva, que envolve desde a divisão de responsabilidades e a

definição das funções de cada um até as decisões sobre encaminhamentos e ações

concretas.

A trajetória dessa gestão teve início quando da constatação de que apenas a incorporação

plena da comunidade no cotidiano da escola poderia mudar a relação problemática entre a

instituição e seu entorno, reconhecidamente afetado pela violência. Nesse processo,

segundo uma das diretoras, foi adotada uma perspectiva de ação aparentemente

contraditória: “a relação de ajuda aos necessitados que recorriam à escola e a negação do

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assistencialismo”, tendo como princípios “o aprimoramento da arte de estabelecer limites, a

criação de relações baseadas na responsabilização de todos os envolvidos e a habilidade de

criar regras no interior de relações conflituosas” (Relatório de pesquisa).

O investimento na participação efetiva da comunidade no dia-a-dia foi, igualmente, a saída

encontrada por outra escola para aproximar seu trabalho das legítimas aspirações da

população, em um entorno particularmente violento e problemático. Para tanto, a visão da

direção sobre o próprio papel da instituição teve peso importante:

“Nós partimos do princípio de que a escola pública não pertence a nenhum governador, a nenhum secretário de educação e a nenhum dirigente. A Escola pertence à comunidade onde está inserida, que tem obrigação de preservá-la. E, para preservá-la, é necessário estar dentro dela, nos dizendo o que ela quer de ensino, qual a sua necessidade e nos ajudando a administrá-la. Só acreditamos na educação que está envolvida com todos os segmentos da sociedade. A Educação não é só responsabilidade do governo, é de todos, dos dirigentes, do corpo docente, da comunidade.” (Entrevista, diretora).

A partir de inúmeras reuniões entre diferentes lideranças comunitárias e professores,

funcionários e alunos, chegou-se ao estabelecimento de um plano de trabalho conjunto,

visando à melhoria do atendimento e, conseqüentemente, a uma relação harmoniosa. Esse

plano, além de possibilitar a co-responsabilização por parte de todos os envolvidos,

constituiu a base para a criação de diversos projetos voltados ao interesse coletivo.

Dentro dessa estratégia, a coesão dos professores e demais funcionários mostra-se

igualmente importante: “Não há um momento em que a gente não junte os funcionários e

os professores, pois o funcionário da escola é, também, um educador. (...) Eles tem reuniões

juntos, participam de debates, dos momentos de confraternização.” (Entrevista, diretora)

A transformação da escola em instância de pertencimento e identidade por parte dos que

nela estão envolvidos confirma-se como objetivo primeiro de uma gestão democrática,

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participativa. O depoimento de um professor, atuante em uma das escolas pesquisadas,

onde o diálogo tem papel decisivo, remete a essa premissa:

“Eu trabalhei numa escola em que a diretora não sabia o meu nome, embora eu estivesse lá há um ano. É horrível... Eu acho que uma série de coisas contribui para um clima legal: saber ouvir, saber falar, dar uma opinião na hora necessária, trocar idéias... Ninguém é dono da verdade. Aqui, ninguém descarta a sua idéia, ninguém pode mudar as coisas pensando só nas suas próprias idéias. As mudanças surgem das coisas que já existem e são melhoradas. E, assim, vão tendo continuidade, solidez... vão criando raízes. É difícil uma árvore muito profunda ser arrancada por um vendaval. Pode até arrancar a copa, um pedaço, mas a raiz ela não tira.” (Grupo focal, professores)

Nesse clima de diálogo, os problemas internos de violência com que se defronta essa

mesma escola vêm sendo superados. Ao se referir à maneira de ali se resolverem tais

conflitos, um professor afirma: “Conversa, muita conversa. Chamar o aluno, sentar,

conversar... Na verdade, é o argumento que utilizamos aqui no dia-a-dia, na própria sala de

aula, né?” (Grupo focal, professores).

As experiências aqui apresentados, certamente, oferecem uma representativa mostra da

variedade de situações de gestão inovadora correntes no universo pesquisado. Em sua

maioria, originaram-se no âmbito das próprias escolas, traduzindo o confronto entre

realidades problemáticas e a necessidade de a instituição cumprir seu papel. Vale,

entretanto, atentar ao fato de que, eventualmente, o impulso gerador de mudança pode ser

originado de fora da escola. O depoimento de uma diretora é bem ilustrativo, quando

aponta os efeitos provocados pela introdução, no sistema escolar, de novas regras para a

aquisição da merenda, voltadas à descentralização do processo:

“A escola ganhou alguma autonomia, por exemplo, quando a compra da merenda escolar deixou de passar por aquele processo em que a administração central escolhia a merenda e mandava uma que não era compatível com o desejo dos alunos. Agora, a unidade escolar é que compra, com autonomia.” (Entrevista, diretora)

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Esse exemplo dá a dimensão do quanto as políticas públicas podem contribuir, ainda que de

forma parcial, para o estabelecimento de novos caminhos de gestão, sobretudo nos espaços

em que esse processo demande estímulo.

Práticas coletivas como caminho de inovação

Presente na totalidade dos relatos analisados, a noção de construção coletiva é, sem dúvida,

um dos grandes marcos das experiências aqui referenciadas, constituindo, na maior parte

das vezes, a principal responsável pela existência dessas ações. Em reiteradas ocasiões,

observa-se mesmo que tal noção é que orienta o trabalho desenvolvido pelas equipes das

unidades escolares, o que, por sua vez, reafirma a necessidade de as escolas, de modo geral,

potencializem o arsenal humano e material de que puderem dispor em função de projetos

que privilegiem o investimento na chamada “força do coletivo”.

