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Corporalidade: um caminho no diálogo entre Estudos Lingüísticos e Filosofia

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Num contexto disciplinar caracterizado por um crescente direcionamento das pesquisas para aspectos cognitivos e sócioculturais dos fenômenos lingüísticos, este texto aponta algumas implicações dessa reorientação investigativa na discussão de temas filosóficos. Tal discussão baseia-se na explicitação das diferenças entre duas abordagens explicativas, aqui denominadas corporalizada e representacionista.

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1 9 91 9 91 9 91 9 91 9 9VEREDAS - Rev. Est. Ling, Juiz de Fora, v.7, n.1 e n.2, p.199-215, jan./dez. 2003

Corporalidade: umcaminho no diálogoentre EstudosLingüísticos eFilosofia

NVitor Paredes (UFMG)

Resumo

um contexto disciplinar caracterizado porum crescente direcionamento daspesquisas para aspectos cognitivos e sócio-culturais dos fenômenos lingüísticos, estetexto aponta algumas implicações dessareorientação investigativa na discussão detemas filosóficos. Tal discussão baseia-sena explicitação das diferenças entre duasabordagens explicativas, aqui denominadascorporalizada e representacionista.Palavras-chave: Corporalidade; Biologiado conhecer; Estudos lingüísticos;Filosofia.

Introdução

Atualmente, o campo dos estudoslingüísticos exibe novas feições no quese refere a modelos explicativos e temasde investigação, sendo o próprio conceitode linguagem discutido e redefinido por

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vários pesquisadores. Afastando-se da tradição formalista de análise – tantona vertente dos diversos estruturalismos caracterizados pela exclusão do sujeitoquanto na perspectiva gerativa voltada unicamente para o domínio mental dosujeito – vem-se configurando um crescente interesse sobre os processos designificação, ou seja, os processos pelos quais as ações (vocalizações, gestos,escrita etc.) de uma pessoa afetam a experiência, pensamentos e ações deseu(as) interlocutor(as). De maneira geral, podemos dizer que se tem investigadoinstrumentos para compreender as relações de fenômenos lingüísticos comprocessos cognitivos e sócio-culturais, constituindo uma “revisão da agendados estudos da linguagem” (SALOMÃO, 1999).

Tais mudanças têm reflexos na própria interação desse campo de estudoscom áreas disciplinares como a neurofisiologia, psicologia, antropologia efilosofia. No que diz respeito a esta última, as implicações dessa reorientaçãoatingem principalmente os debates agrupados no que se convencionou chamarde filosofia da linguagem e filosofia da mente.

Um dos caminhos explicativos seguidos por pesquisadores contemporâneosparte da consideração dos sujeitos humanos como seres vivos, entendendo suashabilidades cognitivas, mentais e comunicacionais como fenômenos biológicosresultantes de sua existência como sistemas físicos em contínua interação com seuambiente humano e não-humano. De diferentes maneiras, essa compreensão temsido chamada por alguns de corporalizada ou incorporada (embodied; ver porexemplo FOLEY, 1997; LAKOFF & JOHNSON, 1999; LAKOFF & NÚNEZ, 2000;INGOLD, 2000; VARELA et alii, 2003). Um sistema conceitual oriundo da biologiautilizado como instrumento para essa tarefa é a Biologia do Conhecer, sistematizadapor Humberto Maturana e que ficou conhecida principalmente por suas publicaçõesconjuntas com Francisco Varela (ver por exemplo MATURANA & VARELA, 2001[1984] e 1997 [1973]). Um de seus principais trunfos é a peculiaridade de conjugar,no mesmo modelo explicativo, definições conceituais para fenômenos usualmenteestudados por disciplinas distintas, o que se tem mostrado produtivo parainvestigações relativas a fenômenos de linguagem, como evidenciam trabalhos dediferentes autores (HERRUSTEIN-SMITH, 1988; BECKER, 1988 e 1991; MAGRO,1996, 1997 e 1999; FOLEY, 1997). Por esse motivo, será aqui utilizado comobase conceitual para explicitar as características de uma abordagem que tomalinguagem e cognição como fenômenos biológicos. Essa ferramenta teórica permitirácompreender que o que se pode conotar pela menção à corporalidade ouincorporação é a modulação fisiológica que ocorre de maneira congruente comnossa história de interações, sem implicar que a linguagem ocorra nos corpos dosfalantes, ou que haja uma “internalização” de elementos provenientes do mundo“externo”, ou ainda que o que se observa seja a incorporação de uma história(MAGRO, 2003).

No que se segue, serão examinadas as principais diferenças entre talperspectiva e aquela na qual se insere quase toda a tradição dos estudos dalinguagem (inclusive várias das tentativas atuais de relacionar fenômenoslingüísticos, cognitivos e sócio-culturais), baseada na noção de representaçãomental. A partir dessa distinção, serão apontadas algumas implicações de umaabordagem corporalizada para o debate sobre as relações entre questõeslingüísticas e filosóficas.