A participação coletiva tem sua importância ratificada por toda a gama dos atores

envolvidos nas experiências em tela, assumindo centralidade tanto em contextos em que se

constitui a principal característica quanto noutros em que ainda não se encontra plenamente

consolidada.

“No começo não foi fácil pensar as coisas de forma mais integrada, porque para alguns professores era difícil trabalhar os mesmos conteúdos de outras disciplinas. Quantas vezes a gente escutava: ‘Ah, não dá pra mim, que ensino matemática, (por exemplo) ficar falando de drogas’. A gente teve até que forçar uma barra, para o negócio começar a andar, dar frutos positivos. Agora, apesar de não estar ainda 100%, a coisa ficou bem menos difícil. O pessoal já pegou o espírito da coisa” (Entrevista, professor).

Na maior parte das vezes, entretanto, as ações constituem um ponto de chegada e de

confluência, fruto de negociações, onde se aposta na responsabilidade de todos. Nesse

sentido, pode-se dizer que não acontecem da noite para o dia: são tecidas no coletivo com

um fio articulador que, aos poucos, vai se embrenhando no trabalho desenvolvido dentro e

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fora da escola, pela maioria e em benefício da maioria. Deste modo, o mote principal do

trabalho coletivo é a participação, que pressupõe o envolvimento de todos no processo:

“A partir do momento em que você participa do projeto, isso mexe com sua cabeça e influencia a sua vida em diversos aspectos. A gente fica muito mais ligada na importância de estar participando de um grupo, no respeito aos colegas, na importância de saber trabalhar em equipe. Todos participam e se envolvem com as coisas: professores, alunos, coordenadores, diretora, ongs etc.” (Grupo focal, professores).

Também presente nas chamadas escolas inovadoras é um constante movimento no sentido

da incorporação, em seu cotidiano, de diversas manifestações culturais produzidas no

âmbito extra-escolar, tais como o hip-hop, a dança afro, o grafite, a capoeira etc. -, cujos

desdobramentos, por sua vez, são reincorporados tanto pela própria escolar quanto pelo

ambiente extra-escolar que os originou, resultando num movimento incessante de

realimentação das duas esferas.

Grande parte das ações coletivamente desenvolvidas persegue o caminho da incorporação

de temas sociais amplos a diferentes instâncias do cotidiano escolar, numa perspectiva

interdisciplinar, visando romper com a compartimentalização de disciplinas e fragmentação

de conteúdos: “Fazemos reuniões periódicas com todo mundo, quando tiramos alguns

temas para trabalhar aqui na escola. Os assuntos são sempre ligados à realidade que está aí,

batendo na porta de nossos alunos” (Grupo focal, professores).

Vale a pena aprofundar um pouco mais a análise do trabalho realizado coletivamente nessas

unidades escolares que buscam desenvolver uma proposta interdisciplinar, através do

tratamento articulado dos mesmos temas em diferentes áreas do conhecimento e atividades

extracurriculares. Conforme sinaliza o relatório de pesquisa a seguir, tal prática

desempenha um papel fundamental no sentido de ressignificar novas relações, através de

uma perspectiva que privilegia o exercício horizontalizado do poder:

“É importante ressaltar que tais ações [desenvolvidas na escola] são pontos de convergência de idéias e práticas de alunos e professores que se materializam em grupos de trabalhos cooperativos. Os projetos procuram, permanentemente,

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articular-se com as disciplinas da grade curricular. A coordenação pedagógica tem papel destacado nesse trabalho de integração. (...) A ação dessa coordenação diminui as chances de se reproduzir o paralelismo entre projetos especiais e aulas regulares, tal como acontece em muitas instituições.” (Relatório de pesquisa).

Por seu lado, destacam-se também aquelas unidades cujo trabalho está centrado no

desenvolvimento de atividades alternativas, geralmente de cunho cultural, relacionadas a

determinadas peculiaridades locais. Nestes casos, as ações advêm de demandas especificas

da realidade e/ou do contexto em que a escola está inserida.

Cabe, todavia, ressaltar que tanto em situações onde são desenvolvidas ações de caráter

mais geral como naqueles em que predominam atividades mais direcionadas à realidade

local, em ambas não se dispensam determinados procedimentos comuns visando à

organização do trabalho compartilhado entre diversos sujeitos - tais como o

estabelecimento de regras de convivência, a realização de discussões coletivas etc. -, o que,

em última instância, contribui para reforçar o caráter singular a cada uma delas.

Ainda que a construção coletiva envolva a prática democrática e o exercício do diálogo,

também não prescinde de uma liderança capaz de coordenar e dar curso às ações, mediando

os conflitos e interesses que decorrem naturalmente desse tipo de processos.

“As coisas só dão certo quando o trabalho tem um líder, né? Porque a escola, como uma empresa, tem que ter um líder mantendo as propostas, a quem ouvimos e procuramos acatar, usufruir daquilo que achamos viável. Então, assim, tem que haver obrigatoriamente uma organização...” (Grupo focal, professores).