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1 Corporalidade x representação mental: epistemologias distintas

A Biologia do Conhecer, aqui tomada como matriz conceitual para oexame da concepção corporalizada dos fenômenos lingüísticos, originou-seda necessidade de um modelo explicativo para fenômenos atípicos observadospelo biólogo chileno Humberto Maturana em suas investigações sobreneurofisiologia da visão (MATURANA, 1997 [1992]). Segundo essepesquisador, fenômenos diversos comumente conhecidos como “ilusões deótica” não puderam ser coerentemente explicados até que fosse adotada umanova postura epistemológica denominada determinismo estrutural, segundo aqual as transformações pelas quais passa um sistema físico – por exemplo, asque resultam em fenômenos cognitivos num ser vivo – podem ser desencadeadaspor suas interações com o meio, mas são determinadas exclusivamente pelamaneira como a estrutura do sistema está constituída naquele dado instante(idem, ibidem). Suas interações no meio podem especificar, entre um conjuntode transformações estruturais possíveis em um momento, uma entre todas e defato desencadear seu acontecimento – mas não têm poder instrutivo, não têmpoder para determinar a transformação independentemente da constituiçãoestrutural do sistema. A mudança de caminho explicativo constituída pela adoçãodo determinismo estrutural posteriormente foi estendida à compreensão deoutros fenômenos relativos ao viver humano, sendo que, para efeito da discussãoaqui pertinente, interessa explicitar suas conseqüências na reformulação dosconceitos de cognição, linguagem e mente.

1.1 Cognição

Como observadores, falamos de cognição e de conhecimento sempreque observamos uma conduta adequada de um ser no contexto do domínioem que o distinguimos (MATURANA & MPODOZIS, 1997 [1987]). Assim, porexemplo, consideramos que uma ameba se aproxima de uma partícula nutrientee a ingere exercitando capacidades cognitivas que lhe permitem perceber suapresença e se orientar espacialmente em relação a ela. O mesmo se aplica anossa experiência táctil e visual desta página impressa, e ao fato de amanipularmos adequadamente. A principal questão aqui é: como se constituemtais capacidades cognitivas?

Na história da filosofia e da ciência ocidentais, tem-se procuradoresponder a esta pergunta supondo que a conduta adequada surge doprocessamento, no âmbito da estrutura interna do ser vivo, de elementosportadores de características semelhantes às dos elementos presentes no meio,tais como esses são descritos pelo observador. Essa suposição se traduz noconceito de representações cognitivas, que seriam objetos mediadores entre omundo exterior e o interior do organismo. Através dessa mediação, asrepresentações garantiriam o conhecimento “do que está lá fora”, permitindoassim a efetivação de ações adequadas na interação com esse mundo externo.Tal pressuposto fundamenta as reflexões tradicionais envolvendo o uso dasnoções de informação e percepção, usadas para compreender os processoscognitivos. A principal orientação seguida nas ciências cognitivas sempre se

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sustentou nesse conceito central, sendo a pergunta sobre a explicação dacognição refraseada como variações em torno de “que mecanismosrepresentacionais constituem os processos cognitivos?”1

Esta forma de explicação parece irresistível a partir de nosso linguajarusual sobre as interações que observamos entre seres vivos e seu ambiente,sejamos nós mesmos, outros seres humanos ou animais de outras espécies.Notadamente, para animais que exibem condutas complexas adequadas emrelação a objetos e situações extremamente variados, a noção de representaçãocognitiva parece ser a resposta natural para explicar tais condutas. O aspectooperacional central à noção de representação é sua participação como elementoque, realizando uma mediação entre o exterior e o interior do ser vivo, garantiriaalgum grau de isomorfia, ou seja, de semelhanças estruturais, entre processosinternos e externos ao organismo. A suposição da existência separada eindependente do organismo e do ambiente requer, para a explicação dosfenômenos cognitivos, a criação de conceitos que cumpram essa mediação. Deacordo com Donald Davidson, as abordagens dicotomizadoras requerem“intermediários epistêmicos” para solucionar as dificuldades conceituais porelas levantadas; no caso dos fenômenos relacionados à interação entre oindivíduo e o meio (por exemplo, fenômenos cognitivos e lingüísticos) sãointermediários epistêmicos clássicos as noções de informação, representação esuas derivações tais como esquemas conceituais (DAVIDSON, 1984 [1974]).

Entretanto, diversos fenômenos evidenciam que a cognição não resultada captação de elementos provenientes de um mundo externo de existênciaindependente do observador. Muitos, como a visão de cores “que não estãolá” ou a sensação de movimento em círculos concêntricos estáticos em umpapel, são conhecidos como “ilusão de ótica” e, surpreendentemente, ao invésde serem tomados como fenômenos anômalos – no sentido empregado porKuhn (1982) – suscitadores de revisões no modelo explicativo usual, sãoapontados como curiosidades ou “exceções confirmadoras da regra”. Apesardisso, essas observações experimentais sugerem a utilidade de se buscarmecanismos explicativos que permitam compreender simultaneamente aocorrência tanto de “percepções” quanto de “ilusões” cognitivas.

Efetivamente, a Biologia do Conhecer fornece uma explicação para isso,ao propor o surgimento da experiência cognitiva não por representação, maspor configuração: a constituição de objetos na experiência como resultado demudanças nas relações de atividade entre os elementos da estrutura física doser vivo, desencadeadas por perturbações no fluir das interações com o meioexterno, mas determinadas pelas características da própria estrutura. Um exemploexperimental relatado por Maturana e Varela (1984) evidencia isso de maneiraclara. Um girino cujo olho sofreu uma rotação de 180o por meio de cirurgiatem a possibilidade de regenerar as ligações originais entre as células donervo ótico e as células da retina. Quando já adulto, esse mesmo sapo exibiráum comportamento curioso: se lhe cobrem o olho girado e uma mosca passa àsua frente e no alto, ele lança sua língua de modo certeiro e captura a mosca.Se, porém, o olho normal é coberto e o olho girado descoberto, a passagem deuma mosca à sua frente e no alto suscita a reação de lançar a língua para tráse para baixo. A interpretação desse experimento na Biologia do Conhecer é de

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que o comportamento de lançar a língua em uma determinada direção nãoestá operacionalmente conectado a uma suposta computação interna envolvendoa localização espacial do objeto “lá fora”, mas decorre de mudanças nas relaçõesde atividade interna à rede neuronal, que ocorrem de maneira determinadapela estrutura da rede. No caso, uma mudança de correlações de atividade emcerta região da retina do sapo desencadeará reações motoras cujo resultado éo lançamento da língua em uma determinada direção – esteja o seu olhogirado ou não. As relações entre os componentes do seu organismo se mantêmas mesmas que foram moldadas pela evolução filogenética e realizadasontogenicamente2, e é apenas do ponto de vista do observador que o sapoestá “errando a pontaria”. Pois, de fato, o organismo do sapo não está apontandopara nada alheio a sua estrutura, mas apenas operando mudanças na dinâmicainterna das relações entre seus componentes.

Assim, um ser vivo não assimila passivamente informações provenientesde um mundo externo independente de suas operações cognitivas, mas viveexperiências cujas características surgem das possibilidades operacionaisconstituídas pela própria estrutura corporal. Em outras palavras, não se trata deperceber um mundo, mas de constituir, historicamente, experiências cognitivas.De fato, a congruência entre as transformações estruturais do ser vivo e osprocessos físicos constitutivos do seu meio pode ser compreendida como seconstituindo processualmente e de maneira recursiva na forma de reaçõesdinâmicas do sistema operacionalmente acopladas a modificações dinâmicasdo ambiente. Nesse sentido, tal congruência efetivamente resulta na estabilizaçãode certas correlações espacio-temporais na dinâmica estrutural do sistema comorespostas a correlações espacio-temporais que se dão no meio e que constituemperturbações recorrentes no viver do organismo. É a essa dinâmica deacoplamento que usualmente nos referimos, como observadores, ao dizer que“o organismo conhece seu ambiente” ou “aprendeu algo sobre seu ambiente”.Embora tal processo possa parecer, aos olhos do observador, como resultandoda “captura” de elementos ou características do ambiente por parte doorganismo, ou da “entrada” e “registro”, no interior do sistema, de representaçõesisomórficas a seu meio, ou ainda da seleção, no interior de um organismo, deneurônios ou conjuntos neuronais que respondem especificamente a certasocorrências no meio, a configuração de objetos resulta da distinção decorrelações entre aspectos da própria experiência, modulados – mas nãodeterminados – pelas interações com “o que está lá fora”.

1.2 Linguagem

No âmbito científico, desde a definição inicial da disciplina lingüística edo seu objeto por Saussure, a linguagem tem sido concebida como produto deum dispositivo próprio da essência humana, constituído por um mecanismoportador de um cerne lógico-matemático, que através de operações seguindoregras de combinação definidas produz toda a diversidade de enunciadoslingüísticos observados. Ao distinguir estritamente langue e parole e definir aLingüística como sendo o estudo da primeira, o autor apontou como tarefa dadisciplina a caracterização de um mecanismo mental abstrato, pressupondo-se

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que sua existência era condição necessária para o surgimento dos fenômenoslingüísticos. Roy Harris e Talbot Taylor observam que Saussure parece estarevocando o antigo conceito grego de logos (embora não formule a questãonesses termos), já que a noção por ele proposta corresponde a uma estruturaorganizacional única que responde simultaneamente pela fala e pela razãohumanas (HARRIS & TAYLOR, 1989). Nessa perspectiva, a concepção delinguagem corresponde a um sistema de elementos finitos combináveis entre sisegundo um número também finito de regras, gerando um número virtualmenteinfinito de enunciados. Por definição, esse sistema seria parte integrante damente humana, e sua compreensão poderia ser inferida através da análise dasrelações entre os componentes dos enunciados lingüísticos. Saussure,influenciado pela nascente sociologia de seu contemporâneo Durkheim, trataa linguagem como instituição social, o que implicava tomá-la como “coisa”externa e independente da idéia que dela faziam os indivíduos que aexpressavam. Assim, após distinguir o par significante/significado como pólosconstitutivos dos fenômenos lingüísticos, elege o primeiro como objetodisciplinar. Na mesma época, Frege delimitava a semântica propondo-se a trataro significado como valor social, abdicando de qualquer “subjetivismo” voltadoà dimensão mental da significação (SALOMÃO, 1999).

Na lingüística norte-americana, a conjugação dos procedimentossaussurianos com os princípios teóricos da psicologia behaviorista levou aosurgimento de uma corrente que abdicou da noção de linguagem como produtomental para tratá-la como comportamento e centrar-se na descrição de regrascombinatórias de línguas particulares (ver, por exemplo, BLOOMFIELD, 1933).Como reação a essa perspectiva, em meados do século passado Noam Chomskyretorna à concepção mentalista da linguagem e define a investigação lingüísticacomo proposta de revelar as características dos mecanismos mentais subjacentesà produção lingüística efetivamente observável. Considerando a linguagemcomo uma “faculdade humana [que] parece ser uma verdadeira ‘propriedadeda espécie’, variando pouco entre as pessoas” e que “[a] linguagem humanaparece estar biologicamente isolada em suas propriedades essenciais”(CHOMSKY, 1998, p.17), Chomsky propôs que o dispositivo mental chamadolinguagem é constituído por um mecanismo denominado Gramática Universal(CHOMSKY, 1966), compartilhado por todos os seres humanos. As línguasnaturais particulares, nessa perspectiva, consistiriam em distintas manifestaçõesda operação dessa Gramática Universal: “A doutrina central da lingüísticacartesiana declara que os traços gerais da estrutura gramatical são comuns atodas as línguas e refletem certas propriedades fundamentais do espírito”(CHOMSKY, 1972, p.75).