“Quando a diretora assumiu a escola, isso aqui tava aquele lixão. Primeiro, ela foi fazendo reunião com os professores. (...) Então os professores foram ajudando e, aí, também conscientizando os alunos. Era um trabalho contínuo, mas ninguém desanimava. (...) Quando os pais viram o resultado do trabalho que ela estava fazendo, também começaram a ajudar.” (Entrevista, professor).

Em todos os casos analisados, o trabalho exercido pelos responsáveis pela coordenação das

ações nas escolas não prescinde do estabelecimento de múltiplas parcerias e da constante

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realimentação das bases que sustentam tais parcerias. Por esta linha, observam-se unidades

cujas alianças são realizadas no interior da escola e fora dela, como bem ilustram as falas a

seguir.

“Aqui tem até uma caixinha de sugestões pra gente ver o que pode mudar, melhorar na escola. É assim: a diretora vai à sala, conversa e diz pra gente colocar nossas sugestões dentro da caixa. Não precisa nem se identificar, mas tem que colocar a sala e a sugestão, entendeu? Não sei como ela tem tempo, mas sempre dá um retorno pra gente.” (Grupo focal, alunos).

“A comunidade aqui apóia muito a diretora, valoriza o trabalho dela e ela também valoriza o pessoal que vêm até aqui participar com a gente. Ela recebe todo mundo muito bem. Os pais, aqui, têm os mesmos direitos que os filhos têm. Eles entram na escola, participam das reuniões, participam da mostra cultural. Enfim, participam do dia-a-dia.” (Grupo focal, professores).

“Ah, se não fosse a gente [alunos] trabalhando junto com os professores, com o resto do pessoal da escola, isso aqui não era isso tudo que é não. Pode crer...” (Entrevista, aluno).

“Eu acredito que a comunidade [extra-escolar] ajudou e tem ajudado bastante (...). Além de ajudarem, trabalharem conosco, eles também se preocupam com o que está acontecendo com a escola, com seu desempenho, com tudo! Então, eu acredito que tudo isso que acontece aqui só pode ser possível porque temos a ajuda dos pais e da comunidade, né?” (Entrevista, diretora).

Diversas unidades destacam-se por ações cuja mais forte característica é o investimento

maciço em projetos artísticos e culturais, que, via de regra, são extensivos à comunidade

extra-escolar, em oposição a outras, cujas atividades, além de possuírem um cunho

pedagógico, são geralmente voltadas para os alunos. Nesse sentido, em função de tais

projetos, muitos jovens de fora das escolas vêm também despertando seu interesse pelo

teatro, pela dança e pelo desenho, entre outras áreas afins, o que tem favorecido o

surgimento de novas formas de organização, bem como o estabelecimento de identidade

entre sujeitos com diferentes inserções.

“O mais legal é que trabalhando aqui [na rádio da escola], além de conhecer mais os colegas, a gente fica também conhecendo um monte de gente de fora. Eu falo de cadeira, (risos) porque já estou até namorando um garoto de outro

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colégio, que vem toda terça-feira fazer uma programação [de músicas] no recreio.” (Grupo focal, alunos).

Vale destacar a situação de algumas unidades que encontraram no desenvolvimento de

práticas de trabalho voltadas, com especial ênfase, para a comunidade extra-escolar a

solução tanto para a preservação de seu patrimônio físico quanto para o desempenho de

suas funções educativas:

“Antes a gente nem consegui trabalhar: um dia a escola era arrombada; no outro, aprontavam o maior auê lá fora. Por isso é que eu digo: a coisa mais importante que a gente fez e que ainda continua fazendo foi trazer a comunidade para trabalhar com a gente aqui, dentro da escola. Depois disso, o pessoal tomou gosto e nossos problemas quase acabaram. Agora, a gente até consegue dar aula! (risos).” (Entrevista, professor).

Um dos principais requisitos para o estabelecimento de práticas de trabalho coletivo nessas

escolas é a experiência dos sujeitos envolvidos em ações similares em outras esferas, tais

como igrejas, associação de moradores, grupo de jovens, movimentos civis etc. Por esta

razão, constata-se a importância do estímulo ao trabalho coletivo em diferentes âmbitos, já

que tal prática é capaz de replicar-se em diversas instâncias da vida social:

“Eu comecei essa prática enquanto grupo trabalhando junto com a igreja, a igreja católica, que é realmente uma experiência. Trabalhar junto a pastorais sociais, com a catequese, com a formação de grupos de jovens, isso dá um respaldo danado. As coisas ficam mais fáceis. Acho que é por isso que esse tipo de trabalho, para mim, não é problema nenhum.” (Entrevista, coordenadora de projetos).

Embora, na maior parte dos casos, o desenvolvimento das ações obedeça a uma delegação

de responsabilidades pré-determinada, onde cada um dos atores envolvidos desempenha um

papel, o dia-a-dia escolar também não dispensa uma boa dose de solidariedade e

cooperação. Nesse caso, é comum o estabelecimento de laços de ajuda mútua, que são

decorrentes, muitas vezes, de um trabalho de equipe bem articulado.

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“Acho que o ponto principal é essa relação bem alinhada, bem definida entre os professores e as outras pessoas envolvidas com a escola. Aqui, um ajuda o outro. Por exemplo: às vezes, na hora do jornal, está passando um professor e a gente pede ajuda na redação. Então ele vai lá e dá uma força, mesmo se não for essa a tarefa dele. Assim, todos procuram ajudar, tanto no projeto do jornal da escola como em outros projetos também.” (Entrevista, professor).