O objetivo principal do projeto capitaneado por Chomsky ao longo dedécadas consistiu na caracterização da gramática gerativa, entendida como“uma descrição de competência tácita do locutor-ouvinte, subjacente ao seuefetivo exercício na produção e percepção (compreensão) da linguagem”(CHOMSKY, 1972, p.91). Durante muito tempo a pesquisa lingüística buscouprincipalmente a caracterização dessa gramática, num projeto de âmbito mundialenvolvendo a análise de diversas línguas. A observação, em várias dessaslínguas, de anomalias sintáticas do ponto de vista dos princípios operacionais

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propostos para a gramática gerativa levou a um contínuo movimento de revisãoconceitual e sofisticação do modelo. As particularidades apresentadas pelaslínguas estudadas levaram a uma proliferação dos mecanismostransformacionais entre “estrutura profunda” e “estrutura superficial”, propostoscomo explicação para a geração dos enunciados lingüísticos efetivos. Essacomplexificação da teoria chegou a tal ponto que, em meados dos anos noventa,Chomsky propôs um “programa minimalista” para enxugar o aparato conceitualde seu modelo (CHOMSKY, 1995).3 Apesar de algumas modificaçõessubstanciais em relação ao modelo anterior, os fundamentos continuaminalterados: postula-se, como antes, a existência de uma faculdade lingüísticainata e a existência de um componente lógico com regras algorítmicas universais,que gerencia o uso da linguagem pelo indivíduo.

Essa concepção, apesar de sua formulação sofisticada e atualizada emtermos computacionais, corresponde, em seus mencionados fundamentos, aoque Roy Harris chama de o mito da linguagem, cuja presença na tradição dacultura ocidental remonta a Aristóteles:

[O] mito da linguagem assume que a linguagem é um conjunto finito deregras que geram um conjunto infinito de pares, que tem como um de seusmembros uma seqüência sonora ou uma seqüência de caracteres escritos, ecomo outro seu significado, sendo que o conhecimento de tais regras é oque une os indivíduos em comunidades lingüísticas capazes de intercambiarpensamentos uns com os outros de acordo com um plano pré-arranjadodeterminado por aquelas regras. (HARRIS, 1981, p.11)

Harris define esse mito como o resultado da conjugação de doispressupostos: a “falácia da telementação” e a “falácia da determinação”. Aprimeira refere-se à função da linguagem e afirma que os processos lingüísticossão essencialmente constituídos através da correspondência entre palavras eidéias. Nessa perspectiva, palavras são símbolos que tornam possível atransferência de pensamentos de uma mente a outra, ou a apreensão dosmesmos significados por dois ou mais indivíduos. Ou seja, também aqui estápresente a lógica representacional no modelo proposto para a relação entreelementos internos (as idéias presentes na mente da própria pessoa) e elementosexternos (as idéias presentes na mente do interlocutor), as palavras operandocomo símbolos (representações) que efetuam a mediação entre esses doisespaços. Já a “falácia da determinação” refere-se à explicação de como atelementação é possível. Trata-se de um processo entre estruturas idênticas,não em termos físicos, mas mentais: um conjunto fixo de regularidades quetornam possíveis as correlações entre conceitos e símbolos verbais que viabilizama troca de idéias. A interação entre dispositivos semelhantes operando comum código compartilhado gera a transferência de idéias.

Como aponta Cristina Magro,

[o] pressuposto fundamental nessa tradição, portanto, é que a compreensãomútua é um fato automático e inconteste, graças a esses dois fatoresinterconectados. O que não é esperado aqui é a interpretação divergente, aincompreensão, tidas como eventos desviantes e indesejáveis quando ocorrem.(MAGRO, 1999, p.169)

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Por isso, a explicação da ocorrência de incompreensão nas interaçõeslingüísticas usualmente lança mão de mecanismos adicionais, tais como “ruídono canal de comunicação”. Do mesmo modo, enunciados lingüísticosconsiderados imperfeitos em relação ao que estabeleceria a gramática mentalnecessariamente serão entendidos como produtos de uma aplicação defeituosadas regras de produção lingüística pela intervenção de algum fator alheio aoprocesso, que, portanto, devem ser descartados como material de análise pornão permitirem a inferência correta dessas regras. A tarefa do lingüista, dessamaneira, fica praticamente restrita à análise sintática de enunciados consideradosgramaticalmente adequados e sem a possibilidade de relacionar fenômenoslingüísticos com processos ocorridos em outros domínios.

O uso da expressão “falácia” por Harris é compreensível quandoconsideramos, primeiro, que os processos de interpretação lingüística resultamfreqüentemente – mais freqüentemente do que faria supor a explicação pelatelementação – em entendimentos distintos dos sentidos atribuídos pelo própriofalante, e estão longe de exibir uma homogeneidade inquestionável quandovárias pessoas interpretam os mesmos enunciados (pensemos nas diversasinterpretações que os alunos de uma turma fazem da “mesma” aula dada peloprofessor). Tal concepção dos processos lingüísticos, estruturada em torno doque Michael Reddy (1979) chama de “metáfora do tubo”, mostra-se inadequadapara explicar uma freqüência nada desprezível de fenômenos de incompreensãoe de divergência interpretativa. Essa insuficiência, tradicionalmente, ésolucionada pela proposição de mecanismos distintos para explicar esses outrosfenômenos. Porém, segundo o princípio da parcimônia conceitual nasexplicações científicas – também conhecido como “navalha de Occam” – é maisdesejável um modelo que permita explicar tanto a convergência como adivergência interpretativas como resultados do mesmo mecanismo gerativo.