Bastante significativa - e talvez a maior responsável pelas conquistas anteriores - é a

mudança representada pela possibilidade de o trabalho coletivo e participativo retirar os

vários sujeitos que circulam no ambiente escolar do isolamento. Dentre esses sujeitos,

destacam-se professores e alunos, que, a partir de um maior envolvimento no coletivo da

escola, passam a dar maior atenção ao próprio contexto social em que se dão as práticas

educativas:

“A maioria das pessoas que procura esta escola, tanto aluno quanto professor, incorpora bem, veste a camisa da escola. Quer dizer, está preocupada com a coletividade social. Você veja que, às vezes, você não conhece um professor que acabou de entrar, mas daqui a pouco você começa a conversar com ele. Aí vê que o pensamento dele não é tão difícil, que não é muito diferente daquilo que você já está desenvolvendo ou quer desenvolver na escola. Aí, a gente cresce junto! Acho que nossa escola, enquanto instituição, consegue passar, tanto para os alunos quanto para os professores que aqui chegam, essa metodologia de trabalho coletivo.” (Grupo focal, professores).

Além de favorecer o aprofundamento das relações interpessoais e a elevação da auto-estima

(“Trabalhar com um grupo é bom pro seu próprio crescimento íntimo. É ótimo conhecer e

se dar bem com as pessoas... Isso acaba mudando a vida da gente mesma, não só a vida da

escola” – entrevista com professor), o estabelecimento de práticas de trabalho coletivo

parece gerar um compromisso com a continuidade das ações, conforme assinala o

depoimento de um aluno: “Eu acho que qualquer pessoa consciente, que tenha juízo, que vê

que a coisa é boa, quer mais é que ela continue. Ninguém gosta de estragar um trabalho

bem feito, só se for maluco!”.

Outro dado interessante diz respeito ao sentimento de nostalgia presente na fala daqueles

que, tendo participado de ações desenvolvidas coletivamente nas escolas, por razões

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diversas (trabalho, falta de tempo, ocupação com afazeres domésticos etc.) tiveram que

abandoná-las. Nessas situações, são comuns, inclusive, as promessas de retomada dessas

atividades:

“Você nem faz idéia da saudade que eu tenho do tempo em que não trabalhava e podia me dedicar mais à escola. Era um tempo bom... Conhecia todo mundo, estava em todas. Mas não tem nada: assim que eu tiver uma folga, volto a participar mais das coisas aqui da escola.” (Entrevista, aluno).

Finalmente, pode-se afirmar que um dos saldos mais positivos das práticas assumidas

coletivamente no universo das escolas pesquisadas diz respeito à percepção de que os

rumos da escola são da responsabilidade de todos que dela fazem parte, o que, por sua vez,

demanda a adoção de uma postura que valorize um projeto educativo e social que se paute

pelo pluralismo e pela prática democrática:

“O que tem de mais importante aqui e que não tinha antes? Ah, sem dúvida os projetos que a gente desenvolve hoje e que trouxeram você à nossa escola. Você olha em volta e vê: tá todo mundo aí, querendo dar sua opinião. Tá todo mundo querendo ajudar, influenciar na vida da escola. As coisas aqui mudaram muito...” (Grupo focal, professores).

Construindo o cotidiano

Observando as escolas pesquisadas sob o prisma das relações e práticas que estabelecem

entre os sujeitos que delas fazem parte, direta ou indiretamente, percebe-se a importância

da construção de mecanismos de valorização que funcionam, na maioria das vezes, como

forma de resgate de identidades propositivas. Freqüentemente, a falta desses mecanismos

pode gerar uma situação difícil para a escola, como é o caso de situações relacionadas à

violência. O reconhecimento e a valorização podem estar, por exemplo, no porte de uma

arma, que, por um lado, pode ser o passaporte para a resistência social e para a visibilidade,

e, por outro, um passo para a autodestruição.

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Quando o outro olha para nós e, ao faze-lo, o faz com respeito, nos dá a convicção de que

temos algum valor, isso é uma existência necessariamente social.

“.....gosto do jeito de eles ensinarem (os professores), porque não é só aquele tipo de professor que só se preocupa em ensinar, que o aluno aprenda, não...Ele se preocupa, também, com o bem estar do aluno. Preocupa-se em fazer uma coisa que a gente goste, que a gente se sinta bem. Eles conversam com a gente e estão preocupados em saber se a gente aprendeu. A gente sente que tem alguém preocupado com a gente, com cada um de nós...” (Grupo focal, alunos)

“ (...) eles estão preocupados com os alunos, eu acho...preocupados em que a gente se sinta bem na escola, que tenha vontade de vir pra cá e não de ficar nas ruas.”(Grupo focal, alunos)

Uma medida extremamente simples, pode proporcionar aos alunos a concretude de sua

existência social. Por exemplo: uma das escolas não conta com sala ou laboratório de

informática. O que existe são quatro computadores instalados na sala do grêmio estudantil

para uso dos alunos. Os alunos podem fazer seus trabalhos escolares lá, mas não há acesso

à internet. Há, na escola, outros três computadores, utilizados no setor administrativo.