Em segundo lugar, o uso do termo “falácia” se deve ao fato de que aconvergência interpretativa per se não pressupõe, em termos lógicos, asemelhança estrutural dos processos próprios ao falante e ao ouvinte. Essasuposição se torna necessária apenas se aceitamos o entendimento mútuocomo resultado da “transmissão de idéias” entre as mentes do falante e doouvinte – e tal concepção é apenas uma das maneiras possíveis de formular aquestão. Quando distinguimos “comunicação” entre duas pessoas, sempreestamos nos referindo a uma situação em que essas pessoas desencadeiam-semutuamente reações comportamentais consensuais. Em termos operacionais,nada nos obriga a supor uma “transmissão de informação” ou umcompartilhamento dos mesmos “conteúdos mentais”. Por essa razão, BarbaraHerrnstein-Smith (1988) afirma que não existe comunicação no sentido de“tornar comum” algo (por exemplo, “conhecimento”) previamente possuído pelofalante ou no sentido de uma transferência de algo do falante para o ouvinte.Em vez disso, ela vê a comunicação verbal como “interação com conseqüênciasdiferenciais”: cada pessoa age em relação à outra desencadeando reaçõescomo interpretações que podem ser convergentes ou não.

É inevitável que haja disparidades entre o que é “transmitido” e o que é“recebido” em qualquer troca simplesmente em virtude dos diferentes estados

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e circunstâncias do “emissor” e do “receptor”, inclusive sempre haverádiferenças – algumas vezes bastante significativas – produzidas por suashistórias de vida inevitavelmente diferentes como criaturas verbais.(HERRNSTEIN-SMITH, 1988, p.109)

Se buscarmos compreender os processos lingüísticos como fenômenosobservados no domínio de existência de seres vivos estruturalmentedeterminados, assumindo que os processos cognitivos seguem a lógicaoperacional antes descrita, fica claro que nada é “transmitido” nem “recebido”.O que acontecem são perturbações mútuas que desencadeiam mudançascognitivas. Além disso, se atentamos ao que distinguimos operacionalmentequando distinguimos um fenômeno de “sucesso comunicacional” ou“convergência interpretativa”, podemos verificar que o que conotamos com taisexpressões são situações em que há uma congruência entre as condutas dosinterlocutores, resultando na criação de um domínio consensual relativo adeterminados objetos – que podem ser concretos, simbólicos, conceituais etc.A igualdade entre aspectos operacionais dos interlocutores verifica-se nodomínio de suas interações com os objetos consensuais, e independe deisomorfia estrutural no domínio de sua constituição interna. Maturana (1997[1978], p.45) diz:

1. que dois organismos que operam em um domínio consensual possuemdomínios de estados idênticos neste domínio consensual, e interagem deacordo com uma correspondência estrita entre o comportamento perturbadordesencadeante de um e o comportamento desencadeado do outro;2. que, na medida em que o ponto anterior se mantém verdadeiro, as interaçõesem um domínio consensual podem ser descritas como interaçõescomunicativas.

Nesse sentido, o termo “comunicação” talvez fosse mais bem substituídopor “consensuação”. O primeiro costuma ser utilizado para se fazer referênciaa interações lingüísticas e não-lingüísticas resultantes em consenso e evocar ocaráter dialógico de construção desse consenso. Mas, enquanto aquele evocao domínio mental, o segundo traz à mão o domínio do comportamentointeracional humano. É importante enfatizar que, na perspectiva corporalizadade compreensão dos fenômenos lingüísticos, esses constituem um domíniocorrespondente a um dos aspectos operacionais das interações humanas. ParaMaturana, tais interações acontecem como conversações, ou seja, como umfluir entrelaçado de linguajar e emocionar, em que cada um desses processosinfluencia o curso do outro e o comportamento pessoal resultante de suaconjugação está acoplado processualmente ao fluir entrelaçado do linguajar eemocionar da(s) outra(s) pessoa(s). O linguajar é constituído pelo atuar emcoordenações consensuais de ações, e o emocionar consiste na dinâmica dedisposições corporais que a cada instante definem as transformações estruturaispossíveis, determinando assim o domínio de ações em que a pessoa se encontranesse instante. Aqui, a linguagem é uma designação genérica para o resultadodos processos do linguajar – que são observados no domínio das interaçõeshumanas e acontecem inevitavelmente modulados pelo curso seguido peloemocionar da pessoa durante a interação.

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Assim, nessa perspectiva, a linguagem não faz sentido como mecanismomental de funcionamento autônomo e só pode ser compreendida se tomadacomo um dos aspectos processuais das conversações constituídas nas interaçõeshumanas. Do mesmo modo, todo fenômeno lingüístico – tanto as interpretações“corretas” quanto as “equivocadas”, tanto enunciados “gramaticais” quanto“agramaticais” – merece atenção e pode ser entendido como resultado daparticipação prévia em uma história de conversações atualizada emcircunstâncias específicas e dentro das possibilidades determinadas pelopresente estrutural do organismo. Por isso mesmo, a maneira de considerar osignificado das regularidades observadas nas formas de coordenarcoordenações de ações é outra, o que muda a noção de gramática:

Todo tipo de comportamento é realizado por meio de operações que podemou não ser aplicadas recursivamente. Se a recursão é possível num tipoparticular de comportamento, e se ela leva a casos de comportamento domesmo tipo, então um domínio gerativo fechado de comportamento éproduzido. Há muitos exemplos: a dança humana é um, a linguagem humanaé outro. O que é peculiar sobre a linguagem, todavia, é que essa recursãoocorre por meio do comportamento de organismos num domínio consensual.Nesse contexto, a estrutura sintática superficial ou a gramática de umalíngua natural dada pode apenas ser uma descrição das regularidades naconcatenação de elementos do comportamento consensual. Em princípio,esta sintaxe superficial pode ser qualquer uma, porque sua determinação écontingente com a história de acoplamento consensual, e não é um resultadonecessário de qualquer fisiologia necessária. Inversamente, a gramáticauniversal da qual os lingüistas falam como um conjunto necessário de regrassubjacentes, comuns a todas as línguas humanas naturais, pode se referirapenas à universalidade do processo de acoplamento estrutural recursivoque ocorre nos humanos pela aplicação recursiva dos componentes de umdomínio consensual sem o domínio consensual. A determinação dessacapacidade de acoplamento estrutural recursivo não é consensual; ela éestrutural e depende inteiramente do sistema nervoso como uma rede neuronalfechada. Além disso, essa capacidade para acoplamento estrutural recursivofunciona tanto para as línguas faladas quanto para as de sinais dos sereshumanos, e para os domínios lingüísticos de sinais e de símbolos estabelecidoscom chimpanzés (GARDNER & GARDNER, 1974; PREMACK, 1974). Portanto,a estrutura requerida para uma gramática universal, entendida como acapacidade para o acoplamento estrutural recursivo na operação do sistemanervoso, não é exclusivamente humana. As contingências de evolução quelevaram, no homem, ao estabelecimento da língua falada, todavia, sãopeculiarmente humanas. (MATURANA, 1978, p.152-3)

Do mesmo modo, a noção de língua deixa de fazer sentido como umconjunto particular de palavras e regras de combinação para ser compreendidacomo uma abstração surgida da descrição conjunta, pelo observador, deregularidades distinguidas nas formas de concatenação entre elementos dascoordenações consensuais de ações observadas entre os membros de um grupohumano. Portanto, “falar a mesma língua” não é produto do compartilhamentomental de um léxico e um código gramatical, mas resultado da participação emuma mesma rede de conversações em que historicamente se estabilizaram certasformas recorrentes de combinação de elementos lingüísticos. Elementos

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lingüísticos, aqui, podem tanto ser vocalizações quanto qualquer outro tipo deperturbação cognitiva que mostre um efeito diferencial recorrente ao surgir nocurso das conversações consideradas. A língua existe inevitavelmenterelacionada a uma rede de conversações e, na perspectiva conceitual da Biologiado Conhecer, isso pode ser formulado dizendo que a língua é um dos aspectosde uma cultura. Essa é a razão pela qual não existe fenômeno lingüísticoindependente do contexto sócio-cultural em que ocorre; da mesma maneira, ocontexto em que uma ação lingüística é realizada não é independente dahistória de conversações prévias de uma pessoa, nem do seu presente estrutural– constituído, inclusive, por suas emoções (MAGRO, 1999; PAREDES, 2003).

1.3 Mente

A separação estrita entre mente e corpo constitui uma dicotomiafundamental na vertente principal da tradição ocidental de pensamento, pelomenos desde que Platão postulou a existência de um “mundo das idéias”como esfera separada e autônoma do mundo concreto sensorialmentecognoscível. Essa separação subjaz à maior parte das investigações filosóficas,e esteve presente no próprio lançamento do projeto de um método científicopor Descartes, fazendo-se notar ainda em nossas reflexões mais cotidianas.Sendo assim, não é surpreendente que a maior parte do conhecimento relativoaos processos cognitivos e lingüísticos – como ficou evidenciado nas seçõesanteriores – se sustente na suposição da mente como um mecanismo abstratode natureza universal, muitas vezes concebido como ontologicamente anteriorà própria existência do mundo de objetos físicos que fazem parte de nossaexperiência efetiva. Como já foi mencionado, esse caminho explicativo criasérias dificuldades conceituais para dar conta de como fenômenos mentaispodem influenciar processos corporais e, simultaneamente, como nossasinterações sensoriais com outros sistemas físicos podem modular o curso denossos pensamentos e sentimentos.

Dan Sperber e Deirdre Wilson – propositores da Teoria da Relevância,atualmente um dos mais influentes modelos explicativos para a interação entreprocessos sensoriais e operações mentais lógicas na origem dos processos deinferência de significado lingüístico – formulam assim esse impasse (SPERBER &WILSON, 1996, p.461):

Comunicação é um processo envolvendo dois dispositivos processadores deinformação. Um dispositivo modifica o ambiente físico do outro. Comoresultado, o segundo dispositivo constrói representações similares àsrepresentações já armazenadas no primeiro dispositivo. [...] A questão é:como um estímulo físico pode provocar a similaridade requerida quando nãohá qualquer similaridade entre os estímulos (e.g. padrões sonoros) de umlado e as representações (e.g. pensamentos humanos) que esses colocam emcorrespondência, de outro?

Como evidencia o trecho citado, a concepção de um plano físico concretoe outro mental abstrato com naturezas distintas e separadas torna difícil – defato, impossível – explicar de maneira conceitualmente rigorosa e empiricamente

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sustentada as relações efetivamente observadas entre fenômenos físicos e mentais.Via de regra, e mesmo Sperber & Wilson não fogem disso4, a solução encontradaconsiste em postular a atuação de mecanismos não-observáveis que atuariamcomo intermediários epistêmicos tal como definidos por Davidson (vide acima).