Todos foram doados e a escola utilizou os equipamentos estritamente necessários para as

atividades administrativas, deixando que quatro computadores pudessem ficar disponíveis

aos alunos. (Relatório de pesquisa)

“Aqui a gente tem os nossos computadores. Somos importantes também”. (aluno entrevista)

“Aqui na aula de arte a gente tem uma pasta, né? Com folha, uma pasta pra tá guardando folha, um resma de folha de 100 folhas, né? Sufite, borracha, lápis, pincel, lápis de cor, cera, compasso, régua, cola...durex...instrumentos básicos pra você ter, pra desenhar, porque, conforme vai acabando, você vai atrás, você tem necessidade de ir atrás. Eu acho esse kit (...) achei ele interessante, porque tipo, eu nunca tive oportunidade, essas coisas, o material, essa coisas, fui adquirindo dos outros, o que sobrava de alguma coisa, de alguém, eu nunca tive uma formação, alguém nunca me deu material assim, né? Material eu fui ficando com o resto, eu sempre trabalhei com lixo, essas coisas. É interessante tá assim, que incentiva até ter cuidado com o material e tá renovando depois.”( Grupo focal, alunos)

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Observa-se, também, a construção de estratégias de implantação bastante viável nas escolas

públicas, como demonstram os exemplos abaixo:

“Na nossa escola tem até uma caixinha de sugestões pra gente colocar sugestão lá e ver o que pode mudar, (...). A diretora vai à sala, né? Conversa. Não precisa nem se identificar, mas coloca a sala e a sugestão, entendeu? Ela vai à sala falar se dá, porque, qual o tempo que vai ser demorado e, se não dá, porque, sempre tem razões... Ela sempre dá um retorno das nossas sugestões.” (Grupo focal, alunos)

“A estratégia de chamar os alunos para aulas de “reforço” não surtiu bons resultados na Escola (...) Os alunos chamados não gostavam da idéia de estarem de reforço, sentindo-se desvalorizados perante os outros colegas e acabavam não freqüentando as aulas. Nós nos sentíamos humilhados entrando naquela sala de reforço. Foi então que a escola resolveu adotar outra estratégia: espalhou cartazes pela escola chamando os interessados a cursarem aulas particulares de português e matemática. O resultado foi espantoso. Os alunos passaram a ver as aulas como um espaço de crescimento e de valorização de si e começaram a se inscrever.” (Relatório de pesquisa)

“No pátio ficam expostos, para a consulta dos alunos, os jornais “O Diário de ....” e a “Folha .....” Percebe-se que muitos alunos e alunas folheiam os jornais, a maior parte em busca da seção de horóscopo, mas que pode gerar uma interessante prática de leitura nos intervalos das aulas.” (Relatório depesquisa).

Observou-se uma série de estratégias produzidas para obter relações positivas e

compartilhadas com as famílias e as comunidades. Em uma determinada escola, as reuniões

de pais realizadas destoam das reuniões tradicionais. As mudanças já começam na entrada,

quando os pais são recepcionados por um grupo de alunos servindo chá de ervas

aromáticas, chamado de “chá do amor”, e pequenos arranjos de flores denominados

“ikebana”. Ao invés de se discutir a indisciplina de cada aluno e suas notas, a conversa gira

em torno do desenvolvimento dos estudantes, seus avanços e dificuldades. Os professores

também conversam a respeito da importância de os pais acompanharem o dia a dia escolar

dos seus filhos, estarem atentos ao seu comportamento.

“Nas reuniões com a comunidade fazemos um planejamento, uma estratégia para segurá-los. Não ficamos falando mal do aluno...fazemos dinâmicas com texto, música, cafezinho (...). Queremos eles dentro da escola. É a comunidade

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um importante parceiro na segurança e sucesso dessa escola.” (Entrevista, diretores)

Um dado interessante é o fato de se perceber, nas escolas pesquisadas, uma tendência ao

cultivo de sua memória social. Há grande preocupação com o registro do planejamento e da

execução das atividades desenvolvidas através de fotografias, vídeos e livros.. Esse cultivo

da memória também toma corpo nos tempos e espaços criados para a participação de ex-

alunos e outros membros da comunidade que mantêm vínculos criativos e nutrem afetos

com a escola. A permanência dos sujeitos no espaço da escola é significativa para a

compreensão das inúmeras referências que tivemos sobre o sentimento positivo de

pertencimento a esse espaço escolar público.

Os alunos, professores, diretores e funcionários chamam a atenção para as histórias dessas

escolas, afirmando sempre que elas são assim devido a uma longa e importante história.

As diversas formas de convivência também são valorizadas e colocadas como condição

para o avanço do trabalho educativo. Como exemplo, podemos citar o depoimento de uma

professora:

“Nós saímos muito com os alunos. A gente participa dos campeonatos locais...passamos o dia com eles. Nessas saídas, descobrimos como os alunos colaboram uns com os outros, eles vão se unindo. Às vezes, eles têm problemas graves em casa que a gente nem sabe, achamos que eles são rebeldes, já taxamos logo e, na convivência, na intimidade, descobrimos que não é nada daquilo. Então, nessas saídas, a gente foi percebendo que eles têm muita coisa pra ensinar pra gente, muita coisa boa, histórias de vida que nem sabemos.”(Entrevista, professor)

Por fim, vale destacar que a experiência da qualidade percebida cria um sentimento de

pertencimento em relação ao espaço institucional público. Para o jovem, isso se expressa no

orgulho de ser reconhecido como aluno de uma determinada escola, de zelar pelo

patrimônio comum, de mobilizar-se para conquistar melhorias e de participar ativamente

das ações cotidianas e dos eventos da escola.