Resolver esse problema conceitual requer uma transformação de comose compreendem os dois domínios fenomênicos envolvidos, e isso é efetuadono âmbito da Biologia do Conhecer. O entendimento do operar do corpohumano enquanto sistema físico estruturalmente determinado já foi expostoanteriormente em linhas bem gerais; vejamos agora o que ocorre em relação ànoção de mente. Aqui, a mente é concebida não como uma entidade, mascomo o domínio fenomênico das relações e interações do organismo(MATURANA, 1997 [1988]). Em conseqüência, a relação entre corpo e menteé de natureza gerativa e recursiva, de modo que os fenômenos mentais quepodemos observar em nossa experiência ocorrem de maneira modulada pelosprocessos que estão acontecendo em nosso corpo, nossa fisiologia, e, ao mesmotempo, essa última pode ser afetada pelo fluir de nossos processos mentais.

Assim, podemos explicar coerentemente como a ingestão de substânciaspsicoativas, ou lesões no sistema nervoso, ou mudanças emocionais (isso é,mudanças em nossa disposição corporal dinâmica afetando a taxa de batimentoscardíacos, a liberação de hormônios específicos na corrente sangüínea, os níveisde tensão muscular e de relações de atividade entre os componentes do sistemanervoso) podem afetar o curso de nossos processos mentais, nossas habilidadesou “capacidades lógicas” e até o tipo de argumentos que aceitamos em um debate.Ou explicar o fato de que sentir uma leve fragrância nos desperte intensas lembrançashá muito esquecidas, e que a audição de uma música transforme a maneira comoestamos nos sentindo. Do mesmo modo, podemos compreender que interaçõesconversacionais continuadas possam estabilizar certos estados fisiológicos e padrõesmentais, cuja recorrência pode promover a saúde ou desencadear o surgimentode enfermidades. Ou que escutar a fala e ver os sinais escritos por alguém possanos levar a experimentar processos mentais inéditos para nós, ou nos ajudar adesenvolver habilidades mentais que não possuíamos.

É importante enfatizar que esse entendimento das relações entre processosfísicos e mentais prescinde de qualquer recurso a conceitos como representaçãoe armazenamento de informações captadas, ou processamento computacionalde representações simbólicas. Ainda, permite-nos compreender que os processosmentais são em certa medida padronizados em uma comunidade humana devidoà similaridade estrutural de organismos vivendo na mesma rede de conversações.No entanto, essa padronização tem variações que dependem de peculiaridadessensoriais ou da conformação do sistema nervoso – uma pessoa cega podedesenvolver certas habilidades mentais que uma vidente ou uma surda nãodesenvolve, e vice-versa; uma pessoa “normal” realiza operações lingüísticas queoutra, com danos cerebrais, não consegue. Ou, ainda, de variações estruturaisrelacionadas às emoções do momento: uma pessoa calma tem idéias e podecompreender seqüências lógicas que alguns minutos antes, quando estava irada(ou impaciente, ou insegura), não teria ou não poderia.

Do mesmo modo, o fato de haver crescido em uma rede de conversaçõesparticular – isso é, uma cultura –faz com que uma pessoa veja como óbvias, e

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até mesmo naturais, formas de pensamento e padrões lógicos que alguémpertencente a outra cultura talvez só consiga compreender parcialmente e commuito esforço, por ter aprendido a distinguir objetos e estabelecer relaçõesentre eles de maneira diversa. Esse tipo de diversidade cognitiva e mental queaparece quando se comparam culturas diferentes evidentemente envolve – nessaperspectiva conceitual – também elementos lingüísticos, tais como as variaçõesobservadas nos princípios de categorização lexical e nas regras gramaticais,que muitas vezes se referem à distinção e reflexão sobre aspectos da experiêncianegligenciados por outras línguas.5

Desse modo, em uma abordagem corporalizada não faz sentido apostulação da mente como um dispositivo abstrato (independente do organismofísico) com características universais e pré-existentes a cada ser humanoparticular mas, ao contrário, podemos compreender os processos mentais seatentarmos para as possibilidades interacionais engendradas pela estruturacorporal de cada pessoa, em um instante considerado como o presente detoda a sua história de interações com sistemas físicos diversos: outrosorganismos humanos, seres vivos de outras espécies e objetos inanimados.

Conclusão

Até aqui, examinamos alguns aspectos gerais da assim chamadaabordagem corporalizada (embodied) no estudo dos fenômenos de linguagem,procurando evidenciar suas principais características pelo contraste com aperspectiva tradicional. Sem se pretender exaustivo, esse exame enfocou trêsconceitos-chave no diálogo entre os estudos lingüísticos e a filosofia.

Chegando a esse ponto, podemos agora tecer alguns comentáriosrelativos a implicações dessa abordagem na reflexão sobre tópicos de interessedas investigações filosóficas, alinhavando pontos que já apareceram ao longodo texto. Como resultados da aplicação de uma proposta recente de reformulaçãológico-conceitual surgida em um campo disciplinar distinto, tais desdobramentosconsistem menos em conclusões acabadas do que em direções que se abrempara um debate renovado acerca de temas propícios a um intercâmbio disciplinarentre lingüistas, filósofos e – por que não? – psicólogos, neurofisiólogos,pedagogos, sociólogos, profissionais e estudiosos da comunicação,antropólogos, teóricos da informação etc.

O primeiro ponto de interesse filosófico relaciona-se à própria origemdo sistema conceitual constituído pela Biologia do Conhecer, e consiste naoriginal postura epistemológica denominada de determinismo estrutural. Essamaneira de explicar fenômenos subverte toda uma tradição de pensamentoque atribui ao meio circundante a propriedade de determinar as mudançassofridas por um sistema; no caso dos processos lingüísticos, tal atitudefundamenta a lógica subjacente ao conceito de informação e seus correlatos.Assim, as correntes epistemológicas estabelecidas ganham um contraponto quepode ser bastante produtivo, ao colocar em discussão princípios lógicos tomadoscomo dados e, por isso mesmo, mantidos sem questionamento. Nesse sentido,tal explicação biológica é congruente com e complementar a posições relevantes

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nos debates epistemológicos contemporâneos, como a defendida por RichardRorty (1995). Além disso, as implicações dessa mudança de perspectiva atingemnão apenas a explicação operacional para os processos de produção deconhecimento, mas podem também iluminar reflexões éticas acerca das interaçõeshumanas envolvidas em práticas de ensino ou nas relações entre gruposhumanos culturalmente distintos, por exemplo.

Uma outra vertente de debates que pode ser beneficiada por talcompreensão dos fenômenos lingüísticos abriga temas mais restritos eespecializados dentro da filosofia como, por exemplo, a definição da naturezadas relações de referência. Ao considerar tanto a experiência sensorial dapresença de um objeto quanto as palavras (vocalizações, gestos, inscrições) eos fenômenos mentais a ele relacionados (a memória de um objeto conhecido,por exemplo) como resultados de processos corporais estruturalmentedeterminados, desencadeados nas interações com o meio ou na própriadinâmica interna de organismos com um sistema nervoso cuja organização fazcom que os resultados das mudanças de relações de atividade entre seuscomponentes desencadeiem novas mudanças de relações de atividade, aperspectiva corporalizada permite que se entenda em que plano se cruzamprocessos cujos resultados são observados em domínios fenomênicos disjuntos.Em outras palavras, permite compreender que enunciados lingüísticos,experiências sensoriais e processos mentais “abstratos” são gerados pelo operarda mesma base física, e que isso é o que constitui a relação entre referente ereferido, entre significante e significado. Dessa maneira, fornece uma explicaçãocoerente em termos conceituais e empiricamente sustentada, o que as explicaçõesfundadas na dicotomia mente/corpo não conseguem realizar, já que precisampostular mecanismos de natureza não-observável, propostos ad hoc.

Num plano mais amplo, todo o campo das reflexões sobre a mente temna abordagem corporalizada um instrumento fecundo e revitalizante. Oentendimento desse domínio de fenômenos como se constituindo e sendoobservado processual e interacionalmente, de maneira determinada pelaestrutura do organismo humano e modulada pelas transformações por elesofridas em suas interações com o ambiente (que inclui outras pessoas) explicauma certa padronização dos processos mentais e comportamentais dentro decada comunidade humana. Por isso mesmo, podemos compreender que o quese costuma substantivar como a mente humana não consiste em um dispositivoindividual com características universais determinadas de maneira prévia eindependente da existência de cada pessoa como ser vivo particular, mas simconstitui um campo interacional de possibilidades abertas, efetivadas conformevão transcorrendo os diversos trajetos individuais de interação com objetos epessoas. Assim existimos nós, e no entrelaçamento de nossas históriasconversacionais surgem os mundos que criamos, vivendo juntos.

Abstract

In a disciplinary setting characterized by a growing interest in cognitive and socio-cultural aspects of linguistic phenomena, this paper indicates some implications of

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this shift in research concerning philosophical subjects. The present discussion isdirected towards making explicit the differences between two explanatory paths,named here embodied and representationalist.Keywords: Embodiment; Biology of cognition; Language studies; Philosophy.

Notas

1O desenvolvimento das ciências cognitivas a partir de um certo momento pode ser descrito comouma sucessão de tentativas de resposta a essa pergunta. Para uma versão “oficial” dessa história,escrita por um pesquisador que adota tal perspectiva, ver Gardner (1995). Para uma reconstituiçãofeita a partir de outro ponto de vista, ver Dupuy (1996) levantando questionamentos relevantes àvisão representacionista. Para uma crítica mais detalhada à noção de representação e suas diversas“versões” como explicação de processos cognitivos e lingüísticos, ver Magro (1997 e 1999).

2 “Uma filogenia é uma sucessão de formas orgânicas aparentadas seqüencialmente por relaçõesreprodutivas. E as mudanças observadas ao longo da filogenia constituem a transformação filogenéticaou evolutiva”. (Maturana & Varela, 1984: 69). “A ontogenia é a história de transformações de umaunidade” (Maturana & Varela, 1973: 170), ou seja, é a história que vai do surgimento ao desaparecimentode um ser vivo individual.

3Esse permanente esforço de não deixar enfraquecer a coesão interna do modelo parece ter sido bemrecompensado, pois como observa Julie Andresen (1990), essa consistência conceitual foifreqüentemente apontada como um dos principais atrativos da teoria chomskiana, sendo um dosfatores de seu enorme sucesso na lingüística acadêmica durante décadas.

4Para uma crítica detalhada das soluções conceituais encontradas por esses autores, ver Paredes(2001).

5Benjamin Whorf, por exemplo, depois de descrever os aspectos verbais do hopi que denomina depunctual e de segmentative, sugere que o tipo de raciocínio construído na física quântica seria muitomais facilmente formulado nessa língua (WHORF, 1956 [1936]).

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