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“O pessoal se sente necessário na escola (...) Um dia que não é possível você vim, vocês fala “poxa, quem vai ficar?”, “Quem, vai comandar?”...Você se sente necessário. É uma obra que você tá promovendo e você tá vendo resultado. Então, é necessário você vim todo dia. Acaba sendo o básico pra você...”(Grupo focal, alunos)

“A partir dessa escola, eu acho que o aluno se interessa por alguma coisa, descobre algum dom, porque aqui tem vários projetos justamente pro aluno descobrir no que que ele é bom.”( Grupo focal, alunos )

“Eu gostaria que todos os alunos usassem uniforme. Porque eu acho que fica bonito, fica bem pra escola também. A gente fica conhecido, aparece.” (Entrevista, aluna)

Outro fato que deve ser ressaltado é o grande número de escolas cujo trabalho está centrado

no desenvolvimento de atividades que valorizam a promoção de uma identidade étnica,

com a realização de atividades voltadas para o exercício dos direitos culturais desses

jovens. Assim, a pluralidade étnica da sociedade é trabalhada a partir da incorporação de

temas/atividades voltadas à valorização das características regionais. Desse modo, percebe-

se a predominância de temas voltados à cultura afro-brasileira com a difusão de suas

inúmeras manifestações culturais.

Como exemplos, podem ser citadas aquelas escolas que desenvolvem oficinas de capoeira,

de dança afro, de manejo de instrumentos de percussão (atabaque, berimbau etc.), dentre

outras atividades afins, visando o atendimento à população negra, que, segundo as mesmas,

constitui a maioria de sua clientela.

Percebe-se que os projetos inovadores jogam um papel importante, apoiando atividades

que ressignificam a imagem que esses sujeitos possuíam de si próprios, como exemplo:

“(...) o subprojeto do Núcleo de Cultura(...) Grupo de dança afro surgiu a partir da constatação de que a maioria dos alunos da escola era de origem negra e/ou nordestina, e de que esta origem era fonte de auto-identificação negativa.”(Relatório de pesquisa)

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Com relação ao trabalho citado no depoimento, uma das animadoras responsável relata um

ponto marcante na trajetória do grupo: a participação, com uma dança afro-primitiva, numa

apresentação promovida por academia de dança clássica:

“Chegando ao local de apresentação, vendo as demais dançarinas, as alunas quiseram desistir, pois achavam que passariam muita vergonha com a dança que apresentariam; as animadoras conseguiram incentivá-las para a apresentação e, ao final, foram muito aplaudidas, receberam homenagem especial da diretora da academia e, a partir daquele ano, a categoria afro foi incluída no conservatório de dança. Daquele momento em diante, o grupo se estruturou: aumentou a participação e diminuíram as desistências. Isso seria devido ao fato de as alunas reconhecerem suas raízes.” (Entrevista, animadora cultural).

Apontando para novas atitudes e comportamentos

Valorização, reconhecimento, visibilidade são temas cada vez mais presentes nos debates

sobre juventude, quando se trata, principalmente, da realidade vivida pelos alunos e alunas

jovens que usufruem das escolas públicas das grandes cidades brasileiras, vítimas primeiras

dos efeitos perversos da desigualdade social e econômica do nosso país. Tais debates

apontam a necessidade de serem produzidas práticas sociais que sejam capazes de propiciar

a esses jovens condições adequadas para que não precisem recorrer a recursos

autodestrutivos para existir socialmente.

Nessa perspectiva, encontramos na pesquisa em curso uma recorrência no que se refere à

constatação de que existe um processo de valorização nas escolas consideradas bem

sucedidas, muitas vezes não direcionado, o que aqui chamaremos de mecanismos de

valorização, pois funcionam como verdadeiros geradores de mudanças de idéias,

comportamentos e atitudes.

Para entender tal processo, é importante refletir sobre à desvalorização desse jovem

socialmente construída, que se manifesta através da discriminação, do preconceito, do

estigma etc. A literatura existente aponta para o fato de que, quando olhamos para alguém

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discriminado socialmente, encobrimos a individualidade ou os traços que singularizam ou

que diferenciam essa pessoa enquanto ser humano social (Soares, Freire). Tal atitude pode

construir um processo de “anulação social” da pessoa, que a atinge em sua própria

identidade. Seriam marcas que pouco possibilitam transparecer as potencialidades do

sujeito. Por exemplo, ao olharmos para um jovem pobre e negro, morador de uma grande

cidade brasileira, o fazemos a partir do estigma e da discriminação, não considerando que,

por trás de desse jovem, existem historias marcadas, muitas vezes, por graves problemas

sociais.

Como podemos observar nos depoimentos dos jovens entrevistados, os processos de

desvalorização acontecem no cotidiano da escola e, muitas vezes, não são percebidos pela

comunidade escolar, já que estão profundamente incorporados a determinadas práticas.

Destaca-se também, o que Bourdieu chama de violência simbólica no processo de

desvalorização, e que os alunos chamam de violência verbal.

“Na 2ª série, eu não tinha desenvolvido muito bem, uma educação muito boa.Aí, eu fui humilhado na frente de todo mundo porque eu não sabia tabuada. Nossa, indiretamente, várias vezes eu fui humilhado, tanto é que eu até repeti esse ano, a 2ª série. Peguei uma professora que ela não dava atenção pra mim, me humilhou na frente de todo mundo... mandava eu... ela fez um cone, com a orelha de burro, (...).”(Grupo focal, alunos)

“Eu achei uma violência, assim, verbal, que me chamaram de mentirosa, na frente de um professor, nem me conhecia direito. Foi uma funcionária ainda daqui. Aconteceu um ato, eu perguntei pra ela, ela me afirmou. Quando foi, eu falei “oh, professor, vai acontecer isso porque o pessoal me falou”, professor “não, não to sabendo de nada”, foi e perguntou pra essa pessoa. Ela na minha frente, na minha cara, pegou e falou que eu tinha mentido, falou pro professor “ela é uma mentirosa”. Eu fiquei sem moral nenhuma na frente do professor. Aí eu peguei e procurei, falei com ele “olhe, se ela me falasse: ah, eu tô com muito trabalho, eu me esqueci que te falei isso”, eu ainda compreenderia, entendeu? Se ela me falasse “Ah, eu esqueci”. Tudo bem, eu compreendo, mas ela chegou na minha cara e na cara do professor e falou: “você é uma mentirosa, professor ela tá mentindo.” (Grupo focal, alunos)

“A violência começa dentro de casa,da escola, no dia a dia, né?. Desde a violência verbal até a física, até atingir a sua mente, você entrar em depressão, por causa de certas palavras que você não gostaria de ouvir, eu acho que isso atinge até a sua própria pessoa.”(Grupo focal, alunos)

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Buscamos entender os depoimentos acima, considerando que o que caracterizar a juventude

é a ausência de uma imagem mais consolidada, período de transição. Nesse sentido, a

imagem que o outro faz de nós torna-se profundamente importante, já que a juventude é o

tempo em que buscamos um índice qualquer que funcione como uma referência da nossa

identidade (Carrano, Soares, Novaes). Então, tudo o que dizem sobre o jovem, todos os

exercícios de interpretação vão interessar muitíssimo: uma palavra do professor, do colega,

da família, qualquer palavra que diga algo sobre seus objetivos provoca logo uma

curiosidade enorme e uma ansiedade muito grande, porque é preciso mapear indicadores

que podem constituir a base da independência da construção desse jovem como sujeito.

Tratar com seriedade e respeito o que está sendo produzido por esse jovem, também é

apontado como crucial para esses alunos, desde o trabalho desenvolvido em sala de aula até

os corredores, pátios e entorno.

“ Tem um professor que, o que que ele faz? Ele chega na sala e pôe uma frase lá Política, né? Aí chega e faz assim: “faz uma redação e me entrega” e ele fica sentado, dá as costas pra você. Então, o que que acontece? Você não sabe nem o que foi lido na sua redação, faz um a redação do outro, ele nem vê isso, dá a nota pra você e você faz, entendeu? Copia uma receita de bolo e vai ver se ele vai ler... Vai te dar 9 do mesmo jeito. Teve redações em que eram colocados palavrões na redação e tira 9...Então, tem alguns professores que...que na verdade, eu acho que, um homem desse, não deveria ter uma licenciatura como professor, educador. Porque, na verdade, ele tinha que se educar primeiramente, assim, pra poder educar os outros.” (Grupo focal, alunos).

“(...)e nós exigimos, nós queremos uma aula pra aprender, não queremos nota, assim. A gente vem mesmo pra aprender.” (Grupo focal, alunos).

Outro fato narrado, como exemplo de desrespeito e desvalorização, refere-se à abordagem

da polícia a alunos na porta das escolas. Segundo relatos colhidos pelos pesquisadores de

campo, certa vez os alunos jogavam baralho em frente à escola, a polícia dirigiu-se aos

alunos, sem saber de que jogo se tratava e quais as suas finalidades, rasgou o baralho e

ordenou que todos fossem para casa. O tratamento com a polícia também tem feito parte

das estratégias educativas dessas escolas. Chamar os policiais para eventos, trazer para

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discutir problemas e principalmente, convidá-los para festas e momentos de apresentação

dos jovens alunos. Assim, o policial também vai construindo uma nova imagem sobre esses

jovens.

Cabe destacar a falta de sensibilidade do poder público para muitas ações, que muitas

vezes, fogem da burocracia institucional, mas podem estar repletas de mecanismos que

levem a um trabalho de qualidade. Em uma determinada escola, os alunos têm tanto

orgulho de serem reconhecidos como seus alunos que produziram, a partir de um concurso

interno, uma nova camiseta para ser usada como uniforme. Assim, todos nas comunidades

vizinhas reconheciam o status daqueles jovens, o que muito os orgulhava: “(...) vestir a

blusa da escola ... é uma responsabilidade que devemos levar com muito carinho”.

(entrevista, aluno).

Entretanto, a Secretaria Estadual de educação proibiu o uso da blusa confeccionada pelos

alunos e exigiu que eles usassem o uniforme padrão para todo o estado, demonstrando uma

leitura bastante conservadora do que vêm se discutindo no campo da juventude, como a

valorização dos símbolos: roupas, acessórios, relacionados às atitudes.

Considerações finais

A fim de identificar essas experi6encias e os caminhos alternativos que têm sido

percorridos por diversas instituições escolares, que vêm trabalhando de forma exitosa,

diminuindo situações de violência no espaço escolar e aumentando a auto-estima dos

jovens, a UNESCO pretende, com essa pesquisa, interpretar a escola a partir de um outro

olhar, buscando compreender como as escolas estão produzindo ações afirmativas para

enfrentar à violência e re-significando seu papel frente às novas demandas sociais.

Certamente, em muitas escolas por esse país, diretores, professores, alunos, funcionários,

familiares, comunidades e movimentos sociais vêm tentando estabelecer novos paradigmas

para a escola que atende, ou que deveria atender, os cerca de 42 milhões de jovens

brasileiros. São exatamente essas iniciativas que a proposta aqui apresentada pretende

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identificar e aprofundar, procurando ir além do fracasso escolar, e observando o que vem

sendo feito no sentido de produzir uma escola que responda aos anseios de nosso tempo,

voltada para a construção de uma sociedade mais fraterna, solidária, tolerante e inclusiva e,

apresentando modelos que possam sugerir sua aplicabilidade em outras realidades,

considerando as diversidades inerentes aos espaços do social e todos os obstáculos que se

impõe nesse processo.

Para a realização desse estudo, buscamos entender as experiências inovadoras como

práticas sociais que são construídas por uma série de sujeitos que, direta ou indiretamente,

estão presentes no cotidiano escolar: alunos, professores, funcionários, famílias e

comunidade. E que, a partir de processos contínuos nos quais estão presentes erros, acertos,

conflitos etc, podem identificar mudanças não apenas por um único elemento de inovação

isolado, mas por um conjunto de práticas que vão se integrando ao cotidiano, considerando

fundamentalmente dois aspectos: o tempo para a construção de um trabalho e o

reconhecimento de que existem práticas anteriores que possibilitaram essas mudanças.

Ao concluirmos a análise dos dados produzidos até o momento, podemos destacar alguns

pontos que nos parecem essenciais:

• O diálogo constante faz com que professores e alunos sintam-se mais participantes

da dinâmica escolar, e,por isso, mais responsáveis por ela. Este movimento

proporciona a proposição constante de ações, projetos e atividades por parte tanto

de professores quanto de alunos.RJ

• Se, por um lado, percebemos a realização de práticas instituintes democráticas de

condução da administração escolar, por outro verificamos também que tais práticas

ainda se encontram bastante associadas ao núcleo informal de gestão, organizado

em torno, principalmente, da liderança política da diretora geral.

• A tônica dessas escolas, de um modo geral, não está centrada nos artefatos de

disciplina e segurança, mas em práticas disciplinares guiadas por concepções

educativas ampliadas e processos de trabalho pedagógico continuado que buscam a

co-responsabilização de todos os envolvidos no cotidiano escolar.

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• As escolas não são se destacam no que se refere à qualidade de seus trabalhos por si

só. Existe luta e pressão dos alunos, professores, comunidades e famílias.

• Confirma-se a percepção de que problemas de relacionamento ocorrem, em grande

medida, por dificuldades de comunicação entre professores e alunos.

• Existe uma tendência de que as escolas se apresentem como escolas abertas para

incorporar aprendizagens significativas da sua rede de relacionamentos e da

exploração de diferentes tempos e espaços educativos, como também de que

mantenham relações mais horizontais entre os corpos discente e docente.

• Os caminhos percorridos pelas escolas são variados e refletem especificidades

locais, tais como características próprias das redes às quais se vinculam as escolas,

sua evolução histórica, características sócio-espaciais próprias dos locais onde estão

inseridas etc. Assim, é possível encontrar desde estabelecimentos onde a inovação

no processo de gestão é ainda embrionária, impulsionada, muitas vezes, por

estímulos externos, como programas adotados por decisão da Secretaria de

Educação, até aqueles em que se presencia um estágio avançado de administração

compartilhada entre os vários atores que compõem o espaço escolar, produto do

exercício democrático cotidiano.

• Observa-se uma rede de relacionamentos das escolas com instituições e movimentos

diversos, o que contribui para superar o isolamento físico da escola.

• As escolas apontam para novas e criativas formas de organização do tempo escolar,

indicam a possibilidade de estabelecimento de novas relações sociais e produção de

saberes que não se processam necessariamente no contexto das rígidas e

convencionais grades curriculares.

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• Em algumas situações, observou-se a capacidade de os alunos elaborarem projetos

de futuro, projetarem uma escolaridade alongada até a universidade e uma inserção

profissional qualificada. Estes jovens demonstram uma crença no seu futuro. Esta

visão parece estar assentada na percepção de que a boa qualidade da sua escola lhes

dá chances de competir no vestibular, embora reconheçam as dificuldades para

concorrer com os jovens das escolas particulares. A escola está, sem dúvida,

fortalecendo o presente destes jovens, para que eles sejam efetivamente sujeitos na

construção do seu futuro.

• Por fim, cabe ressaltar o depoimento de uma diretora, que pode refletir de forma

clara os caminhos que essas iniciativas vêm trilhando:

“A questão da violência é trabalhada no dia a dia com todo mundo, nas pequenas ações e atitudes, no tratamento com as pessoas, no afeto com o semelhante. Ninguém agride quem lhe trata bem: nem criança, nem jovem, nem adulto. Eu não quero agredir quem me dá afeto. É possível conviver com muitas pessoas sem ser agressivo. Todas estas posturas estão integradas às atividades curriculares. Há reuniões semanais em que discutimos a importância de trabalhar os comportamentos, e se for necessário, fazemos reuniões diárias: não deixamos nada pra depois. Todos fazem esse trabalho.” (Entrevista, diretora).